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clarice lispector

A paisagem da Boa Vista foi registrada por muitos a partir da pintura, fotografia, cinema e, no caso de Clarice Lispector, da literatura. Foi no bairro da Boa Vista onde Clarice, escritora ucraniana de origem judaica, passou parte de sua infância, escreveu seus primeiros ensaios e experienciou as práticas da cidade sitiada de maneira intensa e total. Esses acontecimentos sempre estiveram presentes na sua memória e, constantemente, eram referenciados na sua sensível produção literária.

Sua história no bairro tem início em 1925, quando a escritora, aos seus cinco anos de idade, se desloca com a sua família da capital alagoana para a pernambucana, onde se instalou, primeiramente, no sobrado de número 347 (*) da Praça Maciel Pinheiro, seu endereço mais conhecido. Lá, somou-se a outros membros da comunidade judaica, que haviam deixado os seus países de origem em busca de novas oportunidades no Brasil.

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No Grupo Escolar João Barbalho, mencionado na sua crônica “As grandes punições”, aprendeu a ler e escrever e, a partir disso, começou a elaborar os seus primeiros escritos, entre eles, contos para a seção infantil do jornal Diário de Pernambuco, que, infelizmente, nunca foram publicados pois “os outros diziam assim: ‘Era uma vez, e isso e aquilo...’. E os meus eram sensações. [...] Eram contos sem fadas, sem piratas. Então ninguém queria publicar” (IMS, 2004).

Contudo, uma vez adulta, Clarice passou a publicar suas criações e, a partir dos seus textos, foi possível, enfim,

(*) visualização no mapa: item 25.

conhecer as sensações experienciadas por ela durante sua infância. Uma delas era o deslumbramento com o ofício do mascate, profissão de seu pai e de tantos outros judeus residentes da Boa Vista, que julgava ser pouco valorizada pela sociedade:

A figura anônima do mascate de baú nunca foi suficientemente lembrada pelos homens que escreveram sobre a nossa vida, pelos que têm amor às nossas coisas. Nunca se prestou ao mascate a mais humilde homenagem. E bem que o merecia. Porque ele carrega também um pouco de alegria entre as suas bugigangas [...] (LISPECTOR, 2006)

Ela também possuía encanto pelo carnaval. Era a partir da escada da sua primeira casa no bairro que Clarice observava os foliões celebrarem a festa:

Nunca tinha ido a um baile infantil, nunca me haviam fantasiado. Em compensação deixavam-me ficar até umas 11 horas da noite à porta do pé de escada do sobrado onde morávamos, olhando ávida os outros se divertirem. (LISPECTOR, 1998)

Ainda que não pudesse se juntar fisicamente a eles, Clarice possuía uma forte relação com a celebração que é tão característica da cidade:

[...] E quando a festa ia se aproximando, como explicar a agitação íntima que

me tomava? Como se enfim o mundo se abrisse de botão que era em grande rosa escarlate. Como se as ruas e praças do Recife enfim explicassem para que tinham sido feitas. Como se vozes humanas enfim cantassem a capacidade de prazer que era secreta em mim. Carnaval era meu, meu.(LISPECTOR, 1998)

Em outros textos, também mencionou sua relação com as águas da cidade, seu arrebatamento ao visitar o Teatro de Santa Isabel, localizado em Santo Antônio, e suas criancices nas ruas do Recife, que não apenas revelam as vivências próprias da escritora, como demonstram as múltiplas possibilidades de relações afetivas com os elementos materiais, imateriais e naturais de uma cidade.

Em 1976, Clarice visitou o Recife acompanhada de uma amiga e decidiu se hospedar no Hotel São Domingos, estabelecimento que se localizava na Praça Maciel Pinheiro, próximo ao sobrado onde morou. Durante a sua estadia na cidade, ela foi entrevistada pelo Jornal do Commercio e, da conversa, destaca-se o seguinte trecho: “Sabemos que você passou toda a sua infância aqui no Recife, mas o Recife continua existindo em Clarice Lispector?” Ao que ela responde: “Está todo vivo em mim.”

Pode-se afirmar que o inverso também é verdadeiro: a escritora está toda viva em Recife, seja pela eternização das suas lembranças nas suas obras, pelos marcos físicos da sua infância que resistem ao tempo, como a edificação onde cresceu, ou no afeto e memória de quem enxerga o seu próprio Recife a partir das palavras de Clarice.

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