Essência - Encontro de Almas

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Esta é uma versão de demonstração, em baixa resolução, do livro “Essência – Vol I” e pode ser distribuída gratuitamente. Porém, seu conteúdo está protegido pela legislação brasileira e possui registro de autoria, portanto, não pode ser copiado, reproduzido ou alterado sem prévia autorização da autora.

A seguir você encontrará um trecho de O Banquete – Um dos Diálogos mais conhecidos de Platão e que embasa a narrativa em questão – o Prólogo e o Primeiro Capítulo do Romance de Lorena de Macedo que em breve estará nas livrarias pela Editora Literata.

Degustem...

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O Banquete O Mito do Andrógino (...) Com efeito, nossa natureza outrora não era a mesma que a de agora, mas diferente. Em primeiro lugar, três eram os gêneros da humanidade, não dois como agora, o masculino e o feminino, mas também havia mais um terceiro, comum a estes dois, do qual resta agora um nome, desaparecida a coisa; andrógino era então um gênero distinto, tanto na forma como no nome comum aos dois, ao masculino e ao feminino, enquanto agora nada mais é que um nome posto em desonra. Depois, inteiriça era a forma de cada homem, com o dorso redondo, os flancos em círculo; quatro mãos ele tinha, e as pernas o mesmo tanto das mãos, dois rostos sobre um pescoço torneado, semelhantes em tudo; mas a cabeça sobre os dois rostos opostos um ao outro era uma só, e quatro orelhas, dois sexos, e tudo o mais como desses exemplos se poderia supor. E quanto ao seu andar, era também ereto como agora, em qualquer das duas direções que quisesse; mas quando se lançavam a uma rápida corrida, como os que cambalhotando e virando as pernas para cima fazem uma roda, do mesmo modo, apoiando-se nos seus oito membros de então, rapidamente eles se locomoviam em círculo. Eis por que eram três os gêneros, e tal a sua constituição, porque o masculino de início era descendente do sol, o feminino da terra, e o que tinha de ambos era da lua, pois também a lua tem de ambos; e eram assim circulares, tanto eles próprios como a sua locomoção, por terem semelhantes genitores. Eram, por conseguinte de uma força e de um vigor terríveis, e uma grande presunção eles tinham; mas voltaram-se contra os deuses, e o que diz Homero de Efialtes e de Otes é a eles que se refere, a tentativa de fazer uma escalada ao céu, para investir contra os deuses. Zeus então e os demais deuses puseram-se a deliberar sobre o que se devia fazer com eles, e embaraçavam-se; não podiam nem matá-los e, após fulminá-los como aos gigantes, fazer desaparecer-lhes a raça - pois as honras e os templos que lhes vinham dos homens desapareceriam — nem permitir-lhes que continuassem na impiedade. Depois de laboriosa reflexão, diz Zeus: “Acho que tenho um meio de fazer com que os homens possam existir, mas parem com a intemperança, tornados mais fracos. — Agora, com efeito, continuou — eu os cortarei a cada um em dois, e ao mesmo tempo eles serão mais fracos e também mais úteis para nós, pelo fato de se terem tornado mais numerosos; e andarão eretos, sobre duas pernas. Se ainda pensarem em arrogância e não quiserem acomodar-se, de novo — disse ele — eu os cortarei em dois, e assim sobre uma só perna eles andarão, saltitando.” Logo que o disse pôs-se a cortar os homens em dois, como os que cortam as sorvas para a conserva, ou como os que cortam ovos com cabelo; a cada um que cortava mandava Apolo voltar-lhe o rosto e a banda do pescoço para o lado do corte, a fim de que, contemplando a própria mutilação, fosse mais moderado o homem, e quanto ao mais

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ele também mandava curar. Apolo torcia-lhes o rosto, e repuxando a pele de todos os lados para o que agora se chama o ventre, como as bolsas que se entrouxam, ele fazia uma só abertura e ligava-a firmemente no meio do ventre, que é o que chamam umbigo. As outras pregas, numerosas, ele se pôs a polir, e a articular os peitos, com um instrumento semelhante ao dos sapateiros quando estão polindo na forma as pregas dos sapatos; umas poucas ele deixou, as que estão à volta do próprio ventre e do umbigo, para lembrança da antiga condição. Por conseguinte, desde que a nossa natureza se mutilou em duas, ansiava cada um por sua própria metade e a ela se unia, e envolvendo-se com as mãos e enlaçando-se um ao outro, no ardor de se confundirem, morriam de fome e de inércia em geral, por nada quererem fazer longe um do outro. E sempre que morria uma das metades e a outra ficava, a que ficava procurava outra e com ela se enlaçava, quer se encontrasse com a metade do todo que era mulher - o que agora chamamos mulher — quer com a de um homem; e assim iam-se destruindo. Tomado de compaixão, Zeus consegue outro expediente, e lhes muda o sexo para frente, pois até então eles o tinham para fora, e geravam e reproduziam não um no outro, mas na terra, como as cigarras. Pondo assim o sexo na frente deles, fez com que através dele se processasse a geração um no outro, o macho na fêmea, pelo seguinte, para que no enlace, se fosse um homem a encontrar uma mulher, que ao mesmo tempo gerassem e se fosse constituindo a raça (...). E então de há tanto tempo que o amor de um pelo outro está implantado nos homens, restaurador da nossa antiga natureza, em sua tentativa de fazer um só de dois e de curar a natureza humana (...).

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Prólogo Não é verdade o que dizem a respeito de nossos últimos minutos antes de morrer. No meu caso, a proximidade do fim não me conduziu a uma catarse de sentimentos ou a lembranças de uma vida inteira. Eu só pensava como seria o primeiro golpe. A criatura deslocaria meu coração para o centro do peito? Enquanto meu corpo se retesava a espera do pior, uma pergunta me veio à mente: De que valeria minha morte se o que a criatura desejava não estava ao seu alcance?

