FICHA TÉCNICA Reitora Ângela Maria Paiva Cruz Vice-Reitora Maria de FáHma Freire Melo Ximenes Diretora da EDUFRN Margarida Maria Dias de Oliveira Conselho Editoral Cipriano Maia de Vasconcelos (Presidente) Ana Luiza Medeiros Humberto Hermenegildo de Araújo John Andrew Fossa Herculano Ricardo Campos Mônica Maria Fernandes Oliveira Tânia CrisHna Meira Garcia Técia Maria de Oliveira Maranhão Virgínia Maria Dantas de Araújo Willian Eufrásio Nunes Pereira
Editor
Helton Rubiano de Macedo Capa
Taciana Burgos Revisão
Séfora Cavalcante Editoração eletrônica Tobias Queiroz
Pré-impressão Jimmy Free
Supervisão editorial
Alva Medeiros da Costa Supervisão gráfica
Francisco Guilherme de Santana
Base de Pesquisa Comunicação, Cultura e Mídia Sala COMÍDIA - Laboratório de Comunicação Social, campus da UFRN
APRESENTAÇÃO A reconfiguração da comunicação midiáHca na esfera pública contemporânea vem promovendo uma série de transformações sociais que, de igual modo, possibilita novas reflexões sobre a cultura, a economia, a políHca e a organização da vida coHdiana. Reconhecer esse novo cenário implica problemaHzar questões que envolvem os sujeitos e suas relações com o meio. Tal situação parHculariza uma realidade que necessita ser invesHgada sob diversos aspectos em cujo contexto estão os mecanismos de interação entre os atores sociais e a mídia, do ponto de vista da produção de senHdo e das práHcas sociais. Foi pensando assim que a base de pesquisa Comunicação, Cultura e Mídia gerou vários temas epistemológicos para compreender este novo fenômeno social, reunidos em três eixos: a comunicação, a linguagem e as inovações midiáHcas. Esta é a segunda publicação do nosso grupo, porém com a perspecHva que, inclusive, norteia o presente trabalho: um livro eletrônico, que possibilitará o maior acesso aos arHgos que aqui estão elencados, na perspecHva da democracia do conhecimento. O livro reúne trabalhos de professorespesquisadores e alunos de pós-graduação em níveis de mestrado e doutorado, os quais se uHlizam dos estudos culturais, da economia políHca da mídia, da etnometodologia e da análise do discurso como métodos de invesHgação. A COMÍDIA funciona desde 2003 e tem como principal compromisso desenvolver estudos e pesquisas sobre a comunicação midiáHca e suas interfaces com a cultura, cujos frutos se refletem em suas várias iniciaHvas de natureza cienIfica, tais como: realização de seminários, conferências, colóquios, fomento à iniciação cienIfica, produção de arHgos e publicação de livros. Acreditamos que estamos cumprindo o nosso papel de pesquisadores, com vistas ao engajamento do grupo à comunidade cienIfica. Adriano Gomes Coordenador da Base de Pesquisa Comunicação, Cultura e Mídia
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Divisão de Serviços Técnicos Catalogação da Publicação na Fonte. UFRN / Biblioteca Central Zila Mamede Comunicação, linguagem e inovações midiáHcas / organizadores Adriano Lopes Gomes e José Zilmar Alves da Costa. – Natal, RN: EDUFRN, 2011. 163 p. ISBN 978-85-7273-768-5 1. Comunicação midiáHca. 2. Linguagem. 3. Novas tecnologias. I. Gomes, Adriano Lopes. II. Costa, José Zilmar Alves. RN/UF/BCZM
2011/61
CDD 302.23 CDU 316.774
SUMÁRIO Da leitura do mundo à leitura da palavra: Considerações sobre a formação do leitor no ensino de Comunicação Adriano Lopes Gomes ......................................................................
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O discurso da resistência no espaço poéHco da literatura de cordel: Uma leitura dos eventos discursivo-argumentaHvos sobre o episódio de Lampião em Mossoró - RN Ana Shirley........................................................................................
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Silêncio! A radionovela está no ar Edivânia Duarte Rodrigues.................................................................
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A Folha de S. Paulo, o grande irmão e as Diretas Já Emanoel Francisco Pinto Barreto.......................................................
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Letras de música e seu estatuto de corpus em análise de discurso: anotações metodológicas José Zilmar Alves da Costa.................................................................
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Publicidade e ideologia: a análise do discurso em comerciais publicitários Josenildo Soares Bezerra....................................................................
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O discurso ecológico nos quadrinhos de Chico Bento Marcilia Luzia Gomes da Costa Mendes............................................. 104 Estratégias narraHvas do BBB 3: Do anonimato à fama Mirian Moema Pinheiro..................................................................... 119 Comunicação e Hospitalidade no Ciberespaço Ronaldo Mendes Neves..................................................................... 131 A comunicação gráfica na interface de hipermídia e seus atributos de usabilidade Taciana de Lima Burgos...................................................................... 143 Comunicação, Linguagem e Inovações MidiáHcas
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Da leitura do mundo à leitura da palavra: Considerações sobre a formação do leitor no ensino de Comunicação Adriano Lopes Gomes1
1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS As políHcas de leitura vêm sendo discuHdas nos diversos segmentos da educação, destacando-se a sua relevância para a aquisição do conhecimento, da cultura, do saber e da conscienHzação políHca, face aos desafios do mundo. Saber ler tornou-se, pois, condição indispensável para o acesso a qualquer área do conhecimento e, mais ainda, à própria vida do ser humano, uma vez que a leitura apresenta função uHlitária e transformadora da sociedade. Porém, pesquisas indicam que a falta de leitura não se concentra apenas no ensino fundamental, mas prossegue no ensino médio e, por efeito dessa constatação, alcança o ensino superior. Sendo assim, nem sempre é correto acreditar que o aluno chega à universidade adotando práHcas sistemáHcas de leitura. Este trabalho procura idenHficar as possíveis relações entre as experiências de leitura na formação do jornalista, além de reunir informações que respaldam nosso postulado sobre a necessidade de se adotar políHcas de leitura no ensino da Comunicação. Como base empírica das análises e reflexões, ainda apresenta os resultados da pesquisa As interfaces da leitura de noIcia no ensino de jornalismo: um estudo etnometodológico entre Brasil e Portugal, realizada entre 2004 e 2006. AdmiHmos que haja uma lacuna quanto ao diagnósHco do estado de leitura dos alunos de Comunicação Social – habilitação em jornalismo, futuros formadores de opinião, de quem se espera a competência para saber ler e escrever2. Tais requisitos recaem sobre a formação de leitores críHcos e Comunicação, Linguagem e Inovações MidiáHcas
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experientes para traduzir, em textos, a realidade social em que vivem e atuam, cujo contexto nos autoriza afirmar que a formação do jornalista tem estreita relação com a formação do leitor. No levantamento que fizemos, não conseguimos idenHficar estudos semelhantes no Brasil que pudessem relacioná-los ao estado da arte. Em Portugal, convém destacar a invesHgação de Pinto e Marinho (2005) sobre práHcas e aHtudes face aos media dos estudantes de jornalismo: um estudo de caso na Universidade do Minho. O aluno de jornalismo que exerce domínio sobre seu objeto de conhecimento, através de práHcas de leitura, é capaz de agregar os requisitos de que necessita para sua emancipação e autonomia no âmbito educacional e social. Emancipação, porque o aluno encontrará na leitura o suporte de informação e experiência, permiHndo-lhe o estatuto da criHcidade por estabelecer parâmetros de referência à diversidade de episódios que exigirão julgamento e tomada de decisão própria. Autonomia, porque a leitura apontará uma série de possibilidades que caracterizarão o leitor como aquele que sabe empreender a busca necessária ao conhecimento e à aprendizagem na hora e tempo em que precisa, de forma voluntária e consciente. A despeito disso, convém ainda assinalar as interfaces da leitura na produção da noIcia, razão pela qual defendemos que o aluno de jornalismo deve recorrer aos textos de natureza diversa, notadamente de jornais, de onde se podem reunir informações estruturais e técnicas para elaborar as matérias. Silva (1992, p. 42) enfaHza que a leitura está inHmamente relacionada com o sucesso acadêmico do ser que aprende, e, contrariamente, à evasão escolar. Mais adiante, o autor conclui que escrever e ler são atos complementares: um não pode exisHr sem o outro (idem, p. 64). Sendo assim, para escrever bem, esse aluno terá na leitura o suporte do conhecimento a ser armazenado em sua memória de longo prazo (SMITH, 1989; LENCASTRE, 2003), na organização do repertório lexical e semânHco, à semelhança de fontes matriciais. Por tal moHvo, defendemos que ler é estabelecer relações entre o texto e o conteúdo sistemaHcamente internalizado sob a forma de conhecimentos. Abordamos a questão do conhecimento como resultado de experiências que se sobrepõem àquilo que se é e já se sabe. Essa ideia reforça nossa concepção de que a práHca da escrita também pode estar atrelada às expe8
Adriano Lopes Gomes/Da leitura do mundo à leitura da palavra: Considerações sobre a formação do leitor no ensino de Comunicação
riências de leitura. 2 EXPERIÊNCIA E LEITURA: SABER NARRAR O ACONTECIMENTO A concepção de experiência é aqui adotada no senHdo pragmáHco que pressupõe a aquisição de informações por meio da vivência no mundo, relacionando-se com o meio e com os objetos portadores de significados, daí extraindo conhecimentos múlHplos que alicerçam as práHcas coHdianas de cada indivíduo. Experiência e conhecimento se complementam quando abordamos questões do desenvolvimento cogniHvo em face da funcionalidade que ambos apresentam na formação do leitor. São funcionais à medida que revelam uHlidade no ato de estabelecer a compreensão de si mesmo, do outro e do mundo que cerca esse leitor em conInuo processo de formação. A psicolinguísHca toma por base a teoria da informação que postula a relação proporcional entre quanHdade de informações e eliminação de incertezas na veiculação de uma mensagem. Convém definir informação como a medida de redução de incertezas sobre um determinado estado de coisas pela eliminação de alternaHvas improváveis (SMITH, 1989, p. 71) e por apresentar sempre uma taxa de novidade ao receptor. Se ler implica idenHficar conceitos e palavras cujo acervo reside na memória, isto significa dizer que quanto maior o armazenamento de informações, mais ampla será a relação entre o que é lido e, simultaneamente, compreendido. Ressaltamos tais pressupostos para relacionar a relevância da leitura no ensino de Comunicação, reforçando a acepção de que o jornalista é, em primeira instância, um observador e relator dos fatos. Ora, narrar histórias do coHdiano sempre esteve associado à aHvidade do jornalista, empenhado em descrever os episódios para transmiH-los a uma comunidade de interlocutores que não presenciaram os acontecimentos. Rodrigues (apud Traquina, 1993, p. 27) assinala que o acontecimento situa-se [...] na escala das probabilidades de ocorrência, sendo tanto mais imprevisível quanto menos provável for sua realização. Por tal moHvo, a “estória” apresenta uma novidade, fugindo da previsibilidade, para se caracterizar como algo novo, assumindo, assim, o status de noIcia. Nesse senHdo, revela-se o caráter da profissão, pautado pelo ato de narrar os fatos. O mundo torna-se, pois, o Comunicação, Linguagem e Inovações MidiáHcas
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grande cenário sobre o qual o jornalista vai atuar para daí recolher os fragmentos da realidade e publicá-los na mídia. Queremos, com isso, defender nosso ponto de vista sobre o qual atestamos a eficácia da leitura como experiência de modo a recolher as informações do mundo cujo conteúdo será o substrato para se poder contar as histórias. Tuchman (1993) afirma que as noIcias são construções, narraHvas, “estórias”. Se assim o é, a um bom narrador será requisitado conhecimento acumulado que se consolida na vida práHca. Traquina (2000, p. 27) cita Ericson, Baranek e Chan3 para falar sobre o chamado “vocabulário de precedentes”, ou seja, os saberes necessários para um bom desempenho profissional. Dentre os quais, o autor menciona o “saber de narração”, ao esclarecer que consiste na capacidade de compilar todas essas informações [que orientam para elaboração de uma boa noIcia] e ´empacotá-las´ numa narraHva noHciosa. Por tudo exposto, parece tautológico afirmar que só se conta uma boa história quem sabe o quê e como contar. 3 AS REPRESENTAÇÕES DE LEITURA NA AQUISIÇÃO DO CONHECIMENTO: RESULTADOS DA PESQUISA A pesquisa As interfaces da leitura de noIcia no ensino de jornalismo: um estudo etnometodológico entre Brasil e Portugal4, pretendeu fazer um estudo comparaHvo com alunos do curso de Comunicação Social de duas universidades públicas: Universidade Federal do Rio Grande do Norte, situada geograficamente na cidade do Natal-RN, Brasil, e da Universidade Nova de Lisboa, na cidade de Lisboa, Portugal. Procurou problemaHzar questões que incidem sobre o ensino de Comunicação, tentando idenHficar as possíveis relações entre as experiências de leitura e o desempenho acadêmico, decorrendo daí a delimitação do perfil de leitor entre os sujeitos pesquisados. Tratou-se, pois, de um estudo etnometodológico, comparaHvo, de base quanHtaHva e qualitaHva, a parHr do qual Hvemos a intenção de saber junto aos alunos de jornalismo, dentre outras variáveis, a frequência e o gosto pela leitura, a opção pelo veículo – impresso ou digital –, a capacidade de compreensão das noIcias, as editorias e assuntos jornalísHcos mais apreciados, 10
Adriano Lopes Gomes/Da leitura do mundo à leitura da palavra: Considerações sobre a formação do leitor no ensino de Comunicação
os significados atribuídos à leitura de jornal na vida acadêmica, além dos diversos suportes de leitura. AdmiHmos que essas representações de leitura caracterizam a formação universitária e podem sinalizar determinadas conHngências para o futuro da aHvidade jornalísHca. Os sujeitos foram alunos de jornalismo, de ambos os sexos, selecionados aleatoriamente da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), e da Universidade Nova de Lisboa (UNL). O espaço amostral totalizou 102 alunos da UFRN, e 60 alunos da UNL, cuja abordagem metodológica consisHu na aplicação de um quesHonário com 41 questões semiestruturadas. Os sujeitos foram compostos por 37, 25%, do sexo masculino, 62,75% do sexo feminino (Brasil); e 18,33% do sexo masculino, 81,66% do sexo feminino (Portugal), sendo que a maioria possuía idade entre 21 e 25 anos (48,02%, Brasil; 50%, Portugal). Quanto à ocupação, 57,84% (Brasil) e 10% (Portugal) disseram que trabalham ou fazem estágio, e os demais informaram dedicação integral aos estudos. Com estes números gerais, podemos observar que tanto no Brasil quanto em Portugal o interesse pela carreira jornalísHca está atualmente voltado à população jovem feminina, reconfigurando uma situação de algum tempo atrás, nos dois países, onde se era possível ver as redações de jornais, emissoras de rádio e de televisão ocupadas quase exclusivamente por profissionais do sexo masculino. Os sujeitos pesquisados revelaram interesse pela leitura, o que reforça a concepção de que ler é uma aHvidade prazerosa, além de conferir status social. Quase todos os entrevistados disseram que gostam de ler (99,02%, Brasil; 100%, Portugal), argumentando que esta é uma das formas de ampliar os horizontes de conhecimento, pois a leitura, além de deixá-los informados e atualizados sobre o que acontece no mundo, ainda é uma práHca “agradável”, “diverHda” e “prazerosa”. As respostas mostram a natureza uHlitária e o caráter lúdico da leitura, pois inferimos que os sujeitos demonstram interesse por ler para adquirir informações, situarem-se no contexto coHdiano dos acontecimentos, mas também por proporcionar estados de fruição. Quanto à leitura de jornal, considerada como relevante aos alunos de jornalismo, mereceu uma análise mais detalhada, por envolver textos com os quais irão se deparar nas suas roHnas profissionais, já na condição de produtores Comunicação, Linguagem e Inovações MidiáHcas
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de noIcia. Portanto, a leitura de jornal, além de favorecer a apreensão dos acontecimentos noHciosos, ainda permite adquirir formas e esHlos de produção textual. À pergunta “você lê jornal?”, 94,12% (Brasil) e 98,33% (Portugal) disseram que sim; 5,88% (Brasil) e 1,66% (Portugal) afirmaram que não. No Brasil, a maioria revelou interesse por noHciário local (81,37%), seguido de noHciário nacional (66,67%). Já em Portugal a situação é diferente: 85% disseram que se interessam mais por noHciário nacional e 71,66%, por cultura. A proximidade geográfica com o acontecimento é um dos valores-noIcia sobre os quais os consumidores de noIcia (news consumers) têm maior interesse, conforme um dos princípios da aHvidade jornalísHca. Horóscopo e Classificados são os assuntos menos lidos pelas duas amostras. Entendemos que, nos dois países, as páginas de classificados são lidas em menor proporção em razão da sua função imediata de informar, vender, trocar uma diversidade de bens e objetos, nem sempre na ordem de prioridade diária dos sujeitos pesquisados. O que merece atenção é a disparidade estaIsHca entre Brasil e Portugal no que respeita à leitura da editoria de economia, cujos dados indicam que nos dois países leem-se menos assuntos desse segmento noHcioso. Porém, em Portugal os números são consideravelmente menores (1,66%), o que nos leva a acreditar que tal realidade reflete na questão da densidade lexical e semânHca, própria da linguagem adotada nos textos de economia. Ou seja, há dificuldades de compreender o que, de fato, as noIcias de Economia querem dizer, o que demanda do leitor um conhecimento prévio sobre aquilo que é abordado em suas páginas. A dificuldade de compreensão, neste caso, pode gerar desinteresse. No tocante à dificuldade para compreender determinados assuntos editoriais, 34,31% (Brasil) e 31,66% (Portugal) disseram que sim, ou seja, que enfrentam problemas de compreensão, sendo que as duas amostras encontram maior dificuldade em Economia (27,45%, Brasil; 28,3%, Portugal); PolíHca (14,71%, Brasil; 8,33%, Portugal) e Internacional (7,84%, Brasil; 8,33%, Portugal). Estes indicadores fazem emergir uma problemáHca sobre o ensino de jornalismo especializado, posto que na grade curricular do curso de Comuni12
Adriano Lopes Gomes/Da leitura do mundo à leitura da palavra: Considerações sobre a formação do leitor no ensino de Comunicação
cação Social – habilitação em jornalismo, da UFRN e da UNL, não há disciplinas como “jornalismo econômico” e “jornalismo políHco”, as quais, pelo que deduzimos, poderiam ser necessárias para desfazer ou pelo menos clarificar tais dificuldades de interpretação de noIcias com conteúdos tão específicos, além de capacitá-los a produzir textos daquela natureza. Na UNL, diferentemente da UFRN, há disciplinas voltadas para as teorias da economia e da políHca. A compreensão é um fenômeno decorrente da leitura que reside na capacidade de se atribuir senHdos ao objeto lido. Recorrendo aos aportes da psicolinguísHca, podemos dizer que a compreensão é fruto do conhecimento armazenado na memória de longo prazo do leitor (SMITH, 1999; LENCASTRE, 2003; KATO, 1999). Devemos entender, contudo, que a leitura de um texto jornalísHco está inserida no sistema de representações que irrompe uma convenção própria de quesHonamentos para daí se inferir o senHdo dos acontecimentos narrados. Assim sendo, a experiência será necessária ao ato da leitura, uma vez que o conhecimento prévio auxiliará o leitor no momento de quesHonar o texto para poder desvelar os significados nele intrínsecos. Contudo, entendemos que a experiência não ocorre senão por meio da sistemaHzação de determinada aHvidade que demanda tempo, interesse e moHvação. Se os sujeitos pesquisados demonstram dificuldades de compreender assuntos como economia e políHca, acreditamos que se deve ao fato de exigir do leitor um repertório de informações específicas nessa área de conhecimento, muitas vezes inacessíveis. Quanto à “frequência de leitura” de jornais impressos, os entrevistados responderam o seguinte: Diária (40,2%, Brasil; 16,6%, Portugal); Algumas vezes na semana (37,25%, Brasil; 56,6%, Portugal); Semanal (11,76%, Brasil; 15%, Portugal); Eventual (3,92%, Brasil; 10%, Portugal). Perguntamos ainda aos sujeitos sobre as preferências midiáHcas no senHdo de deixá-los informados. ObHvemos as seguintes respostas de múlHpla escolha: Ler jornais impressos (54,9%, Brasil; 50%, Portugal); AssisHr aos telejornais (74,51%, Brasil; 80%, Portugal); Acessar à Internet (69,62%, Brasil; 21,66%, Portugal); Ouvir rádio (25,49%, Brasil; 23,3%, Portugal). Os números nos mostram a semelhança entre os dois países, exceção Comunicação, Linguagem e Inovações MidiáHcas
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feita à opção “acessar à internet” que apresentou desequilíbrio estaIsHco, a parHr dos quais podemos afirmar que os alunos de jornalismo do Brasil preferem ficar informados através da rede mundial de computadores, possivelmente lendo os jornais em versão online ou acessando aos portais de noIcia ou, de outra forma – e em números que se aproximam –, assisHndo aos telejornais. Os estudantes de jornalismo de Portugal também preferem assisHr aos telejornais, mas como segunda opção está a leitura de jornais impressos. Os números parecem indicar que os fatores como dificuldade de acesso e preço dos jornais nacionais, no Brasil, geram a desproporcionalidade. A Folha de S. Paulo e O Globo, apesar de serem referência no país, são pouco lidos pelos alunos em Natal, o que jusHfica a recorrência aos telejornais e à internet como meios de informação. Em Portugal, pelas dimensões geográficas, os jornais nacionais naquele país estão mais ao alcance dos alunos, razão pela qual entendemos o baixo índice de sujeitos que acessam à internet para se informar, uma vez que não há necessidade para que tal aconteça, não obstante reconheçamos que uma situação não invalida a outra. Ainda sobre a sistemaHzação da leitura, perguntamos: “Algo o impede de ler jornal diariamente?”. 62,75% (Brasil) e 63,3% (Portugal) disseram que sim. As jusHficaHvas foram estas: Não tenho tempo (37,25%, Brasil; 43,33%, Portugal); Prefiro me ocupar com outra aHvidade (2,9%, Brasil; 1,66%, Portugal); Não tenho dinheiro para comprar (22,25%, Brasil; 26,6%, Portugal). Os dados indicam que os alunos de jornalismo do Brasil e de Portugal, em sua maioria, gostam de ler jornais. Porém, afirmam que não dispõem de tempo – possivelmente por ocupações de trabalho ou de estágios extracurriculares, no caso do Brasil; e outras ocupações não reveladas, em Portugal, de acordo com os números indicados –, ou dinheiro para comprar jornais diariamente. É lícito retomar a questão da leitura de jornal como forma de apreensão do conhecimento e da estrutura da narraHva, abordada anteriormente. RaHficamos o pressuposto de que os alunos de jornalismo devem se acostumar com a linguagem escrita nos jornais como forma de organizar seus próprios textos e que obedeçam a determinados critérios técnicos e esHlísHcos. Traquina (2000, p. 27) assinala que “as noIcias são elaboradas com a uHliza14
Adriano Lopes Gomes/Da leitura do mundo à leitura da palavra: Considerações sobre a formação do leitor no ensino de Comunicação
ção de padrões industrializados, ou seja, formas específicas que são aplicadas aos acontecimentos, por exemplo, a pirâmide inverHda”. Por isso, não é apenas a teoria do mundo (cf. SMITH, 1999) que entra em discussão no ato da leitura, mas questões práHcas que implicam nos desdobramentos da competência acadêmica e profissional. 4 POR UMA POLÍTICA DE LEITURA NO ENSINO DE COMUNICAÇÃO Com esta pesquisa, vimos que a representação de leitura é proporcionalmente significaHva aos objeHvos e finalidades que se apresentam aos alunos, ou seja, se terá função uHlitária, se atenderá às exigências dos exames de qualificação, se proporcionará momentos de diversão, prazer, ou ainda por necessidade da escolha profissional. Os sujeitos pesquisados reconhecem que ler confere status social e é fundamental para que eles se situem numa sociedade letrada, em contato com inúmeros canais de informações, por experimentarem os efeitos que a leitura possibilita. Entretanto, observamos que a leitura ainda é desafio ao culHvo diário e sistemáHco, quer de livros quer de jornais. A literatura, enquanto produto estéHco e de prazer, e revistas de gêneros variados demonstraram ser primordiais ao desenvolvimento do gosto pela leitura, em razão do elevado percentual na ordem de interesses dos sujeitos. Ainda assim, a televisão é a mídia que eles recorrem com maior frequência para ficar informados, não obstante declararem que
gostam de ler e que uma parte acessa a internet. Inferimos que assisHr ao telejornal indica o apelo imagéHco da televisão que termina por concentrar maior interesse em relação aos jornais impressos. Observamos que no processo de formação do jornalista, nas duas universidades, as experiências de leituras estão imersas não só no ambiente acadêmico, mas fora do contexto universitário, notadamente no seio familiar ou nos ambientes públicos. É legíHmo afirmar também que a apropriação de novos conhecimentos amplia o repertório de leitura e altera o comportamento metacogniHvo, isto porque os sujeitos declararam que a leitura promove a aprendizagem e os deixa mais cultos. É provável que o reconhecimento da leitura como base de formação Comunicação, Linguagem e Inovações MidiáHcas
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profissional pode levar os aprendizes à condição de atores sociais que a idenHficam como fonte de criHcidade, de prazer, de construção de valores pessoais e sócio-históricos, além de parâmetros de referenciação que possibilitam reunir as informações para escrever e narrar uma noIcia, cujo texto refleHrá sua capacidade de observar o mundo e desempenhar as funções de jornalista. NOTAS 1 -Professor do Departamento de Comunicação Social e dos Programas de Pós-graduação em Estudos da Mídia - PPgEM e Estudos da Linguagem – PpgEL da UFRN. Coordenador da Base de Pesquisa Comunicação, Cultura e Mídia. 2 - Quando evidenciamos aqui a questão de “saber ler” não se entenda a situação de decodificar palavras e frases, porém compreender os textos para além das linhas, idenHficando elementos informacionais que não são tangíveis na materialidade gráfica. 3- Ericson, Richard V.; Baranek, Patrícia M.; e Chan, Janet B. (1987). Visualizing Deviance: A study of News Sources. Toronto: University of Chicago Press. 4 - Quando nos referirmos ao Brasil, entenda-se, portanto, à população de sujeitos pesquisados, limitada à amostra dos alunos de jornalismo da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, tanto quanto a Portugal, cujo estudo foi circunscrito aos alunos da Universidade Nova de Lisboa, em Lisboa. REFERÊNCIAS KATO, Mary. O aprendizado da leitura. 5.ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999. (Texto e Linguagem). LENCASTRE, Leonor. Leitura. A compreensão de textos. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, Fundação Para a Ciência e Tecnologia, 2003. MARINHO, S. & PINTO, M. O papel do acompanhamento da atualidade na selecção e valorização dos acontecimentos: um estudo de caso. Comunica16
Adriano Lopes Gomes/Da leitura do mundo à leitura da palavra: Considerações sobre a formação do leitor no ensino de Comunicação
ção apresentada no IV SOPCOM, Universidade de Aveiro, 21 de Outubro de 2005. RODRIGUES, Adriano Duarte. O acontecimento. In TRAQUINA, Nelson. Jornalismo: questões, teorias, ‘estórias’. Lisboa: Vega, 1993. SILVA, Ezequiel Theodoro da. De olhos abertos: reflexões sobre o desenvolvimento da leitura no Brasil. São Paulo: Ática, 1991. ______. O ato de ler: fundamentos psicológicos para uma nova pedagogia da leitura. 6. ed. São Paulo: Cortez, 1992. ______. Criticidade e leitura: ensaios. Campinas, SP: Mercado de Letras: Associação de Leitura do Brasil, 1998. (Coleção Leituras no Brasil). SMITH, Frank. Compreendendo a leitura: uma análise psicolinguística da leitura e do aprender a ler. 3. ed. Tradução por Daise Batista. PortoAlegre: Artes Médicas, 1989. ______. Leitura Significativa. Tradução por Beatriz Affonso Neves. 3. ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 1999. Traquina, Nelson. Jornalismo: questões, teorias, ‘estórias’. Lisboa: Vega, 1993. (Coleção comunicação e linguagem) ______. O estudo do jornalismo no século XX. São Leopoldo, RS: Editora Unisinos, 2001. Insular, 2004. ______. O poder do agendamento: análise e textos da teoria do agendamento. Lisboa: Minerva, 2000. TUCHMAN, Gaye. Contando ‘estórias’. In TRAQUINA, Nelson. Jornalismo: questões, teorias, ‘estórias’. Lisboa: Vega, 1993 Comunicação, Linguagem e Inovações MidiáHcas
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O discurso da resistência no espaço poéHco da literatura de cordel: Uma leitura dos eventos discursivoargumentaHvos sobre o episódio de Lampião em Mossoró - RN Ana Shirley de Vasconcelos O. E. Amorim1
1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS Conforme BakhHn (1992), a língua é fator social vinculada à realidade sócio-histórica do sujeito. Nesse senHdo, ela é algo concreto, resultado da manifestação individual de cada falante no ato da enunciação. Desse modo, o filósofo russo atribui à situação enunciaHva o caráter de pano de fundo para se compreender e explicar a estrutura semânHca de qualquer ato de enunciação, seja oral ou escrito. Observamos que segundo a óHca bakhHniana a concepção de língua transcende as concepções tradicionais de linguagem na medida em que coloca em cena a interação verbal como fator preponderante do uso da língua por seus falantes. Diante do exposto, é possível depreendermos que é por meio da enunciação que os humanos interagem entre si, no interior de certo processo dialógico com papéis sociais bem definidos, a parHr de um tempo e de espaço delimitados. Sob esse ponto de vista, a teoria bakhHniana, ao inserir o indivíduo em um processo de interação verbal e enfaHzar que é na comunicação (enunciação) o lugar onde nasce a intersubjeHvidade humana, adota a visão de signo dialéHco, em divergência ao signo linguísHco Saussuriano. Enquanto que para Saussure (1969), a língua é um sistema social abstrato, monológico, homogêneo desvinculado da realidade contextual do sujeito na perspecHva de BakhHn (1992), o sistema linguísHco não é neutro, desprovido de uma ide18
Ana Shirley /O discurso da resistência no espaço poéHco da literatura de cordel: Uma leitura dos eventos discursivo-argumentaHvos sobre o episódio de Lampião em Mossoró - RN
ologia, ele é vivo, dinâmico, relacionado com o contexto e submerso numa ideologia. A enunciação não é um ato individual, mas social. Ainda para o pesquisador russo, o individual e o social são indissociáveis. “os senHdos existentes na sociedade são concreHzados em textos pelos discursos, repassando uma ideologia, o texto é, portanto, a materialidade do discurso” (CUNHA 2004, p. 95). Por isso, língua e ideologia são inseparáveis das condições materiais de existência do ato enunciaHvo e do processo de interação verbal que se manifesta, por meio do discurso, pois “A situação social mais imediata e o meio social mais amplo determinam completamente, e por assim dizer, a parHr do seu próprio interior, a estrutura da enunciação” (BAKHTIN, 1992, p. 113). Essa visão da linguagem nos leva a crer que o dialogismo proposto por BakhHn (1992) é parte inerente da interação social. Nesse senHdo, enquanto sujeitos, estamos inseridos numa teia de relações socialmente determinada na qual o ato dialógico, entendido como o espaço de tensão, de confronto entre o “eu e o outro” estabelece, além das relações de senHdos diversos entre índices sociais de valor, estabelece também, outros processos discursivos (dialógicos), é o caso da mulHplicidade de vozes que falam paralelamente inseridas no tecido das relações sociais. Ao refleHr sobre o discurso escrito, percebemos que na materialidade textual não há apenas a presença única da voz do seu produtor, mas há vozes plurais que se configuram a parHr de perspecHvas e pontos de vistas diversos. Em conformidade com BakhHn, o texto escrito “é parte integrante de uma discussão ideológica em grande escala: ele responde a alguma coisa, refuta, confirma, antecipa as respostas e objeHva potenciais, procura apoio e etc.” (BAKHTIN, 1992, p. 123). Nesse caso, considerando que a enunciação do “eu” está sempre relacionada e condicionada pelo outro, e que o discurso argumentaHvo somente se estabelece na interação do par “EU-TU” na qual as forças ideológicas dos sujeitos enunciaHvos se definem e as relações de senHdo aparecem, entendemos que os textos escritos os quais compõem nosso corpus apresentam também uma natureza argumentaHva. De acordo com Koch (1987, p. 19), “o Comunicação, Linguagem e Inovações MidiáHcas
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homem por meio do discurso, a ação verbal dotada de intencionalidade, tenta influenciar o comportamento alheio ou fazer com que o outro comparHlhe suas ideias”. Em se tratando do gênero noIcia, universo de nossa pesquisa, verificamos que convencionalmente essa produção textual é concebida pela óHca da neutralidade em que ocorre o relato imparcial de fatos e acontecimentos recentes. Em virtude disso, a sua produção e a sua recepção, por exemplo, criam para o enunciador o compromisso de assegurar o valor de verdade do conteúdo proposicional do texto. Para o produtor, a noIcia vincula o compromisso de confiança do leitor no valor de verdade do acontecimento relatado nela. Perante essa definição do gênero em questão, entendemos que sua intenção comunicaHva seja informar de maneira imparcial, clara e objeHva; quanto aos papéis conferidos aos sujeitos, imaginamos uma relação distanciada; já a cena enunciaHva varia de acordo com o Hpo de acontecimento sendo reportado; e, finalmente, em relação às convenções, podemos pensar no texto escrito como produto acabado, cristalizado, objeHvo, com forte coesão lexical para evitar redundâncias; entre outros. Conforme esses fatores, o texto noHcioso é trabalhado com padronização, obedecendo a regras rígidas impostas pelos manuais de comunicação, com sua estrutura definida (relatar o fato mostrando o que aconteceu, quando e onde aconteceu), por meio de uma linguagem impessoal e formal. Com os avanços ocorridos nos estudos da linguagem e da comunicação, em especial, com as pesquisas realizadas na área da Análise do Discurso, no campo dos gêneros textuais, e com o surgimento da Teoria do Agendamento postulada por McCombs e Shaw (1972) a qual pressupõe haver uma correlação entre a agenda de mídia e a agenda do público, atualmente, passamos a compreender a produção escrita do texto noHcioso não mais como um produto cristalizado, fechado em si, mas como resultado de uma formação ideológica inserida num dado contexto e num determinado espaço discursivo. Desse modo, a noIcia deixa de ser mero produto linguísHco e passa a ser apreciada através do encontro entre discursos “já ditos”, visto que o seu dizer nasce com base no confronto com outras formações discursivas. 20
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Não obstante, Marcuschi (2002, p. 29) aponta para a impossibilidade de caracterizar os gêneros como “formas estruturais estáHcas”. BhaHa (2000, p. 148), seguindo uma linha de raciocínio semelhante, defende que apesar de um gênero está, de certa forma, preso a convenções e expectaHvas linguísHcas, ele está sujeito a manipulações por parte de membros da comunidade praHcante desde que o domine bem. É o caso das noIcias veiculadas nos jornais da época e na mídia atual sobre a resistência de Mossoró ao bando de Lampião no ano de 1927. Ao analisarmos o discurso escrito sobre o episódio, observamos traços bem demarcados do discurso persuasivo. Além disso, é importante dizer que tendo em vista que a nossa invesHgação possui como preocupação discuHr o funcionamento da linguagem em uso nas diferentes esferas das aHvidades sociais, com a finalidade de analisar os recursos argumentaHvos do discurso. Assim, faremos um percurso teórico sobre a argumentação com o propósito de delimitar importantes pressupostos dessa teoria. Optamos pela TAD por percebermos que os discursos que compõem nosso corpus representam o posicionamento dos oradores, materializado nas suas formações discursivas. Por sua vez, ao tomar determinadas posições, esses sujeitos recorrem, nem sempre de modo consciente, às estratégias argumentaHvas para defender um ponto de vista e provocar a adesão dos interlocutores. Assim, preocupamo-nos em ler esses discursos como analistas, invesHgando os efeitos de senHdo sugeridos por essas estratégias na construção do texto com o intuito de obter a adesão do auditório. 2 A GÊNESE DA LITERATURA DE CORDEL NO BRASIL No Brasil, a origem da Literatura de cordel é revesHda de alguns pressupostos históricos cuja atmosfera é obscura. Maxado (1980) e Cascudo (1984) afirmam que a literatura oral, na qual estão situados os cordéis, sofreu influências europeias. Todavia, Maxado assegura que foram os índios os pioneiros dessa comunicação, pois os portugueses quando aqui chegaram já encontraram os indígenas com suas lendas e costumes. Para o autor, tanto o índio quanto o português e o africano originaram as manifestações culturais do povo brasileiro. Cascudo raHfica que a literatura oral brasileira se formou Comunicação, Linguagem e Inovações MidiáHcas
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a parHr de elementos trazidos por essas três raças, entretanto, dos portugueses, vieram os trovadores, que divulgaram canções, adivinhas, provérbios, anedotas, cantos, com a finalidade de informar e formar o povo brasileiro. Assim sendo, somente com a chegada desses povos foi que as formas de comunicação oral desenvolveram-se rapidamente. Além da herança lusitana, o romanceiro nacional também encontra vesIgios na cultura popular dos países hispano-americanos como assevera Diégues Júnior (apud BATISTA, 1997): É evidente que o romanceiro que nos veio de Portugal não era exclusivamente lusitano; aí tinha chegado por várias fontes. Era assim peninsular, tanto que se divulgou também nas partes de colonização espanhola da América. [...] Também na área de origem espanhola os versos que correspondiam ao português na literatura de cordel igualmente aparecem, do que ainda hoje persistem alguns traços. Na Espanha, a literatura de cordel era chamada de pliegos sueltos, o que corresponde à denominação também portuguesa de ‘folhas volantes’ (DIÉGUES JÚNIOR, apud BATISTA, 1977, p. 1).
