Novembro – Kamila Denlescki

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Novembro São Paulo, 01 de novembro de 1984 O fato é que eu estava apaixonada. Todos os dias, durante o intervalo, eu admirava o Bruno em seu grupo de amigos. Estava sempre rindo, balançando o cabelo loiro cacheado. Parecia um anjo. Se apenas ele pudesse olhar para mim, saber que eu existo, mas não. Garotos do terceiro ano nunca olhavam para meninas do segundo ano.  Se você não se declarar, nunca vai saber. – Minha amiga disse, tomando o último gole de seu Yakult.  É uma teoria.  Eu não aguento mais te ver olhando para ele, suspirando pelos cantos. Até quando!? Não existe nada pior do que um amigo apaixonado. Você já percebeu que a cada dez palavras suas, onze são sobre esse Bruno. Ainda bem que meu coração é de pedra.  Isso não é verdade, Karina. Seu coração não é de pedra... Ela deixou o Yakult vazio de lado e me abraçou.  Fale com ele, Shelle, só assim você vai saber. Se der certo, ótimo. Se não, você vai seguir em frente. É o que eu penso. Se você nunca souber da verdade, vai ter uma vida inteira para se arrepender depois. O sinal tocou. Karina pulou da mureta onde sempre passávamos os intervalos e ajeito sua calça jeans vintage. Eu fiz o mesmo. Olhei novamente na direção do Bruno. Ele estava abraçado a uma menina ruiva do terceiro ano. Pareciam amigos, ou talvez... balancei a cabeça, sentindo aquela habitual pontada no estômago. Segui Karina até a classe do segundo ano. Assim que chegou, carregando seus livros e anotações, o professor de história começou a aula com a chamada... Abri minha agenda no dia 01 de Novembro. Assim que dezembro chegasse, Bruno concluiria o colégio e eu o perderia para sempre. Em apenas um mês, tudo estaria acabado. Dois anos apaixonada por uma pessoa que eu nunca mais veria.  Sibelle Freiberger!? – O professor anunciou.  Presente. – Respondi, levantando a mão por reflexo. Mesmo assim, por mais que eu sonhasse, não poderia...


Na vida, sempre há algumas coisas que permanecem lindas em sonho, mas, na realidade, são complicadas demais para funcionarem. Esse era o pensamento que me fazia seguir em frente. Eu seguiria gostando dele, mas em silêncio. Sonhando.

Assim que o sinal de saída tocou, o corredor principal da escola virou o caos. Rios de alunos pulavam para a saída, atropelando uns aos outros, e fugindo da escola com toda a força de suas pernas. Eu e Karina éramos sempre as últimas a sair da classe. Caminhamos lentamente, conversando, até a portaria principal. Muitos alunos ainda estavam por lá, na calçada, conversando em grupos ou apenas esperando por uma carona. Bruno era um deles, parado ao lado de uma árvore. Estava sozinho. Passava a mão pelo cabelo, fazendo alguns cachos rolarem para seu rosto. Seus olhos estavam perdidos no horizonte. Por que não podiam estar perdidos em mim?  Vamos, Shelle. – Karina segurou meu braço.  Vamos. Olhei na direção de Bruno pela última vez. Eu e Karina seguimos pela rua da escola. Ela falava sobre seu cachorro, o Mapple, que era a maior paixão de sua vida.

Eu morava na pequena casa amarela da rua Mário Amaral. Karina morava na grande casa verde da esquina. Entre nossas casas havia uma distância de três quadras. Assim que nos despedimos, atravessei as três quadras e, finalmente, cheguei à casa amarela. Abri o portão da frente e entrei. Como sempre, minha mãe não estava em casa. Ela vendia produtos de catálogo, principalmente produtos de casa e cozinha. Participava de grupos de chá, nos quais sempre empurrava produtos inúteis para mulheres que chamava de amigas. Minha mãe nunca tinha tempo, nem mesmo para falar comigo. Eu sentia sua falta, mas essa falta foi se fechando até a ausência se transformar em algo completamente normal. Fui direto para o meu quarto e joguei a mochila sobre a cama. Abri a gaveta da minha estante, vasculhei os discos e pesquei Cyndi. Talvez eu não devesse ouvir Time After Time, mas tudo o que eu precisava, naquele momento, era sentir todas as coisas que não conseguia entender. Coloquei o disco para tocar e me joguei na cama.


No dia seguinte, cheguei cedo na escola. Sentei na mureta do pátio e esperei. Nem mesmo Karina havia chegado. A cada aluno que entrava no pátio, meu coração disparava. A qualquer momento, ele passaria por aquele portão cinza e, mas uma vez, meu coração reagiria. Eu queria aproveitar cada minuto daquele mês. Alguém entrou no pátio. Meu coração disparou. Mas não era o Bruno. Era um dos garotos do primeiro ano, vestido em um jeans velho e uma camiseta branca. Ele ergueu o rosto e, assim que me viu, caminhou em minha direção. Para minha surpresa, parou ao meu lado.  Posso me sentar aqui? – perguntou.  Pode. Afinal, a mureta do pátio da escola era um lugar público.  Você é a Shelle, não é? Olhei para ele.  Sim...  Meu nome é Alec. Alec Joon.  Hum... Não me interessava. Voltei a olhar para o portão, esperando por Bruno. Assim que vi a sombra de alguém, respirei fundo. Não era o Bruno. Droga.  Eu precisava falar com você. – O tal Alec disse. – Pode ser agora? É muito importante. Eu erguia meu corpo, tentando ver quem eram as pessoas que entravam. Por que ele estava demorando tanto? Eu precisava vê-lo depois da minha depressiva tarde de ontem.  Shelle!? – Alec me acordou com sua voz.  O que?  Posso falar com você? É importante. Vi Karina atravessar o portão. Ótimo, estava salva.  Agora não posso. – Me levantei. – Minha amiga chegou, não posso. Me desculpa, garoto. Rapidamente, me afastei.  Então, depois da aula. – Alec gritou. – Posso falar com você depois da aula?  Pode. Segurei o braço de Karina e a levei pelo corredor até nossa classe.  Quem era aquele menino? – Karina sorria, olhando para trás.  Não sei. Não importa. Quando o sinal tocou, já estávamos em nossas carteiras, na classe do segundo ano. Karina falava sobre a viagem que faria com seus pais, no


próximo feriado. Eu sorria, tentando imaginar como seria bom se eu tivesse uma família também.

Depois da aula, eu e Karina fomos à melhor sorveteria do Paraíso. No final do ano, aquele lugar ficava cheio, principalmente ao meio dia. Aquele era o melhor lugar para se conhecer gente nova e, quando eu digo gente nova, quero dizer garotos. Karina devorava sua taça de sorvete como se o mundo estivesse acabando em contagem regressiva.  É o que eu sempre digo, Shelle. O Bruno não vai adivinhar o que você sente por ele. Você tem que falar, sabe, comunicação. No futuro, quando vocês se casarem, você vai ter que melhorar este aspecto. Comunicação é tudo. Quer que eu fale com ele por você? Eu falo.  Não, Karina. Não!  Mas...  Não.  Seria bem mais fácil... Eu suspirei, gostava da forma como Karina deixava tudo mais fácil. Se eu não a tivesse, não teria ninguém, por isso, eu era muito grata por tê-la como amiga.  Estou bem, Ka. Estou bem mesmo. Gosto dele. Gosto muito dele, mas quem nunca se apaixonou assim? É a vida. Eu não quero estragar tudo.  Você é muito pessimista, Shelle. Ainda naquele dia, passeamos pela avenida Paulista, mas voltamos para nossas casas de mãos vazias, embora eu estivesse louca pelo álbum do Air Supply.

No dia seguinte, sentada na mureta, eu esperava pelo começo da aula. Balançava as pernas e batia os pés no chão. Karina sempre chegava cinco minutos antes de o sinal tocar, por isso, eu sempre esperava sozinha. Quem eu esperava, na verdade, era o Bruno. Os dias em que eu podia vê-lo antes da aula eram dias felizes. Um garoto atravessou o portão do pátio. Era o menino do primeiro ano e, como um pensamento puxa o outro, lembrei que, no dia anterior, depois da aula, eu deveria ter ouvido o que ele tinha para dizer. Eu havia furado com ele. Sentou-se ao meu lado, em silêncio.


