Coletivo Negro Minervino de Oliveira
CNMO N° 2 20.09.2021 Rio Grande do Sul
Organização: Coletivo Negro Minervino de Oliveira - Rio Grande do Sul
Pesquisa e Redação: Brenda Candeia, Isadora Costa, Wellington Navarro, Maicon Schirmann
Edição e Formatação: Brenda Candeia
Fotos: Leonardo Milano, Andressa Zumpano, Alass Derivas, Edgar Kanaykõ
Artes: Dinelli
Foto: Alass Derivas
O Coletivo Negro Minervino de Oliveira (CNMO) nasceu como uma frente de massas do Partido Comunista Brasileiro (PCB) voltada para a atuação junto à população negra e aos movimentos de luta contra o racismo e a discriminação racial. A ideia de criar uma nova organização surgiu da necessidade de diferenciar nossa luta antirrascista e comunista dos movimentos que creem haver solução para a questão racial dentro do sistema capitalista.
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MARCO TEMPORAL: EXPRESSÃO DA COLONIALIDADE DO DIREITO BRASILEIRO No dia 15.09.2021 foi suspensa a sessão do Supremo Tribunal Federal que debateria a implementação do Marco Temporal. A proposição do Marco diz que os povos indígenas só teriam direito sobre a terra até a promulgação da Constituição brasileira, ou seja até o dia 05 de outubro de 1988. Até o presente momento, houve dois votos, um a favor (Ministro Fachin) e um contra (Ministro Nunes Marques). É necessário apontar que quando foi conquistado por povos indígenas o direito às terras através da Constituição de 1988, houve diversas tentativas do agronegócio de pilhagem com tais terras, seja pela legalmente ou pela bala. Diversas manifestações ocorreram em frente ao palácio dos três poderes, e cenas de violência cometidas pelo aparato repressivo do Estado foram protagonizadas pelos parentes indígenas. É explícito que o artigo 231 da Constituição - assim como toda legalidade que atua em função do lucro na sociabilidade capitalista - se mostrou ineficaz na defesa de povos indígenas dos interesses da valorização do valor. Os povos originários sempre dependeram de suas próprias forças para resistir ao braço armado dos jagunços do latifúndio. A Nova República apenas é bem dita pelos inocentes que conseguem ver alguma possibilidade de melhora ou pequena mobilidade e tentam de alguma forma defender sua posição conquistada; ou pelos pertencentes à classe dominante, mas há aqueles que compartilham os ideais da burguesia de maneira voluntária. Diferente desses, tanto a população negra quanto parentes indígenas têm a escancarada visão da maneira com que a atual democracia burguesa é a boa e velha ditadura da burguesia, em que cada direito conquistado - seja um palmo de terra, liberdade ou apenas mais um dia de vida - é associado a muito suor, sangue e lágrimas. Para além disso, pode-se citar um trecho da defesa do Ministro Nunes Marques para entendermos de maneira mais profunda o que está em jogo: A propriedade privada é elemento fundamental das sociedades capitalistas, como é a brasileira atual. [...] A insegurança sobre esse direito é sempre causa de grande desassossego e de retração de investimentos. [1] (ALEXANDRE PEDE VISTA E SUPREMO ADIA JULGAMENTO SOBRE MARCO TEMPORAL, [s. d.])
A fala do ministro evidencia o interesse da classe burguesa latifundiária e o atual modelo capitalismo-dependente brasileiro baseado na monocultura agroexportadora. Sobretudo, a desrazão ocidental capitalista que se coloca como universal, mas universaliza apenas seus interesses, atropelando tudo e todos/as/es que estiverem em seu caminho. Para além disso, seus pressupostos estão cravados na reprodução do padrão de dominação do capitalismo atual.
Segundo Aníbal Quijano em seu texto Colonialidade e Modernidade/Racionalidade: A colonialidade, em consequência, é ainda o modo mais geral de dominação no mundo atual, uma vez que o colonialismo, como ordem política explícita, foi destruído. Ela não esgota, obviamente, as condições nem as formas de exploração e dominação existentes entre as pessoas. Mas não parou de ser, há 500 anos, seu marco principal. As relações coloniais de períodos anteriores provavelmente não produziram as mesmas sequelas e, sobretudo, não foram a pedra angular de nenhum poder global. [2](QUIJANO, [s. d.])
