Conto - A Dama Grita - Conn Iggulden

Page 1

A dama grita Conn Iggulden

O romancista histórico Conn Iggulden é autor da série sucesso de vendas O imperador – The gates of Rome, The death of kings, The field of swords e The gods of war –, que detalha a vida de Júlio César, e da série Conqueror – Wolf of the plains, Lords of the bow, Bones of the hills e Empire of silver –, sobre a vida de Gêngis Khan. Também é coautor dos sucessos de não ficção The dangerous book for boys e The dangerous book of heroes, bem como de Tollins: explosive tales for children. Seu livro mais recente, escrito com Lizzy Duncan, é Tollins 2: dynamite tales. Na história exuberante que se segue, ele nos coloca na estrada com um vigarista barato que encontra uma nova profissão – caçador de fantasmas –, mas descobre que alguns fantasmas são mais difíceis de caçar que outros.

Suponho que eu me veja como dono de um pequeno negócio, oferecendo um serviço necessário. Sou apenas um entre cem milhões de pessoas que pagam as contas com os talentos que Deus lhes deu. Não botei um nome elegante no que faço. Não sou mágico de palco, e para ser honesto, o tipo de clientes que tenho não se impressiona com esse tipo de coisa. Se eu me chamasse Além-Vida Ltda., ou algo assim, meu carro não andaria mais rápido. Não aquele carro. Faço parte da essência dos Estados Unidos, meu amigo. De qualquer forma, dos quatro de nós eu sou o único que recebe um salário, de modo que meus custos são muito baixos.

Ruas_Estranhas.indd 167

18/04/2012 14:10:39


168

Ruas Estranhas

Eu comecei a escrever isto para registrar alguns anos esparsos, mas não estou muito interessado em passar adiante minhas pérolas de sabedoria. Não para que outra pessoa possa xeretar o meu lixo diariamente. Se eu tivesse filhos não recomendaria isso como opção profissional, sabe? Estava tudo bem no começo, quando eu só lia os obituários e batia em portas. Todos querem dizer algumas últimas palavras aos que acabaram de partir. Caso esteja interessado, a primeira escolha era “Desculpe”, seguida de perto por “Deveria ter dito mais como o amava”, e minha preferida, que sempre era alguma variação de “Você está feliz?”. Não, minha cara viúva enlutada ainda com o cabelo engomado do funeral, ele está morto, é claro que não está feliz. Tenho de admitir que na época eu não tinha ideia se ele estava feliz ou não. Atualmente sei um pouco mais, mas chegarei a isso. Apenas costumava garantir a ela que o pobre Brian estava bem, que sentia sua falta e que estava ansioso para vê-la no céu. Se fizesse direito, também conseguia uns bons acertos. Claro, já que estou no assunto, vou contar. Acerto é quando você consegue um detalhe que eles imaginam que você não teria como saber. “Ele diz que se lembra daqueles dias nas Maldivas, isso significa alguma coisa para você?” É um momento delicioso e você nunca se cansa de ver o último traço de ceticismo desaparecer do rosto deles. Bastam duas boas afirmações genéricas e um pouco de pesquisa. Talvez eu tenha algum conhecimento que mereça ser passado adiante, já que P.T. Barnum deu fama a essas afirmações, mas tudo começou com um palestrante chamado Forer, nos anos 1840. Eu posso citá-la de cor, então lá vai: “Você tem grande necessidade de que os outros gostem de você e o admirem. Você tem a tendência a ser crítico em relação a si mesmo. Embora tenha algumas fraquezas de personalidade, em geral consegue compensá-las. Em certos momentos tem dúvidas sérias sobre se tomou a decisão correta ou fez a coisa certa.” E assim por diante. Entendeu? Isso se aplica a todos. Junte algumas dessas a um pouco de pesquisa pessoal e pode fazer uma leitura fria de que eles se lembrarão para sempre. Eles nunca acham que eu poderia fazer algum trabalho antes de bater na porta. A internet é boa para isso, embora os meus preferidos sejam os velhos microfi lmes encontrados em bibliotecas. Registros de jornais são úteis, mas o grande prêmio costuma estar em registros de tribunais e listas de eleitores. É tudo público. Atualmente, metade das pessoas sobre as quais eu leio ainda é a turma do Google e dos microfi lmes – velhos demais para ter ouvido falar de Facebook. O restante é sopa no mel. O Facebook não elimina uma página antes de mais ou menos uma semana após uma morte, e a política de privacidade deles é, bem, a diferença entre eu marcar pontos ou não, na maioria das vezes. Você ficaria espantado com o que é possível descobrir em dez minutos. Você só precisará de um acerto e é a única coisa de que se lembrarão quando você tiver ido embora. Você está na casa deles, lendo feito um louco, absorvendo

