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«O meu rap funciona como uma forma de intervenção»

CAPICUA

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Em março, mês do Dia Internacional da Mulher, estivemos à conversa com uma rapper que se impôs com as suas letras interventivas e com uma clara atitude feminina e feminista.Capicua está de regresso à Costa para rimar no Caparica Primavera Surf Fest.

«EU SEMPRE GOSTEI, DESDE MIÚDA, DE ESCREVER»

A Capicua vai estar na 2.ª edição do Caparica Primavera Surf. Que espetáculo podemos esperar no dia 25 de março? Vai ser uma mistura dos meus últimos discos, o Sereia Louca (2014) e o Medusa (2015), ou seja, é uma mistura de um universo mais introspetivo e emocional, com músicas mais dançáveis e energéticas. Vai ser um concerto muito completo.

Em 2014, esteve na 1.ª edição d`O Sol da Caparica. Vai ser um espetáculo diferente? É bastante diferente, por várias razões. A equipa está diferente, está maior. Para além do DJ, toda a programação dos instrumentais é feita ao vivo, em tempo real. Vou também ter um novo ilustrador, o Vítor Ferreira, que trabalha agora comigo e que tem um estilo de ilustração mais exuberante, o que contribui para que a parte visual do concerto também seja diferente. O próprio reportório é diferente e mais alargado porque, desde O Sol da Caparica saiu o Medusa.

O Caparica Primavera Surf Fest alia a música e os desportos de onda… «Quando for grande vai ser «prof. de windsurf», como canta? (Risos)… isso é o refrão do Vayorken. Eu nunca experimentei windsurf porque fui crescendo e descobri outras vocações, mas continuo a gostar de estar ao pé do mar e, de facto, todos os meus discos mostram que o universo aquático está muito presente na minha vida. Eu tenho realmente uma grande paixão pelo mar, pelas suas histórias e tocar junto ao mar e da praia é sempre muito bom.

A ligação da Capicua com o hip-hop começou pelo graffiti? A cultura hip-hop tem várias vertentes: o graffiti, o rap, o break dance. A minha primeira ligação à cultura hip-hop aconteceu através do graffiti, com 15 anos. Comecei a conhecer as pessoas do meio e a frequentar as festas, onde todas as vertentes do hip-hop se encontravam. Foi aí que comecei a ouvir rap, de uma forma mais habitual, e a conhecer o rap da cidade do Porto. O meu envolvimento começou, cada vez, a ser maior, nos primeiros tempos com o graffiti, mas rapidamente passei a ser consumidora e depois a escrever as minhas próprias letras porque eu sempre gostei, desde miúda, de escrever. A descoberta da cultura hip-hop fez-me ir ao encontro do rap, canalizando, dessa forma, a minha escrita, uma vocação que sempre tive, para a música.

Capicua atuou na 1.ª edição do Festival O Sol da Caparica, em agosto de 2014

Em Almada, a Câmara Municipal promove várias iniciativas dedicadas ao graffiti, existindo também vários muros autorizados no concelho. Estas são boas ideias? Tudo o que permita a promoção do graffiti ou de outras formas de artes urbanas é sempre ótimo. Também aqui no Porto tem havido essa discussão de qual deve ser o papel da Câmara Municipal no incentivo da arte urbana. Eu acho que tem que se encontrar um equilíbrio entre os apoios das instituições públicas na legalização de algumas paredes e, ao mesmo tempo, impedir que não se crie uma certa domesticação destas formas de arte, pelo seu carácter subversivo e, por vezes, até contra cultural. Essa dimensão subversiva, essa rebeldia, tem de se manter sempre, sob pena de desvirtuarmos a própria identidade destas formas de arte. Estes incentivos são importantes mas, ao mesmo tempo, tem de haver a consciência de que a arte de rua não pode só existir nas paredes legais ou nas galerias de arte. Esta discussão deve ser feita por toda a gente. É necessário estimular sem domesticar.

«A IGUALDADE DE GÉNERO É UM TRABALHO CONTINUADO»

A Capicua é mulher, é do Porto… o hip-hop é um meio sobretudo masculino, mas conseguiu impor-se? O hip-hop é um meio bastante masculino, como muitas outras esferas da nossa vida cultural e social… eu acho que a questão não está tanto no hip-hop mas na nossa cultura patriarcal e na forma como, na nossa cultura, não socializamos as mulheres para desenvolver caraterísticas que são essenciais nestas esferas, como por exemplo, não as estimulamos para ter espírito de liderança, para se exporem, para darem opiniões, para serem competitivas, para aspirarem a uma presença mais forte no espaço público e, se calhar, menos no espaço privado… para desenvolverem talentos. Continuam a existir, na nossa cultura, dois pesos e duas medidas, quando falamos de homens e de mulheres. E o

As letras das músicas da Capicua «espelham aquilo que é a minha visão do mundo» | © Pedro Geraldes

hip-hop não foge a essa regra, mas também digo que se uma pessoa consegue mostrar que tem talento, trabalho, mérito e qualidade, os nossos pares reconhecem-nos, independentemente, do nosso género, origem geográfica e social ou cor da pele. A questão da igualdade de género é um trabalho continuado, que demora muito tempo, mas que eu acredito que está a acontecer e ao qual eu espero dar o meu contributo com o meu trabalho, para que as minhas filhas e netas possam ter igualdade de oportunidades.