A Justiça Burguesa brasileira, imersa em sua colonialidade, coloca-se como bastião da “racionalidade", como o grande sujeito a decidir se é racional ou não o direito de povos indígenas à demarcação do que restou de seus territórios. Reproduz ainda a relação sujeito-objeto (razão sensação), em que ela é o sujeito que compreende o real e nós somos os sujeitos reificados (coisificados, objetificados) que, incapazes de tal compreensão, apenas sentem. Pressupõe-se a única capaz de usar a razão - em especial, a razão ocidental -, como se esta atuasse de maneira isolada e fosse a maneira exclusiva de saber através da qual é possível expressar a verdade. Entretanto, não é sobre a "razão", o “bem comum” ou a “boa fé” que a des-racionalidade da Justiça Burguesa opera, mas em função dos interesses da classe dominante, e, se há algum sentido “racional” na dinâmica da valorização do valor ela é predatória e catastrófica. A relação plural e diversa de indígenas com a terra é ancestral, condição necessária para existência do povo e de suas expressões culturais, artísticas, históricas, econômicas e espirituais. Baseia-se na coexistência mútua indivisível e de respeito com a terra, com plantas, animais, minerais e com o mundo espiritual. Seria pedir muito para o Ministro defensor do capitalismo brasileiro compreender essa complexidade que não cabe em uma lógica formal e contratual? Portanto, deve-se romper com a colonialidade para além do plano das ideias. O que dá sentido à manutenção e base material das hierarquizações raciais é o capitalismo e sua lógica de valorização do valor. Precisamos nos somar aos parentes contra o Marco Temporal e pelo direito seu direito a permanecer em suas terras, bem como o direito à demarcação dos territórios ainda não reconhecidos.
Demarcação das Terras Indígenas e Quilombolas já! Marco Temporal Não! Viva ao Poder Popular Rumo ao Socialismo!
Texto de Maicon Schirmann
[1] ALEXANDRE PEDE VISTA E SUPREMO ADIA JULGAMENTO SOBRE MARCO TEMPORAL. [S. l.], https://www.conjur.com.br/2021-set-15/alexandre-vista-stf-adia-julgamento-marco-temporal. Acesso em: 16 set. 2021. [2] QUIJANO, Aníbal. Colonialidade e Modernidade/Racionalidade. [s. l.], p. 10.
[s.
d.].
Disponível
em:
Dinelli
MARCO TEMPORAL OU GENOCÍDIO ATEMPORAL?
Não é de hoje que o Brasil é cenário de exclusão e de intermináveis retiradas de direitos de povos indígenas. Desde o ano de 1988, ao menos no papel, os povos originários do país têm direitos garantidos por lei. Além disso, a Constituição brasileira garante o direito às terras que por eles são ocupadas. Recentemente, no entanto, o Supremo Tribunal Federal (STF) colocou em análise o Marco Temporal, recurso que prevê que só teriam direito à terra os povos indígenas que ocupassem o referido espaço físico no dia da promulgação da Constituição. Com a posse de Jair Bolsonaro ao cargo de presidência no Brasil, os conflitos já existentes ganharam novos contrastes, principalmente no que se refere aos direitos básicos dos povos indígenas. Após assumir o cargo, segundo o Instituto Socioambiental (ISA) (2021), o presidente da república bateu um novo recorde, ultrapassando apenas Michel Temer, ao não declarar ou homologar nenhum território indígena - parte essencial do processo de demarcação de terras. O Marco Temporal é defendido principalmente pelos setores do agronegócio e pelos ruralistas, visto que estes são atores na disputa pelas terras que, teoricamente, detêm. Ainda segundo o ISA (2021), apenas 13% das terras brasileiras são, de fato, ocupadas pelos indígenas, o que coloca em cheque a falácia de que “falta terra para o desenvolvimento do agronegócio”, como citado pelo presidente da república. Há significativa concentração de povos na Amazônia, mas a luta por espaço Brasil afora é árdua e definitivamente não é novidade, pois envolve aproximadamente 500 anos de resistência e disputa por aquilo que é (ou deveria ser) básico. Na tentativa de mobilizar o país e reunir forças, mais de 100 povos indígenas de todo o país reuniram-se na Esplanada dos Ministérios, em Brasília, para gritar e lutar pelo direito à terra. É um momento histórico que acontece concomitantemente à pandemia de Covid-19, ponto de vulnerabilidade que se soma aos ataques à população em crescimento exponencial no último ano no que tange à atuação governamental. A tentativa de retirada dos direitos da população indígena é mais um marco do retrocesso. É a vida que, mais uma vez, é colocada de lado para que o genocídio possa seguir.