Ruas_Estranhas.indd 168

18/04/2012 14:10:41


A dama grita

169

cada detalhe. Com as senhoras você pede para ir ao banheiro e verifica os remédios. Eu tive uma adorável no começo, quando achei uma coleção de frascos de insulina e pacotes de agulhas. Eu verifiquei o nome dela nas caixas fechadas, então tudo o que precisei dizer foi: “John pede para lembrar-se das suas injeções”, e ela desmoronou, chorando como se nunca fosse parar. Quando terminou, eu tinha conseguido belos duzentos em uma hora, incluindo a viagem. Acho que foi quando me dei conta de que na verdade não precisava voltar a trabalhar. Podia fazer isso em tempo integral. Não funcionou exatamente como eu gostaria, não de início. O pagamento daquele dia foi mais do que voltei a ver novamente em um mês tentando, mas eu tinha de aprender o negócio e ganhava o suficiente para continuar. Podia fazer a pesquisa nas bibliotecas locais, o que não me custava nada. Bem, esta história não está saindo do modo como eu esperava. Já que afinal pareço estar repassando meus anos de sabedoria, vou contar o melhor e deixar que você avalie se seu trabalho é tão divertido quanto o meu. Pronto? Essa é a parte boa. Se você trabalha para uma lanchonete, nunca morrerá de fome. Se você visita viúvas, consegue um volume surpreendente de sexo pós-funeral. Não há maior afrodisíaco do que o luto. Posso dizer por experiência própria que o melhor é o terceiro dia, quando todos os parentes finalmente pediram uns ao outros para deixá-la sofrer em paz, significando na verdade que eles queriam retomar as próprias vidas. Posso dizer quais são as melhores assim que elas abrem a porta, algumas vezes apenas lendo o obituário. Marido grande e forte morto precocemente, filhos morando em outro estado. Essas garotas são como panelas de pressão, toda aquela emoção em estado bruto esperando para explodir. Vou dizer uma coisa, depois de um tempo, simplesmente ver a palavra câncer mexia com meu sangue. Nada é melhor do que um longo período de seca. Abençoados sejam por tentar, mas caras com câncer não são grande coisa na cama. Tudo deu errado, ou deu certo, ou mudou meu mundo, como queira chamar, quando eu conheci a Dama. Ainda não sei o nome dela, e se ela sabe falar, nunca faz isso comigo. Normalmente é uma maldição eu ter de lidar com mulheres todo dia. São elas que não costumam se importar de achar uma nota de cinquenta na bolsa por algumas palavras e minha voz mais suave. Não posso dizer que não as entendo, como um bêbado em um bar que você talvez conheça. Eu as entendo. Eu apenas não gosto tanto assim delas. Elas não pensam como nós, sabe? Se não fosse pelo dinheiro e pelo sexo, acho que nem falaria com elas. Loucas, todas elas sem exceção. Eu fui criado por uma mãe rigorosa e talvez ela tenha me feito a cabeça contra todas, sabe-se lá. Um homem pode escrever poesia ou mandar flores para elas, mas isso não dura muito depois que ele já marcou o gol, dura? Casamento é apenas garantir que aquilo esteja por perto quando você sentir vontade e talvez construir um ninho quente para seus fi lhos. Você vai se odiar por admitir, mas você sabe que