 Olha, - passei a mão pela testa, sem saber o que dizer, - Por favor, me desculpa... hã...  Alec.  Alec, claro. Me desculpa, eu... Ele ergueu o rosto para mim e sorriu. Alec tinha um rosto perfeito. Sua pele era lisa, sem qualquer marca ou sinal. Os olhos eram pretos, assim como o cabelo, que estava sempre caído sobre seu rosto.  Não tem problema. – Continuava sorrindo. Por que ele não estava bravo? – Posso falar com você agora? Relaxei os ombros.  O que é?  Estava pensando se... se você não quer ir no cinema comigo? Seria legal se você pudesse ir. – Ele estralava os dedos, estava nervoso. – Você escolhe o filme, claro. Vai ser legal, eu prometo. Esperava por minha resposta como se fosse valiosa.  Certo. – Falei. – Eu vou. Alec parecia surpreso. Parou de estralar os dedos e me encarou.  Então... sábado? Sábado, às cinco horas, na frente do cinema? Tudo bem por você?  Tudo bem. Karina chegou e se juntou a nós.  Shelle, vamos!? Eu me levantei e a segui.  Nos vemos sábado, então! – Alec disse. Olhei para trás. Ele acenava. Talvez Alec pudesse se tornar um amigo, assim como Karina. Eu gostava da ideia.

Durante a aula de português, Karina, que sempre sentava na carteira de trás, passou um bilhetinho por cima de meu ombro.

Como assim, Shelle!? Só amizade!? Acredite em mim, eu conheço os homens, não existe esse negócio de só amizade. Pela primeira vez, meu coração disparou por alguém que não era o Bruno, mas eu não conseguia ver Alec daquele jeito. Mesmo que ele gostasse de mim, eu nunca gostaria dele. Rasguei um pedaço de papel da última página do meu caderno e escrevi:


Então, o que eu faço? Passei o pedaço de papel por baixo da carteira. Minutos depois, a resposta chegou.

Você gosta de outro, não gosta? Respondi...

Eu gosto do Bruno. Nunca gostaria de alguém como o Alec. Passei o bilhete para Karina, que logo respondeu.

Então, não perca seu tempo. Guardei o bilhete em meu caderno. Talvez ela estivesse certa. Alec parecia ser legal, mas não era a pessoa para mim. O Bruno era a pessoa para mim.

No sábado, eu estava decidia a não ir. Karina passara o resto da semana me convencendo de que, se eu não tinha vontade, não deveria ir. Acreditei nela. Entretanto, quando o meu relógio de pulso marcou cinco horas e cinco minutos, mudei de ideia. Eu não podia, simplesmente, deixá-lo esperando. Vesti a primeira roupa que encontrei, prendi o cabelo em um coque e subi correndo a rua Teixeira da Silva até a avenida Paulista. O vento desarrumava meu cabelo, embora eu tentasse mantê-lo no lugar. Até o cinema, perto do MASP, foram mais vinte e poucos minutos de caminhada. Alec estava lá, sentado num dos bancos almofadados próximo à bilheteria. Olhava para as próprias mãos, de cabeça baixa.  Me desculpa, de novo. – Falei, sentando ao lado dele. – Eu perdi a hora. Eu te deixei esperando todo esse tempo...  O importante é que você veio. – Disse, sorrindo. A boca de Alec era mais sensual do que eu me lembrava. Estava sempre entreaberta.  Eu vim.  Você tem algum filme preferido? – Disse e apontou para a bilheteria.  Não, pode escolher.


O próximo filme era Exterminador do Futuro. Alec comprou nossos ingressos, um saco de pipoca e entramos na última sala do corredor.  Espero que o filme seja bom. – Murmurei. Ficamos em silêncio, esperando o filme começar. Alec estralava os dedos, parecia desconfortável, mas fazia força para parecer tranquilo.  Eu sempre te vejo sentada naquela mureta. – Falou. – Sempre tive vontade de falar com você.  Deve estar decepcionado agora. – Falei, lembrando-me das vezes em que havia furado com ele. Alec fechou o sorriso.  Não, estou feliz. Abaixei a cabeça, sem saber como reagir.  Eu ficava pensando, qual é a música favorita dela? O filme que mais gostou? Sua uma cor preferida? Ou um perfume que sempre usa.  Minha música é All Out of Love, do Air Supply. Hum... gostei de O Guarda-Costas, mas meu filme preferido é Em Algum Lugar do Passado. Gosto de uma cor diferente a cada dia. Hoje eu escolho... azul, azul bem claro, quase branco. E perfume, isso não posso contar. Segredo de mulher é segredo de mulher. Alec abriu um sorriso lindo e natural.  All Out of Love é a minha música também. Eu até gravei em uma fita, na casa do meu primo.  Sério!? Você uma fita com essa música?  Tenho.  Pode me emprestar?  Claro.  Obrigada, Alec. Ele me encarou, surpreso.  O que...? – Passei a mão pelo meu rosto, ajeitando meu cabelo.  Você disse meu nome. Sorri para Alec. Havia algo nele que chamava minha atenção. Podia ser seu sorriso carismático ou seu jeito sensual, quase erótico, de olhar para mim. Vendo-o ao meu lado, tive uma estranha e repentina vontade de tocar naquela pele perfeita. Desci os olhos por seu braço. Então, as luzes se apagaram. O filme estava começando.

Quando saímos do cinema, já era noite.


Caminhamos pela avenida Paulista na direção da rua Teixeira.  A cena da delegacia foi a melhor, quando o Kyle salva a Sarah, ah... é tão lindo. – Falei, segurando as mãos atrás do corpo. – Ou quando ele diz que veio do futuro para ela. É tão triste.  Eu gosto mesmo é da cena que o T-800 se concerta. O braço dele todo aberto... sangue... e a cena do olho, então...  Blah... aquilo foi nojento, Alec.  Não, foi incrível.  Urg... Fiz uma careta. Alec riu alto.  Você vai ao cinema comigo de novo, não vai, Shelle? – Perguntou, juntando as mãos em frente ao peito.  Vou. E prometo não me atrasar de novo. Abaixei a cabeça, lembrando-me da minha falta, sentindo vergonha.  Eu não vejo problema em esperar. Tenho o dia inteiro. Sábado é a minha folga, afinal.  Folga? – Diminuí a velocidade dos passos. – Você trabalha?  Sou ajudante em um mercado perto de casa. Carrego caixas o dia inteiro. É cansativo, mas eu preciso.  Onde você mora?  Numa das travessas da avenida Vergueiro, perto da Liberdade. Cruzei os braços.  A Vergueiro é longe e está tarde, você deveria voltar para sua casa agora. Eu sei me cuidar. Estou acostumada a andar pelo Paraíso. Como você vai voltar?  Eu pego um ônibus.  Não precisa me acompanhar, Alec. Não quero que me acompanhe. Vá para casa. Nos vemos segunda-feira, na escola. Acelerei as pernas e virei a esquina da rua Teixeira. Olhei para trás. Alec me seguia de longe, com as mãos no bolso da calça Jean, sorrindo pretensiosamente.  Estou falando sério. – gritei. – Vá para casa. E pare de me seguir. Ele ergueu os braços.  Só estou passeando. Você não pode me impedir. Segui meu caminho, sem conseguir parar de sorrir. Embora olhasse para frente, eu sabia que ele ainda me seguia. Respirei fundo e esperei por ele. Já estávamos na esquina da minha rua, em frente à casa de Karina.  A minha casa é aquela amarela.  Bonita. Caminhamos até o portão.  Obrigada, Alec, de verdade.


 Foi um prazer acompanhá-la...  Não, eu quis dizer, obrigado por tudo. Obrigado pelo dia, pelo cinema, por me acompanhar também, é claro. E obrigado por me desculpar. Alec sorriu, enchendo o peito de ar.  Olha, tem uma folha no seu cabelo. Ergueu o braço e tirou a folhinha verde que estava presa entre meus fios. Passou os dedos por meu cabelo preto e longo. Pensei que, talvez, tocaria em meu rosto, mas se afastou.  Agora eu posso ir. – Enfiou as mãos no bolso da calça. – Vou chegar cedo amanha na escola e esperar por você.  Duvido que você consiga chegar mais cedo do que eu. Todos os dias, eu sou sempre a primeira, ou uma das primeiras a chegar.  Vamos ver.  Vamos ver. Ele deu passos para trás. Tirei minha chave da bolsa e abri o portão. Alec acenou para mim e, andando rápido, se afastou. Desde o momento em que eu o encontrara, naquela noite, não havia dedicado um único pensamento a Bruno. Pensara apenas em Alec. Entrei em casa e tive de passar o resto da noite explicando a minha mãe onde estivera.

