CAPA
VERSO DE CAPA
OBSERVAÇÃO - POSSIBILIDADE DE ORELHA
área de texto
passagem de transição 2,5 mm passagem de transição 2,5 mm
area de paginação / central
margem inferior 1,5 cm
margem esquerda ou direita 1,5 cm
margem esquerda ou direita 1,5 cm
margem superior 1,5 cm
área de texto com nota de rodapé
passagem de transição 2,5 mm
area de nota de rodapé passagem de transição 2,5 mm passagem de transição 2,5 mm
area de paginação / central
margem superior 1,5 cm
margem esquerda ou direita 1,5 cm
margem esquerda ou direita 1,5 cm
margem superior 1,5 cm
modelo de folha de rosto
Leitura na Calçada Experiência Inusitada E Inovadora EDMEIA FARIA
1ª edição Inverno de 2018
Belo Horizonte Comissão Mineira de Folclore 2018
FICHA CATALOGRÁFICA
Às crianças e adolescentes que mudaram os rumos da minha caminhada e seguiram comigo, brincando, cantando, lendo e contando história nas alegres tardes de Pompéu. Ao Poeta Paschoal Mo a, mais que amigo. Aos educadores e pesquisadores Vital Didonet Raimundo Ângelo Dinello Dr. Luiz Carlos Petry Rodolfo Daniel Menéndez Vigil (in memoriam)
amigos e incen vadores.
PÁGINA EM BRANCO
AGRADECIMENTOS Às crianças e adolescentes que par lharam comigo esta experiência. Aos pais e avós que tornaram possível o encontro com seus filhos e netos para ler, cantar, contar e brincar na rua. E permi ram o registro desses momentos. A meus pais, José Ferreira de Faria, o Sô Juca, e a Dona Inês Alves de Oliveira que, nos sábados e domingos, cederam seu espaço para receber no pá o e no quintal a criançada. E compar lharam, até o derradeiro momento de suas vidas, can gas, histórias, brinquedos e brincadeiras da infância longínqua, enriquecendo as relações. Ao Senhor José Raimundo da Silva, Zezico Pipoqueiro, sempre presente, com sua pipoca de água na boca de meninos e meninas. Ao Poeta Paschoal Mo a, que se dispôs a ler e revisar este texto, pelas sugestões, carinho e boa vontade de sempre. À Organização Mundial de Educação Pré-Escolar – OMEP, pela oportunidade de apresentar nosso trabalho em congressos nacionais e internacionais. À Comissão Mineira de Folclore, por viabilizar a publicação deste livro. A todos enfim que, de um modo ou de outro, viveram comigo esta experiência. E a enriqueceram.
ÍNDICE
APRESENTAÇÃO Leitura na Calçada é o relato da vivência da autora com o livro e a criança nas ruas de Pompéu, Região Central de Minas Gerais (Brasil). Tão real e verdadeiro, como se acontecesse em nossa rua, em nossa cidade. Como se nós es véssemos, também, ali com as crianças ouvindo, perguntando, contando, construindo sonhos e percebendo a realidade. Esta história conta muitas histórias ternas e solidárias que nasceram no Projeto Leitura na Calçada. A autora u liza a descontraída linguagem coloquial, reproduzindo a fala e a escrita dos par cipantes, tentando resgatar a sua cultura e reelaborando com eles suas vivências, seus mundos, tão próximos dos contos, e situações do co diano que ela traz para a calçada. Na construção do texto, uma espécie de diário do trabalho, a autora costura histórias, fotos, escritos e desenhos das crianças, bem como quadrinhas e can gas de roda reabilitadas nas brincadeiras de rua. O resultado é um texto lúdico que encanta e emociona. No encontro com a poesia, resgata o amor e a ternura; redescobre a esperança a solidariedade; educa. Leitura na Calçada é um livro transdisciplinar. Com segurança, o recomendamos para pais e professores, para adultos e crianças. Enfim, para quantos se dedicam à educação infan l e assistência à infância e adolescência, como mediadores da leitura, principalmente daquela que Paulo Freire chamou de leitura de mundo. Vital Didonet Membro Honorário da Organização Mundial para a Educação Pré-Escolar – OMEP
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Edméia, Seu livro é uma maravilha. Leitura na Calçada, relato sincero, ca vante e proveitoso como opção educa va, precisa ser conhecido por quem convive com crianças em fase inicial de aprendizagens. O Brasil ainda con nua sendo uma terra de muitos analfabetos, quanto à decifração e cur ção de textos, quanto ao conhecimento de nossas realidades culturais. Para a UNESCO / Organização das Nações Unidas Para a Ciência, Educação e Cultura, alfabe zado é aquele que lê, entende o lido e conhece aspectos culturais básicos de seu país. Seu Leitura é memória viva, de mo vações perenes, aqui e em qualquer parte do Planeta, de suas vivências com crianças desde a mais tenra idade, amorosamente humana, corajosamente humana. Você sair pelas ruas de sua cidade, unindo, lendo, cantando e dançando com meninas e meninos, parece men ra de tão extraordinário; um feliz conto de fada acontecendo na realidade deste tempo, estes dias quase só de exigências urgentes. Seus relatos provam a possibilidade de despojamento e solidariedade; a caridade cristã em seu grau ideal, amoroso e consciente, na ação para despertares do semelhante nas suas manhãs iniciais. Preconceitos nos impedem muitas vezes dessas a tudes de desapego, disponibilidade e responsabilidade par cipe de melhoria de outras pessoas. Até parece que Você seguiu à risca a observação de Horácio na sua Arte Poé ca: Lectorem delectando, pariterque monendo, diver ndo seus leitores e ao mesmo tempo os habilitando para o futuro. Quantas pessoas passarão a ver e agir com crianças de modo diferente depois destes depoimentos! Tudo altamente mo vador, de causar inveja. Alguém pensou nisso antes? Nestes tempos de visuais sedutores e sons estridentes, crianças e jovens desprevenidos consomem apelos inimigos do recolhimento e da ponderação. E a cultura de ler vai sendo relegada até por adultos. 8
