No Espelho dos Dragões

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Copyright ©2022dosAutores

ColetivoLCA(Literatura,CulturaeArte)

Autores

AdrieleRibeiro ArthemisAlmeida DiegoVieiradeQueiroz JonasB Marques LindembergBernardo LucasAbreu LúciaRebouças MariaSousa RenanMatos RogeslaneSantos SávioMariano SindyAlves TalesD VanessaAlves Revisão final DiegoVieiradeQueiroz MariaSousa SávioMariano

LCA,Coletivo

Ilustrações e capa ArthemisAlmeida Design de capa ColetivoLCA HellenS Lopes Diagramação JonasB.Marques Catalogação MainumyPereiradaSilva

Coordenação editorial FranciscoSilvaCavalcanteJunior

Noespelhodosdragões/ColetivoLCA;ilustradoporArthemisAlmeida.—1.ed.—Fortaleza:Ediçãoindependente,2022. 94p.:il.

1.Ficção2.Contos3.PoemasI.LCA,ColetivoII.Título

CDD:B869.93 CDU:828.134.3(49)-1 Índiceparacatálogosistemático: 1.LiteraturaportuguesaB869.93

SUMÁRIO

Apresentação 6

Palavras,desenhoserasuras 8

Jonas B. Marques

EoAnjodisse:nãoolhepratrás 15 Maria Sousa

Datadevalidadedesconhecida 22 Vanessa Alves

Aindatemmuitomar 28 Adriele Ribeiro

Aquelegaroto 34 Lindemberg Bernardo

D-O-N-A-N-A 40

Renan Matos

Cartadoprimeiroadeus 44 Sindy Alves

Aprimeiravez 50

Tales D.

Ei,Garoto… 60

Lucas Abreu

Armadilhasdeumapaixão 65 Lúcia Rebouças

Encontromarcado 73 Rogeslane Santos

Amor,dofimdomundo 78 Sávio Mariano

Pacto 84 Diego Vieira de Queiroz

Delíriosdeumsonho 90 Arthemis Almeida

Apresentação

Caio Fernando Abreu traduziu o seu mundo de vivências em autoficções reunidas no livro Os dragões não conhecem o paraíso. Estudantes de Literatura, Cultura e Arte (ICA 3262), da Universidade Federal do Ceará, o Coletivo LCA, foram atravessados(as) pelas palavras de Caio, lidas, reinventadas e transcendidas aqui, No espelho dos dragões. O que você lembra, pensa ou sente ao encontrar as palavrasdosnossosnovosdragões?

Palavras,desenhoserasuras por Jonas B. Marques

Eu tinha um caderno. Foi um presente, embora eu nunca tenha pedido por tal. Disseram-me que eu teria que levá-lo comigo ao longo de uma viagem extensa, cheia de imprevistos e tentações, para,nofim, entregá-lo para uma suposta dama que deve receber todos os cadernos. Eu teria que protegê-lo de toda ameaça em potencial, impedindo-o de ser danificado, pois ele deveria ser entregue no melhorestadopossível, senão eu me arrependeria por entregar um caderno mal cuidado. Essas eram as regras. Por isso, sempre cuidei muito bem dele, nunca o violei com marcas hediondas em forma de linhas, letras ou qualquer outra coisa.Imaculado.Marcadoapenaspelotempo.

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O caminho foi desgastante e imprevisível, ora sofrido, como quando enfrentei desertos áridos e escaldantes que pareciam não ter fim; ora tranquilo, como quando passei por pastosverdejantesdeclima agradável e harmonioso. Ao longo do percurso vi outros como eu, seguindo suas viagens com seus cadernos à mão. Não era raro alguns deles se aproximarem de mim para tentar escrever no meu. Mas nunca deixei. Como poderia? O que pensariam de mim se me vissem carregando um caderno poluído? Eu não podia deixar que corrompessem minhas páginas limpas commarcasdelápisetinta.Jávi oqueacontecequandodeixam,lembromuitobem.

Era mais um dia ensolarado. Eu estava numa floresta e seguia uma trilha monótona quando minha atenção foi atraída por algo intrigante. Parei e observei por um tempo: dois viajantes escreviam e desenhavam nos cadernos um do outro, sentados lado a lado sob a sombradeumafrondosaárvore,eaindapareciam,poralgummotivo,se divertir com isso.Eunãoconseguiaentender.Comoelespodiamsertão descuidados assim? Algum tempo depois, eles discutiram, riscaram tudo que escreveram, tomaram rumos separados e desejaram nunca ter deixadoninguémarruinarosseuscadernos.Confessoquefiqueicurioso para saber quais as motivações por trás dessas ações irracionais, assim como fiquei para saber qual a sensação de ter algo escrito no meu próprio caderno. Mas já me alertaram desde o começo da jornada para

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que eu não deixasse ninguém riscá-lo, pois ele ficaria marcado para sempre e eu acabaria arrependido no futuro, exatamente como aconteceracomaquelesinfelizesviajantes.

Sempre foi muito cansativo manter meu caderno intacto, mas desde aquele dia se tornou ainda mais difícil. Vez ou outra, eu me pegava desejando escrever no meu caderno, ou pior, desejando que alguém escrevesse nele. Mas frequentemente eu via algo que me trazia de volta à sanidade: viajantes jogando fora os seus cadernos por terem falhado em lhes proteger. Acontecia, às vezes, por se arrependerem de ter escrito algo neles; ou por outro alguém ter escrito algo irremissível neles; ou simplesmente por não aguentarem mais protegê-los das imprevisibilidades e dos viajantes sujos que só querem tornar os cadernos alheios piores que os deles próprios. As regras deviam estar certas afinal. Havia muito sofrimento e maldade para aqueles que cediamàtentaçãodesujarseuscadernos.

Depois de tanto tempo nessa longa e exaustiva empreitada, comecei a achar que eu nunca encontraria aquela dama de quem me falaram, e que, na verdade, essa viagem não tinha sentido algum. Até que em uma noite banal como qualquer outra, as imprevisibilidades do caminho me provaram o contrário. Eu estava me banhando num lago quando, sem qualquer sinal ou aviso,adamaveioaomeuencontro.Ela andou até a beira do lago, que refletia uma lua nova quase inexistente,

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cercado por um bosque escuro. Mesmo sem conhecersuaaparência,ao vê-la com meus próprios olhos, não tive dúvidas desuaidentidade.Ela era magra, alta, graciosa e imponente, e usava um majestoso vestido cinza que parecia ter sido feito com teias de aranha. Seu rosto estava coberto por um véu cinza tão sublime e opaco quanto as brumas que surgiram com a sua chegada. Sua presença fez eu mesentirengolidoe, ao mesmo tempo, acalentado pela água e pela noite. Embora eu já soubesse quem ela era, não sabia seu nome. Mas antes de eu perguntar qualquer coisa, como se lesse meupensamento,elaseapresentoucomo "ADamaqueLê".

Ela estendeu a mão e eu lhe entreguei meu caderno, que estava protegido da água dentro de uma bolsa. Folheou-o página por página, como se pudesse, através daquele véu, ler algo naquelas folhas vazias, que outrora forambrancas,masquecomotemposetornaramamarelas. Quando terminou, me perguntou quais eram minhas páginas favoritas. Falei que não tinha nenhuma, pois não havia nada escrito. Então expliquei que cuidei muito bem dele por todo esse tempo para quenão houvessenadaquemetrouxessearrependimento,paraqueelarecebesse o melhor caderno, pois essaseramasregras.Noentanto,elasemostrou frustrada e revelou que não sabia quem inventava ou de onde saíam essas regras. Falou que o caderno era meu, portanto, eupodiaseguiras regras que eu desejasse seguir, oumesmonãoseguirregraalguma.Que

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nele havia palavras belíssimas que perdi a chance de escrever e desenhos magníficos que deixei de desenhar. Quealgunsdesseseuiria, de fato, amassar, rasgar e rasurar, mas é para isso que os cadernos existem, para serem inundados de palavras, desenhos e rasuras. Assim, no fim do caminho, eu teria um caderno com as minhas páginas favoritas easdetestadas,riscadoeamassado,mastambémcomaminha própriaessência.

Naquelemomento,lágrimassalgadasdetristezaescorrerampelo meu rosto e se misturaram insignificantemente às águas doces do lago. A Dama que Lê se juntou a mim dentro daquela doçura emeenvolveu em seus braços acolhedores, num abraço frio, escuro e aconchegante, me fazendo compreender, finalmente, que ali era findada a minha viagem. Só então pude sentir o alívio por finalmente me livrar de toda aquela responsabilidade. Um alívio doce acompanhado de uma dor amarga, pois percebi quepormaisqueeutenhaalcançadooobjetivode entregar meu caderno limpo, imaculadoeintocadopelatinta,eleestava completamente corrompido, manchado por um grande e profundo vazio.