Soler (1995), de acordo com Gomes (2007, p. 67), enfaHza a ascendência árabe no folclore do sertão brasileiro, elucidando traços daquela cultura na região Nordeste, desde a colonização do Brasil por um processo que aquele autor denomina de “transmigração de costumes do povo europeu”. Diégues Júnior (1977) relata em seus estudos que os primórdios da literatura de cordel estão ligados à divulgação de histórias tradicionais, narraHvas de velhas épocas, que a memória popular foi conservando e transmiHndo. Essas narraHvas são os conhecidos romances, novelas de cavalaria ou romanceiro popular de origem ibérica. Assim, ouviam-se através do romanceiro popular e das novelas de cavalaria, contadas e recontadas pelos colonos que aqui chegavam, as narraHvas tradicionais como: a História da Princesa Mangalona, Carlos Magno e os Dozes Pares da França, Oliveiros, Ferrabrás, A Donzela Teodora, A História da Imperatriz Porcina, João de Calais, dentre outras (CASCUDO, 1984, p. 24). Por influência de Portugal, em nosso país, a expressão cordel passou a ser empregada comumente, porém, Souto Maior (s.d), em seus estudos sobre 22
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o tema discorda do termo uHlizado uma vez que para ele essa nomeação não condiz com as caracterísHcas regionais do país. Conforme o autor, o vocábulo ‘cordel’, palavra importada, provençal, nunca foi usado pelo nordesHno referindo-se a cordão. Na visão do referido autor, o povo materializa sua poesia popular em versos através de folhetos, da mesma maneira que a literatura erudita é materializada por meio de livros. Nesse senHdo, ele propõe chamála de literatura popular em verso ou literatura popular nordesHna. De acordo com Campos (1960) “os folhetos são os mais autênHcos transmissores do conhecimento, cujos textos possuem um caráter criador, espontâneo, informaHvo e expressivo” (apud OLIVEIRA, 1981, p. 22). Os folheHnistas, de modo geral, versam sobre acontecimentos locais e nacionais. Eles analisam fatos que aconteceram ou ainda estão acontecendo, quer sejam da esfera social, políHca, religiosa, cienIfica, entre outras. Informam sobre crimes e monstruosidades, secas, enchentes, devastamentos florestais, corrupção, etc. Retratam, também, os costumes, as aHtudes, as preferências e os julgamentos do homem nordesHno. Os cordéis, conforme Diegues Júnior, “atuam como jornal do sertão, líder de opiniões, interpretador dos acontecimentos do país e do mundo” (s.d, p. 22). Desse modo, consHtuem-se em valiosas fontes de pesquisa, de informações de interesse histórico, etnográfico, linguísHco e sociológico. Neles são registrados feitos heróicos [ou não], dos cangaceiros célebres e dos sertanejos valentes, a vida dos fazendeiros e suas filhas, dos senhores de engenho, além das histórias de amor que retratam as aventuras dos amantes apaixonados e sofredores representados na maioria das vezes por filhas de fazendeiros, senhores de engenho, vaqueiros, pescadores, caçadores, cangaceiros, enfocando a coragem, a bravura e o heroísmo dos namorados. Os assuntos desses poemas são expressos em forma de versos, com estrofes métricas e rimas constantes, geralmente, são escritos em sexHlha, sepHlha e décimas. As mensagens são elaboradas e transmiHdas a um público específico, parHcipam do mundo e das vivências do povo. Imprimem seu modo de vida, seus costumes, crenças e tradições. O poeta, por pertencer a esse grupo, comparHlha de tais senHmentos e aspirações, por meio de seus textos. Ele Comunicação, Linguagem e Inovações MidiáHcas
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passa a ser um comunicador dos anseios e desejos do povo, ambos se reconhecem muitas vezes nas cantorias e declamações dos versos improvisados ou expressos nos folhetos. Quanto à linguagem, rica em neologismos e simbolismo2, individualiza-se como simples e popular, possuindo caracterísHcas próprias do falar sertanejo. 3 CONTEXTUALIZAÇÃO DO EVENTO Quando se fala em Mossoró, quem conhece a sua história lembra-se dos episódios que fazem parte dela e da idenHdade cultural da cidade: O moHm das mulheres, O voto feminino, a abolição dos escravos cinco anos antes da lei Áurea, entre esses, um dos mais conhecidos e comentados episódios do contexto mossoroense foi o frustrado assalto do bando de Lampião a Mossoró no ano de 1927. Foi um dos acontecimentos de grande parHcipação popular na defesa da cidade mossoroense contra cinco grupos de cangaceiros se coligaram sob a chefia de Lampião para realizar o assalto. O que chamou a atenção do bando foi o progresso da cidade. Mossoró possuía o maior parque salineiro, grande comprador de peles e algodão da região. Tinha o comércio forte e várias indústrias alimentadas pela energia elétrica, além do Banco do Brasil, das escolas, entre outros símbolos do progresso da cidade. Decidimos analisar o episódio de 1927 por ser um evento de relevância histórica, sob diversos aspectos, ainda hoje relembrado como um acontecimento de enorme repercussão, a ponto de introduzir novos elementos no imaginário coleHvo, consHtuindo a idenHdade e a cultura dessa população (canonização do cangaceiro Jararaca). É um símbolo de luta pela liberdade, símbolo de superação. Está imbricado na memória coleHva, devido às constantes alusões ao episódio (como o auto da liberdade: Chuva de bala no país de Mossoró, espetáculo que já entrou no calendário da cidade). A seguir, evidenciamos as interfaces do discurso, através da noIcia veiculada no jornal impresso e no cordel selecionado, dentre os diversos que compõem nosso corpus de invesHgação, para o (re)enquadre do episódio.
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4. AS NOTÍCIAS IMPRESSAS E OS CORDÉIS DE ACONTECIDO: INTERFACES DO DISCURSO A presença da imprensa em Mossoró tornou-se fator decisivo. Diante disso, os relatos são atualmente conhecidos e reconhecidos como documentos comprobatórios da presença de Lampião e seu bando no nordeste brasileiro. A cidade de Mossoró, especificamente, nas primeiras décadas do século XX, já dispunha de veículos comunicacionais como os jornais: “Commercio de Mossoró”; “O Mossoroense”; “O Nordeste” e o “Correio do Povo”. Com isso, as fontes de informação desse período foram essenciais na construção semânHca dos relatos sobre os acontecimentos decorrentes das ações dos cangaceiros. A batalha de Mossoró ganhou destaque local e nacional nos noHciários da época. As manchetes dos principais jornais do Rio de Janeiro, Recife, Natal e Paraíba dedicaram-se exclusivamente ao tema. Dentre os jornais locais, a segunda edição do jornal “Correio do Povo” do dia 19 de junho de 1927, anunciava em destaque a seguinte manchete: 4.1 NoEcia 1 “AVÉ! MOSSORÓ! Maior grupo de cangaceiros do Nordeste, assalta nossa cidade, sendo destroçado após horas de renhida lucta! À manchete seguem-se os subItulos: A bravura dos nossos civis! As trincheiras heróicas. Os bandidos são chefiados por LAMPEAO, SABINO, MASSILON e JARARACA. Como morreu o bandido COXÊTE e como foi ferido e aprisionado JARARACA, o maior sicário do nordeste – NoEcias e notas diversas.” O orador estrutura seu discurso no engrandecimento e louvor aos heróis da resistência e escárnio do grupo de cangaceiros. Nessa perspecHva, percebemos que o jornal, veículo da mídia impressa de caráter objeHvo, torna-se predominantemente subjeHvo, visto que o sujeito enunciador inclui-se no discurso como membro da comunidade mossoroense. O Itulo da manchete chama a atenção do auditório (leitor) para que se concentre no objeto do discurso: ele orienta o ‘caminho’ que o público irá Comunicação, Linguagem e Inovações MidiáHcas
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percorrer no discurso. No Itulo, o orador apresenta seu alvo de críHcas: os cangaceiros, e seu alvo de devoção, a cidade, por meio do vocaHvo religioso “Ave, Mossoró!”, e seu povo: “A bravura dos nossos civis!”. Nessa perspecHva, constatamos que o Itulo apresenta palavras-chave do discurso, pois, a escolha das palavras que o compõem aponta para uma construção semânHco-discursiva que irá defender um ponto de vista. O procedimento e a criação do Itulo têm caráter persuasivo, pois aponta e contextualiza o conteúdo discursivo. Guimarães (1990), afirma que o Itulo consHtui índice caracterizador ou modalizador do objeto do discurso, ou seja, ele é um resumo mais que condensado do teor discursivo. Assim, o leitor por meio dele, prevê o tom do discurso textual. Além disso, devemos atentar para o fato de o discurso da resistência aparecer vinculado ao discurso religioso. Percebemos que a arHculação desse discurso sugere como efeito de senHdo a canonização da cidade, uma vez que “Ave! Mossoró!” nos remete à concepção doutrinária do catolicismo, por meio da alusão à oração da Virgem Maria, como argumento uHlizado pelo orador no reforço da tese da qualificação posiHva da cidade, materialmente visível no corpo do discurso. 4.2 MOSSORÓ NA RESISTÊNCIA AO GRUPO DE LAMPIÃO3 O folheto a seguir inicia seu processo discursivo com base na relação entre a história e o fato noHciado. O primeiro conjunto de versos do cordel evidencia o processo histórico para narrar o acontecimento proposto no Itulo do folheto. Essa ideia é reforçada nos versos [08 e 09] da estrofe seguinte. Nesse senHdo, ambos revelam a (inter)relação entre o fato histórico e o seu registro na esfera poéHca, evidenciando que o discurso da resistência é construído historicamente. 01 02 03 04 05 26
Sabe-se que a 13 de junho, Do ano de vinte e sete, Nossa Mossoró guerreira, Brava, heróica que compete, Nos deixou para a memória Ana Shirley /O discurso da resistência no espaço poéHco da literatura de cordel: Uma leitura dos eventos discursivo-argumentaHvos sobre o episódio de Lampião em Mossoró - RN
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Um fato de sua História Que ao futuro se remete. Trata-se da resistência Ao grupo de Lampião, Estrategista e valente, Para o povo, assombração; Pois Virgulino Ferreira Liderou sem brincadeira O cangaço do sertão.
Em uma análise argumentaHva das estrofes citadas, observamos que o enunciador inicia seu processo discursivo uHlizando a tese principal (Mossoró é combatente; Mossoró é lutadora) que já é aceita pela população, fundamentada por meio de modalizadores (guerreira, brava, heroica). Desse modo, o enunciador constrói o ethos da cidade mossoroense. Ele apresenta a cidade personificada como um sujeito forte, que luta. Em contraparHda, Lampião é um ser sobrenatural, maligno, que aterroriza a população. É curioso destacarmos que o orador ao se referir à figura de Lampião, ele o faz na voz do outro, isentando-se de qualquer declaração. Todavia, o orador deixa transparecer seu ponto de vista sobre os sujeitos definidos, ou seja, ele uHliza a técnica argumenta#va da definição expressiva. Sob essa óHca, o sujeito orador, ao qualificar Mossoró como guerreira, brava, heroica, revela inconscientemente ou não sua postura ideológica ligada ao discurso do poderes políHco e eliHstas locais vigentes na época, inserindo-se em uma formação discursiva que fala do lugar social o qual se inclui e acredita nesse discurso, destacado verbalmente pelo pronome “Nossa”. Assim, ele dirige-se a um auditório que deve conceber os sujeitos apresentados dessa forma. A posição do orador assemelha-se à do jornal “Correio do Povo” do dia 19 de junho de 1927: A nossa ordeira, pacata, laboriosa e nobre cidade foi atacada e assediada pelo maior numero de bandidos do nordeste, sob a chefia de Lampeao, Sabino, Massilon e jararaca, chefes de canComunicação, Linguagem e Inovações MidiáHcas
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gaceiros que se colligaram a effeito a empreitada terrível e sinistra de saquear Mossoró, a mais opulenta e rica cidade do Rio Grande do Norte. A immensa fama e o seu amor ao trabalho, á paz e á ordem despertaram no espírito de feras daquelles bandos, apetites vorazes de sangue e de sangue.
Além de ser historicamente consHtuído o discurso da resistência aparece marcado pelo caráter de dialogicidade, de múlHplas vozes presentes em um mesmo discurso [16]. Todo discurso é produzido a parHr de outro discurso de maneira que “os senHdos são sempre referidos a outros senHdos e daí Hram sua idenHdade” (ORLANDI, 1996, p. 31). Fato que aparece reforçado na estrofe a seguir: 15 16 17 18 19 20 21
No Rio Grande do Norte, Conforme os livros que li, Facínoras de Lampião Atacaram Apodi, Gavião e Itaú, Não pretenderam Patu; Programaram vir aqui.
Nesse trecho, devemos atentar para o uso que o orador faz do argumento de autoridade, ou seja, os livros (textos escritos) como espaço de legiHmação da verdade dos fatos anunciados. Diante desse poder de autoridade, o fragmento desvela a intenção de legiHmar a voz do sujeitoautor. As estrofes seguintes (6 a 10) referem-se exclusivamente aos boatos sobre a invasão do bando à cidade de Mossoró. [...] 29 30 31 32 28
Em toda esquina de rua O falatório corria Que Lampião preparava Um assalto e que viria, Ana Shirley /O discurso da resistência no espaço poéHco da literatura de cordel: Uma leitura dos eventos discursivo-argumentaHvos sobre o episódio de Lampião em Mossoró - RN
33 Com violentos ataques 34 Bagunçar, praHcar saques, 35 Só estava faltando um dia. As estrofes assinalam, através do discurso camuflado pela voz do outro, as práHcas de violência dos cangaceiros. [...] 43 44 45 46 47 48 49
Aqui Lampião viria Promover perversidade, Desrespeitar nosso povo, Provocar ansiedade; Levar daqui o dinheiro, Que é papel do cangaceiro, Extorquir, fazer maldade.
A voz do enunciador nos trechos destacados dilui-se no discurso relatado da coleHvidade, marcado linguisHcamente pelo futuro do pretérito (viria, seria). Nesse senHdo, observamos nos versos [48 e 49] que o enunciador posiciona-se com base nos relatos obHdos. No folheto analisado, os versos das estrofes [11 a 18] narram a troca de correspondências entre Lampião e o prefeito Rodolpho Fernandes. Destacando a resposta negaHva do prefeito e a reação do cangaceiro. [...] 71 72 73 74 75 76
Um portador do Cangaço, Cumprindo sua função, Veio a Rodolfo Fernandes Com um bilhete na mão, Que em termos de missiva, Era uma inHmaHva
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Mandada por Lampião. O Prefeito, quando leu, Conheceu o conteúdo; Deu como resposta um não Acrescentou: não me iludo. Esses quatrocentos contos De réis jamais serão prontos O bando vai perder tudo. [...]
113 114 115 116 117 118 119
Eu não posso permiHr A desmoralização De pedir, alguém negar, De querer, ouvir um não. Acho que só vou senHr dó, Se o povo de Mossoró Desrespeitar Lampião.
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Mais uma vez o prefeito Deu resposta negaHva. Dessa feita, os cangaceiros Com ação, brutal, nociva, Iniciam a invasão, E estava a população Entrincheirada e aHva.
Nos versos citados, percebemos a manifestação do discurso polifônico, no momento em que o enunciador cede a voz aos personagens do prefeito [81 a 84], e a Lampião [113 a 119], a fim de estabelecer uma autenHcidade à voz do enunciador. No decorrer do texto, as estrofes seguintes [19 a 27] são desenoveladoras do tema. 30
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E a batalha começa Na base do chumbo quente: Enquanto o bando invesHa Para dar um passo a frente, As trincheiras resisHam, Lutavam, não permiHam Lampião nem sua gente.
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Famílias apavoradas, Com os corações aflitos, Entre emoções e medo, Desespero, aplausos, gritos. Pela busca da vitória, Que já está na História De um dos grandes conflitos.
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As trincheiras preparadas Com civis e coronéis Com os constantes ataques Dos cangaceiros cruéis, Não desisHram do jogo: Avançaram, abriram fogo, Cumprindo bem seus papéis.
Considerando-se o gênero em questão, percebemos um maior desenvolvimento no nível de dramaHcidade, caracterísHca comum à literatura, cujo objeHvo, dentre outros, é seduzir para leitura, atrair através da construção arIsHca. Na narraHva observamos uma exploração desse conflito. Ele integra os fatos em uma ação única, formando um todo consHtuído pela seleção e pelo arranjo dos acontecimentos e ações. A relação entre as personagens, as enumerações de lugares e de ações da trama conferem ao texto a criação de expectaHva e manutenção do interesse do leitor através de descrições deComunicação, Linguagem e Inovações MidiáHcas
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senvolvidas. No desenrolar da narraHva em estudo, o acontecimento cantado é entremeado pela história que envolve o cangaceiro Jararaca. Assim, nada há de surpreendente em que muitas são as histórias que perpassam esse episódio. [...] 162 163 164 165 166 167 168
Foi da vez que Jararaca Vendo Colchete no chão, Procurou “desarreá-lo”, Lhe dando assim proteção. Ai outra bala vem, Mas não sabia de quem E nem qual direção.
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E começa a chover balas, Vindas de todo senHdo: Da torre São Vicente, Que se ouviu o estampido; Da praça seis de janeiro, Sem entender o roteiro, Jararaca cai ferido.
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Logo se levanta aos tombos Pra sair daquele espaço. Ao caminhar poucos metros, SenHu frágeis mão e braço. Como que pouco se ajeita, A sua perna direita Também recebe um balaço.
183 Jararaca cai de novo, 184 Se levanta e foge ao mato; 32
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A ponte da linha férrea Lhe acolheu nesse ato. O bandido baleado, Ali foi capturado Pra ser sujeito maltratado.
Durante o conflito o cangaceiro José Leite Santana, conhecido como Jararaca, foi aHngido por um Hro e deixado para trás por seus companheiros, que fugiram após a fracassada invasão à cidade de Mossoró. Dias depois, ele viria a ser morto de maneira singularmente cruel: teria sido enterrado vivo pela polícia. Jararaca tornou-se, assim, uma personagem de destaque contribuindo para ilustrar a narraHva, que enfaHza a bravura dos resistentes que impediram a invasão e saque da cidade pelos temidos cangaceiros de Lampião. Retornando ao folheto, observamos nas estrofes descritas os espaços em que se desenvolvem as cenas. Os versos servem também de mote para a narraHva da finalização do conflito. 190 Lampião a essa altura, 191 Traça o seu novo roteiro 192 Com o bando fracassado, 193 Sem poder levar dinheiro, 194 Derrotado nessa briga, 195 Segue a estrada que liga 196 Mossoró a Limoeiro. [...] 204 205 206 207 208
Mossoró, mesmo vencendo, Com força magistral Do seu povo combatente A fuzil, fúria e punhal, A quem agride e vacila,
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209 Fica a cidade intranquila 210 Mas depois volta ao normal. 211 212 213 214 215 216 217
Já se tem oitenta anos, Se contarmos do passado, Que o espírito é resistência A que o povo tem se dado. Lampião não quer de novo Ter por aqui o seu povo Mais uma vez derrotado.
Novamente, temos o processo histórico em destaque. Os versos [211 e 212] fazem a inter-relação entre o registro poéHco e os fatos ocorridos. Na estrofe destacada anteriormente, o orador reafirma a tese principal [213], embora os senHdos desta tenham sido, no decorrer do cordel, mais bem construídos, referindo-se cada vez mais ao contexto específico desse discurso. Assim sendo, quando o orador expõe sintaHcamente a tese defendida, afirmamos que foi uHlizada a estratégia argumentaHva da repeHção para tornar mais presente no leitor a ideia que se quer a adesão. 218 219 220 221 222 223 224
Mossoró que tem História De luta e Libertação Como o moHm das Mulheres, Uma corajosa ação, Aboliu escravatura, Por que temer a bravura Do bando de Lampião?
Pela historicidade arraigada no espaço entre o acontecimento e o discurso relatado, o cordelista estabeleceu, outra vez, elos com o discurso da resistência. Definido o enfoque, a narraHva revela, através de seu processo de construção do discurso, um orador que fala do lugar social de lutas e conquistas, dirigindo-se a um público que provavelmente parHlha do mesmo 34
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raciocínio. Portanto, ao raHficar que Mossoró tem a sua história consolidada em lutas e glórias [218 e 219], reflete o universo histórico-social do auditório que tem em suas raízes o discurso de superação das dificuldades [220 e 222]. Além disso, devemos atentar para o fato de que o orador quando expõe outros episódios que ocorreram em Mossoró em nome da liberdade e dignidade da cidade faz uso do argumento de comparação, pertencente ao grupo dos argumentos quase-lógicos. Isso significa dizer que, a construção deste argumento segue um esquema de raciocínio formal. Na realidade, os argumentos de comparação “são em geral apresentados como constatações de fato, enquanto a relação de igualdade ou de desigualdade afirmada só consHtui, em geral, uma pretensão do orador” (PERELMAN; TYTECA, 1996, p. 274-275). O uso de perguntas retóricas consHtui outro recurso empregado pelo cordelista na expressão do pensamento, das ideias e das opiniões. Embora não esteja vinculada às técnicas argumentaHvas distribuídas nos quatro grupos de argumento, os enunciados interrogaHvos podem ser compreendidos como um procedimento retórico que visa estabelecer uma aproximação e um acordo [muitas vezes implícitos] com os leitores (público). Conforme assinalam Perelman e Tyteca, esses enunciados possuem uma “importância retórica [...] considerável” (1996, p. 179). A modalidade interrogaHva busca um posicionamento do público diante do fato exposto, cujas respostas já são presumidas pelo orador. “A pergunta supõe um objeto, sobre o qual incide, e sugere que há um acordo sobre a existência desse objeto. Responder a uma pergunta é confirmar esse acordo implícito” (1996, p. 179). Na realidade, as perguntas não pretendem esclarecer quem interroga, elas são empregadas com a finalidade de “encetar raciocínios [...] com a cumplicidade, por assim dizer, do interlocutor que se compromete por suas respostas, a adotar esse modo de argumentação” (PERELMAN; OLBRECHTSTYTECA, 1996, p. 180). Nessa perspecHva, a noção de teia argumentaHva é reforçada a parHr da relação entre as perguntas retóricas e as possíveis respostas arHculadas pelo leitor. Considerando-se essa perspecHva de teia argumentaHva, podemos dizer que o enunciado interrogaHvo que finaliza o texto configura-se numa marca Comunicação, Linguagem e Inovações MidiáHcas
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linguísHca de caráter dialógico da linguagem, uma vez que o produtor do texto escrito (orador), mesmo não tendo a presença 3sica do seu leitor no momento de sua escritura, fundamentou-se no fato de que seu texto dirigia-se a um auditório (leitor), o qual no momento da leitura complementaria a interação. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS No decorrer de nosso estudo, relacionamos os discursos dos jornais impressos com os discursos nos textos de cordel, evidenciando a maneira como o episódio foi veiculado pelas esferas: jornalísHca e poéHca. Como na AD, parHmos da materialidade do texto para o discurso, sendo considerado o texto um espaço necessário para instauração de senHdos, é importante dizer que, apesar de analisarmos separadamente, eles estão interrelacionados, porém cada um possui discursos inseridos em diversas FDs (religiosa, políHca, social, econômica), concebendo a realidade conforme suas perspecHvas. Por sua vez, estruturam seus discursos com técnicas argumentaHvas semelhantes. Temos ciência que os textos foram produzidos em diferentes períodos, os jornais pesquisados foram escritos no ano de 1927 e os cordéis no ano de 2004. Entretanto, afirmamos que mesmo assim, o discurso do jornal faz-se presente nos textos dos cordéis. A abordagem feita sobre a cidade e seus habitantes está inHmamente ligada à riqueza, ao trabalho, ao progresso. Os textos retratam Mossoró de forma personificada. O cordel “Mossoró na resistência ao grupo de Lampião” mostra a bravura e nobreza da cidade: “Nossa Mossoró guerreira,/ Brava, heroica que compete, [...]”. O mesmo discurso pode ser percebido no Jornal “Correio do Povo”, veiculado no dia 19 de junho de 1927, que evidencia Mossoró como uma cidade próspera, guerreira e batalhadora: “A nossa ordeira, pacata, laboriosa e nobre cidade foi atacada e assediada pelo maior numero de bandidos do nordeste”. As qualidades da cidade foram ressaltadas, a fim de enfaHzar o senHmento a favor de sua defesa, e mostrar a grandiosidade do episódio perante o auditório parHcular (os mossoroenses). 36
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Os discursos analisados revelam que o cordelista (orador) fala do mesmo lugar social que o orador do jornal, ou seja, embora não tenham sido produzidos no mesmo contexto sócio-histórico, ambos são interpelados pela mesma ideologia e convergem para a mesma formação discursiva, defendendo posições idênHcas. O tema abordado e o modo como foi veiculado pelos jornais e (re) enquadrado pelos cordéis são prova dessa interface, pois ambos defendem com firmeza a resistência da cidade ao bando de Lampião e centram-se na persuasão do público leitor (auditório) para insisHrem nessa realidade com o intuito de mantê-la permanentemente viva na memória coleHva do auditório. Destacamos, ainda, que tanto na esfera poéHca quanto na esfera jornalísHca, houve uma intensa uHlização da técnica argumentaHva da definição expressiva, realizando a construção posiHva do ethos da cidade mossoroense, com o objeHvo de conseguir a adesão do auditório para a tese defendida. Além disso, evidenciamos que o texto jornalísHco e o texto poéHco desenvolvem uma interação mediada com o público-leitor, haja vista que atendem a públicos disHntos, os quais não comparHlham da mesma esfera econômicosocial. Sabemos que as referências sociais, culturais, políHcas, econômicas a que um texto remete, acontecem por ele ser produzido por um sujeito ideologicamente marcado e socialmente definido. Por isso, um discurso pode ser manifestado por diferentes textos, no interior das várias práHcas sociais. Em nosso estudo, analisamos textos de duas diferentes aHvidades sociais, uma relacionada a uma realidade que faz uso da linguagem considerada de presIgio social e a outra relacionada a uma linguagem menos presHgiada, mais informal. Koch afirma que se vem postulando que os diversos Hpos de “práHcas sociais de produção textual se situam ao longo de um conInuo Hpológico, em cujas extremidades estariam, de um lado, a escrita formal e, de outro, a conversação espontânea, coloquial” (KOCH, 2006, p. 43). Assim, entendemos que essas formas de expressão são modos de compreensão cogniHva e social reveladas em situações específicas. Nessa perspecHva, não cabe considerar uma forma superior ou inferior à outra, mas formas específicas de compreensão e expressão da realidade enunciada. Comunicação, Linguagem e Inovações MidiáHcas
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Portanto, os jornais e os cordéis podem ser diferentes na maneira como se apresentam ao leitor, em prosa ou verso; em uma linguagem mais velada de presIgio social ou menos rebuscada, mais popular, porém a relação entre ambos é apreendida interdiscursivamente, no momento em que admiHmos os cordéis analisados como (re)enquadramento discursivo das posições defendidas pelos jornais de 1927. Nesse senHdo, afirmamos que a construção discursiva dos textos aponta determinados padrões de repeHção, visto que, o contexto linguísHco, caracteriza-se nessas duas esferas por assumir, em primeira instância, uma expressão local. Assim sendo, afirmamos, com base nas posições assumidas pelos enunciadores dos dois gêneros ora analisados, os quais defenderam notadamente posições a favor da defesa de Mossoró, que a relação entre os jornais e os cordéis é apreendida interdiscursivamente. De acordo com a memória coleHva do episódio, constatamos que ao nortear o leitor (auditório), a parHr de suas crenças e valores, a fim de conduzi-lo a persuasão, os discursos presentes nessas aHvidades sociais demonstram e desenvolvem traços de uma manipulação do sujeito. As técnicas argumentaHvas aqui reveladas asseveram que o discurso empreendido em 1927, e seu (re)enquadramento na contemporaneidade foram construídos sem nenhum espírito críHco para manipular o leitor. Portanto, percebemos que a argumentação empreendida nos discursos passou do logos para o pathos, pois os oradores dos jornais e cordéis iniciaram um convencimento baseado em fatos e valores com o intuito de fundamentar uma persuasão final. Isso significa que os enunciadores do discurso passaram do convencimento do auditório, no campo das ideias, do logos sobre as circunstâncias sociais para o campo da persuasão, atuando na interpelação desse auditório, cuja preferência por estratégias argumentaHvas para o convencimento do outro, raHficam suas aHtudes na construção de um discurso que pressupõe a “adesão dos espíritos”. Notas 1 - Professora de Língua Portuguesa da Rede Pública Estadual, Mestre em Estudos da Linguagem e Doutoranda em Estudos da Linguagem. 38
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2 - É o caso dos termos relaHvos ao demônio. Este aparece na literatura de cordel através de designações como: bicho-preto; cão; feiHceiras; capeta; capirocho; Hnhoso; bode; gato serpente; etc. Souto maior, afirma que o uso dos diferentes apelaHvos ao demônio no Nordeste é consequência da predominância de supersHções na região (OLIVEIRA, 1981, p. 15). 3 - FRANÇA, Aldeci de. Mossoró na resistência ao grupo de Lampião, 2007, p. 1-12. Referências BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1995. _________. Os gêneros do discurso. In. ______. EstéDca da criação verbal. São Paulo: MarHns Fontes, 2000. pp. 227-326. BATISTA SebasHão Nunes. Antologia da literatura de cordel. Rio de Janeiro: Fundação José Augusto. 1977, 390p. (s.d). BHATIA, V. K. Genres in Conflict. In: TROSBORG, A. (Ed.) Analysing Professional Genres. Amsterdam: John Benjamins Publishing Company, 2000. CAMPOS, Eduardo. Folclore do Nordeste. In: OLIVEIRA, Maria Francinete de. A representação da mulher na literatura de cordel. Dissertação (Mestrado em Letras) PUC – RS – InsHtuto de Letras e Artes. Departamento de Letras. Programa de Pós – Graduação em LingüísHca & Letras. Porto Alegre, RS, 1981. CASCUDO, Luís da Câmara. Literatura oral no Brasil. 3 ed. Belo Horizonte: ItaHaia. 1984. FRANÇA, Aldeci de. Mossoró na resistência ao grupo de Lampião, 2007, p. 112. GOMES, Adriano Lopes. Formas alternaHvas de agendamento social: um esComunicação, Linguagem e Inovações MidiáHcas
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Ana Shirley /O discurso da resistência no espaço poéHco da literatura de cordel: Uma leitura dos eventos discursivo-argumentaHvos sobre o episódio de Lampião em Mossoró - RN
Silêncio! A radionovela está no ar Edivânia Duarte Rodrigues Doutoranda e Mestre em Estudos da Linguagem- PPgEL (UFRN) Professora do InsHtuto Federal do Rio Grande do Norte - IFRN
1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS No século XX o rádio introduziu a “eletronização” da voz e transformou o cotidiano social a partir dos conteúdos transmitidos. A radionovela era uma das principais atrações das emissoras de rádio nos anos dourados da radiofonia no Brasil, envolvendo os ouvintes nos enredos que mesclavam ficção e realidade, promovendo a imaginação dos receptores. A Rádio Poti de Natal/RN introduziu a “era de ouro” do rádio no estado e também transmitiu ficção para a sociedade potiguar, nos formatos de drama unitário, radionovela e seriado. Entretanto, não se têm registros sonoros conservados dessas emissões. Além disso, não dispomos de livros sobre a programação da emissora. Assim, a história das histórias interpretadas pelos radioatores é contada neste artigo pelos profissionais de comunicação e ouvintes do rádio, no período de 1941 a 1955. Esses dados foram obtidos a partir do Projeto de Pesquisa Mídia e Memória, vinculado à Base de Pesquisa Comunicação Cultura e Mídia, desenvolvido de 2003 a 2006. Vamos adentrar num passado em que o rádio era o principal meio de comunicação do país e as radionovelas um dos seus mais atrativos produtos culturais que, por sua vez, prendiam os ouvintes diante do rádio para escutar, em silêncio, a sequência narrativa, costurada com doses de emoção, suspense e aventura. 2 MEMÓRIA E HISTÓRIA ORAL: ASPECTOS TEÓRICOS Para falar das radionovelas transmitidas pela Rádio Poti de Natal recorremos à memória dos personagens reais dessa história, ou seja, é por meio das narrativas orais dos ouvintes e profissionais da Poti, nas décadas de 1940 e 1950, que falamos sobre os enredos encenados para a sociedade potiguar. Assim, por meio das lembranças dos ouvintes, de radioatores, diretores, loComunicação, Linguagem e Inovações MidiáHcas
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cutores e cantores da emissora, é possível emergir situações vividas, através das quais se busca manter contato com o passado estando envolto em ideias e imagens de hoje. Nesse caso, a memória coletiva sobre a radiodifusão potiguar foi desencadeada através das histórias de vida. As fontes orais, categorizadas como profissionais da comunicação e ouvintes da Rádio Poti, inseridas no mesmo contexto espaço-temporal, vivificam o veículo rádio por meio dos relatos e permitem o processo de reconstituição da memória coletiva sobre a emissora. Entendemos a memória coletiva como todas as reminiscências em comum que pertencem aos membros de um determinado grupo social: No primeiro plano da memória de um grupo se destacam as lembranças dos acontecimentos e das experiências que concernem ao maior número de seus membros e que resultam quer de sua própria vida, quer de suas relações com os grupos mais próximos (HALBWACHS, 1990, p. 45).
É, portanto, no processo de interação social que acontece a formação da memória coletiva, cujo conteúdo é capaz de representar o conjunto de membros que a construiu. Sendo assim, ao reconstituirmos a história apoiando-se na memória, utilizando depoimentos como o eixo central da pesquisa, estamos fazendo uso da História Oral que, de acordo com Meihy (2002, p. 13), “consiste em gravações premeditadas de narrativas pessoais feitas de pessoa a pessoa em fitas ou vídeo”. A História Oral além de possibilitar a produção de outras versões diante da história classificada como oficial, pode reconstruir a história quando não tem versão alguma. E mais, conforme Thompson (1998, p. 22), ela desempenha uma importante função social: “na produção da história – seja em livros, museus, rádio ou cinema – pode devolver às pessoas que fizeram e vivenciaram a história um lugar fundamental, mediante suas próprias palavras”. Em relação à reconstituição histórica da Rádio Poti, em que não tínhamos uma versão “oficial”, a História Oral oportunizou a reconstituição e conservação da história ao passo que colocou os protagonistas sociais como os principais enunciadores da história. 42
Edivânia Duarte Rodrigues/ Silêncio! A radionovela está no ar
3 A DRAMATIZAÇÃO NO RÁDIO As novelas e seriados encantavam os ouvintes, especialmente o público feminino, e estavam entre as principais atrações do mercado publicitário na “era de ouro” do rádio no Brasil, nas décadas de 1940 a 1950. A radionovela era um programa obrigatório na grade de programação das emissoras. Em 1 de julho, de 1941 foi transmitida a primeira radionovela no Brasil: “Em busca da Felicidade”, de Leandro Blanco, adaptada por Gilberto Martins. Para se ter uma idéia do sucesso das novelas, Ortiz (2006) diz que no período de 1943 a 1945 a Rádio Nacional chegou a produzir 116 novelas contabilizando um total de 2.985 capítulos. As radionovelas eram dirigidas ao público feminino e associadas a produtos comerciais, por exemplo, a “Colgate Palmolive” que patrocinava a radionovela de maior sucesso no Brasil: “O Direito de Nascer”. Essa novela, irradiada pela Rádio Nacional, de janeiro de 1951 a setembro de 1952, conquistou recordes de audiência e mudou o cotidiano das pessoas como relata Reynaldo Tavares citado por Ferraretto (2000): Quando da apresentação dos capítulos de O direito de nascer, a Rádio Nacional, do Rio de Janeiro, era absoluta em termos de audiência e, naquele horário, os cinemas, os teatros e os outros meios de entretenimento ficavam vazios, as ruas como por encanto silenciavam e ninguém perambulava por elas... Era um horário religioso, uma imensa reunião emudecida e atenta que comungava, junto aos receptores, todas aquelas emoções vividas por Albertinho Limonta e os demais personagens inventados por Félix Caignet (TAVARES apud FERRARETTO, 2000, p. 120).