Em março comemora-se o Dia Internacional da Mulher. A mulher está muito presente nas letras da Capicua? Eu tenho uma perspetiva feminina e feminista da realidade e gosto de imprimir essas opiniões, essas visões, essas perspetivas na minha música. As minhas letras espelham aquilo que é a minha visão do mundo, as minha preocupações e as minhas aspirações. Ou seja, é normal que os temas femininos, que são importantes para mim, por ser mulher e ter uma agenda feminista própria, surjam na minha escrita. E onde é que se inspira? Tudo pode servir de inspiração ou de desafio para a criação artística. Somos uma esponja que absorve tudo o que nos rodeia e, depois, transformamos, toda essa matéria-prima, num trabalho que transmite uma visão, uma perspetiva. É a leitura que nós fazemos, ou seja, é uma interpretação muito própria do mundo. E dessa realidade fazem parte os temas sociais ou políticos, as minhas vivências, tudo o que eu penso e vivo acaba por servir como matériaprima para a minha escrita.

Tem uma música sobre o percurso de cacilheiro. Como surgiu esta letra? Eu fui convidada pelo professor Boaventura Sousa Santos para fazer parte de uma equipa de trabalho que depois acabou por apresentar um concerto, no ano passado, em Coimbra, no âmbito de um colóquio internacional. O objetivo era trazermos, para cima da mesa, temas da atualidade, da vida portuguesa ou da história de Portugal, pouco abordados ou que estivessem por contar. E as mulheres que atravessam o Tejo no primeiro barco da manhã para ir trabalhar foi

Rodrigo Francisco no ensaio da peça O Timão de Atenas, em 2012, com o ator Luís Vicente | © Rui Carlos MateusVayorken «é uma música muito biográfica, fala da minha infância, das pequenas histórias que só a minha família conhecia» | © Pedro Geraldes

um dos temas que surgiu e que está muito ligado à segregação urbana, da forma como se distribuí o trabalho por diferentes franjas da população, marcando o quotidiano das cidades, a vida das pessoas e de como essas mulheres representam essas dinâmicas tão complexas. E calhou-me a mim falar sobre isso, descrever esse trajeto diário, chamando a atenção para este tema. São micro histórias que contam a história coletiva de todos nós.

A música que faz é também de intervenção? Tudo depende da perspetiva da pessoa que o faz. Eu gosto de utilizar a música como uma forma de falar sobre a realidade e tentar, nessa discussão, contribuir para a mudança de mentalidades e da própria realidade. O rap dá-nos a liberdade de falarmos do que quisermos, com muitas motivações diferentes e com as nossas missões pessoais associadas. Isto para dizer que, para mim, sim, o meu rap funciona como uma forma de intervenção. Quando a Capicua lançou o seu primeiro álbum a solo estava à espera de conquistar tão rapidamente o público e a crítica? No primeiro disco, não estava mesmo nada à espera. No segundo, apesar de já ter um percurso, também me surpreendeu. Fiquei muito contente mas foi algo que eu conquistei com muito trabalho. Tem sido uma boa surpresa. O reconhecimento é bom, mas o que eu gosto mesmo é de saber que as pessoas entenderam o disco e que se afeiçoaram, criaram uma ligação ou se identificaram com as minhas palavras.

E surpreende-a, ainda hoje, ouvir as pessoas a cantarem a música Vayorken? Claro que sim… porque é uma música muito biográfica, fala da minha infância, das pequenas histórias que só a minha família conhecia. Aliás, Vayorken era uma piada familiar, porque era assim que eu, quando era pequena, dizia Nova Iorque. E de repente… uma canção que era muito pessoal e com referências muito concretas à geração dos anos 80 e 90, transformou-se numa música transversal. Isso sim, ainda hoje me surpreende.

«A Capicua sou eu quando faço música» | © Pedro Geraldes

Recentemente esteve também envolvida num espetáculo para os mais novos (Mão Verde), que esgotou em poucos dias. É uma experiência a repetir? Foi muito giro e é uma experiência a repetir, porque foi muito enriquecedora. Fiquei com muita vontade de gravar aquelas músicas, fazer um disco a partir daquele concerto e tocar noutras salas do país e chegar a mais públicos.

«A MÚSICA É TAMBÉM UMA FERRAMENTA DE INTERVENÇÃO SOCIAL»

No site da Capicua pode ler-se que é «MC Militante desde 2004». O que é que isto significa? Eu encaro o rap como uma militância, um compromisso, uma missão, se calhar de uma forma romântica ou utópica, não só em termos estéticos e musicais, mas também em termos sociais e políticos. Para mim, a música é também uma ferramenta de intervenção social e de contributos para a cidadania. É uma forma de eu intervir, de chegar às pessoas e dizer aquilo que penso e, com isso, ajudar a transformar o mundo num sítio melhor.

Planos para um futuro próximo? Tocar bastante, continuar a espalhar a minha música por cidades onde ainda não toquei. Tenho preparado para a primavera o lançamento de um disco luso-brasileiro e, lá para o outono, deve sair o Mão Verde.

Ana Matos Fernandes e Capicua são a mesma pessoa? Eu acho que sim. Com o tempo foram-se misturando cada vez mais, seja nas vivências ou mesmo nas utopias. A Ana é aquilo que eu sou com os meus amigos, com os meus pais, quando estou em casa. A Capicua sou eu quando faço música.

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