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PALAVRAS,

EoAnjodisse:nãoolhepratrás por Maria Sousa

“Meus sentimentos.” “Uma pena, ela era tão jovem.” “Vai ficar tudo bem.” Alguns toques no ombro efloresdepessoasdesconhecidas, ou, no mínimo, de quem não conheciam o suficiente, seja a mim ou a ela. Elas não recebem uma resposta além de um balançar da cabeça e nãoinsistemmais.

“Sinto muito pelasuaperda.”“Esperoquefiquebem.”Algumas floresecondolências.Nãodouumaresposta.Meuolharsemantémfixo no rosto pacífico dela, mas em minha mente está a viva lembrança de seusorrisoeolhosbrilhantes.

“Meus pêsames.” O último toque de consolo no ombro. Silêncio, a resposta idêntica a todas as pessoas semi-conhecidas que

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E O ANJO DISSE: NÃO OLHE PRA TRÁS

tiveram um pouco de compaixão. Ainda miro seu rosto, mas nenhuma lembrançapassapelaminhamentedessavez.

São quatro horas da tarde e o pátio da igreja está vazio, exceto por nós dois. Da mesma forma como sempre foi. Alguns minutos se passam até serdecididoqueestánahoradelevarocaixãoparaoúltimo destino, em um terreno vizinho onde se reza pelasalmasdopurgatório. Onde a alma delaganhariaoraçõesdeagoraemdiante.Caminhoaoseu lado até a sepultura, sentindo algo estranho crescendo dentro de mim, comoumapertonasentranhas.

Estou olhando para minha melhor amiga pela últimavez.Nãoa toco, nem beijo, nem choro. Colocam-na onde é seu fim e acobremde terra. Logo não há mais sinal da madeira, nem de outra pessoa ali. Definitivo desta vez. O sol está quase indo embora, mas há luz o suficiente para ler a pequena inscrição na pedra, o único indicativo de suaúltimamorada. EmiliaArcanjo

Tchau…

É a primeira resposta que dou e, dessa vez, soueuquereceboo silêncio. Não paro de dar passos até chegar em casa. Enxergo dezenas

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26/01/1980 ★ 17/08/1998 ✝ —
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de lembranças. Um passo, uma memória. Outro passo, um vestígio do que já acabou. Uma brincadeira nossa na praça aos 5 anos de idade, horas que passamos na sorveteria aos 14, o primeiro emprego na lanchonete do centro, as festas e porres na única boate da cidade, banhosderioaosdomingos.

Hesito antes de abrir a porta. A casa não era só minha, e entre todos os lugares, as lembranças aqui são mais vivas do que nunca. O cheiro dela está por todo o lugar e invade as minhas narinas nominuto que fecho a porta atrás de mim. Seus óculos e sapatosjogadosnomeio da sala, do mesmo jeito que ela deixou pela última vez, intocáveis. As fotos na estante me dão as boas-vindas com mais memórias da única família que já tive. Em nenhuma delas estou sozinho. A ruiva de cabelos cacheados sempre esteve ao meu lado com seu sorriso largo, seja fantasiada de sereia em seu aniversário de 7 anos, seja no nosso últimoNatal.

Aquela sensação estranha dentro de mim aumenta violentamente. Preencheminhasentranhas,sobeparaapertarmeupeito, fecha minha garganta à medida que percebo o contraste entre esses porta-retratos, as lembranças que imploram para serem revisitadas e a realidadeàqualestouconfinadoagora.

Estousozinho.Só.

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E O ANJO DISSE: NÃO OLHE PRA TRÁS

O turbilhão de emoções que me preenchem por dentro poderia ser expulso pela minha garganta se algopesasseemmeuestômago.Em vez disso, ele transborda pelos meus olhos, impedindo-me de enxergar qualquer coisa na minha frente, exceto a bruta percepção de que havia perdido tudo. Sinto o chão sob meus pés se partir e a força das minhas pernas se esvair por completo. Por longos momentos, afogo-me nas minhaslágrimasenomardesolidãonopisodanossasala.

Eu, órfão aos 15 anos de idade, sem amigos ou parentes. Ela, expulsa de casa aos 16 por não amarquemamãeesperavaqueamasse, sem amigos ou parentes próximos. Nós éramos a exceçãoumdooutro, a cara-metade, a alma gêmea, a família, oportoseguro.Aspessoasque moravam naquele pequeno interior sabiam da história toda, como em toda cidade pequena, porém foram poucas as que ofereceram ajuda em algum momento das nossas vidas. Menos ainda as que de fato ajudaram, e ninguém se aproximou de nós o suficiente para criar um laço que ultrapassasse a compaixão e a caridade. Ninguémseimportou o bastante com a "sapatão" e o “garoto com a cara manchada”. Tratavam-me com o olhar torto e nojo ao ver as áreas brancas aoredor dos meus olhos e bochechas, contrastando com aparteescuraericaem melanina na minha testa e pescoço. Raramente me tocavam, como se elas também fossem se desfigurar caso encostassem em mim por mais doquecincosegundos.

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Não sei por quanto tempo fiquei ali. Uma vida, um segundo? Um segundo, foi isso que bastou para que a vida dela se esvaísse? Talvez menos que isso? Porque bastou um segundo para que a minha vida mudasse para sempre ao ouvir do homem de jaleco “ela se foi”, mas foi necessário muito mais que isso para compreender, absorver. Aceitar? Nem todos os segundos seriam o bastante. Levanto-me, a lua me contempla pela janela e espalha seu brilhopelasala.Aslembranças me tiram o ar e pesam no meu peito feito concreto, e questiono se ela também sentiu seu pulmão pesar enquanto as águas do rio tiravam seu soprodevida.

Pego a mochila velha, roupas e dinheiro. Bato a porta e saio andando para arodoviária.Forço-meaolharsóparafrente,ouvindoum antigo conselho de um Anjo para não olharparatrás,ouseriadestruído pelas lembranças da velha cidade, a fogo eaenxofre.Noentanto,antes de virar a esquina, antes de perder de vista o que foi meu lar um dia, não resisto, e viro uma estátua de sal. Emilia não foi a única a morrer naqueledia.Umapartedemimfoienterradajuntoaela.

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Datadevalidadedesconhecida

Ajovembonitadevinteepoucosanosquerquevocêpassedevagar Asenhoradequasecem,presaàquelacama,nãoaguentamaisesperar Vocêdiznãofazerdistinção,dizsaberrespeitarosmomentos Masnemsempreparecejusto,bagunçandonossossentimentos Contandosegundos,minutosehoras,quesetornamdias,meseseanos Decadaserévocêquemdefineasentença Nãopoderiadeixá-loumpoucomaiscomigo,semmudarnossos [planos?

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Comopesadospingosdechuva,osgrãosdeareiaseapressam Velozesdeumaâmbulaàoutradaampulheta Emdesabaladacorrida,alinhadechegadaatravessam

Outrasvezes,queriaquevocêcriasseasasevoasse Quecomcertasocasiõesacabasse Masadozenúmerosvocêestáacorrentado

E,daquiquechegueasexta,minhapaciênciateráseesgotado

Quemdisserquenuncatentouapagarumapartesuaestámentindo Issoéinútil,porém,quandovocêresisteatéafortesrajadas

Eomovimentodeseusponteiroscontinuamosouvindo Nemasnossasmemóriasvocêdeixaintocadas

Arotaçãofazdiasenoitesserevezarem,cadaqualcomseuturno Horadelevantar,sómaiscincominutos,Cronos Demoramaisatranslação,cominvernos,primaveras,verõeseoutonos

Seoagoraéopresente,recusoadádivamomentânea,obrigada Soltaopássarocuco,quetenhoencontrocomhoramarcada Acabouamagia,Cinderela,jáforamasdozebadaladas

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Nemcronometrei,masmedisseramquetenhoaminhaidade Fuiatingidaporumaondaazuldesaudosismoouainfânciafoimesmo [graciosadança?

Anteontemquisboladecristalprasaberdofuturoalgumaverdade Amanhãtalvezqueiraumamáquinapravoltaratéondeamentenem [alcança

MêsquevemmemudopraVênus,quetemogirolento Passarumdiade243diascommeuamor Masseeleseatrasarefrustrarnossoexperimento Semavisar,deoutrofusohorário,sozinha,voudispor

Juizdessejogo,aos45doencerramento,acréscimosserecusaadar Mesmosemriscodemulta,fundonoaceleradornemsemprequerpisar CompõemelodiasfinitascomRé,Mi,Fá,Sol,Lá,Si—Dóvocênão [temenãoterá

Acabarlogocomopaviodestavidanãomegarantequeaeterna [juventudedesponte

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Buscaroinfinitoeminstantesnãoimpedearrependimentosnuma [cadeiradebalanço Vocênãoligasereceboseupresente,vivode déjà vu oufantasioo [horizonte

Precisosaberseuintervaloparacalcularavelocidademédiadessa [viagem

Trocariaalgunssapatosqueuseinessacaminhadaselvagem Vousersalvapelogongoousermaisumdos“felizesparasempre” [submersos?

