Aqui p’ra dentro | Exposição performativa | Companhia Mascarenhas-Martins

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16 OUTUBRO A 20 NOVEMBRO 2021 GALERIA MUNICIPAL DO MONTIJO

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“O teatro é uma arte de todos os sentidos, portanto também é uma arte visual” Nuno Carinhas

Promover o desenvolvimento, a criatividade e a cultura através da difusão, crítica e qualitativa das artes plásticas contemporâneas como a pintura, a fotografia, a escultura, a cerâmica e todas as formas de expressão plástica é a missão permanente da Galeria Municipal de Montijo. Estes “novos tempos” exigem-nos coragem para inovar e criar novos mundos, e a Arte é a forma de comunicar e representar esteticamente os sentimentos, a visão ou a opinião dos criadores artistas, por isso, saindo da sua zona de conforto, a Galeria aceitou o desafio da Companhia de Teatro Mascarenhas-Martins para realizar uma exposição sobre alguns textos de Miguel Branco (autor de teatro), transformando-se assim, em vários palcos de teatro, onde serão apresentados três espetáculos duas vezes por semana, e quando os espetáculos não estão a ser apresentados, os seus cenários vão permitir aos visitantes “habitar e experienciar o espetáculo em causa”. Os grandes momentos do teatro estão ligados precisamente àqueles em que se tornou a realidade e na própria vida. O teatro é assim uma forma de viver a vida dos homens e mulheres. É esse o seu imenso valor e o seu insubstituível papel coletivo. Aceitemos este desafio que a Companhia Mascarenhas-Martins nos propõe com a exposição performativa aqui p’ra dentro e construamos nós, a nossa própria narrativa de vida sobre a obra escrita de Miguel Branco.

O Presidente da Câmara Municipal

Nuno Ribeiro Canta


Ficha artística e técnica Exposição

Ficha técnica Catálogo

Direcção artística Levi Martins, Miguel Branco, Pedro Nunes

Título Aqui p’ra dentro | Exposição performativa Companhia Mascarenhas-Martins

Direcção de produção Levi Martins Textos Miguel Branco Curadoria Marta Almeida Santos Interpretação André Alves, Diana Vaz, Carolina Varela, João Jacinto, Luís Madureira, Roxana Ionesco Voz e elocução Luís Madureira Guarda-roupa e adereços Ana Simão Assistência de produção André Alves, João Jacinto

Edição Câmara Municipal do Montijo Organização Galeria Municipal do Montijo Textos Pedro Nunes, Levi Martins, Marta Almeida Santos, Miguel Bonneville, Diogo Oliveira, Anabela Mendes Fotografia e imagens Levi Martins, Marta Almeida Santos, Pedro Carrilho Fotografia de capa e contracapa Eduardo Martins Projeto gráfico e divulgação Gabinete de Comunicação e Relações Públicas

Fotografia de cena Luana Santos

Impressão Tipografia Belgráfica, Lda. Tiragem 350 exemplares Depósito Legal 489747/21 ISBN 978-989-8122-77-3

Cenografia em O golfinho André Marta Almeida Santos

Ficha técnica Exposição

Música original em O golfinho André Scúru Fitchádu Desenho de luz em O golfinho André Adelino Lourenço Ilustração em Um pano em Vancouver Gonçalo Duarte Som em Um pano em Vancouver André Eusébio Apoio

Produção e organização Divisão de Cultura, Bibliotecas, Juventude e Desporto/Galeria Municipal Companhia Mascarenhas-Martins Design gráfico Gabinete de Comunicação e Relações Públicas Companhia Mascarenhas-Martins Montagem Divisão de Cultura, Bibliotecas, Juventude e Desporto/Galeria Municipal Divisão de Obras, Serviços Urbanos e Ambiente Companhia Mascarenhas-Martins

Montijo, outubro 2021 Galeria Municipal do Montijo Rua Almirante Cândido dos Reis, 12 • 2870-253 Montijo Telefone 21 232 77 36 E-mail cultura@mun-montijo.pt Horário 3.ª a Sábado das 09h00 às 12h30 e das 14h00 às 17h30 www.mascarenhasmartins.pt facebook.com/mascarenhasmartins instagram.com/mascarenhasmartins

www.mun-montijo.pt instagram.com/galeriamunicipaldomontijo


Um estado de sítio, é o que isto é. Estou sempre cercado pelo inimigo: eu. Soldados vestidos de mim colocam escadas gigantes na muralha — sobem, descem, comem, bebem. Catapultas com o meu rosto alinhadas no cerco. Aves com o meu nariz. Terrenos de mim. E eu continuo sentado a escrever, como quem enxota, sem convicção, um animal vadio. Gostava de saber se é quando escrevo que tento fugir ou se escrevo para continuar sentado. Gostava que antes e depois de um “ou” estivesse tudo aquilo que preciso de saber. Seja bem-vindo, estimado visitante. Se ainda não o consegui enxotar faça o favor de vir aqui p’ra dentro. Não, este não é propriamente um lugar confortável e para uma galeria habitualmente focada nas artes plásticas tem excesso de texto, não é? Sabe, é que o meu cérebro padece de palavras a mais e finalmente encontrei um sítio onde as depositar, temporariamente. Para ver se os soldados deixam de estar vestidos de mim — e idealmente passam a subir a muralha vestidos de si. Idealmente, claro. Miguel Branco