Ruas_Estranhas.indd 169

18/04/2012 14:10:41


170

Ruas Estranhas

o velho Jack Garner está falando a verdade. E não, claro que não é meu verdadeiro nome. Bem, eu o usei a vida inteira, mas não foi aquele com o qual nasci. Da Dama, tudo o que consigo é ela soprando em meus ouvidos, como o vento. Na verdade isso se revelou surpreendentemente útil, mas eu chego lá. Olha, você tem de me deixar contar a história do meu jeito, porra. Naquele tempo eu costumava anunciar. Ainda faço isso às vezes, embora os preços tenham aumentado e haja muita concorrência. Se a bolsa cai, meu negócio cresce, não sei por quê. Ah, você provavelmente pensou em tubarões se alimentando em tempos difíceis, mas do modo como vejo, eu distribuo muita boa vontade quando as pessoas realmente necessitam. Sou um filantropo e, sim, sei o que isso significa. Normalmente as deixo sorrindo. Chorando também, mas na maioria dos casos, sorrindo entre as lágrimas. Meu método de começar com o jornal local e conferir as mortes bancava gasolina, roupas e pagava o celular. Mas de vez em quando, talvez quando começava em uma área nova, eu colocava dois anúncios nos jornais locais. Não faz sentido comprar espaço em uma revista especializada, então é melhor economizar alguns dólares. Elas estão cheias de falsos profissionais – bem, óbvio –, mas os clientes que você quer não têm Spirit World enfiada em suas belas caixas de correio, sabe? Eu recebi o tipo de telefonema que me deixa excitado. Não tinha como dizer a idade pelo telefone, e havia um sotaque, não sabia dizer qual. Achei que talvez fosse holandês, então estava imaginando algum tipo grande, com cara de strudel de maçã, talvez com cachos louros, apenas me divertindo com imagens na cabeça enquanto conversávamos. Peguei meus mapas e coloquei o telefone no peito enquanto sorria. Penacook, New Hampshire, algum lugar esquecido por Deus no meio de Merrimack County. Belos nomes e não exatamente uma parte do mundo que eu conhecesse bem. Disse que eram mais de 600 km e teria de cancelar outro trabalho para ir até ela. Eu a estava sondando quanto a dinheiro, sabe? Mas ela era boa, apesar de todas as vogais engraçadas. Dei um preço e ela apenas fez uma pausa breve e concordou. Sem negociar, que era exatamente o tipo de cliente de que eu mais gostava. Depois disso, tudo ficou um pouco estranho. Perguntei a ela quem queria que eu alcançasse do outro lado e ela disse que não, desejava se livrar de um espírito. Disse que não estava nem um pouco interessada no que ele tinha a dizer, apenas o queria fora da sua casa. Eu quase disse a ela para procurar os Caça-Fantasmas e desliguei o telefone. Juro, se ela já não tivesse concordado com uma taxa pelo combustível da viagem que era absurda, teria feito isso. Talvez estivesse meio sem dinheiro naquela semana, não lembro, mas disse que estaria lá em dois dias e ela estalou a língua, bufou e só então concordou, como se não tivesse sido ela quem telefonara. Elas não pensam como nós. Não são lógicas. Eu tinha a ideia de que com aquela não haveria nem mesmo muito choro no meu ombro. Também estava certo, mas sou um paranor-

Ruas_Estranhas.indd 170

18/04/2012 14:10:41


A dama grita

171

mal bona fide. Deveria estar certo de vez em quando. Percebeu o latim? Autodidata, mas ainda sou muito melhor que você. Penacook é uma daquelas adoráveis cidades operárias, duzentos anos de idade e orgulhosa disso. Há um rio, algumas igrejas com torres altas e um belo e antigo memorial da Guerra Civil, como em mil outros lugares. Eu não chego perto de igrejas, embora você possa pensar que basicamente estamos no mesmo negócio, não é mesmo? Tudo diz respeito a dar um pouco de esperança. Encontrei o endereço na Fisher Street e aluguei um quarto no hotel mais barato que encontrei para poder vestir o terno preto e passar algumas horas. O que eu faço não funciona tão bem à luz brilhante do sol. O final da tarde é melhor, com as sombras de projetando. Pela minha experiência isso os deixa um pouquinho mais crédulos. Posso dizer que fiquei desapontado quando a Sra. Weathers abriu a porta. Era alta, mais alta que eu, mas não havia sinais de cachos louros e ela era magra e ossuda. Seus cabelos eram quase brancos e ela os esticara tanto para trás que isso devia ter eliminado anos de seu rosto. Examinou a rua dos dois lados como se constrangida de ser vista abrindo a porta para mim, então me fez entrar apressadamente. Isso não é de modo algum o melhor da história, sabe, não mesmo. Eu sempre me perco nos detalhes quando penso na primeira vez em que vi a Dama. Ainda me lembro do modo como a porta fechou e ainda me espanto com o tipo de porta à prova de som que a Sra. Weathers possuía, porque o silêncio se fez intenso. Eu me senti como se tivesse sido enrolado em lã, como se os tapetes grossos absorvessem todo o ruído, ao ponto de querer falar apenas para ter certeza de que conseguia. Lembro de que havia um relógio antigo tão alto quanto a mulher, porém o pêndulo não se moveu naquele momento nem em qualquer outro. Talvez você chame isso de bom gosto, mas eu chamo de coisa de rico e minha glândula do dinheiro começou a se contrair um pouco. Ela preparou chá e nem preciso dizer que veio numa porcelana fina, certo? Xícaras tão delicadas que tive medo de quebrar uma só de segurar. Estava lendo tudo, me preparando para o discurso, mas ela não parecia minhas clientes habituais. Nada de olhos vermelhos, mãos trêmulas, nada além daquele olhar azul direto me assistindo tomar um gole de Assam importado. Aparentemente a Sra. Weathers morava na casa havia apenas dois meses. Eu já sabia que ela havia sido professora. Vira a foto emoldurada, com uma versão mais jovem dela de saia comprida, adultos na frente, crianças sorridentes atrás. É o tipo de detalhe que percebo, mas deixei que ela me contasse que se aposentara e morava sozinha. Pareceu relutar em dizer o motivo pelo qual eu estava lá, então a pressionei um pouco, pousando a mão em seu braço, um toque rápido, enquanto perguntava. Engraçado como isso costuma funcionar. É como uma espécie de detonador.