Pelomenosvocêfoipacienteeesperouaconclusãodestesversos

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Aindatemmuitomar

por Adriele Ribeiro

Algo me puxava para baixo. Minha visão se tornava cada vez mais turva. O céu ensolarado já não estava ao meu alcance. O ar também já tinha sido roubado de mim. Com a mínima consciência que me restava, sabia que aqueles seriam meus últimos instantes e não adiantaria fugir da imensidão do mar, que me levava cada vez mais fundo. Não podia acreditar que minha vida acabaria dessa forma. Eu não teria um fim digno, como o de alguma heroína que se sacrifica pelos outros. Eu não seria lembrada por algum grande feito. Minha insignificanteexistênciaacabariaali.

Aqui no escuro e no friodooceano,ovastomarabsorviaminha vida. Não conseguia enxergar o que estava naminhafrenteenemtinha forças para alcançar novamente apraia,quejáfoimeudestinorotineiro

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dos finais de tarde. Aquele espaço infinito, semcomeçoesemfim,não me mostrava uma saída. Sem bússolas e nem mapas, o medo setornou meu único companheiro. Na verdade, ele já me era conhecido e me abraçava sempre nos momentos mais impróprios. Acho que seria melhor aceitar minha impotência diante das ondas que me arrastavam sempedirpermissão.

O que me levou até aquele mar turbulento? E como eu tive coragem de ir tão fundo aopontodemeperderdaareiaconfortávelque acolhia os meus pés? Lembro de ser seduzida pelo movimento das ondas. Estava disposta a encarar aquela infinitude, já que ela me oferecia tantas possibilidades. São tantas que eu posso ter me perdido entreelas.Nãoconseguideixarmeubarcoemumbomestado.Corrium grande risco ao encarar aqueleoceano.Emalgunsmomentospensoque não deveria. Em outros, lembro das dádivas que ganhei e não me arrependo. Mas toda a rota que eu percorri me levou até essa situação deplorável. Será que valeu a pena? Não havia tempo para pesar na balança. As longas caminhadas na praia aos domingos, os abraços apertados e osconselhosquenuncativecoragemdeseguirficarampara trás. Acho que vou sentir falta até daqueles que implicam com meu péssimo desempenho para dançar e com a minha desatenção para qualquer aula com números. Esses pensamentos de alguma forma me mantiveramconsciente.Eudeveriameagarraraeles?

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Foi então que senti um movimento diferente. Alguém me trazia de volta para a superfície pela mão. Nãosabiaquemestavamelevando e nemcomoconseguiumeacharnaquelelugarinóspitoefrio.Consegui enxergar novamente o céu ensolarado que achava que não veria mais. Umcéubemazulquedenunciavaaépocadeverão.Umcaloracolhedor que aos poucosatingiameucorpo.Achoqueapaguei.Quandodespertei me encontrava deitado em um barco velho, subindo e descendo, no ritmo do mar. Aquele sol ardente invadia meus olhos, que sefechavam desacostumados com tanta luz. “Sobrevivi”, foi o que consegui raciocinar. O sol, a brisa, os sons de pássaros. Tudo transmitia vida e esperança.

O vento soprava forte, fazendo com que umagarrafarolasseaté mim. Havia um pedaço de papel dentro do recipiente. Minha curiosidade não deixou que eu ignorasse a mensagem. Meus olhos estreitosecansadosconseguiramdecifraroqueestavaescrito:

Querida Nana, Quero que saiba que me lembro de ti, por isso decidi vir até aqui para te ajudar. Lembro de tudo, das aventuras e dos desastres que cometeu. Sei que não tem sido fácil para você ultimamente e que você está morrendo de medo, mas, para te consolar, nem tudo está nos eixos por aqui também. E tudo bem. Infelizmente, não posso colocar uma

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capa protetora em você e impedir que os obstáculos cruzem o seu caminho. Queria em tantos momentos te dizer para seguir uma outra direção e não deixar que se perca novamente. Ainda quero. Não posso te prometer que tudo vai melhorar milagrosamente, mas eu juro que algumas incógnitas serão esclarecidas. O medo da imensidão é normal e se perder nela também é compreensível. O desconhecimento do que está refletindo no mar pode ser assustador. Será que é mais uma das suas fases de metamorfose? Será que alguém usurpou o que é seu por direito? Não tenho essa resposta. Só te peço que não permita que nada te impeça de tomar as rédeas do seu velho barquinho. Eu sei que você consegue enfrentar as tempestades e os grandes desafios que virão pela frente, mesmo saindo com algumas cicatrizes. Se o seu barco virar, saiba que você tem a possibilidade de nadar. Não tenha medo de seguir um caminho diferente daquele que você planejou. Eu te garanto que você pode ser feliz em ares diferentes do esperado. Ah, não esquece de apreciar a vista e de aproveitar a maré calma. Ainda tem muito mar pela sua frente, por isso acho melhor ir me despedindo. Quando você estiver lendo essa carta, estarei muito longe, mas saiba que nunca esquecerei de você.

Com amor, Helena.

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Aquelegaroto

por Lindemberg Bernardo

“Meuamor,essaéaúltimaoração Prasalvarseucoração

Coraçãonãoétãosimplesquantopensa Nelecabeoquenãocabenadespensa Cabeomeuamor! Cabemtrêsvidasinteiras Cabeumapenteadeira Cabenósdois”

Oração,ABandaMaisBonitadaCidade

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Acordo com os primeiros raios dourados iluminando meu quarto. O canto dos pássaros anuncia o amanhecer. A brisa matinal me faz arrepiar, estáfrio.Levantoe,aindasonolento,preparo-meparamais um dia frenético de estágio, faculdade, treino e outras estafantes responsabilidades. Tanto para se pensar, mas é aquele garoto o protagonistadasminhasfantasias.

Apressado, caminho até aparadadeônibuse,maisumavez,me pego pensando nele. Conto ashoras,osminutos,ossegundosqueainda faltam para vê-lo, pois, como umbarcoàderivanummardesensações, neleencontroaâncoraquemefirmaaochão.Umportoseguro.

Subo no ônibus e com inquietude aguardo sua chegada. Nos encontramos, observo-o de longe e percebo que nadamudoudesdeque nos conhecemos. Reconheçoosseuslábioscarmesins,atraentescomoo fruto proibido do Éden, o sorriso extasiante e um olhar adocicado que apresenta a sua pureza tal como uma flor de lótus. Apaixonei-me outra vez. Na verdade, não sei bem se outra vez, mas a intensidade mudou para algo nunca antessentido.Elesentaaomeuladoecomumbeijono rostodespertaasborboletasadormecidasemmeuestômago.

Nosso destino será o mesmo, a viagem se inicia. Depois dos cumprimentos que aquecem minha alma com um luxo radioso de emoções,conversamoserimosemtotaldescontração.Acadafrasedita, uma aprisionada em minha mente seria o suficiente para que todos

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soubessem o quanto aquele garoto é especial pra mim. Pergunto-lhe como foi a noite,sedormiubemecomovãoascoisasdavida.Comum sorriso bobo, vejo-o contar entusiasmado os detalhes do seu anoitecer. Entre conversas sobre música e literatura debulhamos desabafos e fofocas. Cinco anos se passaram desde sua chegada. Sem pedir licença fezmoradaemmeucoração,mantendovívidosemmeupeitoosanseios de tê-lo para mim. Muito embora toda essa sentimentalidade seja recíproca, a coragem que me permitiria senti-la verdadeiramente ainda nãomeabraçou.Seguemcomigoosfantasmasdodesejo.

Ao mesmo tempo que o admiro discretamente, rememoro os porquês de estar tão enamorado. Eu sei que o amor não é tão simples quanto pensamos.Amarécomplexidade,intensidadeecompletude.Até dizem que não conseguimos explicá-lo, amamos porque amamos. Não procuro respostas que me revelemoporquêdequerê-lotanto,issoeujá sei: inteligente, educado, prestativo e de uma beleza olimpiana que, assim como a de Apolo, me arrebata. Eu busco coragem para declarar àquele garoto tudo que sinto, mas a viagem chega ao fim e preciso descer. Com um abraço, outro beijo no rosto e um desejo de bom dia, nos despedimos. Ao desembarcar, sua presença retorna em meus pensamentos. Será que um dia ficaremos juntos? Talvez essa seja a última oração para salvar meu coração da perda, da solidão, do

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arrependimento. Quero preenchê-lo do mais puro amorquecarregopor aquelegaroto.