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O Encontro Sempre gostei do estalido das folhas secas sob meus pés. A visão da calçada de minha casa inundada de um amarelo crepitante do Ipê desflorado me enchia de uma alegria difícil de ser sentida. Não raro me sentia alegre e também angustiada pelo medo da efemeridade de um sentimento tão oscilante. Olavo costumava tirar fotos daquela paisagem bucólica com frequência. Tinha orgulho do gigante de flores amarelas que embelezava nossa casa e a rua onde morávamos. Em nossos primeiros anos naquele lugar, eu costumava brincar com o misto de flores e folhas que debulhavam no jardim aquela época do ano. Rolava na grama umedecida pelo orvalho da madrugada e as folhas secas e flores ainda vívidas grudavam em meus cabelos e em toda a roupa. Por esse motivo, protagonizei muitas fotos tiradas por meu pai no exercício de seu passatempo preferido. Estacionei a velha pampa de cor prata na entrada da garagem e desci sem pressa de entrar em casa. Olavo veio receber-me na porta com uma expressão de euforia em seu rosto arredondado. — Olha só o que chegou para você! — Com a mão esquerda erguida na altura do tórax, papai segurava um envelope branco de tamanho médio e sacudia-o com impaciência. Dei-lhe um beijo na bochecha e perguntei do que se tratava. Papai aproximou o envelope do meu rosto e indagou-me menos eufórico: — Você não desconfia do que seja, Sara? Dei de ombros e entrei em casa. Ele entrou logo atrás de mim trazendo o envelope. Pendurei minha jaqueta jeans no cabide de madeira disposto na parede atrás da porta e me virei para ele sem ânimo para adivinhações. — Não faço ideia do que possa ser, mas acho que você já sabe não é mesmo? Esperava que ele me dissesse em poucas palavras o que havia no envelope. Ele soltou um longo suspiro e respondeu desapontado.

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— Sara, sua carteira de motorista chegou. — Estendeu a mão para entregar-me o envelope aberto. — Desculpe pela violação da sua correspondência, mas não pude me conter. Ao contrário de você, eu estava ansioso e fiquei muito feliz com a chegada do documento. — Pai... — Assumi uma expressão mais suave e obriguei-me a dizer algumas palavras enquanto ele se dirigia para a sala — Estou muito feliz por isso. Afinal de contas, essa carteira de motorista representa muito para mim. Papai me encarou com ternura enquanto eu me esforçava para demonstrar entusiasmo. — Você se lembra da primeira vez que eu lhe pedi para me ensinar a dirigir? No começo você abominou a ideia e se encheu de argumentos ridículos para me dissuadir. — Filha — sua voz assumiu um tom mais grave — eu tinha bons argumentos e você sabe bem disso. Engoli seco e o encarei por um breve instante. Tive medo que ele dissesse qualquer coisa a mais. Qualquer coisa que pudesse me fazer passar a noite inteira me perguntando o que realmente acontecera comigo. Nada jamais havia sido explicado a nenhum de nós, mas por alguma razão obscura, papai parecia confortável com as explicações óbvias. As pessoas discutiam as consequências, mas nunca a causa. Nunca identificaram a causa. Jamais me conformei com o óbvio, mas aprendi a viver do meu jeito. O jeito que me confortava e me permitia acordar todos os dias sem me lembrar constantemente da minha precária condição. O sono que se acumulara desde a madrugada anterior, passada no saguão de um aeroporto à espera do avião que me traria de volta para casa, me fez desistir de qualquer argumentação que pudesse prolongar a conversa. Abri um meio sorriso e dei-lhe um beijo de boa noite. Papai permaneceu sentado no sofá, pensativo e sem qualquer traço da euforia demonstrada minutos atrás. Subi rapidamente as escadas em direção ao meu quarto, que ficava no final do pequeno corredor. As paredes do segundo andar eram enfeitadas com fotos variadas e dois pequenos quadros de um artista local. Antes de chegar ao quarto parei diante de um pequeno porta-retratos pendurado na parede oposta à escada. As bordas descascadas denunciavam seu tempo de uso. A foto de minha mãe prendeu-me a atenção mais uma vez. Respirei profundamente e mostrei a ela a carteira de motorista que acabara de receber. Já no quarto, abri a cesta de vime envernizado e retirei um pijama de liganete. Meus pés reclamaram por liberdade e eu atirei longe o par de sapatilhas preto. Enquanto meus

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pensamentos dividiam-se em inúmeras direções, eu andava pelo quarto procurando uma toalha limpa para tomar banho. Lembrava-me das férias na casa de minha tia-avó, dos momentos na praia com amigos animados, das tardes cheias de conversas despreocupadas e risadas exageradas, dos mergulhos no mar que me fizeram sentir mais viva e menos impotente. Sentir mais viva. Pronunciei a última frase em voz alta e a recordação da água gelada me causou arrepios. Havia chegado de viagem naquela manhã e as lembranças das últimas férias fervilhavam em minha mente. Dois meses inteiros passados longe de casa com a intenção de me revigorar e me preparar para uma nova fase. Uma fase mais adulta e responsável. Desde a minha mudança para a cidade de Terra Branca, há 10 anos, nunca havia me ausentado de casa por tanto tempo. Terra Branca era uma cidade pequena, com pouco mais de quatro mil habitantes, incluindo a população rural. Um lugar de natureza farta, mata nativa beirando a cidade, extensos quintais com pomares bem cuidados, pequenas quedas d’agua escondidas pela vegetação e o famoso rio Negro cortando todo o Estado. Uma cidade que se tornou meu lar quando papai foi transferido de Campelo, minha cidade natal, para gerenciar a única agência bancária do pequeno distrito. Após um longo banho quente que me fez relaxar o suficiente para aquietar meus pensamentos, tomei meus costumeiros remédios e me preparei para o sono dos justos. Ainda era cedo e pude ouvir o som de vozes misturadas que vinham do primeiro andar. Com certeza, papai estava assistindo à novela. Às vezes eu me sentava ao seu lado nas noites mais quietas e assistíamos televisão por algumas horas. Sabia que meu pai se sentia muito solitário e, sempre que me lembrava de sua solidão, eu me doava um pouco mais do que de costume. Nos últimos anos, seu mundo resumia-se a mim e minha família a ele. Soquei o velho travesseiro de espumas até ajeitá-lo bem. Puxei o edredom que comprara pela internet e relaxei meu corpo. O pijama de liganete roçava em minha pele provocando uma sensação de conforto e frescor. Queria adormecer antes que minha cabeça se enchesse de bobagens e ideias malucas não me deixassem dormir. Revirei um pouco e o colchão de molas rangeu alto. Antes de cair no sono olhei para o despertador colocado na pequena mesa de mosaico ao lado da cama, o relógio marcava vinte e duas horas.

