Eu poderia ter escolhido qualquer livro. Um exemplar menor, um lançamento mais novo, até mesmo um volume de uma série popular ou uma publicação independente de poemas esquecidos, jamais sussurrados ao pé do ouvido. Mas desde o momento em que entrei naquela enorme livraria algo me atraiu para a tumultuada estante na dobra da parede, como se pulsasse ali um universo paralelo. E pulsava: não qualquer um, mas o meu. Um livro em especial me atraiu. Puxei o exemplar pesado, prensado entre dois volumes sem importância. Alisei sua lombada como se estivesse em braile e eu pudesse apreender suas palavras– não entre os dedos, no meio do meu estômago. Nada havia de sugestivo nele: a ilustração da capa era rústica demais, faltava uma grande história descrita em seu verso, e o título era quase religioso: “Um lugar no universo”. Busquei uma poltrona, um vendedor muito pálido com um piercing no beiço me olhou desconfiado, apostando que eu não compraria nada, mas que passaria horas a fio ali dentro, abrigado do mundo e de mim mesmo. Pousei o grande volume no colo sem saber o que buscava. Um perfume invadiu as páginas intocadas, e então eu o folheei: era um retrato do Brasil que os navegantes conheceram, os desbravadores mapearam e os admiradores pintaram. Reminiscências de uma Atlântida colonial, fragmentos perdidos de mil episódios que nos fizeram ser o país que somos. Junto com o pouco texto descansavam as ilustrações: os bichos esquisitos de Abert Eckhout, as paisagens cenográficas de Von Martius, as aves que já não voavam sob o traço de William Swainson, as samambaias mortas de Sydney Parkinson, os índios de Nicolas-Antoine Taunay. Mapas anônimos, fauna exótica, frutas suculentas, peitos de índias, velas das caravelas e... e eu! Eu? Sim, a ilustração de um cara tão parecido comigo que me senti me olhando no espelho. Parecido, não, igual! Ao lado do desenho aquarelado, os créditos: “Salvador” Ivaí, Villa Rica, 1865. Meus dedos encharcaram-se, o coração escapuliu de meu peito, tentando encontrar lugar para pouso em outra parte daquele corpo tremelicante, latejante, intoxicado pela incompreensão da imagem. A pintura de quase 150 anos era minha! Eu em todos os traços, a textura do cabelo, a força do cavanhaque, o arco do maxilar, a cor da pele. Pior: o meu próprio nome, Salvador! Imediatamente senti as paredes de papel se fecharem em torno de mim. A livraria moderna e iluminada ficou pequena, a poltrona desmaterializou-se, o cheiro de perfume cedeu – virou vento de mata virgem depois da chuva. Num instante eu tinha me transportado: estava em Vila-Rica, Paraná, num povoado localizado no curso do Rio Ivaí, no distante ano de 1865. Eu, Salvador, era agora um índio Caiová desconfortavelmente vestido de capitão-do-mato, segurando uma espingarda e posando para Franz Keller-Leuzinger, o engenheiro, desenhista e fotógrafo alemão que me retratava. “Merci”, o pintor disse, terminando o meu portrait. Tirei o chapéu de palha e o reverenciei. Levantei e olhei em volta: aquele lugar era lindo, lindo como o... passado! Avistei um cacique e
dois índios caçando uma anta que fugira para se esconder sob as águas do Rio Ivaí. Os homens logo subiram num bote que jazia em sua borda e aventuraram-se atrás da besta. Do meu lado esquerdo havia uma aldeia indígena com três ocas enormes. Aproximei-me da primeira onde várias redes, alinhadas, balançavam ao vento. Apenas duas mulheres dormiam – uma amamentando um bebê e a outra totalmente nua. Cestos de palha pendiam do topo da oca formando um grande colar. Escutei a anta soltar um último guincho estridente antes de morrer, me virei para o rio, vários índios, surgidos de todos os cantos, correram até a sua borda e bateram os pés em passo sincopado. Era um sinal de comemoração: haveria muita comida para o jantar! O cacique nos chamou numa língua que eu não conhecia, mas que entendi. “Índios que observam, venham ajudar!”. Todos obedeceram, inclusive eu. A anta, de 300 quilos, tinha que ser puxada de dentro do rio. Entrei, o sangue do quadrúpede morto já tingia a água gelada quando eu pisei em falso e resvalei para dentro. Fui puxado para o fundo. Não me afoguei, apenas mergulhei de pé para outro plano: para fora do livro. Acordei com o funcionário de piercieng molhando meu rosto com um pano úmido. Não sei por que, mas seu olhar preocupado me tranquilizou. Assim que me reestabeleci do mergulho, do delírio, da experiência (o que era aquilo?) apontei para a pintura do livro. “Sou eu”, esbravejei “eu, meu nome, minha pintura!” Ele sorriu, “tome um pouco de água, você desmaiou”, me passou o copo transparente e pesado. Bebi de uma só vez, como se aquela viagem no tempo tivesse me desidratado. Ele pegou o livro para si, examinou a foto, me examinou – mas seu olhar já não continha nenhum sinal de preocupação. “Está vendo que loucura? Como pode ter existido um índio, em 1865, igual a mim? Com o mesmo nome?” “Você nunca viu aquele filme, A dupla vida de Veronique?” Neguei com a cabeça. O que um filme tinha a ver com aquela bizarra coincidência? “Eu devo estar louco, isso não pode ser...” “Salvador, né? Teu nome é Salvador?”, ele falou, lendo a legenda da foto. “É o seguinte, Salvador. Isso sempre acontece aqui. As pessoas se encontram dentro dos livros, é muito louco...” Aquiesci. De repente aquele cara de piercing me pareceu sensato e sério como um profeta. “Como assim?”, perguntei, espantado. “Cara, aqui e em todas as livrarias e bibliotecas do mundo. Onde há um livro, há personagens. E todos nós somos personagens de nós mesmos. Simples assim!” Levantou-se e foi embora levando o copo vazio. Eu fiquei ali por muito tempo, sem conseguir me mover, imprensado pelo livro de onde eu havia saído. Afinal, aquela era a maior descoberta da minha vida.