Está para aparecer aprimoramento do saber e avivamento da sensibilidade um agente superior ao livro, se é que estará... E a prá ca da leitura em livro de papel poderá ser desenvolvida em outros meios de sua apresentação. O que não podemos perder é o fascínio da leitura. Que a editora de seu relato desenvolva as incisivas estratégias para divulgação e vendagem deste Leitura na Calçada. Assim, espero, especialistas e pessoas comuns poderão conhecer suas experiências com a brincadeira de ler e se encantar com crianças em casa, na escola, nas ruas, ou onde mais elas es verem, para abrir a cor na do palco das surpresas em cada dia... Paschoal Mo a
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PÁGINA EM BRANCO
PÁGINA DE ABERTURA
Leitura na Calçada Experiência Inusitada E Inovadora EDMEIA FARIA
PÁGINA EM BRANCO
ENCONTRO MARCADO Faço caminhada pela tardinha. U lizo a mesma pista que outros caminhantes na minha cidade; a Avenida João Serra Machado, nova e plana, aberta no meio de um resto de cerrado. Vou só, enquanto outros vão aos pares, aos bandos, rindo, falando, ges culando, apressados. Caminho só e sem pressa, porque tenho meu ritmo. Vou devagar. Respiro fundo; ouço o canto da tarde, escuto o bem-te-vi atento e denunciador na copa das árvores, nos fios de luz: “bem-te-vi, bem-que-vi, que - vi, vi.” Vou só, porque preciso contemplar o céu; brincar de escondeesconde com o sol se pondo; saudar a lua, minha amiga e companheira, pálida e mida; brincar de ser múl pla com as nuvens que se transformam em bicho, gente, castelo, fadas, duendes e gnomos. Vou só; tenho um encontro marcado comigo mesma. Não posso me perder. No mundo da lua, não percebo que estou sendo observada pelas crianças quando subo a Rua Ministro Francisco Campos rumo às Duas Pistas, como ficou chamada pelo povo a avenida nova que liga a Cidade à Rodovia MG 365. Os adultos não podem compreender. Meu ritmo incomoda. Passa um apressado e adverte: “Assim não vale, Dona!” Passa outro correndo e grita: “Vamos acelerar, comadre!”
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HINO DE AMOR Hoje, quando subo a rua, duas meninas, entre três e quatro anos, vêm correndo ao meu encontro de braços abertos. Abaixo para receber o abraço. Uma de um lado, outra do outro, de mãos dadas, caminhamos juntas. As duas têm mil perguntas e muitas histórias para contar. Cuidadosa, para que as pequenas não se afastem muito de casa, convenço-as a voltar. Despedimo-nos com outro abraço e muitos beijos. Vão me esperar no passeio, combinam. Caminho com as duas no coração. Nesta tarde, toda a poesia que recolho no canto dos passarinhos, nas florinhas do cerrado, nos carneirinhos esculpidos de nuvem no céu é para elas, as meninas que derramaram ternura na minha alma. É para elas que peço aos anjos entoem um hino de amor. É para elas que ofereço a minha prece e a minha canção. É para elas que teço um manto com os fios de ouro que o sol me oferece nesta tarde de tardia primavera. Volto e encontro as duas esperando no passeio. Surge no céu a primeira estrela: Primeira estrela que vejo, Me dê tudo o que desejo: Pão, paz e poesia; Muito amor e alegria... Gostam da brincadeira e das rimas. E repetem, descobrindo a magia das palavras e da primeira estrela. Despedimo-nos com a promessa de um novo encontro.
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SINOS DA ALEGRIA Promessa cumprida. Lá vêm as meninas a meu encontro, trazendo outras crianças. Todas de braços abertos. Quero saber de onde surgiu tanta criança. Riem informando a existência de outras tantas nas imediações. Apontando na direção da casa de cada um, vão citando nomes de ruas, de meninos e meninas. Não posso interromper a caminhada. Meus companheirinhos sabem. Sigo caminhando devagar, ouvindo histórias, respondendo perguntas. Todos querem me fazer companhia. Como é grande o trajeto, concordam em ficar esperando no passeio, e escolhem um menino-homem maior para me acompanhar. E proteger. Caminhamos juntos alguns passos. Depois o convenço a voltar e esperar com o grupo no ponto marcado. Não posso perder a magia do entardecer, a paz do crepúsculo. Preciso escutar a natureza, os sinos da alegria, para aprender o meu silêncio e me reencontrar inteira a cada novo dia.
