Francisco de holanda, Diálogos em Roma

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Francisco de Holanda, Diálogos em Roma (1548), introdução e notas de José da Felicidade Alves, Lisboa, Livros Horizonte, 1984 (…) E vós, M. Francisco de Holanda, se pela arte da pintura esperais de valer em Espanha ou Portugal, daqui vos digo que viveis em esperança vã e falaz, e que por meu conselho devíeis de viver antes em França ou em Itália, onde os engenhos se conhecem e se muito estima a grã pintura. Porque achareis aqui homens particulares e senhores que não gostam ora muito da pintura, como ora André Dória, que todavia pintou magnificamente o seu paço, e satisfez magnificamente mestre Ferino, pintor dele; e como o cardeal Fernes, que não sabe que coisa é pintura, o qual ao mesmo Ferino fez mui honesto partido, só por se chamar seu pintor, dando-lhe vinte cruzados por mês e ração de mantimento para ele e para um cavalo e moço, afora pagar-lhe muito bem suas obras. Vede que fizera o cardeal Delia Valle7' ou o de Cesis! Assim mesmo o papa Paulo que, ainda que não é muito músico * nem curioso na pintura, e todavia o faz bem comigo e ao menos muito melhor do que lhe eu peço. E eis aqui está Orbino, meu criado, a que ele somente dá, por me moer as cores *, dez cruzados cada mês, afora a ração no paço. Deixo já seus vãos favores e carezas *, de que me às vezes corro *. Ora do muito desmelancolizado * Sebastião Veneziano que direi eu? — ao qual (sem vir em tempo favorável) deu o papa o selo do chumbo com a honra e proveito que tal ofício requer, sem o preguiçoso pintor ter pintado mais que duas sós coisas em Roma, que muito a Messer Francisco não espantaram. Assim que nesta nossa terra até os que não estimam muito a pintura a pagam muito melhor que em Espanha e Portugal os que muito a festejam; por onde vos eu aconselho, como a filho, que vos não devíeis de partir dela, porque hei medo que. não o fazendo, vos arrependais.» — «Eu, senhor Micael Angelo, vos tenho em mercê o conselho, lhe disse eu, mas todavia eu a el-rei sirvo de Portugal, e em Portugal nasci e espero de morrer, e não em Itália. Mas pois me fazeis tanta diferença do avaliar da pintura entre Itália e Espanha, fazei-me graça de me ensinardes como se deve de avaliar a pintura, porque estou nesta parte tão escandalizado que não confio de mim saber avaliar nenhuma obra.» —«Que chamais avaliar? me respondeu ele. A pintura, em que eu e vós falamos, quereis vós que se pague avaliada, ou que a saiba ninguém avaliar?—Porque eu, aquela obra estimo que vale muito preço que pela mão dum valentíssimo homem é feita, ainda que seja em breve tempo, porque já sendo em muito, quem lha saberá estimar? E aquela tenho por de mui pouca valia que em muitos anos se pintou de quem pintar não conhece, ainda que pintor lhe chamem; que as obras não se hãode estimar pelo espaço do trabalho perdido nelas e inútil, senão pelo merecimento do saber e da mão que as faz; que se assim não fosse, não pagariam mais por uma hora de estudo a um letrado * por ver um caso de importância que a um tecelão por quantas telas tece em toda a vida, nem que a um cavador que todo o dia está suado em trabalho. E por tal variar, naíura é bela! E é muito néscia aquela avaliação que é avaliada por quem nem o bom nem o mau entende da obra; e valendo umas pouco avaliam-nas em muito, e das outras que mais valem, não pagam somente o cuidado com que são feitas, nem o descontentamento que o mesmo pintor recebe quando sabe que 1


lhe hão-de avaliar a sua obra; nem o grandíssimo desgosto que recebe em pedir a paga ao desmúsico * tesoureiro. Os antigos pintores não me parece que foram destas vossas pagas e avaliações espanholas contentes; nem eu certo cuido que o são, pois que vamos haver alguns tão magníficos e liberais que, sabendo que emsua pátria não havia dinheiro que bastasse a pagar suas coisas, as dava liberalmente de graça, tendo despendido na tal obra tempo, e trabalho do espírito, e fazenda. Assim como foram Zêusi Eracleote e Polignoto Tasio e outros. E outros houve de ânimo mais impaciente que gastavam e quebravam as obras que tinham com tanto trabalho e estudo feitas, por ver que lhas não pagavam como elas mereciam. Assim como um pintor que, mandando-lhe César fazer uma tábua de pintura, e pedindo-lhe por ela tanta soma de dinheiro que o não queria dar César (porventura por fazer melhor o seu ofício) tomou o pintor o retábulo e queria-o quebrar, com sua mulher e filhos ao redor, chorando tamanha perda. Mas César o enleou então daquela maneira que a um César se convinha, e lhe deu dobrada paga do que lhe antes pedia, dizendo-lhe que era doido, se esperava de vencer a César.» — «Ora senhor Micael, disse foão Zapata, espanhol, de uma dúvida me tirai, que não posso bem entender em a arte da pintura: porque se costuma às vezes pintar, como se vê em muitas partes desta cidade, mil monstros e alimárias, delas com rosto de mulheres e com pernas e com rabos de peixes, e outras com braços de tigres e asas, outras com rostos de homens, pintando rinalmente aquilo de que se mais deleita o pintor e que nunca se no mundo viu?» —«Sou contente, disse Micael, de vos dizer porque se costuma a pintar aquilo que se nunca no mundo viu, e quanta razão tem tamanha licença, e como e mui verdadeira, porque alguns que o mal entendem, costumam dizer que Horácio, poeta lírico, escreveu aquele verso em vitupério dos pintores: Pictoribus atque poetis Quidiibet audenti semper fuit oiqua potestas: Scimus et hanc veniam petimusque damusque vicissim1