Menos, Miguel. Uma nota biográfica é sempre um exercício de ego. Quer do biografado, quer do redactor. Mais absurdo talvez é que muitas das vezes um e outro são o mesmo – assim se entra naquele dilema desconfortável da terceira pessoa do singular, como se o eu não fosse eu durante umas frases, só porque nos pediram um parágrafo sobre nós. Neste caso, por acaso, não é. O eu, aqui, não corresponde ao Miguel. É curioso como também o Miguel raramente corresponde ao seu eu, ou ao nosso eu para ele, ou ao eu dele para nós – mas isso, enfim, é outra peça. Agora, retomando o ego. Curar uma vida é mostrar que podemos ser mais sintéticos do que a verdade. E isso é ousado. Ousado porque implica escolhas. E escolher é fodido. Primeiro, escolhemos que a pessoa merece: inventa-se a necessidade do resumo de uma vida no meio deste trânsito congestionado por necrologias. Depois, escolhemos episódios ou marcos que definem alguém, por oposição à irrelevância do fútil e acessório; é acreditar que, por exemplo, uma pessoa é mais de Almada que do Benfica. Porque habitar importará mais do que ser adepto, talvez. Mas quem estabeleceu esses critérios? Quem manda nesta brincadeira do biografar? O que importa? Estudar? Vir de longe? Andar para aqui chegar? É a ideia de formação? De curso? De faculdade? Se estudou na ESCS e agora na FLUL, então… não; então, nada. É fazer desporto? Jogar andebol na adolescência e padel enquanto

adulto? Não… ninguém quer saber dos hobbies numa biografia. Quem coloca hobbies, das duas uma: ou é desinteressante ou está a tentar passar por engraçadinho. Não. Ser é trabalhar. E isto está assim desde… sei lá… 2013? Da Revolução Industrial? Se calhar vem de trás. Desde que inventaram as notas biográficas, seguramente. Daí surge o clássico seco e estóico aparente anti-herói: x é y, ponto. É isso e mais nada. É um todo total, numa palavrinha. É uma prova de força. E de preguiça, talvez. Preguiça e medo para nos darmos a conhecer, também. Porque ninguém é só aquilo que faz. Quando muito é isso e, simultaneamente uma péssima companhia para jantar. O assunto – a discussão sobre o que é ser e comunicar a existência – pode ser problematizado ao limite: ser de esquerda é mais relevante do que um passado premiado1 tão presente, no mundo intrincado do jornalismo de cultura? Noticiar e entrevistar, transcrever e editar, serão menos determinantes na forma de estar e pensar do que uma mundivisão ideologicamente carregada, pese embora apartidária? O carácter de uma pessoa evidencia-se sobremaneira através da clareza para rejeitar os partidos políticos ou da coragem para rejeitar uma carreira? E estas atitudes não se relacionarão? Onde reside a causalidade biográfica? Perguntas, perguntas – e ainda nem falámos do Miguel. Mas ele não está aqui e eliminando a problemática da auto-censura


vs. auto-enaltecimento, eliminado todo o auto, vivendo num paraíso medínico pré-Moedas em que só andamos de bicicleta, resta o ego de quem escreve. Como é que este tipo se relaciona comigo? Quem é ele para mim? Bom, antes de mais, uma biografia é um elogio, mesmo que velado de crítica. Gastar tempo a pensar em alguém é admitir uma valoração inconsciente. E escrever sobre isso é assumi-la. Mesmo que odiemos o Miguel – e acho importante odiar-se quem antes dos trinta anos decidiu fazer uma retrospectiva –, escrever e ler sobre ele, este nós que em notação de conjuntos seria Miguel, é sabermos que aquela barba, aquela voz grave, aquele ar pachorrento, não nos sai daqui de dentro. Podemos e devemos dizer mal dele, mas com carinho. Com a ternura inescapável de uma amizade à distância de uma

cerveja. Ou de uma mensagem no whatsapp. Ou de um cigarro compulsivo, mesmo para quem não fuma – “vou fumar” será sempre o seu convite discreto para uma conversa honesta fora das paredes da sala de ensaios. Miguel Branco (1991 – para breve) é dramaturgo. É um amigo. Um grande amigo. É autor de três espectáculos produzidos pela Companhia Mascarenhas-Martins. É um gajo publicado – quem sabe até no Brasil, vejam lá. É um burguesinho chunga assumido, sobrevalorizado na sua vontade de ser frito e subvalorizado na sua capacidade para ser sensível. É o caos em palavra escrita. É delicadeza, arrogância e amor – ambos os três ao mesmo tempo num só corpo. E olhem, quem quiser saber mais, é mandar mail. Ligar é que não, por favor. Já ninguém faz isso. Pedro Nunes

1 V. Prémio Internacional de Jornalismo Carlos Porto, Festival de Almada, circa 2014 e restantes colaborações com o i, Sol, Time Out e Observador.