O drama no rádio é criado a partir da orquestração dos elementos que compõem a linguagem radiofônica. Isso porque a voz humana, a música, os efeitos sonoros e o silêncio são capazes de criar cenários, despertar sentimentos e envolver o receptor a ponto de fazê-lo transformar o som em imagem mental, processo chamado de imaginação. Quando criamos imagens a partir das radionovelas, “a imagem é a criação de uma realidade imaginária, ou seja, de algo que existe apenas em imagem ou como imagem” (CHAUÍ, 2000, n.p). Sendo assim, criamos uma realidade imaginária porque os personagens e o enredo são representação, Comunicação, Linguagem e Inovações MidiáHcas
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leitura da realidade, portanto, imagens. Antônio Grasmsci, citado por Goldfeder (1980), ao analisar a novela de folhetim, reflete sobre seu papel: [ela] substitui [e favorece ao mesmo tempo] a fantasia do homem do povo, é um sonhar com os olhos abertos... no povo, a fantasia depende do ‘complexo de inferioridade’ [social] que determina largas fantasias sobre a idéia de vingança, de castigo dos culpados, dos males que não se suportam e etc. (GRASMSCI apud GOLDFEDER, 1980, p. 87).
Com essa reflexão podemos perceber como a ficção influi no homem, pois o que desejamos que aconteça na vida real, acontece na fantasia e nos sentimos realizados por isso, “a novela produziria, desta maneira um efeito que poderíamos denominar de compensatório em relação aos dilemas e contradições da vida real” (GOLDFEDER, 1980, p. 87). Nessa perspectiva a novela mescla elementos fictícios com reais, promovendo os processos de identificação (o receptor torna-se inconscientemente idêntico a uma personagem no qual vê qualidades que gostaria ou julga que lhe pertence) e de projeção (o receptor desloca suas pulsões para os personagens). Goldfeder (1980) ao analisar a radionovela Mãe, transmitida pela Rádio Nacional, comenta sobre o processo de identificação, caracterizando-o como condição primordial para a eficácia e penetração da radionovela, visto que enquanto os personagens negativos geravam afastamento, os positivos possuíam forte carga emocional e podiam ser localizáveis no real, por isso, capazes de provocar empatia nos ouvintes. A empatia é possível porque a ficção mistura-se a elementos reais, proporcionando uma leitura da realidade. Sendo assim, dá subsídios para que o ouvinte projete seus sonhos e desejos nos personagens com os quais se identifica, realizando-se no universo da fantasia. Edgar Morin, citado por Goldfeder (1980), fala sobre as imagens criadas pelos meios de comunicação de massa e sua relação com o real: [...] as imagens se aproximam do real, ideias tornaram-se modelos, que incitam a uma certa práxis... Um gigantesco impulso do imaginário em direção ao real tende a propor mitos de au44
Edivânia Duarte Rodrigues/ Silêncio! A radionovela está no ar
torrealização, heróis modelos, uma ideologia e receitas práticas para a vida privada. Se considerarmos que, de hoje em diante, o homem das sociedades ocidentais orienta cada vez mais suas preocupações para o bem-estar e o ‘standing’ por um lado, o amor e a felicidade por outro lado, a cultura de massa fornece os mitos condutores das aspirações coletivas (MORIN apud GOLDFEDER, 1980, p. 92).
Assim, dizemos que as novelas traduzem os anseios coletivos, transportam os ouvintes para um mundo de concretização de sonhos, são receitas de como fisgar o receptor para escutar e se envolver nos capítulos até o desfecho final. Até o momento falamos de imagens produzidas pelos meios de comunicação, destacando as novelas, mostramos que elas misturam elementos reais para incitar a identificação e a projeção e ativar a imaginação do ouvinte, realizando seus desejos. Agora nos resta saber como a ficção se apresenta enquanto formato radiofônico, criando uma realidade imaginária. 3.1 Os formatos ficcionais É importante classificarmos a produção ficcional no rádio para melhor compreendermos como se estrutura a produção novelesca. Essa produção enquadra-se no “gênero de entretenimento”, formato “programa ficcional de drama” porque segundo Barbosa (2003): O drama, que é uma das expressões da representação do real e do cotidiano, caracteriza-se no rádio pela radiofonização, ou seja, pela tradução para a linguagem radiofônica de textos originais ou adaptados, inéditos ou publicados de obras literárias, peças teatrais, roteiro de cinema, vídeo e, obviamente, dos textos escritos especialmente para o áudio (BARBOSA, 2003, p. 117).
Em conformidade com a classificação de Kaplun, citado por Barbosa (2003), o drama no rádio é dividido em: unitário, seriado e radionovela. O drama unitário, também chamado de peça radiofônica “constitui uma unidade em si, ou seja, não forma parte de um conjunto; é igual ao que acontece a uma obra de teatro: os personagens não têm continuidade posterior” (BARBOSA, 2003, p. 118). Em contrapartida, a radionovela consiste numa obra draComunicação, Linguagem e Inovações MidiáHcas
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mática, de longa duração, com capítulos sequenciados. Nesse caso, o receptor deve acompanhar os capítulos para compreender o enredo. Enquanto que o seriado consiste em peças independentes com personagens fixos e cada episódio possui cenário e argumento novos com início, meio e fim num só capítulo. Adotando o formato de seriado destacamos Jerônimo − o herói do sertão e os programas de humor em série que adotam o formato de seriado com personagens permanente que se apresentam a cada novo episódio. É valido ressaltar que os programas humorísticos utilizam a dramaturgia, pois quanto mais interpretado dramaticamente o conteúdo de humor mais ele se tornará engraçado. Conforme Ferraz (2004), os humoristas e comediantes ao fazerem programas de rádio lançam mão das técnicas de dramaturgia para obter credibilidade cômica. 4 OS ENREDOS NA RÁDIO POTI DE NATAL A primeira emissora de Rádio do Rio Grande, surgida em 1941, com a denominação de Rádio Educadora de Natal, é incorporada à rede associada de Chateaubriand em 1944 e passa a se chamar Rádio Poti. A emissora dispunha de um cast de profissionais distribuídos nos setores artístico, jornalístico e administrativo, do qual destacamos a equipe de radioatores: Zilma Rayol, Alba Azevedo, Francisco Ivo Cavalcanti, Marly Rayol, Clarice Palma, Lurdinha Lopes, Wanildo Nunes, Fonseca Júnior, Lurdes Nascimento, Teixeira Neto, Ernani Roberto Ney, Glorinha Oliveira, Luis Cordeiro, Genar Wanderley, Nilson Freire, Sandra Maria, Anibal Medina, entre outros. À frente da transmissão de programas artísticos, desde a época da REN até a Rádio Poti, citamos dois diretores artísticos: Genar Wanderley e Eider Furtado. 4.1 Aumente o volume do rádio: é hora de imaginar! Vamos entender como se desenvolveu os programas ficcionais na Rádio Poti, quais as novelas transmitidas e como os enredos envolviam os ouvintes diante do rádio. Eider Furtado fala do sobre o setor de radioteatro da Rádio Poti dizendo que tanto eram transmitidas radionovelas produzidas e veiculadas em outras rádios do Brasil quanto produzidos programas ficcionais na própria 46
Edivânia Duarte Rodrigues/ Silêncio! A radionovela está no ar
emissora: Veja bem, o nosso... nós tínhamos um teatro, na minha época, que eu me lembro bem, a, a grande... da época eu me lembro de duas novelas. Uma era, era... como é que chamava? Herói do Sertão, como era? “Jerônimo − Herói do Sertão”, essa não tinha fim, não é? Eu não lembro quando começou, nem quando terminou,... essa vinha naqueles discos grandes de quinze... e tinha aquela outra “O Direito de Nascer”. Era uma novela (palavra indecifrável) uma novela mexicana, também enorme! Essa atravessou anos e anos e anos. O que nós fazíamos muito no radioteatro ao vivo era, era o mesmo das peças inteiras, né? novela, na minha época não, a gente fazia radioteatro de peça inteira, meia hora, um hora, uma peça inteira... (EIDER FURTADO − INFORMANTE 2).
Outros profissionais da emissora Poti mencionam algumas radionovelas transmitidas pela emissora Poti: “A Casa dos sete Candeeiros” (novela de terror), “Tormento de Amor”, “Seu Nome Sua Honra” e “Maria Alahô”. O ouvinte da época, Alberto da Hora, relata os horários e a periodicidade que eram veiculadas as radionovelas: As novelas... de rádio, é... não tinham a duração que têm as da televisão hoje que dura seis meses, quatro meses, mas eram, mas... eram longas, né? E eram muito escutadas naquela época do rádio,... Eram, era um programa quase obrigatório, das famílias escutarem (trecho indecifrável) É..., e elas eram assim, elas não eram diárias, os dias eram... a novela era, era transmitida na segunda, aí pulava os dias segunda, quarta e sexta, por exemplo; e outra novela era terça, quinta e sábado (ALBERTO DA HORA − INFORMANTE 3).
Sabemos que os elementos da linguagem radiofônica, para despertar a imaginação do ouvinte, devem estar bem interligados e, além de uma boa interpretação dos personagens, os efeitos de sonoplastia são essenciais na criação de cenários e imagens mentais. Nesse sentido, a radioatriz e cantora Glorinha Oliveira, comenta os instrumentos utilizados para produzir efeitos sonoros parecidos com os sons das coisas que se desejava representar nas radionovelas:
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[...] hoje a tecnologia é maravilhosa! Você faz uma novela não precisa de nada, mas na nossa época era quenga, era tábua no meio do estúdio, era uma bacia com água, era uma lâmina de alumínio... pra fazer zoada era... tanta coisa, e um... pau grosso, assim pra bater na madeira pra dizer que era um... cara perneta, então aí era: “pum, pou...”, sabe? Perneta. E a água era na bacia pra fazer chuva, uma peneira, um bucado de coisa interessante, sabe? (GLORINHA OLIVEIRA − INFORMANTE 5).
O contrarregra era o profissional responsável em manusear os instrumentos para a produção dos efeitos sonoros em tempo real, participando da cena a partir da interpretação sonora. Ele devia seguir as indicações do roteiro e no momento que se fizesse alusão à chuva, por exemplo, fazia o barulho com a água; quando se referisse ao trovão, usava a lâmina de alumínio; se o cavalo aparecia em cena, utilizava as quengas de coco, e assim por diante. Foto: arquivo Diário de Natal
Glorinha Oliveira e Wanildo Nunes interpretando uma radionovela
Anteriormente, falamos sobre os processos de identificação e projeção, possíveis nas produções novelescas, sendo assim, mesmo não tendo dados concretos, supomos que as radionovelas e as peças radiofônicas veiculadas na Poti promoveram tais processos. Podem ter havido pessoas que se identificaram e projetaram seus anseios na personagem “Quim”, interpretada por Glorinha Oliveira: [...] eu sei que tinha uma... novela que eu fazia o papel de uma criança. Era uma novela americana, né? Mas tudo em português , e eu fazia o papel de uma criança e meu nome era “Quim” e meu pai tinha ido pra guerra e tinha morrido, então eu fiquei com minha mãe e... aí de repente ela soube que o marido tinha morrido, né? aí eu dizia: “mamãe porque papai não volta”, ela disse, aí a mãe dizia que ele tava no céu e ia trazer uma boneca pra ela, aquelas coisas... aí : “mas eu não quero boneca, eu quero o meu pai”. aí choro e tudo, sabe? Foi muito bonita essa novela! e era muito triste. Quantas vezes eu chorei fazendo essa 48
Edivânia Duarte Rodrigues/ Silêncio! A radionovela está no ar
novela sabe? (GLORINHA OLIVEIRA − INFORMANTE 5).
Somos personagens sociais porque representamos papéis na sociedade: mãe, pai, filho e outros. No radioteatro, apesar da representação ser ficcional, ou seja, os personagens são verossímeis ou não, é possível perceber o contexto em que eles eram criados. Em relação ao personagem “Quim”, identificamos que ele foi criado num contexto da II Guerra Mundial em que muitos soldados iam para a fronte de batalha e não voltavam para suas famílias, deixando viúvas e órfãos. No caso da personagem “Quim”, órfão de pai, sua inocência de criança não a deixava perceber a realidade, sobretudo devido ao comportamento protetor da mãe, resguardando a filha da dor da perda. A relação entre as histórias ficcionais e a realidade social que a criou é possível porque, de acordo com Walty (1999): No romance, no teatro, as personagens também usam diferentes máscaras, de acordo com o papel que representam. Assim, seres de papel, ou não, eles nos permite ler, além da história de que fazem parte, a sociedade que criou essa estória (WALTY, 2003, p. 61).
Na maioria das vezes, os personagens na ficção representam os papéis sociais, desenvolvidos na vida real e, portanto, tais personagens ficcionais seguem os mesmos padrões ideológicos do real. Podemos verificar a preocupação em não quebrar a ética, a moral e a ideologia da época através da explicação do porquê que o personagem “Jerônimo” não podia se casar com “Aninha”. Deixemos que Moacir Barbosa, ouvinte da época, conte-nos essa história: Por exemplo, nós escutávamos a novela nos anos 50 mais famosa que era “Jerônimo – o Herói do Sertão”. Então essa novela, aí entra a questão da linguagem do rádio, da especificidade do rádio, a questão da imagem mental que o rádio propicia pra gente, a nossa diversão era imaginar os tipos que estavam por trás das novelas. Por exemplo, a gente ficava imaginando como seria Jerônimo – o Herói do Sertão? Jerônimo tinha uma noiva chamada Aninha, nunca deixaram de ser noivos, e o próprio Moisés Weltmam, que foi o autor da série, ele dizia: eu “nunca permiti que Jerônimo casasse porque era uma questão moral. Comunicação, Linguagem e Inovações MidiáHcas
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Por exemplo, Jerônimo se dizia sempre envolto em aventuras, então ele estava sempre conhecendo mulheres, se eu é... se ele casasse ele estaria sujeito a...era uma coisa da moral da época, o adultério, seria uma coisa inconcebível. Ao passo que, sendo noivo, quer dizer, a coisa ficaria atenuada, seria uma traição corriqueira, então por isso eu nunca permiti que Jerônimo casasse”. Aí ficávamos imaginando como seria Aninha, a noiva de Jerônimo. Jerônimo era acompanhado por um personagem, chamando moleque Saci, que era um trio, o trio que estava sempre em todas as aventuras. Então nós ficamos pensando em como seria Jerônimo? Como seria Aninha?Como seria o moleque Saci? (MOACIR BARBOSA − INFORMANTE 1).
Além de reiterar os valores sociais estabelecidos, o seriado “Jerônimo – o Herói do Sertão” cumpria a função de ativar o imaginário dos receptores. O relato do Informante 1, na condição de ouvinte do rádio, deixa claro a tentativa de criar uma imagem visual para “Jerônimo”, “Aninha”, “Saci” e os outros personagens. Quantos ouvintes não vibraram com as peripécias do herói? E quantos choraram com os infortúnios da mocinha? Podemos usar as palavras de Machado, citadas por Morin (1997, p. 60), “Sonhei sem dormir talvez até mesmo sem acordar”. Enquanto ouviam os seus heróis, os ouvintes sonhavam em sê-los, quem sabe até mesmo gostariam que esse sonho se tornasse real, portanto, o rádio, em especial a ficção, possui o poder de fazer com que a mente trabalhe com aquilo que está no inconsciente e como expressa Morin (1977): O imaginário começa na imagem-reflexo, que dota de um poder fantasma – a magia dos sósias – e se dilata até os sonhos mais loucos, desdobrando ao infinito, às galáxias mentais, não só delineia o possível e o imaginário mas mundo possíveis e fantásticos (MORIN, 1977, p. 68).
Para a criação das imagens mentais através das radionovelas, a linguagem descritiva era primordial porque ela expunha as cores dos objetos, as características físicas dos personagens, criavam um campo propício para ativar a imaginação. Na Rádio Poti, de acordo com as narrativas orais, antes das peças radiofônicas ou radionovelas entrarem no ar havia a narração inicial do enredo, do cenário e dos personagens. Mas, para entender e se deixar en50
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volver na ludicidade proposta era preciso escutar a emissão. Parece ingênuo fazer essa observação, mas não o é quando sabemos distinguir o ouvir do escutar. Angel Faus Belau, citado por Ferraretto (2000), faz a separação: [...] ouvir é um estado passivo, automático, enquanto que escutar implica uma atenção desperta, ativa, que formula perguntas e sugere respostas, que se antecipa à ação futura que talvez vá incrementar a audição. Ouvir não põe em jogo mais do que os canais do ouvido. Escutar engloba todo o circuito do pensamento (BELAU apud FERRARETTO, 2000, p. 28).
É por isso que os ouvintes reunidos diante do aparelho receptor faziam silêncio para compreender as tramas, pois o propósito era escutar a radionovela voltando-se para ela uma compreensão responsiva. Alguns ouvintes nem se quer possuíam o aparelho receptor, mas não deixavam de escutar as radionovelas, Glorinha Oliveira explica como isso era possível: Por exemplo, você tinha um rádio, eu não tinha, a vizinha não tinha, então ia tudo pra sua casa na hora da novela: “ah! vou ver a novela!, Gessy Lever apresenta: “Tormento de Amor”, aí todo mundo calado que não dava um pio!, todo mundo, né? quando dava o intervalo: papa...”comentava ..., quando começava todo mundo calado. Era isso, essa aproximação das pessoas com o rádio, procurando saber o que é bom, sabe? Vivendo aquele amor impossível, às vezes, vivendo um drama, quer dizer isso era bom porque agente chorava, a gente ria, comentava, entendeu? (GLORINHA OLIVEIRA − INFORMANTE 5).
O rádio e um dos seus conteúdos mais populares – a radionovela – interferiram no cotidiano social das pessoas, seja pelo fato de transportá-las para uma realidade imaginária, onde os sonhos são realizados, seja aproximando-as numa mesma coordenada espacial ou não, unido-as pelo mesmo intuito primordial de escutar o que se busca no real. 4.2 O humor entra em cena Além das novelas a Rádio Poti também veiculou programas de humor que fizeram uso das técnicas de dramaturgia. O mais famoso programa de humor denominava-se: “Beco sem Saída”, produzido por A. G. de Melo JúComunicação, Linguagem e Inovações MidiáHcas
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nior, de Recife, mas interpretado por radioatores potiguares, tendo como personagem central o Dr. Toxó – um cara esquecidíssimo – interpretado pelo radioator Teixeira Netto. Sobre esse programa de sucesso fala o ouvinte Alberto da Hora: No sábado tinha, à noite, um programa humorístico muito famoso aqui, e que também era muito, tinha muita audiência que se chamava “Beco sem Saída”, né? Um programa humorístico, assim por excelência, nos moldes desses que aparecem em televisão, quadros, com quadros... [...]. A participação era muito..., não vou usar o termo total, mas era muito concorrido, era muito, era muito grande porque, em termo de mídia assim, né? Não havia ainda... a televisão tava no início (ALBERTO DA HORA − INFORMANTE 3).
O “Beco sem Saída” era apresentado no auditório da emissora Poti por alguns radioatores do cast da rádio. O radioator e locutor Wanildo Nunes descreve a sua participação no programa, representando o personagem “Zé Cruzeirinho”: Tinha “Beco Sem Saída” que revelou muita gente... eu participava dele como locutor e, eu fazia uma participação também como humorista. Fazia a locução e fazia humorismo com um personagem chamado “Zé Cruzeirinho”, porque o cruzeiro naquela época começava a despontar, que foi em 1942, se não me falha a memória e, ele era muito fraco diante da moeda americana, que era o dólar. Então, eu fazia o “Zé Cruzeirinho”, o americano fazia: “Zé Cruzeirinho’ como vai você?” Aí eu dizia: “estou muito fraquinho.” Era assim. Porque era fraco diante da potência do dólar (risos) (WANILDO NUNES − INFORMANTE 7).
É possível verificar que no “Beco sem Saída”, por trás do objetivo de provocar o riso, encontrava-se também o de criticar. Ao passo que os receptores se divertiam com o personagem “Zé Cruzeirinho”, tomam conhecimento, se não o tivessem, da inferioridade da moeda brasileira diante do dólar americano. Isso reafirma o que disse Lia Calabre (2004) sobre os programas de humor, nos anos dourados do rádio corresponderem a uma crítica do cotidiano. Além disso, também acreditamos que a ficção tanto pode estar a serviço da realidade, sendo útil a ideologia dominante, como a serviço 52
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da realidade para denunciá-la. É o caso do personagem “Zé Cruzeirinho” que expôs a realidade econômica da época através da ficção. (Arquivo Pessoal de Wanildo Nunes)
Programa Beco sem Saída: Wanildo Nunes, Teixeira Netto e Glorinha Oliveira Oliveira
Outro personagem do “Beco sem Saída” era “Agripina – a mulher mais feia do mundo” que nutria o desejo de um dia se casar, foi então que..., é melhor deixar que a informante 5, intérprete do papel, conte essa história: Agora o pai dela dava tanto dinheiro pra ela casar, pro povo e ninguém queria ela. Aí fizeram uma festa bem grande, uma festa tudo de máscara, aí foi uma festa muito grande, muita gente rica e tudo aí, quando dá meia noite tinha que tirar a máscara, né? Aí deu meia noite um cara bem interessado, né? Sabia que o pai dela ia dá muito dinheiro, aí de repente o cara dançando com ela disse: “você não vai tirar a máscara não? e ela dizia: e eu tô de máscara?,” aí minha filha caiu o pano, o cara foi embora e terminou a pobrezinha sem casar (GLORINHA OLIVEIRA − INFORMANTE 5).
A partir do relato acima sobre o personagem Agripina, e sabendo que o personagem Dr. Toxó – um cara esquecidíssimo, também fazia parte do “Beco Sem Saída”, dizemos que esse programa trabalhava na ficção com o que não era tolerado no real, ou seja, a feiúra e o esquecimento, buscando o riso por meio de atributos que, na vida real, são rejeitados. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS Conhecer a produção ficcional da Rádio Poti leva-nos a verificar como as potencialidades do rádio foram usadas para encantar os ouvintes nos anos dourados da radiofonia potiguar. Percebemos que a emissora Poti seguiu o modelo das principais emissoras do país transmitindo as radionovelas que mesclavam realidade e ficção, reunindo a família diante do aparelho recepComunicação, Linguagem e Inovações MidiáHcas
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tor e provocando uma fuga das preocupações cotidianas a partir da criação de um mundo imaginário, constituído a partir das elaborações mentais. Além disso, veiculou programas humorísticos, baseados na dramaturgia, usando dos acontecimentos e dilemas sociais introduziram uma diversão pautada na reflexão. NOTAS 1 - Doutoranda e Mestre em Estudos da Linguagem – PPgEL (UFRN). Professora do Instituto Federal do Rio Grande do Norte – IFRN. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BARBOSA FILHO, André. Gêneros Radiofônicos: os formatos e os programas em áudio. São Paulo: Paulinas, 2003. CALABRE, Lia. A Era do Rádio. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004 CHAUI, Marilena. A imaginação. Net, São Paulo: Editora Ática, 2000. Disponível em: <http://br.geocities.com/mcrost02/convite_a_filosofia_19.htm>. Acesso em: 08 maio de 2006. FERRAZ, Nivaldo. A dramatização sonora. In: BARBOSA Filho, André (org). Rádio: sintonia do futuro. São Paulo: Paulinas, 2004 FERRARETO, Luiz Artur. Rádio: o veículo, a história e a técnica. Porto Alegre: Sagra Luzzatto, 2000. GOLDFEDER, Miriam. Por trás das ondas da Rádio Nacional. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980. HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. São Paulo: VERPICE, 1990. MEIHY, José Carlos Sebe Bom. Manual de História Oral. 4. ed. São Paulo: LOYOLA, 2002. 54
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ORTIZ, Renato. A Moderna Tradição Brasileira – Cultura Brasileira e Indústria Cultural. São Paulo: Brasiliense, 1994. THOMPSON, Paul Richard. A Voz do passado. Tradução de Lólio Lorenço de Oliveira. 2.ed. São Paulo: Paz e Terra,1998. WALTY, Ivete Lara Camargos. O que é ficção? São Paulo: Brasiliense, 1999.
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A Folha de S. Paulo, o grande irmão e as Diretas Já Prof. Dr. Emanoel Francisco Pinto Barreto¹ 1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS Em ação voltada à sua inserção no mercado jornalístico de forma hegemônica, a Folha de S. Paulo desencadeou o Projeto Folha2, que consiste em
elaborado sistema de pensamento ideológico-organizacional, com ação para dentro e para fora da Redação. É ao mesmo tempo processo tático e estratégico. Tático em sua face interna, quando se manifesta em conjunto de normatizações jornalístico-produtivas voltadas para impor o jornal ao mercado como produto de excelência. Estratégico porque grande política. Objetiva, pelo sucesso editorial e de mercado, atuar de forma privilegiada como aparelho privado de hegemonia. Seu implante significou drástica intervenção da Direção sobre a Redação, que se viu subsumida a intenso processo coercitivo a fim de, disciplinadamente, atuar como intelectual orgânico coletivo. Instalado o processo a FOLHA passou a atuar internamente em duas frentes. A primeira voltou-se para modificações no aspecto gráfico com a adoção de cores, inclusão de gráficos e infográficos como paritários aos textos e uma rígida disciplina na forma como aqueles deveriam ser redigidos. Objetivo: dar ao jornal feição moderna, identidade gráfico-visual que o insinuava ser vanguardista, inovador e mais fácil de ser lido. Na segunda frente, eminentemente voltada para desmantelar o jornalista enquanto categoria, promoveu demissões em massa, entrou em choque com o Sindicato dos Jornalistas de São Paulo, passou a manter fichas de avaliação dos profissionais, exigiu dedicação exclusiva aos contratados e excluiu do Conselho Editorial quem não fosse tido como defensor intransigente do Projeto Folha. O jornal tem rígidos cronogramas de fechamento de edições e metas trimestrais para aferição de produtividade, o que se deu após disseminar 56
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ideologia voltada para a formação de quadros, por transformismo e/ou coerção. Sua unicidade permitiria o funcionamento da Redação como intelectual orgânico coletivo. Ao início do processo a Direção emitia periodicamente documentos de conteúdo ideológico, em que convocava a Redação a manter-se em atividade plena, analisava seu desempenho e opinava a respeito de mercado, leitores e política nacional. De 1991 a 1997 divulgou 14 desses documentos – cinco dos quais tidos como básicos para o Projeto Folha – e editou três Manuais da Redação: o primeiro em 1984, o segundo em 1987, o terceiro em 1992; todos em visceral convergência com as pregações contidas nos mencionados documentos. O Projeto busca estabelecer discurso que seja visto como racional, em níveis interno ou externo ao jornal. Legitima sua presença de mundo em função de que é “membro” desse mundo e vocaliza seus valores, como acorreu durante a campanha Diretas-já. Tomando esse movimento pluriclassista como ponto inicial, faremos, a partir de agora, digressão analítica que entendemos como essencial à compressão dos fundamentos ideológicos e funcionais do Projeto Folha. A FOLHA assumiu a bandeira das Diretas-já e mimetizou-se por inteiro à sociedade civil, mobilizada contra a ditadura advinda do golpe militar de 1964. A partir de então, passou a ser vista como entidade jornalística engajada aos movimentos sociais. A observação a seguir, entretanto, sinaliza o contrário: A Folha sempre foi vista pelo empresariado com mais reservas do que qualquer outro dos grandes veículos de comunicação do país pelas suas posições politicamente tidas como mais avançadas, mas não poderá jamais ser considerada – sob pena de ser expelida do sistema de mercado no qual atua e crê necessário atuar – um órgão opositor do establishment (SILVA, 2005, p.181).
A ação está em aliança com a ordem, com o mercado. Como nas Diretas-já havia assumido posição supostamente aguerrida, sua capacidade de influenciar setores mais à esquerda fora realçada. O entusiasmo da Redação era tamanho que os jornalistas se acreditavam autorizados a engajar as editorias em que trabalhavam a favor de causas ligadas à sociedade civil, mesmo Comunicação, Linguagem e Inovações MidiáHcas
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passada a fase das Diretas-já. Supunha-se que o jornal se manteria em cruzada. Mas isso não mais interessava à Direção. “Havia, assim, uma necessidade política2 [de] aumentar o sistema de controle sobre o trabalho dos jornalistas” (SILVA, 2005, p. 181, grifos nossos). Dando ou não apoio a teses populares, a atuação da FOLHA é política. Pode ser vista tanto como grande quanto pequena política. Grande política quando se ligou àquele movimento pluriclassista. Pequena política ao enfatizar noticiário ou opinião renitente, ressaltando intrigas ou assuntos menores que destaquem pontos positivos ou negativos de ator político ou entidade que circunstancialmente lhe seja aliado ou adversário. A ênfase, positiva ou negativa, sustentada pela “objetividade”, mascara a opinião subjacente. “A ‘pequena política’ [no jornalismo] poderia ser facilmente identificada com a práxis manipulatória [...]” (COUTINHO, 1989, p. 54). Todavia, “é grande política tentar excluir a grande política do âmbito interno da vida estatal e reduzir tudo a pequena política [...]” (GRAMSCI, 1988, p. 159). Com isso há elisão jornalística dos grandes temas, em benefício de assuntos que não tratem de questões estruturais. Praticando grande política o jornal aliou-se mansamente ao golpe de 1964. Não foi censurado. Em sentido inverso, praticou também grande política ao imiscuir-se à campanha das Diretas-já, obscurecendo, pelo aluvião, da História, o passado incômodo. Ou seja: pela superposição do positivo ao negativo obnubilou-se o segundo, surgindo a FOLHA como ator remido. O passado fora “alterado para melhor”. Com essa sobreposição, na sequência do tempo histórico obteve inesperado e auspicioso poder: o poder de “construir o seu próprio passado”. Esse passado – heroicizado, dignificante, bom – será sempre utilizado como documentação comprobatória de que o jornal seria instância legítima e qualificada a falar em nome e ao lado da sociedade civil. O jornal torna-se proprietário de verdade benigna, a verdade de que participou destacadamente da campanha e “estava do lado certo”. Tal participação está documentada nos seus arquivos. É prova material “incontestável”. Em sucessivas edições, que podem ser consultadas por qualquer um, está registrado que teve papel essencial para a consolidação do movimento. Em outras palavras: 58
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o jornal “arriscou-se” pela redemocratização. Sempre e quando achar necessário, a Direção chamará pelo seu passado, instrumentalizando-o como dado garantidor de credibilidade no antes, no agora e no depois. O passado não existe apenas porque se deu, mas porque se tornou propriedade imaterial fetichizada e aurática. Neste ponto façamos uma observação a respeito da inserção da FOLHA na sociedade civil, pois foi aí que teve presença o espetáculo das Diretas-já. Frente à perspectiva gramsciana, sociedade civil e sociedade política não são instâncias apartadas e/ou mesmo conflitantes. Não há, organicamente, distinção entre ambas. Sociedade civil e sociedade política são distinções analíticas produzidas por Gramsci, para melhor expor suas ideias a partir do conceito de Estado integral, que as abrange. A sociedade civil não é, portanto, uma instância do real. Ela é uma das formas da natureza estatal. A acentuação da forma “privada” dessas instituições, do seu caráter de regulação não nega (nem o poderia) o seu caráter estatal nem o seu caráter classista, como querem os liberais. Esse aspecto “privado” não se opõe ao aspecto público. No Brasil, todos sabemos, o capital e a dita iniciativa privada são fundamentalmente constituídos pelo público, pelo Estado. [...] No pensamento marxista, a oposição permanente que se estabelece é entre as classes em presença e a forma estatal das classes dominantes. Esse estado conforma aquilo que os liberais chamam de sociedade. Se não existe sociedade sem Estado, pelo menos após a diferenciação das classes, esse Estado é sempre aquele que explicita a racionalidade dos dominantes ou, como diz Gramsci, aquele que cria as condições de máximo desenvolvimento daquelas classes (DIAS, 1996, p. 113).
Desmancha-se a visão de sociedade civil “neutra”, solidária e sem conflitos. Ao contrário, trata-se de realidade infensa à horizontalidade que os liberais apregoam. Tais observações nos indicam que ser falacioso pensar a sociedade civil como articulação orgânica de instituições diferenciadas. Tal visão resulta em compreensão homogeneizadora e subalternizante, que implica reducionismo e ocultação dos conflitos sociais, como pretendem os liberais (DIAS, 1996). O embate entre instituições ocorre permanentemente, em processo Comunicação, Linguagem e Inovações MidiáHcas
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objetivo de luta. Sob o ponto de vista dos trabalhadores, sua inserção na sociedade civil ocorre a partir de ação consciente frente aos movimentos sociais organizados, sendo o movimento dos trabalhadores ele próprio movimento social organizado, com potencial de divergir contra-hegemonicamente. Isso lhe permite o ingresso na sociedade civil não de forma equiparada, aplainada a outros movimentos, mas como parcela pensante e dialeticamente questionadora. Essa mudança de foco não significa desconhecer o plano e o peso das instituições, nem política nem analiticamente. Pelo contrário. Ao colocar o movimento social, com toda a sua contradição, no centro da luta social, percebe-se o alcance real da sociedade civil. Desmistificada, ela se revela espaço de luta e não mais cenário de pactos sociais. Ela se apresenta, agora, no pleno de suas contradições. Não cabe mais a ilusão de que ela é necessariamente progressista. Isto nos mostra a falácia e a armadilha da afirmação da necessidade de “organizar a sociedade civil”. Lembremos, à guisa de exemplo, que a UDR faz parte da sociedade civil organizada. E como! Para não falarmos do mais poderoso aparato da sociedade civil no Brasil: a Rede Globo (DIAS, 1996, p. 114).
Feitas essas observações chegamos ao aspecto pontual que nos interessa: a presença da FOLHA como força conservadora e participante do centro da luta social das Diretas-já. Plasmada a movimento pluriclassista, e tendo a seu favor o fato de que efetivamente participava (e participa) da sociedade civil nos termos acima propostos, foi fácil apresentar-se como defensora da redemocratização do país. Mas, em si, o movimento não era revolucionário; antes lutava para que se fizesse a restauração de um status quo em que a sociedade era consultada na escolha, pelo voto, do presidente da República. Como o movimento era restaurador, mesmo representando expressivo ganho à redemocratização, não ameaçava os postulados ideológicos da empresa. Nem a ela ou à estrutura e superestrutura dominantes. Assim, adentrou à empreitada e contribuiu para sua divulgação participante. O movimento das Diretas-já representou virtualmente a dissolução das contradições classistas da sociedade civil em solvente social momentâneo. Forças progressistas e conservadoras formaram um complexo voltado para reversão de quadro, mas 60
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sem profundidade estrutural. E a empresa, assumindo por coordenação alguma forma de direção do movimento, agregou valor histórico à sua atitude tática. A mobilização teve início num domingo, dia 27 de novembro de 1983 em São Paulo, e foi assim saudado com o editorial “Aos cidadãos”: A cidade de São Paulo se prepara hoje para a primeira manifestação pública a favor das eleições diretas para a Presidência da Republica. Mais do que anseios de grupos ou setores, trata-se de uma exigência nacional longamente amadurecida na reflexão e na prática. O cenário não poderia ser mais apropriado. Os mais dramáticos e surpreendentes episódios da atual transição democrática se passaram em São Paulo, impulsionados pelo dinamismo da cultura industrial aqui instalada. Território de novos conflitos e atitudes, esta cidade constitui o paradigma de uma sociedade complexa, cuja expansão não se pode mais conter nos limites acanhados da tutela. O que se reclama, em última análise, é a devolução do direito de autogoverno. Adiá-la, nas atuais circunstâncias, poderá transformar o descrédito que separa a sociedade e o poder que a governo em antagonismo irredutível3. A Folha atribui importância à manifestação programada para esta tarde. Esperamos que nela a presença madura, firme e serena dos cidadãos de São Paulo possa traduzir o desejo de todo o povo brasileiro, a esperança em um futuro renovado e a certeza de que conquistaremos a dignidade política, pela qual se mede o valor de uma Nação (FOLHA DE S. PAULO, 1983, p. 2).
A FOLHA começava a construção do passado dignificante. Dia seguinte à mobilização, a manchete da página 4 afiançava: “Ato pelas diretas leva 15 mil à praça Charles Miller”, com o subtítulo: “Os pronunciamentos de representantes de 70 entidades enfatizaram a necessidade de devolver ao povo a escolha de seu presidente”. A campanha pelas eleições diretas para escolha do próximo presidente da República ganhou as ruas, pela primeira vez, ontem à tarde, em frente ao estádio de futebol Pacaembu, quando representantes de 70 entidades integrantes da sociedade civil e da classe política (PMDB, PT e PDT), além de um público calculado em 15 mil pessoas, realizaram o primeiro ato público cujo objetivo fundamental foi solidificar a tese de que sem eleições diretas não há democracia (FOLHA DE S. PAULO, 1983, p. 4).