porque o tal verso nada injuria os pintores, antes os louva e favorece pois que diz que os poetas e pintores têm poder para ousarem digo ousarem o que lhes aprouver. E este ver bem e este poder sempre o tiveram; que quando quer que algum grande pintor (o que mui poucas vezes acontece) faz alguma obra que parece falsa e mentirosa, aquela tal falsidade e mui verdadeira. E se ali fizesse mais verdade, seria mentira. Que ele não fará já coisa que não possa ser, naquilo que ela é; nem fará uma mão de homem com dez dedos, nem pintará num cavalo as orelhas dum touro nem anca de camelo; nem pintará a mão do elefante com aqueles sentimentos que tem a do cavalo; nem em o braço dum menino, nem na face, porá sentidos de velho; nem uma orelha, nem um olho fora do seu lugar; nem somente uma escondida veia num braço lhe é concedido lançar por onde quiser que estas tais coisas são mui falsas. 1

Horácio, Arte Poética, v.º 9-11 (ou Epístola ad Pisanos) Tradução: «Aos Poetas e Pintores, foi reconhecido o direito de tudo ousarem. Sabemos isso; e tal licença, ora lha damos, ora lha imploramos».

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Mas se ele por guardar o decoro * melhor ao lugar e ao tempo mudar algum dos membros (na obra grutesca, que sem isso seria mas sem graça e falsa) ou parte de alguma coisa noutro género, como a um grifo ou veado muda-lo do meio para baixo em golfinho, ou dali para cima em figura do que lhe bem estiver, pondo asas no lugar dos braços, e cortando-lhe os braços se as asas estiverem melhores: aquele (tal membro que ele muda, se for de leão ou de cavalo ou de ave, será perfeitíssimo como daquele tal género que ele é. E isto, ainda que pareça falso, não se pode chamar senão bem inventado e monstruoso * E melhor se decora a razão quando se mete n pintura alguma monstruosidade (para a variação e relaxamento dos sentidos e cuidado dos olhos mortais que as vezes desejam de ver aquilo que nunca ainda viram, nem lhes parece que pode ser) mais que não a costumada figura (posto que mui admirável) dos homens, nem das alimárias. E daqui tomou licença o insaciável desejo humano a lhe de aborrecer alguma vez mais um edifício com suas colunas e janelas e portasque outro fingido de falso grutesco, que as colunas tem feitas de crianças que saem por gomos de flores, com as arquitraves * e fastígios * de ramos de murta e as portadas de canas e doutras coisas, que muito parecem impossíveis e fora de razão, o que tudo até é mui grande se é feito de quem o entende.» E fazendo ele fim, disse eu: — «Não vos parece, senhor, que aquela falsa obra é muito mais conforme para ornamento no seu lugar (como numa quinta ou casa de prazer) que não já uma procissão de frades que é coisa mui natural, ou um rei David fazendo penitência, que lhe fazem grande injúria quando o tiram de um oratório? E não vos parece mais conveniente na pintura de um horto ou de uma fonte o deus Pã tangendo em uma zamponha *, ou uma mulher com rabo de peixe e asas (que se viu poucas vezes)? E que muito mor falsidade é pôr uma coisa certa fora do seu lugar que não uma inventada no lugar que a está pedindo? E desta razão procedem todas as outras a que chamam alguns impossibilidades na pintura. E ainda ao contumaz que disser: como pode uma mulher de rosto fermoso ter rabo de peixe e as mãos de ligeiro cervo ou onça, com asas nas costas como anjo? A este se pode ainda responder, que, se aquela desconformidade está em sua proporção em cada uma das suas partes, que está mui conforme e que é mui natural; e que muito louvor merece o pintor que pintou coisa que se nunca viu, e tão impossível, com tanto artifício e descrição que parece viva e possível, e que desejam os homens que as houvesse no Mundo, e que digam que lhe podem tirar penas daquelas asas, e que está movendo as mãos e os olhos. E assim o que pintar (como dizia um livro) uma lebre, que tenha necessidade, para ser desconhecida do cão que a seguiu, de letras que o declarassem, este tal, pintando coisa tão pouco mentirosa, se pode dizer que pinta uma grande falsidade, e mais difícil de achar entre as perfeitas obras da natureza que uma mulher fremosa com rabo de peixe e asas.» Consentiram eles ao que eu dizia, até o mesmo foão Zapata que não era mui músico * nos primores da pintura. E vendo mestre Micael que não era mal empregada a prática em nós, disse: — «Ora que coisa tão alta foi o decoro * na pintura! E quanto pouco os pintores que não são pintores se afadigam pelo observar! E quanto o grande homem nisto vigia!» —«Há aí pintores que não são pintores?», perguntou foão Zapata.