Um escritor com companhia Foi em Almada que nos conhecemos. Eu era responsável pela comunicação da Companhia de Teatro de Almada, o Miguel jornalista no i. Entre as minhas tarefas incluía-se enviar notas de imprensa e convidar jornalistas para ensaios. Nesse momento nenhum de nós conseguiria adivinhar que anos mais tarde estaríamos a trabalhar juntos: a MascarenhasMartins não existia e o Miguel parecia confortável com a ideia de escrever sobre o teatro que se fazia em Portugal. O seu entusiasmo pelos espectáculos, artistas e companhias era visível; não era bem uma questão de gostar de tudo por igual, mas de respeitar esta actividade ao ponto de querer darlhe a visibilidade possível, dentro do pouco espaço que a cultura tem nos órgãos de comunicação social. Imagino que terá sido por isso que decidiu escrever sobre o início da nossa estrutura, num artigo publicado no i intitulado Uma companhia sem casa que não está sem abrigo. E foi também o motivo pelo qual se tornou óbvio que era ele quem devia moderar uma conversa que organizámos, em 2017, com a participação de três jovens companhias: Teatro da Cidade, Terceira Pessoa e Os Possessos. Depois dessa conversa fomos jantar. Quis o acaso que o Miguel ficasse perto de mim e da Maria [Mascarenhas], o que fez com que a certa altura o assunto fosse parar à escrita para teatro, o que levou a uma revelação: tinha uma ideia para uma peça suburbana com base nas suas experiências

enquanto partilhou casa com amigos. Costuma contar que insistimos muito para que levasse aquilo a sério, o que não aconteceu nos tempos seguintes. Mantivemos o contacto e lá nos íamos encontrando em Almada, até que um dia, deve ter sido em 2018, durante o Festival, se sentou connosco à mesa de um restaurante ali mesmo ao lado do Teatro Municipal Joaquim Benite e começou a desabafar de uma forma mais pesarosa do que era habitual. Estava farto do jornalismo, não por estar farto de teatro, mas porque as condições em que trabalhava estavam muito longe do ideal. Tinha começado a escrever com mais frequência sobre processos de trabalho, o que demonstrava o seu interesse em estar mais próximo da criação. Ainda não tinha acabado de escrever a tal peça, no entanto. Como por acaso íamos começar a trabalhar num projecto que teria como base o conceito de crise, decidimos convidá-lo a aparecer. Era um projecto em que a ideia seria começarmos por marcar uma série de encontros para conversar sobre as várias acepções de crise e, depois, decidirmos que tipo de objecto podia ser construído a partir das nossas reflexões. Começou a aparecer e, pouco a pouco, trouxe-nos cenas. Tínhamos pensado que este objecto podia até não ser um espectáculo de teatro, podia ser uma exposição com vários materiais, um percurso, enfim, estávamos abertos à hipótese de ir ter a um sítio diferente do habitual. Mas as circunstâncias, e a qualidade dos textos que


trazia, determinaram que levaríamos à cena o seu primeiro texto para teatro: Até parece. Não recordo bem a cronologia, mas entretanto terminou o outro texto, que tinha o título provisório de Três péssimos pessimistas e depois se transformou em Há dois anos que eu não como pargo. Decidimos levá-lo à cena, o que fez com que continuasse a trabalhar connosco de forma regular, estando presente em quase todos os ensaios e fases do processo, aceitando até expor-se em cena, a fazer de autor que se confronta com o texto e as interpretações a que pode levar. Veio a pandemia e, espectáculo interrompido, escreveu quase todas as letras que deram origem ao álbum Terrível Estado (algumas já existiam), cujo título é bastante revelador dos assuntos e ambiguidades que gosta de trabalhar, quase sempre com ironia ou sarcasmo: entre as manifestações exteriores de um desconforto oculto, impossível de definir, à tentativa de encontrar as causas interiores e exteriores para esse mal estar, numa escrita em que a política pode estar ali à espreita por entre conversas sobre as vantagens do fettucine sobre o esparguete. Os textos mais recentes que escreveu foram desenvolvidos durante um mestrado em Estudos de Teatro, peças curtas em que experimenta abordagens pouco convencionais, em que procura expandir as possibilidades do seu trabalho enquanto dramaturgo. Quando os li, pareceu-me que seria difícil terem lugar na programação da Mascarenhas-Martins, se