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Não sei ao certo o que sonhei aquela noite. Lembro-me apenas de estar vestindo minha blusa preferida — uma bata branca de manga ¾ e bordado de pedrarias na gola. Acordei com o barulho de louça vindo da cozinha — Meu pai está fazendo o café — pensei enquanto me espreguiçava. As manhãs de sábado eram sempre iguais. Papai levantava bem cedo para fazer uma caminhada pelas ruas do bairro. Na volta para casa, passava na padaria e trazia pão francês, pão de queijo e algum outro tipo de quitanda que atraísse sua atenção. Meu apetite matinal o agradava muito. Eu adorava as manhãs de sábado por conta dos cafés caprichados que meu pai se sentia na obrigação de preparar. Havia terminado o colegial no semestre passado e após a viagem de férias, eu estava de volta em casa, para o último final de semana antes do início das aulas na faculdade. Eu não demorava muito para me levantar depois que despertava. Estiquei minhas pernas para fora da cama e me ergui lentamente. O relógio ainda marcava vinte e duas horas. Estragou de novo — Resmunguei para mim mesma depois de um profundo bocejo. Após uma rápida passada no banheiro, desci para tomar café. — Café preto Sara? — Bom dia pai. — Bom dia filha. Então... café preto? — Ele insistiu na pergunta. Acomodei-me em uma das quatro cadeiras que compunham a mesa da cozinha e esfreguei os olhos com a palma das mãos. — Prefiro leite quente. — Papai encheu uma caneca de louça com leite morno e me entregou para que eu misturasse o achocolatado. — Você mexeu muito durante a noite. — Disse-me ele entre uma mordida no pão francês e uma golada de café. Olhei-o com uma expressão confusa. — O colchão rangeu muito... — Acrescentou sem desviar os olhos do pão.

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— Ah sim... sonhos tumultuados. — Respondi sem pensar. — Hoje de manhã o cachorro dos Maias tentou atacar novamente a minha sacola de pães. — Meu pai possuía uma incrível capacidade de mudar de assunto. — Tive que afastá-lo com uma mão e a sacola com a outra por quase 1 minuto até que a dona viesse e o levasse embora. Soltei um risinho preguiçoso e continuei a tomar o leite. O cachorro do vizinho correndo atrás de meu pai para pegar nossa comida era um sinal de que nada havia mudado durante a minha ausência. Pelos menos eu ainda não havia percebido nada diferente. — Vai sair hoje? — Mais uma mudança drástica de assunto. — Sim. — Respondi automaticamente e acrescentei — Logo após o café. Papai limpou a boca com um guardanapo e tocou no ponto que realmente o interessava. — Agora você pode dirigir livremente por aí. Já que a sua carteira de motorista chegou ontem... — Ele não havia se conformado com a minha falta de entusiasmo na noite passada. Aprendi a dirigir aos 15 anos de idade, depois de muito argumentar com meu pai, implorando para que ele me ensinasse. Os filhos de nossos conhecidos já dirigiam por toda parte e eu me sentia uma criança, sem qualquer autonomia para ir e vir. Meu pai lutou muito para que eu desistisse da ideia e continuasse a depender de suas caronas, ou então me conformasse com pequenas e vagarosas caminhadas, desde que as mesmas não desafiassem meu fôlego escasso. Ele se valia de alguns argumentos bem pensados, mas o motivo era evidente demais. Dizia que eu ainda era muito nova e que não havia necessidade de começar a dirigir aos 15 anos, uma vez que só poderia retirar a Licença quando completasse a maioridade. Em contra partida, eu retrucava a altura, dizendo que quanto mais novos nós somos, mais fácil aprendemos algo diferente. Na tentativa de me dissuadir, papai comprou para nós um automóvel pouco atrativo para garotas da minha idade. Uma Pampa velha, barulhenta, de pintura desgastada e com o banco do passageiro com alguns remendos. Seu gesto me fez perceber o quanto ele desejava que eu ficasse longe de um volante. Lembro-me que olhei para a Pampa estacionada pela primeira vez na garagem de casa e não enxerguei seus defeitos como empecilhos. Ao contrário, a liberdade estava estampada em cada centímetro de pintura queimada. Os argumentos de Olavo, apesar de fazerem algum sentido, não eram fortes o