Ruas_Estranhas.indd 171

18/04/2012 14:10:41


172

Ruas Estranhas

Estava ocupado revisando mentalmente minha remuneração quando ela enfim começou a me falar sobre o espírito que queria ver partir. Anuí quando falou sobre sonhos com gritos, do tipo que todos temos. Afinal, era como se ela tivesse lido Spirit World, como se tivesse um exemplar no seu guarda-roupas com uma lista de fantasmas. Brisas frias em um quarto fechado – confere. Sussurros em seu ouvido – confere. Sentimentos difusos de medo – confere. Eu estava começando a pensar que ela não tinha imaginação, sabe? Quando disse que era mais forte no porão eu me levantei como se estivesse excitado e pedi para ver. Imaginei que precisaria de uma hora batendo nas paredes lá embaixo, depois talvez queimar algumas penas e cantar minha poderosa antiga convocação dos espíritos arapahoe: “Eyelie Miggeymou, Miggeymou, Miggeymou. Eyelie Miggeymou, Plutotoo”, ou “Gosto do Mickey Mouse e também do Pluto”, se você conhece bem os seus cânticos. Anunciaria que o lugar estava liberado, limpo de espíritos malévolos, cobraria... talvez US$ 400 além das despesas e seguiria meu caminho. A coisa engraçada era que eu acreditava que iria funcionar. Não é difícil expulsar algo que só existe na imaginação de alguém, desde que a pessoa acredite em você. Eu realmente não tinha ideia de que havia espíritos de verdade. Depois daquele dia imaginei que a Dama queria deixar aquela casa. Só Deus sabe por que ela se interessou por mim. Só o que ela tinha de fazer era ficar imóvel enquanto eu fazia uma cena, e então eu teria partido, distante de suas vidas para sempre. Não estava nada escuro lá embaixo. Era um belo porão moderno, todo pintado de branco, com um pouco de infi ltração em um dos cantos. Lembro-me de um leve cheiro de umidade no ar e pensei em esporos. Não havia muito mais a fazer com a Sra. Weathers me observando. Afora alguns móveis velhos, um rolo de mangueira de jardim e algumas caixas, era o lugar menos assombrado que se podia imaginar, mais escritório abandonado que porta para o além. Ainda assim, eu levo as verdinhas bastante a sério. Passei quase uma hora tocando cada parede, notando a massa recente, passando os dedos por cada rachadura. Essas inspirações simplesmente me acontecem às vezes. Descobri que você tem de lhes dar algum tipo de ritual. Não pode simplesmente se postar no meio do cômodo e resmungar em línguas. Eu quase tive um ataque cardíaco quando a Dama soprou em meu ouvido a primeira vez. O porão era fechado, com apenas uma fenda como janela ao nível do chão, pequena até mesmo para que os meninos da vizinhança passassem. Não havia nenhuma chance de uma brisa e aquilo não tinha sido um sopro suave que eu pudesse dizer que havia imaginado. Era exatamente como alguém soprando com força em minha orelha e me fazendo dar um pulo. Devo dizer que dei um gritinho, mas quando me virei para a Sra. Weathers ela estava do outro lado, simplesmente sorrindo do seu jeito amargo.