Toda a página foi dedicada à cobertura, com matérias expondo diversos Comunicação, Linguagem e Inovações MidiáHcas
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ângulos do acontecimento. Uma grande fotografia no alto da página dava exultante dimensão do público que havia comparecido. Foto do então operário Luís Inácio da Silva, que a imprensa chamava de “o Lula”, trazia legenda anunciando que ele prometia “novas manifestações”. Ao lado, o sociólogo Fernando Henrique Cardoso deplorava o Colégio Eleitoral, que elegia indiretamente o presidente: acusava-o de ser “um instrumento desmoralizado”. A cobertura militante foi mantida ao longo de todo o período. O jornal assumira atitude e prática de partido. Registrava os comícios, atos públicos, passeatas, o grito das ruas. Cobriu tudo, até à derrota da Emenda Dante de Oliveira, que instituía as diretas, votada dia 25 de abril de 1984. Então, o jornal veiculou a seguinte manchete: “Sem apoio do PDS, a emenda das diretas é rejeitada”. O antetítulo anunciava: “A marcha da decepção.” Em texto indignado, o jornalista Clóvis Rossi, enviado especial a Brasília, dizia: Foi a noite da vergonha: vergonha nos gestos dos deputados do PDS que ou se ausentavam do plenário ou, quando votavam não, geralmente o faziam de seus próprios assentos, sem coragem de enfrentar o microfone de apartes, de onde deveriam proferir o voto. Vergonha pelo escandaloso esquema de policiamento montado ao longo da Esplanada dos Ministérios, restringindo o acesso ao Congresso Nacional (ROSSI, 1984, Política, p. 5).
O momento histórico propício à “ocidentalização” e os desdobramentos favoráveis à reversão do quadro de ditadura, formaram caldo ideológico providencial. O jornal usufruiu das circunstâncias e afirmou imagem de “avançado” e parceiro da sociedade civil em sua face pluriclassista reivindicante. Vista de hoje, a construção desse passado oportuno desvela os rumos para a consolidação do Grupo Folha como formulador de grande política, empresarial e politicamente. Esses dois fatores, plásticos entre si, são dinamizados pela motricidade ideológica contida no Projeto. 2 A FOLHA e o “Grande Irmão” A partir das Diretas-já como passado benéfico construído, propomos constatação singular: à alusão feita à construção e controle do passado – do 62
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jornal pelo jornal – se apresenta como pista que nos permite estabelecer analogia entre o agir da FOLHA e a realidade ficcional da obra de George Orwell 1984. Ali, entidade fetichizada, o Grande Irmão, tem a seu serviço o Partido, intelectual orgânico coletivo que manipula continuamente o passado a favor da manutenção, no presente, da ordem instituída. A rememoração desse passado dá ao Grande Irmão a imagem demiúrgica de condutor imperial da história. Como ocorre, no plano vivido, com a FOLHA em relação ao capitalGrande Irmão e em relação a si própria, Partido. Tomando-se como ponto de partida o fato de que a ficção não é algo descolado ou falseamento do real, mas ilação tomada a partir do real para sobre este incidir criticamente, entendemos como passível a utilização de obra ficcional para os fins aqui pretendidos. A ficção lança sobre o mundo da vida um olhar de estranhamento, questionador. Com isso faz seu desnudamento. O mundo ficcional é artificial, mas advindo de visão lúcida sobre o mundo da vida que, por sua vez, também resulta do homem na sua condição de artífice. Essa condição de artificiar a vida dá parte à ideologia como processo ilusivo, que permite a imersão do sujeito em realidade falsamente representada. Disto, porém, não se dá conta, e por isso mesmo a vive como circunstância condicionante e “real”. A ficção lúcida, em antítese, reconverte a razão ao ato compreensivo do sujeito cognoscitivo e expõe o real fático em sua situação ilusionista. A ficção é uma forma de real, embora não realidade no sentido de nela estarmos imersos. É o real escandido, criticando o real fático-artificial. Situa-se noutro plano, mas é significante válido, já que aquele infere e desmistifica. No mundo orwelliano, e nas páginas da FOLHA há um dado, um traço de união que estabelece e explica nossa escolha por esse tipo de abordagem: é possível perceber-se a presença da ideologia como elemento central a disciplinar toda a trama, seja a jornalística, seja a ficcional. A ideologia é o ponto nodal entre um universo e outro, ponto qual nos utilizaremos para desenvolver a abordagem proposta. Sendo a ideologia processo relacional de ilusão, reversão e ocultação do real, mas sendo também aspecto composto à realidade enquanto representação desta, temos que, no mundo vivido e na obra literária, esta se encontra exemplarmente expressa, ou seja: a ideologia, em suas manifestações Comunicação, Linguagem e Inovações MidiáHcas
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fenomênicas, é real num e noutros planos. A diferença é que a leitura da FOLHA, em sua forma positiva, é ilusiva. Por sua vez a leitura de Orwell é desvelamento, ação crítica sobre o processo ilusório. Mas o processo ideológico é idêntico: os planos de realidade onde a ideologia se manifesta – ficção e jornalismo – é que se alternam ao mesmo tempo em que experimentam relação de complementaridade pela circunstância de serem, ambos, representações da realidade. O que o autor de 1984 exercita é sua crítica à ideologia do mundo da vida, trazida por ele para a metalinguagem do discurso literário. Do mesmo modo que o fazemos, neste trabalho, com relação à FOLHA. Assim, a obra de Orwell está plenamente inserida no mundo vivido, no momento mesmo em que é lida e o refuta ideologicamente. Da mesma forma, nosso texto está em atitude invasiva e reveladora da ideologia do jornal. A ideologia é a liga que funde 1984 à FOLHA e os torna implicados. A partir deste aspecto formularemos nosso ato compreensivo quanto ao trabalho do jornal, esclarecendo, todavia, que será complementar às visões gramscianas. Antes de nos aprofundarmos na citação de excertos orwellianos que estabelecem esta paridade, insistimos: temos consciência de ser inusual e atípica a utilização bibliográfica de obra ficcional para dar sustentação a trabalho de cunho acadêmico. Seja para a definição do objeto de conhecimento ou para seu alicerce teórico-metodológico. Permitimo-nos, porém, esta licença analítica, a partir de questionamento quanto ao que sejam “objeto real” e “objeto teórico” e as premissas para delimitação de um e outro e suas interconexões. Valemo-nos da citação a seguir para adensar a justificativa pela utilização da obra de Orwell: “[...] analiHcamente, o “objeto teórico” é disHnto do “objeto real” e interpreta essa sentença no senHdo em que foi claramente indicado por Marx em Para a críHca da economia políHca. Isso quer dizer que o real, para o conhecimento não aparece imediatamente em sua concreHcidade. Não é a objeHvidade evidenciada diretamente pelos senHdos que consHtui o concreto, mas a síntese de suas múlHplas determinações enquanto concreto pensado, embora a concreHcidade 64
Emanoel Francisco Pinto Barreto/ A Folha de S. Paulo, o grande irmão e as Diretas Já
que o consHtua seja o verdadeiro ponto de parHda. O percurso do conhecimento vai do abstrato ao concreto, das abstrações mais gerais produzidas pelos conhecimentos anteriores [...] até o momento da síntese realizada pelo conceito para apanhá-lo em suas determinações específicas, isto é, como concreto pensado. [...] Neste senHdo, o “objeto real” é o próprio fenômeno, aquilo que aparece imediatamente aos senHdos e se anuncia na experiência presente, assimilada de forma isolada e fragmentária. E o “objeto teórico” (ou “objeto de conhecimento”) é a realidade observada sob o ângulo dos conhecimentos acumulados preliminarmente, ou seja, nos limites em que isso foi possível já vinculada (a realidade) ao seu princípio. Assim, dois aspectos merecem ser ressaltados. Primeiro, que o “objeto teórico”, tal como o “objeto real”, não é algo dado de uma vez para sempre, alguma coisa fixa e inerte, mas um processo de construção paralelo à produção da própria realidade humana. Segundo, que não existe um fosso intransponível entre um e outro, mas uma transformação constante e progressiva do “objeto real” em “objeto teórico” e vice-versa. É se apropriando do mundo que o homem vai realizar essa transformação e, através dela, revelando a verdade do objeto real [...] (GENRO FILHO, 1987, p. 5, grifos no original). A partir destas observações propomos: é essencial, em trabalho acadêmico, a utilização de referencial ficcionista para a construção e abordagem de “objeto teórico”? Certamente que não. Mesmo assim, cogitamos: seria possível, aqui no sentido de admissível, sua utilização? Supomos que sim. Justificamos: tomando-se como parâmetro a assertiva de que o “objeto teórico” é “um processo de construção”, advindo, portanto, de sujeito cognoscitivo, entendemos ser possível/admissível agregar material ficcional a tal processo; isso, desde que se estabeleça nexo de proximidade ou coincidência entre a ficcionalidade e as propositivas teóricas, quando nos remetemos ao “objeto real” e sua análise. Assim, a desconstrução do “objeto real” FOLHA DE S. PAULO e sua reComunicação, Linguagem e Inovações MidiáHcas
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construção no “objeto teórico” FOLHA, como a vimos designando, dá parte à ficção quando percebemos homologia entre os textos jornalísticos sob análise e a escritura do universo orwelliano. Ou seja, há uma intertextualidade a estabelecer paradigma heurístico-verossimilhante. A abordagem literária, a semiose impressionista das citações orwellianas, atiradas do mundo ficcional para dentro do mundo do jornal, acentua o dado burlador e burlesco do discurso imanente ao objeto FOLHA e seu Projeto. A abordagem teóricogramsciana, por sua vez, deslinda a prática ideológica perpetrada pelo jornal, agora na facticidade das ações. Assim, estabelecemos uma espiral interpretativa. A nosso juízo não há um fosso intransponível a tal admissibilidade, resultando assim argumento novo de abordagem. Trata-se, estimamos, de contributo que, mesmo idiossincrático, sui generis, intencionalmente gauche, que traz um adendo às formulações acadêmicas sem prejuízo da integridade do estudo em percurso. Estabelecida tal proximidade, comecemos por duas citações: “Quem controla o passado”, dizia o lema do Partido, “controla o futuro; quem controla o presente, controla o passado” (ORWELL, 1975, p. 36). Trata-se de situação em que uma circunstância implica a outra, em processo circular de conservação e mudança para conservar, funcionando o presente como momentum de reflexão e refazimento de forças do sistema. O controle do passado foi um dia exercício atual de domínio histórico conservador. A partir desse marco zero, a mudança do passado que se reatualiza é a escritura mutante desse passado, que renasce na alteração diária do noticiário. A medida é premunitiva dos dominantes: é preciso manter o passado em dia, preservar o domínio vindo daquele passado e reescrevê-lo todos os dias, para perpetuar-se no poder. Este tem sido efetivamente o trabalho das elites, de seus intelectuais orgânicos e aparelhos privados de hegemonia: viver o presente, mas sempre como dádiva que lhes deu o passado. Como se o passado fosse uma espécie de “presente anterior que hoje ainda se posta” e assim assegurarem-se de que continuará ilimitadamente. O controle do passado significa também glorificar no presente a obra dos dominadores, reafirmando-a como universal e desejável, legado e bem-comum. Vamos à segunda citação: 66
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O passado é o que dizem os registros e as memórias. E como o Partido tem pleno controle de todos os registros, e igualmente do cérebro dos seus membros, segue-se que o passado é o que o Partido deseja que seja. Segue-se também que, embora o passado seja alterável, jamais foi alterado num caso específico. Isso se aplica mesmo quando, como acontece com frequência, o mesmo sucesso tem de ser alterado várias vezes no decurso de um ano. Todas as vezes o Partido é detentor da verdade absoluta, e claramente o absoluto não pode ser nunca diferente do que é agora. Ver-se-á que o controle do passado depende, acima de tudo, do treino da memória. Não passa de ato mecânico certificar-se de que todos os registros escritos concordam com a ortodoxia do momento. Mas também é necessário recordar que os acontecimentos se deram da maneira desejada. [...] Esse é um truque que pode ser aprendido como se aprende qualquer outra técnica mental. [...] (ORWELL, 1975, p. 199-200, grifos nossos).
Os registros e as memórias do jornal o “confirmam” diariamente como credível. O próprio fato de ser editado é parte do discurso de credibilidade. Quando da ditadura, a ortodoxia do momento o mandava coonestá-la. A mesma ortodoxia agora o diz hoje jornal de mercado, mas, quando nas Diretas-já, o apresentava como olhar e voz da sociedade civil. O passado velho das Diretas-já foi substituído pelo passado transitório do dia a dia da atualidade e hoje a FOLHA atende o mercado. Trata-se, como vemos, de verdade moldável, volúvel, que se resolve sob as mãos da Direção. Estabelecendo paralelo entre o dizer orwelliano e o discurso da FOLHA, temos a palavra de Odon Pereira, intelectual orgânico daquela. Jornalista, trabalhou na Redação de 1969 a 1983, com intervalos. Foi repórter, repórter especial e exerceu cargos de editor de Cidades e Secretário de Redação (PASCHOAL, 2007). Para Odon, “os autores da reviravolta da Folha são o sr. Frias e o [jornalista] Cláudio Abramo. O sr. Frias com a extrema capacidade mercadológica de identificar onde estava o mercado para o jornal, e o Cláudio, com a capacidade de traduzir isso para uma linguagem jornalística e política adequada – quando eu digo jornalística e política é porque na época não bastava, e creio que ainda hoje não basta, uma visão meramente jornalística, era preciso adaptar isso também aos ventos da política.” A [...] fase de maior crescimento da Folha e que a colocou como concorrente Comunicação, Linguagem e Inovações MidiáHcas
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disputando o primeiro posto entre os jornais brasileiros, [é a] fase pública: “A situação atual não seria possível se a Folha não tivesse o crescimento de antes. Seria extremamente frágil a base da qual ela partiria, porque todo o marketing da Folha está baseado no passado. E esse passado aconteceu nessa fase da Folha que vamos chamar de heróica [Diretas-já], quando se encerrou também a fase romântica. Encerrou-se aí a fase do jornalista boêmio, poliglota, aristotélico, com respeito universal. Essa imagem dos jornalistas declinou, [...] dando lugar à fase do marketing, da estratégia de venda do produto. [A Redação] era um ambiente romântico, em que o jornal tinha de vender com base em suas posições, seu noticiário, suas reportagens. Essa fase foi totalmente superada. Mas creio que, de qualquer maneira, o crescimento que se seguiu só foi possível porque existiu antes essa fase muito difícil, mas muito bem armada, muito bem arquitetada” (PASCHOAL, 2007, p. 150, grifos nossos).
Frias Filho, diretor-editorial, aduz: O problema [da feitura de um jornal] fica mais claro quando se tem em mente a incomensurabilidade do campo de interesse do jornalismo. As possibilidades não se esgotam jamais e na sua resolução há, portanto, um núcleo de arbitrariedade, de pessoalidade irredutível. Como o artista, neste particular, o jornalista será tolo se imaginar que seu trabalho preenche um objeto, já que o seu trabalho cotidiano é, pelo contrário, conceber esse objeto, esperar que as suas habilidades para fazer assegurem a adesão de quem lê e que depois até essa adesão se torne dispensável porque ela será nada além do que um hábito. E isso é o que os jornais dizem todas as manhãs: renuncie ao mundo, gigantesco e inatingível demais para qualquer pessoa individualmente, e adote este artifício como se ele fosse de fato o mundo. A unidade do jornal é o seu próprio ritmo, mas sem o arbítrio, não há o que ritmar (FRIAS FILHO, 2005, p. 51).
Estabelecendo-se nexo entre os discursos dá-se a percepção de sua convergência. O poder – seja do Partido orwelliano, seja da FOLHA – é arbitrário. Sua verdade, absoluta na legalidade interna do discurso. Sua decisão de controlar o passado e recordá-lo instrumentalmente é parte de hegemonização permanente, ajustada pelo marketing à casuística do momento. A ortodoxia emitida da FOLHA para o mundo vivido deveria assim, pelo “bom senso” do leitor, ser reproduzida em processo, como o quer Frias Filho. A partir deste raciocínio, seguir a ortodoxia jornalística seria apenas questão de aplicar-se a si 68
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um truque mental, cômodo e tranquilizador, e tudo estaria aceito como se assim fosse. O que se pretende é consenso, adesão ao que diz/prega o jornalmundo-FOLHA. Esse ato é ato mental. É artifício – o truque orwelliano – como admite o jornal. A “adesão de quem lê” tem similitude ao ideário do Partido ficcional: este prega a necessidade de o “ato mecânico certificar-se de que todos os registros escritos concordam com a ortodoxia do momento”. Aquela reza pelo sermão de que é imperiosa a adesão de que quem a lê venha a agir mecanicamente, “e que depois até essa adesão se torne dispensável porque ela será nada além do que um hábito”. Em 1984 e na FOLHA traço em comum: a busca do estabelecimento de uma fé. A presença da ideologia ligando mundo vivido e mundo ficcional. Artifício num, truque noutro, apenas uma questão terminológica – a FOLHA, da forma como mesmo se pretende, “é” o mundo. A proposta representa postulado à capitulação, renúncia ao conhecimento do que seja o real histórico. O leitor abdicaria a qualquer senso de realidade ao elaborar para si o artifício de forjar e obedecer à fé de que o jornal “é” o mundo, mesmo sabendo sua Direção que o mundo mesmo está lá fora. O chamamento chega a desejar que a adesão seja irrestrita. No fundo, nem mais adesão seria – o leitor é que estaria adesivado ao jornal. Ou seja: não mais estaria comprando um jornal; estaria adquirindo um impresso, amoldando-se à aquisição diária de qualquer coisa que lhe fora impingida. Ela, em si, não seria importante ou desimportante, apenas deveria ser comprada, como ocorre no adestramento dos personagens de 1984. A defesa da arbitrariedade do jornal dá clareza à essência autoritária do Projeto Folha e estabelece: de um lado o jornal-mundo, eminente e esclarecido; do outro o leitor mecanizado, mero consumidor. A arbitrariedade seria a manifestação do saber absoluto e incontestável do coletivo FOLHA, que teria assim chegado às alturas do Partido orwelliano. A arbitrariedade seria a capacidade de impor e fazer aceitas quaisquer verdades, uma vez que o social está sendo convidado a deixar de escolher, para simplesmente acatar. Entre o mundo de 1984 e a FOLHA há espantosa convergência. Seu trabalho manipulador resulta em que, pela mimese social que pratica, como o fez durante as Diretas-já, estanca o processo de transparência de seus verComunicação, Linguagem e Inovações MidiáHcas
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dadeiros propósitos de aparelho privado de hegemonia e passa a produzir opacidade quanto ao que é e o que pretende. Em Orwell, o Partido também produzia opacidade. O jornal busca consenso artificial. Consenso como convergência obtida mediante manipulação – o que não seria, a rigor, consenso. Seria sim consenso urdido, não resultado de conjunto de valores comuns e históricos que unem determinada classe. Capitulação de interesses classistas subalternizados perante discurso de dominação – e consequente aclamação desse domínio. Tal rendição da sociedade ao conjunto informativo que lhe é disponibilizado diariamente configura e confirma que um determinado modo de pensar, a racionalidade predominante no jornal, é a racionalidade pretendida, especialmente naqueles nichos do senso comum onde logrou penetração. A crença passa a razão. A sociedade passa a acreditar e “o ‘certo’ se torna verdadeiro” (GRAMSCI, 2001, p. 44). À medida que alguém ou grupo passa a acreditar em pressuposto, mesmo que falso, este será tido como verdadeiro e racional, fornecendo-se argumentos para sua defesa: “[...] la racionalidad de una creencia o de una acción es inherente, de manera precisa, a la verossimilitud de las razones que pueden ordenarse a partir de la afirmación de que el mundo es de tal manera” (SITTON, 2006, p. 100). Assim, quando el mundo es de tal manera, está posto e foi racionalizado. Adequando-se o leitorado ao que diz o jornal, forma-se princípio de convicção socializado. Agrega-se aí aspecto de importância perante o leitorado: a confiança, advinda da suposição de que o jornal “está sendo sincero”. A confiança ajuda a estabelecer processo comunicativo de consenso alinhavado, convicção de que o “certo” será sempre o “verdadeiro”, e mais: que esse verdadeiro poderá ser encontrado em suas páginas. Mas isso assegura apenas a ordem que interessa ao jornal, que garante que el mundo es de tal manera e que assim sempre o será. O Projeto Folha, para tanto, deu expressiva contribuição. Os aspectos acima mencionados têm, organicamente, ligações com o Projeto, formam seu arcabouço e ramificações compondo o intimus ideológico de todo o processo, seu ânimo e permanente disposição de assegurar que o jornal se mantenha “fiel” aos postulados do Grande Irmão, pelos quais propugna. 70
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NOTAS 1 - Professor do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte UFRN, Doutor em Ciências Sociais. 2 -Com relação a este, usaremos as denominações “Projeto Folha” ou “Projeto”. 3 - A necessidade de controle políHco demonstra como, internamente, o jornal impõe e busca formar um corpus profissional disciplinado e conhecedor de que, individualmente, seus membros não têm permissão para se expressar. Tal direito pertence unicamente à empresa, que os remunera para que formulem representação de mundo que coincida com o ideário da Direção REFERÊNCIAS BARRETO, Emanoel Francisco Pinto. Folha de S. Paulo – O Diário Oficial do “Grande Irmão”. Natal. 2009. 260f. Tese. Doutorado em Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio Grande do Norte. BENJAMIN, Walter. A Obra de Arte na Época de Sua Reprodutividade Técnica. In: LIMA, Luiz da Costa (Org.). Teoria da Cultura de Massa. São Paulo: Paz e Terra, 2002. p. 221-254. COUTINHO, Carlos Nelson. Gramsci - Um estudo sobre o pensamento político. Rio de Janeiro; Campus, 1989. DIAS, Edmundo Fernandes (et alli). O Outro Gramsci. 2. ed. São Paulo: Xamã, 1996. FOLHA DE S. PAULO. Aos cidadãos. FOLHA DE S. PAULO, São Paulo, 27 nov. 1983. 1º caderno, Opinião, p.2. FRIAS FILHO, Otávio. Apresentação. In: SILVA, Carlos Eduardo Lins da. Mil Dias: Seis Mil Dias Depois. São Paulo: PubliFOLHA, 2005. GENRO FILHO, Adelmo. O segredo da pirâmide - para uma teoria marxista do jornalismo. Porto Alegre: Tchê, 1987. Comunicação, Linguagem e Inovações MidiáHcas
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GRAMSCI, Antônio. Cadernos do Cárcere. Volume 2. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. GRAMSCI, Antônio. Maquiavel, a política e o estado moderno. 6. ed. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1988. ORWELL, George. 1984. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1975. PASCHOAL, Engel. A Trajetória de Octavio Frias de Oliveira. 2. ed. São Paulo: Publifolha, 2007. ROSSI, Clóvis. Sem apoio do PDS, a emenda das diretas é rejeitada. FOLHA DE S. PAULO, São Paulo, 26 abr. 1984. Política, p. 5 SILVA, Carlos Eduardo Lins da. Mil Dias: Seis Mil Dias Depois. São Paulo: PubliFOLHA, 2005. SITTON, John. Habermas y La Sociedad Contemporánea. México (DF): FCE, 2006.
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Nome do autor e Itulo do texto
Comunicação, Linguagem e Inovações MidiáHcas
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Letras de música e seu estatuto de corpus em análise de discurso: anotações metodológicas José Zilmar Alves da Costa1
O homem em sua especificidade humana cria texto para exprimir a si mesmo BAKHTIN (2003, p. 312).
1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS Considerando que as Ciências Humanas são as ciências do homem e não de uma coisa muda ou um fenômeno natural, e que o homem, em sua especificidade humana, cria texto para exprimir a si mesmo (BAKHTIN, 2003, p. 312), o texto foi o ponto de partida da pesquisa que desenvolvemos (COSTA, 2009) junto ao Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem (PPgEL-UFRN), durante a qual trabalhamos com um corpus oriundo de uma esfera específica da comunicação humana – o mundo da música. Para isso, fizemos uma seleção de canções do repertório do artista popular brasileiro Luiz Gonzaga (1912-1989), em cuja materialidade linguística fomos em busca da(s) identidade(s) do migrante do sertão nordestino, numa análise discursiva feita sob um arcabouço teórico fortemente amparado pelas reflexões de Mikhail Bakhtin, tendo como fio condutor o tema da migração. 2 ARTE E REALIDADE Vamos começar pelo problema da sua inserção no mundo das artes, que é um setor da produção simbólica de significados que certos estudos (formais) procuram dissociar do mundo da vida, como se uma obra de arte derivasse genuinamente da “fantasia”, da viagem lúdica, transe onírico ou do psiquismo de quem a escreve. Para quem habitualmente costuma alimentar 74
José Zilmar Alves da Costa/Letras de música e seu estatuto de corpus em análise de discurso: anotações metodológicas
essa oposição arte-vida, Bakhtin (1990, p. 29) lembra, “de uma vez por todas”, que não se deve opor à arte nenhuma realidade em si, tampouco imaginar o domínio da cultura como uma entidade espacial que possui limites precisos e definitivos e um território interior. Para esse teórico, o domínio da cultura está inteiramente situado sobre fronteiras, fronteiras que passam por todo lugar, através de cada momento seu. O que Bakhtin postula tornou-se sumamente pertinente para não aprisionarmos as LMs numa análise sumamente restrita a fatores verbais, estilísticos ou composicionais, mas sim vinculada à vida cotidiana e à situação pragmática extraverbal. Quer dizer, consideramos que o ato responsável de compor a LM não é um ato cognitivo alheio à realidade circundante, ou seja, não imbricado na atmosfera social. Na análise empreendida, LM é um evento da vida e não um mero artefato linguístico. Mesmo na sua eventicidade, postulamos o quanto esse material cultural detém pragmática diferente em comparação, por exemplo, a uma sentença jurídica, uma receita médica, sem desconsiderar que possa ser tanto mais ou menos detentor de uma palavra autoritária como outras formas enunciativas, ou mesmo que ela tenha menos ou mais autoridade2. Evidentemente, essa “escrita especial” possui uma natureza social e um pragmatismo específico. Decerto que, comumente, não se pode tomá-la como um ato ilocutório no mesmo nível de uma sentença judicial, de uma notícia jornalística, de um sermão, de uma ordem militar. Ainda que sua forma composicional possa ser apresentável em um desses gêneros do discurso, a potência persuasiva dela vai depender do contexto extraverbal, afinal, na eventicidade da vida, nunca se sabe, com exatidão, qual atitude responsiva imediata um texto provoca, uma vez que sua conexão com o contexto pragmático da vida lhe oferece um mundo de oportunidades pragmáticas. Ademais, parece inconteste admitir que é no processo de sua assimilação por outrem que esse tipo de texto desenvolve seu dom ilocucionário, podendo adquirir ou não sentido profundo e importante na formação ideológica do homem. Inclusive, podendo ou não se apresentar ao outrem na qualidade de informação, indicação, regra, modelo, ordem, desejo que o homem pode adotar ou não no seu agir ético. Seria ainda no processo de assimilação no mundo da vida que ela pode definir para o outComunicação, Linguagem e Inovações MidiáHcas
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rem as próprias bases de sua atitude ideológica, surgindo para esse outrem como uma palavra autoritária ou não, como palavra interiormente persuasiva ou não, assim como ocorre com a recepção de outros textos. Mesmo circulando por aí, por auditórios indeterminados e desconhecidos, e independente da autoridade de que desfrute perante seu público, essa forma de comunicação artística deriva da base comum a ela e a outras manifestações culturais (o social), mas, ao mesmo tempo, retém, como as outras, sua própria singularidade, enquanto um tipo especial de escrita comunicativa. Visto por esse ângulo, a LM mostra ser um organismo muito mais complexo e dinâmico do que parece, desde que não se leve em conta apenas sua orientação objetal e sua expressividade unívoca direta, isto é, se não for vista do lado de fora da cadeia da comunicação discursiva. Fora dessa cadeira, seria apenas “um artefato físico” ou um “exercício linguístico”. Dito isto, pressupomos LM portadora de conteúdos ideológicos e valorativos determinados, porque a língua, enquanto meio vivo e concreto onde vive a consciência do artista da palavra, nunca é neutra (BAKHTIN, 1990, p. 96). Mesmo fazendo parte de um mundo artístico, a palavra da LM adquire o “perfume específico” do ideológico e se adequa a pontos de vista específicos, a atitudes, a formas de pensamento, a nuanças e a entonações das vozes que compõem a heteroglossia social. Surgida de maneira significativa num determinado momento social e histórico, LM formula discursos tocando em fios ideológicos, torna-se participante ativo no diálogo social, de onde surge em seu prolongamento e também como réplica. Neste processo interativo, não sabemos a aproximação dela com fios ideológicos e, como tal, isso suscita um conjunto de questões que orienta o pesquisador no sentido de investigar as formas de refração da palavra existente no discurso cancionista. O discurso cancionista, ao fazer parte da categoria dos longos enunciados da vida corrente, apresenta a condição de assumir saberes, seja um saber histórico, geográfico, social, técnico, botânico, antropológico e pode ser tomado como fulgor da realidade. Ou seja, acreditamos que ele faz girar saberes, sabe de coisas, sabe algo das coisas e que as profundidades de seus sentidos o predispõem a infinitas interpretações, o que também respalda se estatuto de corpus. Quer dizer, há uma crença do pesquisador em sua ser76
José Zilmar Alves da Costa/Letras de música e seu estatuto de corpus em análise de discurso: anotações metodológicas
ventia como base social e exibição de um elenco de temas relacionados ao homem e ao mundo em geral, temas polêmicos e complexos, sumamente importantes, sob o eco de vozes sociais que trazem ideias e concepções de mundo e pontos de vista sobre inúmeras ocorrências do mundo empírico. Ou seja, é crível de que, implícita ou implicitamente, o discurso cancionista encesta questões que permeiam a existência humana e as convertem em dramas de várias dimensões e apresentam questões que participam ora de um microdiálogo, ora de um grande diálogo a respeito do que Bakhtin (2005) denomina “as profundezas inconclusíveis do homem”. Por conta disso, encontramos autores, como Bentes (2003), que consideram LMs material linguístico que deve ser tomado para análise e compreensão dos processos de construção de sentidos e do funcionamento da linguagem. Ou seja, além das suas finalidades estéticas e lúdicas, LM de música se oferecem como lugar de uma grande riqueza para se observar o funcionamento da linguagem e, consequentemente, do discurso. De forma que, o investimento heurístico aplicado neste material numa pesquisa reside também no potencial que LM tem de manifestar determinadas tradições, ideias determinantes dos “senhores do pensamento” expressas e conservadas em vestes verbalizadas, assim como de ser portadora de conteúdos ideológicos e valorativos determinados, conformando uma prática discursiva cuja axiologia e possibilidades intencionais realiza em direções definidas e carregadas de conteúdos determinados, plena de alusões a grandes e pequenos acontecimentos da atualidade, caracterizando-se por uma excepcional capacidade ideológica. Assim, quem sabe, não descobrimos alguma coisa nova nelas que contribua para uma compreensão mais fecunda do homem e da sociedade. Afinal, como lembra Bakhtin (2003), correntes poderosas e profundas da cultura (particularmente as de baixo, populares), que efetivamente determinam a criação dos escritores, continuam aguardando descobertas e às vezes permanecem totalmente desconhecidas de pesquisadores (BAKHTIN, 2003, p.361).
3 CANÇÃO, LETRA MÚSICA E POESIA Comunicação, Linguagem e Inovações MidiáHcas
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Desde que começamos nossa exposição, em vários momentos nos referimos ao corpus dizemos “letras de música”, em outro, “canção”. Mencionamos assim pensando que ambos representam o mesmo material simbólico. Os dois termos servem para designar a materialidade do discurso cancionista, e com ele se confunde. Num estudo dedicado aos recursos orais predominante entre os séculos X e XV, Zumthor (1993) alude ao termo canção como uma técnica de escritura que permitiu adaptações dos “índices de oralidade” ao dito, ao escrito, mais precisamente das entoações medievais que caíram no domínio da escrita. Ele cita a canção de gesta, que surgiu em fins do século XIII, ao que é percebido como um conjunto de discursos definidos pela singularidade da arte vocal que o implica. Lembrando que, antes da aparição da escrita, vivia-se sob um regime de pura oralidade. Situação em que o discurso era confinado às circunstâncias das transmissões orais e havia uma rede coesa de tradições poéticas orais que abrange todo o Ocidente. Daí que, o surgimento da canção, como uma técnica narrativa, segue a uma etapa em que logo as tradições orais, entre elas, o canto, teriam parte confiscada pela escrita. Daí, os textos auscultados na análise sugerirem dimensões de um universo oral, por mais que estejam escritos. Zumthor (1993) lista vários tipos de canções, como as chansons de toile geralmente associadas à Franca setentrional, cantadas por mulheres enquanto costuravam. Eram poemas curtos em forma de estrofes monorrimas com refrão e geralmente relatavam alguma mágoa ou episódio amoroso. Canções de trovadores. As canções dos santos, sobre os milagres de Cristo, século IX a meados do século XII. No caso do Brasil, a canção, como nos apresenta Tatit (2004), é o gênero musical ou prática artística musical que se disseminou e se consolidou durante o século XX, tendo presença marcante em várias formas na construção da identidade sonora brasileira. Lembra o autor que o estilo brasileiro de compor vem das práticas nativas, ou seja, da rítmica música indígena de encantação, com elementos de magia, religiosidade, rito propiciador de espíritos, defuntos e trabalho coletivos, com a presença da música portuguesa mais melódica do que rítmica, onde ressoava o canto gregoriano do medievo europeu, hinos católicos de celebração e catequese, e também cantos coletivos de lazer, junto à percussão e à dança das músicas africanas. 78
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Tatit (idem, p. 11) vai dizer que a canção é um gênero musical que traduz os conteúdos humanos em pequenas peças formadas de melodia e letra, uma prática que jamais interrompeu seu fluxo de criação e perpetuação das formas cantáveis da fala, gerando no Brasil “uma das tradições cancionistas mais sólidas do planeta”. O autor (idem, p. 70) elabora o seguinte pensamento a respeito da canção no âmbito da cultura brasileira: A prática musical brasileira sempre esteve associada à mobilização melódica e rítmica de palavras, frases e pequenas narrativas cotidianas. Trata-se de uma espécie de oralidade musical em que o sentido só se completa quando as formas sonoras se mesclam às formas linguísticas inaugurando o chamado gesto cancional. Tudo ocorre como se as grandes elaborações musicais estivessem constantemente instruindo um modo de dizer que, em última instância, espera por um conteúdo a ser dito (TATIT, 2004, p.70).