Texto de Isadora Costa
Dinelli
MARCHA DE MULHERES INDÍGENAS Em 19 de agosto de 2019 aconteceu a I Marcha de Mulheres Indígenas, que levou aproximadamente 2500 mulheres de mais de 100 povos até Brasília para representar a luta dos povos originários por respeito, território e existência. Existência esta que é desrespeitada e é atacada diariamente em um solo que a elas pertence. Representam a origem, o nascimento, a morte e, antes de tudo isso, a vida. Neste ano, mais especificamente em setembro de 2021, novamente, mulheres indígenas ocuparam as ruas de Brasília. Em 2020 a mobilização foi virtual, mas com as urgências e demandas relativas ao Marco Temporal, mais de 5 mil mulheres reuniram-se na capital federal entre os dias 7 e 11 de setembro de 2021 para a II Marcha Nacional das Mulheres Indígenas, organizada pela Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade (Anmiga). A luta é ancestral e, principalmente, pela garantia de futuro. É pela defesa do meio ambiente, por recursos básicos e pelos conhecimentos ancestrais. São as mulheres colocando-se na linha de frente na luta contra o Marco Temporal. Texto de Isadora Costa
Foto: Leonardo Milano [Jornalistas Livres]
Dinelli
O BRASIL É UMA INVASÃO Temos a força do ventre, temos a força da mãe terra, temos a força da nossa ancestralidade! [II Marcha Nacional das Mulheres Indígenas, de tema: "Mulheres Originárias: Reflorestando Mentes para Cura da Terra"]
Desde o fim de agosto, em Brasília, há a tensão entre grupos indígenas e articulações ruralistas devido ao julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF) pela defesa da tese do Marco Temporal. Além das diversas terras com processo de demarcação em andamento que podem ser afetados se o Marco Temporal for aprovado pelo STF, a decisão pode atingir territórios já homologados ou demarcados. Territórios indígenas enfrentam recorrentes ameaças, dentre as quais estão projetos de lei que buscam flexibilizar ocupações irregulares nessas terras. Nosso levante deve ser pelo direito dos povos indígenas à vida. A luta contra o Marco Temporal e o avanço das maquinarias opressoras sobre as vidas indígenas compõem o cerne dos movimentos sociais. Se é verdade que os povos originários, em sua diversidade e riqueza, são os responsáveis por sustentar a respiração do mundo, sejamos nós a força de solidariedade que com eles caminha. Nas palavras de Célia Xakriabá: "A solidariedade não pode ser parcial. Se a sociedade cala, o genocídio em nossos corpos fala. Não soltar a mão de ninguém é não soltar a luta." Em meio a alegações ruralistas e governamentais de que "não haverá um centímetro quadrado de terra demarcado", a resistência indígena pela demarcação de terras e a autodemarcação - como a do povo Tupinambá que reivindica território no Pará - são marcos contundentes da luta indígena.
Texto de Brenda Candeia
Foto: Andressa Zumpano
Dinelli
Registros da II Marcha das Mulheres Indígenas no dia 10.09.21. Do Acampamento na Funarte até a Praça do Compromisso pela W3 Sul. Lá, o Povo Pataxó hã-hã-hãe prestou uma
homenagem
a
Galdino.
O
indígena, também Hã-Hã-hãe, foi queimado enquanto dormia num banco daquela praça. Isso em 1997. Galdino foi à Brasília protestar por seus direitos, assim como as 5 mil mulheres que marcharam nesta sexta. [via @derivajornalismo, no Instagram] Fotos: Alass Derivas
Registros da II Marcha das Mulheres Indígenas Para dizer que mais nenhum indígena vai ser queimado neste país, 5 mil mulheres de 172 povos queimaram um boneco referente ao presidente Bolsonaro. Multiplicidade, diversidade no ser mulher, no vibrar território, no marchar na luta. [via @derivajornalismo, no Instagram] Fotos: Alass Derivas
Fotos: Alass Derivas
Fotos: Alass Derivas
Fotos: Alass Derivas
No entardecer do dia 26.08, na Praça dos Três Poderes, enquanto o Ministro Edson Fachin lia o relatório do processo do Marco Temporal, a pequena Kenawara Akyçã, do povo Kamakã Mongoió, passou por uma ritualística de iniciação. Aos 7 anos, recebeu seus braceletes e tornozeleiras de algodão sagrado, além da pintura sagrada das mulheres Kamakã.
Duas meias luas no peito, símbolo de vida para este povo, que é uma das etnias que compõem os Pataxó Hã-Hã-Hãe, na Bahia. Merong Kamakã, tio de Kenawara, diz: "hoje relembramos nosso irmão sol e nossa irmã lua, que há muito tempo estiveram na Terra!".