Assim que atravessei o portão da escola, vi Alec sentado na mureta. Ele mostrava aquele olhar vitorioso para mim.  Tudo bem, mas amanha vai ser diferente. – Falei, já sentada ao seu lado.  Talvez. Ah... Alec tirou de dentro de sua mochila uma fita velha e a entregou a mim.  All Out of Love. – Disse.  Obrigada, Alec. Muito obrigado. Vou passar a tarde inteira ouvindo. Beijei a fita e a segurei com cuidado. Alec me assistia em silêncio, estava sério.  O que foi? – Perguntei.  Eu sei que você gosta de outro. – Falou finalmente. Senti meu corpo se congelar. – Durante o intervalo, vejo você olhando para ele, o menino do terceiro ano.  Alec...


Ele passou a mão por meu rosto, exatamente como eu esperava que ele fizesse, e se aproximou.  Eu sei que sou totalmente diferente dele, mas, se você me der uma chance, eu prometo que vou fazer valer a pena. Eu prometo. – Senti a respiração de Alec em meu rosto. – Você não precisa gostar de mim, eu já gosto de você o suficiente. No mesmo instante, vi Bruno entrar no pátio. Alec percebeu minha distração e logo puxou meu rosto. Murmurou em meu ouvido.  Me dê uma chance... Sem que eu tivesse tempo de reagir, encostou seus lábios no meu. Eu fechei os olhos, incapaz de pensar em qualquer coisa. A boca de Alec na minha tomou completamente minha atenção, principalmente a partir do momento em que ele abriu os lábios e deixou nossas línguas se tocarem. Foi meu primeiro beijo.

Todos os dias, Alec chegava mais cedo do que eu. Ele segurava minha mão, eu encostava meu corpo no dele. E, até o sinal tocar, conversávamos sobre a escola, os professores, o trabalho de Alec, a minha família disfuncional, besteiras quaisquer ou, então, simplesmente ficávamos em silêncio. Embora eu o conhecesse há apenas uma semana, podia jurar que estivera ao seu lado por anos.  Quer ir à sorveteria hoje, Shelle?  Mas, e o seu trabalho?  Posso compensar em outro dia.  Não. – Balancei a cabeça. – Não quero te atrapalhar.  Você nunca me atrapalharia, sua bobinha. Então, assim que a aula terminou, caminhamos, de mãos dadas, à sorveteria. Dividimos a mesma taça, brigamos pelo o último canudinho de chocolate e deixamos a sorveteria rindo e abraçados. Alec havia transformado aquela Shelle triste e pessimista em uma garota que eu não conhecia. Quando eu olhava ao redor, só via motivos para acreditar que a vida era movida por uma espécie de magia. Naquele dia havia uma manifestação na Paulista. Pessoas vestidas em camisetas verdes seguravam placas, gritavam palavras a favor da arborização da cidade e distribuíam sementes a quem quisesse contribuir com o movimento. Alec conseguiu uma semente e a colocou em minhas mãos.  Eu sei onde plantá-la. – Disse. – Venha comigo.


Pegamos o ônibus que Alec usava todos os dias para ir à escola, e descemos na rua Mie Ken, em frente a uma pequena praça cercada por prédios antigos.  Meu pai costumava me trazer aqui quando eu era pequeno. – Alec apontou para a praça.  É lindo.  Eu adorava este lugar. Encontramos um espaço vago e deixamos a semente sobre a terra, se tivesse força, germinaria. Sentamos em um dos bancos de cimento da praça, assistindo às nuvens serem levadas pelo vento. Minha atenção, entretanto, estava voltada para Alec, que parecia triste.  O que foi, Alê? Quer ir embora?  Não, não... – suspirou. – Eu estava me lembrando do meu pai. Quando eu era pequeno, ele me trazia nesta praça e me falava sobre a vida. Eu não entendia metade das coisas que dizia, mas gostava de ouvir. Gostava da vida como ele a via. Era sempre com amor. Meu pai tinha muito amor. Ficamos em silêncio, sentindo o vento que varria as folhas secas do chão e balançava os galhos das árvores.  O que aconteceu?  Acidente de carro.  Sinto muito, Alec. Ele se virou para mim e sorriu, mas era um sorriso cinza, sem vida.  Ele me dizia que, depois que uma pessoa morre, ela pode nascer de novo, se quiser, se tiver um motivo para voltar. Por muito tempo, esperei ele fosse voltar... mas, com o tempo, eu entendi. Ele não iria voltar, porque a minha mãe já estava lá. Segurei a mão de Alec com força. Ele continuou:  Eu voltaria por você, Shelle. Senti lágrimas se formarem em meus olhos. Alec as enxugou com a manga de sua camiseta e me abraçou. O calor dele me fazia tão bem. E seu cheiro, misturado a um perfume amadeirado, atraía todo o meu corpo.  Eu não queria jogar isso em cima de você, Shelle, me desculpa. É só que... eu queria que você soubesse.  Obrigado por me contar, Alec. As nuvens ficaram pesadas, logo choveria. Alec ainda segurava minha mão e, pela primeira vez na vida, não me senti sozinha. Pela primeira vez, senti que podia confiar em alguém sem precisar vigiar minhas palavras.  Meus pais se separaram quando eu tinha doze anos. – Confessei. – Fiquei na casa com a minha mãe e meu pai se mudou para um


apartamento na Vila Madalena. No primeiro ano, ele me visitava todas as semanas, trazia presentes, doce, e me levava para passear. Ele era o meu herói, não queria que se afastasse de mim. Mas, a cada ano, ele me visitava menos e menos, como se, devagarzinho, eu estivesse deixando de ser sua filha. – Tomei meu tempo para organizar as memórias. – Há dois anos ele se mudou para Santos. Ele me telefona, é claro, mas não temos muito assunto.  E sua mãe?  Depois do divórcio, virou outra pessoa. Talvez por medo, talvez por necessidade. Ela se afastou de tudo que a fazia se lembrar do meu pai, inclusive de mim. Acho que perdi minha mãe antes de ter perdido meu pai. E, então, quando percebi, tudo o que eu tinha era a amizade da Karina, mais ninguém.  Quero que você se lembre de uma coisa, Shelle...  O que?  Você nunca mais vai estar sozinha. Alec enfiou as mãos em meu cabelo, amparando minha cabeça, e me beijou lentamente, desvendando cada curva da minha boca. Às vezes, desviava o rosto e beijava meu pescoço. Eu o abraçava com os olhos fechados. Alec havia me cativado.

No sábado, acordei com o telefone tocando. Minha mãe, que já estava de pé, atendeu.  Alô? Sim. – Breve pausa. – E quem quer falar? Segundos depois, entrou em meu quarto.  Um tal de Alec quer falar com você.  Ah... Saltei da cama e, enrolada na coberta, corri até a sala.  Alec?  Shelle. Como vai? Dormiu bem?  Muito bem. Ouvi sua respiração.  Eu estava pensando, o que acha de passar o dia na minha casa? A comida da minha avó é boa... quero dizer, se você gostar de Miyeok guk, é claro.  Miyeok guk? Alec riu.  Vou aí te buscar...  Espera, Alec. Ele já havia desligado.