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D-O-N-A-N-A

por Renan Matos

Sentado num tamborete no alpendre de meu casebre, ouço o rugir do vento batendo nas folhas e aprecio a paisagem que se transformou num piscar de olhos.Tentovagarosamentelembrarminhas vivências dessa velha existência, com um olhar distante de alguémque já foi mudado por tantos enredos que já não lembro mais da minha identidade ou sequer do tempo em que era um vigoroso rapazote que brincava nos lajeiros entre os riachos e banhava-me da água das cacimbas. Hoje, o mundo já não é mais o mesmo, sua formosura degenerou-se. Vivencio diariamente uma melancolia pela ausência dos meus pais e irmãos, com quemeuconvivianumapequenacasadetaipa num assentamento apartado de qualquer indício decivilizaçãoemmeio

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ao roçado que um dia pude arar. Inevitavelmente fui virando uma espéciederelíquiahistóricaenrugada.Tiveoprivilégioouinfortúniode ver, perante o meu mero olhar, a humanidade degenerar-se em sua míserailusóriaaparência.

Sou o sobejo e o matusalém da minha linhagem, ganhei a afeição de fulanos, beltranos e sicranos locais. Seu Donana é como me batizaram, mas a vida não é um eterno mar de rosas. Do que vale tal respeito? Se nem ao menos me recordo das minhas próprias feições? Entristeço-me dia após dia, ao relembrar que, ao partir, colocarei um ponto final nessa história sem fim. O preço pago pela vida é imensuráveleadorpelaperdapermeiaomeuser.

“Que som é esse?”, pergunto-me ao sentir um som vagaroso vindo de dentro. Num piscar de olhos, lembro que já fui casado e me apaixonei fervorosamente duas vezes, porém, amarguei-me com o sabor da perda, que vinha ao encontro de meu âmago, novamente. Da minhavidarestaramapenasrecordaçõesdeamoresquepartiram.Coma minha vista cansada e minha pele flácida, meus olhos lacrimejam ao imaginar que um dia também partirei e deixarei a dor da perda para quem mais amo… Com passos curtos e solitários, deparo-me com a morte ainda em vida ao tentar recriar lembranças de uma vida que jamaishaveráderetornar.

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Cartadoprimeiroadeus

Coimbra,22deJulhode1996

Mãe, Feliz aniversário! Enquanto escrevo esta carta, rezo para que, nesta data tão importante, as coisas sigam da forma que sempre seguiram: a senhora e sua personalidade forte impactando a todos com um aniversário sem bolo, semconvidadoseapenasvinhoeclássicosde terror. Gosto de lembrar do ano que finalmente cresci o suficiente para conseguir trocar o suco de uva pelo vinho e para apreciar esses filmes que tanto te agradam sem ter pesadelos ao dormir. Para mim, a nossa

CARTA DO
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PRIMEIRO ADEUS

cumplicidade entre mãe e filho ganhou um novo significado nessa época.

Aqui, estive deitado neste quarto de hospital sem muitas outras opções do que fazer a não ser ouvir o rádio disposto na cabeceira e conversar com os enfermeiros, que carregam uma melancolia em seu olhar ao encarar o meu estado. Pergunto-mesealgumdiateriapalavras para te contar tudo o que aconteceu. Em todas as vezes que tenteifalar sobre isso com a senhora, o ar me escapava e eu acabava recuando alguns passos, mudando todas as trajetórias de nossas cartas. Meu tormentonãodeveriaseroseu,entãoesconditudoerezeiparaquenada sobreissochegasseaosseusouvidos–oque,pelovisto,nãofuncionou.

Foi algo covarde, eu sei, mas não pude evitar. Também não me arrependo. A senhora realmente não precisava saber que menti sobre um intercâmbio e que, ao invés de rotinas corridas de estudo e atividades, meus dias eram regados de consultas, exames e péssimas notícias. São dias angustiantes até para alguém como eu, que tenta sempre encontrar o lado bom de todas as situações possíveis. Minha vida, neste momento, se resume em agradecer ao universo todas as vezes que acordo e em carregar um temor de não conseguir chegar ao finaldodia.

Entre todo esse conjunto de coisas que fazem parte da minha nova rotina, me peguei pensando na senhora e na saudade que sinto

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toda vez que revisito nossos momentos juntos. Descobri que, além de uma sensação de conforto extremo, o mais próximo que tenho de sentir-meempazéquandofoconessaslembranças.

E foi em meioaessepontodepazqueumainquietaçãoestranha nasceu em meu peito, e eu tinha certezaquenãoeranadarelacionadoà minha doença. Ao continuar pensando na senhora e em todas as coisas boasquecercamasuaimagem,percebiqueeujamaispoderiairembora sem deixar uma última declaração de amor e afeto para você. O meu tormento ao perceber isso me tirou noites de sono e me fez tomar uma atitudeemrelaçãoaisto:estacarta.

Passei uma vida inteira ao seu lado percebendo algumas verdades sobre a senhora que me ajudam nestes dias longos e cansativos. Seus grandes olhos são os mais doces do mundo, mesmo quando estavam refletindo raiva por algo que fazia quando era menor. Sempre invejei sua paciência, me fazia pensar que nada poderia te derrubar, pois, como você sempre dizia, paciência é a chave para se resolver qualquer coisa. Não posso deixar de citar os seus monólogos, pois sempre foi muito bom e por vezes engraçado encontrar a senhora conversando sozinha, tentando organizar os próprios pensamentos. Sempreameiouvirsuashistórias,também.Aqueladeque você entrou de penetra no show da sua banda favorita é a melhor de todas, ela retrata perfeitamente o que eu imagino sobre a sua versão

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adolescente. Seu bolodecenouraéomelhordomundo,econfessoque odiava ter que ficar com apartedecortarascenouras,maseusabiaque valeria a pena, pois, depois de pronto, poderíamos passar pelo menos uma semana inteira apostando as coisas mais bobas possíveis por pedaçosdebolo.

Euteamotantoqueessaspoucaspalavrasnãoconseguemsuprir em nada a minha necessidade, neste momento, de gritar para o mundo sobre a senhora. Mas, infelizmente, meu tempo está sendomuitocurto. Sinto muito não podercontartudoissopessoalmente,nãoconseguirdar um último adeus enquanto te abraço. Talvez não seja o melhor dos presentes de aniversário essa melancolia inteira despejada nesta carta, mas eu tenhomuitomaisparafalarenãoteriagraçacontartudodeuma vez. Também preciso compensar, de alguma forma, essa lacuna que estarei deixando no nosso laço. Então, manterei contato. Estarei colocando o melhor de mim nas próximas cartas que virão por alguns outrosverõeseinvernos.

Comtodoamor, Seufilho.

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CARTA DO PRIMEIRO ADEUS

Aprimeiravez

por Tales D.

Nas intermitências da vida, sempre estive àprocura.Doquê?Já não tenho muita certeza. Acho que o que mais fez meu peito arder em vida foram todas aquelas situações que marcaram minha alma de alguma forma. As que tentaram preencher o vazio cavado em meu âmago, quevieramemformatodeamor,dedor.Umadessasimpressões marcadas sob minha pele foi a que ficou em mim após oencontrocom Miguel. Ele, um homem de aparentemente 34 anos, cabelos encaracolados, mãos firmes, corpo completamente definido e feito à mão, como um guerreiro de uma legião a serviço de algum deus da guerra. Já eu, um rapaz, um moço, um jovem, um menino, um alguma outracoisaaindanãodefinidaesentidade21anos.

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Nessa diferença e desencontro, marquei com ele num lugar especial. O dos delirantes. Dos extasiados em busca incessante. Dos fugitivos das fúrias. Das românticas almas-perdidas e apaixonadas. E, bom, muitos dos outros tipos que já tentei imitar. E, dentre todos eles, não sei bem qual eu poderia ser. Talvez já tenha dominado cada um deles, de formas que nem sei, mas que ficam lá, existindo. Talvez diga issoprajustificaroencontroeacasualidade,nãosei.

Mas enfim, depois de toda a reflexão sobre quem sou eu, fico comocoraçãoapertado,oqueviraumaangústiaedescedocoraçãoaos dedos quando peço o uber. Tento respirar, pensar no que vai ser e finalmente me acalmar,lembrandodasfotosdele,seucorpo,suadoçura e gentileza nas mensagens do WhatsApp. O uber chega e ao entrar no carro me deparo com o julgamento. Sozinho indo para um localadois. Tento ignorar e não respondo, foco nos pensamentos positivos, no quarto, no espelho, noencontro,nele.Olhoparaaruaevejoaspessoas, as árvores, as expressões nos rostosdaspessoasenocorpodasárvores, o retrovisor do carro, tudo, nada. O uber para, agradeço com muita atenção à motorista, ela me olha, diztchaucomumsorriso,quasefeliz, quaserisonho,quasesafado,quasejulgador.