[via
@derivajornalismo,
Instagram] Fotos: Alass Derivas
no
Fotos: Alass Derivas
Foto: Alass Derivas
Foto: Andressa Zumpano
Essas são as familiares de Galdino Pataxó que fizeram ritual emocionante, durante a Marcha das Mulheres Indígenas no local onde o indígena foi queimado vivo. “Para que mais nenhum indígena seja queimado vivo nesse país.” [via @zumpanoandressa, no Twitter]
Fotos: Andressa Zumpano
Povo Xokleng assistindo e comemorando o voto do relator Edson Fachin
Fotos: Andressa Zumpano
Fotos: Andressa Zumpano
Fotos: Andressa Zumpano
Fotos: Alass Derivas
Fotos: Edgar Kanaykõ
Fotos: Edgar Kanaykõ
PARA OUVIR
Blablablá Criolo, Elza Soares, DJ Mam, DJ Dolores, Batida, Sônia Guajajara, Octa Push e Luana Flores [2020]
Força Katu Mirim [2020]
PARA OUVIR
Aguyjevete Katu Mirim [2020]
Território Ancestral Kaê Guajajara [2019]
CNMO INDICA
Como fazer amor com um negro sem se cansar (2012) - Dany Laferrière
“A aurora chegou, como sempre, sem que eu percebesse. Delicada. Raios de sol finos e suaves. Como as patas de um São Bernardo. O romance me olha, aqui, em cima da mesa, ao lado de minha velha Remington, dentro de um grande fichário vermelho. Ele é rechonchudo como um buldogue, meu romance. Minha única chance. VÁ.” [LAFERRIÈRE, 2012]
Estas são as palavras que encerram o romance de estreia do autor haitiano Dany Laferrière (1953 -). Natural de Porto Príncipe e filho de um ex-político proeminente do período anterior à ditadura no Haiti, após ter iniciado a carreira no jornalismo aos 19 anos de idade, teve o mesmo destino do pai: exílio forçado devido às perseguições políticas e ao terrorismo de Estado orquestrado pelos Duvalier (Papa Doc e Baby Doc). Assim, em 1976 passou a residir no Canadá, na cidade de Montreal, onde trabalhou por dez anos como operário até que, em 1985, publicou o primeiro romance da série que categorizou como “autobiografia americana”: o livro “Como fazer amor com um negro sem se cansar”. Tal “autobiografia” é composta por dez livros, a maioria deles escritos em Miami, sendo este de estreia e “País sem chapéu” os únicos traduzidos no Brasil até então. Vale lembrar que Laferrière foi o segundo escritor negro a receber uma cadeira na Academia Francesa de Letras, precedido somente do senegalês Léopold Senghor. O título deste romance, por si só provocativo, exprime a originalidade do autor em abordar temas espinhosos de maneira ácida, com humor, e sem perder o horizonte da crítica. Um leitor mais apressado, talvez, só enxergue as aventuras sexuais de homens negros com mulheres brancas no centro do capitalismo mundial. Todavia, o próprio autor em determinado momento da narrativa adverte: “Costumo dizer que quando começamos a soltar as fantasias, elas ganham vida própria. Não sei se você percebeu, mas praticamente não há mulheres no romance. São tipos. Há Negros e Brancas. Do ponto de vista humano, o Negro e a Branca não existem. Aliás, Chester Himes diz que os dois são uma invenção da América, assim como o hambúrguer e a mostarda em pó. Digamos que dou uma versão... pessoal”. O que está em jogo para Laferrière, como bom leitor de Fanon, são tipos, máscaras: a raça é uma fantasia, uma ficção na qual seu romance leva até o limite, nos convocando a refletir sobre os efeitos do colonialismo por meio das relações sexuais/afetivas. Em tempos de escassez crítica e da redução de questões complexas a formulações superficiais (“colorismo”, “palmitagem”, “amor preto” etc.), Dany realiza uma intervenção estética vigorosa, tocando nas raízes da opressão racial e exibindo sua materialidade entre um orgasmo e outro.
