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um pequeno histórico sobre a formação da boa vista

A história documentada desse bairro se inicia com a colonização portuguesa. Os portugueses, assim que chegaram à região, como se é sabido, repartiram entre eles as terras que foram recebidas. Na ocasião, o bairro da Boa Vista ainda contava com sua vegetação nativa e, com a invasão portuguesa, os sítios foram divididos e delimitados. Algumas décadas após a chegada dos portugueses, houve uma nova invasão, desta vez encabeçada pelos holandeses, que vieram explorar as terras do nordeste e passaram a tomar conta da Boa Vista. Os holandeses se instalaram na área do litoral do Recife e construíram a Cidade Maurícia. Nesse momento, as terras da Boa Vista começaram a acomodar sítios e casas. Tidos como invasores das terras, que eram então reconhecidas como portuguesas, os holandeses foram expulsos pelas tropas dos luso-brasileiros, que eram comandadas por Henrique Dias.

Com a expulsão dos holandeses, Henrique Dias e seu exército defensor da côrte de Portugal receberam, como recompensa por terem vencido a guerra contra os invasores holandeses, parte das terras que hoje fazem parte do bairro da Boa Vista. Nelas encontravam-se as antigas casas dos holandeses, cujos lotes foram sendo vendidos e reocupados, em sua maior parte, por pessoas de origem portuguesa, o que originou a formação da vila.

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A construção da Igreja de São Gonçalo (situada na Rua de São Gonçalo) e da Igreja de Santa Cruz (situada no Lar-

go de Santa Cruz), no início do século XVIII, ocasionou o surgimento de núcleos residenciais, edificados ao redor desses templos, e, posteriormente, a definição de ruas que viriam a conectar esses agrupamentos. Ao passo que as décadas corriam, a Boa Vista se consolidou como um importante bairro recifense, pois a vila crescia juntamente com a urbanização da cidade do Recife.

A Boa Vista passou a ser destino de moradia para muitos que desejavam viver a cidade do Recife. Marcado pelos seus cursos d’água e espaços arborizados, esse bairro sempre teve um caráter mais residencial do que o Bairro do Recife e a Ilha de Antônio Vaz (bairros de Santo Antônio e São José). No final do século XVIII, a Boa Vista já havia se tornado um dos maiores povoados do Recife e possuía uma área extensa. As construções existentes no começo da formação do bairro eram igrejas, sobrados e sítios. Com o passar do tempo, o bairro começou a ser destino de obras de infraestrutura como praças, aterros e grandes instituições. Sempre recebendo pessoas de diversos lugares e nacionalidades. A Boa Vista atual é resultado de um conjunto de construções e práticas vindas de pessoas de diferentes origens, desde os primeiros registros de ocupações, sendo, portanto, um ambiente multicultural.

Nessa lógica de desenvolvimento constante do bairro, a área não parou de crescer e passou a ser cada vez mais habitada. A Boa Vista passou a ser palco para realização de

muitas atividades, no entanto, jamais deixou de ser espaço de moradia. Ao longo do tempo, o comércio cresceu muito, principalmente com a construção de novas áreas sobre aterros das margens do Rio Capibaribe, como é o caso da Rua da Imperatriz e da Rua da Aurora. No final do século XIX, com a necessidade de expansão, foram realizados mais aterros, que, por sua vez, abrigaram as novas atividades sociais. Esse é o caso das ruas Sete de Setembro, Princesa Isabel e do Riachuelo, entre outras, onde há grandes construções monumentais e espaços verdes em abundância.

Sendo um lugar em um constante processo de mudança, diversas edificações antigas foram substituídas por novas construções ao longo do tempo. Um exemplo disso são os edifícios modernos, do século XX, que se concentram na Avenida Conde da Boa Vista, muitos deles construídos onde antes existiam antigos casarões. Na Boa Vista há, juntamente, a permanência do aspecto de bairro antigo, a monumentalidade das construções do século XIX e o dinamismo do conjunto moderno. Portanto, o bairro é sinônimo de multiplicidade. Hoje, a Boa Vista é resultado de um processo histórico no qual sempre esteve no centro dos acontecimentos, o bairro permanece no foco de onde tudo é realizado, é multifuncional e está na memória de muitos pernambucanos.

Como muitos dizem: “A Boa Vista é lugar de fazer tudo!”

A multiplicidade do bairro é marcada pela diversidade de pessoas que o frequentam, desde estudantes, vendedo-

res de lojas, ambulantes, consumidores, a grandes nomes como a escritora Clarice Lispector. A Boa Vista também abriga músicos, poetas, artistas plásticos, entre vários outros profissionais, cada qual com suas performances criativas.

[...] Então, tem Recife antigo tem, mas antigo é aqui. Boa Vista é bom, Boa Vista antigo, Boa Vista é boêmio. A gente tem que valorizar a Boa Vista. Botar esse bairro de pé.

Mulher de meia-idade, moradora do bairro da Boa Vista

Importa ressaltar que, nos diferentes pontos de vista acolhidos neste livro sobre a Boa Vista, o lugar é sumariamente múltiplo. Território que se remonta através de diferentes recortes de tempo, de arte, de vida, de sociedade e do espaço.

“Cores vivas, fachadas coloridas, mercadorias penduradas e amontoadas dos ambulantes.”

Mulher jovem, frequentadora do bairro da Boa Vista

“O cheiro, o entardecer, a pluralidade.”

Mulher de meia-idade, moradora do bairro da Boa Vista

Em convivência, o novo e o antigo demonstram as diferentes faces que o bairro possui, como nos foi dito: “Lá tem história, comércio, cultura e gastronomia, tudo ao mesmo tempo, o tempo todo”. A Boa Vista representa tradição, infância e movimento, é “a alma do Recife”.