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suficiente para vencer a minha teimosia. Por fim, ele resolveu ceder temendo que eu acabasse aprendendo escondido. Desde aquele momento a Pampa passou a ser objeto indispensável para mim, e papai comprou para si um automóvel mais compatível com a posição que ocupava no Banco. Uma das vantagens de morar em uma cidade pequena e pacata é que eu podia dirigir à vontade sem me preocupar com a fiscalização da polícia ou coisa parecida. No máximo, uma repreensão mal-humorada de um dos poucos guardas locais por conta de uma acelerada mais temerosa. Papai estava fazendo um grande esforço nos últimos tempos para aceitar o fato de que eu havia crescido e que meu estado permanente de saúde, se devidamente cuidado, não me impediria de levar uma vida tão normal e corriqueira quanto à de qualquer garota da minha idade. Quando sua preocupação com a liberdade que a carteira de motorista poderia me proporcionar cedeu lugar para a satisfação estampada em sua reação positiva na noite anterior, percebi claramente o quanto ele estava se dedicando a encarar meu problema de uma forma menos neurótica. — A licença já está na minha bolsa. — Respondi. Levantei-me e recolhi a louça do café. Coloquei tudo na pia e prometi a ele que arrumaria a cozinha assim que retornasse. Ele não perguntou pelo meu itinerário, disse apenas que passaria o dia no sítio de Ney Abdala. Papai foi apresentado ao Ney em nossa primeira semana em Terra Branca e rapidamente se tornaram amigos. Ney Abdala era um ótimo cozinheiro e ensinou muitos truques ao senhor Olavo. Divorciado e pai de uma filha que ele não via há alguns anos, Ney morava sozinho em um pequeno sítio nos arredores da cidade. — O que você e o Ney vão cozinhar dessa vez? — Ney quer fazer uma galinha no fogão à lenha. — Papai respondeu de forma descontraída. — Prometi a ele que levaria a pimenta para o molho, mas se você quiser, eu posso desmarcar e nós almoçamos juntos. Apoiei-me na bancada da pia e respondi: — Não acho uma boa ideia você deixar de experimentar essa galinha. Além do mais, eu tenho algumas coisas para organizar hoje e devo comer algo na rua. Diga ao Ney que eu mandei um abraço. — Acrescentei enquanto me virava para apanhar minha bolsa no sofá da sala. Papai assentiu com a cabeça e encerrou a conversa com um apático até mais tarde. As ruas da cidade estavam umedecidas pela insistente garoa que caia naquela manhã. Estacionei a Pampa em frente ao mercado da Avenida principal e buzinei duas vezes antes de descer. Marina apareceu na porta da frente com uma expressão curiosa que logo se

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transformou num largo sorriso estampado em seu rosto de traços delicados. Ela vestia um avental preto que descia até o meio das pernas. O cabelo, de um castanho avermelhado, estava preso displicentemente por uma presilha de plástico, num coque desajeitado. Marina era minha amiga mais próxima. Uma garota nascida e criada em Terra Branca. Caminhei rapidamente em sua direção. Ela abriu os braços com alegria, me convidando para um costumeiro abraço. — Oi! Então você chegou ontem, não foi? — Marina perguntou enquanto me abraçava. — Sim. Ontem de manhã. — Seu pai foi buscá-la em Valença? — Ela me soltou e olhou-me direto nos olhos. — Claro que sim. Quando cheguei, ele já estava a minha espera. — Nossa... — Ela começou a falar mais rapidamente. — Nós temos tanto o que conversar. Quer dizer, você tem muito a me contar. Eu que fiquei aqui nesse fim de mundo desprovido de qualquer distração emocionante, não tenho nada de interessante para dizer. Mas você, ah... Você deve ter algumas histórias... Puxei-a pelo braço e nos sentamos no banco de madeira colocado no lado esquerdo da entrada para o mercado. — Marina, eu passei só dois meses fora. Não tenho muita coisa pra dizer. — Interrompi seu falatório com uma frase que a fez me encarar com desdém. — Então você quer que eu acredite que passou as férias inteiras em um paraíso tropical e não tem nada de emocionante para me contar? — Ela ergueu as sobrancelhas numa clara expressão de incredulidade. Pigarreei antes de responder. Não havia nada de incrível que pudesse ser dito. Passara dois meses hospedada na casa de minha tia-avó em uma cidade litorânea repleta de turistas eufóricos. Diariamente o sol se abria por entre as nuvens mansas e castigava todos os tipos de pele que se atrevessem a enfrentá-lo. Eu evitava a praia nos horários mais lotados, desviandome de convites insistentes da filha de minha tia e de suas amigas. Nos finais de tarde, passeávamos pela orla, dividindo o calçadão com ciclistas e corredores de todas as idades. Às vezes um chuvisco nos surpreendia. Foram meses de descanso e reflexão, dias que passaram

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vagarosos e previsíveis. Nada além do esperado. Cruzei as mãos em cima do joelho e lhe dei uma resposta vaga — Você sabe como é. Muito sol, gente bonita, biquínis minúsculos, turista com cara de turista, vendedores ambulantes pipocando em cada esquina, e eu passando bloqueador solar a cada meia hora. Além do mais, nós nos falamos por e-mail as férias inteiras, então você já sabe de tudo. Ela suspirou profundamente e disse por fim: — Esperava mais de você. — Nós nos entreolhamos e começamos a rir. Afastei-me um pouco de Marina e relaxei as costas no banco de madeira. O mercado atrás de nós pertencia aos seus pais e ela trabalhava lá durante as férias e também nos intervalos da escola. Escola. Pensei por um instante no último mês de aula. Os corredores enfeitados com cartazes informativos a respeito de vestibulares em todo o país. Excitação e nervosismo transbordando pelos poros dos alunos do último ano e uma decisão difícil a ser tomada: Para qual universidade eu deveria ir? Por um minuto me perguntei se havia me enveredado pelo caminho mais adequado. Estudar em Valença, há quinze quilômetros de Terra Branca e sob os cuidados de um pai com tendências melodramáticas não me parecia muito atrativo. — Então... — Arrancando-me de meus devaneios, Marina perguntou subitamente — Você já se encontrou com ele depois que chegou? Demorei um segundo para me dar conta do que ela estava falando. — Não. Na verdade, eu nem estava pensando nisso. Ela revirou os olhos para o lado oposto e retrucou com ares de dona da verdade. — Não estava, mas deveria pensar. Pedro gosta de você o suficiente para engolir o próprio orgulho e vir me procurar durante as férias para saber notícias suas. — Ele fez isso? — Perguntei surpresa