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CABEÇA NAS NUVENS PÉS NO CHÃO Cresce a cada dia o número de crianças ao meu encontro. Caminham comigo um ou dois quarteirões. Depois, ficam brincando no passeio até que eu volte da caminhada. Tornando ín mas, começam a pedir dinheiro, bala, brinquedos. Mostro as mãos vazias, os bolsos vazios. Explico que não tenho dinheiro e as coisas custam. Mas vou ficando endividada. Busco dentro de mim algo que possa oferecer sem contribuir para o fortalecimento do sistema paternalista, que empobrece e aniquila. Quero um presente mágico que encante meninas e meninos. Que os faça caminhar no fio invisível do des no, presos a uma ponta de esperança. Cabeça nas nuvens, pés no chão, caminho buscando uma resposta.
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LIÇÃO DE AMOR A resposta ainda não veio. As crianças é que vieram trazendo presentes. Cada uma oferece o que tem nas mãos: uma manga colhida no quintal mais próximo, uma pedrinha encardida, uma florzinha colhida na beira do meio-fio, além de um olhar de ternura, uma palavra meiga, um sorriso lambuzado de pirulito e de infância, um beijinho preguento de bala, babado de bico. Juliana oferece a única bala que ganhou no bar da esquina. Um menininho de menos de um ano, vem sempre no colo do irmão, ra a chupeta, estende a mãozinha e me pergunta: “Qué?” São dois presentes: a chupeta e a primeira palavra.
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BRINQUEDO MÁGICO Preciso retribuir às crianças o carinho e os presentes. Mas não posso incen var a mendicância. Quero um brinquedo que divirta, encante e ensine novos valores. Um brinquedo mágico que ajude a construir o sonho da criança cidadã. Caminho pensando nessa proposta. Espero luzes que me iluminem. Peço às flores, às borboletas, aos anjos e passarinhos que me inspirem. Peço à primeira estrela que eu vejo. Chego em casa, abro a porta. Sobre a mesa, um livro pede para contar história a criança na rua. Como eu não nha pensado nisso!?
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UMA BRINCADEIRA DIVERTIDA Vou para a caminhada. Mais leve do que nunca. Trago o livro nas mãos. Vendo a capa colorida, de longe as crianças querem saber o que é. Faço suspense. Aproximam-se. Começa a disputa: “É meu.” “É pra mim, não é?” “Eu pedi primeiro.” Sorrio, segurando o livro no alto até amainar a euforia. Sempre caminhando, respondo que não é de ninguém. É de todos. Con nuo fazendo suspense. Tentam adivinhar. De volta, encontro a turma toda de espera na maior curiosidade do mundo. Sento entre duas meninas que mudaram os rumos da minha caminhada. As outras crianças se ajeitam formando um semicírculo. Começamos, então, a explorar o objeto mágico. Mostro a capa. Levanto hipóteses sobre a história. Cada cabeça, uma imaginação. A brincadeira vai ficando diver da. Abraço o livro, acaricio. Todos querem tocar. Deixo sen r a textura, envolver-se. Começamos a leitura pelas ilustrações. As crianças percebem detalhes que eu não havia percebido. Vamos ficando encantadas, O mundo se transfigurando. Entramos no Jogo do Pega-Pega. A história curta, as frases curtas, as cenas curtas e movimentadas mantêm o interesse, mesmo dos mais pequeninos. Jéssica, três anos, dá risadas. E pede para ler. Agora, sentada no colo, com o livro nas mãos, é ela quem lê, virando as páginas com cuidado, mostrando para todas ali, como fiz. Todos querem ler como a Jéssica. E está ficando tarde. Hora de voltar para casa. “Então, amanhã, a Senhora traz de novo!” Pedem.
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A MULHER DAS HISTORINHAS
Está virando ritual. Toda tarde, entre cinco e seis horas, a meninada se reúne em dois ou mais pontos. Fica brincando de bola, de pular corda, de rodar pneu, de esconder na copa das árvores. O primeiro que me avista dá um sinal e anuncia: “A mulher das historinhas!” Todos correm ao meu encontro, bracinhos abertos feito avião preparando para aterrizagem. Sabem que não posso interromper a caminhada. Só na volta. Então, se oferecem para ficar com o livro. E esperam na calçada, namorando o brinquedo mágico, folheando, familiarizando-se com a história através das ilustrações; preparando-se para o encontro. Quando volto, escolhem meu lugar. Sento, geralmente, entre 20
as duas primeiras que chegam. As menores pedem colo; as outras vãose ajeitando, formando o círculo, tudo num gesto espontâneo. Cada página, uma emoção, o suspense: o que vai acontecer? Cada cabeça, uma imaginação. Vão-se criando expecta vas, formulando desejos. Entram na história, se misturam com as personagens. Às vezes, interrompem para contar sua própria história. Depois, pedem para con nuar. No final, quase sempre, pedem para reler ou para deixar ler. Avaliam as a tudes das personagens, discutem, entram com suas experiências, relatam, criam, recriam.