Ruas_Estranhas.indd 172

18/04/2012 14:10:41


A dama grita

173

– É o tipo de coisa com o qual tenho de viver, Sr. Garner – disse ela, meio que vitoriosa. – Então, ficaria contente se parasse com sua tolice e simplesmente tirasse a coisa da minha casa. Se é que consegue. Eu me impedi de dizer que ela deveria ficar muito feliz se alguém quisesse soprar na sua orelha com aquela idade. Estava incomodado com o que acontecera. – Seiscentos, mais despesas – disse finalmente. Essa aproximação dos mil dólares era mais do que eu já havia pedido em toda a carreira. Ela curvou os lábios para mim e pude ver dentes amarelos. – Muito bem, Sr. Garner, mas quero resultados. – E eu preciso de alguma privacidade. Terá o que deseja, não se preocupe com isso. Aquilo era eu tentando ganhar tempo. Não ajudou nada sentir outro sopro na orelha enquanto falava. Eu a esfreguei e aquela piranha velha me olhou como se soubesse exatamente o que estava acontecendo. E provavelmente sabia. Eu a vi subir as escadas e fiquei sozinho naquele porão jovial, belamente iluminado e nada assustador. – Certo – disse. Meu coração estava acelerado e eu me sentia um perfeito idiota. – Se há alguém aqui, se eu não estiver apenas desperdiçando uma noite tão bonita, duvido soprar na porra da minha orelha outra vez. Bem, ela o fez. Quase molhei as calças. Você não estava lá, então não me diga que não foi assustador. Eu meio que avancei na mesma direção e dei dois passos. Ela soprou em minha orelha direita e me virei nessa direção, braços agitados como se estivesse em uma nuvem de vespas. Eu não devia estar parecendo muito digno, mas não havia ninguém me vendo. Eu me vi perto da parede mais distante e sempre que me virava para a sala sentia a cócega, como se ela quisesse que eu ficasse onde estava. Não sei exatamente quando comecei a chamá-la de Dama, aliás. Minha primeira esposa costumava soprar minha orelha e talvez isso tenha me lembrado daquilo. E fiquei lá olhando para a tinta e a massa por algum tempo, o peito arfando como se tivesse corrido. Você simplesmente não entende como a coisa toda foi uma surpresa. Ah, eu já falava com os mortos havia anos, anuindo sabiamente e repassando qualquer mensagem vaga de boa vontade que o cliente quisesse ouvir. Realmente sentir um, não, interagir com um, bem, era perturbador, e estou falando sério. Circulei pela sala, claro. Não me limitei a ficar de pé onde ela queria. Mas toda vez ela me conduzia de volta ao mesmo ponto, me virando para a esquerda ou para a direita ou soprando em minha nuca para que avançasse. Eu meio que me entreguei ao jogo por algum tempo e se você não acredita em mim é só porque não sabe como aquilo era excitante. Todas as vezes eu terminava na mesma área de massa pintada, nova e reluzente. Podia sentir a leve pressão em meu cabelo me empurrando para frente, como se ela quisesse que eu atravessasse a maldita parede.

Ruas_Estranhas.indd 173

18/04/2012 14:10:41


174

Ruas Estranhas

– Não consigo fazer isso – disse eu em voz alta. – Não consegue ver que há uma parede aqui? Lembro-me de ter pensado em passagens secretas, talvez uma velha masmorra onde encontraria seus ossos emparedados. Eu li muito sobre o tema, como pode ver. Confesso que comecei a ficar interessado, mas achei que a Sra. Weathers poderia se recusar a pagar caso eu abrisse um grande buraco em sua parede, então a chamei até ali. Eu estava absolutamente profissional novamente, solene e preocupado. – Eu a sinto com muito mais força nesta parede – disse, passando as mãos por ela. – Há algo atrás? Como outro aposento? Weathers deu de ombros, mas pela primeira vez pareceu perturbada. – Não sei. Os antigos donos podem ter levantado uma parede. Eu podia dizer que ela tinha lido alguns dos mesmos livros de suspense. Ela então passou a mão pelo cabelo, exatamente como se sentisse uma mosca pousando. Pela primeira vez eu senti pena da vaca velha. – Vou precisar de um martelo de ponta redonda, o maior que tiver. Ela mordeu o lábio de preocupação, mas finalmente concordou e saiu para pegar um. Eu sentia a pressão constante em minha cabeça enquanto encarava a parede e comecei a me dar conta de como seria irritante viver com uma coisa como aquela. Não irritante para valer US$ 600, não para mim, mas a Weathers parecia poder gastar isso sem perder o sono. Quando ela voltou com o martelo eu ataquei com toda força, martelando aquele revestimento de gesso até ele cair e eu realmente achar os tijolos por trás. É engraçado, eu teria feito muito menos dano se tivesse usado mais os olhos. Demorei um pouco para perceber que havia dois tijolos que não combinavam com os outros. Estivera pensando em quartos secretos, no tesouro de Al Capone, sei lá mais o quê. Foi só quando encontrei plástico e terra atrás de meu buraco que recuei, suando. Revestimento contra umidade não é tão sinistro e fiquei com a sensação desagradável de que havia apenas suado para justificar a conta. Então dei uma olhada melhor naqueles tijolos. Com todas as marteladas, eles já estavam soltos o bastante para serem puxados. Percebi que a Weathers ainda estava de pé nas escadas, como se temesse entrar no aposento. Podia sentir seu olhar enquanto eu tirava os tijolos e os colocava no chão. Ainda não sei o que esperava encontrar, mas no final foi quase uma decepção. Não havia muito espaço, apenas o suficiente para enfiar a mão. Era o tipo de esconderijo secreto que uma criança podia descobrir e depois esquecer. Eu costumava ter algo semelhante na casa de minha mãe, embaixo das velhas tábuas do piso. Havia no espaço um cacho de cabelos castanhos enrolado em forma de anel, amarrado com uma fita vermelha que parecia ter sido comida por algum inseto.