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— Algumas dezenas de vezes. No começo eu fiquei com pena dele, afinal de contas, não é fácil para um garoto que foi chutado durante o baile de formatura, esquecer a dor do chute e correr atrás da louca que o chutou. Mas depois da quarta vez em dois dias, eu me irritei e passei a dizer que não sabia de você. É claro que ele não acreditou, mas passou a vir menos aqui. Pedro Molina foi meu par para dançar a valsa durante o baile de formatura do último ano. Convidou-me para a festa com uma antecedência de quase três meses e eu não tive como escapar. Frequentamos as mesmas aulas durante todo o colegial e acabamos cultivando uma amizade restrita aos muros do colégio. Restrição que dependia muito mais de mim do que dele. Marina costumava dizer que Pedro me olhava com olhos apaixonados, mas eu nunca dei muita importância aos seus comentários a esse respeito. Quando eu disse ao meu pai que não queria ir ao baile, ele não se conformou e, achando que a razão da recusa estava na falta de um par, perguntou a todos os clientes do Banco se seus filhos poderiam me convidar. Foi uma época constrangedora para nós dois. De qualquer modo, Pedro resolveu o problema de papai e o deixou satisfeito. — Marina — Respondi de forma simples e resoluta — Não sinto nada além de amizade pelo Pedro. Não poderia me obrigar a estar com alguém que não faz meu estômago formigar e... — Mas antes que eu terminasse, ela me interrompeu gesticulando com as mãos. — Blá, blá, blá... Formigas no estômago, coração saindo pela boca... Eu já ouvi isso antes. De repente, fomos surpreendidas pelo ronco de uma picape cabine dupla que dobrou a esquina e passou vagarosamente pela avenida à nossa frente. Pela pouca velocidade em que andava, pude ver com clareza a motorista loira que a conduzia com aparente tranquilidade. Rapidamente meu cérebro acionou o arquivo de lembranças à procura de imagens daquela picape. Contudo, nem o carro nem a loira me eram familiar. Meus olhos curiosos seguiram a picape preta até o cruzamento seguinte e então a mesma dobrou a esquina e desapareceu de meu campo de visão. Aquela cena me causou uma impressão curiosa, difícil de absorver. Uma estranheza me fez remexer no banco assumindo uma posição mais rígida e ereta. Com um lapso de ansiedade que julguei inofensiva, olhei rapidamente para Marina à procura de explicações. Ela também acompanhou a picape com interesse. A pergunta não precisou ser feita em voz alta, pois diante da minha expressão interrogativa, Marina adivinhou o que eu queria saber.

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— Aquela é a picape dos Fideli. — Disse pausadamente — E a moça ao volante é Nora Fideli. Novamente meu cérebro não reconheceu aquela informação. Nunca havia escutado aquele nome antes. Continuei a fitá-la com atenção. — Você sabe... Eu lhe falei sobre eles em um dos meus e-mails durante as férias. — Joguei a cabeça para trás e fechei os olhos na tentativa de me lembrar do que ela havia escrito na mensagem. Mas nada me veio à mente. Sacudi a cabeça negativamente e desisti de lembrar. — Quem são eles? — Malthus Fideli comprou o sítio do velho Benjamim. A família se mudou logo depois que você viajou. Costumam desfilar por aí em picapes de última geração. — E a moça? — Nora é filha de Malthus e Julia Fideli. Conversamos uma vez quando ela veio buscar umas compras. — Marina deu de ombros num gesto de descontração e continuou — É uma moça simpática e incrivelmente bonita. Parece que o casal tem quatro filhos, mas eu ainda não conheci os outros três. Esparramei no banco novamente, interpretando o sentimento de estranheza como mera curiosidade. Marina mudou de assunto e passamos a conversar sobre os preparativos para o primeiro dia na faculdade. Havíamos escolhido o mesmo curso e estávamos satisfeitas com o fato de não termos que nos separar. O curso de História da Universidade de Valença era um dos mais antigos e bem conceituados do país. A princípio, cogitei a hipótese de estudar mais longe, em uma universidade da Capital. Contudo, meu pai fazia questão de me ter sob sua vista. Ao que parece eu precisava de cuidados constantes, mesmo com meu problema sob controle. Marina prestou alguns vestibulares em cidades mais afastadas, mas acabou optando por estudar perto de casa. Acho que minha escolha comodista a influenciou bastante. Moraríamos com nossos pais ainda por um bom tempo, o que facilitaria muito o começo da vida adulta. E assim como nós, muitos jovens de Terra Branca fizeram escolhas parecidas, uma vez que a Universidade de Valença possuía um leque bastante atrativo de cursos superiores.

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Após conversar com Marina, entrei no mercado e comprei ingredientes para fazer uma lasanha que aprendera na casa de minha tia-avó. Não era uma exímia cozinheira, mas me obrigava a encarar o fogão quando não tinha nada melhor para fazer. Ela me seguiu com empolgação, dando palpites na minha receita e se convidando para o jantar. Despedimo-nos depois de almoçarmos juntas e eu a fiz prometer que não se atrasaria, pois meu pai não gostava de comer muito tarde. Quando voltei para casa naquela tarde, uma cena me surpreendeu. Ao dobrar a esquina para entrar na rua de minha casa, avistei um rapaz pulando o muro de um vizinho em uma atitude suspeita. Ele apoiou as mãos nas placas de cimento e projetou seu corpo acima do muro com uma agilidade incomum. Caiu agachado na grama que margeava a fachada da casa. Parei a Pampa bruscamente do outro lado da rua e continuei a observar a cena que se desenrolou em poucos segundos. A primeira reação orquestrada pelo meu cérebro foi sair do carro e chamar sua atenção. Contudo, minhas pernas congelaram quando o rapaz ergueu as mãos e percebi que ambas estavam sujas de alguma coisa vermelha. Sangue. — Cogitei instantaneamente. A adrenalina retesou meus músculos e eu prendi a respiração. O rapaz olhou para as mãos, mas pareceu não se importar com a sujeira. Notei que havia manchas do mesmo tom em seu jeans claro. Ele olhou para o lado e franziu o cenho quando a fraca luz do sol incidiu sobre seus olhos. Depois, desviou o olhar e encarou a Pampa. Subitamente deslizei meu corpo pelo banco para esquivar-me de seu olhar curioso. O que eu faço agora? Contudo, o impulso de acelerar o carro e sumir dali não era maior que a minha vontade de entender o que estava se passando. Precisava saber para onde aquele rapaz iria. E depois eu bateria na porta do vizinho para descobrir que o sangue nas mãos do suspeito era fruto de uma chacina. Ergui lentamente a cabeça para avistar o rapaz. Ele continuava parado no jardim olhando na direção da Pampa. — Será que ele havia me visto? — Enchi meu peito de ar e me preparei para um ato de coragem. Levantei meu corpo, endireitando as costas. Àquela altura ele já havia percebido que eu estivera ali o tempo todo. Observando-o de uma distância segura como um investigador de tocaia.