calhar por ter pensado que no Montijo seria difícil existir um contexto favorável para os apresentar. Ao contrário do que talvez se possa pensar, idealizo termos uma boa relação com os públicos e tenho consciência de que aquilo que temos produzido está muito longe dos hábitos estéticos e narrativos da maioria da população. Mas sei bem que não é pela via da adaptação aos códigos mainstream que se conseguirá alguma vez incentivar a curiosidade das maiorias em relação ao que é diferente e singular – adulterar os objectos para tentar torná-los mais facilmente compreensíveis é não confiar na capacidade das pessoas em aventurar-se na densidade de sentido que os artistas colocam nas suas obras. Por vezes o contexto é tudo, o que nos fez pensar que estes textos deveriam ser transformados em espectáculos, sim, mas talvez mais numa galeria do que num teatro. Foi assim que recuperámos uma conversa antiga com a coordenadora da Galeria Municipal do Montijo, Ana Reis Silva, que sempre manifestou interesse em que a nossa companhia um dia pensasse em expor-se ali, num espaço municipal que tem acolhido tantos e tão interessantes artistas visuais, entre a pintura, a escultura, a fotografia, o vídeo ou a joalharia, entre outros. Que proposta seria mais provocadora do que fazer uma exposição a partir da obra de um escritor, partindo dos textos do Miguel? Como se fosse possível fazer uma espécie de antologia de um autor que ainda agora começou,


trocando as voltas à ideia de reconhecimento e glorificação que costuma vir só com a idade ou, em tantos casos, depois da morte. Entretanto, no decorrer do processo que nos trouxe a esta exposição, a nossa história com o Miguel adensou-se, com a sua decisão em deixar o jornalismo, aceitando responsabilizar-se também pela comunicação da Mascarenhas-Martins, o que na verdade significa um alargar do seu território enquanto escritor e pensador da actividade tão complexa e delicada de uma estrutura de criação artística. Eis a história possível da relação entre um escritor e uma companhia, que começa de fora, de um ponto de observação distante, até que se presta a ser ele o perscrutado, numa exposição que, para quem estiver atento, é reveladora do aprofundar de um trabalho artístico que ainda há pouco começou e que fazemos questão de incentivar.

João Jacinto em Até parece (2019)

Pedro Nunes e André Alves em Até parece (2019)

Levi Martins João Jacinto, André Alves e Pedro Nunes em Há dois anos que eu não como pargo (2020)

Miguel Branco, Inês Dias, João Jacinto, Pedro Nunes e André Alves em Há dois anos que eu não como pargo (2020)



É o que é Aqui p’ra dentro deste universo desmantelado e fragmentado. Isto não é bonito. Não é para ser. Onde é que já se viu, conceber exposições bonitas, fabricar experiências agradáveis e desempoeiradas? Entre os despojos de uma vida corriqueira e a parafernália de um quotidiano desmazelado, sem tempo, paciência ou condição para se limpar e pôr uma cara fresca e alegre, espiamos, entre as cortinas, o mundo do Miguel. Uma dimensão (ou várias) onde se ironiza, onde se ri sarcasticamente da wellness, da mindfulness (e de todas as outras nesses, como se de ismos se tratassem) e do ligeiro. Onde se desdenha tudo o que ambiciona ser mais do que é. É o que é. Não me consigo decidir se o trabalho do Miguel dá voz à geração que usa expressões americanas sem pudor e cria espaço para a sua gíria, para a sua linguagem, ou se revela a intemporalidade do descontentamento e da reivindicação. Afinal de contas, a saturação, a frustração e o aborrecimento não têm idade. Um velho do Restelo preso no corpo de um jovem com opinião sobre tudo – até sobre a pontuação! (desculpa, Miguel) – e queda para a boa música, bons livros e a cerveja barata. Aqui p’ra dentro expõe o glitch de uma vida de massas e abraça tudo o que é nefasto, aborrecido, desarrumado e pouco apresentável – pouco fotogénico. Acarinha o plástico, o borrachento, o gorduroso, o insuflado e emperuado. É o que é. É isto.

Os cães, sapos, crocodilos e golfinhos. O indispensável para umas férias em Vilamoura, algures em 2000. O zoo todo, porque sem ele o bric-à-brac não fica completo. Os copos de plástico, as latas vazias a rebolarem pelo chão, entre pó e maços vazios. Cada cigarro, um minuto. Uma desilusão. A marcação temporal que o freguês quiser usar para pontuar uma narrativa assente no trivial. O Miguel repõe dignidade e vida ao que pensávamos que já tinha expirado, que tinha azedado e sido posto de lado. A experiência quotidiana, as manias e os tiques, a preguiça para pronunciar corretamente, os jogos e desafios usados para matar o tempo, o ócio dos entretantos, dos interstícios de qualquer vida humana. O esgar, o argh, o “Whatever, não quero saber”, o revirar dos olhos e troçar de seguida. O amor ao refastelo – numa cadeira, num sofá, no chão, onde quiser, desde que se esteja em aparente repouso – acompanhado de uma bebida, como se toda a vida se desenrolasse nessa (in)cómoda posição, inquietada apenas por estímulos externos. O Miguel espreme o melhor de uma situação quase intoleravelmente mundana. “Coisa simples. Isso não custa nada. Palhinha.” é o que nunca se dirá do universo do Miguel. E afinal quem “curou” quem? Fui eu que fiz a curadoria de uma exposição sobre o trabalho do Miguel, ou foi o Miguel que fez a curadoria do que nos atafulha o dia-a-dia? Marta Almeida Santos