Se considerarmos apenas as letras sem a sonoridade, é possível discordamos de Tatit de que “o sentido só se completa quando as formas sonoras se mesclam às formas linguísticas” (ibidem). A respeito disso, convém citar o documentário da diretora Helena Solberg3 que mostra as relações entre música e poesia, e defende que letra de canção informa ao Brasil “iletrado” e letrado. Com depoimentos de Chico Buarque, Arnaldo Antunes e outros, o documentário ressalta o papel histórico de cantores e compositores do país, lembra que o Brasil tem grandes letristas, mostra o papel histórico que essa alta qualidade desempenha no país. Ecoando depoimento de José Miguel Wisnik, diz que, paradoxalmente, foi por “sermos uma cultura pouco letrada” que houve um salto em direção a letras tão sofisticadas. A música tornou-se veículo para transmitir em grande escala material poético de primeira linha. Em depoimento ao jornal Folha de S. Paulo4, a diretoria (escolhida a melhor diretora de documentários do Festival do Rio de 2008), diz que "conseguimos dar um jeito de pular o processo. Em vez de esperar que o povo estivesse alfabetizado e letrado, encontramos uma solução de extraordinária criatividade". O filme comenta que o encontro perfeito ocorrido entre música e poesia no Brasil do século XX é algo raro, presente, por exemplo, na lírica da Grécia Antiga e na trova provençal da Idade Média "Criou-se uma situação Comunicação, Linguagem e Inovações MidiáHcas
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que não existe em nenhum outro país: uma canção popular fortíssima, que ganhou uma capacidade de falar para auditórios imensos e levar a esses auditórios poesia de densa qualidade com a leveza que a canção tem", aponta Wisnik no filme. No filme, a cantora baiana Maria Bethânia assume que, ao interpretar poemas em shows e discos, busca informar o grande público sobre a "palavra falada, não cantada". De outra geração, Lirinha, do Cordel do Fogo Encantado, tem a mesma atitude ao recitar João Cabral de Melo Neto nas apresentações do grupo. No documentário, os artistas brasileiros Chico Buarque e Caetano Veloso são mais citados como exemplos da excelência dos letristas. Chico “deixa claro” que escreve versos para melodias e “não vendo-os como poesia escrita, o que não impede que tenham qualidade poética". E diz: "não quero ser chamado de poeta, porque não sou". Chico ressalta a força dos chamados "compositores de morro", como Cartola, que espelhavam em suas letras alguma formação poética, mesmo que pré-modernista, parnasiana. A respeito da questão levantada há pouco pelo compositor brasileiro Chico Buarque, Costa (2004) e Moriconi (2002) registram parte do debate sobre a identidade do discurso cancionista, informando-nos que, quando recepcionadas nos estudos literários, as canções são alvo de controvérsia e polêmica por conta da sua duplicidade semiótica e da interface com a melodia. De acordo eles, uma parte desses estudos impõe um valor axiológico ao gênero “genuinamente” poético, atribuindo à canção a condição de “patinho feio”. Costa (idem), por exemplo, lembra que o meio literário tende a tentar anexar a canção, mas quando faz isso a situa nas extremidades de sua esfera. Nos termos de Costa, há uma “anexação excludente” da canção, com o fito de proteger a identidade do gênero poético. Resta saber proteger de quem? Será que dos ditames da indústria cultural e da cultura de massa, áreas em que a canção popular flutua lépida nos veículos de comunicação e flerta com o mercado de consumo? Por sua vez, Moriconi (idem) reforça o depoimento de Wisnik dado no filme de que, em nenhum outro país do mundo, a canção popular atingiu um status tão intelectual quanto no Brasil. O autor lembra que o Brasil é provavelmente o único ou um dos poucos países do mundo em que se empregam 80
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largamente letras de música como parte do ensino de Literatura nas escolas primárias e secundárias. Em todas as literaturas do mundo, a poesia literária encontra na canção popular uma matriz inspiradora, fornecedora de temas e mote. Mas ela lá e ”nós” aqui. A canção popular na cultura popular, a poesia literária na cultura erudita. (...) A originalidade brasileira é que aqui, depois da Bossa Nova e da MPB, a própria canção popular tem-se alimentado da literatura. Nossa canção popular tem alta voltagem intelectual (MORICONI, 2002, p. 12).
Para Moriconi (2002), toda linguagem tem seu quê de poesia. Um filme pode ter poesia. Um gesto comum ou excepcional pode ter poesia, de maneira que a palavra poesia apresenta certa flutuação de sentidos. Na sua face de arte brasileira da palavra, a poesia está em boa parte nas letras de música popular. Está no cordel nordestino. Recitado por cantadores nas feiras e nas ruas. Está no rock dos anos 80 e no hip hop dos anos 90. No panteão poético brasileiro, Moriconi (idem) inclui Caetano Veloso, Chico Buarque, Noel Rosa, Lupicínio Rodrigues e Cartola. Integramos a essa lista, a produção de poetas-letristas como Vinícius de Morais, Torquato Neto, Cacaso, Geraldo Carneiro, Arnaldo Antunes e letristas de rock como Cazuza e Renato Russo. No modo de Moriconi ver essa questão, a canção não deixa de agregar um enriquecimento da cultura. Ele lembra que a indistinção e, até certo ponto, fusão conceitual entre poesia e canção têm uma longa história na cultura literária. Para esse autor, foi nesse ponto de confluência que começou a tradição poética na língua portuguesa. Ele cita as medievais cantigas de amor e de amigo, que inauguraram a poesia sentimental lusa, como letras de composições musicais. As cantigas e suas melodias perderam-se no tempo, mas as letras sobreviveram, viraram literatura pura, literatura de livro. Em Moriconi (idem), a duplicidade verbal-musical é indicada também com base no fato de que muitos poemas modernos em língua portuguesa chamarem-se “cantigas”, “canções” e não constar que se destinassem a ser efetivamente musicados, citando o caso de “Canções” de Cecília Meirelles e Fernando Pessoa, ao que acrescentamos “Canção do Exílio”, de Gonçalves Dias. Evidentemente, essa é uma analogia para o sentido de canção, tendoComunicação, Linguagem e Inovações MidiáHcas
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se em conta que canção é para ser cantada e poema é para ser lido em silêncio ou falado em voz alta. Contudo, qualquer poema pode receber melodia e virar canção. Poemas de Manuel Bandeira serviram de letras para composições de músicos como Villa-Lobos. Muitos textos de poetas foram musicados como canções de rock e de MPB. Recentemente, a cantora Rita Lee musicou uma crônica do cineasta Arnaldo Jabor. “Morte e vida Severina”, um poema escrito por João Cabral de Melo, em 1956, foi cantada por Elba Ramalho. Como esses, há muitos casos de transposição de um plano meramente verbal para o musical. A ideia de uma linguagem da poesia, única e especial, é para Bakhtin (1990, p. 95) um filosofema utópico característico do discurso poético e soa como autoritária, dogmática e conservadora. O autor critica uma dada linguagem literária em prol de um uma “linguagem dos deuses”, de uma “linguagem sacerdotal da poesia”. Bakhtin (idem) lembra que, no início do século XX, quando os prosadores russos começaram a manifestar um interesse exclusivo pelos dialetos e pelo skaz, os simbolistas sonharam em criar uma linguagem da poesia. Em seu sentido estrito, o poético canônico é a poesia que desde o seu nascedouro se quis e foi lida como tal, por sua ambição filosófica e estética, por seu fôlego criativo (MORICONI, 2002, p. 68). Poesia no sentido formal ou não, a canção não deixa de expressar certa poeticidade do sujeito. Nesse aspecto, os “poemas nordestinos” selecionados para análise encontram-se na condição de artifícios de formulação desse sujeito, através deles, o artista se vale das tradições literária e historiográfica para tramar múltiplas subjetividades e, assim, encontrar, no manuseio das palavras, os seus próprios sujeitos e o "eu" lírico, não importando se sua poética varia entre formas clássicas e modernas. A respeito de quem já analisou canções, cabe registrar o estudo coordenado por Wrathall (2007) sobre as letras de músicas da banda irlandesa U2, que faz uma abordagem filosófica a respeito das canções desta banda de rock. O próprio Wrathal destaca que muitos filósofos empinaram o nariz ante a ideia de tratar a música popular contemporânea como um tema sério para a reflexão política. Mas, o autor lembra que a música pop é uma indústria de bilhões de dólares que molda o nosso modo de pensar, vestir e falar. Se a 82
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música pop se tornou tão penetrante na sociedade, o autor se pergunta por que ela tem atraído tão pouca atenção filosófica. Lembrando Nietzsche, o autor inclui a música como uma fonte de insight para entendermos a nós mesmos e considera formas populares de música temas promissores e férteis para um estudo filosófico. A prática de musicar textos é antiga. Zumthor (1997, p. 163) denomina de a “arte dos cançonetistas”, em referência aos homens que se deixaram seduzir por este modo de difusão da palavra, na França, entre 1729 e 1809, período que para ele abriu a era moderna da canção, tornada nesse meio, gênero literário. Zumthor (idem) coloca o canto entre as manifestações de uma prática significativa privilegiada onde se articula a simbologia de uma cultura. Para o autor, no mundo de hoje, a canção, apesar da sua banalização pelo comércio, constitui a única verdadeira poesia de massa, “uma enunciação às vezes atraente e perigosa, por onde transitam forças talvez perigosas”. NA leitura da obra de Zumthor vemos que poesias sacras escritas em grego antigo formatam o que conhecemos por canto bizantino. A igreja ortodoxa preserva o canto bizantino em todas as suas liturgias e ofícios religiosos, mantendo assim as tradições cristãs antigas. Hoje, é grande o número de composições em idiomas como o árabe, o inglês, o francês, o espanhol e o português, para que os fiéis tenham maior participação na liturgia. Essa tendência acompanha a expansão da Igreja Ortodoxa para o Ocidente, em paralelo aos grandes movimentos imigratórios dos séculos XIX e XX. Por sua vez, “as cantigas de ceifas” são cantos de trabalho muito antigos que têm origem nos romances e nos cantares de amor e de amigo medievais. Por sua vez, Wisnik (1987) considera a música Um foco de atrativos que se presta a variadas utilizações e manipulações. Instrumento de trabalho, habitat do homem-massa, meio metafísico de acesso ao sentido para além do verbal, recurso de fantasia e compensação imaginária, meio ambivalente de dominação e compensação imaginária, de compulsão repetitiva e de fluxos rebeldes, utópios, revolucionários, a “música é sempre suspeita”, dizia um personagem de Thomas Mann, em A Montanha magia (WISNIK,1987, p. 115, grifo do autor).
Lembrando que música tem um papel decisivo na vida das sociedades, Comunicação, Linguagem e Inovações MidiáHcas
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no cotidiano popular, e que o Estado e as religiões não a dispensam, Wisnik (idem) diz que a prática da música pelos grupos sociais mais diversos envolve múltiplos e complexos índices de identidade e de conflito, o que pode fazêla amada, repelida, endeusada ou proibida, sendo sempre comprometida, é uma terra-de-ninguém ideológica. Interessante anotar ainda em Wisnik a separação levada a efeitos pelos grupos dominantes entre a música “boa” e a música “má”, entre a música considerada elevada e harmoniosa, por um lado, e a música considerada degradante, nociva e “ruidosa”, por outro. Em sua análise, isso se deve a que a própria ideia de harmonia, que é tão musical, aplique-se desde longa data à esfera social e política, para representar a imagem de uma sociedade cujas tensões e diferenças estejam compostas e resolvidas. Wisnik (Idem, p. 120) registra que, na passagem dos anos 1940 para os anos 1950, a música popular no Brasil toma um aspecto mais abrangente, globalizando o país nas suas regiões e penetrando mais fundo no tecido da vida urbana, casos dos ritmos nordestinos que ganharam uma compactação no baião de Luiz Gonzaga. 4 A ATUALIDADE DAS CANÇÕES A maioria das canções do corpus da nossa pesquisa data da década de 50 do século XX, fato que pode suscitar restrições quanto à sua atualidade. Nascidas sob determinadas condições (históricas e sociais) de produção, essas canções não deixam de ser portadoras da marca da sua época onde tiveram, de forma limitada, aspirações, interesses, força ou fraqueza histórica percebidas pelos seus destinatários imediatos. Contudo, seria nocivo ao nosso estudo fechar o espectro delas à época da sua criação, em sua chamada atualidade, uma vez que, analisá-las apenas com base nas condições da época de sua composição, apenas sob condições de sua época mais próxima, não nos permite penetrar nas profundezas dos seus sentidos. Mesmo porque, quem segue orientações metodológicas bakhtinianas, como nós, não pode estudar um fenômeno da linguagem mantendo-o preso à cultura da sua época, e, sim, precisa ficar atento ao fato de que, se o sentido delas nascesse todo e integralmente no ninc et nunc da época da sua criação, não daria con84
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tinuidade ao passado e não mantinha com o presente um vínculo substancial, como também não poderia viver no futuro, pois “tudo que pertence apenas ao presente morre juntamente com ele” (BAKHTIN, 2003, p. 263). De acordo com o pensamento bakhtiniano, um enunciado não se desatualiza. Sustentando-se neste postulado, a nossa análise procura libertar cada música do “cativeiro do tempo” e oferece-lhe a oportunidade de ser “a nova portadora de material de sentido”, o que requer adotar um estilo de análise que evita tratá-las como um acontecimento produzido em um tempo e lugar determinado e que só poderia ser lembrado e celebrado de longe, como um ato de memória. De certa forma, essa atualização fazemos, quando levamos as canções nordestinas a dialogarem com a sociologia baumaniana, sob os auspícios da Linguistica Aplicada. Ademais, como enunciado concreto, as canções nascem, vivem e morrem no processo de interação social. Se cortadas do solo real que as nutre, perdem a chave tanto de sua forma como do seu conteúdo e tudo que resta delas é uma “casca linguística”. Como enunciado concreto, não perdem sua atualidade porque, não só agora como desde sua origem, penetram num meio dialogicamente perturbado e tenso de diálogos de outrem, de julgamentos e entonações, e se entrelaçam com eles de maneira complexa, ora fundindo-se com uns, ora isolando-se de outros. Podemos dizer que, em sua trajetória, elas estão amarradas e penetradas por ideias gerais, por pontos de vista, por apreciações de outros e por entonações, sendo oportuno saber de que modo elas atualizam esse já dito. Assim posto, sairemos à procura dos “tesouros dos sentidos” que se escondem na linguagem verbalizada dessas canções, momento em que elas se enriquecerão de outros sentidos e significações, podendo superar a entonação que tiveram na época da sua criação. Com essa aposta heurística, a análise quer descobrir algo novo nesses escritos do passado. A respeito desta marca épica, até podemos dizer ainda que, de cada época, a letra de uma música é uma espécie de monumento com um “significado final”. Contudo, além desse significado final do monumento, existe um significado vivo, crescente, em formação e em mudança que não nasce inteiramente na época limitada do nascimento do monumento. Um significado que, pela ótica de Bakhtin (2003, p. 356), é preparado ao longo de séculos Comunicação, Linguagem e Inovações MidiáHcas
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antes do nascimento e continua a viver e desenvolver-se durante séculos após. Ou seja, um significado que a remonta o enunciado, inclusive com suas raízes, a um passado distante, preparado por séculos. De maneira que, na chamada “época da sua criação”, a letra da música está apenas colhendo “os frutos maduros do longo e complexo processo de amadurecimento” a que está submetida. Em se concordando com esse entendimento, o significado crescente e inconcluso da letra de uma música não pode ser deduzido e explicado apenas das condições limitadas de uma dada época, a época do nascimento do monumento. Ademais, quando a letra da música é considerada enunciado, como procedemos aqui, somente as condições de produção imediatas não servem para dar sentido a ela, pois as condições de produção imediatas são apenas as condições ideais de uma determinada época e elas não esgotam o significado crescente e permanente de uma obra artística aberta, como é a letra de uma música. Não queremos dizer com isso que iremos ignorar inteiramente a época contemporânea da gênese das canções. Foucault (2002) também nos oferece um reforço a essa questão da atualidade das letras de músicas, dizendo que Ao invés de ser uma coisa dita de forma definitiva e perdida no passado como a decisão de uma batalha, uma catástrofe ecológica ou a morte de um rei – o enunciado, ao mesmo tempo em que surge em sua materialidade, aparece com status, entra em redes, se coloca em campos de utilização, se oferece a transferências e a modificações possíveis, se integra em operações e em estratégias onde sua identidade se mantém ou se apaga. Assim, o enunciado circula, serve, se esquiva, permite ou impede a realização de um desejo, é dócil ou rebelde a interesses, entra em ordem das contestações e das lutas, torna-se tema de apropriações ou de rivalidade (FOUCAULT, 2002, p. 121, grifos nossos).
Assim, apostamos que, mesmo distante do vínculo substancial do passado, a presente análise pode conseguir enriquecê-las com novos significados e novos sentidos, superá-las no que foi em sua época, em seu momento histórico, dissolvendo as fronteiras de sua época. Queremos crer que, vivendo outro momento estético, isto é, no grande tempo de um estudo de caráter 86
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científico, em outro plano de sua existência, as canções podem levar, como parte inseparável da cultura humana, vida intensiva e plena, tanto quanto foi em sua atualidade propriamente dita. Considerada texto que reflete o mundo objetivo, como expressão da consciência que reflete algo (BAKHTIN, 2005, p. 312), a análise escuta a “alma social” das palavras ditas pelos falantes. Isso implica envolver as letras das músicas em um tratamento discursivo, saber da discussão ideológica em que elas se envolvem e onde elas respondem, refutam, confirmam ou antecipam alguma coisa. Como sugere Bakhtin (2003, p. 404), trata-se de fazer o meio linguístico, que atua mecanicamente sobre o indivíduo, começar a falar, isto é, descobrir nesse meio a palavra em potencial e o tom. Trata-se de transformá-lo no contexto semântico do indivíduo falante, pensante e atuante. Em outras palavras, desvelar os atos e os pensamentos do falante. Ouvir suas vozes. NOTAS 1- Doutor em Estudos da Linguagem, Superintendente de Comunicação da UFRN, professor do Departamento de Comunicação da UFRN. 2 - Embora não entre no exame das possíveis variedades da palavra autoritária, como por exemplo, a autoridade do dogma religioso, a autoridade da palavra da ciência, tampouco nos graus de autoritarismo que essa palavra pode conter, BakhHn (1990, p. 143) desenvolve um pensamento a respeito da palavra autoritária, resumido aqui nos seguintes termos: A palavra autoritária exige de nós o reconhecimento e a assimilação, ela se impõe a nós independente do grau de sua persuasão interior no que nos diz respeito; nós já a encontramos unida à autoridade. [...] A palavra autoritária pode organizar em torno de si massas de outras palavras (que a interpretam, que a exaltam, que a aplicam desta ou de outra maneira), mas ela não se confunde com ela (por meio de comutações graduais) permanecendo níHda isolada, compacta e inerte: poder-se-ia dizer que ela exige não apenas aspas, mas um destaque mais monumental, por exemplo, uma escrita especial (grifos nossos). 3 - InHtulado “Palavra (En)cantada” que foi lançado no dia 13 de março de 2009. Comunicação, Linguagem e Inovações MidiáHcas
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Nome do autor e Itulo do texto
Publicidade e ideologia: a análise do discurso em comerciais publicitários Josenildo Soares Bezerra1
1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS Desde fins dos anos 1980 do século XX, a sociedade ocidental tem passado por turbulências sociais e econômicas devido ao processo acelerado da globalização. Tal processo mundializa e influencia não só o espaço socioeconômico, como também a cultura e as relações de troca entre os indivíduos. A virtualidade, que outrora era o oposto à realidade, distante da compreensão do possível, tem hoje espaço comum de relacionamento interpessoal e de trocas comerciais. A publicidade, a arte do cotidiano, não deixou de acompanhar esse processo de mundialização. Assim, esses escritos têm o propósito de discutir, à luz da análise do discurso, os conteúdos ideológicos que são veiculados através dos comerciais publicitários, enquanto locus da produção de sentido. Tem-se hoje uma nova interpretação para o indivíduo. Ele é chamado de consumidor, ou seja, um número estatístico que compra determinado produto ou serviço, que assiste aos comerciais publicitários, que sem exceção, é monitorado, vigiado e interpretado como possível dado estatístico. Então, os profissionais da publicidade usam de artifícios variados para atender às necessidades, ou como diz Baudrillard (2004), os espaços em branco, que a cultura industrializada de massa lhe proporciona. Tais necessidades podem ser geradas tanto por incentivo nos comerciais veiculados quanto sinalizadas pelos consumidores. Assim, Barbosa (1995) diz: No contexto mercadológico, cabe à publicidade informar sobre aspectos reais ou imaginários de um produto, serviço ou loja (em particular), a fim de convencer, persuadir, envolver um segmento de mercado de forma que este tenha o desejo de satisfazer suas necessidades físicas ou psíquicas por intermédio do Comunicação, Linguagem e Inovações MidiáHcas
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objeto ou serviço (BARBOSA, 1995, p.34).
Tem-se aí um viés que a publicidade usa de forma sábia: vincular seus produtos e serviços a sonhos. O mercado hoje se encontra em meio a uma concorrência acirrada. Por tal motivo, o diferenciador de cada produto ou serviço é o conteúdo emocional, sensorial, e que eleve a um status. Vive-se, na contemporaneidade, essa busca por identidade. A globalização traz, além da queda entre-muros das culturas, uma volatilidade nas identidades dos indivíduos. Entende-se por cultura, a partir de Geertz apud Alípio (2001) uma teia semântica de linhas e entrelaçados que forma o que se consegue ver a olho nu: o tecido. Esse conceito de cultura, que entende o espaço social como plural, dinâmico e vivo, é importante para que se possa analisar, à luz da Antropologia e da Sociologia, a produção humana enquanto espaço da multidisciplinaridade, do desterritorializamento dos saberes e das práticas culturais fechadas em si mesmas. Geertz (1989, p. 61) afirma: Sem os homens certamente não haveria cultura, mas, de forma semelhante e muito significativamente, sem a cultura não haveria homens. [...] nós somos animais incompletos e inacabados que nos completamos e acabamos através da cultura – não através da cultura em geral, mas através de formas altamente particulares de cultura [...] A grande capacidade de aprendizagem do homem, sua plasticidade, tem sido observada muitas vezes, mas o que é ainda mais crítico é sua extrema dependência de uma espécie de aprendizado: atingir conceitos, a apreensão de sistemas específicos de significado simbólico (GEERTZ, 1989, p.61).
Fica evidente que a cultura é o pátio em que se trafega, vive-se e produzem-se seus artefatos, que o classificam culturalmente humanos. Utilizando tal conceito do norte-americano Geertz apud Sousa Filho (2001), o conteúdo publicitário passa a ser entendido como o “ar” que a sociedade respira. O que se produz nada mais é que o conhecimento comum a determinado grupo culturalmente significado. O entendimento de cultura enquanto produção, valores, normas, leis, padrões etc., é colocar a cultura no clássico conceito antropológico estruturalista pelo qual o homem apenas a recebe, 96
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introjeta-a e vive, não entendendo este homem como produtor de suas próprias necessidades, de seus desejos. Precisa-se entender o ser humano como copartícipe de sua cultura. Ele reinventa, retroalimenta e ressignifica suas práticas. Seguido neste mesmo pensar, o homem produz suas próprias fraturas e anseios. A publicidade tem a pílula mágica para todas as urgências humanas. Sabendo que o caos se estalou os astutos profissionais lançam mão de produtos e serviços adornados e embalados em forma de felicidades, de solução instantânea, pois o que vale nessa conjuntura pós-moderna é o aproveitamento máximo do tempo, e em tempo recorde. São produtos perecíveis, ou seja, com um ciclo de vida curto, pois a ordem é comprar, consumir e satisfazer os desejos. Esta satisfação não se dá por completo, pois os desejos humanos são insaciáveis e tão dinâmicos como a própria vida. Tão logo se satisfaça aqui, surge um novo anseio ali. Para essas necessidades: publicidade e consumo satisfazem essa ilusão de falta. Lipovetsky (2007) classifica os Shopping Centers como o espaço para satisfazer e preencher esse vazio, pois as cores, as luzes, o clima, a intensidade de pessoas e as possibilidades de compras deixam o indivíduo em êxtase. Consumir massageia o ego e preenche o vazio pós-moderno de incompletude. Para tanto, dos comerciais de cervejas a produtos de limpeza, utilizam uma quantidade exacerbada de vantagens e promessas de dias mais promissores. São conteúdos de fácil entendimento e com temas sexistas, que vendem todos os tipos de produto ou serviço. A erotização de comerciais os tornam mais desejáveis de serem adquiridos e chamam de imediato a atenção do consumidor, pois não há necessidade de muito esforço para entender a mensagem. Outro tema que tem sido demais utilizado é o que se refere ao meio ambiente. Ultimamente, o planeta terra tem sofrido com uma série de problemas de ordem natural. Toda a sociedade civil organizada se movimentou. A publicidade não poderia fugir dessa oportunidade de mercantilizar seus interesses. É comum ver empresas que agem de acordo com esse desrespeito ao meio ambiente veicular comerciais mostrando exatamente o contrário. Um famoso biodegradante, também poluidor do meio ambiente, com seus produtos com embalagens impressas em tinta e embalComunicação, Linguagem e Inovações MidiáHcas
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agens plásticas, anuncia que a cada produto comprado, uma árvore é plantada. Como vender uma imagem institucional de responsabilidade quando seus produtos agridem o meio ambiente? O comercial referido tem não só uma construção imagética, como também uma excelente musicalidade e ideia de cuidadora do planeta. Poderia ilustrar em diversos comerciais essa disparidade: produto X responsabilidade social. O ideal é posto de forma sígnica nos diversos elementos do comercial: uma mulher de beleza inconfundível representando as donas de casa, efeitos, cores e um jingle referente à floresta e um espaço verde bem cuidado. O belo está presente em todo comercial. Pode-se frisar esses elementos nos comerciais de margarina, shampoo, carros, remédios etc. Sempre anunciam vantagens, kits promocionais e a maximização da vida, em detrimento de um tempo que se esvai e torna obsoletas as coisas. O uso de corpos também é um ingrediente que gera muito apelo visual, erótico e imagético, enquanto que, dentre estes corpos, a utilização do negro é minimizada. Se estiver em um tempo intitulado pós-moderno, em que os conceitos são atualizados de forma rápida e dinâmica devido à compreensão que se tem de “tempo” o qual se esvai, passa por entre os dedos e não se consegue detê-lo, porque a misoginia, a homossexualidade e o preconceito de cor não se atualizaram no sentido de ser entendido como ignorância? Os meios de comunicação têm tratado de ressignificar tais preconceitos, e lê-los à luz da igualdade e do respeito? São algumas críticas que ainda precisam ser digeridas e pensadas. Uma grande quantidade de comerciais nos espaços online e offline trazem a perspectiva do belo europeizado, predominando o biótipo e as características do branco, magro, alto e macho. Uma sociedade centrada no falocentrismo1, que quando trata o feminino, o faz desvinculando-o das capacidades intelectivas e legando apenas à sensibilidade, à delicadeza e à erotização. Nestes termos, Ponzio (2008) descreve acerca do que seja o tema no pensamento bakhtiniano: [...] o tema tem um caráter valorativo e requer uma compreensão ativa, uma relação de interação dialógica, dado que pressupõe sempre o intercâmbio sígnico em determinadas situações comunicativas. O tema, além de ser algo unitário é também algo único e irrepetível, como consequência de sua relação com a in98
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teração comunicativa especial (PONZIO, 2008, p.91).
Tem-se aí uma compreensão de que o tema vai atualizando-se, pois ele depende da interação verbal do “eu” e do “tu”. Os sujeitos vão interpretando e ressignificando os pensares. Tendo em vista tal significação, os conceitos utilizados pela publicidade também estão nesse caso. O “tema” continua sendo o que foi discutido há pouco: falocentrismo, europeísmo, desrespeito e descaracterização da mulher enquanto sujeito, mas atualizado às condições vigentes. Bakhtin apud Ponzio (2008) ainda se refere a signo como plural e fluído, capaz de adequar-se a situações sempre novas e diferentes. Esse conceito de signo se encaixa perfeitamente no fazer publicitário. Todos os efeitos e fazeres artísticos da publicidade se revestem do novo, do fantástico e atual, mesmo trazendo em seu espectro, o mesmo fazer de outrora. Eis um exemplo, conforme Figura 1.
Figura 1 – Sabão em pó Ariel: Revista da ESPM.
O conceito ideológico neste artigo tenderá a situar-se em uma linha tênue de conceitos. Serão adotados tanto o viés da “falsa consciência” marxista quando os “reflexos e interpretações da realidade expressa em palavras ou de outras formas sígnicas”, de Bakhtin. Acredita-se que o partidarismo e a exclusão teórica tendem a empobrecer a análise crítica ora pensada. Ao trazer o questionamento acerca das produções publicitárias, seus conteúdos e interesses, não há como fugir da esfera ideológica que falseia uma realiComunicação, Linguagem e Inovações MidiáHcas
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dade para a transformação da mercadoria em algo necessário. No discurso acerca dos desejos, Marx (2006) situa a esfera das necessidades como tipicamente humana, seja ela biológica, seja da ordem das fantasias. Ambas são usadas para mercantilizar produtos ou serviços. Aí, nessa conjuntura, o falseamento da consciência é real. Grande parte dos comerciais de produtos de beleza, bem como os de margarina, traz tais conceitos. Enquanto o primeiro falseia quando faz alusão à maximização vital, corpórea e do prazer, o segundo vai além do orgânico, mercantilizando valores hedônicos, simbólicos e imagéticos. A indústria farmacológica utiliza tal mercantilização na produção das drogas que a sociedade consome. A variedade de componentes que ajudam a minimizar a dor, a rejuvenescer, a dar disposição física, a emagrecer, a retirar manchas, a melhorar pele e o cabelo, atende aos dois critérios usados por Marx. Não há dúvida de que a evolução da medicina e de todas as áreas da tecnologia e da informação é importante para a sociedade. Mas até que ponto todos esses avanços priorizam o enfermo? O que está posta é uma verdadeira corrida mercadológica entre as indústrias farmacológicas de transnacionais. No quesito fantasia, a ordem é rejuvenescer para ser desejado (a), para consumir outras marcas de extensão do produto, dá lucro. Não se pretende parecer pessimista diante de tal discussão, mas, ao adentrar em uma esfera crítica, não há como deixar de perceber essa corrida para alcançar o top of mind2 e figurar com sucesso mercantil. O segundo pensamento acerca da ideologia é uma leitura do pensamento de Bahktin, que se afasta da perspectiva marxista no tocante ao falseamento. Há elementos que se aproximam do autor quando trata que a ideologia está no cotidiano, na palavra, no signo, pois eles são ideológicos por natureza. Pêcheux apud Orlandi (2007) afirma que “[...] não há discurso sem sujeito e não há sujeito sem ideologia: o indivíduo é interpelado em sujeito pela ideologia e é assim que a língua faz sentido.” Os autores acima citados situam a ideologia no campo humano de representações. Bakhtin (2009) não percebe como aparato mecânico e estruturalmente econômico-social, como causalidade mecânica. Mas vai para além dessa perspectiva, e a situa também na infraestrutura, espaço da realidade social. Nesta, os elementos semióticos-sígnicos carregam todo o teor ideológico: a ideologia estranhada 100
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nos discursos e vivenciada pelos indivíduos. Assim, Bakhtin (2009) afirma: [...] a palavra penetra literalmente em todas as relações entre indivíduos, nas relações de colaboração, nas de base ideológica, nos encontros fortuitos da vida cotidiana, nas relações de caráter político, etc. As palavras são tecidas a partir de uma multidão de fios ideológicos e servem de trama a todas as relações sociais em todos os domínios. É portanto claro que a palavra será sempre o indicador mais sensível de todas as transformações sociais, mesmo daquelas que apenas despontam, que ainda não tomaram forma, que ainda não abriram caminho para sistemas ideológicos estruturados e bem formados. [...] A palavra é capaz de registrar as fases transitórias mais íntimas, mais efêmeras das mudanças sociais (BAKHTIN, 2009, p. 42).
O uso da palavra na publicidade é de um valor importantíssimo, pois ela serve de ponte entre o desejo de sucesso mercadológico do anunciante e a produção de feelings hedônicos do consumidor. A palavra traz consigo um teor ideológico, e é isso que a faz ser entendida e compreendida por quem a usa. Está-se numa sociedade sígnica, e todo ato expressivo de fala se torna mensagem quando produz sentido. Portanto, a produção de sentido é uma tal de “vaca profana” publicitária. Infelizmente, como já dito anteriormente, essa produção de sentido na publicidade precisa alcançar o maior número de indivíduos, fazendo assim anúncios empobrecidos de conteúdos, os quais dão vida e erotizam de forma vulgar os produtos, para poderem ser entendidos por uma massa social sem tempo para ver e criticar sua forma de aparição social (Ver Figura 2).
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Figura 2 – Anúncio da cerveja Kaiser.
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O conteúdo tem sido levado sempre a tal entendimento. Alguns dizem que é apenas engraçado, outros levantam bandeira de dizer que é “humano”, no sentido das associações à erotização. Há correntes práticas, as quais afirmam que a publicidade não precisa de conteúdo crítico, pois a pragmática dá conta e vende acima de tudo. Alcança-se o desejo maior, que é a venda, por que se preocupar com o conteúdo? Assim, os comerciais de mau gosto, seja no campo do estético, seja no campo da mensagem, são, a cada dia, em maiores quantidades. Isso se tornou perceptível em comerciais de cerveja, nos quais o conteúdo erótico é cada vez mais intenso. Esperava-se o próximo para ver qual seria a nova sacada. Cada vez mais, pessoas sem roupa, corpos torneados, expressões em êxtase e poucas palavras, quando elas aparecem, são, em sua maioria, de sentido dúbio, mostram o quanto a semântica, bem como a produção de sentido são puramente sociais, e trazem consigo conteúdos ideológicos. O diretor de arte do outdoor abaixo (Figura 3) esclarece que foi uma alusão ao carnaval fora de época, as famosas micaretas. O uso da expressão de alegria e tristeza apresenta sentidos ligados à erotização.
Figura 3 – Outdoor do Motel Dolce Amore. A análise do discurso também é ímpar na compreensão dialógica exercida pela comunicação no discurso publicitário. Basta observar as produções publicitárias, para constatar o quão ideológicas e situacionais elas são. O contexto sociocultural é condição importante para uma boa comunicação publicitária. A análise do discurso não trabalha com a língua enquanto sistemas, mas com a língua em ação, no espaço vivo em que os homens atuam, trabalham, significam. Alguns autores do designer brasileiro, afirmam que para a palavra ser identificada e decodificada, precisa ser compreensível social102
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mente. Assim, toda palavra é sempre-já imagem. O texto no qual a análise do discurso trabalha não são apenas palavras, mas cor, formato, imagens, disposição gráfica, e até mesmo a confusão proposital geradora de sentido. A mistura de escolas e épocas tem sido muito utilizada nos comerciais publicitários. Esse interdiscurso traz referências outras para a pós-modernidade. Um bom profissional de publicidade, bem como das artes, necessita ser alfabetizado visualmente. É importante conhecer as inferências, e usá-las ao seu favor. Acerca do interdiscurso como formador de conceitos, Orlandi (2007) afirma: O interdiscurso é todo o conjunto de formulações feitas e já esquecidas que determinam o que dizemos. Para que minhas palavras tenham sentido é preciso que elas já façam sentido. E isto é efeito do interdiscurso: é preciso que o que foi dito por um sujeito específico, em um momento particular se apague na memória para que, passando para o ‘anonimato’, possa fazer sentido em minhas palavras (ORLANDI, 2007, p.32-33).
O que se crê ser criação em comerciais publicitários, tem muito do que já havia sido trabalhado outrora. É a operação do interdiscurso, seja na reprodução, seja na releitura de uma escola, com suas influências. As “Havaianas” trouxeram, com muita propriedade, um comercial com o estilo psicodélico dos anos 1960 e 1970. A arquitetura decorou, há pouco tempo, espaços com influências do Pop Art dos anos 1960. Nesta perspectiva, na comunicação visual e na publicidade, os discursos estão retroalimentando-se e tornando-se referências para outros fazeres. A análise discursiva leva em conta forma e conteúdo, pois não há como dissociá-los. O sentido não está somente no emissor, na mensagem e no receptor, mas também na produção de sentido gerada entre eles. A discussão que foi gerada acerca da qualidade dos comerciais publicitários e que até hoje muito se analisa é que, tanto a esfera profissional quanto a social, ficam no jogo de empurra-empurra para pôr a culpa um no outro. O indivíduo consome porque o que lhes apresentam é de má qualidade, ou a publicidade produz o que o indivíduo consegue apreender? Crêse que essa é uma via de mão dupla. A demanda e a oferta se encontram em Comunicação, Linguagem e Inovações MidiáHcas
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uma sinergia tal, que um beneficia o outro. É essa perspectiva que Bakhtin (2009) intitula de dialogia. Um e outro, não em oposição, mas no sentido da completude, pois cada uma das esferas se encontra incompletas e completam-se a partir da produção de sentidos. Para Orlandi (2007), Compreender o que é efeito de sentidos é compreender que o sentido não está (alocado) em lugar nenhum mas se produz nas relações: dos sujeitos, dos sentidos, e isso só é possível, já que sujeito e sentido se constituem mutuamente, pela sua inscrição no jogo das múltiplas formações discursivas (que constituem as distintas regiões do dizível para o sujeitos) (ORLANDI, 2007, p.20).
O discurso, os sujeitos e os sentidos são incompletos, assim como a publicidade também o é. O sentido da incompletude é que faz o sujeito nunca satisfeito. Tal insatisfação movimenta o sujeito na produção contínua de necessidades, a complementarem-se. A busca por conseguir a satisfação faz o mercado tornar-se mais plural. Nenhuma necessidade ou desejo deve ser total, pois é dessa falta que surgem novas possibilidades de consumir. Nos discursos publicitários, a incompletude como mensagem é uma tática. Pulverizar os diversos sentidos para que o “outro” os complete. O indivíduo, em sua caminhada histórica, é que, através dos interdiscursos e da produção de novas realidades, encontra-se em vias de significar tais contextos publicitários. Na verdade, há trocas de significações entre o “eu” que produz sentido aos discursos e o “tu” publicitário. Essa dialógica é humana por excelência. Ainda acerca da produção de sentido, o silêncio é um viés por demais importante nessa discussão. O silenciar não é apenas o não dizer, mas significar e estar para além do discurso escrito e imagético. O silêncio é a produção do sentido. Enquanto a palavra é unitária e calculável no que se refere ao sentido, o silêncio deixa margem para pluralização de sentidos. Ele atravessa os fios ideológicos da fala. Está latente no dito e no não dito. Atravessaos e os significa. O silêncio na publicidade funciona como complemento do sentido que está para além das imagens e do texto. Na verdade o que se deseja comunicar, ou seja, o conceito é do não dizível, mas significável. Pode-se 104
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constatar no seguinte anúncio da H.Stern3 (Figura 4).