Na recepção sou informado: Miguel já está lá, com a chave pro quarto e pro meu coração. Vou, dessa vez pensando na minhachegada, como deveria agir, como deveria abrir a porta, como deveria falar ao

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vê-lo. Então só abro a porta. Encontro ele no quarto sentado, olhando para mim, quase já esperando que a porta abriria naquele exato momento e que dela entraria eu e sairia a expectativa. O medo do encontro com alguém tão novinho nessas circunstâncias. Nesse seu olhar, de quem come a carne com aspálpebras,eumesentivivo.Então encarei sua vista enquanto me consumia, engolia tudo queeuteriapara dar.Entãodei. Cumprimentei-o, ele notou que eu tremia, quase suava, com o nervosismo que incrustava, as mãos inquietas balançavam, o terror encostava e a vontade aparecia, pelas palavras, pelo primeiro encontro entre as mãos, que pegavam a bolsa das costas, depositavam sobre a cômoda e seguiam para o desvelar do mistério. Tudo numa expressão. Numa fraseescritaempapel.Numaincerteza.Daíemdianterememorei esenti.Nãodissenada.Senteinacamaredondadefrenteparaoespelho e me revirei. Tirei toda a roupa com pensamentos entremeados, com meu corpo amolecendo, perdendo a tensão e ganhando alibertaçãoea luxúria. Disruptivamente, um amargor na boca. Estou aqui mais uma vez com um desconhecido, como se fosse a primeira vez,querendome obrigar a sentir.Buscosemprevoltarasentir.Encontrarnosencontroso que foi desencontrado em mim. Uma delícia, uma satisfação, uma compreensão,umamor,gostodelimão.

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Deixei ir. Ele veio. Um anjo emmeuslábios.Seucorpotroiano, Miguel, com pelos aparados, mas grossos em todas as partes. Ali já estava em sua mão. Uma mão dura e com força, prendendo o meu desejo e o fazendo se espalhar. Um contrapeso em minha barriga, uma leveza na respiração. Uma antípoda que começava a cingir os corpos numasóentidade. Suas pernas grossas em contato com as minhas finas, flácidas, abrindo caminhoparaomeupreenchimento,paraoencaminhamentoda luxúria, da felicidade, do alcance de algo.Umadescriçãosempalavras, entre o grande e o pequeno. O médico e o monstro. A criação e o criador. A foice e o martelo. Entre a pureza e sexo. Senti, milímetro a milímetro. Interminável, relaxante, uma navegação no mar aberto e desconhecido em ondas de mistério, de sedução das sereias. Um encontro do que existia com o que deveria ali existir. Minhas mãos em seu peito, segurando em suas costas. Um mergulho na devassidão, talvez numa condenação. Queria isso, eu acho. Mas daí em diante foi ritmo, frenético, gostoso, prazeroso, flagrante e disposto. Estava vivo. Muito vivo. Me sentindo eu novamente. Encontrado nocorpodooutro. Encontrando apenas o que já estava em mim. Fundação, escavação, penetração. Eu, minúsculo, ele gigante. A diferença marcada perfeitamente.Sepulcral.

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Minha respiração ofegante, um desabafo de tudo. Um ápice de prazer. Outro ápice de prazer. Outro ápice de prazer. Intenso, fúlgido, quente. Um mergulho interno, um esquecimento de tudo. Meus pulsos agora presos, apertados pelasmãos. Umoutroprazer.Talveznofimfoi aquela expressão do que já sabia. Só sei sentir ao ser dominado. A delíciadepoderperderocontrole,deperderasmedidasemediações.

Um tapa. Uma violência. Uma permissão. Uma realização. Um caminho para finalização. Suas estocadas no meu coração, indo diretamente para a ação. Suboemseucoloealitentoacabar.Paramim, para ele, para nós, para a unidade que estávamos sendo. Então temoso ápice final. Ele me aperta, sinto que me abraça,respiraofegante.Penso se gostou. Lembro quegostei,quemedeixeiser.Noespelho,avisãode um ritual de cura que acabou. Sessenta minutos de sexo. E agora? Temosaindaumahora.Masacabou.Voltamosparaoritmonormal.

Olho para ele, vejo o paraíso. Então agradeço e dou uma risadinha. Algo meio safado, uma demonstraçãodoquealcanceiapóso tratamento. Então tentamos conversar. Meio sem palavras, sem conseguirfalar.

—Vocêfuma?—Elepergunta.

—Nãofumo.

—Nembebe?

—Nembebo.

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—Eoquevocêfaz?

Nessas horas, sempre após essas perguntas, eu uso os meus olhos oblíquos e dissimulo um sorriso expressado, respondendo: “Sexo!”. Mas não sei. Dessa vez não disse. Pensei na pergunta, dessa vez de verdade. Não sei a razão. Entãopensei,chegueiaconclusãoque poderiadizer“Nada”,dizerquenãofaçonada,queminhavidaétãooca quanto, bem, o meu coração. Embora seja mentira, emboraeutrabalhe, estude e administre razoavelmente bem todas as montanhas de problemas que surgem cotidianamente em minha vida. Mas “Nada” seria uma resposta que diz que não quero conversar. E talvez ainda esteja aqui ou tenha vindo para cá justamente pra isso. Falar sobre o vazio. Então sigo exatamente de onde paramos, após o silêncio dos meuspensamentos.

—Sintoqueeufujo.

—Comoassim?—elepergunta.

—Sintoquenuncafuiamado.Quenuncaserei.

Ele me olha. Então me vem à mente, o que fui fazer dizendo isso para ele? Não precisava dizer nada. Não precisoesperarqueelevá entender minha difícil relação com o amor. Mas bem, ele é um anjo, talvez por isso a escolha do nome. Uma tentação com nome sagrado angelical.

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Então ele nota a expressão em meu rosto, uma face que quase grita “Não deveria ter dito isso, foi mal,desculpa,tchau,atéapróxima, talvez”.

Pra te falaraverdadeeuescutomuitoisso.Émaisnormaldo quetupensa.

Não era pra ter saído assim. Queria mesmo era dizer quefoi muitobom.Quefoitãogostosoquetôaquimeesforçandoprafalar.

—Nãoprecisaseesforçar.Possoficarteouvindotranquilo.

Então eu penso. Será? Preciso mesmo disso? Já não consegui o que queria? Não vai ser com o Miguel. Não éaquiquevouencontraro amor. Foi uma primeira vez. Uma experiência. Um sexo e agora uma escuta.Masnãoquerofazê-lopassarporisso.

Na real, não. Vou pro meu trabalho agora, caso eu ficasse mais iria acabar me atrasando, talvez te enchendo demais. Termino comumrisadinhadaquelas.

—Deboas.Marcamaisvezesquandopuder.

Ele terminou dizendo isso. Talvez era o que me restava. Não tinha lógica em pensar numa outra resposta. Mas bem, foi um contentamento. Uma pílula que me fez existir num dia seguinte, e no próximo, e no próximo, assim por diante. Tomei banho, me lavei,vesti minhas roupas em silêncio, olhei pra ele com o cartão na mão e pergunteiaúnicacoisaquejátinhacertezaemtodoaquelemomento.

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—Eaí,Miguel,quantofoimesmo?

—250.—Gélido,frio,corporativo.Pragmáticoeresponsável. Passei o cartão em sua maquininha, parcelei em 5 vezes e saí. Pensei: “Para umaprimeiravezfoiatétranquilo.”Diferentedaprimeira vez com o fetichista, da primeira vez com o casal do A3, do primeiro gangbang, do primeiro sexo com BDSM, do primeiro sexo com amor, do primeiro sexo com paixão, do primeiro sexo mecânico, do primeiro sexo com um estranho etc. Talvez de tantas primeiras vezes meucorpo já entendia que aquela marca, agora deixada em mim como uma primeira vez, era uma enganação. Agora eujáeraprofissional.Saícom um profissional. Será que a partir dali não conseguiria mais outras primeiras vezes? Outras buscas em torno de abafar o destruído, esmagado, amassado? Não sei. Não tenho certeza. Não existe certeza. Sóosó. Então olho para o espelho, me vejo indo embora e vouembora. Saio. Sem sair. Ficando sozinho. Um dragão. Sem lugar. Sem um sim. Semumnão.Semninguém.Sódragão.

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Ei,Garoto… por Lucas Abreu

Ei,garototãopequeno Vocêéquemeujáfui Comumpoucodecoragem Praseguirondequiser Euconheçoosteussonhos Tuavontadedevoar Ajornadaédolorosa Masnãopercaasuafé

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Seolhanoespelho

Evêtuabeleza Segueodesejo Quehádentrodeti Deixaoteucantoacalentarteupranto Pravocêvoltarasorrir

Ei,garotojácrescido Nuncapercasuavoz Abreasasaspelagente Edesataosteusnós

Seolhanoespelho

Evêatuaalma Segueodesejo Edeixaeleflorir Deixaoteucantoacalentarteupranto Pravocêvoltarasorrir

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Contacomigo

Nahoranecessária

Euteabrigo

Emumabraçoforte

Deixaoteucantoacalentarteupranto Pravocêvoltarasorrir

Eoamorvaitefazersentir...