o pano que cai e toda a tua voz miguel, a dificuldade em escrever sobre o teu texto, ou a partir dele, reside em escrever sobre ele. ou seja, sobre ti e não sobre mim. mesmo quando é sobre os outros é sempre sobre nós. já sabemos isto. mas eu gostava de o poder contornar – gostava de me poder contornar. também sabemos isto. todo o processo demoraria mais de dois anos. mas eu não tenho esse tempo para corresponder ao teu convite. então arrancamos: arrancas palavras à imagem, eu arranco palavras às tuas palavras arrancadas à imagem. gostava que as minhas palavras constituíssem uma carta de amor. palavras de amor para as tuas palavras. ou seja, para ti. palavras de amor para a tua voz que se multiplica – sinto-a em cada uma das personagens, dentro e fora da imagem. leio-te a discutir contigo mesmo, implantado nesses corpos paralisados e transparentes. a tua voz que é vozes, é outra luz que nos mostra a fotografia. não surge por dentro mas por detrás. é por detrás da fotografia que te oiço, e é através dela que compreendo. ou melhor, que sei. sei que a christine, a fiona e o martin só existem porque tu existes. que pensam porque tu pensas. que têm vida porque tu também a tens. eles discutem porque é assim que tu discutes todos os dias contigo mesmo, embora essas discussões não se oiçam fora de ti. é daí que tu floresces, que te crias e te mostras – num duro julgamento que se ri para não ficar empedernido. é sério, o julgamento, mas ri-se. tenta rir-se sempre. e nós sabemos os truques que

usamos para que possamos não ser consumidos pela seriedade mortal de um orador saturnino. sabemos como podemos encaminhá-lo para outra sala, pousando sobre as suas costas uma mão apaziguadora, fazendo-o mudar de assunto. fazendo-o até deitar-se no chão e silenciar-se porque finalmente percebe que tem um corpo. as tuas vozes que são uma, falam a mesma língua. são absolutamente próximas porque absolutamente tuas. não há impostura, é o que eu quero dizer com isto. são vozes de agora porque tu és de agora. e há qualquer coisa nisso que me apazigua. talvez porque enverede sempre por caminhos longínquos – talvez porque desconfie do momento presente. dás-me motivos para poder mudar de ideias, para me poder sentir um pouco mais seguro quando sou obrigado a ficar aqui, quando não posso engendrar remotas travessias. olhas para a fotografia como olhas para ti mesmo, como olhas para o mundo – de sobrolho franzido, com rasgos de ironia, e um genuíno prazer nesse jogo. desdobrar o pano e desdobrar o monólogo – as palavras estão do teu lado porque és justo com cada uma delas. não há nada mais nobre do que isto. termino a minha carta assim: imagino a fotografia projectada, alguém sentado num banco, uma sala iluminada apenas pela luz da projecção. é um museu, não é uma sala de teatro. é uma peça, mas não é um acontecimento teatral. embora, claro, também o seja. e é como acontece no museu improvável do joão paulo serafim: “vai para além de um museu de imagens, é antes uma máquina desenhada para pensar sobre a imagem”. bonneville, agosto 2021



O que senti ao ler O golfinho André De onde vem a humanidade? Para onde vai? Quem inventou Deus e os deuses, poderá ter sido Deus ou algum charlatão nas margens do Nilo? Quem se lembrou de inventar a sopa camponesa? Não sei e acho que nunca vamos saber. Nem o Miguel Branco, por muito que talvez ele quisesse, ou que, como o nosso homem de licra preta, seja algo que, como um relâmpago em noite de céu carregado nos passa pela cabeça. Mas todos nos questionamos, em algum ponto da nossa vida, como viemos parar a este momento actual da nossa vida. Expectativas concretizadas e goradas, pancadas da vida, alegrias da vida. Grandiosidade de mão dada com o aleatório parecer das coisas, pensadas ou que nos aparecem no colo. E a Sandra deu por ela numa lixeira a céu aberto. A existência numa vida onde os instintos básicos guiam os nossos relógios diários traz-nos a liberdade da vida e a ditadura da sobrevivência biológica. E aí entra a dúvida que coloquei: como é que iluminamos a vida diária? Como fazemos de um monte de lixo o nosso palácio de sonho? Com a conjugação, real ou imaginária, da amizade, das histórias de vidas terceiras, como a narrativa da transformação idealizada mas apressada pelo golfinho André, com muambas sem ingredientes, com sonhos sem substância, ou substância sem sonhos. Encontrar o balanço diário num só dia até é relativamente fácil. Difícil é repetir o ritmo sem música, bailar sem ritmo e preencher a repetição diária com fortaleza mental e ritual. Scúru Fitchádu na batida, motes em grego para alimentar conversa