Figura 4 – Anúncio da H.Stern.
A análise do discurso do silêncio trabalha no limiar dos discursos outros, das formações discursivas. O silêncio trafega na fronteira do dizível, mas não dito. Ele está além, pois atravessa os sentidos e produz uma polissemia. Busset apud Orlandi (2007) afirma: O silêncio não é ausência de palavras; ele é o que há entre as palavras, entre as notas de música, entre as linhas, entre os astros, entre os seres. Ele é o tecido intersticial que põe em relevo os signos que, estes, dão valor à própria natureza do silêncio que não deve ser concebido como um ‘meio’. O silêncio, diz o autor, é o ‘intervalo pleno de possíveis que separa duas palavras proferidas: a espera, o mais rico e o mais frágil de todos os estados...’. O silêncio é ‘imanência’ (ORLANDI, 2007, p.68).
Não sobram dúvidas de que este é o viés que a publicidade utiliza para a persuasão. O conteúdo ideológico está lá, escorregando entre os sentidos, sumindo aqui, aparece ali. Todo o silêncio é eivado de conceitos ideológicos. O silêncio é material sígnico por excelência (ORLANDI, 2007). Para o consumo tornar-se uma excelência na sociedade pós-moderna, faz-se necessário esse discurso do silêncio que pluraliza suas significações, e está a todo tempo produzindo sentidos da incompletude e do preenchimento do vazio deixado pelo Comunicação, Linguagem e Inovações MidiáHcas
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individualismo dessa nova conjuntura social. O ambiente virtual, ao mesmo tempo em que dissocializa o sujeito, põe-no em outro sentido de coletividade-individualizada. Está só, mas mundialmente acompanhado. Aí, tem-se um espaço que Bauman (2007) classifica de “líquido”, pelo qual surgem novas possibilidades de consumo, atualizadas para tal indivíduo, que deixa de perceber os vínculos sociais e institucionais de outrora como importantes para uma sociedade ou mesmo um sujeito imerso no coletivo. Não dá para dissociar os conteúdos ideológicos desse silenciamento produtor de sentidos pós-moderno, de necessidades “novas” para estar incluído no social. Então, tecer comentários sobre o conteúdo publicitário é também imergir na ideologia enquanto fluida que penetra e está latente na infraestrutura bakhtiniana, na realidade em que se atua, vive-se e pensa-se, é além de tudo usar a análise do discurso para ver que cada signo adquire sentido de acordo com a cultura, com sua atualização, e que está imbricada de conteúdos significantes, que trafegam entre os sujeitos, a mensagem e o sentido. Esta suposição é considerada como importantíssima para a compreensão dos discursos publicitários. Analisar tais conteúdos pela compreensão da dialogia torna mais compreensível toda a supremacia mercadológica do consumo. Nota 1- Falocentrismo foi desenvolvido por Sigmund Freud e Jacques Lacan: aHtude segundo a qual o falo consHtui o valor significaHvo fundamental pelo qual o homem, em sua força e virilidade, percebidos como princípio de tudo. 2 - Top of mind: alcançar no indivíduo o nível de lembrança máxima do produto 3- Publicidade encontrada no livro Linguagem Publicitária: análise e produção de Lucilene Gonzales. Bibliografia BAKHTIN, M. M. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico da linguagem. Tradução de Michel Lahud e Yara Frateschi. 13. ed. São Paulo: Hucitec, 2009. BAUDRILLARD, Jean. À sombra das maiorias silenciosas: o fim do so106
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cial e o surgimento das massas. Tradução Suely Bastos. São Paulo: Brasiliense, 2004. BAUMAN, Zygmund. Vida líquida. Tradução Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. CARRASCOZA, João Anzanello. Razão e sensibilidade no texto publicitário. São Paulo: Futura, 2004. ______. Redação publicitária – estudos sobre a retórica do consumo. 4. ed. São Paulo: Futura, 2003. GONZALES, Lucilene. Linguagem publicitária: análise e produção. São Paulo: Arte & Ciência, 2003. LIPOVETSKY, Gilles. A felicidade paradoxal: ensaio sobre a sociedade de hiperconsumo. Tradução Maria Lúcia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. ORLANDI, Eni Punccinelli. As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. 6. ed. Campinas, São Paulo: Editora da UNICAMP, 2007. ______. Discurso e Texto: formulação e circulação dos sentidos. 2. ed. Campinas, SP: Pontes, 2005. ______. Análise de Discurso: princípios e procedimentos. 7. ed., Campinas, SP: Pontes, 2007. PONZIO, Augusto. A Revolução bakhtiniana: o pensamento de Bakhtin e a ideologia contemporânea. Tradução Valdemir Miotello. São Paulo: Contexto, 2008. SOUSA FILHO, Alípio. Medos, mitos e castigos: notas sobre pena de morte. 2. Ed. – São Paulo: Cortez, 2001. (Questões da Nossa Época). THOMPSON, John B. Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica na era dos meios de comunicação de massa. 5. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1995 Foto 1 - Sabão em pó Ariel: Revista da ESPM, volume 6, ano 5, edição n.4/agosto de 1999, p.78 Figura 2 - http://fotos.imagensporfavor.com/img/pics/glitters/k/kaiser-178.jpg Figura 3 - http://3.bp.blogspot.com/_WAf9KtJek78/SxBKsUOfDbI/AAAAAAAAAL8/
dolce_carnatal.png
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O discurso ecológico nos quadrinhos de Chico Bento Marcilia Luzia Gomes da Costa Mendes1
1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS A noção de discurso tem adquirido nos últimos anos papel relevante nos trabalhos de Ciências Sociais e Comunicação. A incorporação do conceito, originalmente desenvolvido no interior da Linguística, não se tem dado, entretanto, sem encontrar dificuldades, algumas oriundas de sua banalização conceitual, outras da complexidade que envolve a interdisciplinaridade e a recusa de modelos teóricos rígidos. A interdisciplinaridade e o abandono desses modelos podem contribuir para uma maior possibilidade de compreensão por parte de outras áreas do conhecimento que se apropriam do campo teórico proposto pela análise de discurso (AD). A falta de clareza sobre o conceito e sobre a teoria da AD tem levado a equívocos que vão desde a identificação entre discurso e oratória, passando pela conceituação de ideologia enquanto inversão do real e, por último, da identificação da AD com um método de estudos de texto. O discurso deve ser analisado tendo em vista as condições de produção que o determina. Nesse sentido, é importante ressaltar a posição dos interlocutores, pois a atribuição de sentidos irá depender da posição que cada um ocupa em uma formação discursiva. O discurso surge no momento em que o sujeito participa da sua linguagem, pois, segundo Bakhtin (1993, p. 88-9) “o discurso nasce no diálogo como sua réplica viva, forma-se na mútua orientação dialógica do discurso de outrem no interior do objeto”. Concebemos a linguagem como discurso e não apenas como um instrumento de comunicação ou expressão de pensamento, ou seja, a linguagem compreendida como interação é um modo de produção social, não é neutra, nem imparcial ou inocente, uma vez que acontece em condição his108
Marcilia Luzia Gomes da Costa Mendes/ O discurso ecológico nos quadrinhos de Chico Bento
tórica de produção, deixando entrever as posições que os sujeitos ocupam na estrutura social. Tratando mais especificamente dos quadrinhos, é importante ressaltar que não existem quadrinhos inocentes. Ideológico, sem dúvida alguma, o discurso do quadrinho marca em seu funcionamento a presença do social. Queremos dizer com isso que os quadrinhos de Maurício de Sousa figurativizam, por meio das personagens e dos enredos, os temas que circulam na sociedade e revelam/desvelam concepções de mundo. Cada uma das personagens retrata através de seus discursos os seus lugares de poder reproduzindo falas que foram construídas ao longo da história. É também especificamente na possibilidade que os discursos têm de exprimir as faces da ideologia que se podem definir as características de uma determinada forma de pensar as relações mantidas pelos homens. Se, como coloca Nattiez (1979), o processo de leitura é múltiplo e indefinido, também não podemos esquecer que a definição de um corpo ideológico só é possível porque estamos atribuindo sentidos aos diversos discursos que nos chegam cotidianamente. Para Brandão (1997) o discurso é lugar de tensão, de enfrentamento, de confronto ideológico, não podendo ser analisado fora da enunciação, uma vez que os processos interativos que o constituem são histórico-sociais. Segundo esse raciocínio, o discurso seria o ponto de articulação entre os processos ideológicos e os fenômenos linguísticos. Como ele promove essa articulação, não podemos perder de vista a relação intrínseca entre discurso e sociedade. Disso decorre que os estudos sobre o discurso não podem se desvincular de suas condições de produção, pois tais condições são determinantes do discurso. Um dos elementos que constitui as condições de produção do discurso é a formação discursiva, em que o sujeito está inserido. Ela “determina o que pode e deve ser dito em uma conjuntura histórica” (PÊCHEUX, 1997, p. 162). Dessa forma, o que define o sujeito é o lugar social do qual ele fala em relação aos diferentes lugares de uma esfera social. As condições de existência de um discurso são dadas pela resposta às seguintes questões: Quem pode falar o quê? Para quem e em que lugar? Seguindo também esse raciocínio, é basComunicação, Linguagem e Inovações MidiáHcas
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tante elucidativa a afirmação de Orlandi (1993): As formações discursivas representam, na ordem do discurso, as formações ideológicas que lhes correspondem. É a formação discursiva que determina o que pode e deve ser dito, a partir de uma posição dada numa conjuntura dada. Isso significa que as palavras, expressões, etc. recebem seu sentido da formação discursiva na qual são produzidas (ORLANDI, 1993, p.108).
Isso significa que a formação discursiva é o lugar da construção de sentido. O sujeito atribui significados às mensagens de acordo com a sua inserção em uma determinada formação discursiva. Se tomarmos o discurso como exercício de poder, devemos considerar que isso se deve ao fato de que o discurso é um campo de enfrentamento, lutas, conflitos e tensões entre diferentes posições enunciativas. É nesse sentido que o discurso é interpretado de forma diferente por diferentes sujeitos, constituindo-se em “efeitos de sentidos” (FOUCAULT, 1995). A abordagem foucaultiana é profícua na medida em que coloca diretrizes para uma teoria do discurso. Foucault (1995) concebe os discursos como uma dispersão, isto é, como sendo constituídos por elementos que não estão formados por nenhum princípio de unidade. Caberia à AD descrever essa dispersão, buscando o estabelecimento de regras capazes de reger as formações dos discursos. Tais regras, denominadas pelo autor de regras de formação, possibilitariam a identificação dos diversos elementos que compõem uma formação discursiva. Foucault apresenta-as como um “feixe de relações” entre os objetos do discurso, as diferentes formas de enunciação que permeiam o discurso, os conceitos e as diferentes estratégias capazes de dar conta de uma formação discursiva, incluindo ou excluindo determinados temas e teorias. O autor define discurso como um conjunto de enunciados que se remetem a uma mesma formação discursiva, ou seja, “um discurso é um conjunto de enunciados que se apoia em um mesmo sistema de formação” (FOUCAULT, 1995, p. 124). Definindo o discurso como esse conjunto de enunciados, e os enunciados como performances verbais em função enunciativa, o conceito foucaultiano de discurso pressupõe, necessariamente, a ideia de 110
Marcilia Luzia Gomes da Costa Mendes/ O discurso ecológico nos quadrinhos de Chico Bento
“prática”. Sob essa perspectiva, a arqueologia propõe estudar as práticas discursivas, isto é, Um conjunto de regras anônimas, históricas, sempre determinadas no tempo e no espaço, que definiram, em uma dada época para uma determinada área social, econômica, geográfica ou linguística, as condições de exercício da função enunciativa (FOUCAULT, 1995, p. 136).
De acordo com Foucault, a análise de uma formação discursiva consistirá, então, na descrição dos enunciados que a compõem. Sua noção de enunciado não se confunde com a noção de proposição ou de frase, uma vez que, para ele, o enunciado não é uma unidade elementar que viria juntar-se às unidades descritas pela gramática ou pela lógica da frase, mas: Uma função de existência que pertence, exclusivamente, aos signos, e a partir da qual se pode decidir, em seguida, pela análise ou pela intuição, se eles “fazem sentido” ou não, segundo que regras se sucedem ou se justapõem, de que são signos e que espécie de ato se encontra realizado por sua formulação (oral ou escrita). Não há razão para espanto por não se ter podido encontrar para o enunciado critérios estruturais de unidade; é que ele não é em si mesmo uma unidade, mas sim uma função que cruza um domínio de estruturas e de unidades possíveis e que faz com que apareçam, com conteúdos concretos, no tempo e no espaço (FOUCAULT, 1995, p. 99, aspas do autor).
Para Foucault (1995, p. 113), o enunciado não é a projeção direta, sobre o plano da linguagem, de uma situação determinada ou de um conjunto de representações. Não é apenas o emprego, por um sujeito falante, de um certo número de elementos estabelecidos dentro de critérios linguísticos. Assim, o enunciado para Foucault, em hipótese alguma, pode ser interpretado como a expressão direta de uma forma gramatical pura e simples. Bakhtin também vai se contrapor aos linguistas de maneira geral concebendo um estatuto próprio ao enunciado, estatuto esse que o distancia (como Foucault) das referências puramente formais/gramaticais. Os diversos conceitos elaborados por Foucault2 (discurso, enunciado, formação discursiva, regras de formação, práticas discursivas e não discursiComunicação, Linguagem e Inovações MidiáHcas
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vas) são fundamentais para os teóricos que se dedicam em analisar o discurso. Apesar de não trabalhar especificamente com o conceito de ideologia em seus estudos, conseguimos visualizar marcas da ideologia, através da profunda abordagem que o referido autor realiza sobre o saber e o poder nas sociedades modernas. Além disso, Foucault não estabelece relações diretas entre o saber e o poder com a economia (a infraestrutura), como no marxismo clássico. De acordo com Silva (1994) na concepção foucaultiana, o poder não se define na luta de classes e o Estado não é tomado como aparelho de reprodução da exploração de uma classe sobre a outra. Em seus estudos, o poder é lugar de luta, relação de força. Ele se exerce e se disputa. O poder funciona e se exerce como uma rede que se dissemina por toda a estrutura social com suas micro e poderosas ações, que estão em toda sociedade. Foucault não fundamenta suas ideias sobre o discurso com base na linguística; ele vai mais além, quando propõe analisar o discurso como um jogo estratégico e polêmico: o discurso não pode ser apenas analisado sob seu aspecto linguístico, mas como jogo estratégico de ação e reação, de questões e respostas, de dominação e de recusa e também como luta e enfrentamento, “discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar” (FOUCAULT, 2006, p. 10). Resumindo, o discurso seria um lugar onde se refletiriam as tensões e os conflitos existentes na sociedade. Não podemos esquecer, portanto, que as sociedades capitalistas são fortemente organizadas por um discurso que dá sentido também à reprodução do capital. Com isso, a produção desse discurso gerador de poder é controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certos procedimentos que têm por função eliminar toda e qualquer ameaça à permanência desse poder (FOUCAULT, 2006, p. 9). A concepção de interdiscurso nos leva a observar a relação entre memória e discurso. Toda produção discursiva, que se efetiva sob determinadas condições de uma dada conjuntura, faz circular formulações já enunciadas, fórmulas que constituíam a enunciação de um discurso anterior. De modo bastante genérico, o interdiscurso é o que permite ao analista 112
Marcilia Luzia Gomes da Costa Mendes/ O discurso ecológico nos quadrinhos de Chico Bento
dizer que o discurso se constitui no jogo da interdiscursividade, isto é, na relação de um discurso com outros discursos. Explicitando o funcionamento discursivo, Orlandi (1999), numa leitura de Pêcheux, afirma que o fato de que há um já dito que sustenta a possibilidade mesma de todo dizer é fundamental para se compreender o funcionamento do discurso. A observação do interdiscurso nos permite remeter o dizer a toda uma filiação de dizeres, a uma memória, e identificá-lo em sua historicidade, em sua significância, mostrando seus compromissos políticos e ideológicos. Assim, na produção de sentidos, haveremos de considerar que todo dizer se encontra na confluência de dois eixos: o da memória que se manifesta pelo interdiscurso (constituição) e o da atualidade (formulação). Por essa formulação podemos entender a relação da língua com a história postulada pela AD. Quando falamos da exterioridade como elemento constitutivo dos sentidos, estamos querendo explicar o processo pela relação que ele mantém com aquilo que, estando fora, mas lhe é constitutivo, inscreve-se na materialidade do discurso e o constitui. Temos que considerar a relação entre aquilo que é da ordem da língua (intradiscurso) e o que é da ordem da exterioridade (interdiscurso). Como o interdiscurso relaciona-se com a ideia de memória discursiva (a memória se atualiza pelo interdiscurso), ele inscreve a memória no fio do discurso e isso afeta o modo como o sujeito significa em uma dada formação discursiva e se constitui. A memória se configura num dispositivo teórico-analítico imprescindível para explicar o processo de produção de sentidos. Para a análise de discurso, a memória é entendida como “conjunto complexo, preexistente e exterior ao organismo, constituído por uma série de ‘tecidos de índices legíveis’, em um corpo sócio-histórico de traços” (PÊCHEUX, 1999). A toda formação discursiva é associada uma memória discursiva, constituída de formulações que repetem, recusam ou transformam outras formulações. Memória não psicológica que é presumida pelo enunciado enquanto inscrito na história. A noção de memória discursiva diz respeito à existência histórica do enunciado no interior de práticas discursivas.
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2 O DISCURSO E A ECOLOGIA NOS QUADRINHOS DO CHICO BENTO Chico Bento, criado em 1961, teve como inspiração um tio-avô de Maurício de Sousa, a respeito do qual o autor ouvia diversas histórias que haviam sido contadas pela sua avó. Em 1982, foi lançada a primeira revista com a Turma da Roça, entre eles Rosinha (namorada de Chico Bento), Zé Lelé (primo de Chico), Hiro e Zé da Roça. A Turma de Chico Bento vivencia o cotidiano rural: o trabalho com a terra, o cuidado com os animais, a valorização das lendas e dos costumes campestres. Os amigos, além da professora, pais, vizinhos e Padre Lino, são as coadjuvantes das histórias de Chico Bento. Todas essas personagens divulgam a rotina de grande parte da população rural do Brasil e abordam questões particulares desse segmento social, principalmente a constante preocupação com a preservação da natureza, pois é dela que essa população retira seu sustento. Nas histórias da personagem Chico Bento a temática ecológica é e já foi utilizada reiteradas vezes. O mote da preservação ecológica compõe-se quase que como uma estrutura narrativa diferenciada dentro dos subgêneros que compõem a ficção da personagem. Chico assume uma postura diferente dependendo do papel social que está desempenhando, seguindo as conveniências da trama. Assim, podemos perceber inúmeras diferenças em seu comportamento quando ele está na escola ou na roça. As narrativas que abordam a ecologia como tema compõem-se como um espaço privilegiado para a veiculação de determinados discursos e visões de mundo. Tomando como exemplo e objeto de estudo a história em quadrinhos intitulada Construindo um novo homem, podemos perceber como o discurso é elaborado objetivando determinados interesses. A primeira página desse quadrinho traz uma gag3 visual que antevê e promete o choque cultural que resultará do contato entre pessoas cuja socialização ocorre em espaços diferentes. Nela, podemos ver Chico Bento caminhando na mata calmamente enquanto admira uma libélula. No quadrinho seguinte, para grande susto da personagem, esse inseto é substituído por um helicóptero de brinquedo, seguido por uma criança da cidade que guia esse último por controle remoto. O menino da cidade de nome Téo mostra toda a tecnologia de seu trai114
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ler e em seguida, Chico apresenta seu modo de vida campestre, é feito um contraponto entre a visão de mundo dos habitantes do meio urbano e rural. No discurso quadrinizado da personagem Chico Bento percebe-se como o conceito de natureza é trabalhado a partir de diferentes demandas. Enquanto o empresário capitalista percebe a natureza como um meio para acumulação de riqueza, Chico e sua família seguem a tradição inaugurada pelo Romantismo da natureza como espaço de construção do belo e do intocável. Conforme Fernandes (2005, p. 20), Observamos, em diferentes situações de nosso cotidiano, sujeitos em debates e/ou divergências, sujeitos em oposição acerca de um mesmo tema. As oposições em contraste revelam lugares socioideológicos assumidos pelos sujeitos envolvidos, e a linguagem é a forma material de expressão desses lugares.
As visões de mundo das personagens do campo e da cidade em quase todos os sentidos são diametralmente opostas. Da mesma maneira que as pessoas da cidade percebem o campo como algo atrasado, Chico e sua família a todo momento reiteram o quanto as coisas típicas da cidade parecemlhes exóticas e um tanto extravagantes. A convivência dos dois grupos faz as diferenças caírem por terra, mas a sentido da aproximação é de mão única, não existe uma recíproca na troca de vivências e experiências. Nenhum tipo de benesse ou tecnologia é introduzido no meio rural enquanto esse último pode exibir-se como atrativo aos moradores da cidade. O interdiscurso presente nessa história permite-nos perceber como o discurso capitalista e ecológico faz-se presente. Essas concepções discursivas, porém, assemelham-se pouco a seu outro real, presente na sociedade. A imagem do capitalismo veiculada é antes uma simplificação da exploração dos recursos naturais bem à maneira presente nos quadrinhos do Tio Patinhas. Em nenhum momento é mostrada a face da exploração “do homem pelo homem” e os empregados do empreiteiro são mostrados como pessoas servis e felizes com sua função. A concepção de ecologia4 é bastante idealizada, já se propõe a subsumir a causa da preservação ambiental à questão da preservação das matas. Essa simplificação, senão maniqueísta, ao menos simplória, tem a funComunicação, Linguagem e Inovações MidiáHcas
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ção clara de atingir o público infantil com mais intensidade. O mundo idealizado e muitas vezes paradoxal das histórias em quadrinhos infantis possui o apelo óbvio de construir uma realidade ficcional que possa ser fruída sem que seja necessário um grande conhecimento de mundo. Nesse contexto, a causa da preservação ecológica, apesar de sua clara idealização e comprometimento com as funções narrativas, mostra-se como um tema importante para educação e formação das crianças. A maneira como é tratado, porém, parece seguir bem a lógica um tanto antiquada dos quadrinhos da Turma da Mônica, onde o desnudamento da realidade é substituído pela mistificação e idealização das formações sociais. Na história em quadrinhos de Chico Bento Construindo um novo homem, podemos encontrar também, sujeitos em oposição acerca de um mesmo tema. Ou seja, os sujeitos encontram-se em lugares socioideológicos contrastantes. Tomemos ideologia como “uma concepção de mundo de determinado grupo social em uma circunstância histórica” (FERNANDES, 2005, p. 29). A família de Chico Bento traz um discurso de preservação da natureza. O que pode ser confirmado na fala de Chico Bento quando o filho de Amilton explica que o pai vai comprar as terras para represar o rio e construir uma hidrelétrica. Chico Bento pergunta o que vai acontecer com as plantas e animais. Já a família de Amilton tem a visão de explorar o meio ambiente com a finalidade de obter lucro. Isso pode ser entendido pela própria construção da represa e da hidrelétrica. O fato ainda pode ser explicado pela maneira com a qual as duas famílias vivem. A família de Amilton vive na cidade e usufrui de todas as facilidades que a tecnologia pode oferecer. Já a família de Chico Bento pratica uma agricultura de subsistência, em que Zé Bento e Chico plantam os alimentos que a família necessita. O discurso da família de Chico Bento vai ao encontro do discurso dos ecologistas, que defendem a preservação do meio ambiente. Enquanto que Amilton e sua família têm o seu discurso entrelaçado com o dos capitalistas, que acreditam que a obtenção de lucro é mais importante do que a preservação da natureza. Esse entrecruzamento do discurso caracteriza o interdis116
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curso. Segundo Fernandes (2005), o interdiscurso marca o entrelaçamento de diferentes discursos, oriundos de diferentes momentos da história e de diferentes lugares sociais. Além de colocar o lucro sobre todas as coisas, Amilton e sua família ainda veem todos os aspectos rurais como um atraso. Após perder o trailer com todos os mantimentos, a esposa de Amilton diz: “Oh! O que será de nós, aqui, no meio do mato, sem roupas... sem comida, sem tevê...”. Ou seja, ela atribui significados que no interior não existem condições de sobrevivência, inclusive porque não há televisão. Pode-se perceber o preconceito com o caipira que é devotado à natureza. O filho de Amilton chega a dizer que no trailer onde eles estavam tinha tudo que eles precisavam para sobreviver porque, lá havia fogão elétrico, micro-ondas, tevê e banheira com hidromassagem. A história ainda levanta as diferenças entre a cidade e o campo. Enquanto que Amilton diz que a chuva só traz transtorno nas cidades, Zé Bento, Bento afirma que ela é abençoada. A família de Chico Bento ainda representa o discurso tradicionalista dos valores familiares. Um exemplo é o fato de todos se reunirem para conversar após o jantar. Depois da refeição, Amilton pergunta ao pai de Chico Bento o que eles fazem já que não têm televisão. Ao que recebe a resposta que eles conversam sobre o dia de cada um. Já a outra família assiste à televisão após o jantar e não costuma conversar entre si, o que representa uma quebra das antigas tradições familiares, o que é uma das características de pessoas que vivem nas cidades. Em Fernandes (2005), tem-se que o sujeito não é homogêneo, mas o seu discurso se entrelaça com outros que têm origem em diferentes momentos da história. O discurso tradicionalista é formado por famílias que vivem no campo e desejam manter as mesmas tradições nas quais foram criadas. Após perder o trailer e passar um dia na casa de Chico Bento, sem nenhuma comodidade com que eram acostumados a ter em sua casa, na cidade, ou no trailer. No campo, Amilton e sua família conhecem a natureza em várias de suas formas e percebem como a vida que eles levavam estava errada e que isso pode mudar. O filho de Amilton chega a dizer que deseja Comunicação, Linguagem e Inovações MidiáHcas
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construir sua casa campo. Toda a família também passa a integrar o discurso dos ecologistas e defender a preservação do meio ambiente, acima dos lucros. Maurício de Sousa, criador das histórias de Chico Bento, coloca que os capitalistas ávidos por lucro, podem mudar de opinião se conhecerem o meio ambiente da mesma forma que a família de Amilton. E ainda, que as novas gerações também podem ser ensinadas a preservar o meio ambiente. Dessa forma, podem ser construídos muitos outros novos homens, da mesma forma como aquela família teve sua vida e ideias mudadas. O discurso de Maurício de Sousa também vai ao encontro do discurso dos ecologistas, que colocam a natureza como um bem a ser preservado. Ou seja, o discurso de Chico Bento revela o discurso do seu criador. Na AD, o sujeito é tomado como uma posição sujeito. Isso significa que ao tomarmos a palavra produzimos sentido dos lugares sociais que nos constitui enquanto sujeitos. Como todo sujeito pertence a uma formação discursiva que, por sua vez, se liga a uma formação ideológica, os sentidos são produzidos desses lugares sócio-históricos. Numa vertente foucaultiana, esse sujeito é pensado como constituído nas relações de poder. Assim, esse autor nos fala de dois processos dessa constituição: pela objetivação, o sujeito é produzido na ordem do estabelecido como verdade, como a norma, e esta é sempre uma verdade no sentido de servir ao exercício do poder. O poder é assim responsável pela fabricação de uma verdade sobre o sujeito. Pelo processo de subjetivação, o sujeito se constitui produzindo uma identidade que lhe é própria, resistindo às verdades que lhes são construídas pela objetivação. Para Orlandi (1996), O espaço de interpretação no qual o autor se insere com seu gesto – e que o constitui enquanto autor – deriva da sua relação com a memória (saber discursivo), interdiscurso. O texto é essa peça significativa que, por um gesto de autoria, resulta da relação do “sítio significante” com a exterioridade. Nesse sentido, o autor é carregado pela força da materialidade do texto, materialidade essa que é função do gesto de interpretação (do trabalho de autoria) na sua relação determinada (historicamente) com a exterioridade pelo interdiscurso. O sujeito, podemos dizer, 118
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é interpretado pela história. O autor é aqui uma posição na filiação de sentidos, nas relações de sentidos que vão se constituindo historicamente e que vão formando redes que constituem a possibilidade de interpretação (ORLANDI,1996, p. 15).
Com efeito, podemos dizer que a posição-autor se faz na relação com a constituição de um lugar de interpretação definido pela relação com o outro (o interdiscurso) e o outro (interlocutor). O autor se produz pela possibilidade de um gesto de interpretação que lhe corresponde e que vem de fora. O lugar do autor é determinado pelo lugar da interpretação. O efeito-leitor representa, para o autor, sua exterioridade constitutiva (memória do dizer, repetição histórica). Dissertando sobre a função-autor, Foucault assim se posiciona: Desde o século XVII, esta função não cessou de se enfraquecer, no discurso científico: o autor só funciona para dar um nome a um teorema, um efeito, um exemplo, uma síndrome. Em contrapartida, na ordem do discurso literário, e a partir da mesma época, a função do autor não cessou de se reforçar: todas as narrativas, todos os poemas, todos os dramas ou comédias que se deixava circular na Idade Média no anonimato ao menos relativo, eis que, agora, se lhes pergunta (e exigem que respondam) de onde vêm, quem os escreveu; pede-se que o autor preste contas da unidade de texto posta sob seu nome; pede-se que revele, ou ao menos sustente, o sentido oculto que os atravessa; pede-se-lhe que os articule com sua vida pessoal e suas experiências vividas, com a história real que os viu nascer. O autor é aquele que dá a inquietante linguagem da ficção suas unidades, seus nós de coerência, sua inserção no real (FOUCAULT, 2006, p. 27-28).
Pode-se dizer ainda, que é no discurso que o homem produz e reproduz a realidade, os sentidos, pois o discurso é efeito de sentido entre locutores, que ocorre através da memória discursiva, isto é, do interdiscurso, este é definido como aquilo que fala antes, em outro lugar, independentemente. É essa memória – o interdiscurso − que, juntamente com o domínio do saber, dizeres já ditos ou possíveis apoiam toda e qualquer formulação, ou seja, a forma como os dizeres se presentificam e dão ilusão de evidências, o que dá visibilidade ao modo como o sujeito se significa em uma determinada formação discursiva. Comunicação, Linguagem e Inovações MidiáHcas
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Pela noção de interdiscurso, estabelece-se a relação necessária entre língua e história, condição para que os sentidos se historicizem, permitindo a inscrição do acontecimento na estrutura. Dessa forma, entende-se porque tanto os sujeitos quanto os sentidos são determinados historicamente o que nos leva a pensar, num processo de significação, sobre as condições de produção, dado que a língua para significar inscreve-se na história. Isto não equivale afirmar que os sentidos permanecem desde sempre os mesmos, tampouco, que podem ser quaisquer uns. É porque se historicizam que os sentidos não permanecem iguais, mas é, também, pela mesma razão, que continuam como possíveis. Assim, os sentidos se repetem, mas se deslocam, deslizam. Portanto, não se trata da repetição concebida no nível da empiria, ou seja, não se trata de uma repetição conteudística, mas linguístico-histórica, pois pela noção de memória podemos pensar em um espaço do dizível que permite um lugar de partida, de um já dito que ressurge. Ao longo do percurso por nós empreendido tentamos explicar as nossas reflexões teóricas e situar o lugar de onde pretendíamos fazer a leitura de uma prática discursiva para verificar o seu funcionamento concreto. Consideramos a prática discursiva dos quadrinhos, que num recorte do gênero (uma história em quadrinhos de Maurício de Sousa) subsidiou as nossas análises, tomando a questão ecológica como “pano de fundo” para as nossas reflexões. Na história analisada Construindo um novo homem observamos um jogo de significados se atentarmos para o fato de que Amilton é dono de uma construtora e, que pretendia construir uma hidrelétrica, mas quem termina passando por um processo de construção é ele próprio. Notas 1 - Professora Adjunto III do Curso de Comunicação Social da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte -UERN, marciliamendes@uol.com.br. 2 - Esses conceitos são discuHdos com profundidade no livro Arqueologia do saber. 3 - A gag é uma construção visual esHlizada que se faz presente nos 120
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quadrinhos, principalmente os infanHs, com intenção cômica. 4 - O conceito de ecologia é uHlizado como as relações entre os seres vivos e o meio ou o ambiente em que vivem, bem como as suas recíprocas influências. Estuda a estrutura e o desenvolvimento das comunidades humanas em suas relações com o meio ambiente e sua conseqüente adaptação a ele, assim como novos aspectos que os processos tecnológicos ou os sistemas de organização social possam acarretar para as condições de vida do homem. Referências BAKHTIN, Mikhail. (VOLOSHINOV), V.N. 1929. Marxismo e filosofia da linguagem. 7ed. São Paulo: Hucitec, 1995. __________. Questões de literatura e estética: a teoria do romance. São Paulo: Editora da UNESP, 1993. BRANDÃO, Helena H. Nagamine. Introdução à análise do discurso. 6.ed. Campinas: Editora da Unicamp, 1997. FERNANDES, Cleudemar Alves. Análise do discurso: reflexões introdutórias. Goiânia: Trilhas Urbanas, 2005 FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 11ed. Rio de Janeiro: Graal, 1993 ______. A arqueologia do saber. 4ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995. ______. A ordem do discurso. 13ed. Rio de Janeiro: Loyola, 2006. GUSMAN, Sidney. Mauricio quadrinho a quadrinho. São Paulo: Globo, 2006. NATAL, Chris Benjamin. Os universos de Chico Bento: estereótipos de funcionamento universal e produção de sentido nestes quadrinhos de Mauricio de Souza. Anais do XXVIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. Rio de Janeiro, 2005. NATTIEZ, J.J. Problemas e métodos em semiologia. Lisboa: Presença, 1979. (Coleções 70, n° 18). ORLANDI, Eni. P. Análise de discurso: princípios e procedimentos. CampinasComunicação, Linguagem e Inovações MidiáHcas
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Estratégias narraHvas do BBB 3: Do anonimato à fama Mirian Moema Pinheiro1
1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS Inicialmente, queremos ressaltar que, na atualidade, ver e exibir constitui aspectos vitais do ambiente cultural em que nos encontramos. Este processo de produção fascina irresistivelmente cada vez mais pessoas e tem como uma de suas contrapartidas o crescimento dos programas de televisão no formato reality show, no qual intimidades são visíveis e consumidas de
forma ávida pelo público. No contexto da comunicação contemporânea, sabemos que existem diversas maneiras na tradicional arte de narrar. [...] “A narrativa é definida muito estritamente pela narratologia recente como conjunto de significantes, cujos significados constituem uma história” (AUMONT, 1995, p. 244). Percebemos que a narrativa se torna indispensável ao sucesso das mídias, especialmente na televisão que abriga estruturas antigas comparadas a outras artes, mas revitalizadas por novas formas de produção e veiculação. O avanço dos estudos da narrativa deve-se, sobretudo, à semiótica, teoria geral dos signos, que tem o texto como objetivo de estudo, entendido como procedimento estruturante de um todo de sentido. A partir deste panorama esboçado, fazemos a análise, com base na semiótica francesa desenvolvida por Algirda Julien Greimas, do texto-programa BBB 3, que adota estratégias narrativas, por vezes contraditórias e incongruentes, porém fundamentais para selarem o vínculo com o telespectador. A narrativa do BBB é trabalhada com esmero, tanto no que se refere à tessitura plástica, quanto às soluções técnicas de cenografia, iluminação, fotografia, edição, para a construção do sentido. A trama, sob a forma de edições diárias, assume formato de narrativa seriada, estruturada em segmentos Comunicação, Linguagem e Inovações MidiáHcas
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de 20 minutos, com emissão ao vivo, contendo mais dois grandes segmentos: um de 60 minutos e outro de 45 minutos, que vão ao ar respectivamente às quintas-feiras e aos domingos. Ao longo da programação acontece várias chamadas do BBB 3, gravadas em vts de 15 minutos que funcionam como anúncio do produto programa. Conforme Machado, chamamos de serialidade [...] a apresentação descontínua e fragmentada do sintagma televisual no caso específico das formas narrativas, o enredo e geralmente estruturado sob a forma de capítulos ou episódios, cada um deles apresentados em dia ou horário diferente e subdivididos em bolos menores, separados uns dos outros por anúncios comerciais (MACHADO, 2000, p. 83).