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Vai! — Obriguei-me a reagir. — Anda logo. Abri a porta do carro e saí devagar. Não havia ninguém na rua. Esforçando-me para parecer natural, escorei no capô da Pampa e perguntei com cautela: — Você parece perdido. Está precisando de ajuda? — Minha voz vacilou trêmula e esganiçada. O rapaz atravessou o gramado e parou ao final do passeio de pedras. — Eu pareço precisar de ajuda? — Sua boca abriu-se levemente em um meio-sorriso que me atordoou. — Bem... — gaguejei um pouco — Eu não sei, é que... — Não sabia como responder àquilo sem me referir ao sangue em suas mãos. — Acho que assustei você. — Disse-me ele voltando os olhos para a roupa manchada. Sua voz tilintava harmoniosa. Nenhum vacilo que pudesse denunciar a culpa escancarada no vermelho que o marcava. Liberei uma lufada de ar e meu tórax murchou aliviado. Eu havia prendido a respiração muitas vezes desde que avistara o estranho suspeito. — Você não devia me ver aqui. Ninguém deveria me ver... — De repente o rapaz pareceu preocupado. — Ninguém deveria ver você? — Ergui as sobrancelhas em um gesto de assombro. Será que aquilo era o começo de uma confissão? — Desculpe-me por tudo isso. Eu fui muito descuidado. Balancei a cabeça me obrigando a manter a calma. — Você estava na casa dos Lemos? — Perguntei desviando o olhar para a porta de entrada da casa do vizinho. — Sim. Só espero que você não me pergunte o que eu estava fazendo lá. Novamente seu meio-sorriso desconcertou-me. A rápida oscilação de suas expressões faciais não me ajudava a compreender a situação. Às vezes um sorriso faceiro, outras vezes um olhar preocupado.

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— Tá legal. — Afastei alguns centímetros da Pampa e me preparei para correr ou gritar. Contudo, o rapaz percebeu meu sinal de alerta e começou a cruzar a rua em minha direção. Voltei-me rapidamente para a porta da Pampa e segurei a maçaneta firmemente. — Espere! — Ele ergueu umas das mãos para o meu lado. — Eu estava cuidando do cachorro deles. — O rapaz se aproximou mais de mim. Agora que ele estava mais perto, pude observar alguns detalhes de sua aparência. O tênis branco trazia na ponta de um dos pés uma marca escura e arredondada. O sangue dessa mancha deve ter secado. — Pensei. A camisa verde-clara estava um pouco amarrotada e as mangas arregaçadas na altura dos cotovelos conferiam-lhe um aspecto desgrenhado. Contudo, foi seu rosto que me fez perder o foco da situação por mais de um minuto. O cabelo negro contrastava com a pele clara e o levíssimo tom róseo das maças do rosto. Algumas mechas espetadas na altura da testa e outras caindo em pequenas ondulações pelo restante da cabeça. As sobrancelhas grossas e naturalmente delineadas adornavam seus olhos de um azul opaco com nuances acinzentadas. O formato de seu rosto, com os ossos da mandíbula bem definidos e o queixo quadrado, provocou-me um pequeno espasmo no estômago. — Você é veterinário? — Perguntei desconfiada, tentando dissimular a profunda distração que suas feições haviam me causado. Os dedos da minha mão esquerda mantinham-se firmes na maçaneta. Ele sorriu e seus lábios se espalharam pela face perfeita. Nenhuma ruga ou saliência. Sua pele parecia ter saído de um comercial de cosméticos. Outro espasmo. — Pode-se dizer que sim. — Ele respondeu. Não percebi qualquer ironia em sua resposta. — Isso em sua mão é... — Não consegui pronunciar a palavra que denunciaria tudo.

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— Sangue. Sangue de cachorro. — O rapaz completou a frase com naturalidade. Nenhum sinal de oscilação em sua voz. Ele havia confirmado minhas suspeitas com uma tranquilidade estampada em seu rosto e em todos os movimentos de seu corpo. Subitamente soltei a maçaneta e levei as mãos à boca. — O que aconteceu? — Indaguei alarmada. — Não se preocupe. Está tudo bem agora. Obedecendo meus reflexos, projetei-me para frente rumo à casa dos Lemos. Eu queria saber o que estava se passando. Mas o rapaz segurou meu pulso detendo-me no segundo passo. O toque de sua mão em meu braço esquerdo provocou em mim o terceiro e mais forte espasmo. Encarei-o aturdida e ele me fitou direto nos olhos. — Está tudo bem. Você não precisa ir até lá. Balancei a cabeça e estreitei os olhos, enrugando a testa em sinal de completa confusão. — Olha... — Disse-me ele depois de um segundo — Nós não nos conhecemos e eu sei que tudo isso é muito estranho, mas vou te pedir um favor. — Ele ainda segurava meu pulso. Engoli seco e assenti com a cabeça. Ele se curvou alguns centímetros para alinhar seu rosto com o meu e se aproximou de minha orelha esquerda. — Você poderia confiar em mim? — Suas palavras sibilaram em meu ouvido e eu fechei os olhos enquanto meu corpo estremecia em resposta ao seu hálito quente. Abri os olhos bem devagar e precisei de alguns segundos para me recompor e conseguir formular uma resposta. Não tive coragem de me virar para ele, pois a proximidade de nossos rostos me faria olhar em seus olhos de uma distância perigosa. — Você tem razão. — Respondi com o rosto voltado para a casa dos Lemos — Isso tudo é muito estranho. Abaixei a cabeça e olhei para sua mão que ainda segurava meu pulso. Ele acompanhou meu movimento e nossas testas quase se chocaram.