e histórias para impressionar amigos, que vão fingir acreditar em nós, como a do golfinho 2D que quer ser ahskdakjdadjs e que para isso hahdhsajdhasj. (Para mais informações vão ao teatro e absorvam o talento do Miguel e dos pares que o rodeiam). A consciência, ambição, o ruído, o medo da normalidade, do passado que existiu, do passado que poderia ter existido, chega na sombra da forma do homem de licra preta. Traz ainda mais coisas, mas cada um as sentirá da maneira que deve. A frontalidade racional de Miguel Branco faz-se sentir nas passagens sem voz, na objectividade de conversas de alma e na saída que o público perceberá quando a perceber e até se a chegar a perceber. Não sou um espectador tradicional de teatro. Nem leio guiões como quem lê a sina. Mas a marca que fica é fácil: Que vida é esta? Como é que viemos aqui parar? Porque é que escolhemos dez coisas e a décima primeira é a vida e o acaso que escolhem e essa é que nos desenvolve ou faz encolher? Não se preocupem, não vão ter de fingir que gostam de teatro ou que no final da peça vão encontrar a chave da vida. O Miguel só nos faz questionar, entender conceitos, pensar neles, sentir coisas, sorrir e dançar na cadeira. E, por favor, se quiserem dar o passo seguinte para serem melhores pessoas... Falem com ele no final da peça, paguem-lhe uma cerveja, talvez portuguesa, apesar de ele vos ensinar que a vida não tem nacionalidade. São quatro as personagens desta peça. Eu juntaria a quinta, que para mim é a lixeira. Mas o que vos diria mesmo é para vocês serem a sexta: entrem na cabeça do Miguel e deixem-se guiar pela viagem que ele nos proporciona. Vai ser uma óptima golfinhada. Diogo Oliveira



Até onde se estrangula e camufla o vazio? Notas sobre Lama ressequida com marcas de carros1 de Miguel Branco Terra vermelha entre poilões Em viagem de investigação pelo Arquipélago de Bijagós, corria o tempo de um Fevereiro quente, confrontei-me com a presença de alguns velhos na ilha de Orangozinho, que vestiam a parte de cima de uma farda de soldados rasos do exército colonial português com orgulho. Da cintura para baixo trajavam umas coçadas calças sem idade, finos eram os pés descalços. Estranhei tal vestimenta e ousei perguntar porquê. Difícil era o entendimento da língua, mas logo foi mediado por um jovem Bijagó, duas gerações a seguir, e que tudo queria traduzir para que entre os velhos e a minha pessoa não existissem dúvidas. E as respostas foram chegando devagar, plasmadas em vozes antigas que traziam à conversa um tom rememorativo. A casaca não camuflada de botões baços e muito limpa saltara de um saco esburacado para homenagear a presença dos brancos na tabanca. Com essa vestimenta os velhos tinham sido felizes. Comiam e bebiam todos os dias. Nada lhes faltava. Quando perguntei porquê estar do lado do opressor contra os próprios irmãos de raça, veio uma surpreendente resposta: «Nós não estávamos contra. Éramos uma grande família. Não havia contra nem a favor.» De que etapa do tempo colonial português falavam estes velhos? Saberiam eles que em ilha vizinha de Galinhas havia uma colónia penal tão idêntica à de Brá perto de Bissau, onde assassinos e ladrões partilhavam com presos políticos o inefável horizonte da morte aguardada?

Tem este breve episódio de viagem a função de fornecer à peça de Miguel Branco, Lama ressequida com marcas de carros, uma espécie de contraponto da ordem do plausível e que poderia ter sido um destino de embate para o seu protagonista, caso para ele tivessem sido consideradas outras formas de entender proximidade e distância. E nada teria sido tão a propósito, se na peça deste autor as demasiado breves (opção dele, claro) alusões ao conflito colonial português em Moçambique não se tivessem diluído em discurso de entrelaçamento e comportamento bizarro da sua personagem, provavelmente derivados dessa experiência traumática que quase a medo é referida, porque o medo é pavor antigo e não ultrapassado. E tal parece ter sustentação num permanente jogo de toca-e-foge com os objectos em cena ou com as sucessivas tentativas de criar questionamento com o mundo que lhe é exterior, especialmente em relação a actividades ao ar livre desempenhadas por jovens e para quem o corpo pujante é fonte de prazer e preferência, questão que só interessa ao protagonista porque é exactamente velho e rezingão. Acontece, porém, que o tempo e a distância na peça de Miguel Branco não favorecem a ingenuidade luminosa, pragmática e operativa do que me foi dado escutar da boca daqueles velhos Bijagós. Para eles, e especificamente para eles, o tempo colonial não foi vivido sob o disparar de metralhadoras nem com mortos por perto. A relação com os colonos, e que era de subserviência, era-o também de uma genuína gratidão por tornar menos adversa a insularidade em que viviam e em que continuam a viver até hoje. Esta é, sem dúvida, uma questão interessante e que