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Armadilhasdeumapaixão

por Lúcia Rebouças

Numa manhã de outubro, encontrava-me no aeroporto de Fortaleza e cheia de expectativas. De Fortaleza a Belém foi o meu destino,juntamentecomumaexcursãoaoCíriodeNazaré.

A vida pesava e sentia-me decepcionada, ou até mesmo arrasada, com os recentes desencantos amorosos ocorridos na minha vida. Precisei comemorar o meu aniversário, lançando-me à viagem, sozinha,nacompanhiadasminhasdoresedaminhasolidão.

Pacote adquirido sem ninguém conhecido por perto. Ansiava por dias alegres e distantes do foco do meu sofrimento. O destino escolhido foi o espiritual, na companhia de multidões que também queriam viver o Círio de Nazaré. Para alguns, um ritual que se repetia

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UMA

há muitos anos; para mim, a primeira vez, assim também como fora a dorquemefaziasangraropeito.

O calor escaldante de Belém recebeu o nosso grupo em pleno meio-dia. O passeio ao Ver o Peso iniciou a programação com um almoço coletivo. A alegriadetodoscontrastavacomaminha.Nãoviaa hora de chegar no quartodohotel,peloqualpagueimaiscaroparaficar sozinha. Lá dentro deu vontade de chorar, mas eu queriacompanhiade gente. A vontade de pular pela janela foi grande; mas eu queria que a tristezamelargasse.

Dormi para ver se a dor passava. Não passou, mas resolvi juntar-me ao grupo no passeio da noite. Foi uma noite tranquila, rimos bastante, conheci gente nova e deuparaesqueceratristezaporalgumas horas.

Na manhã seguinte, ao sair do elevadorparapegaroônibusque levou-nos ao Círio de Nazaré, deparei-me com Raquel, a nossa guia, queenquantoaguardavaosdemaiscolegas,conversavacomumhomem de ombros largos. De onde eu estava, somente o via de costas. De súbito, intrometi-me na conversa dos dois, assim mesmo, de supetão, coisa que nunca fizera em minha vida. Mas, naquela manhã, naquele dia,sentivontadedefazer.

Surpresos, os dois me olharamatônitoseosolhosdeRaquelme fuzilaramcomoseuardereprovação,masnenhumapalavrafoiditapor

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ela. Não seisequebreioclimaentreosdois,sóseiquepintouumclima entre eu eele. Fiqueideslumbradacomaquelehomemdemeiaidade,a sua elegância clássica, o sorriso juvenileosseusmodosbemeducados. Ele pareceu ter gostado da surpresa. Mas, Raquel, aindainconformada, me chamou para entrar no ônibus antes mesmo deeuconseguirsabero nome dele. Lá dentro, fez-me sentar na primeira poltrona,enquantoele seguiuparaofundodoônibus.

Por todo o dia, Raquel pareceu que fazia uma escolta em torno do homem e ninguém conseguia chegar até ele. O dia foi longo e cansativo, mas era também o dia do meu aniversário, juntamente com mais uma aniversariante. À noite, como já tinha sido previsto na programação, saímos para jantar. Eu fiz 58 anos naquela noite, cujos parabénsforamcantadospornossogrupo.

Fui cumprimentada por todos, e na hora dorapaz,semoescudo de Raquel, senti o seu abraço aquecido, de corpo inteiro que me levou às nuvens ou aos sonhos de estar nos braços daquele homem. Nunca senti o meu coração bater tão forte, nem mesmo por aquele que dilaceraraomeumaissinceroamorantesdesairdeFortaleza.

Na manhã seguinte, ao passar o protetor solar, uma alergia tomou conta dos meus olhos que incharam feito bolas de fogo e somente lágrimas desciam feitocachoeiras.Masfuisurpreendidacoma gentileza do mesmo homem, que dizia ser médico e ofertou-me um

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colírio retirado da sua mochila, ainda lacrado. Eleprópriopingougotas do remédio nos meus olhos. Não demorou muito e voltei a ver a sua beleza cristalina que fitava colada nos meus olhos, enquanto tocava os meus olhos com mãos suaves para se certificar de que havia mesmo melhorado. Queria receber mais das suas gotas mágicas,doseutoquee doseuabraço,masocolírioagiurapidamente.

Passei o dia procurando pelo afeto dele,mastudoquerecebifoi a sua gentileza. Tudo que consegui saber foi o seu nome: Ariosvaldo. Nãoacrediteinonomequeouvi.AqueledeFortaleza,responsávelpelos meus dias de trevas, chamava-se Ari. Antes dele, tive um noivo que se chamou Osvaldo. Os dois juntos eram demais para mim, na minha fragilidadeaindaincipiente.

No dia seguinte retornamos ao aeroporto. No saguão, Raquel entregou-nos a listagem de todos os nomes do nosso grupo e os seus números de telefone. O de Ariosvaldo não tinha o DDD 85 de Fortaleza. O seu era 84, do estadovizinho,masnãotãopertoquantoeu desejava. Ele se foi sem olhar paratrás.Seguiuporumportãodiferente domeuparapegaroseuvoo.

Em casa, enviei-lhe umamensagempeloWhatsApp.Nãoobtive resposta por cinco meses. Mas eu precisavacontinuarmecomunicando com ele. Chegou o mês de março de 2020 e a pandemia de covid-19 pegou a todos de surpresa no Brasil. Em isolamento social, fiquei

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atônita desejando querer saber mais sobre ele. Lembrava da sua profissão como médico, imaginei que estaria na linha de frente no combate à doença correndo risco de vida e supliquei por uma resposta. Tudoquerecebifoiumemojidizendo“bomdia!”.

Continuei a escrever para ele, o que parecia ser o meu diário. Enquanto fantasiava mil e uma histórias de amor, perdi parentes e amigos contaminados pela covid-19, escrevendo-lhe ainda mais sobre osmeussentimentos.

Ariosvaldo nunca me respondeu para além dos emojis, quase sempre os mesmos. Não me contiveecomeceiapesquisarmaissobrea vida dele nas redes sociais. Descobri que existia uma morena no coraçãodele.

Voltei à desilusão, aodesgosto,àamarguraquemedominoupor inteiro. Fui caminhar no calçadão à beira-mar, a minha cabeça fervilhavaemconjecturasenadamefaziatiraroAriosvaldodacabeça. Diante da imensidão do mar, na praia vazia de gente, chorei, gritei, berrei como um bezerro novo carente dos pais. Andei sem destino, andei, andei, até mecansar.Pareieolheiparaasondasrevoltas do mar em dia de lua cheia. Deu vontade de enfrentá-las, mesmo sem saber nadar. Queria que as águas do mar lavassem minh’alma sofrida. Foi quando senti o toque da água morna cobrindo os meus pés na

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quebrada das ondas. Perdi o medo e segui caminhando em direção à imensidãoazuldomar.

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Encontromarcado

por Rogeslane Santos

Deitada ao seu lado na cama, digo que ainda é cedo para começarmos nossa conversa. São dez da noite e ela insiste em me contar sobre o que está pensando. Não há nada mais incômodo do que não ter respostas sobre o que queremos saber, ela começa. Ontem me encontrei perdida, em conflito entre o medo de tentar e o desejo de sentir, me perguntandoquantotempoaindatenhoepensandoqueavida é muito curta, é o que todosdizem,mas pareceumaeternidadequando estou aqui com você, desejando que me abrace e não peça que eu vá embora. Somos quase sempre a mesma pessoa,elacontinua.Masdeixa eu te dizer sobre o que dança na minha cabeça agora, com passos acelerados e rodopiosnauseantes.Doispensamentospermanecemnesse

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momento: Seremos provavelmente amantes? Ou não seremos nada? É impossível ignorar quando despercebidamente te olho e te enxergo perdido em mim.Oqueeleestápensando?Sôniameencaracomoseeu pudesse lhe trazer clareza. Se ele não me diz, eu imagino todas as respostas, cenários, possibilidades. Se ele não me diz, eu mesma respondo.Sempreterminacomaangústiadeanteciparsuapartida.