Texto de Wellington Navarro
CNMO INDICA República dos assassinos (1979) Sob direção de Miguel Faria Jr, com elenco composto por Tarcísio Meira, Sandra Brea, Anselmo Vasconcelos, entre outros, o drama-policial lançado em 1979, baseado no livro homônimo de Agnaldo Silva, aborda o tema das organizações paramilitares e sua relação com o poder político. Ambientado no contexto ditatorial brasileiro a partir da atuação do famoso “esquadrão da morte”, o filme propõe uma instigante reflexão sobre a aposta na solução dos problemas da violência urbana por meio da “justiça” armada e administrada por milicianos e políticos conservadores. Infelizmente, a obra permanece atual. [Texto de Wellington Navarro]
CNMO INDICA Filosofia Pop (Episódio 121) Joel Rufino dos Santos: neste episódio, os ilustres pensadores Wilson do Nascimento Barbosa e Amauri Mendes Pereira debateram a obra e o legado de Joel Rufino dos Santos, um dos mais importantes intelectuais brasileiros. A conversa foi muito rica e recheada de histórias contadas por quem esteve nas trincheiras do movimento negro na companhia de Joel. Uma baita aula para aqueles que ainda ousam sonhar e lutar! [Texto de Wellington Navarro]
IDEIAS PARA ADIAR O FIM DO MUNDO
Trecho de “Ideias para adiar o fim do mundo”, de Ailton Krenak - Companhia das Letras, página 9
“Como justificar que somos uma humanidade se mais de 70% estão totalmente alienados do mínimo exercício de ser? A modernização jogou essa gente do campo e da floresta para viver em favelas e em periferias, para virar mão de obra em centros urbanos. Essas pessoas foram arrancadas de seus coletivos, de seus lugares de origem, e jogadas nesse liquidificador chamado humanidade. Se as pessoas não tiverem vínculos profundos com sua memória ancestral, com as referências que dão sustentação a uma identidade, vão ficar loucas neste mundo maluco que compartilhamos.”
Trecho de “Ideias para adiar o fim do mundo”, de Ailton Krenak - Companhia das Letras, página 12 “A ideia de nós, os humanos, nos descolarmos da terra, vivendo numa abstração civilizatória, é absurda. Ela suprime a diversidade, nega a pluralidade das formas de vida, de existência e de hábitos. Oferece o mesmo cardápio, o mesmo figurino e, se possível, a mesma língua para todo mundo. Para a Unesco, 2019 é o ano internacional das línguas indígenas. Todos nós sabemos que a cada ano ou a cada semestre uma dessas línguas maternas, um desses idiomas originais de pequenos grupos que estão na periferia da humanidade, é deletada. Sobram algumas, de preferência aquelas que interessam às corporações para administrar a coisa toda, o desenvolvimento sustentável. O que é feito de nossos rios, nossas florestas, nossas paisagens? Nós ficamos tão perturbados com o desarranjo regional que vivemos, ficamos tão fora do sério com a falta de perspectiva política, que não conseguimos nos erguer e respirar, ver o que importa mesmo para as pessoas, os coletivos e as comunidades nas suas ecologias. Para citar o Boaventura de Sousa Santos, a ecologia dos saberes deveria também integrar nossa experiência cotidiana, inspirar nossas escolhas sobre o lugar em que queremos viver, nossa experiência como comunidade. Precisamos ser críticos a essa ideia plasmada de humanidade homogênea na qual há muito tempo o consumo tomou o lugar daquilo que antes era cidadania.”
O AMANHÃ NÃO ESTÁ À VENDA
Trecho de “O amanhã não está à venda”, de Ailton Krenak - Companhia das Letras, páginas 4 e 5 “Vivemos hoje esta experiência de isolamento social, como está sendo definido o confinamento, em que todas as pessoas têm de se recolher. Se durante um tempo éramos nós, os povos indígenas, que estávamos ameaçados da ruptura ou da extinção do sentido da nossa vida, hoje estamos todos diante da iminência de a Terra não suportar a nossa demanda. Assistimos a uma tragédia de gente morrendo em diferentes lugares do planeta, a ponto de na Itália os corpos serem transportados para a incineração em caminhões. Essa dor talvez ajude as pessoas a responder se somos de fato uma humanidade. Nós nos acostumamos com essa ideia, que foi naturalizada, mas ninguém mais presta atenção no verdadeiro sentido do que é ser humano. É como se tivéssemos várias crianças brincando e, por imaginar essa fantasia da infância, continuassem a brincar por tempo indeterminado. Só que viramos adultos, estamos devastando o planeta, cavando um fosso gigantesco de desigualdades entre povos e sociedades. De modo que há uma sub humanidade que vive numa grande miséria, sem chance de sair dela - e isso também foi naturalizado.”
Trecho de “O amanhã não está à venda”, de Ailton Krenak - Companhia das Letras, página 8
“Governos burros acham que a economia não pode parar. Mas a economia é uma atividade que os humanos inventaram e que depende de nós. Se os humanos estão em risco, qualquer atividade humana deixa de ter importância. Dizer que a economia é mais importante é como dizer que o navio importa mais que a tripulação. Coisa de quem acha que a vida é baseada em meritocracia e luta por poder. Não podemos pagar o preço que estamos pagando e seguir insistindo nos erros.”