A Boa Vista, pra muita gente, é também boêmia. Sua atmosfera é bastante reconhecida dessa forma pelos atores sociais. Isso quer dizer que o bairro preza por um modo de vida que é livre e plural, e oferece espaços para se divertir e aproveitar o tempo com amigos, em sociedade. O espírito boêmio está também ligado à presença dos artistas, ativistas, intelectuais e apreciadores da arte e cultura pernambucana que se encontram presentes nas ruas da Boa Vista e do centro histórico do Recife. Na Boa Vista, vários espaços se consolidaram como pontos de encontro para os recifenses, que usufruem de bares, festas, eventos culturais, restaurantes, experienciando essa energia boêmia que existe no bairro.

Isso aqui é uma construção mesmo digamos, e adaptada a essa coisa que é da Boa Vista que é boêmia né, sempre me ligou aqui da Boa Vista é...essa coisa boemia do bairro, é...você encontrar nas esquinas...você vê mesmo os barzinho mesmo da boemia [...]

Mulher, ex-moradora e trabalhadora da Boa Vista

Uma característica constantemente associada à Boa Vista é a presença das artes de rua. No bairro, são encontradas expressões artísticas nas calçadas, muros de edifícios, mobiliários urbanos, entre outros espaços. A arte de rua é lembrada como símbolo da Boa Vista, parte da sua essência. O grafite, o pixo, as pinturas, as esculturas, poe-

sias, dentre outras, se fazem presentes de diversas formas, produzidas pelos mais variados grupos sociais. A Boa Vista é residência de artistas como Paulo Bruscky, Rinaldo Silva, Miró da Muribeca, este último, célebre poeta mundano do dia a dia. Essas pessoas, não somente têm o bairro como local de vivência, como também imprimem o ar artístico que existe no lugar.

Nem tudo são pontos positivos. Toda essa multiplicidade, tanta gente, tantos sentimentos, tantos afazeres, possuem também seus lados negativos. É preciso que os problemas sejam postos ao lado dos aspectos positivos. É importante que reconheçamos que o lugar também é palco de sujeira, mau cheiro, esgotos descobertos, pessoas em situação de pobreza extrema e muitas outras situações difíceis pelas quais a nossa cidadepassa e que precisam ser vencidos coletivamente. Por que a Boa Vista possui esses problemas? Será que a história e as memórias nos contam sobre isso? Quando o bairro deixou de ser frequentado por pedestres, quando deixou de ser preferência para passeio? Será que foi o esquecimento das ruas, das praças e a redução das atividades que antes eram ali realizadas que acentuou a chegada de uma decadência? Por que não viver o bairro como nosso, como parte de nossa história, se nós mesmos sabemos que ele é reflexo de nós mesmos?

A Boa Vista tem o poder de agregar e acolher qualquer pessoa, independente da classe e de suas escolhas. Do exe-

cutivo ao cheira-cola, eles dividem a mesma calçada, espaços comunitários e até, às vezes, o mesmo prédio.

Homem de meia-idade, morador do bairro da Boa Vista

Pensar sobre o bairro, entender quem e o que o compõe nos apresenta respostas, nos faz sonhar sobre ambientes que carregam os processos da sociedade. Por isso é importante que estes sejam aqui trazidos, porque é preciso rememorar aspectos positivos e negativos para reconhecer o que pertence a todo o coletivo e o que é necessário ser modificado para que o lugar se adapte cada vez mais às formas de vida. Atendendo aos reconhecimentos do que a Boa Vista precisa ser para que seja acolhida e acolha a todas e a todos. A Boa Vista é: “Coração da cidade, vida real”.

Um bairro que transborda vida por meio de seu comércio informal, moradores que se conhecem, sobrados históricos e edifícios modernistas. Tem de tudo um pouco. É uma cidade em um bairro.

Mulher jovem, frequentadora do bairro da Boa Vista

A Boa Vista reúne todos, estudantes, trabalhadores, gays, prostitutas, travestis, católicos, evangélicos e ateus, políticos e tatuadores, velhos e jovens, gente de classes sociais diferentes circulam diariamente por aqui. Gente que dorme e trabalha, gente que só passa, gente que ganha o sustento diariamen-

te com gente que consome temporariamente. Velho e novo, antigo e moderno, contemporâneo e decadente, tudo se mistura na Boa Vista. É só nela.

Homem de meia-idade, morador do bairro da Boa Vista, faz parte do grupo LGBTQIA+

O bairro da Boa Vista é lugar de descoberta, de crescimento, amadurecimento, onde as pessoas chegam ao andar pela primeira vez de ônibus, onde conhecem outros tipos de pessoas, outras cabeças, outros olhares, outros pensamentos. Esse bairro é (ou era) o lugar onde o adolescente caminha pelas ruas sozinho pela primeira vez depois de sair da escola. A Boa Vista é a descoberta do Recife da tradição e do movimento. Para muitos, sinônimo de lugar de emancipação e independência.

As cores do bairro da Boa Vista pra mim são azul, amarela e vermelha que estão presentes na Ponte Seis de Março, porta de entrada da Boa Vista, para mim. Lembro de ir com meus pais da estação central, passando pela ponte e pela Rua Velha até chegar na Rua Leão Coroado. Os sabores marcantes da Boa Vista são o pão da padaria Santa Cruz e a pizza da Padaria Imperatriz que sempre me atraem para dar uma passada por ali. Os cheiros marcantes são o da pizza da Imperatriz e do rio Capibaribe.

Mulher jovem, ex-moradora do bairro.

Sendo composta por monumentos, marcos, avenidas, praças, tradições, a Boa Vista por si só recebe associações gerais que lhes conferem importantes valores, significados e memórias, tal como se observa nos relatos apresentados ao longo deste livro.

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