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— Desculpe-me. — Ele soltou meu pulso e deu um passo para trás. Inspirei lentamente e soltei o ar pela boca. — Tudo bem. — Eu devia estar ficando louca ao concordar com ele. Mas algo em seus gestos e palavras aquietou meus instintos de sobrevivência. A constância de sua voz e as ondas de calor que emanavam de seu corpo imprimiram em mim uma sensação de conforto e sinceridade. — Acho que posso confiar em você. Ele fechou os olhos e sorriu. Pareceu-me um sorriso de alívio. — Obrigado. Nesse momento fomos surpreendidos pelo silvo de uma buzina que me fez dar um pulo para trás. O rapaz também se afastou e nós nos mantivemos encostados na Pampa enquanto uma Vã Escolar passava à nossa frente. — Preciso ir. — Disse-me ele já se afastando de mim. — Espere! — Reagi automaticamente. Ele se voltou para mim e ergueu a palma das mãos. — Se me virem assim vão achar que matei alguém. Estremeci ao ouvir sua última frase. Será que fiz bem em confiar nele? A dúvida começava a instigar meus pensamentos à medida que o rapaz se afastava. Minha conclusão inicial diante da situação também havia sido a de que ele cometera um crime. Tudo se encaixava nesse contexto. No entanto, bastou que ele se aproximasse para que o calor de sua presença repelisse qualquer desconfiança. Mas agora que ele havia se afastado, eu sentia novamente a brisa fresca tocar minha nuca, eriçando os cabelos e me fazendo pensar com racionalidade. Quem era aquele rapaz e porque ele pulara o muro? Se estivesse na casa com o consentimento dos moradores o normal seria sair pela porta. Porque ele não se limpara lá dentro? Como o cachorro se machucou? Mas todas essas perguntas ficariam sem resposta, pois o rapaz dobrou a esquina e desapareceu com a mesma agilidade de minutos atrás. Precisei de uns instantes para reagir àquilo tudo. As perguntas que não fizera, agora

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fervilhavam em minha cabeça. Refreei a ansiedade que começava a dar sinais e entrei na Pampa. — Está feito. — Conclui em voz alta. Poderia bater na porta dos Lemos para me certificar de que tudo estava bem. Mas eu concordara em confiar nele. Dei a partida e andei alguns metros até em casa.

Ao voltar do passeio no sítio do Ney, papai encontrou a casa arrumada e um cheiro de comida vindo do forno. O sol, que durante o dia se mostrou tímido e preguiçoso, brilhou com toda a intensidade que lhe era permitida em um fim de tarde de outono, com seus raios cruzando a varanda e incidindo nos cômodos cujas janelas eram voltadas para rua. Estava arrumando a mesa da cozinha quando o ouvi abrir a porta devagar. — Sara? — Olavo perguntou desconfiado. — Estou na cozinha. — Respondi num tom de voz mais alto do que o necessário. — Que cheiro é esse? Está cozinhando? — Papai parou ao meu lado com as mãos na cintura. — É só uma receita que eu aprendi nas férias. E o almoço, como foi? A galinha estava boa? Ele se recostou na bancada de mármore preto e soltou um suspiro de desapontamento. — A comida não estava lá essas coisas... Acho que o Ney está perdendo o jeito. Ele ficou me dizendo que eu não devia ter colocado tanta pimenta no molho, mas estou certo de que não exagerei. Soltei uma risada baixa e o avisei de que teríamos uma convidada para jantar naquela noite. — O jantar ainda vai demorar um pouco? Eu quero tomar um banho antes de comer. — Acabei de colocar a lasanha no forno pai. Você pode subir e descansar se quiser. — Lasanha? Será que eu devo me arriscar?

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Olhei-o de soslaio e continuei a preparar a salada. Olavo costumava caçoar de meus dotes culinários. Ele me deu um beijo na testa e subiu as escadas. Marina tocou a campainha no momento em que eu coloquei a lasanha na mesa. Olavo, já de banho tomado e refeito do passeio, abriu a porta para que minha amiga entrasse. Da cozinha, eu os chamei para comer. — O que você fez hoje Sara? — Papai me perguntou enquanto jantávamos. Antes que eu pudesse responder, Marina declarou apressada: — Ela passou a manhã conversando comigo na porta do mercado. Assenti com a cabeça para confirmar a informação. — Você conseguiu resolver tudo o que precisava? Terminei de engolir uma porção de arroz branco misturado ao molho da lasanha e respondi antes que Marina abrisse a boca. — Sim. Fui à papelaria fazer umas compras. Depois voltei para casa e terminei de desfazer a mala. Lavei minhas roupas e arrumei as coisas por aqui. Eu havia passado o resto do dia pensando no inesperado encontro com o rapaz misterioso. Contudo, julguei ser prudente não dizer a ninguém a respeito do ocorrido. Afinal de contas, contar o que se passara implicaria em revelar minha atitude impensada. E eu ainda não conseguia compreender porque agira daquela maneira, confiando em um estranho sujo de sangue. Olavo parecia estar gostando do jantar, pois já havia se servido duas vezes enquanto ouvia minha narração a respeito das atividades naquele sábado. — Vimos um dos Fideli hoje. — Soltei o comentário na esperança de que papai se interessasse pelo assunto. Marina me encarou com a boca cheia de comida e esperou que ele se manifestasse. Sem retirar os olhos da mesa, papai sorveu um gole de refrigerante gelado e respondeu vagarosamente.