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ENTREGUES À PRÓPRIA SORTE Hoje, as crianças vêm ao meu encontro exibindo as mãos limpas. As novatas, que desconhecem as regras, correm para lavar na torneira mais próxima. Os vizinhos colaboram. Já não contentam em folhear o livro, ler comigo na calçada. Querem levar para casa, prolongar o prazer. E agora? Morro de ciúme dos meus livros. Vou deixá-los perambulando pelas ruas com os meninos, entregues à própria sorte? Antes de dizer“não”, lembro-me de agir coerente: livro é brinquedo; e brinquedo é para criança brincar, explorar, experimentar. As crianças venceram. O livro fica. Com quem? Deixo a decisão por conta do grupo. Normas vão sendo criadas: - emprés mo só para crianças maiores, que já sabem ler e cuidar do livro; - em caso de mais de um pretendente para o mesmo livro, decide-se por meio de jogo, u lizando uma fórmula de escolha, como nas brincadeiras tradicionais; - no dia seguinte, o livro volta para a roda. E a ciranda recomeça; - quem não cumpre os combinados, paga prenda e fica privado de novo emprés mo até fazer a devolução do primeiro. Depois de estabelecidas as normas e de algumas recomendações, volto sozinha, enquanto o livro sai pulando de alegria.
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CRIANÇA GRANDE
Fim de tarde. Estamos encerrando as a vidades. As crianças ajudam a recolher o material. As menores, folheando o livro, pedem: - Conta outra vez! Juliana, quatro anos, convida para brincar de roda. Vanessa, doze, corrige: - Ô menina boba! Brincar de roda? Ela é criança? É!? Respondo, já de pé, formando a roda: - Eu não sou criança, mas gosto de brincar. Gente grande também brinca. Meninas e meninos, pequenos e grandes se dão as mãos e enchemos o passeio e a rua de cantoria: 23
Fui no Tororó, Beber água e não achei; Achei foi a Juliana Que no Tororó deixei. Ô Juliana, ô Julianazinha, Entrou nesta roda E dançará sozinha. Sozinha eu não danço Nem devo dançar Porque tenho a Vanessa Para ser meu par. Valsa, valsa, meu benzinho, valsa, valsa, engraçadinho, E depois não vai dizer Que você dançou sozinho. Olhinhos brilhando mais que nunca, com ar de sabedoria, a menina conclui vitoriosa: - Viu? Ela é criança grande!
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RAINHA DAS CRIANÇAS Atendendo ao pedido, retorno com o livro Dom Gatô. Já estou chegando no ponto marcado e nada de criança. Fico meio desapontada. Olho para um lado, olho para o outro. Começo a me inquietar: - Criança é mesmo imprevisível! Falo comigo mesma. Se não aparece ninguém, tenho de caminhar com este livro nas mãos. Penso numa forma de descartar o objeto mágico, agora incômodo, para caminhar livre e solta. Vou ajeitá-lo na árvore mais próxima, entre as ramagens, quando um menino de oito a dez anos despenca lá de cima, anunciando a todos pulmões: - A mulher das historinhas! Na mesma hora, o portão da Débora, uma das maiores, se abre. E todas as crianças, lideradas pela menina, surgem, mãozinhas para trás, com cara de surpresa. Sabem que só posso parar na volta, mas, hoje, ignorando o combinado, me dão ordens para sentar no degrau mais alto, na porta do boteco mais próximo. De pé, em semicírculo ao meu redor, me mandam fechar os olhos. Sem compreender o que possam estar aprontando, sinto duas mãos prenderem meus cabelos e alguma coisa cingir minha cabeça. Recebo, então, ordens para abrir os olhos. Haviam me coroado de flores e gritam entre aplausos: - Viva a rainha das historinhas! - Viva a rainha das crianças! Levanto do trono para abraçar minha família real. Autorizamme a con nuar a caminhada. Advertem, porém: - Não pode rar a coroa! Começo minha nova caminhada com as honras de uma rainha e a responsabilidade de um reinado. Na pista, todos os olhares se convergem para a minha figura excêntrica, sem compreender. Nada sabem do milagre, do segredo de amor que levo no coração. No fio de luz, um bem-te-vi denuncia: “Bem-te-vi, bem-te-vi, bem-que-vi, vi vi.” Na volta, os caminhantes se surpreendem com a rainha, lendo 25
e brincando de roda com as crianças no passeio, cantando: Na mão direita tem uma roseira, Na mão direita tem uma roseira, Que dá flor na primavera, Que dá flor na primavera. Entrai na roda, ô linda roseira, Entai na roda, ô linda roseira, E abraçai a mais faceira, E abraçai a mais faceira. A mais faceira, eu não quero, A mais faceira, eu não quero; Quero a boa companheira, Quero a boa companheira.
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O MILAGRE DO TRIGO Trago o livro de poemas No Mundo da Lua. Depois de namorar a capa, sen r a textura, folhear, abro no índice ilustrado para escolha das crianças. A maioria quer Leite, Pão e Mel. Leio os dois primeiros versos: O mel que derrete na boca, feito um pedaço de céu¹ As crianças estalam a língua no céu da boca, saboreando o doce mel. Con nuo. O poema de Roseana Murray acorda muitas histórias vividas, ou criadas pela imaginação fér l das crianças. Pre nha já furou morada de abelha, quando morava na roça e bebeu mel no favo, conta: - Docinho. Gostoso demais da conta. Também levou ferroada. Muitas ferroadas; na boca, na orelha, no pescoço. - Uma, bem aqui em cima do olho. Mostra. — Ô trem que dói, sô! Inchou na mesma hora. O pai cuspiu no chão, fez um barrinho e passou no lugar pra rar o veneno. Até o cachorro levou ferroadas. E saiu ganindo. Daniela já viu um enxame de abelha: o avô pôs uma cabaça para elas arrancharem. E mandou todo mundo deitar no chão até o enxame passar. Outra, ainda, tem uma vaca no quintal. Vai contando: - O pai ra leite dela todo dia de manhã cedo. Depois, solta pra ela comer capim num lote vago. A vaca é mansinha, mansinha. E tem o berro mais bonito do mundo. Dia desses, um viajante queria comprar do pai o berro da Mansinha, mas ele diz que não vende de jeito nenhum. No meio de tantas histórias, um menino de olhos tristes e fala pouca, cisma. De repente, voltando de um sonho, pede para reler: ¹ MURRAY, Roseana. Leite, Pão e Mel. In: No Mundo da Lua. Belo Horizonte: Miguilim, 1996, p. 25.