marca profundamente e em contextos diversos a existência do povo Bijagó no Arquipélago desde há milhares de anos – serem insulares –, e que também não se colocou às tropas portuguesas em campanha no território continental da então Guiné Portuguesa, actual Guiné-Bissau. Tracejar o traço contínuo da vida Em Lama ressequida com marcas de carros, um título escolhido a dedo a partir de Heiner Müller, e com possibilidades imagéticas muito fortes, o dramaturgo opta, e de forma coerente, por acentuar uma visão densa e inquietante da existência de alguém que já se não entende consigo próprio nem com o que o possa esperar ainda da vida. Ao contrário do que se passa na peça de Müller, não são os diferentes colectivos que importam, mas antes a construção de um conjunto de segmentos da experiência vivencial de uma personagem que se acostumou a contrapêlo ao passar dos solitários dias e à procura de uma ordem privada. Desconhecemos quais as missões que lhe foram confiadas ao serviço do exército português em África, sabemos muito pouco acerca desta questão. Atribuir o seu comportamento desregulado exclusivamente a efeitos provenientes da experiência bélica africana pode ser limitador no contexto da peça, uma vez que para além disso se trata de alguém que parece ter uma idade provecta e vive só. A conjugação de vários factores para a construção da personagem privilegia, neste caso, os elementos externos sobre os internos como forma de garantir a dimensão espectacular da peça, em particular, do monólogo. Apoiado nos objectos de que se

rodeia e com os quais espera criar a estrutura da representação cénica, o protagonista rejeita-os pela linguagem, exactamente porque o fosso entre proximidade e distância é de tal modo abissal que não dá aso a qualquer pacificação. E um protagonista pacificado não costuma interessar muito ao teatro. E esta personagem não tem nome (talvez como o Homem do Elevador de Müller), para que nela caibam muitos dos homens velhos deste país, os que foram e os que não foram à guerra. E assim nos perguntamos qual o assunto da peça? A subtil evidência de marcas da guerra? O peso dos anos e a solidão? Um mau feitio com causas múltiplas? Tudo isto junto? A quem interessa Lama ressequida com marcas de carros? Podemos nomear hipotéticos espectadores que tenham sido antigos combatentes na guerra colonial. Quantos deles ainda vão ao teatro? O protagonista tem resposta pronta para esta pergunta. Aqueles que se revêem na faixa etária da personagem? Talvez os masoquistas. Reconheceremse entre aqueles que praguejam contra o destino não é bom. A peça nada tem de comédia, embora torne por vezes ridícula a personagem. Rir de si mesmo pode ser uma saudável aprendizagem, mas para velhos? Outros espectadores terão de levar a dianteira. E indiferenciados parecem ser esses, talvez a única hipótese de se fazerem ouvir a si mesmos através do que é dito e representado. E no teatro isso funciona. A pedagogia de cena, neste caso ainda sob forma textual, revisita a vida de um específico colectivo através de uma única voz. Ela inquieta o leitor/espectador ao torná-lo íntimo do horizonte confessional da personagem. O caos interior do que se vai traçando na peça e que tem como limite o


discurso poético-absurdo é de tal modo perturbador que a sua exposição requer a criação de uma ordem como suporte da acção física, aqui ligada aos objectos em cena (robe, cadeira, balde, copo, bag in box, entre outros), que valem pela sua função material de apoio ao desempenho, mas que também e muito apropriadamente interceptam pensamento e linguagem da personagem. Estamos perante alguém que oculta a sua natureza por entre rotinas e que se apresenta com um feitio irascível (é mesmo insuportável no seu egocentrismo), alguém que se faz acompanhar pelo excesso de bebida (lugar-comum nestas coisas). O vinho é apaziguador, mas faz perder o controle. Talvez pudesse ser esse o efeito esperado, o que não quer dizer que em Lama ressequida com marcas de carros haja falta de discernimento da parte do protagonista ou a necessidade de criar um bêbado em cena. O vinho aqui solta apenas o discurso, tornando-o livre, corrido em velocidade e abrindo possibilidades de maior genuinidade. Para quem protagoniza um monólogo, a estratégia não está mal vista. Tudo isto não quer dizer que deixemos de estar perante alguém que sabe que tem de abrandar os seus ritmos para sobreviver aos demónios (será que é essa a sua vontade?) que o assolam e que provêm, de entre outras experiências, de um efectivo cenário de guerra que o tempo foi acrescentando. Proximidade e distância, no caso desta peça, são factores que contribuem para acentuar a desestabilização da personagem, em nada propícia a um comportamento equilibrado, coisa que não se pretende que o monólogo seja.