Vinte minutos depois, escutei uma buzina. Subi no sofá e olhei pela janela da sala. Alec estava em cima de uma moto, acenando para mim. Saí de casa e corri até o portão.  O que você está fazendo em cima disso?  Da moto? – Alec passou a mão pelo banco. – Eu ando nisso há anos. Era do meu pai. Pode ficar sossegada, Shelle, eu nunca destruí nada com isso. É totalmente seguro. Ele estendeu a mão e me ajudou a subir. Abracei seu corpo com força, tremendo e fechando os olhos.  Pelo menos, você tem licença para dirigir?  É claro que não. E acelerou. Chegamos na rua Pirapitingui vivos. Eu havia engolido alguns mosquitos e fios de cabelo, mas estava viva.  Esta é a minha casa. – Alec disse, orgulhoso. Estávamos em frente a uma casa pobre e velha, protegida por um portão enferrujado. Havia vasos de flores por todos os lados.  Por aqui... – Alec disse, segurando minha mão. Subimos por uma escada íngreme e estreita até o segundo andar, onde havia um pequeno corredor com mais plantas. A porta para a sala estava entreaberta.  Halmeoni? Alec me levou para dentro de sua casa, que era formada por uma salacozinha, um banheiro e dois quartos. A avó estava no quarto da frente, sentada a uma antiga penteadeira de madeira, penteando seu cabelo branco e ralo.  Halmeoni? A mulher se virou lentamente, sorrindo para mim. Alec falou em coreano com ela. Eu, que não sabia que ele falava outra língua, encarei-o, espantada.  Eu disse para ela que você é a minha namorada. – Sussurrou para mim, com seu sorriso encabulado. A mulher se levantou com cuidado e se aproximou de mim.  É um prazer te conhecer. – Ela disse, desta vez, em português.  O prazer é meu, senhora Joon.  Venha comigo, querida. Sentamos na beirada de sua cama enquanto ela pegava do guardaroupa caixas de álbuns de fotografia. Senhora Joon nascera em Daegu, antes da guerra, e chegara ao Brasil ainda criança. Ela passava as páginas dos álbuns de fotografia rapidamente. Em outras épocas, a família era grande, cheia de


irmãos e primos, mas, ao longo das gerações, poucos ainda estavam vivos. Senhora Joon olhava para as fotografias com nostalgia, revivendo cada um daqueles momentos. Assim que vi a fotografia de um bebê, apontei.  Quem é? – falei. Senhora Joon apontou para Alec.  Ow...! – exclamei sem conseguir conter minha animação. Alec era, simplesmente, a criança mais fofa que eu já vira. À medida que senhora Joon virava as folhas, eu assistia ao crescimento de Alec. Em todas as fotos, estava sorrindo, com aqueles olhos pretos cativantes. Na última foto, já era um adolescente, embora seu sorriso continuasse tão inocente quanto antes. Depois do almoço, no qual eu descobri o que era Miyeok guk, senhora Joon se recolheu. Alec me levou ao quarto dele, que era um espaço tão pequeno que só cabia uma cama, uma mesa de estudos e uma cômoda. Eu me sentei na cama.  Você fala coreano.  Aprendi com minha avó. Ela não me deixou em paz até que eu estivesse fluente. – Sentou-se ao meu lado. – Quero te mostrar uma coisa, Shelle, mas você não pode contar para ninguém... promete?  Prometo. Alec enfiou os braços debaixo da cama e puxou uma pilha de cadernos e folhas soltas. Jogou-os sobre a cama e olhou para mim.  O que é isso? – Perguntei, mas ele não respondeu. Peguei uma das folhas, na qual havia uma poesia assinada por Alec.  Você escreve?  Mais ou menos. Eu gosto de escrever, queria escrever um livro, mas não sei se sou bom nisso. Li a poesia, que falava sobre a beleza de um rio que leva as folhas secas do outono para longe das árvores e, por causa disso, a solidão das árvores, secas, em um inverno rigoroso. As palavras pareciam notas e eu lia a poesia como se escutasse uma música. Alec tinha um dom. Ergui o rosto..  Sua poesia... – passei a mão pela folha amarelada pelo tempo. Vasculhei as páginas, lendo mais poesias e pequenos contos, até Alec empurrar os cadernos para longe e me puxar para perto dele. Deitei em seu braço e relaxei.  Eu nunca li nada como as suas poesias. O seu jeito de escrever é tão... leve.  Você acha? Balancei a cabeça, confirmando.


 Acho que você nasceu para escrever. Eu queria ter um dom como o seu.  E você tem. – Ele disse.  Tenho!? Minha expressão de espanto o fez rir.  Você sempre vê o melhor das pessoas.  Isso não é um dom.  Acredite em mim, é um dom incrível. Ele passava os dedos por meu cabelo e olhava para mim. Um sentimento de segurança me tomava. Os braços dele era o melhor lugar que eu já estivera.  Eu te vi pela primeira vez em fevereiro, durante o intervalo. – Ele acariciava minha nuca. – Naquele instante eu sabia que você seria minha.  O que fez você gostar de mim?  Eu poderia escrever um livro só sobre isso. Eu sorri. O jeito com que Alec tocava em minha nuca me fez adormecer. Acordei algum tempo depois. Ele estava sentado à sua mesa de estudos, escrevendo nos cadernos de poesia. Adormeci novamente, mas acordei logo em seguida. Ele ainda escrevia.  Alê... Fechou o livro, sentou-se na cama e beijou minha testa.  Shelle... Sua mãe ligou.  Minha mãe?  Ela quer que você volte para casa. Levantei a cabeça, assustada.  Que horas são?  Oito horas.  Meu Deus... É tarde! Ajeitei minha roupa, o cabelo e peguei minha bolsa. Alec me levou de moto até em casa. Minha mãe esperava por mim na sala, com os braços cruzados.  Quem é ele? – perguntou.  Alec, meu namorado.  Você tem um namorado!? – Era mais uma exclamação do que uma pergunta. – Desde quando?  Desde o começo do mês.  E onde você o conheceu, Sibelle?  Na escola, mãe. Ela fungava, andando em círculos em frente à velha estante da sala.


 Tome cuidado com esses garotos. Eu me lembro de quando tinha sua idade. Eu acreditava em tudo o que diziam. Foi uma decepção atrás da outra. Shelle, você vai se machucar também.  Mãe... Fui para o meu quarto e fechei a porta. Não queria ouvir outro sermão. No domingo, Alec me levou a um centro de jogo na Vila Madalena. Jogamos boliche, pebolim e jogos eletrônicos de corrida. Mostrei para Alec o quão terrivelmente ruim eu era em qualquer jogo que exigisse reflexo e coordenação.

Na segunda-feira, Karina estava mal humorada.  Só porque agora você namora, não precisa mais de mim... – resmungava. – Passou dois anos apaixonada pelo Bruno e, agora, parece que nem se lembrar que o garoto existe.  Eu mudei.  Ninguém muda tão rápido. Respirei fundo.  Com o Bruno, foi um sonho. Eu nem mesmo conseguia entender o que sentia por ele. Mas, com o Alec, é real. Karina ficou quieta, passando a garrafinha de Yakult vazia de uma mão para a outra. Durante o intervalo, ficávamos juntas. Alec tinha um pequeno grupo de dois amigos, mas eu nunca o perdia de vista... nem ele. Ah... nada como ser correspondido.  Eu não sei explicar. Acho que sinto ciúmes. Quando vejo vocês dois juntos, percebo que são tão amigos... sinto ciúmes da sua amizade. É isso. Eu ri, abraçando Karina.  Não seja boba. Nós vamos sempre ser amigas.  Viu!?  Vi!? Vi o que? O que eu disse?  Você disse amiga e não melhores amigas.  Karina!  Shelle! Nos abraçamos novamente. Por fim, ela murmurou:  Vocês são lindos juntos. Aqui na escola só se fala de vocês, o casal mais fofo.