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- Lê outra vez aquele pedaço que fala do pão e do trigo. E de criança passando fome. Repito os versos: O pão é o milagre do trigo que a terra dá de presente é só plantar a semente. Parece tudo tão fácil que a gente fica pensando: como é que tem tanta criança no mundo passando fome? As crianças querem saber como é que se faz pão. O garo nho cismarento, disposto a acabar com a fome no mundo, suplica: - Como é que a gente planta trigo?
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QUEM ME AJUDA? - Quem me ajuda a plantar estes grãozinhos? Pergunta a Galinha Ruiva ao pa nho e ao porquinho, disposta a plantar os grãos de trigo encontrados no quintal. A meninada responde, fazendo coro com as personagens: - Eu não, eu não. A galinha, determinada, conclui: - Deixa, eu planto sozinha. No decorrer da história, a resposta ao convite para o trabalho é sempre a mesma: “Eu não! Eu não!” Somente duas crianças destoam das personagens. E, mãozinha para cima, respondem afirma vamente ao apelo da Galinha Ruiva, já cansada, de bico aberto, levando o trigo ao moinho. A história chega ao fim. A Galinha Ruiva re ra do forno o pão quen nho e cheiroso e faz a úl ma pergunta: - Quem me ajuda a comer estes pãezinhos? Sem esperar resposta das personagens, os ouvintes levantam a mão e respondem em coro: - Eu, eu, eu, eu, eu!!! A Galinha Ruiva, que tudo fez sozinha, sentencia: - Deixa, eu como sozinha. Decepção de uns, gargalhada de outros. - Bem feito. A galinha faz tudo sozinha e, agora, na hora de comer, os malandros querem ajudar? Pondera um dos maiores. E acrescenta: - Eu ajudo minha mãe. Taís, dois anos, se defende: - Eu não ajudo, porque sou pequena. Minha mãe não deixa. Da interferência dos ouvintes, vão surgindo novas histórias, em que fantasia e realidade se misturam. Na roda, ficamos conhecendo a relação das crianças com a família, a cons tuição, a organização e os costumes dessas famílias; a distribuição do trabalho, a par lha, a par cipação de cada um. E a disposição das crianças em 29
ajudar. As crianças expressam ainda gostos, preferências e aversão por determinadas tarefas: - Eu varro a casa. Eu só não gosto é de lavar vasilha. - Pois eu não gosto é de estender cama. A conversa vai longe. Querem saber se eu ajudava minha mãe, quando pequena. O que fazia. Se nha preguiça. Agora, voltam à história da Galinha Ruiva. Pedem para contar outra vez. E outra. E outra. Drama zam. Aqui, são muitos pa nhos e muitos porquinhos.
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CAÇA AO TESOURO Forramos o passeio com jornal, para proteger o papel onde as crianças desenham seus sonhos com lápis coloridos e cane nhas hidrocor. De repente, as letras garrafais de uma manchete em cores brilham no fundo dos olhos redondos da pequena Natália, a que chamamos Pre nha. Enfei çada como o garimpeiro que acha uma pepita, Pre nha esquece o desenho e escolhe seu tesouro: - Eu posso levar este jornal pra mim? Surpresa com tamanho fascínio, quero saber o quê, nessa página, pode atrair uma menina do seu tamanho. Pre nha tem uma tarefa escolar: recortar, de revista ou jornal, palavras que comecem com a letra N; N de Natália. Reforça. O verbo recortar faz cócega na pon nha da tesoura. Esta salta da nossa caixa de surpresa e entra logo em ação, despertando a cobiça e o sonho acalentado no coração de outros pequenos garimpeiros. - Eu preciso das vogais. - Eu também posso recortar? - Me ajuda a achar? - Este é o A, não é? - Quem achar o I dá pra mim, tá? - Eu quero palavra que começa com a letra do Paulo. Como é mesmo que ela chama? Essa é di cil, não é? Ontem, a Professora me xingou porque eu não lembrei o nome dessa letra. Hoje, eu não fui na escola, porque não nha ninguém pra me ensinar; a minha mãe também não sabe. Desabafa o pequeno garimpeiro, que não dis ngue ainda todas as letras do alfabeto. - Ô bobo, é P. Você não sabe uma letra facinha dessa!? Cri ca o colega. Começa o garimpo cole vo. O mundo se abre nas páginas do jornal. Em poucos minutos, o passeio se enche de p e P e outras consoantes em busca de vogais na ânsia de formar sílabas. As sílabas 31
pulam na calçada e brincam de pique-esconde e chico nho-queimado com os meninos na liberdade da rua. - Quem achar a sílaba to, dá pra mim; eu tenho pa. E quero formar a palavra pato. E assim, descobrindo outros valores e nova u lidade, o jornal sobe de posto na calçada e começa a urgente tarefa de alfabe zar. Ao mesmo tempo que informa, alimenta o sonho e a fantasia num jogo alegre e diver do. As letras e sílabas gostam da brincadeira. Entram na roda e se divertem com as crianças cantando: O ba, be, bi, bo, bu vamos todos aprender, O ba, be, bi, bo, bu vamos todos aprender, Soletrando o b a ba, uma das letras conhecer, Soletrando o b a ba, uma das letras conhecer. O A é uma das letras que se escreve no abc, O A é uma das letras que se escreve no abc, Ô, Aline, você não sabe quanto eu gosto de você, Ô, Aline, você não sabe quanto eu gosto de você. Refrão (...) O P é uma das letras que se escreve no abc, O P é uma das letras que se escreve no abc; Ô, Paulo, você não sabe quanto eu gosto de você, Ô, Paulo, você não sabe quanto eu gosto de você.