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—«Em muitas partes!, respondeu o pintor. Mas como quer que o vulgo da gente sem juízo ama sempre o que devia de aborrecer, e aquilo vitupera que merece mais louvor, não é muito de espantar de errar tão constantemente acerca da pintura, arte não digna senão de altos entendimentos; porque sem discrição nem razão alguma e sem fazer diferença, assim chamam pintor a um que não tem mais que os óleos e os pincéis bastardos ou delicados da pintura, como ao ilustre pintor que em muitos anos não nasce (o que eu tenho por coisa mui grande). E assim como há quem chamam pintor e não é pintor, assim há aí pintura que não é pintura, pois estes tais a fizeram. E o que é maravilhoso é que o mau pintor não pode nem sabe imaginar nem deseja de fazer boa pintura na sua ideia, porque a sua obra a mais das vezes é pouco desconforme da sua imaginação e pouco pior; que se ele soubesse imaginar bem ou mestriosamente na sua fantasia, não podia ter tão corrupta a mão que não mostrasse fora alguma parte ou indício de seu bom desejo. Mas nunca soube desejar bem nesta ciência senão aquele entendimento que entende o bem e quanto pode alcançar dele. E esta é grave coisa do extremo e diferença que há entre o desejo do alto entendimento na pintura ao baixo.» Neste lugar disse M. Lactando, que havia um pouco que não falava: —«Uma indiscrição não posso em nenhum modo sofrer aos maus pintores acerca das imagens que pintam sem devoção nem advertência nas igrejas. E por aqui quero que acabemos esta nossa prática É certo que não pode parecer bem o pouco cuidado com que pintam alguns as imagens santas, as quais um muito indiscreto pintor ou homem ousa a fazer sem nenhum medo, tão ignorantemente que, em lugar de mover devoção e lágrimas aos mortais, algumas vezes os provoca a riso.» — «Assim é ela tamanha empresa, prosseguiu M. Angelo que não somente basta para imitar em alguma parte a imagem venerável de Nosso Senhor ser um pintor, grande mestre e muito avisado; mas tenho eu que lhe e necessário ser de muito boa vida, ou ainda, se ser pudesse santo, para no seu intelecto poder inspirar o Espírito Santo. E lemos que Alexandre, o Magno, pôs grande pena a qualquer pintor que o pintasse afora Apeles, porque este só homem estimava que fosse suficiente de pintar o seu aspecto com aquela severidade e ânimo liberal que não pudesse ser visto sem dos Gregos ser louvado, e dos bárbaros temido e adorado. E pois um pobre homem da terra isto pôs por edito da sua figura quanta mor razão têm os príncipes eclesiásticos ou seculares de porem mui grande cuidado em mandarem que ninguém pintasse a benignidade e mansidão do Nosso Redentor nem a pureza de Nossa Senhora e dos santos, senão os mais ilustres pintores que pudessem alcançar em seus senhorios e províncias! E isto seria uma obra mui famosa e louvada em qualquer senhor. E até no Testamento Velho quis Deus Padre que os que houvessem somente de guarnecer e pintar a arca fcederís [«arca da aliança»] fossem mestres não somente egrégios e grandes mas ainda tocados na sua graça e sabedoria, dizendo Deus a Moisés que ele lhes infundiria sapiência e inteligência do seu espírito para poderem inventar e fazer tudo quanto fazer e inventar pudesse. E pois que Deus Padre quis que lhe fosse bem guarnecida e pintada a arca da sua lei quanto com mais estudo e peso deve de querer que seja imitada a sua serenal face e a de seu filho Senhor Nosso, e aquela seguridade, castidade e formosura da gloriosa Virgem Maria, que imitou São Lucas Evangelista- e assim no Sanefa Sanctorum o vulto do Salvador que está em São João de Latrão, como todos sabemos, e em especial Messer Francisco. Porque muitas vezes as imagens mal pintadas distraem e fazem perder a devoção ao menos aos que têm pouca; e pelo contrário, as que são pintadas divinamente até aos pouco devotos e pouco 4


prontos provocam e trazem a contemplação e a lágrimas e lhes põe grande reverência e temor com seu aspecto grave.»

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