Ainda naquela semana, tive que ir à biblioteca da escola. A professora Josephina havia pedido um trabalho escrito à mão sobre a Revolução Francesa e eu precisava de referências. Peguei cinco livros com a assistente, escolhi uma das mesas mais afastadas e comecei o trabalho. Como aquilo podia estar acontecendo comigo? Nem mesmo me lembrava da existência de Bruno. Era Alec, Alec e Alec. Não sabia, exatamente, o que ele havia feito comigo. Mas de uma coisa eu sabia... agora, eu era importante para alguém.  Oi, posso usar essa mesa também? Acordei dos pensamentos e ergui o rosto. Era Bruno. Bruno!? Sim, Bruno. Ele estava em frente à minha mesa, esperando por minha resposta, tamborilando os dedos no encosta da cadeira.  Claro, claro... Bruno puxou a cadeira e se sentou, repousando uma pilha de livros sobre a mesa.  Você é Shelle, do segundo ano, não é?  Sim, sou eu. Voltei para meu livro, desta vez, completamente sem capacidade de me concentrar, já que Bruno ainda olhava para mim. Aproximei o livro do rosto e coloquei toda a minha atenção no capítulo sobre a Queda da Bastilha. Por fim, consegui entrar no livro e prosseguir com meu trabalho.  Shelle? Despertei com a voz de Bruno. Abaixei o livro.  O que?  Vou direto ao assunto... Eu sei que você gosta de mim. Tentei responder alguma coisa, mas balbuciei palavras desconexas, engasgando em cada uma delas.  Você está com aquele menino do primeiro ano só para me fazer ciúmes, não é?  Não...  Há dois anos percebo você olhando para mim. É fácil perceber. Mas não precisava ficar com outro só para se valorizar. Fale comigo... Empurrei a cadeira e me levantei.  Eu gostava de você... Juntei meus cadernos dentro da mochila e saí da biblioteca, mas Bruno me seguiu.  Eu sei que ainda gosta, menina.  Você não sabe de nada. Atravessei o corredor principal. Bruno fez o mesmo. No período da tarde, a escola ficava vazia. Eu caminhava rápido, mas ele me seguia.


 Olha, se você terminar com ele, eu namoro com você.  Não, obrigado.  Vai me trocar por um menino do primeiro ano? Tem certeza?  Absoluta. Acelerei o passo e deixei Bruno para trás. Uma paixão, como aquela que eu sentira por Bruno, podia sobreviver por dois anos e, depois, morrer de uma semana para a outra. Mais do que antes, eu entendia a complexidade dos sentimentos.

No dia seguinte, assim que pisei no pátio, percebi uma movimentação incomum para o horário do intervalo. Havia algum tipo de confusão acontecendo  Mas... o que...? – Karina perguntou, erguendo o corpo. Havia duas pessoas brigando. E, pelo jeito que a plateia se formava, haviam acabado de começar. Nos aproximamos, e só então eu vi que as duas pessoas que brigavam eram Bruno e Alec... o meu Alec.  Droga! Empurrando quem estivesse no caminho, cheguei até eles. Abracei Alec e o afastei, puxando-o para longe do Bruno. Estavam cheios de hematomas.  Alec, Alec... venha! – Gritei. Eu o puxei pela mão e Alec me obedeceu, entretanto, antes de se afastar, gritou com Bruno.  Estou de olho em você! Bruno apenas riu, exaltando Alec.  Vamos, vamos. – Falei. Levei Alec para o canto mais afastado do pátio, onde teríamos um pouco de paz.  O que aconteceu? – Coloquei as mãos na cintura. – Pode me explicar? Alec desviou o olhar.  Ele estava dizendo por aí que você ia me deixar para ficar com ele. É verdade, Shelle? Você vai me deixar...?  Alec, isso é um absurdo. Você sabe que eu não faria uma coisa dessas, não sabe? Ele baixou a cabeça e cruzou os braços. Puxei o rosto dele para cima e olhei em seus olhos.  Eu estou aqui agora, com você. Não estou lá, com ele. Estou aqui. Eu quero cuidar de você, só de você.


Desmontou a expressão fechada e me mostrou seu lindo sorriso inocente. Eu também sorri. Puxei o cabelo de Alec, vendo o tamanho de um hematoma na sua testa.  Que isso não se repita!  Tá.

Por causa da briga, tanto Bruno quando Alec receberam três dias de suspensão. E foi nesses três dias que eu percebi o quão solitária, para mim, era a ausência de Alec. Karina estava certa. Ele não era apenas meu namorado. Era o meu amigo. Meu melhor amigo. No terceiro dia, depois da aula, não pude mais aguentar. Peguei o ônibus até a Vergueiro e encontrei o mercado onde Alec trabalhava. Lá estava ele, carregando uma cesta de tomates com um sorriso no rosto. Seus hematomas estavam bem menores, mas a pele continuava avermelhada. Ao me ver, seus olhos se iluminaram.  Em que posso ajudar? – Perguntou.  Acho que preciso de alguma coisa doce hoje. O que você me aconselha? Alec molhou os lábios.  Por aqui... – Ele entrou em um corredor vazio do mercado e eu o segui. Sem que eu estivesse esperando, Alec me puxou pelo braço e me beijou, segurando meu corpo entre as prateleiras e o corpo dele. Quando nos afastamos, tirou uma embalagem da prateleira e a colocou em minhas mãos.  Mochi.  Mochi?  Você pediu por algo doce... Mochi. Acho que vai gostar. Voltar para casa foi um momento triste. Eu queria passar mais tempo com Alec. Queria passar todo o tempo com ele. Ainda no ônibus, devorei os mochi.

No dia 26 de novembro, Alec chegou bem cedo no portão da minha casa. Aquele foi um domingo ensolarado de primavera e meu aniversário de dezesseis anos. Coloquei um vestido branco com estampa floral, prendi o cabelo em um rabo-de-cavalo e saí de casa. Beijei Alec, segurando seu pescoço, e subi na moto. Depois de quase um mês de namoro, eu estava acostumada a andar naquilo. Nos finais de semana e em seus dias de folga, Alec sempre vinha à


minha casa com sua moto e me levava para lugar que eu sempre manteria guardados na memória. Aquele dia, entretanto, foi especial.  Para onde vamos? – Perguntei, antes de partimos.  É segredo. – Sussurrou. Dirigiu a moto com cuidado e parou em frente ao parque Ibirapuera. Embora morasse em São Paulo desde os cinco anos de idade, eu nunca visitara o parque Ibirapuera. Meus pais eram pessoas puramente urbanas. Assim que descemos da moto, Alec levantou o banco e tirou de dentro do compartimento uma pequena cesta. Eu sorri.  Piquenique!? – falei, sem conter minha empolgação. – Eu nunca fiz um piquenique. Sempre vi nos filmes.  Ah, então, venha comigo... De mãos dadas, caminhamos pela margem do lago, rodeados por árvores altas e um gramado baixo, até uma região mais afastada, cheia de árvores e flores amarelas. Daquele ponto era possível ver toda a paisagem do parque, o lago e seus patinhos, que nadavam próximos à margem. Alec estendeu uma tradicional toalha xadrez sobre a grama, onde nos sentamos. Eu, entretanto, logo me deitei, descansando a cabeça sobre suas pernas. Segurava a mão de Alec, medido as palmas de nossas mãos. Eu havia esperado por Alec minha vida inteira e agora, deitada sob árvores frondosas, mal podia acreditar que estávamos ali, juntos, de mãos dadas.  Está com fome, Shelle? Quer abrir a cesta? Eu me sentei e puxei a cesta para o colo. Assim que abri, encontrei uma seleção das coisas mais deliciosas deste mundo. Havia tortinhas salgadas, lanches de presunto, queijo e patê, CocaCola, brigadeiro e docinhos de todas as cores.  O que achou?  O que achei? – Eu ria. – Vamos acabar com isso. Não podemos deixar um único farelo de fora. Comemos em paz, ouvindo o som do lago e a música do vento. As horas do dia pareciam minutos. Por fim, quando terminamos com o último farelo, Alec enfiou a mão no bolso.  Eu tenho algo para você, Shelle. Segurou minha mão e colocou algo pequeno sobre ela. Quando pude ver, era um anel.  Às vezes é difícil entender algo que não podemos ver. Então, todas as vezes em que você não conseguir entender o que eu sinto por você, quero que olhe para este anel. Abaixei os olhos. Era uma peça simples, de ouro, com o símbolo do infinito em sua superfície e o nome Shelle em seu interior.


 Eu... – Coloquei a mão sobre a boca. Tentei esconder o rosto para que Alec não visse o quanto aquele presente havia me emocionado. – Eu vou sempre me lembrar. Para alguém que nunca tivera muita coisa, um presente assim era como um Taj Mahal inteiro de riquezas.