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PARA BRINCAR E SONHAR Contente com a descoberta de sua nova função, já louco por se entregar nas mãos da garotada, o jornal volta à calçada para brincar e sonhar. Se estende no passeio, exibindo letras miúdas no corpo, letras garrafais nas manchetes; propagandas: pacotes de bala, bombom e chocolate de água na boca de qualquer criança; boneca pedindo colo, pa ns convidando para apostar corrida, bola anunciando gooooooool!, camiseta do Cruzeiro sonhando ser campeã, bicicleta disputando marcha, moto convidando à aventura e prometendo liberdade; carro nacional e importado apostando na concorrência, edi cios anunciando conforto, segurança e facilidade. Douglas namora os carros e recorta o que melhor transporta seus sonhos. Tiago e Welinton disputam uma moto Honda vermelha. Silvinha, em silêncio, recorta todos os ves dos e sapatos da página de moda. Aline vai até a sessão de brinquedos e pede: - Recorta essa boneca pra mim! Douglas guarda o carro e anuncia: - Este eu vou dar de presente pro meu pai. Meu pai é doido pra ter um carro. Ele já sabe dirigir, rou carteira tem muito tempo. Mas não tem carro. Nunca teve. Dirige só caminhão; o caminhão do patrão dele. Silvinha desfila na passarela, de salto alto. A modelo está usando ves do vermelho tomara-que-caia e sandália prateada. Na calçada, a plateia aplaude. Outras meninas sobem na passarela com roupa e sapato emprestados pela modelo. Com a fama e o dinheiro da profissão, Silvinha volta ao jornal e compra todos os prédios. Ganha pres gio e poder. E se elege Presidente da República. Agora é outra a sua conduta e mais comunitários os seus sonhos. A Presidente mora no prédio mais alto da sua coleção e tem planos para melhorar a vida do povo. Surpresa, viro repórter e entrevisto a primeira mulher a ocupar tão importante cargo no Brasil. (Um parêntese para lembrar que 33
Silvinha foi eleita antes da Dilma Roussef.) - Senhora Presidente, o que Vossa Excelência pretende fazer no seu Governo? - Eu vou melhorar a vida das pessoas. - Como? O que Vossa Excelência vai fazer para melhorar a vida das pessoas? A nossa jovem Presidente, seis anos, expõe seu plano de governo: - Primeiro, eu vou acabar com os botecos. Fala, com firmeza, diante de um butequim. - Por que Vossa Excelência vai acabar com os botecos? - Porque aqui tem muita bagunça, muito bêbado, muita briga. - E como Vossa Excelência vai acabar com os botecos? Dou corda, e a conversa vai longe: - Eu vou arranjar emprego pra todo mundo. Vou por todo mundo pra trabalhar. Assim, os homens não ficam bebendo; as mulheres não precisam pedir dinheiro aos homens. E as crianças não precisam mais ficar com medo. - Vossa Excelência mora neste prédio mais alto. E nos outros? - Aquele ali, eu dei pras crianças abandonadas morar. Com gente grande pra tomar conta delas, porque criança não pode ficar sozinha. Esse outro, perto do meu, é a minha academia. Tem piscina e sala de dança. Na minha academia, toda menina pode entrar. Quem tem dinheiro, paga. Quem não tem, pode entrar assim mesmo; sem pagar. E este, perto da academia, é a escola; tem uma sala grande cheia de livro de história. Aqui, todo mundo pode entrar. Até menino pequeno, que tem só seis anos e não estudou na creche. O projeto da Presidente reflete a frustração da menina fora do sistema escolar. No encontro anterior, Silvinha chegou sal tante com a no cia alvissareira: - Amanhã, eu vou entrar pra escola! Hoje, chega calada, sem a risada gostosa de sempre. Traz os olhos baixos e o passo pesado. Senta distante. Aproximo e abraço a 34
pequena. Pergunto por que está triste. Aconchegada nos meus braços, conta com voz soturna o seu pungente drama: - Minha mãe me levou na escola. A professora falou que eu não posso entrar; não vou dar conta de acompanhar a turma. Os meninos do Pré estudaram na creche. Já conhecem as letras e os números; já sabem contar até dez. Então, eu pedi minha mãe pra me matricular na creche. Lá, a Diretora disse que não pode me aceitar, porque creche é só pra criança pequena. Então, eu não vou aprender a ler. Conclui em pranto: no Pré, eu não posso entrar, porque não estudei na creche. Na creche, eu não posso ficar, porque já fiz seis anos. Procuro tranquilizar a garota: - Você aprende comigo. Enxuga as lágrimas e se ilumina. Escolhe um livro. Depois de ler a capa, entramos na história. Debruçada no ombro, Silvinha, atenta, compar lha a leitura, antecipa fatos, reconhece palavras repe das ao longo do texto. Com as crianças vivendo a sua realidade no mundo fantás co da fantasia, a tesoura descansa em meio aos retalhos de jornal esquecidos na calçada. Só Welinton, sete anos, garimpa ainda. Que tesouro busca o garimpeiro apaixonado? Aline passeia com sua boneca no carrinho. Vrum, vrum.... Lá vai Tiago, todo poderoso, em sua moto, ganhando pres gio, conquistando a liberdade. A tesoura entra de novo em ação. E Welinton, vitorioso, exibe o seu cartão de crédito ao colega para quem perdeu a moto: - Aqui, oh, bobo, eu só quero isto. Com este cartão, eu posso comprar a sua moto, os carros do Douglas, os prédios da Silvinha, tudo o que eu quiser. Não posso? Pede confirmação.