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— Eles são novos na cidade Sara. Mudaram-se para cá depois que você viajou. — Mais um gole generoso antes de continuar. — Há algumas semanas, Malthus Fideli foi até o Banco para fazer umas transações. Um homem distinto e muito conservado. — Ele fez uma pausa. — Conservado? — Eu não havia entendido o comentário. — Jovem. Para um homem com filhos adultos... — Papai completou. Marina se serviu de mais uma colherada de arroz e eu terminei o que restava em meu prato. Permaneci ali à espera de mais alguma informação. Finalmente papai terminou de comer, ergueu os olhos e empurrou o prato para o centro da mesa. — Eles compraram o sítio do velho Benjamim. Aquela gente tem muito dinheiro. — Isso dá pra perceber pelas caminhonetes que eles dirigem. — Marina comentou com um tom de ironia que meu pai não percebeu. — Você sabe de onde eles vieram? — Inquiri curiosa olhando para Marina. Mas dessa vez foi meu pai quem se apressou em responder: — Parece que vieram do sul. De alguma cidade em Santa Catarina, mas não me lembro o nome. Tentei descobrir algo quando nos conhecemos, mas Malthus é escorregadio. Não gosta muito de falar de si mesmo. Imaginei o senhor Olavo Lins, com aquela voz mansa e sorriso de gerente de Banco, bombardeando o novo morador com perguntas pessoais. Ele sabia ser inconveniente quando queria. — Mas afinal, qual dos Fideli vocês viram hoje? — A filha de Malthus. — Marina respondeu enquanto retirava os pratos da mesa. — É uma moça linda. — Papai pronunciou a última frase com um misto de admiração e incredulidade. Fiquei intrigada com aquele comentário, imaginando o que haveria por de trás de um simples elogio, mas logo percebi que ele estava apenas sendo sincero. — Ela devia ser maravilhosa — pensei.

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Olavo esticou os braços a cima da cabeça e entrelaçou os dedos das mãos para alongá-los. Em seguida, levantou - se da cadeira e agradeceu o jantar. Depois foi para a sala assistir ao noticiário. Marina me ajudou com a arrumação da cozinha e nós conversamos um pouco antes que ela fosse embora. Senti-me tentada em revelar a ela o que havia se passado naquela tarde. Contar-lhe acerca do rapaz de cabelos negros e rosto de anjo que cruzou meu caminho de forma surpreendente. Esconder coisas da minha melhor amiga não era natural para mim. Mas mantive a descrição para não parecer ridiculamente ingênua. Após nos despedirmos na varanda, tranquei a porta da frente e subi correndo para o quarto. Papai ainda estava na sala, cochilando em seu novíssimo reclinável de couro preto. Adormeci rapidamente e na manhã seguinte nenhum sonho me veio à memória. O domingo transcorreu sem qualquer novidade. Olavo esquentou as sobras da noite passada e almoçamos em silêncio. Aproveitei a oportunidade para organizar alguns papéis e livros espalhados pelo chão do quarto. Com o fim do Colegial, o material apinhado nas prateleiras da estante de madeira envernizada tornou-se sem utilidade. Precisava dar um fim a tudo que não tivesse mais serventia, pois certamente iria precisar de espaço para os livros e papéis da faculdade. Enquanto remexia em cadernos e livros antigos meus pensamentos flutuavam em uma única direção. O rapaz de rosto perfeito que me causara impressões nunca antes sentidas. Eu estava impressionada com a sensação térmica que senti quando ele segurou meu pulso para refrear meus passos. Impressionada com a facilidade com que eu havia concordado em confiar nele. Eu não pestanejei. Não questionei seu pedido sussurrado em meu ouvido. Mas agora, ao analisar a situação de forma racional, conclui que ele se aproximara de mim propositalmente para me dissuadir com um tom de voz meticulosamente calculado. Contudo, uma parte de mim se recusava a aceitar que um rosto tão angelical fosse capaz de tamanha dissimulação. Não era tão difícil acreditar que o cachorro realmente estivesse ferido e que os Lemos tivessem chamado alguém para cuidar dele. Marina me telefonou à noite para combinarmos o horário em que iríamos nos encontrar. Eu passaria em sua casa bem cedo para lhe dar uma carona. Seguiu-se mais uma noite de sono tranquilo e sem ranger de molas. O colchão havia me dado uma trégua. Com o despertador estragado, papai bateu na porta do quarto para me acordar. Estirei meu corpo na cama espreguiçando-me vagarosamente enquanto Olavo descia as escadas chamando por mim. Esfreguei com impaciência o canto do olho esquerdo com o dedo indicador da mão direita para conter uma coceira irritante. Já no banheiro, me detive na frente do espelho por alguns

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minutos para prender os cabelos em um firme rabo de cavalo. Segurei as pontas ressecadas — resultado de muito sol e água salgada — imaginando como ficaria se eu mudasse radicalmente o corte. A quantidade de protetor solar que gastei todos os dias durante o verão não foi suficiente para impedir que as pequenas sardas do meu rosto se intensificassem. — O elogio que papai dispensara à Nora não cabia a mim ─ Pensei, analisando meu reflexo no pequeno espelho do banheiro. Papai esperava por mim na mesa da cozinha, mas não parei para tomar café, pois não queria me atrasar. Saí correndo pela porta da frente, deixando-o para trás com seus gritos de repreensão pela minha pressa exagerada. Entrei na Pampa e dei a partida. O motor respondeu com um uivo profundo, mas não se atreveu a me deixar a pé. Antes de engatar a ré senti meu estômago formigar. Segurei o volante com firmeza esperando que a força de meus pulsos equilibrasse o frenesi sentido por conta do primeiro dia na faculdade. Manobrei com agilidade e comecei a traçar o caminho que me levaria até a casa de Marina. A Pampa aproximou-se da esquina e eu desacelerei para observar o que se passava à minha direita no lado oposto da rua. Enfrente à casa dos Lemos avistei o casal e seus dois filhos pequenos entrando no carro da família parado de fora da garagem. O cachorro - um boxer de pelo marrom e focinho esbranquiçado - trançava em volta do carro com desenvoltura enquanto seus donos o advertiam do perigo de cruzar a rua. A sensação de alívio pareceu emanar do fundo de minha alma. Todos estavam vivos, afinal.

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