A quarta-feira amanheceu chuvosa. Alec esperava por mim sob um dos toldos do pátio.  Hoje é o meu dia de folga. O que acha de passar a tarde na minha casa?  Eu tenho prova de matemática amanhã, Alê...  Você estuda lá. Posso te ajudar, se quiser, gosto de matemática.  O que eu queria mesmo é que você fizesse a prova por mim. Alec riu. Assim que o sinal tocou, nos separamos. A minha sala ficava no começo do corredor principal. Eu me aproximava da classe quando vi a sombra de Bruno encostado no batente pelo lado de fora.  Shelle, estava procurando por você.  O que é?  Podemos conversar em particular? – Disse e olhou ao redor. Eu não gostava da ideia de ficar sozinha com Bruno, mas acabei cedendo. Paramos em frente à escada de incêndio, por onde poucas pessoas circulavam.  O que você queria me dizer?  Desde o dia em que conversamos na biblioteca, penso em você. – Ele balançava os cachinhos loiros e me encarava com aqueles grandes olhos azuis. – Eu quero dizer que estou gostando de você, de verdade. E, se você gosta de mim, por que estamos separados? Termina logo com aquele cara. Suspirei, olhando para o horizonte.  Não posso, Bruno.  Estou aqui, na sua frente, dizendo que quero ficar com você e isso é tudo o que você tem para me responder? Não posso? Só isso?  O que mais eu posso dizer? Eu gostei tanto, mas tanto, de você. Eu te imaginava falando exatamente essas coisas. Eu passava tardes inteiras sofrendo com a hipótese de ver você com outra pessoa. Durante os dois anos em que estive apaixonada, não me lembro de um único momento feliz. – Cruzei os braços. – Eu nunca imaginei que havia tanta felicidade na vida. Agora, eu nunca tiraria Alec da minha vida. E é por isso que eu digo que não posso.


 Se você tivesse falado comigo antes...  Não, Bruno. Existe uma pessoa certa para cada um de nós. Quando você encontrar sua pessoa, vai entender. Voltei para minha classe. Acima de tudo, eu estava feliz. Sentia que uma parte da minha história havia finalmente chegado ao fim.

Passei a tarde inteira na casa de Alec, sentada à mesa de estudos, repassando meus cadernos de matemática. Alec me ajudava, lendo anotações antigas e fazendo um resumo. Quando olhei para a janela, já era noite.  Ah, droga. Minha mãe sempre fica furiosa quando eu chego tão tarde.  Eu te levo de moto.  Obrigada, Alê. Juntava minhas coisas, enfiando os cadernos na mochila, quando um pequeno pedaço de papel caiu no chão. A princípio, eu não havia percebido a perda, mas Alec se agachou, e recuperou o papel. No mesmo instante, vi o rosto dele empalidecer.  O que foi, Alec? – Perguntei, sem dar muita importância ao assunto. – O que foi?  Você nunca gostaria de alguém... como eu? – Alec perguntou com os olhos vermelhos. Desci os olhos para o papel. Era a conversa que eu e Karina havíamos escrito há um mês, durante a aula de português. Na época, eu não sabia se deveria ir ao cinema com Alec. Tantas coisas haviam acontecido desde então. Por que aquele papel ainda estava ali? Nada do que estava escrito nele era verdadeiro.  Não, Alec, eu...  Quando você escreveu isso? Quando!? – Ele respirava rápido.  Foi no começo do mês, antes de te conhecer. Eu era uma idiota. Eu não entendia nada. Eu não sabia de nada. Por favor...  Você nunca vai deixar de gostar dele! – Alec gritou. – Eu sei disso, eu sempre soube. Nunca vai mudar. Você nunca me quis. Eu pensei que, talvez, com o tempo, você pudesse mudar de ideia...  Alec, por favor, me escuta...  Eu não preciso te escutar, Shelle, eu li.  Isso foi escrito há muito tempo, não é verdade. Nunca foi. Confie em mim, por favor. Alec amassou o pedaço de papel.


 Você só está comigo para chamar a atenção dele. E parece que conseguiu. Eu vi vocês dois hoje. – Cruzou os braços. – Você e ele, juntos, perto da escada, conversando. O que vocês estavam falando, hein? Vai terminar comigo, Shelle? É isso?  Não, Alec...  Eu estou no meio do caminho, não é? Por que você ainda está comigo? Por piedade? É piedade? Por que ainda está comigo? Peguei minha mochila e avancei até a porta.  Quer saber, Alec, não dá para conversar com você agora. Sem me despedir de senhora Joon, desci a escadaria até a calçada. Do lado de fora, chovia. A passos largos, e sem olhar para trás, me afastei da casa de Alec até chegar ao ponto de ônibus. Embora o tempo de espera sempre fosse de trinta a quarenta minutos, naquele dia, o ônibus não demorou cinco minutos. Entrei, completamente molhada, e ocupei um dos bancos do fundo. Eu sentia raiva de mim mesma. Havia escrito aquilo em uma realidade completamente diferente, quando eu era uma pessoa vazia, sozinha, fria, sem amor. A culpa era minha, só minha. Você não precisa de uma eternidade para descobrir que uma pessoa é o amor da sua vida. Você precisa apenas de um sorriso, um olhar. E, desde o primeiro sorriso, amei Alec. Quando estivéssemos mais calmos, eu lhe diria... precisava lhe dizer o quanto o amava. Desci na avenida Paulista. Correndo sob a chuva forte, tentando me proteger com a mochila, passei em frente ao cinema onde nos encontramos pela primeira vez. O banco almofadado onde ele me esperara estava vazio. Respirei fundo, sentindo um terrível mal estar, e voltei a correr. Cheguei em casa ensopada. Depois do banho quente, tive que ouvir um sermão da minha mãe. Eu não conseguia desviar os olhos do telefone. Esperava que Alec me ligasse, mas não o fez. Eventualmente, antes de dormir, não suportei mais a espera e disquei o número da casa dele. Ninguém atendeu. Talvez estivessem dormindo... Desliguei o telefone e me recolhi. Naquela noite, ouvindo a chuva bater no vidro da minha janela, permaneci acordada, pensando nele e em nossa primeira briga.

O dia seguinte amanheceu nublado. Cheguei cedo na escola, precisando ver Alec, falar com ele, tocar nele, mas, assim que atravessei o portão do pátio, encontrei a mureta vazia. Senteime e esperei. Esperei. Esperei.  Shelle, onde está o Alec? Ele não veio?


Olhei para cima. Karina esperava por minha resposta, tão surpresa quanto eu.  Eu não sei... – falei e, só então, percebi minha voz rouca.  O que aconteceu? Vocês brigaram?  Ontem a noite. Karina segurou minhas mãos.  Não se preocupe. Brigar faz parte. Todos os casais brigam. Vocês vão se entender ainda hoje. – Ergueu a mão e ajeitou meu cabelo. – É por isso que eu nunca me apaixono, Shelle. É sofrimento demais para um coração humano. Eu sorri, sentindo o quão verdadeira era aquela afirmação. O sinal de entrada tocou. Alec havia faltado na aula, coisa que ele nunca fazia. Sem ver as cores daquele lugar quando Alec não estava, cheguei à minha classe e mergulhei na carteira. O professor Gomes, de geografia, entrou apressadamente, deixando seu material sobre a mesa e veio até minha carteira.  Sibelle? – Perguntou.  Sim.  O diretor quer falar com você antes das aulas começarem. Meu coração disparou. Talvez eu tivesse feito algo de errado ou, pior, minhas notas estivessem tão baixas que eu seria transferida de escola. Enquanto, com as pernas bambas, eu caminhava até a sala do diretor, no segundo andar, pensava em todas as piores possibilidades que poderiam ter motivado o diretor a querer falar comigo. Bati na porta.  Pode entrar. – Ouvi a voz grave do diretor. Eu o obedeci. Entrei no organizado escritório e me sentei de frente para a grande mesa dele.  Sim!? – Mal reconheci minha própria voz, de tão assustada.  Sibelle Freiberger?  Sim.  Eu queria falar com você antes de passar essa notícia para os outros alunos. – Ele mexia em uns papéis.  Notícia? Que notícia?  Você é próxima do aluno Alec Joon, do primeiro ano, não é?  Sim... o que foi? O que tem ele? Agora meu peito doía.  Recebemos uma ligação da avó do Alec hoje dizendo que ele sofreu um acidente.  Ac... acidente?