Vimos, portanto, que a narrativa BBB 3 se encaixa na categoria serializada, pois dispõe dos requisitos indicados diante do conceito a que fazemos referência, além do que é possível, com os mesmos atores, cenário, figurino e única situação dramática produzir diversos episódios. Durante o programa, verificamos a formação de pequenos grupos com atuações as mais variadas, pois os jogadores sentem-se pressionados na disputa pelo prêmio estipulado pelo programa. Vemos aí, um exemplo de modelo atuacional proposto por Greimas, composto com base na relação central sujeito/objeto. Outro aspecto que destacamos na narrativa é o da constituição de uma relação estabelecida entre os participantes (sujeitos das ações) e seu objeto de desejo, instante em que se estruturam micros universos de valores que, em geral, revelam a própria cultura em que se inserem. A outra relação é a dos integrantes na competição daquilo que é socialmente valorizado (dinheiro, fama, poder, felicidade), disputando um mesmo objeto. A narrativa do BBB 3 oferece várias possibilidades para a seleção de sequências atuacionais que exercem destaque sobre as outras numa visível determinação manipuladora, demarcando uma posição de convencimento sobre o telespectador. A presença do saber e poder como modalizações da competência do emissor na construção das narrativas midiáticas são observáveis. O microuniverso refletido na história do BBB 3 constitui-se de seres 124
Profª Ms. Mirian Moema Pinheiro/ Estratégias narraHvas do BBB 3: Do anonimato à fama
que respaldam os padrões culturais da sociedade. O nível fundamental do texto do Big Brother 3 expõe a oposição mínima entre anonimato e fama, traduzida pelos termos de “esquecimento e reconhecimento” e manifestada na negação do primeiro e na afirmação do segundo. A transformação narrativa de esquecimento em reconhecimento pressupõe um percurso de busca que se desdobra “em paixões” (GREIMAS, 1989, p. 280): na paixão simples de querer ter (dinheiro posição social e poder) e nas paixões complexas de querer ser (aceito, admirado e amado). Durante toda a narrativa, somos confrontados com as impressões dos jogadores, que a cada episódio parecem produzir nos telespectadores uma forte sensação de estranhamento, espanto, conforme o jogo de cada um e o jogo entre eles. Utilizando sequências curtas e grande número de planos, cortes e ângulos, o BBB 3 mostra de forma dinâmica como cada um constrói seu relato. Na sua narrativa linear, os encadeamentos da edição parecem produzir parte do desenvolvimento da história na qual os fatos não falam por si mesmos. A construção da realidade intermediada pelos sentimentos e vivências individuais são traços interessantes do programa. Mais que biografias, o que está sendo ressaltado no programa são as relações que os participantes travam entre si. A forma de narrar do programa vem se colocando plenamente, trazendo marcas diferenciais de outros programas do gênero. Posiciona as lentes das câmeras e as lentes do olho e, com elas, capta a “realidade”, reconstruindoa e também criando outra realidade, a do próprio meio. Faz, assim, o duplo, em seu “jogo de fingir” que a brevidade da vida de celebridade (o vencedor) possibilita a garantia de sua ascensão social. Pouco a pouco uma rede de opiniões e apreciações vai sendo tecida no curso dos episódios e o receptor é convidado a se posicionar a favor ou contra, elegendo aquele que é percebido como correto. A estrutura do programa BBB 3 se estabelece com base nas estratégias. Selecionamos cinco, para análise neste estudo, assim nomeadas: - Começa o 3° Grande Espetáculo. - Na Casa: O Show da Vida. Comunicação, Linguagem e Inovações MidiáHcas
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- Ações e Reações. - Exclusão do Jogo. - O Grande Vencedor. 2 COMEÇA O 3° GRANDE ESPETÁCULO A largada para o terceiro grande espetáculo do BBB 3 foi dada no dia 14 de janeiro de 2003, momento em que os participantes receberam o sinal verde para a disputa dos 500 mil reais. A partida dos concorrentes ao jogo do estrelato teve início com a apresentação dos integrantes ao público, momento em que os selecionados surgiram pela primeira vez diante das câmeras de TV, na saída do confinamento provisório, no qual se encontravam num hotel de luxo, localizado na zona sul do Rio de Janeiro. Seguiram todos em carreata, num desfile pelas principais ruas de acesso à casa do Big Brother Brasil, perfazendo o percurso até chegar ao cenário montado na Central Globo de produção. As pessoas comuns, contudo, que queriam conhecer de perto os novos rostos do BBB 3, se posicionaram diante do hotel, esperando para aplaudi-los. Diante da plateia, expostos, e ao mesmo tempo carregados de seus medos, os participantes conseguem alimentar seus sonhos de tornarem-se celebridades. Partem confiantes em busca do palco (casa do BBB), a fim de conquistar a credibilidade do público receptor na tentativa de conseguir realizar a transposição tão desejada, passando do anonimato à fama. Os 14 participantes chegavam à casa do Big Brother e eram recebidos pela louvação do público que ocupava as arquibancadas na área externa da mansão bigbrodiana. Para receber os novos moradores, lá estava a repórter Renata Capucci que, em rápidas palavras, dava as boas-vindas aos concorrentes de mais um espetáculo televisivo. A entrada na casa aconteceu por grupos, sendo o primeiro composto por Emílio, advogado, treinador de mergulho; Joseane, ex-miss Brasil; Alan, jogador de basquete; Samantha, personal trainer; e Jean, massoterapeuta; que inauguraram a casa e correram para escolher os aposentos e obviamente o melhor quarto coletivo com as camas mais confortáveis. Em seguida, chegaram Dílson, mais conhecido como Mad Max, advo126
Profª Ms. Mirian Moema Pinheiro/ Estratégias narraHvas do BBB 3: Do anonimato à fama
gado e lutador de jiu-jitsu; Paulo, fotógrafo; Sabrina, ex-dançarina do Programa do Faustão; e Dhomini, assessor parlamentar; que trataram de se apresentar aos BBBs que já ocupavam a casa. O terceiro grupo é formado por Marcelo, DJ; Andréa, publicitária; Elane, professora do Ensino Fundamental; Juliana, estudante de Serviço Social da UFRJ; e Viviane, advogada, que foram recebidos carinhosamente pelos recém-chegados a casa. Após as acomodações, os integrantes do programa-jogo se reuniram na sala para um brinde coletivo de boas-vindas, preparado pela produção, com petiscos e bebidas variadas e músicas dançantes que alegravam os jovens participantes da terceira edição do BBB. 3 NA CASA: O SHOW DA VIDA Hoje, temos o entendimento de casa, como sendo um edifício ou parte dele, destinado à morada humana. Ela nasce de desenhos e tecnologias de construção para ser ocupada com prazer. Apresenta-se como espaço/forma que busca estar adequada a ser resposta ao modo de vida de seus habitantes. A casa possui um valor econômico que varia de acordo com a localização, qualidade do material empregado, sua estética e os espaços propostos. A unidade casa é resultante de um complexo processo, no qual confluem fatores sociais, técnicos e econômicos. Ela seria uma edificação vazia com seus muros imaculados, faltando a vitalidade oriunda de seus moradores. É abrigo, invólucro protetor, parte integrante do sítio onde se integra e que acolhe a todos. A casa em si é uma distribuição espacial que dá ao homem seu sítio sobre a terra. Simbolicamente, é um castelo, fortaleza, lugar de defesa contra as agressões externas. Porém, a casa quando habitada vai adquirindo uma condição de lar, numa concepção complexa que integram memórias, imagens, passado e presente. Constitui-se numa composição de ritos pessoais e rotinas cotidianas que refletem valores de uso, convivência e entrosamento familiar. São reflexos de moradores aí incluídos, sonhos, esperanças e dramas que transformam o vazio do espaço composto de paredes, esquadrias, móveis e quadros em um universo construído de singularidades que reproduzem os valores sociais. São os habitantes que dão sentido à existência da casa, formando uma Comunicação, Linguagem e Inovações MidiáHcas
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unidade básica de sociedade, e, portanto, a unidade primária de qualquer forma de agregação, núcleo primeiro, a partir do qual experimentamos o sentimento de “pertencimento”. A mansão, cercada de janelas envidraçadas, adquire um sentido, se percebermos o caráter central da casa. A janela é o olho aberto lançado para o horizonte, para o mundo que se apresenta emoldurado, estabelecendo um limite entre o fora e o dentro. Os moradores bigbrodianos lançam, através das janelas, olhares esperançosos na realização de seus sonhos. Para o ser sonhante dessa morada, a casa representa muito mais, talvez o verdadeiro abrigo das fantasias, sonhos e esperanças. Contudo, participar dessa casa é o sonho dos jovens que almejam sucesso e ascensão social. Nesse sentido, a casa BBB 3 torna-se o espaço privilegiado para a sedimentação das histórias de vida, servindo então de polo atrativo de uma luta permanente que é o afrontamento das diferenças. Desse modo, a casa do BBB, diferentemente da casa natal, nasce para funcionar como palco, no qual as pessoas se mostram em performances que expressam os interesses de um mercado que potencializa, cada vez mais, o fluxo das trocas e dos produtos; o dinheiro impõe que, também no campo do cultural, haja uma difusão de tudo – valores e práticas sociais – o que transforma em ameaças as singularidades e identidades. Podemos dizer que, na casa do BBB, as pessoas mantêm com as outras relações de dependência, afinidade, cumplicidade, hostilidade, afetividade, amizade e paixão. 4 AÇÕES E REAÇÕES A condição de confinados, a que se submetem os jovens, acaba tornando-se geradora de tensões e conflitos, o que desencadeia agressões, intrigas, reações originadas pelos desequilíbrios emocionais provocados principalmente pela repressão, que tolhe o que é natural no ser humano, o prazer de comunicar-se com o mundo. O isolamento causa mal-estar, pois cala o grito do prazer de desfrutar de sua “liberdade” de ir e vir, o que provoca uma ânsia de superar rapidamente essa situação. Nesse caso, torna-se evidente que as relações humanas não se 128
Profª Ms. Mirian Moema Pinheiro/ Estratégias narraHvas do BBB 3: Do anonimato à fama
constituem apenas de unidade, mas, “são compostas de concordância e também de discordância e competição, gerando conflitos” (SIMMEL, 1983, p. 123). As hostilidades despontam em detrimento da aceitação, compreensão, afeição mútua, em vista do interesse pela “vitória” que motiva os membros do grupo a mobilizar uma disputa acirrada. Vivenciam uma dualidade que se apresenta a cada momento com diversidades e uma multiplicidade de oscilações contraditórias. Armam-se as tramas paralelas marcadas pelas relações de poder, instituídas pelas composições semânticas, segundo o diagrama de Greimas e Courtées (apud BARROS; DIANA, 1988, p. 55), como: verdade versus mentira, vaidade versus humildade, belo versus feio, simpatia versus antipatia, capacidade versus incapacidade, bom versus ruim, vitória versus derrota. Vimos então que, de acordo com as ações individuais e as trajetórias traçadas, gera-se como um espelho, mini-histórias e consequentemente outras tantas mini-histórias contrárias. As relações pessoais no BBB 3 passam a desenvolver-se em condições duvidosas de sentimentos, pautadas quase sempre pela “competição”. As partes envolvidas mantêm um relacionamento perfilado pela agudeza das contraposições, em situações de confrontos, motivados pela vontade de possuir ou controlar algo. Todas as ações no programa revelam um estilo “contemporâneo”, marcado pela estética da competição, na qual as armas do jogo se encontram, em sua maioria, no corpo. Os jogadores colocam, no condicionamento do corpo, os movimentos e a forma atlética de que dispõem, a serviço da utilidade, do desempenho na disputa entre eles. Vencer é o lema desse jogo, que implica também responsabilidade. Só um ego forte suporta a carga da vitória, que, na visão de Távola (1985), envolve três elementos importantes: “qualidade, voracidade e sorte”. Os dois primeiros (qualidade e voracidade) são classificados pelo autor de objetivos e o terceiro (sorte) é considerado como subjetivo (TÁVOLA, 1985, p. 299). Este, porém, inalcançável, mas perceptível e presente no jogo, na vida e no acaso. O jogo, segundo o autor, “é uma relação inaprisionável entre esses eleComunicação, Linguagem e Inovações MidiáHcas
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mentos” (TÁVOLA, 1985, p. 300). Devolve ao homem sob forma simbólica e lúdica a sua impossibilidade de aprisionar o real. Do ponto de vista do programa, as relações pessoais acontecem em clima de excitação e muita expectativa, marcada pela competição, na qual todos os participantes acionam com mais vigor seus esquemas de ataque e ao mesmo tempo de autodefesa, numa luta demarcada pelas atuações numa perspectiva individualista. Talvez, por isso, possamos dizer que é em um sistema de relações pessoais que o BBB 3 constrói sua narrativa. Assim, as tensões dramáticas foram trazidas à trama pelas relações pessoais dos participantes. A produção, como uma forma de ressaltar e reforçar simbolicamente as tensões enfatizava nas edições as identidades opostas, como: a bondade (sublinhando a compreensão) e a perseguição (reconhecida como desagregadora e perigosa). Assim sendo, vejamos, a partir daqui, algumas das ações e reações dos jogadores do BBB 3. Ora, pelo que apresentamos tudo leva a crer que a história dos participantes vivendo numa casa, como se a realidade ali fosse verdadeira, deve-se a uma prática cultural de ficcionalização do drama de todos os dias, adotada pelos meios de comunicação, especialmente pela televisão na contemporaneidade. 5 EXCLUSÃO DO JOGO A exclusão do jogo apresenta-se como o processo pelo qual os participantes do programa BBB são sistematicamente impedidos (pelas regras) a continuar compartilhando da experiência na casa. São inquiridos a ceder às posições que não lhes permitiram a mudança de vida. Consiste num conjunto de ações e movimentos de cada jogador, como se uma teia invisível estivesse sendo cuidadosamente tecida, a partir da qual uma “verdade” vai sendo aos poucos revelada aos telespectadores – não tanto pelo que eles dizem, mas, fundamentalmente pela maneira como vão se posicionando em relação aos sistemas de alianças, articulações, lealdades ou em relação às hostilidades criadas. O próprio grupo exclui entre si. Os excluídos, conforme seus comportamentos (ou o comportamento solicitado pelo programa) procuram inventar maneiras de superar, através de diferen130
Profª Ms. Mirian Moema Pinheiro/ Estratégias narraHvas do BBB 3: Do anonimato à fama
tes mecanismos, a possibilidade de serem indicados a deixar o jogo. Nos confessionários eletrônicos desses programas, os jogadores revelam-se numa ambiguidade de causar aflição. Delatam os melhores amigos, prevalecendo, na selva televisiva, a lei do mais forte, do mais esperto, numa imitação do jogo da vida. Procuram justificar suas traições, invocando fatos banais ou simplesmente não sabem o que dizer no momento de proceder à indicação do candidato ao paredão, de dar razões para a escolha que fizeram no jogo. Parecem repetir a lógica dos gladiadores romanos, eliminando o adversário a qualquer preço e se exibindo a uma plateia ávida por emoções fortes e bizarras. Nessa estratégia, o programa convoca o telespectador a participar do jogo, decidindo, por votação semanal, qual dos participantes será indicado pelos parceiros de jogo, ao paredão, devendo deixar ou permanecer na casa. Percebemos, portanto, que nessa escolha, mesmo contando com a honestidade da emissora, na apuração dos votos o telespectador pode sofrer uma série de manipulações: edição fragmentada, interferência do apresentador, falta de transparência nas votações, falta de fiscalização na apuração dos votos. É importante que compreendamos que a exclusão funciona a partir de um jogo de interesses que se ordenam, combatendo-se. Os participantes, sabendo disso, prosseguem a marcha do jogo preconizando a máscara, mostrando claramente que aquilo que chamamos de “autenticidade” é apenas um disfarce para escapar da dureza da vida. 6 O GRANDE VENCEDOR O jovem vencedor do jogo representa a força, a destreza, energias necessárias ao ser humano para enfrentar as dificuldades da vida e conseguir superar o anonimato. Funciona como a significação do bem, da elevação, da ascensão social, com as quais o homem se identifica. O jogador vencedor é aquele que, ao longo do programa, padroniza um modelo de ser, embora sentenciado a cada comportamento, ainda assim é considerado como aquele que apresenta maior tolerância associada à esperteza e à sagacidade. Enfim, é o que muito perde, mas, no final, consagraComunicação, Linguagem e Inovações MidiáHcas
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se campeão do jogo. Para conquistar a vitória, os concorrentes passam a exercer a função de interlocutores fictícios da televisão, contribuindo para a manutenção do espetáculo, animando o telespectador a continuar acompanhando o jogo, tornando-se reféns do próprio meio, pois precisam dele para se promover. Verificamos que a partir do momento que se instala a ideia de que só a vitória lhes garante segurança, uma espécie de sentimento de superpoderio, grandeza e força emerge, passando a dominar os atos e determinar as reações de cada jogador. As pessoas entram no programa como anônimas e saem famosas, porém esvaziadas de suas subjetividades, porque aprisionado o desejo, fica apenas o estilo de vida editado pelo programa. É tanto que no processo de seleção dos participantes para integrarem o elenco do programa, é nítido que a identificação do candidato não é a do indivíduo real, mas uma imagem forjada pela Rede Globo de Televisão. Em outras palavras, não é que ela crie, mas escolhe de acordo com seus padrões e critérios aquela pessoa que atende a suas expectativas, uma vez que utiliza “olheiros”. O ganhador deixa a casa e ganha a rua, participa de novos espaços sociais; a rotina cotidiana prossegue agora por caminhos esculpidos sob as luzes dos refletores de TV, revistas, jornais, internet. Transformado em celebridade, reverenciado por todos, incorporando novos discursos, assume o papel de representante fiel da cultura midiática comandada pela lógica da visibilidade. 7 CONSIDERAÇÕES FINAIS Conhecendo as possibilidades da televisão, podemos dizer que nesse formato de programa coexistem diferentes tipos de realidade associados a elementos ficcionais. O reality show BBB 3 é tratado e lapidado como ficção, através do desenvolvimento da história, valores atribuídos aos jogadores, peripécias, noções de causa e efeito e presença do casal romântico. O fenômeno do reality show, especificamente o BBB está mais próximo da novela, acima de tudo por dois componentes: TRAMA E PERSONAGENS PARTICIPANTES. Assim, como nas novelas, os acontecimentos são sequenciados em for132
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mato de episódios diários, compondo “a narrativa seriada” (MACHADO, 2000, p. 83). De determinado programa que se espalha ao longo de meses, anos, sob a forma de edições diárias, semanais ou mensais. Percebemos dois principais trabalhos de dramaturgia no BBB: primeiro o de edição do que acontece naquela casa cenário. Como torná-lo um espetáculo com começo, meio e fim, com plot points (pontos de virada), um evento ou incidente que “engancha” na ação e reverte noutra direção, ou melhor, dizendo, ele move a história adiante, com desenvolvimento e resolução. NOTA 1 - Mestre em Ciências Sociais, Doutoranda em Estudos da Linguagem, professora do Departamento de Comunicação Social da UFRN. REFERÊNCIAS AUMONT, Jacques. A imagem. São Paulo: Papirus, 1993. BAKKTIN, Mikhail. Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo: Hucitec, 1995. BALOGH, Anna Maria. O discurso ficcional na TV. São Paulo: Edusp, 2002. _____________. A arte de narrar. São Paulo: Cultural, nov/2002. p. 3-4. BARROS, Diana L. P., Teoria Semiótica do texto. São Paulo: Ática, 1990. _____________. Teoria do discurso: fundamentos semióticos. São Paulo: Atual, 1988. BARTHES, Roland. O prazer do texto. São Paulo: Perspectiva, 1993. BOURDIEU, Pierre. Sobre Televisão. Barcelona: Anagrana, 1996.
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Comunicação e Hospitalidade no Ciberespaço Ronaldo Mendes Neves1
1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS Os desafios da comunicação no ciberespaço defrontam-se com aspectos éHcos e morais da sociedade que se manifestam virtualmente no século XXI. As relações sociais tendem a se distanciarem do contato humano integrando, cada vez mais, o cidadão no espaço virtual. Pensar a hospitalidade com o propósito de esHmular a reflexão educaHva no senHdo de formar o caráter hospitaleiro tem como referência a temáHca da comunicação virtual no ciberespaço por abranger vastamente as relações entre os sujeitos que se deslocam virtualmente nas civilizações modernas. Percebe-se que são muitos os campos de aHvidade acadêmica que podem estabelecer uma base de pesquisa para os ritos da hospitalidade, do acolhimento e do vínculo humano. As inovações nos meios de comunicação e suas tecnologias estão caminhando em conjunto na direção de um mundo sem fronteiras, com mercados diversificados em organizações, comunidades, pessoas, bens e serviços. Assim, a informação está ao alcance de todos e a rede mundial de computadores pode ser acessada para prestação de serviços em tempo real e para disseminação de informações que contribuem para a formação e a educação do cidadão virtual. Dentro desse cenário tecnológico, o conceito de hospitalidade deve ser ampliado para além das aHvidades turísHcas propriamente ditas. A relação que o processo de comunicação (BERLO, 1999) virtual estabelece com o imaginário dos sujeitos turísHcos gera valiosas contribuições e possibilidades de estudos da hospitalidade e da comunicação e da educação das comunidades envolvidas. De acordo com Grinover (2002, p. 34), “oferecer e receber uma informação é um mecanismo de hospitalidade”. As questões interdisciplinares Comunicação, Linguagem e Inovações MidiáHcas
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e as discussões em outros campos de conhecimento devem ser abordadas por meio de focos de interesse em cada área, sempre caracterizando o senHdo da formação e da educação do cidadão, visitante ou anfitrião: Hoje, o conceito de hospitalidade estende-se para além dos limites de hotéis, restaurantes, lojas e estabelecimentos de entretenimento [...] até recortes específicos, não apenas da antropologia, da sociologia, da história, da geografia, da economia, da política etc., mas também das ciências e tecnologias aplicadas à administração, à educação, à comunicação, à arquitetura, ao urbanismo, ao planejamento ambiental, aos recursos naturais etc. (GRINOVER, 2002, p. 27).
Para o autor, o estudo da hospitalidade se insere num contexto abrangente que envolve questões sociais e culturais enquanto se criam e implementam relações já existentes. Grinover (2003, p. 25) sugere que essas relações podem se expressar em vários contextos, pois “realizam-se trocas de bens e serviços materiais e simbólicos entre receptor e acolhido, anfitrião e hóspede, sendo que a noção de hospitalidade se emprega em diferentes contextos”. Essa terminologia permite ampliar as possibilidades de campos cienIficos para o estudo de técnicas e práHcas pedagógicas que venham elaborar aHvidades gestoras da hospitalidade com desdobramentos para as insHtuições de ensino no senHdo de mediar a transmissão do conhecimento para o cidadão. Desta forma, a hospitalidade é considerada uma troca humana: contemporânea, voluntária e mutuamente benéfica e se apresenta dentro de um conjunto de bens e serviços (LASHLEY, 2004).
Dimensões da hospitalidade (LASHLEY, 2004, p. 203) 136
MSc. Ronaldo Mendes Neves/ Comunicação e Hospitalidade no Ciberespaço
Os constantes conflitos sociais e hosHlidades que aHngem a civilização contemporânea estão além das questões políHcas e administraHvas. Trata-se de mudanças no próprio perfil do cidadão e de suas relações com a realidade virtual, na busca do conhecimento, valorizando a educação e a troca de informações. A comunicação e a hospitalidade virtual podem ser pensadas como uma forma de criar alternaHvas que possibilitem a formação do caráter hospitaleiro (LASHLEY, 2004). Nas pesquisas realizadas em nível de mestrado em administração abordando a hospitalidade comercial em empreendimento de lazer, Neves (2006), uma lacuna nos estudos interdisciplinares entre comunicação e hospitalidade foi verificada, especificamente na educação e nas práHcas pedagógicas, visto que a demanda pela informação é cada vez mais crescente no século XXI. Nessa sociedade interaHva e virtual, o excesso de informação disponível revela a necessidade de formar o caráter hospitaleiro através da comunicação entre os povos. O primeiro contato do usuário virtual no ciberespaço é estabelecido através de uma relação de comunicação. Nesta troca desordenada de esImulos, a comunicação e a hospitalidade afloram o vínculo humano existente entre emissor e receptor e podem ser considerados como elementos essenciais para organizar uma cultura hospitaleira através do acolhimento das mensagens virtuais, conforme apresentado no quadro a seguir:
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A apresentação do espaço virtual da hospitalidade se torna essencialmente necessária para estabelecer e incluir nos meios de comunicação recursos pedagógicos que direcionem para o desenvolvimento educacional e do caráter hospitaleiro de visitantes e visitados. Páginas da internet e os contatos eletrônicos demonstram o quanto é significante receber e enviar mensagens hospitaleiras, ou seja, mensagens acolhedoras que não agridam e que vão de encontro aos interesses do receptor. É di3cil imaginar a comunicação no ciberespaço sem a hospitalidade como pano de fundo, no senHdo de enviar, receber e responder mensagens cordiais. O instante que envolve a recepção de mensagens virtuais é tênue e precisa de acompanhamento constante para prestar serviços de hospitalidade aos sujeitos turísHcos. Desta maneira, Camargo (2004) descreve os quatro tempos da hospitalidade ligados à esfera da comunicação social e ao caráter hospitaleiro: domésHca, pública, comercial e virtual. Virtual – Embora perpasse e seja quase sempre associada espacialmente às três instâncias anteriores, já se vislumbram características específicas dessa hospitalidade, notadamente a ubiquidade, na qual emissor e receptor da mensagem são respectivamente anfitrião e visitante, com todas as consequências que essa relação implica (CAMARGO, 2004, p. 54).
As pessoas chegam e partem virtualmente. A representação da ubiquidade é configurada como caracterísHca parHcular da hospitalidade virtual, pois se refere à condição superior de estar em toda parte ao mesmo tempo. A onipresença do emissor e do receptor da mensagem eletrônica delimita suas inter-relações de anfitrião e visitante simultaneamente. Este mercado se torna virtual à medida que se consHtui uma relação especializada entre dois protagonistas, aquele que recebe e aquele que é recebido e que, quase nunca, estão no mesmo local ao mesmo tempo. Esta capacidade de estar em vários lugares ao mesmo tempo, representada pela informação virtual, é conhecida como ubiquidade. A mulHplicidade de portais na internet demonstra a constante e crescente presença da ubiquidade, o que torna necessário ampliar o debate da hospitalidade e da convivência cordial e educadora no ciberespaço. O enviar e receber mensagens virtualmente remete aos critérios 138
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de polidez e eHqueta com suas maneiras de comportamento e formas de tratamento: a net-hospitalidade (CAMARGO, 2003). Não basta incluir o cidadão no ciberespaço. As regras de bom comportamento virtual iniciam nas aHtudes hospitaleiras dos visitantes e anfitriões. Dessa maneira, a net-hospitalidade é sugerida para consHtuir o caráter hospitaleiro nas relações virtuais de comunicação e educação.
Tendo em vista o aumento generalizado de inovações tecnológicas, as páginas na web estão cada vez mais interaHvas e procuram receber os visitantes com atrações e links diversificados, buscando prestar um melhor serviço informacional aos cidadãos. A hospitalidade é uma troca humana de cordialidades que tem por objeHvo, aumentar o bem-estar, a qualidade da informação e obter bene3cios mútuos tanto para o anfitrião como para o visitante. Para Lévy (2000, p. 47), é considerada virtual “toda enHdade desterritorializada, capaz de gerar diversas manifestações concretas em diferentes momentos e locais determinados, sem, contudo, estar ela mesma presa a um lugar ou tempo em parHcular”. O autor explica e adverte que não se pode fixá-lo em nenhuma coordenada espaçotemporal, o virtual é real e afirma que o virtual existe sem estar presente. Assim, caracteriza-se o processo de virtualização onde a comunicação conInua representa a ubiquidade da informação.
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O ciberespaço encoraja um estilo de relacionamento quase independente dos lugares geográficos e da coincidência dos tempos [...] ubiquidade da informação, documentos interativos interconectados, telecomunicação recíproca e assíncrona em grupo ou entre grupos: as características virtualizante e desterritorializante do ciberespaço fazem dele o vetor de um universo aberto. Simetricamente, a extensão de um novo espaço universal dilata o campo de ação dos processos de virtualização (LÉVY, 2000, p. 49).
Diante do amplo desafio de invesHgar um campo no qual se desenrola um processo de comunicação (BERLO, 1999) tecnológico em permanente feedback entre o visitante e o visitado, a interação mediada pela hospitalidade virtual revela que uma nova relação de aHtudes educaHvas presente na troca de mensagens da sociedade no ciberespaço. A análise da comunicação virtual apresenta novos modelos de práHcas pedagógicas que permitem que indivíduos transmitam suas mensagens para outros, dispersos no tempo e no espaço, o que caracteriza a expansão da educação à distância. Esse ponto de vista leva a considerar o caráter hospitaleiro como base para estruturar uma civilização que se comunica no espaço virtual, assim sendo: Não se trata aqui de usar as tecnologias a qualquer custo, mas sim de acompanhar consciente e deliberadamente uma mudança de civilização que questiona profundamente as formas institucionais, as mentalidades e a cultura dos sistemas educacionais tradicionais e sobretudo os papéis do professor e de aluno (LÉVY, 2000, p. 172).
Conforme relata o autor, a principal questão não é o momento de passagem da educação presencial à educação à distância e nem da escrita e da oralidade para os meios mulHmídia e sim, a transição para um intercâmbio de conhecimento e informações. É, justamente, a transformação de uma educação e uma formação estritamente insHtucionalizadas (a escola, a universidade) para um sistema de troca generalizada dos saberes, o ensino da sociedade por ela mesma, de conhecimento autogerenciado e móvel. Esse sistema proposto pressupõe a presença constante do processo de comunicação e da interferência direta da hospitalidade virtual para consHtuir a cultura do caráter hospitaleiro no ciberespaço. Para tanto, o vínculo humano 140
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conHnua sendo indispensável para manter a cordialidade e a reciprocidade nas relações de comunicação para bene3cio mútuo dos sujeitos turísHcos, de acordo com a proposta sugerida pelo professor Lévy (2000, p. 173): “PermiHr a todos um acesso aberto e gratuito a midiatecas, a centros de orientação, de documentação e de autoformação, a pontos de entrada no ciberespaço, sem negligenciar a indispensável mediação humana do acesso ao conhecimento”. Na obra de referência universal, “Pedagogia da autonomia”, Freire (1996) aborda a perHnência da inter-relação do trabalho educaHvo com os meios de comunicação quando expressa a seu pensamento com relação aos meios de comunicação, pois para o educador, pensar a mídia em geral é pensar num processo impossível de neutralidade. Torna-se evidente que, se o ambiente de comunicação virtual não é neutro, a convergência entre a comunicação e a educação é imprescindível e posiHva para a formação do caráter hospitaleiro no cidadão. Segundo Marques de Melo (2008, p. 54), com a “telemáHca”, os meios de comunicação tendem a fragmentar a produção simbólica priorizando a imaginação e a emoção. “E busca nas teorias da informação os fundamentos para a criação de uma realidade virtual, de um ciberespaço”. Nesse contexto, a comunicação e a educação produzem a circulação virtual da livre expressão de ideias e contribui diretamente para o desenvolvimento social e cultural do ser humano. O autor ainda acrescenta a importância histórica que os processos educaHvos têm sobre a evolução da mídia: “É importante lembrar que, historicamente, a mídia dependeu da expansão da educação com vistas à alfabeHzação para a formação de mercados e públicos consumidores”. Contudo, pode-se afirmar que as aHvidades educacionais realizadas com o suporte midiáHco se desenvolvem no ciberespaço e gera a tecnocultura, destaca Marques de Melo (2008, p. 55), “os processos de educação e comunicação, amparados sobretudo na oralidade e na imagem que recebemos e reelaboramos a cultura: a cultura dos outros, dos nossos ancestrais; a nossa cultura”. A parHr dessa proposição, considera-se fundamental a necessidade de interagir comunicação, educação e ciberespaço: a tecnocultura. Para o professor Marques de Melo (2008, p. 58), o maior desafio da educação contemporânea esteja no fato de como uHlizar os meios de comunicação no Comunicação, Linguagem e Inovações MidiáHcas
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ciberespaço. “IncenHvar o uso das tecnologias digitais, e, ao mesmo tempo, não permiHr que o conhecimento se forme fragmentado, supérfluo e vazio. Melhor, que ele nem sequer ocorra”. E ainda alerta para violência virtual, interpretada como má educação virtual, no senHdo de expor os conflitos entre as culturas oral, escrita e imagéHca. Segundo descreve Marques de Melo, a violência do imaginário é capaz de afetar todas as modalidades do laço social, o que descaracteriza a ação de qualquer esHlo de hospitalidade. Assim sendo, reforça-se a necessidade vital de implementar uma cultura da hospitalidade que eduque por meio da comunicação, sempre desenvolvendo e aprimorando o caráter hospitaleiro para estancar a violência do imaginário na tecnocultura. E assim, o ciberespaço se apresenta como poder simbólico (THOMPSON, 1998), em um ambiente de visitação pública e universal, necessitando de ser inundado de aHtudes hospitaleiras na troca de informações e serviços virtuais. Ao enviar mensagens para pessoas nos contextos distantes, conforme deduz Thompson (1998, p. 106) “a mídia modela e influencia o curso dos acontecimentos, cria acontecimentos que poderiam não ter exisHdo em sua ausência”. O incremento das novas tecnologias da informação na fase contemporânea da sociedade sustenta o imaginário coleHvo e, nesse senHdo, inserem-se as perspecHvas educacionais e práHcas pedagógicas para a formação do caráter hospitaleiro nas relações de comunicação entre visitantes e visitados no ciberespaço. Assim, na sociedade da informação interaHva, é comum dirigir ações de comunicação para um receptor distante no espaço e no tempo, representando a ubiquidade da informação com consequências que ultrapassam os limites de seus contextos e localizações. O desenvolvimento de novos meios de comunicação não consiste simplesmente na instituição de novas redes de transmissão de informação entre indivíduos cujas relações sociais básicas permanecem intactas. Mais que isso, o desenvolvimento dos meios de comunicação cria novas formas de ação e de interação e novos tipos de símbolos nas relações sociais (THOMPSON, 1998, p. 77).