Eu me viro para ooutrolado,maselaaindafala.Sôniatemuma presença que me esmaga, preenche todo o quarto e me sufoca consumindo todos os espaços. Ela não vai embora, se autoconvida e ocupa seu lugar na cama. Já a dividimos há incontáveis dias, nosso relacionamento não é de um amor doce,maselamefazcompanhia,me tira do tédio. Dividimos nossos piores momentos, minha mais íntima confidente.Elamechamadenovo.Pelomenosfinjaqueseimporta,me escute, não temos tempo, ela medizirritadaporeuestarfugindodeseu abraço forte, não forte e aconchegante, mas dos que machucam e você torce silenciosamente para que acabe. Estou te ouvindo agora, eu digo. Esse é o momento que ela espera ansiosamente. Quando sou toda sua, deixando que me inclua nas suas fantasias catastróficas sobre o que se passa nos nossos dias e sobre o quetrazemosdofuturoparaatormentar nosso presente, quando esquecemos que o único momento que importa é o agora, porque só nele podemos existir, entre o velho e o novo eu.

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Quando puxamos o passado e nos arrependemos detudo,esquecendoo quedeucerto.Naquelesmomentosquetodosos“ese”aparecem.

Ela começa de novo, suas palavras circulam no ar, densas. E se não fôssemos mentirosos e deixássemos transparecer a ânsiaquetemos um dooutro?Esepudéssemosesqueceromedodeseentregarevivero que o acaso tem a nos oferecer? E se? Não posso fazer isso, sei que se partilhar todas as minhas canções favoritas, ele não escutará, não entenderá que estou pronta para ser, paramematerializarnosseusmais intensos sonhos românticos. Não há espaço para mim quando outro corpo já o ocupa. Sôniamevê,meencaradenovo.Masnãoqueromais dela por hoje. Dentro dela, in Sônia não há aconchego. Viro para o outro lado agora, me perco em uma música e silencio por instantes a presença de Sônia em minha cabeça. Amanhã às dez? Ela pergunta antesdemedeixaradormecer.Até.

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Amor,dofimdomundo por Sávio Mariano

MeuGrandeAmor, Envio essa mensagem porque fiz uma coisa terrível. Estava desesperado. Se você soubesse na hora, teria me segurado e impedido com a força calma quesóvocêtem.Ah!Sevocêestivesselá.Masvocê nãoestavalá.Ninguémestava.

Você foi embora logo no começo da coisa toda e agora eu vejo como isso foi bom, e como apaga um pouco esse desespero de simplesmente nãotermaisvocêporaqui.Porquevocênãoviuacascata

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enlouquecida do degringolar das coisas que nos levou a um estado tão completamente… que eu não sei mais como dizer; talvez por você não tervistoatéondeascoisasforam,euconsigaperdoardeusportudo.

Você não sabe, meu amor, mas essa Peste tomou tudo. Pessoas morrendo aos borbotões como pedaços de carne sem ar, em uma velocidade… E nós na nossa maldade ingênua… espantados…; só poderiatersidoanaturezacobrandoalgodevolta.

Nos trancamos em casa. A cidade ficou deserta. A praia se tornou quase como um paraíso virgem, areia branca, mar verde, intocado por ninguém, sópelasbaleias.Edentrodecasa,todosnós.Foi assim por muito tempo, muito tempo, meu amor, apavorados, como você não pode imaginar. E que bom que você não estava aqui, porque você teria achado tudo umtédioinsuportável,enãopoderiamaiscorrer feito uma criança adulta pela calçada quando estava empolgada com alguma novidade. Nem tomaria mais sol na praia para energizar o espírito pelas pupilas, como você dizia deitada na areia, nem nadar no fundo do mar fora da linha de visão, sem medo nenhum de nada, me deixandocomocoraçãofraco.

Fico me perguntando se teria medo como eu tive, você que nunca teve medo das coisas. Alta. Caneluda. E, por isso, que bom que você não viu tudo! Porque eu não saberia viver num mundo ondevocê nãocorressebobapelacalçada,ondevocênãonadassenomarverdeme

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AMOR,
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deixando momentaneamente sem coração, onde você não fosse sem-medo-nenhum-de-nada.

Aqui eu tive muito medo. As pessoas iam embora com uma facilidade… Ficar só era quase como ficar numa sala de espera esperando sua vez. E ela chegou, que bom que você não viu! Infiltrou-se pela casa de alguma maneira obscura característica sua. Eu então não conseguia respirar. E meio que semartivequeiraohospital, amarrado em máscaras e óculos dentro do carro. Os arranha-céus em coma. Aconteceu em que altura? Não lembro. Numa dasváriasdobras que o carro fazia pelas ruas tristes, num céu de chumbo, eu vi. Enquadrado pelos vários prédios dessacidadeenferrujadapelamaresia: um lampejo, uma nesga, esmeralda, num quadro enferrujado, ele mesmo, o MAR. Foi tudo tão rápido que me desequilibrei todo e não pude deixar de chorar muito detrás dos óculos. O Nosso Mar. Você. Meu Pai. Minha mãe. Tantos outros. E o Mar ainda estava lá apesarde tudo, vasto, magnífico, alheio ao nosso drama, que para eledevesersó um burburinho que facilmenteseapagadebaixodorugidodovaievem das ondasquevierameforamtantoanosafundonotempoquenósnem sequerpodemossonharemcaber.

Então eu fiz. Você teria me reprovado. Mas tudo se juntou na minha cabeça. Quando desci do carro, nem entrei no hospital. Mesmo

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com a respiração em frangalhos eu desci as ruas desertas e fui em direção à praia. Podia sentir os olhos de julgamento escondido por detrás das janelasentreabertas,masnãoimporta,nofimdarualáestava ele.

O Mar era grandioso. Tentei respirar um pouco de sol. Obrilho das ondas em movimento apagou umpoucoquemeusouemelembrou que as coisas apesar de tudo vão permanecer. Você estava ali, com certeza. Não fica brava comigo. Eu vim aqui para te enviar essa mensagem. Quando vi o verde enquadrado naquela mortalha de cidade eu percebi que você estava aqui. Por muito tempo tentei apagar da minha memória você naquele leito de hospital entubada, conectada a vários cabos, como um experimento cruel. Noutras, imaginei você no céu azul, mas o céu nuncaestevetãofeio,tãopesado;vocêteriaodiado lá, achado tudo sem graça. Agora vejo que você está aqui, selvagem, correndo feito uma bobona pela areia e nadando com os robalos e as baleias até o fundo, sem medo de nada. E eu só posso ficar aqui, observando você como sempre fiz,segurandomeucoraçãoparaqueele não,derepente,desista.

Dofimdomundo.

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Pacto

por Diego Vieira de Queiroz

Bzzt. Bzzt. Bzzt. Enfio a mão no bolso e saco o celular: a ligação chega. A primeira, depois de… Meu corpo range ao me pôr de pé. Coloco a chamada no viva-voz e caminho até o balcão, verto cachaça no copo e pego os comprimidos. Olho a hora: cinco e quinze. Não importa se estou longe ou não presto atenção à ligação em andamento. Não importa mesmo. Por ora, é só ruído. Emanando, preenchendo tanto quanto a já meio fraca luz amarela que vem da varanda preenche com certeza mais. O interior dos móveis, eles próprios, os ocos e maciços, nativos ou que chegaram junto comigo; atravessa tecidos,vidros,etodososlíquidosvibramemconsonância;os vãos onde nenhum insetoconstróicastelo,ondevidaourestosdelanem

PACTO 84

chegaram perto; ondesómuita,muitapoeirahabita.Preenchetudoisso. Leva algum tempo até que eu também consiga emitir ruídos; e mais tempo ainda para que eles se transformem em qualquer coisa. Nunca aquilo. Enfim jogam a corda dentro do poço. Ela vem brilhando, item mágico. Tanto que quero te dizer, quero te pedir. Mas nãoposso.“Eaí, como é que tá? Faz meia hora que tô aqui falando e tu nem nem...” Engulo cachaça e comprimidos, junto com a caixa de pedidos que sou impedido de abrir pra ti. Me abrir? Pra ti? “Como tem sido voltar?” Você, último fantasma, sobrenaturalmente pairando sobre as tardes, abutre dourado e divino que consome perpetuamente o fígado de Prometeu, exceto que prometeu nunca, nunquinha, falhar o pacto bendito mas impossível, por que prometeu? Fragmentos de nós piscam nos reflexos dos vasos sujos de vazio. Da forma que nascem. “Ainda não parei pra colocar flores nos vasos que tu me mandou”, finalmente respondo.Aspalavraseoálcoolqueimamagarganta,cordasvocaisque trabalham pela primeira vez desde meu regresso, ondas sonoras que pela primeira vez experimentam a textura desse ar e paredes apáticas revestidas de um isolamento muito mais que acústico. Perguntar-me-á: porque,Prometeu?Porqueroubasteofogosesabiasqueerafraco?Por que pulaste no poço, se afogaste nas águas antes tão potáveis agora imundas de ti, por que escureceste o mundo e se confinaste em uma parede tão circular e monocórdica que não sabes mais nem onde é