 Ontem a noite. Ele está no hospital. Me levantei da cadeira, passando as mãos pelo rosto  O que? O que!? Acidente? Que tipo de acidente? Ele está bem? Hospital? Qual hospital?  A senhora Joon não disse muita coisa. Sabemos apenas que ele está no hospital Santa Helena, na Liberdade. Balancei a cabeça e, sem dizer mais nada, saí da sala da diretoria. Entrei na minha classe, assustando o professor e os outros alunos. Sem conseguir ver muita coisa, por causa das lágrimas, juntei meu material.  O que foi? – Karina perguntava. – O que aconteceu, Shelle? Eu só conseguia balançar a cabeça. Saí da escola, construindo em mim a esperança de que tudo não passava de um engano. Peguei o ônibus até a Liberdade e, perguntando de pessoa em pessoa, cheguei ao hospital Santa Helena.  Com licença. – Parei em frente ao balcão da área de emergências. – Estou procurando por Alec Joon. A secretária abriu uma caixa de madeira cheia de fichas e tomou todo o tempo do mundo para me responder.  Ele não pode receber visitas ainda, sinto muito. – Disse e voltou ao trabalho.  Mas... não há um lugar onde eu posso esperar. Torceu a boca e apontou para um corredor.  No final do corredor, à direita, fica a sala de esperas da emergência. Você pode esperar lá.  Obrigado! Tentando andar sem fazer barulho, cheguei ao final do corredor e entrei na pequena sala de espera, cheia de cadeiras azuis vazios. Havia poucas pessoas lá. Sozinha, olhando para o horizonte, vi senhora Joon. Corri até ela.  Querida, você está aqui. – Os olhos vermelhos pareciam aliviados.  O que aconteceu? – Perguntei, ávida.  Um carro... foi um carro. Eu segurei seu ombro. Ela parecia prestes a desmoronar. Aquilo era só um pesadelo. Só um pesadelo. Assim que eu acordasse, tudo ficaria bem.  O carro passou no vermelho... – senhora Joon continuou. – Pegou a moto. Alec veio de ambulância.  E como ele está agora?  Grave... é grave. Os médicos não dizem nada. Estou aqui desde ontem. Eu não sei se meu neto está bem. E ainda não sei como vou pagar por tudo isso. Não tenho dinheiro para as taxas do hospital. Eu não sei o que fazer. Não quero que meu neto vá para um hospital público. Eles não cuidariam bem dele lá.


Abaixei os olhos para minha mão. Lá estava o anel de ouro que Alec havia me dado no dia do meu aniversário. Tirei o anel com cuidado, aproveitando ao máximo o tempo em que o tivera e, por fim, coloquei o anel na mão de senhora Joon.  É de ouro. – Falei. Ela segurou a joia com as mãos trêmulas, parecia em confusão, sem saber se devia aceitar. Enfim, balançou a cabeça, aceitando.  Obrigado, querida. Soltei o anel e escondi minhas mãos atrás do corpo. Eu só queria ver Alec bem. Senti lágrimas em meu rosto.  Por que ele saiu de moto ontem à noite, na chuva? Ele deveria ter ficado em casa? – Falei.  Eu pedi para ele ficar, mas... mas Alec... disse que precisava te pedir desculpas. Com isso, fizemos silêncio. Não sei por quantas horas fiquei sentada naquele banco azul, sem conseguir me mexer. O bilhete, o acidente... era tudo culpa minha. Lágrimas escorriam pelo meu rosto. Eu não tinha força para limpá-las. Perto das seis horas da tarde, o enfermeiro apareceu. Trazia uma expressão indiferente em seu rosto alongado.  Senhora Joon? – perguntou para a avó de Alec.  Sim!? Ela tremia junto a mim.  Seu neto foi transferido para um dos quartos, pode visitá-lo agora.  Obrigada, obrigada... muito obrigado. Senhora Joon seguiu o enfermeiro por um corredor e eu fiquei sozinha. Não conseguia me convencer de que aquilo estava realmente acontecendo. Assim que a avó de Alec voltou para a sala, percebi que o caso era mais grave do que havíamos imaginado. O enfermeiro me acompanhou até a porta do quarto. Com o coração apertado, entrei. Alec estava deitado na velha cama do hospital, conectado a máquinas, cheio de cortes pelo rosto e pescoço. Permanecia desacordado. Sentei-me na cadeira ao lado da cama e segurei sua mão.  Alec... – Murmurei. – Você não precisava me pedir desculpas. Ele parecia dormir tão tranquilamente, enquanto eu havia passado o dia inteiro me auto flagelando em pensamentos.  A culpa foi minha. A culpa foi toda minha. Fiquei em silêncio, sentindo o calor de seu corpo.  Ontem, você me perguntou por que eu ainda estava com você. E eu não respondi. – Respirei fundo. – Eu não respondi, mas já sabia a resposta. Só estava com medo de dizer. Eu não conseguia entender o amor, porque não conseguia vê-lo. Mas, todos os dias,


quando você chega cedo na escola só para me ver, ou quando passa a mão em meu cabelo, eu posso ver. Passei a ponta dos dedos em seu cabelo.  A resposta é... porque eu te amo. Vi uma lágrima descer pelo rosto dele e essa era a minha única esperança de que estivesse me ouvindo.

À tarde, liguei para casa do telefone público da recepção do hospital. Expliquei o acontecido a minha mãe e disse que ficaria no hospital até Alec melhorar. Horas depois, vi minha mãe entrar na sala da recepção. Ela se sentou no banco ao lado do meu e, em silêncio, segurou minha mão.  Como você está, filha? Eu não precisava responder, minhas olheiras falavam por mim.  Vai ficar tudo bem, Sibelle. Vai ficar tudo bem. Deitei em sem ombro e fechei os olhos. Eu estava tão cansada que podia, muito bem, cochilar, mas não consegui.  Você precisa ir para casa agora, Shelle. Tomar um banho, dormir...  Não, mãe. Eu vou ficar aqui com o Alec.  Sibelle, você não pode fazer nada agora. Pode apenas se manter saudável para quando o garoto acordar. Hum? Vamos? Eu prometo que te trago ao hospital amanha, bem cedo. O que me diz? Eu mal conseguia manter os olhos abertos.  Tá certo.  Ótimo. Me despedi de senhora Joon e deixei que minha mãe me levasse para casa em seu carro. Eu dormi durante todo o caminho. Acordei com o barulho do portão se abrindo. Entrei em casa, cambaleando, e desmoronei na cama.

Acordei no meio da madrugada, com o telefone tocando. Escondi a cabeça embaixo dos cobertores, não queria ouvir aquele barulho. Eu não queria ouvir o que eu já sabia. Eu não queria abrir os olhos. Foi minha mãe quem atendeu o telefone.  Alô!? – murmurava. – Eu... eu sinto muito. Sim. – houve uma pausa. – Sim. Sim. Nós vamos. Sim. Sinto muito. Ela desligou o telefone e foi ao meu quarto. Eu chorava, desejando que tudo acabasse naquele momento. Desejando que Alec me levasse com ele. Ou que voltasse para mim.  Sibelle...  Eu sei. – Minha voz não tinha força alguma.


 Sinto muito, querida. Ela fechou a porta do meu quarto e me deixou sozinha. Deitada, no escuro, eu chorei até não ter mais lágrimas. A partir de um momento, não sabia exatamente se estava acordada ou dormindo. Talvez estivesse em choque. Alec morreu no último dia de novembro. Eu tivera apenas um mês para conhecê-lo. E apenas um mês para me despedir.

No sábado, depois da última oração do padre dedicada a Alec, senhora Joon veio a mim segurando um pequeno presente. Ela parecia dez anos mais velha. Eu, provavelmente, também.  Querida... – disse e estendeu o presente. – Alec estava fazendo isso para você. Segurei o embrulho como se estivesse me afogando e o levei ao peito.  Obrigado, senhora Joon. Ela abaixou a cabeça e se afastou. Aquela foi a última vez que vi senhora Joon. Minha mãe me segurou pelo braço e me levou ao carro. Abriu a porta e me fez sentar no banco.  Coloque o cinto. – Disse. Eu a obedeci. Minha mãe dirigia devagar, talvez para não me assustar. Mas eu só conseguia sentir sono, um sono muito intenso.  Ele vai voltar para mim, mãe. – Falei.  Querida...  Ele vai voltar. Ele disse que voltaria por mim.  Shelle. Sinto muito, querida, mas você precisa aceitar...  Eu vou esperar, mãe.  Sibelle, querida... você precisa dormir, isso sim. Voltamos para casa e, pelo segundo dia consecutivo, me tranquei no quarto. Sentada na cama, encarei o embrulho. Eu estava ciente de que minhas forças não suportariam aquilo, mas eu precisava de qualquer coisa que me aproximasse de Alec. Qualquer coisa. Abri o presente. Era um livro. Um livro fino, feito à mão. Seu título era “O livro da Shelle”. Virei a capa. Estava escrito a mão.