A ideia de tempo e espaço na hospitalidade apresenta novas vivências e 142
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experiências para jusHficar os deslocamentos virtuais da sociedade contemporânea, conforme revela Baccega (2008, p. 3): “criam-se novas sensibilidades, novos modos de se relacionar, maneiras diferentes de estar junto com outras pessoas, de circular pelas cidades, de circular pelo mundo e pelos mundos”. A autora ainda acrescenta que toda a informação circula e representa o poder simbólico presente na informação: “As imagens parecem ocupar o lugar do concreto. Através delas, os objetos, mágicos e atraentes, oferecemse para serem adquiridos”. Essas imagens são alguns dos exemplos que expressam a hospitalidade virtual desses locais e ultrapassam os limites dos seus contextos e localizações: a ubiquidade. Mensagens eletrônicas informaHvas e publicitárias são enviadas por agências de viagem e localidades turísHcas para promoverem o desHno por meio do ciberespaço: o Cristo Redentor percorreu o mundo depois do recente anúncio do Rio de Janeiro como cidade vencedora para sediar os jogos olímpicos de 2016. Um exemplo da representação espaçotemporal da comunicação e da hospitalidade virtual aconteceu com a transmissão da parHda de futebol da seleção Inglesa realizada na Ucrânia. A transmissão foi responsável pela maior audiência no Reino Unido de um evento vendido pelo sistema pay-per-view e transmiHdo ao vivo pela internet. Segundo informação do portal terra (2009), a iniciaHva de transmiHr o jogo pela internet foi de uma organização que comprou os direitos de transmissão, mas decidiu não aceitar nenhuma proposta para exibir o jogo na televisão. O ingresso virtual para assisHr ao confronto foi vendido a cerca de 250 mil espectadores virtuais. EsHma-se que meio milhão de pessoas acompanhou a parHda na tela de um computador, resultado da audiência total. "Somado a isso, do ponto de vista de um serviço para o consumidor, da produção e distribuição, nós senHmos que isso acontecerá de forma suave", acrescentou o portal. O entretenimento virtual se desenvolve de acordo a evolução dos meios de comunicação: dos folheHns de jornais, revistas, passando pelo rádio, pela televisão, pela mulHmídia e a internet. De acordo com confirmação do professor Camargo (2004, p. 66), atualmente “o entretenimento virtual é o campo mais poderoso do lazer do ponto de vista econômico. Envolve, aproximadamente, mais de 40% do tempo livre dos indivíduos.” Comunicação, Linguagem e Inovações MidiáHcas
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Portanto, evidencia-se a categoria da hospitalidade virtual para consHtuir o vínculo da comunicação humana no intuito de formar o leitor cidadão e consHtuir o caráter hospitaleiro na comunicação entre visitantes e anfitriões, sujeitos turísHcos do ciberespaço. Enfim, estabelecer uma reflexão educaHva nos pensadores da comunicação e da hospitalidade conHda na reciprocidade humana através das trocas de mensagens para gerar o bem-estar dos sujeitos turísHcos envolvidos nesse processo virtual descrito como cibercultura (LÉVY, 2000). 2 CONSIDERAÇÕES FINAIS Considerar e estudar a temáHca da hospitalidade e a comunicação virtual leva a uma reflexão maior a respeito de questões como a educação e a cidadania, a reciprocidade através da integração dos povos, a inclusão social e restabelecimento do vínculo humano. A caracterização da valorização dos processos de relações humanas evidencia a necessidade de desenvolver e aprimorar o caráter hospitaleiro nas ações recíprocas de visitantes e visitados no ciberespaço: net-hospitality. Exatamente por este moHvo, a missão de recepcionar e acolher os visitantes virtuais se torna uma práHca pedagógica de fundamental importância para a construção de uma comunicação virtual hospitaleira e educada. Os atos de hospitalidade se configuram, especialmente nas transações virtuais, como uma função geradora de conhecimento coleHvo para o desenvolvimento humano e profissional de visitantes e anfitriões. A organização dos processos comunicaHvos de informação, lazer e entretenimento tem muito a colaborar para a formação de um suporte social de apoio que permita a inclusão e a aceitação do outro. Avaliar as relações da comunicação e a educação com os atores sociais envolvidos no ciberespaço se torna uma exigência da mídia e de suas inovações tecnológicas, uma vez que a transmissão de informações virtuais traz contribuições fundamentais para o desenvolvimento educacional dos sujeitos turísHcos envolvidos no processo de virtualização da hospitalidade. As possibilidades de reflexão sob o foco da comunicação, da hospitalidade e da educação são infinitas considerando a convivência éHca e moral de sujeitos no 144
MSc. Ronaldo Mendes Neves/ Comunicação e Hospitalidade no Ciberespaço
ciberespaço. NOTA 1-Mestre em Administração, professor do Departamento de Comunicação Social da UFRN. REFERÊNCIAS BACCEGA, Maria Aparecida (Org.). Comunicação e culturas do consumo. São Paulo, Atlas, 2008. BERLO, David K. O Processo da Comunicação. São Paulo, MarHns Fontes, 1999. CAMARGO, Luis Otávio de Lima. Os domínios da hospitalidade. In: DENCKER, Ada de Freitas ManeH; BUENO, Marielys Siqueira (Org.). Hospitalidade: cenários e oportunidades. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2003. ______. Hospitalidade. São Paulo: Aleph, 2004. DENCKER, Ada de Freitas ManeH, Bueno, Marielys Siqueira (Org.). Hospitalidade: Cenários e oportunidades. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2003. FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à práDca educaDva. 25. ed. São Paulo, Paz e Terra, 1996. GRINOVER, Lucio. Hospitalidade: um tema a ser reestudado e pesquisado. Em: DIAS, Célia Maria de Moraes (Org.). Hospitalidade: reflexões e perspecHvas. Barueri: Manole, 2002. LASHLEY, Conrad; MORRISON, Alison (Org.) Em busca da hospitalidade: perspecDvas para um mundo globalizado. Tradução de Carlos David Szlak. Comunicação, Linguagem e Inovações MidiáHcas
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Barueri, São Paulo: Manole, 2004. LÉVY, Pierre. Cibercultura. Tradução de Carlos Irineu da Costa. São Paulo: Ed. 34, 2000. MARQUES DE MELO, José; TOSTA, Sandra Pereira. Mídia e Educação. Belo Horizonte: AutênHca Editora, 2008. NEVES, Ronaldo Mendes. Dinâmica da hospitalidade comercial: um estudo do caráter hospitaleiro em empreendimento de lazer no Rio Grande do Norte. Dissertação (Mestrado em Administração) – Programa de Pós-graduação em Administração, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2006. ______. Consumo do tempo livre: perspecDva interdisciplinar da comunicação e da hospitalidade virtual. Anais do XXXII Congresso Brasileiro de estudos interdisciplinares de comunicação (INTERCOM), CuriHba, 2009. PORTAL TERRA. Disponível: <hJp://esportes.terra.com.br/futebol/eliminatorias2010>. Acesso em: 11 out. 2009. THOMPSON, John B. A mídia e a modernidade: uma teoria social da mídia. Petrópolis: Vozes, 1998.
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MSc. Ronaldo Mendes Neves/ Comunicação e Hospitalidade no Ciberespaço
A comunicação gráfica na interface de hipermídia e seus atributos de usabilidade Taciana de Lima Burgos1
1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS Compreender a estrutura comunicativa da interface de hipermídia requer, primeiramente, situar o termo em uma das suas linhas teóricas que a definem entre suas relações de interatividade e interação. A primeira a descreve como meio de transmissão de informação não linear originada pela convergência entre diferentes mídias (FERRARI, 2007, GOSCIOLA, 2000; PINHO, 2000). Já a segunda é vista como um sistema aberto, infinito e plurissignificativo no qual a narrativa circula com alto grau de interconexão (NEGROPONTE, 1995; VOUILLMOZ, 2000). A ampliação da convergência midiática na Internet nos permite ampliar as visões dessas duas linhas teóricas e compreender a interface de hipermídia como um sistema de informação ou meio computacional virtual ou digital, no qual se fixam linguagens verbais e não verbais, que se interconectam de forma não linear. Essas linguagens circulam hibridizadas na interface entre os hipertextos virtuais, imagens, vídeos, animações, hiperlinks, ícones, cores, sons e gráficos vetoriais, e passam a representar os elementos de hipermídia. Nessa linha, cunhamos o termo hipermídia como um sistema ou interface computacional virtual ou digital, formado por linguagens verbais e não verbais, hibridizadas em hipertextos virtuais, cores, sons, animações, gráficos vetoriais, imagens, vídeos, hiperlinks e ícones, que se interconectam interativamente e promovem navegação não linear. As interfaces de hipermídia integram os sistemas de mídias móveis, de jogos, de portais de comércio eletrônico, de notícias e de ambientes virtuais de aprendizagem. Seu uso na Internet revela inúmeras experimentações, Comunicação, Linguagem e Inovações MidiáHcas
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porém, os atributos de usabilidade criados até então são direcionados, em sua maioria, para interfaces de comércio eletrônico e de notícias, já que são os tipos de páginas virtuais mais populares na web. Devemos compreender que uma interface de hipermídia é, acima de tudo, um meio de transmissão de informações e que, para cumprir seu papel, necessita transmitir para seu público a mensagem de maneira eficaz, de acordo com o seu objetivo de uso e comunicação. Visando essas metas, empregamos os atributos de usabilidade, que são parâmetros ergonômicos para aplicação de ferramentas, mídias e tecnologias, que foram testadas e definidas, com o objetivo de gerar acessibilidade e comunicabilidade para interfaces de hipermídia. A aplicação de atributos de usabilidade reduz a possibilidade de erro que um usuário, cursista ou leitor terá ao utilizar um sítio virtual/digital. Para Krug (2006) criar um novo modelo de atributo de usabilidade em substituição aos já existentes, como o redesenho de um hiperlink, de um ícone ou reestruturar a sequência de um hipertexto virtual, só é recomendável se ele for suficientemente autoexplicativo, de forma a não exigir muito esforço cognitivo do leitor para entender, navegar e intercambiar dados, ou se for uma ideia que acrescente valor às suas experiências. O desenho gráfico de uma interface de hipermídia exige a aplicação dos atributos de usabilidade para cada elemento que a compõe (hipertextos virtuais, cores, sons, animações, gráficos vetoriais, imagens, vídeos, hiperlinks e ícones). Apesar de cada um desses elementos possuírem uma função singular no leiaute, a sua convergência com os outros itens que formam a interface gera uma modificação na arquitetura da informação, na navegação, na comunicabilidade e na estética do leiaute. O hipertexto virtual, por exemplo, quando aplicado como hiperlink, torna-se um ícone, pois é somado aos gráficos vetoriais, às cores e às animações. Os sons podem ser transmitidos em players, ícones ou podcasts, acompanhar imagens para criar diferentes sensações de presença e intimidade. A cor, além de ser utilizada como plano de fundo e descrever o conceito abordado na interface, pode também indicar a marcação de hiperlinks, demarcar áreas de prioridade e diferenciar botões de tarefas, ou seja, cada mídia pode ser usada de um modo mais ou menos 148
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convergido, fato esse que exige do leitor diferentes letramentos e esforços cognitivos em suas ações de navegação em motores de busca, portais de notícias e blogs, já que cada suporte possui um maior ou menor grau de convergência em sua arquitetura da informação e ferramentas de interação e interatividade. De acordo com Burgos, TL (2006), as páginas virtuais de hipermídia precisam ser fáceis de navegar (ler) para promover uma navegação ergonômica (ato de movimentar-se aleatoriamente na interface), e isso se dá no instante em que se estabelece uma relação de usabilidade entre conteúdo veiculado, composição gráfica da página e suporte. Com vistas ao aprofundamento sobre a comunicação gráfica em interfaces de hipermídia, apresentaremos a seguir os atributos de usabilidade para seus elementos constitutivos, considerando os aspectos da acessibilidade e usabilidade. 2 OS ATRIBUTOS USABILIDADE NOS ELEMENTOS DE HIPERMÍDIA 2.1 O hipertexto virtual A utilização de hipertextos virtuais em uma interface gráfica transmite um conceito que ultrapassa o seu significado textual, já que os conteúdos escritos podem acompanhar cor, gráficos vetoriais, ícones, sons, hiperlinks e animações. A escolha da fonte deve corresponder às características do suporte, do tipo de leitor a qual se destina e ao tema abordado. A tipografia em um leiaute gráfico, analógico ou virtual envolve a seleção de tipos, a escolha do formato da página e a composição das fontes (letras) de um texto. Tudo isso, com o objetivo de transmitir uma mensagem de modo mais eficaz possível, gerando no leitor destinatário significações pretendidas pelo destinador (NIEMEYER, 2003). A aplicação de famílias tipográficas em monitores de computador sofre a influência direta da existência dos pixels (menor unidade ou ponto em um monitor de vídeo cuja cor ou brilho pode ser controlado), já que a composição da imagem da tela é responsável pela deformação das serifas dos tipos, quando estas são aplicadas em tamanhos reduzidos (menor que corpo três nos editores HTML e doze em editores de texto convencionais). Assim “B” ou Comunicação, Linguagem e Inovações MidiáHcas
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“R” passam a ser lidos como “P”; “M” torna-se “N” e “Q” é visto como “O” (BURGOS, TL 2006). Nielsen (1995, p. 108) afirma que, para ser bem visualizado pelo leitor, o hipertexto virtual deve ser aplicado em corpo de 10 a 12 pontos, ou 40 a 60 caracteres por linha, para monitores com resolução de 800 x 600 pontos por polegada; em no máximo duas famílias tipográficas, como Verdana, Arial ou Tahoma, aplicadas com a variação entre caixas alta e baixa, com o itálico apenas para citações e destaque no corpo do texto. Essas fontes são indicadas por não possuírem serifas e estarem integradas aos sistemas operacionais mais populares. O autor também afirma que devem ser evitados hipertextos virtuais com efeito intermitentes de brilho e luminosidade, uso do hífen e de alinhamentos à direita, já que este se apresenta oposto ao sentido de leitura ocidental. Para Radfahrer (1995, p. 115), os grupos de hipertextos devem ser pequenos, independentes entre si, mas com elementos semânticos e gráficos comuns. Gomes (1999) acrescenta que a apresentação formal do texto na web devemos ajustar a régua do editor de texto de 2,5 a 12,5 cm, pois impedirá que o texto ocupe uma largura maior que 16,5 cm na tela. Para isso, sugerimos parágrafos de textos compostos por até 20 linhas, com uma media de 200 a 250 palavras, subdivididas em parágrafos com no máximo 5 ou 6 linhas e cerca de 40 a 70 caracteres. Para ampliar ainda mais a legibilidade cada parágrafo deve ser separado por espacejamento duplo e descrever uma ideia, exceto quando o tema tratado justificar a junção de outros assuntos. Na aplicação dos hipertextos virtuais como hiperlinks, devemos utilizar os mesmos desenhos gráficos para todos que marcarem conexões para outras páginas ou seções. O padrão gráfico soma ao hipertexto virtual os gráficos vetoriais, as cores e os mapas de conexões, que quando aplicados nos modelos “breadcrumbs” e “abas” permitem ao leitor uma melhor usabilidade. Para promovermos uma leitura eficiente em hipertextos virtuais tornase primordial a construção de interfaces que reduzam o esforço visual e cognitivo do leitor, para, que possamos assim, estabelecer relações, levantar hipóteses, adquirir novos conceitos e apresentar soluções às indagações que 150
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surgirem diante de si. 2.1.1 As cores A cor influencia na navegabilidade e na estética da página virtual, devido às suas qualidades comunicativas e sinestésicas. Seu uso está associado a planos de fundo, aos gráficos vetoriais, aos ícones, aos hipertextos virtuais e aos hiperlinks. Como elemento comunicativo na interface de hipermídia a cor tem como função realçar itens que devam atrair a atenção do leitor, indicar áreas ativas ou já acessadas em hiperlinks e demarcar grupos temáticos. Farina (2002) afirma que, para facilitar o emprego das cores, é imprescindível conhecer suas associações positivas e negativas, pois quando usada sem correlação temática com o assunto tratado no leiaute, ou fora dos padrões de marcação para hiperlinks, a cor pode gerar um sentido negativo ou distrair o leitor. Essa importância é enfatizada também pela cor ser, depois da aplicação do hipertexto virtual, o elemento mais utilizado e o que mais gera conflito de usabilidade, já que em muitas ocasiões a empiria e o gosto pessoal prevalecem em oposição ao uso dos atributos de usabilidade, e isso reduz a interatividade com a interface, confunde significados, dispersa ou irrita o leitor. De acordo com Parizotto (1997) a utilização de elementos cromáticos em páginas de hipermídia deve evidenciar o significado de cada cor no seu contexto cultural, comunicativo e funcional, assim como a sua relação de equilíbrio e contraste em diferentes gradações. Assim, na relação entre hipertexto virtual e cor, devemos atentar para a utilização de no máximo duas cores nas famílias tipográficas, uma para o título e outra para o corpo do texto. Nas interfaces com maior volume de hipertexto virtual, nas áreas de postagem de arquivos, de preenchimento de formulários, nas seções de informações ou instruções e de adição de login e senha, devemos aplicar parágrafos na cor preta e reservar as cores quentes, como vermelho e amarelo, apenas para os marcadores. A redução da incidência de brilho e contraste torna-se essencial para evitar que o leitor fique ofuscado. Já no leiaute, devemos evitar substituir a função de um elemento de hipermídia por uma cor, por exemplo, aplicar um hiperlink somente adicioComunicação, Linguagem e Inovações MidiáHcas
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nando à cor a um hipertexto virtual sem a adição do gráfico vetorial, em forma de linha, para sublinhá-lo e retângulo como botão. Nos hiperlinks, o uso da cor está relacionada ao atributo de acessibilidade (aplicação do efeito rollover, que corresponde a mudança cromática de um hiperlink ao ser acessado: azul para a marcação de áreas ativas, que se torna vermelho ao primeiro click do mouse e roxo para as já acessadas). Para os planos de fundo, devemos utilizar cores neutras, como o cinzaclaro ou pérola que reduzem a incidência do brilho na interface. Em planos escuros, devemos aplicar hipertextos virtuais na cor verde para facilitar a percepção dos demais conjuntos cromáticos, já que os tons escuros produzem a sensação de redução do tamanho da página, enquanto os claros induzem a amplitude de superfícies. A cor ao ser reunida aos hipertextos e aos elementos gráficos, como item de demarcação de áreas temáticas e boxes, deve ser empregada em apenas um tom e seu conjunto de gradações. Para essa mesma função devemos evitar o uso do azul ou a sua proximidade com o vermelho, pois essa combinação gera fadiga para o leitor. Da forma concordante, o uso de contrastes entre vermelho-verde, azul-amarelo, verdeazul e vermelho-azul geram vibrações, ilusões de sombras e de imagens sobrepostas. 2.1.2 Os ícones Na interface de hipermídia o uso dos ícones não representa apenas um adorno gráfico, mas a reunião de elementos verbais e não verbais como um guia estético e funcional, já que um ícone pode representar um hiperlink, um conceito, hierarquizar títulos ou seções e demarcar áreas temáticas. Utilizálos representa ultrapassar a limitação idiomática de um hipertexto virtual, uma vez que o seu desenho ajuda a estabelecer outros elos semânticos. Eles devem ser facilmente diferenciados entre si, estar adequadamente rotulados, ser aplicados apenas com a função de recurso redundante à barra de menu. Por representarem metáforas do mundo real é comum identificarmos a sua utilização de ícones como uma opção para a redução da poluição visual da página e para indicar objetos ou tarefas (DIAS, 2007). O projeto de criação de ícones deve ser iniciado a partir da seleção dos 152
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temas nos quais a página virtual abordará, para, em seguida, haver a seleção de cores, gráficos vetoriais, imagens ou animações que representem esses temas. De acordo com Robertson (1993), devemos projetar as ações de navegação e ícones como substantivos para que seja mais fácil representá-los em gráficos vetoriais, cores, imagens e animações de modo minimalista. Seu desenho deve utilizar signos comuns aos leitores da interface, ou seja, o ícone deve ser associado a um objeto do mundo real, para assim facilitar o seu reconhecimento e a identificação da sua função. Assim, os ícones em interfaces de hipermídia devem apresentar o mesmo padrão de estilo gráfico e cromático, possuir aparência simplificada, medir três centímetros de tamanho mínimo para garantir a sua legibilidade, ser gráfico vetorial para se tornar mais leve que imagens e acompanhar marcador ALT. 2.1.3 Os hiperlinks Os hiperlinks são ligações entre hipertextos virtuais, de mesma correlação semântica ou funcional, que são ativados por meio de um ponto âncora/barra de menu (BURGOS TL, 2006). São elementos físicos e lógicos que interligam os computadores em rede, com os endereços de páginas, ponteiros (vínculo ou link) de hipertexto ou palavras-chave destacadas em um texto, que, quando clicadas, nos levam para o assunto desejado, mesmo que este esteja em outro arquivo ou servidor. Quando um hiperlink é selecionado o cursor do periférico de entrada externo, popularmente conhecido como "mouse", muda seu formato de seta para mão (hand hyperlink) e um salto é feito para o endereço associado à ligação. Esse pode ser uma palavra, ícone, frase ou nó do mesmo documento ou de outro endereço de domínio, que traduz uma relação de elo temático entre dois sítios virtuais. Além dessa associação, o hipertexto virtual como hiperlink deve acompanhar marcações cromáticas, gráficos vetoriais e itálico, ou negrito, para as ligações no corpo do texto. Em relação ao tipo de ligação um hiperlink pode ser: − Unidirecional: ligação de navegação linear que leva à passagem para Comunicação, Linguagem e Inovações MidiáHcas
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um único destino e /ou retorno ao ponto inicial de acesso. Como exemplo, temos o modelo "migalhas de pão” ou “breadcrumbs” e o “avançar” e “retroceder”. − Bidirecional: indica a característica mais comum dos links hipertextuais, pois permite ao leitor navegar de forma não linear no mesmo documento, área de conteúdo ou nó. Quanto aos seus tipos podemos classificar os hiperlinks como: a) Grupo de palavras para um destino: hiperlink formado por um grupo de palavras que leva a uma identificação semântica mais precisa entre o seu conteúdo, origem e o destino da navegação, já que o leitor conta com o auxílio de um conjunto de palavras que o descrevem. Exemplo: título de matéria jornalística de um webjornal; b) Âncora: hiperlink que abriga outras ligações internamente. Eles se unem a partir de uma correlação temática direta entre dois ou mais assuntos. É um tipo de hiperlink elaborado, que exige um maior planejamento em sua arquitetura, já que para o leitor identificar suas ligações internas deve primeiro compreender o que se apresenta como âncora. Exemplo: menu de uma seção dos portal de notícias; c) Um link para múltiplos links: disponibiliza o acesso a vários conteúdos, subdivididos em seções temáticas ou em hiperlinks indexados. Exemplo: área de login, menu de portal de comércio eletrônico; d) Múltiplos links para um link: hiperlinks localizados em diferentes páginas do sítio virtual que direcionam o leitor para um único ponto específico. Exemplo: os hiperlinks dos produtos de um sítio de comércio eletrônico que direcionam para página comprar; e) Plurissemântico: corresponde a uma ou as várias palavras-chave digitadas nos campos de busca. Elas ligam a outros hiperlinks, onde a correlação temática depende da especificidade semântica da palavra digitada pelo leitor. Exemplo: caixas de busca. Outro recurso, que mencionamos aqui para facilitar a compreensão, refere-se à utilização dos marcadores ALT em cada hiperlink. Este recurso permite que o leitor obtenha mais pistas sobre o conteúdo do respectivo hiperlink, no momento em que aproxima o cursor do item desejado. Esse modelo 154
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pode ser perfeitamente integrado a todos os hiperlinks das interfaces comerciais, noticiosas e dos ambientes virtuais de aprendizagem. 2.1 4 As animações, os sons e os vídeos As animações assumem diferentes papéis em um interface de hipermídia. Elas podem orientar a comunicabilidade ao indicar as áreas de navegação, ao destacar os infográficos, ao assinalar o início ou término de uma seção ou ao acompanhar os hiperlinks . A sua aplicação ganhou popularidade nas interfaces da Internet, na década de 1990, com o software Macromedia Flash. Suas ferramentas facilitaram o desenho de animações para barras de menu, hiperlinks, hipertextos, gráficos e suas convergências com o som, mas por outro lado, o software exigiu e exige que seus usuários tenham instalados em seus computadores diferentes “plugins” para que seja possível a visualização das animações. O uso de sons e vídeos também são componentes recentes nas interfaces virtuais, já que a tecnologia “streaming” facilitou o acesso aos conteúdos sonoros, permitindo assim que o som fosse reproduzido simultaneamente com o seu download. Sem essa tecnologia era necessário que o arquivo de áudio fosse inteiramente transferido para o computador do leitor, para depois ser incorporado a um “player” e ouvido. Os podcasts também auxiliaram na difusão e armazenamento dos arquivos de áudio e vídeo, como em seus usos em diversas áreas e na educação. O emprego de animações e de sons não envolve somente o seu sentido e funcionalidade, pois no ambiente virtual a largura de banda disponível impedirá ou facilitará a reprodução dos arquivos de áudio e de vídeo. O mesmo sentido se aplica às interfaces off-line, na qual a velocidade de processamento do computador e a qualidade dos hardwares de som e vídeo interferem na sua qualidade e reprodução. As animações, os sons, e os vídeos devem estar diretamente relacionados ao conceito criativo e navegabilidade do sítio, já que o excesso desses itens deve ser evitado para abstrairmos as distrações, irritações e demora no carregamento da página. Na interface de hipermídia a aplicação de animações obedece aos Comunicação, Linguagem e Inovações MidiáHcas
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seguintes atributos: não inserir animações semelhantes a anúncios; utilizar barra carregamento progressiva, acompanhada de contagem numérica de zero a cem para as páginas que exigem mais de dez segundos para o download da sua barra de menu; fixar as animações de maior tamanho nas páginas internas do sítio; utilizar versões de softwares anteriores as mais atuais para garantir o acesso a “plugins” já popularizados; evitar animações intermitentes, já que elas distraem e causam monotonia. As animações com mais de cinco segundos, devem ser reproduzidas apenas uma vez e a sua repetição deve ser acionada em um hiperlink à parte. Quando elas integrarem mini sítios, splash pages ou páginas iniciais da interface, devem ser aplicadas com um hiperlink para a sua reprodução ou não. Logotipo, slogan ou o título principal não devem ser animados (SAUCIER, 2000). Ao observarmos a utilização do som nas interfaces de hipermídia identificamos que a sua aplicação, vai além do intercâmbio de arquivos de música e, também se materializa nas veiculações das interações em tempo real vistas em salas de bate-papo, videoconferências, podcasts, matérias jornalísticas, catálogos de produtos on-line, e-books, jogos, efeitos de som conceituais em interfaces, web rádios, web telefonia e tutoriais educacionais. A aplicação de arquivos sonoros na Internet está associada ao uso de “players”, como Windows Média Player, Real Player, Quick Time Player, Itunes e Winamp, e ao popular formato MP3. O MPEG-1/2 Audio Layer 3 ou MP3 que corresponde ao formato de compressão de áudio de alta densidade utilizado com padrão na Internet. Seu método de compressão de áudio consiste em retirar da vibração sonora todos os níveis de som que o ouvido humano não consegue perceber, e desse modo o tamanho do arquivo de áudio é reduzido em torno de 90% do seu tamanho. Outros formatos de áudio podem ser incorporados às interfaces, tais como: wav, .sam, .aif, .vox, .au, .smp, .mp1, .mp2, .asf, .svx, .iff, .v8, .voc, .pat, .ivc, .snd, .sds, .sfr, .dig, e .sd. Estes possuem qualidade de som distintas e podem ser reproduzidos em diferentes “players” ou integrados a softwares, como Macromedia Flash, Adobe Photoshop, Adobe Premiere e Adobe Director. O uso de atributos de usabilidade é primordial para as aplicações sonoras, pois um arquivo de som, mesmo com curta duração, pode levar à dis156
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tração, erros ou ao abandono da interface. Os atributos de usabilidade para aplicação sonora em hipermídia descrevem: os sinais sonoros como marcadore de erro, de ações de sistema, para solicitar permissões ao leitor, para acompanhar e confirmar a digitação de senhas, para a realização ou finalização de uma tarefa; para formalizar o início ou encerramento de softwares e sistemas operacionais; para marcar a abertura, a maximização, a minimização e o fechamento de janelas; para acompanhar o acionamento de hiperlinks, de botões e de downloads. Sons agudos são para informar erros e alertas e os graves para as demais ações (NIELSEN, 2003). Para os sons aplicados como plano de fundo da interface, devemos adicionar botões para que os leitores definam seus padrões de controle, intensidade e gênero, tais como: a adição de botão para ligar e desligar o áudio, aumento e redução de volume e para a seleção de diferentes gêneros musicais. As aplicações sonoras não devem integrar ferramentas de interação ou de interatividade como os únicos elementos comunicativos, já que podem ou não ser ouvidas, se o volume de saída estiver baixo, se os alto-falantes estiverem desligados ou desinstalados, ou se houver poluição sonora no ambiente. O som não direciona a atenção do cursista para um ponto específico da tela, mas assume sua excelência quando acompanha a execução de ações conjugadas entre teclado, mouse e áreas de login (ROBERTSON, 2003). Na última década, o aumento do acesso via banda larga e a convergência de câmeras de vídeo em aparelhos de telefonia celular contribuíram para a criação e popularização dos sítios de compartilhamento de vídeos. A tecnologia para a distribuição de arquivos de vídeo on-line, a “stream”, está madura, mas as técnicas para a sua produção, edição e rotulação de vídeos, específicos para os suportes web, ainda estão em processo de desenvolvimento. Novas soluções tecnológicas procuram incluir o espectador no processo de criação das peças de vídeo, o que gera novas possibilidades de interlocução com o conteúdo (NIELSEN, 2005). Os atributos para o uso de vídeos envolvem: a adequação do vídeo ao conceito veiculado na interface; a adição de recursos interativos para webcam; informações sobre o formato e o tamanho do arquivo antes do downComunicação, Linguagem e Inovações MidiáHcas
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load; criação e edição de conteúdo de vídeo com linguagem e técnicas exclusivas para a sua publicação na web; “players” com controles de avanço e regresso e que reproduzam arquivos com diversas codificações e resoluções. O uso de vídeos na web está diretamente relacionado ao seu áudio, já que aquele é reproduzido em telas pequenas, assim é importante que o áudio explique a imagem veiculada por meio de legendas ou texto em sinopse. Os vídeos produzidos para a Internet devem iniciar sua reprodução um segundo depois do acionamento do botão play (tocar) e no caso do seu carregamento (buffer) deve ocorrer no início da exibição do vídeo. Para os vídeos com mais de cinco minutos de duração é mais apropriado substituí-lo por sequências de imagens animadas (slide show) ou dividi-los em diversos segmentos, com legendas, para identificar o assunto principal de cada sequência. No tocante as suas tecnologias de composição visual o vídeo passa a ter características peculiares que determinam o seu ritmo, enquadramento, conceito e duração, tais como: pouca variação dos movimentos e mudanças nos ângulos de câmera; máximo de cinco minutos de duração; uso do enquadramento em close-up com luz natural ou laterais suaves; ambiente silencioso e uso de microfone externo; planos de fundo monocromáticos; cortes secos com encadeamento dinâmico, com menos de cinco segundos, e menor frequência de áudio, 11.025 KHz/8-bit mono, para reduzir o tamanho dos arquivos. Devem ser evitadas imagens pixelizadas ou com outros meios de compactação que interfiram na leitura (LYNCH; HORTON, 2002; AVILA, 2004; LINDSTROM, 1995). 2.1.5 As Imagens As imagens compõem um dos elementos de maior destaque em uma interface de hipermídia, isso graças às características do suporte web e de sua instantânea comunicabilidade. Elas ampliam a usabilidade da interface, em relação à concatenação semântica entre hipertextos, hiperlinks e ícones, e a aplicação dos atributos de usabilidade auxilia em sua ergonomia. Em relação à convenção dos seus formatos podemos empregar o Graphic Interchance Format – GIF (ideal para publicação de fontes, gráficos e imagens animadas, com no máximo 256 cores, e que preserva a sua 158
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transparência quando em formato indexado), o Joint Photographic Experts Group – JPEG (permite a alta compressão de imagens sem o comprometimento de sua qualidade, mas é inadequada para gráficos, pois destaca ruídos nas superfícies de tom contínuo ou chapado), o Portable Network Graphics – PNG (maior gama de profundidade de cores, alta compressão e plano de fundo de transparente) e o Tagged Image File Format – TIFF (formato flexível para edição vetorial e em mapa de bits, escalas CMYK, RGB e LAB e cores indexadas em gradação e transparência (MCCLURG-GENEVESE, 2005; NIELSEN 2007). O número de imagens, seu tamanho e o seu posicionamento diante do parágrafo de hipertexto determina sua concatenação semântica e o tempo de carregamento da página. Assim, devemos evitar imagens de adorno, ou de plano de fundo, e posicioná-las à esquerda dos parágrafos de hipertexto. Manter o equilíbrio entre o contraste das imagens em primeiro plano e a cor do leiaute gera profundidade, valoriza a informação mais importante e os ícones que acompanham hipertextos virtuais (CARRION, 2008). Para os leiautes que necessitam da publicação de um número elevado de imagens devemos empregá-las como “thumbnails”, que são miniaturas de grupos de imagens. Elas devem possuir resolução entre 72dpi a 100dpi, ser fixadas após a página inicial do sítio e quando acessadas permitir a sua visualização na mesma página (MCCLURG-GENEVESE, 2005). As imagens como ícones de um hiperlink devem ser acompanhadas por marcadores ALT, e quando em “players” de vídeo ser descritas por legendas ou sinopses. 2.1.6 Os Gráficos vetoriais e o Leiaute Na interface de hipermídia os gráficos vetoriais demarcam a arquitetura da informação de todos os elementos que irão compor o leiaute. Eles representam as formas geométricas (círculos, quadrados, polígonos, linhas etc.) que são criadas a partir da união de pontos (nós) definidos por objetos matemáticos, os quais são manipuláveis, enquanto forma gráfica, pelas Curvas de Bézier. Os leiautes compostos por gráficos vetoriais são mais leves do que os de Comunicação, Linguagem e Inovações MidiáHcas
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mapa de bits, já que o código vetorial repete o padrão descrito em seus nós e não armazena dados em pixel. Essa particularidade justifica a sua facilidade de redimensionamento, pois é a resolução do monitor que determina o número de pixels usados para a veiculação de um vetor. Sua função na interface envolve a demarcação de áreas temáticas, de hipertextos, de hiperlinks e a criação de ícones. A forma com que se organiza a informação em gráficos vetoriais pode contribuir para a transmissão de uma mensagem ou deixar o leitor confuso e sobrecarregado, como afirma Dondis (1997). As formas gráficas possuem características específicas, e a cada uma se atribui uma grande quantidade de significados, alguns por associação, outros por vinculação arbitrária, e outros, ainda, através de nossas próprias percepções psicológicas e fisiológicas. Ao quadrado se associam enfado, honestidade, retidão, esmero e masculino; ao triângulo, ação, conflito e tensão; ao círculo, infinitude, calidez, proteção e feminino. A partir de combinações e variações infinitas dessas três formas básicas, derivamos todas as formas físicas da natureza e da imaginação humana (DONDIS, 1997, p.63).
Dentre os gráficos vetoriais o ponto é a mais simples e mínima unidade de comunicação visual. Na natureza esse é o elemento mais observado, ao contrário da reta ou do quadrado, que constituem uma raridade. Quando utilizados unicamente servem para marcar ou destacar itens, mas ao ser aplicado em continuidade a outro ponto dirige o olhar e podem gerar uma linha. Já em grande número e justapostos criam a ilusão de tom ou de cor (DONDIS, 1997). As linhas são consideradas pontos em movimento, que quando horizontalizadas promovem a sensação de espaço e amplitude, sendo assim aplicadas entre os parágrafos de hipertexto ou em seções da interface para organizar grande quantidade de conteúdo. De forma oposta estão as linhas verticais, que diminuem e preenchem os espaços, sendo utilizadas nos planos de fundo para gerar continuidade à barra de rolagem vertical em interfaces com mais de duas dobras. A junção das linhas horizontais e verticais gera uma atmosfera rude ou inflexível (CARRION, 2008). Na Internet, os formatos vetoriais mais comuns são: o SVG, padrão ve160
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torial recomendado pela W3C, o CDR (Corel Draw), o EPS e o AI (Adobe Illustrator). Por fim, apresentamos o leiaute. Ele representa o espaço no qual se convergem os elementos de hipermídia em um determinado suporte. Segundo Mullet e Sano (1995) para organização e composição dos elementos visuais em um leiaute de hipermídia, devem ser aplicados os seguintes atributos: a) Hierarquia da informação: disposição da informação baseada em sua importância relativa com os outros elementos visuais. O resultado dessa relação afeta todos os outros princípios de organização e composição de um leiaute e determina que informação o leitor verá e que tarefa ele é encorajado a realizar primeiro. Para utilizar este princípio, é importante, que se pense em qual informação é mais importante para o leitor ou quais são as suas prioridades em um sítio, como também qual o tipo de conteúdo ele deseja ou é levado ver em primeiro, segundo e terceiro lugar. b) Foco e ênfase: auxilia o designer na demarcação de itens prioritários. Para determinar o foco devemos identificar a ideia central e o ponto focal do sítio. Determina-se a ênfase escolhendo os elementos que devam ser proeminentes no foco, isolando-os de outros ou destacando-os. c) Estrutura e equilíbrio: representa um dos atributos mais importantes em um projeto visual, já que a ausência de uma arquitetura equilibrada leva à falta de ordem e de legibilidade, além de comprometer todas as outras partes do projeto visual. d) Relação de elementos: a adição de um elemento visual estabelece uma relação/conexão específica entre os sítios ou entre os itens que compõem o leiaute. e) Unidade de integração: promove a navegabilidade e comunicabilidade entre os sítios ou os elementos de hipermídia, já que uma unidade integrativa leva à socialização de um mesmo conceito gráfico e funcional. Como vimos, os atributos de usabilidade fundamentam a aplicação e concatenação dos elementos de hipermídia em um leiaute gráfico, como são fundamentais para as relações de interatividade e interação entre hipermídia, suporte e leitor. Comunicação, Linguagem e Inovações MidiáHcas
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3 CONSIDERAÇÕES FINAIS A aplicação de atributos de usabilidade em uma interface de hipermídia representa a evolução tecnológica e a convergência de mídias no leiaute web, já que promove a ampliação do diálogo interativo entre os sujeitos e as interfaces. Nesse sentido, buscamos mostrar nas linhas acima como se organiza a comunicação gráfica em um leiaute de hipermídia, a partir de explicitação dos seus atributos de usabilidade, das características funcionais e comunicativas específicas, quando aplicados isoladamente ou em conjunto. Nessa relação, os atributos de usabilidade colaboram, na interface, para a facilidade de leitura, execução de tarefas, postagem de arquivos, comunicação instantânea e navegação entre os conteúdos, que podem estar dispostos em um ou diferentes suportes e propor diferentes usos e objetivos. Dessa forma, torna-se imprescindível que tenhamos a ciência desses atributos, de como concatená-los no leiaute gráfico das interfaces de hipermídia, para que assim, possam selecionar e distribuir os conteúdos verbais e não verbais, de maneira ergonômica, para diferentes fins comunicativos e educativos. NOTA 1 - Mestre e doutora em Estudos da Linguagem, professora do Departamento de Comunicação Social da UFRN. REFERÊNCIA ÁVILA, R. N. P. Streaming: crie sua própria “Rádio” web e TV digital, São Paulo: Editora Brasport, 2004. BURGOS, T.L. O hipertexto eletrônico de meio ambiente na sala de aula: práticas de navegação e estratégias de leitura. Dissertação de Mestrado, UFRN: inédito, 2006. CARRION, W. Design para web designers: princípios do design para web. Rio de Janeiro: Alta Books, 2006.
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