Ruas_Estranhas.indd 174

18/04/2012 14:10:41


A dama grita

175

Eu o trouxe para a luz e o ar ao redor de mim mudou. É difícil descrever, mas foi um pouco como um avião descendo em um aeroporto. Seus ouvidos tampam e de repente você não consegue ouvir direito. Enquanto fiquei parado ali, olhando para o cacho de cabelo, apertei o nariz e soprei, mas não fez qualquer diferença. Eu sabia que havia encontrado a coisa de verdade, que o espírito estava atrelado ao cabelo. – É uma relíquia – eu disse a Weathers atrás de mim. Minha voz soou estranha, ainda abafada como se estivéssemos nos aproximando do aeroporto O’Hare e descendo rápido. Apertei o nariz novamente, soprando com força para clarear a cabeça. Mais uma vez não funcionou e eu comecei a me sentir um pouco engasgado. Bem, havia um modo de acabar com aquilo. Enfiei a mão no bolso da calça e tirei meu isqueiro. Como estou escrevendo minha própria história, acho que poderia dizer que era um Zippo realmente legal, mas na verdade era o mais barato isqueiro que existia. Lembro que minha mão tremia enquanto eu tentava pressionar a pedra, e quando ele deu a faísca e acendeu, o ar mudou novamente, quase estalou, a ponto de quase me deixar sem ar. Não houve vento, mas de repente não estávamos descendo em Chicago em meio a um nevoeiro denso, estávamos apenas de pé em um porão olhando fi xamente para um isqueiro. Eu levei a chama até o cacho de cabelos e, sem qualquer aviso, ela apagou. Senti o sopro em meus dedos, mas acendi novamente de qualquer modo, apenas para ver aquilo acontecer. A chama surgiu e depois desapareceu quando a Dama a soprou. Fiquei ali por algum tempo, pensando um pouco mais intensamente do que de hábito. Ela queria que eu encontrasse o cacho de cabelo com sua fitinha roída, mas não queria ser libertada. Como disse antes, não sei exatamente por que ela me escolheu, mas sempre tive o charme dos Garner; pelo menos minha mãe costumava dizer que tinha. Embora nunca dissesse isso no bom sentido. Levei aquela coisa para fora da casa como se fosse uma granada armada, parando apenas para aceitar o pagamento em dinheiro que a velha Weathers tirou de uma lata na cozinha. Cacete, como eu havia merecido aquele dinheiro. Nem mesmo coloquei o anel de cabelo no bolso, mas sim o segurei à minha frente até meu braço ficar rígido. Não senti qualquer sopro na nuca então, nem até estar na Fisher Street e me afastando. Não sei explicar exatamente por que fiz as coisas que fiz naquele dia. Teria sido fácil jogar o cacho de cabelos no esgoto ou, melhor ainda, no rio, para que fosse levado até o mar. Talvez, se estivesse com medo, tivesse feito isso, mas você tem de entender que aquela era a obra da minha vida. Finalmente tinha uma prova de que não estava perdendo completamente meu tempo. Nunca aleguei ser um bom homem, mas também nunca quis ser uma fraude completa. Eu me sentia como se tivesse encontrado minha Pedra de Roseta, a chave que destrancaria tudo para mim. Era até verdade, de certo modo.

Ruas_Estranhas.indd 175

18/04/2012 14:10:41


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.