Certa vez, você me perguntou o que havia feito eu me apaixonar por você. E eu respondi que poderia escrever um livro sobre isso.


Aqui está o livro... Eu me apaixonei por seu sorriso. Quando o vi pela primeira vez, eu sabia que nunca deixaria de amá-lo. Eu me apaixonei pela forma como seu cabelo, muito preto, emoldura um rosto tão alvo. Eu me apaixonei por seu olhar inocente, seu perfume doce, sua voz delicada, sua pele macia, sua risada contagiante, seus lábios em formato de coração e pela forma como, em qualquer momento, está linda como uma deusa. Você é a minha deusa. Eu me apaixonei por suas respostas, por seu jeito de menina, pela chance que me deu. Eu me apaixonei pela cor de seus olhos, por seu sussurro, por cada expressão. Eu me apaixonei exatamente por quem você é, seus medos e coragens, seus defeitos e qualidades, embora, para mim, seus defeitos seja uma outra forma de dizer que a amo ainda mais. Eu me apaixonei pela forma como balança as pernas quando está sentada, como empalidece quando está preocupada ou como enrubesce quando me vê. Eu me apaixonei pela forma como você me transforma. Todos os dias eu sou uma pessoa melhor. Eu me apaixonei por todas as vezes em que segurou minha mão em silêncio, que dormiu em meus braços, que confiou em mim, que riu comigo ou de mim. Quando ouço sua voz pelo telefone, eu me apaixono uma vez mais... Segui lendo. Páginas e páginas dedicadas a mim. Eu podia escutar a voz de Alec, como se ele estivesse me dizendo aquelas coisas, como se nunca tivesse partido. Entretanto, depois da vigésima página, o livro estava em branco.

À noite, meu pai ligou. Eu lhe contei, com detalhes, tudo o que havia acontecido, chorando algumas vezes. Sua voz me confortava.  Sinto muito, Sibelle. – Esperou que eu lhe contasse sobre o livro. – Perdas são difíceis. Só o tempo vai lhe trazer paz. Eu não respondi.


 O que acha de passar uns tempos comigo, aqui em Santos? Voltar para os mesmos lugares vai ser difícil. Você já terminou o segundo ano, certo?  Terminei. – Murmurei.  Então... então venha para minha casa nessas férias. Se você quiser, pode voltar para São Paulo em janeiro. As portas da minha casa estão sempre abertas para você Sibelle.  Obrigada, pai. Pensei em como seria devastador caminhar pela Paulista, passar na frente do cinema, na frente da sorveteria. Ou voltar para a escola e ver a mureta vazia. Devastador não, insuportável.  Eu não posso, pai. Se eu saísse de São Paulo, Alec não poderia me encontrar. Eu precisava ficar. Aquela era o nosso lugar.

Sete anos depois... São Paulo, 01 de novembro de 1991 Minha mãe me acordou, puxando minhas cobertas.  Vamos, Shelle. Acorde! Acorde agora! Hoje é um dia especial. Até quando você pretende ficar na cama.  Hum... Ela teve que gritar muito até que eu estivesse de pé. Tomamos o café da manhã, nos arrumamos de acordo com a ocasião e saímos de casa. Minha mãe parecia ansiosa, tamborilava os dedos no volante do carro, sem conseguir fechar o sorriso.  Você vai amá-lo, Sibelle.  Tenho certeza disso, mãe. Atravessamos a Paulista em silêncio. O rádio do carro tocava I Remember You, do Skid Row.  Eu nunca me lembro do caminho. – Minha mãe disse, pegando a avenida Vinte e Três de Maio. – Espero não me perder no centro velho de novo. Entramos na Mooca e, vinte minutos depois, encontramos a estreita e vazia rua Arinaia. Parecia isolada do resto da cidade, sendo que ainda era feita de paralelepípedos, cercada por casas centenárias.


 Este é o lugar. A mãe parou o carro em frente a uma casa creme muito velha. O portão da frente estava enferrujado. As janelas estavam fechadas. A casa parecia abandonada, mas, da calçada, era possível ouvir barulhos de risadas infantis.  Olha, como estou nervosa, Shelle. – Disse e mostrou as mãos, que tremiam.  Vai dar tudo certo, mãe. – Falei, segurando suas mãos.  Eu sei. Ela respirou fundo e tocou a campainha da casa. Uma senhora, de aproximadamente 80 anos, abriu a porta da casa e abriu o portão. Andava muito devagar, com cuidado.  Senhora Freiberger, chegou cedo hoje. – A mulher disse para minha mãe. – Deve estar ansiosa, não é mesmo.  Mal estou conseguindo dormir esses dias de tão nervosa.  Isso é normal. – A mulher tinha uma expressão bondosa, tranquila. – Por favor, entrem. A senhora nos levou para dentro da casa, onde, na sala, havia crianças pequenas brincando com bonecas, carrinhos e peças de montar. Algumas riam, outras choravam, mas todos estavam envolvidos naquele ambiente familiar.  Por aqui... – A senhora abriu uma porta. Entramos em um quarto pequeno, cheio de bancos. Minha mãe, que já conhecia o lugar, mostrava-se completamente à vontade. Sentou-se num dos bancos como se aquela fosse sua própria casa. Eu, entretanto, não sabia como me comportar. Fiquei de pé, encostada na parede, de braços cruzados.  Vou trazê-lo. – A senhora disse e saiu. Ficamos em silêncio. A espera durou menos de cinco minutos. O fato é que aquela não era uma casa como outra qualquer. Era um orfanato. Há pouco mais de um ano, minha mãe entrara em uma espécie de crise materna, provavelmente provocada pelo segundo casamento do meu pai. Depois de muito considerar, decidiu que deveria adotar uma criança. E foi naquele orfanato isolado da Mooca que encontrou seu segundo filho. Assim que a porta se abriu, a senhora entrou, acompanhada por um menino de seis anos. O menino ergueu os olhos para mim. E sorriu. Por que, de repente, eu tinha vontade de chorar?  Meu nome é Eric. – Falou para mim. – Você é a Shelle?  Sou a Shelle.  Senhora Freiberger disse que você é minha irmã agora.  Eu sou.


Eric me encarava, intrigado e surpreso. Minha mãe se agachou ao lado dele, arrumando seu cabelo e suas roupas. Perdi as forças das pernas. Eric tinha o mesmo rosto de Alec, o cabelo preto, a pintinha sob o olho esquerdo, os traços asiáticos e o sorriso iluminado.  Eu já te conheço. – Eric disse, olhando nos meus olhos. Tanto minha mãe quanto a senhora do orfanato o encararam, espantadas. Abri a boca, sem saber o que dizer.  O que...? – Eu me sentia zonza. – Você me conhece? Já me viu em algum lugar?  Eu te vejo nos sonhos, todas as noites. Minha mãe sorriu, espantada. Eric não desviava os olhos de mim. Eu fazia força para não chorar. Não podia chorar. Aquilo era só um engano. Coisas assim não aconteciam.  Nos sonhos, você sempre me pergunta se eu confio em você, mas você não consegue me ouvir. Eric continuou:  Eu confio em você. Lágrimas escorreram por meu rosto. Por sorte, ninguém percebeu. Minha mãe riu, achando graça nas coisas que o filho dizia.  Vamos para casa, Eric! Aposto que está morrendo de curiosidade para ver seu novo quarto, não está? Mandei pintar as paredes de azul. Você gosta de azul? Eric balançou a cabeça, afirmando. De mãos dadas, os dois saíram para o corredor do orfanato. Agora éramos uma nova família. Eric olhou para trás. Olhou para mim. E foi através de seus olhos que eu o reconheci.


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