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frente e onde é trás? A corda balança, roça meu rosto e esfola minha pele, carne viva: “Não tem problema, tal hora tu encontra o tempo pra fazer isso.”Encontrarei?Eleseescondeemmeioàsujeira,imobilidade, à bagunça de tudo que se precisa mudar, e não movo um milímetro; entre a vidaeanão-vida,correndonatraseiradainércia,estouforçando todo o corpo para que os dedos alcancem-na, agarrem-na, pelo menos isso, busco esse tempo, busco esse tempo, busco esse tempo velocista tirando sarro de mim e da inércia, patéticos eforadeforma,atrás,atrás e atrás: sempre segundo e terceiro lugares.“Maseuficomuitofelizpor ti. Tá de volta, tem teu cantinho. Éumapenaqueeunãotômaisporaí. Queria ter te visto.” Poderia ver. Ainda. Ainda? Não, a corda é o cipó que me balanço no pântano de inércia, agarrando com força para não cair na boca dos crocodilos de poeira, mas não com força o suficiente para subir até os céus do tempo. Negados a mim desde o mergulho. Não mais te verei, não mais me verás. Houvera uma era em que se teu nome fosse Vera seria uma solução hoje é só uma rima. Rimas não salvam o mundo, e só há duas soluções: ou subo fraco demais pra isso ou puxo a corda, puxo feito cabo de guerra, ajudem-me, crocodilos, vamos derrubar o teto de nuvens e propiciar a chuva de raios solares, abro a caixa, solto tudo aquilo, aquilo que os ruídos, que qualquer coisa nunca será, aquilo que só tu podes receber e que só eu posso dar, porque aquilo é meu, é meuetemvocêjunto,aquilo-âmago,

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aquilo-verdade, aquilo-súplica, que te mostrará o poço, o abutre, o pacto,tudoaquilo.

Mas... se puxo a corda, tu cais. Longe de cais: alto-mar, tempestade, redemoinho, afogamento, assim é a queda. Então viria o amargor de saber que pulei, me estatelei, e quando estendeste a mão para me ajudar alevantar,tepuxeitambém.Arrependimentoeamargor. “Eu também”, deixo escapar. Contigo, faço o mesmo. Deixo escapar. “Daqui a pouco eu vou sair, tenho que me arrumar sabe como tá a rotina agora que...” Mentira. Minha, sua, simplesmente mentira. “Sei, tudo bem, não tem problema”, minto. Entendimento mútuo, chegou a hora. Promessa incabível: fim. “Amanhã não vai dar pra te ligar, mas acho que depois...” Puxam a corda, suja de peleecarne,queserpenteia como Apófis ascendendo ao firmamento para engolir o sol, o deus-sol que nunca corromperei, que nunca trarei para as profundezas do abismo, deixarei escapar, eternamente, para que fora da minha interferência se dêalutamitológica,deus-SolcontraApófis,tucontrao pacto. Um espetáculo com o final já profetizado. “Foi bom falar contigo”, falo num quase sussurro. Resposta frágil: “Foi.” Culpa demais? Duelo encerrado, nós dois sabemos quem venceu. A medicação faz efeito, a cachaça também. Ponho o celular no bolso, sentonosofá,atentoaorelógio,eesperoasalvação.

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Delíriosdeumsonho

Quando abriu a porta de casa, foi recebido pelo vazio. Móveis não lhe faltavam, decorações muito menos, masaluzdotetoiluminava tão somente a sua face cansada e a de mais ninguém. Tudo estava da forma como deixou, nem um centímetro mexido para a esquerda ou para a direita, e isso lhe aborreceu mais do que o costume, necessitava de uma mudança. Ao pensar nisso, tudo começou a semover,trocarde cantos em uma dança desengonçada,atéquesecriouumnovocaminho parapercorrersuasaladeestar.

Atravessou o caminho largotirandoocasacoeodeixoudeslizar pelos dedos até o chão sem se esforçar, vendo-o sumir como mágica assim que encostou no carpete, e sua bolsa dealçateveodestinoigual.

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Exausto, não ligou para isso, somente seguiu para asescadas,estasque antes não existiam ali, mas apareceram para guiar-lhe atéseuquarto.A cada degrau que pisava, parecia que mais dois nasciam, prolongando e distorcendo seu caminho para o descanso. O esforço crescia e suas pernas já estavam se cansando naquela subida infinita, até que os degraus se transformaram em uma rampa, fazendo com que seu corpo caísseedeslizasseparaumabismoescuro.

Quando menos se deu conta, estava na entrada deseuquarto.A porta abriu sozinha, lhe recebendo com um rangido tenebroso, mas somente adentrou esperando que pudesse enfim descansar. Deu dois passos apenas e parou. Ali, no mesmo canto, estagnado como uma estátua, encarava uma caixa posicionada delicadamente em cima da cama, bem no meio. Era média, escura em um tom de roxo, amarrada com uma fita de cetim como um presente e era visível uma etiqueta comseunomependurado.

Com cautela, a caixa foi aberta e sentiu-se como Pandora, prestes a receber todas as mazelas existentes em seu mundo, mas encontrou o que menos esperava: um pequeno incêndio em pétalas vermelhas. As pupilas tremiam e a boca secava ao encarar aquelas flores familiares, e, justamente por saber do significado por trás de seu presente, ele transbordou em soluços e águas salgadas, como se aquele

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mínimo algo inesperado fosse o necessário para finalmentequebrarsua taçajátrincada. Flordoinferno,florfantasma,flordamorte.

O quente vermelho sangue contrastava com o pálido de seus frios dedos longos, segurava o caule verde e sentia a palma formigar enquanto contemplava com avistaembaçadaasfloresemsuacaixa.De repente, as pétalas começaram a derreter e escorriam em suas mãos como lava, lhe consumindo aos poucos. Diante de tal visão, um grito quis sair de sua garganta, mas sua voz virou nada ao passo que mais flores começavam a brotar do completo nada em meio aos lençóis, nas paredes cobrindo seus quadros e no chão envolvendo seus pés descalços.

Em tal momento, estava rodeado de vermelho e as flores sussurravam palavras maldosas e risos debochados, como umasinfonia agoniantedepuniçãopelosseuspecados.

—Vocêéumegoísta,sófazaspessoasaoseuredorsofrerem. Você merece todaadorqueestápassando,oúnicoalívioque teráserádiantedamorte.

Estas e mais outras verdades eram o que as flores disparavam sobre si, como flechas afiadas diretamente em seupeito.Tentouclamar

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perdão, porém apenas mais lágrimas saíam do seu âmago culpado. Segurando uma das flores entre os dedos, lembrou dos momentos que preferia trancar nofundodoseusubconsciente,dosgritoseinsultosque o convenceram de que sim, realmente não merecia mais a felicidade, porque seu terreno se tornou infértil por sua própria falta de cuidados, incapaz de fazer florescer frutos bons, somente estas flores bonitasque nãotêmfolhasenempiedade.

E assim, trancafiado com os fantasmas do seu passado, se deixou ser engolido pelas longas e tóxicas pétalas de higanbana1 , as floresqueguardamosportõesdoseudestino.

Acordou exasperado,suadonastêmporas,esuavozdesesperada finalmente pôde sair. Não estava mais em um sonho. Logo, uma figura não tão grande, não tão larga, entrou no quarto com rapidez e feições preocupadas, segurando-o pelas mãos e perguntando o que houve. Olhou ao redor, ainda estavanomesmoquarto,nomesmoapartamento, na mesma vida que o sonho mostrava com tanto amargor. Mas pelo menos ali, no plano real, ele tinha uma presença reconfortante, uma pessoa que o encarava com pequenos olhos rasgados e atentos, pronta paraampará-loquandofossepreciso.

1 Higanbana (彼岸花) é considerada a “Flor do Equinócio de Outono”, anunciando o início da temporada. Por sua simbologia relacionada às raízes budistas, também é conhecidacomoa“flordamorte”noJapão.

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Esse alguém foi o único que permaneceu ao seu lado verdadeiramente, apesar de tudo, apesardetambémtersidomachucado e sofrido pelas suas dores. Não sabendo ao certo o motivo de sua permanência, por não se sentir merecedor de segundas chances,apenas aceitou aquilo como um ato de piedade de quem quer que seja o ser celestial acima deles. Por isso, nada disse, somente abraçou-lhe forte e se permitiu desmoronar mais um pouco nos braços alheios, escutando ossussurrosqueagoraerampalavrasacalentadorasedeconforto.

—Vaipassar,vaipassar.Vocênãoestámaissozinho. Sua respiração foi acalmando diante de tais orações e como quem procura sentir a fragrância de um lírio, inspirou o aroma adocicado dos fios de cabelo que estavam à sua frente, e ao contrário dasfloresdeseusonho,seuamortinhacheirodevida.

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