Livro de Oliveira Pinto - Camila Nascimento

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Livro de Oliveira Pinto Camila Nascimento

Ele não fora ali à toa. Não deixara a mulher sozinha no hospital depois de um parto difícil, nem enfrentara uma fila de duas horas na porta do cartório só para tomar o tempo do oficial do Registro Civil. Mesmo assim o escrivão não pensou duas vezes ao lhe dar um belo e sonoro não. - Mas por que não? - Marcelo insistiu. - Porque eu sou a autoridade e estou dizendo que não. - o escrivão determinou, detrás do balcão descascado de uma repartição pública que estava mais para ventilador de pé do que para ar-condicionado. - "Porque não" não é reposta! - protestou Marcelo - O Brasil é um país livre, eu pago os meus impostos, cumpro com os meus deveres, tenho o direito de botar no meu filho o nome que eu bem entender! O escrivão respirou fundo, como se junto ao ar pudesse aspirar um pouco mais de paciência. - Olha aqui, rapaz, se você quiser registrar seu filho como João, Francisco, Fernando, Carlos, Tiago, Paulo, até Ronaldinho... tudo bem. Agora Livro não! Livro não é nome de gente! - Quem disse? - Você já viu alguém chamado Catálogo? Jornal? Capa Dura? - perguntou irritado - Pois é, meu filho, coisa é coisa, gente é gente! Não se pode botar nome de coisa em gente! Entendeu? - Não. - Bom, então vai sem entender mesmo... - o escrivão desistiu, voltando os olhos para a fila que crescia atrás de Marcelo - Próximo! - Espera aí, na quarta-série eu tive uma professora chamada Maria da Diagramação. Juro! - Pelo amor de Deus, rapaz, não me faça perder o juízo! Livro não é nome de gente e ponto! Se o senhor registrar, aí passa a ser!, Marcelo teve vontade de dizer mas não disse. - É o sonho da minha mulher, seu escrivão! E meu também. A gente é louco por livros! Lemos seis por semana, e aos domingos passamos o dia na livraria. É amor, dependência, vício mesmo! Outro dia, a Valéria foi até presa cheirando umas páginas no corredor da Saraiva. Sorte que o nosso advogado chegou a tempo... - disse Marcelo emotivo, tentando buscar a


compreensão do oficial - O senhor está entendendo a gravidade da situação? Desde o início do namoro, a Valéria diz que o nosso bebê vai se chamar Livro. Eu não posso chegar agora e decepcioná-la. No semblante do escrivão era possível detectar um sinal de fadiga, que poderia ser perfeitamente traduzido por "eu não mereço isso...!". - Escuta aqui, rapaz, qual o seu nome? - Marcelo. - Pronto, olha aí que nome bacana! - exaltou, abrindo os braços - Por que você não chama o menino de Marcelo Junior? Vai ficar uma beleza! - O senhor não compreende... Se eu não chegar em casa com a certidão do moleque constando Livro de Oliveira Pinto, minha mulher me mata! O senhor não conhece a Valéria! - E não tem assim um personagem de livro que sua mulher goste muito? Não sei... James Bond, Romeu, Santiago, Clark Kent, Don Vito Corleone... pode até ser Zorro, se quiser. Você faz uma homenagem ao autor e ainda agrada sua mulher. Pronto! Relutante, Marcelo franziu a testa. Frodo Bolseiro, Marvin, Voldemort, Edward até que eram bons nomes. Entretanto, não era esse o combinado. Em momento algum, ele e a esposa haviam intencionado homenagear alguém dando ao filho o nome de Livro. Queriam chamar a criança de Livro apenas porque gostavam do significado e da sonoridade da palavra. Só isso. - Obrigado, seu escrivão, mas não dá... Tem que ser Livro mesmo, sabe? Foi o "sabe?" que tirou o escrivão do sério. - Então vá procurar outro cartório porque aqui eu não admito esculhambação! - bradou o oficial, debruçado-se no balcão. A cara a um palmo de Marcelo. Assim, bem de perto, ele notou que o cabelo do escrivão parecia o mapa das linhas de metrô de Londres, com os fios atravessando um lado a outro da careca e uma caneta na orelha. Por que será que esse pessoal de cartório tem sempre uma caneta na orelha? - Mas Livro é um nome forte, original, culto, um incentivo à leitura até! - Marcelo argumentou, com humildade - Registra aí, seu escrivão, Livro de Oliveira Pinto, por favor. Não custa nada. - Entenda uma coisa, rapaz: Nome de gente é coisa séria! Não é brincadeira não! - Mas eu não tô brincando! Eu prometi à Valéria... Impaciente, o escrivão coçou a barba como se ela fosse uma extensão de seu queixo. Toda vez que sua barba coçava assim, ele podia contar que havia caroço no angu.


- Olha, rapaz, eu tô começando a achar que aí tem coisa, sabia? - disse o escrivão desconfiando - Já sei! Ah, meu Deus, como foi que não pensei nisso antes? Você não é o pai da criança! - Que isso! - Esse filho não é seu! Você quer registrar a criança com um nome vexatório para se vingar da sua esposa infiel. É isso, não é? Fala a verdade! - Claro que não! - Já vi de tudo nesses meus 17 anos de cartório, rapaz! Teve um cara que apareceu aqui com o mesmo blá-blá-blá querendo registrar os filhos gêmeos de Hotidogson e Milquesheiqueson. Não permiti, é claro. Disse a ele: Resolva essa encrenca com a sua senhora, separe-se, case-se com outra, mas não vá se vingar em alguém que nem pediu para nascer... - Hotdogson e Milquesheiqueson...? - Marcelo interrompeu bestificado, quase em transe, como se enxergasse uma luz no fim do túnel. Mas é claro, era tão óbvio!, ele teve um estalo! Para que botar o nome da criança de Livro se há tempos ele e a mulher não liam um de verdade? - Pois foi isso mesmo! - O escrivão prosseguiu - Se quiser assumir a paternidade de outro, tenha dignidade. Não vá ridicularizar a criança... - Kindle! - Oi? - Registra aí o nome do meu filho, Kindle de Oliveira Pinto. - Kindle? - O escrivão parou, pensou um pouco. Contra Kindle, ele não tinha nada. Num primeiro momento, considerou até um nome de bom gosto, ou pelo menos um nome que não desabonava ninguém. Com cara de poucos amigos, o escrivão voltou-se para o computador e começou a digitar - Identidade, Certidão de Casamento e a Declaração de Nascido expedida pela maternidade, por favor. - exigiu, oficializando assim o nascimento do primeiro Kindle brasileiro, o Quindou de Oliveira Pinto. -FIM-


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