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PAZ E LIBERDADE Aleluia! Aleluia! Os sinos repicam fes vos. A tarde se enche de música e mís ca. Subo a rua respirando o mistério da ressurreição. A brisa sopra nos meus ouvidos: “Deixai vir a mim os pequeninos!” Lá vêm eles, correndo de braços abertos. Depois de muitos abraços e beijos, as novidades: - Eu aprendi uma can ga. Quer ouvir? Coelhinho da Páscoa, que trazes pra mim? Um ovo, dois ovos, três ovos assim... - Trouxe as cane nha? Vamos fazer cartão de Páscoa! - Posso distribuir o papel? - Por que a Senhora não trouxe folha mimeografada pra nós colorir? Na minha sala, a professora levou um coelhinho e deu pra todo mundo. - Na minha sala, nós fez foi um ovo. A Professora levou o desenho pra gente colorir. Ficou uma gracinha! Se quiser, eu busco o meu lá em casa pra rar cópia. - Para quê? Pergunto. Este, vocês já fizeram. Todos iguais. Agora, nós vamos fazer os nossos cartões. Todos diferentes. Cada um faz o seu. Entenderam? - O que, então, é pra nós fazer? - O que a Senhora quer que nós desenha? - O que vocês quiserem. Respondo. Vocês sabem o que é Páscoa, ou não sabem? - Mas pode desenhar outra coisa? Não precisa de ser ovo nem coelhinho, não!? Perguntam surpresas. - O que vocês acham? - Eu vou desenhar um coelhinho. Só que eu vou fazer o meeeeu 36
coelhinho. Éverton trabalha em silêncio, usando apenas meia folha de papel jornal e duas cane nhas. Observo e pergunto a mim: “Um avião?! Seria um avião?!” As pequenas mãos con nuam sem hesitar. Logo abaixo do desenho, escreve meu nome. Desenha um traço horizontal. Na parte de baixo, faz outro desenho. Desta vez, um peixe. Repete o meu nome, usado como voca vo, completa a frase e me entrega: “Edméia, nesta Páscoa eu te desejo paz e liberdade.” Diferentes cartões nascem das imaginações férteis. Danielle faz um desenho e entrega para mim. Pergunto se não quer acabar de colorir. Responde: - Eu já colori. O meu coelhinho é branco.
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Júlia Danielle Lataliza e Silva – 8 anos
Valquíria dos Santos Silva - 8 anos
Gislene Dias da Silva – 8 anos
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DORITA, A FLOR AMARELA
Reconto a história de Mirna Pinsky: Zero Zero Alpiste², um menino que não chorava nunca. Mesmo quando se machucava e a dor era muita. Não chorava, porque era HOMEM. E o pai nha dito que homem não chora. Um dia Daniel foi pregar um prego na parede do seu quarto. Ele queria enfeitar a cabeceira de sua cama, como viu fazer a irmã. Daniel distraiu-se e... pimba! Acertou o martelo no dedão, bem no lugar que nha uma ferida. Doeu tanto, mas tanto, que Zero Zero Alpiste esqueceu que era HOMEM. E chorou. Com o dedo debaixo da torneira, ² PINSKY, Mirna. Zero Zero Alpiste. 7. ed. São Paulo: Á ca, 1985.