O cerne da questão Para quem escreve Miguel Branco? A quem pisca ele o olho? A evidência de que o autor escreve para si mesmo não é nada de novo nem tem de ser contrariado. Isso está na introdução à peça. Mas a quem ele pisca o olho já merece umas palavras como hipótese. Que ser é este que vai à Guerra Colonial e parodia linguagem coloquial de gerações mais novas do que ele? Os palavrões vão bem com a sua natureza endurecida e enfurecida. Mas os parodiados não estão lá para retorquir. Os conflitos interiores nascem e extinguem-se na intimidade de um robe que não se expõe nem se faz substituir por o que quer que exista como apelo exterior. Apenas o teatro tem o condão de fazer com que a personagem não esperneie tanto perante a vida e torne poética a sua natureza como forma de lidar com a morte. Ora tendo em conta que a respondência ficcional se pode ainda (pouco já será esse tempo disponível) inspirar em testemunhos vivos, como inquirir o discurso dramático de Lama ressequida com marcas de carros com assertividade política, quando o monólogo parece estar sempre a fugir da essencialidade de uma guerra em África? Como hipotecar uma conversa consigo mesmo sem lhe retirar a capacidade do enfrentamento que está na base da sua danação? Aqui proximidade e distância coincidiriam pela negatividade, isto é, por «uma negatividade, que age em termos de polarização e gera oposições.» (Han, 2014: 59)2 Lama ressequida com marcas de carros é uma invocação de um espaço e nada mais. Natureza e


civilização demarcam-se do deixar e do esquecer que é próprio da negatividade e a que o teatro atribui expressividade, representação, jogo e ritual. O protagonista desta peça está certo. Expressa-se por formas exteriorizadas, não interiores ou íntimas, e representa através de sucessivas máscaras ou aparências que vai sobrepondo e não eliminando. Tudo o que exprime deve-o ao jogo e à ritualização, ambos com regras objectivas e sem estados de alma que conduzam à subjectividade. Implícito está o viver em negativo de formas de separação, delimitação e enclausuramento, de ocultação e de inacessibilidade que correspondem ao tracejado de uma vida preparada para cena e sem grandes ambições. Como é que se vai parar aos diferentes tipos de armas e aos números do calçado de cada homem na frente? Extensões corporais que convocam o culto da morte, aquele ao qual se

responde na peça com a frase: «O tipo nunca vai chegar a tempo de ser quem é.» Abundante é a narratividade com que se constrói este monólogo e não existe, creio, qualquer problema com o recurso a formas fáticas para manter acesa a comunicação, porém, o que se revela violento é quando a comunicação interpela o outro como um igual e elimina o silêncio, a pausa, a reflexão, a distância, o recolhimento, o tempo para amadurecer o que se sente ou o que se diz. A quem se pisca o olho? A quem se pede cumplicidade na proximidade e na distância do espaço cénico? O que exigem o texto e o seu representante à distância cénica para que a contemplação não destrua a sociabilidade, nem tão pouco a compaixão? O que não se diz e não se mostra é tão configurador da acção quanto o que dela se apreende. Somos tocados? Tocamo-nos? Sim. Anabela Mendes, 11.8.2021

1 Este título foi pedido de empréstimo, imagino, à peça de Heiner Müller, A Missão – Recordações de uma revolução (1979). A frase citada integra o chamado “monólogo do elevador” ou “o homem no elevador”, na versão em prosa anterior à peça, e assim é conhecido entre os estudiosos do dramaturgo. Esse monólogo só aparentemente cria uma cisão face à forma de diálogo dominante no texto dramático, e isto porque os conteúdos nele trabalhados são uma expansão do assunto do mesmo – a traição. Pela primeira e única vez no decurso da obra, este bloco como uma unidade introduz na peça a temática da implacável ordem burocrática que caracterizava o exercício do poder político e social na ex-RDA e em outros países da Europa de Leste. Eis a frente actualizada da experiência do autor, no seu país natal e fora dele, mas que incluía também as visitas às Américas e o contacto com outras realidades. Expõe este monólogo o registo absurdo daqueles que deixaram de ter quem lhes entregue uma missão para cumprir, o que não quer dizer que não se continuem a sentir condicionados pelo cumprimento de um determinado dever que deixou de existir. Tem este monólogo uma estrutura trágica com alguns elementos cómicos (não existe uma cronologia do tempo), o que permite dizer que A Missão é um texto em variações porque existiu a Revolução Francesa e as suas abortadas missões até hoje.

A revolta dos mortos há-de ser a guerra das paisagens, as nossas armas as florestas e as montanhas, os mares os desertos do mundo. Eu hei-de ser floresta, montanha, mar deserto. Eu a África. Eu a Ásia. As duas Américas sou eu. Sasportas a Galoudec. Heiner Müller, A MISSÃO e outras peças, tradução e posfácio de Anabela Mendes, Lisboa: apáginastantas, 1982, p. 79. 2 Byung-Chul Han, 2014, A Sociedade da Transparência, tradução de Miguel Serras Pereira, Lisboa: Relógio D’Água.




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