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agarrou um copo e foi colhendo as lágrimas. Depois, saiu correndo até o jardim e enterrou-as no canteiro debaixo de uma pedra azulada, para ninguém saber que ele nha chorado. Três dias depois, a pedra azulada não estava mais lá. No lugar, nha nascido uma flor amarela. Zero Zero Alpiste se surpreende com a revelação de que aquela florzinha nha nascido das lágrimas ali enterradas; era a sua dor. Dorita, como ele a chamou, fez ver ao menino que homem também, quando machuca, sente dor. E que a dor entra dentro do peito e só sai quando a gente bota ela pra fora. Com as lágrimas. Zero Zero Alpiste olha para a cara da flor e começa a recordar: do escorregão no futebol, do mau jeito no tornozelo, do nariz raspado. Lembra-se também da dor-tristeza quando seu cachorrinho sumiu. E quando seu melhor amigo mudou da cidade. E cai na choradeira. As lágrimas formam uma poça aos pés da flor. Espantada, a flor pergunta o que houve. E Zero Zero Alpiste responde que está botando a dor pra fora, pois não quer carregar esta dor pesada dentro do peito. Terminada a história, os meninos pedem para contar de novo. Outra vez. Leio a história. Todos querem manusear o livro. E ficam namorando a flor amarela, que surge mida e vai colorindo o livro até encher, vitoriosa, a úl ma página, num final feliz, resplandecente de luz. A princípio, a maioria dos meninos concorda com a afirma va de que homem não chora. Já as meninas discordam, para grande alívio dos meninos que choram e dos que não podem chorar. Na relação com a história e os companheiros, os ouvintes vão pondo para fora as dores sofridas, principalmente aquelas que veram de engolir com a famosa frase “homem não chora”, como no caso do Fernando, seis anos, que exibe a cabeça do dedão do pé arrebentada há dias num tropeção. E ele não chorou nem um pouquinho, nem na hora, porque ele é homem. E homem não chora. Vai contando, muito macho. Depois, se achegando de mansinho, encosta a cabeça no meu ombro e desabafa: 40
- Ainda dói demais. Fica até latejando dentro do tênis na escola. Eu nem dou conta de prestar atenção na aula. A professora me xinga porque eu não fiz a tarefa. Outro exibe o joelho ralado na queda de bicicleta. Cada um tem uma dor guardada no peito. Por fim, vem a dor-tristeza. Todas as crianças já experimentaram a dor- tristeza. Cada qual tem uma história mais dorida para contar. Um menino conta do seu cachorrinho que morreu atropelado quando atravessava a rua: - Eu abri o portão, ele saiu correndo. Vinha descendo uma carreta. Ele foi atravessar a rua e não deu tempo. A carreta vinha correndo demais da conta. Não deu pra frear. Passou em cima. Nem parou. Pegou ele bem assim no meio. Esmigalhou. As tripas saiu tudo pra fora. Tadinho. Eu inda chamei ele. Mas ele nem escutou! As lágrimas rolam no seu rosto. Passo o braço em torno dos seus ombros. Um pesado silêncio se faz. Lágrimas brotam de outros olhos, molhando o meu ombro, a minha mão, o passeio. A perda de um bichinho de es mação, a mudança de um amigo, a separação de irmãos e a morte de um ente querido são a dortristeza mais comum. Mas há outras, tantas outras como “o dia que meu pai saiu de casa”; ou “o dia que minha mãe foi embora.” Ou ainda “o dia que fui morar com...” Todos escutam atentos a história de cada outro, compar lhando a dor- tristeza, muitas vezes comum a muitos de nós. Terminada a sessão de história, damos as mãos e começamos a brincar de roda, cantando: Você gosta de mim, ô José? Eu também de você, ô José! Uma brincadeira puxa outra. O sol se põe. A lua acende a noite no céu. A CEMIG — Companhia Energé ca de Minas Gerais — acende os postes na rua. Hora de criança dormir. Todos querem levar Zero Zero 41
Alpiste para ler em casa e na escola. Como só temos um exemplar, o grupo decide democra camente por meio do jogo “Par ou ímpar” Quando nos despedimos, o passeio fica todo iluminado. A princípio, julgamos ser uma estrela cadente. Mas, quando olhamos para trás, não vemos dúvida: do chão, brotavam flores amarelas de todos os tamanhos e tonalidades. As crianças batem palmas de contentes, enchendo a rua de algazarra.
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ACHADO DE TERNURA Domingo é Dia das Mães. Trago o material pedido para fazer cartões. Junto, um achado de ternura: uma pequena antologia de poemas que organizei para a minha mãe, quando eu nha dez anos de idade. Redescoberta agora em seus guardados de afeto. A turma está mo vada e não fala em leitura no primeiro momento. Deixo fluir. Até bom. Penso: assim, cada um se expressa livremente sem o risco de se deixar influenciar. Começo distribuindo material com a ajuda dos maiores. Outros vão chegando e se ajeitando como podem. Júlia traz seu cachorrinho e desenha com ele de pé a seu lado; as pa nhas apoiadas no ombro da menina. Olhos acesos observam tudo ao redor, acompanham os movimentos da garota. A presença de Bolinha já não cria tumulto entre os par cipantes, acostumados com o pequeno animal em nossos encontros. Só no início, enquanto Bolinha procura seu espaço, a turma se agita, buscando proteger os trabalhos. Em poucos minutos, a calçada se transforma em rico ateliê. A folha em branco vira corações apaixonados, beijinhos de ternura, sóis reluzentes, estrelas sorridentes, campo de leves e graciosas borboletas, flores de mil cores. E as mensagens, escritas em letras bordadas, quebradas, garrafais, vão revelando emoções e sen mentos. E o sonho mais sonhado de toda a humanidade: amar e ser amada. A poesia flui. E as quadrinhas populares, passadas de geração a geração, aqui também cons tuem recurso para as declarações de amor. Mamãe, se eu fosse uma rosa, te daria um botão; como sou tua filhinha, te darei meu coração. xxx
Eu não te dou uma flor, porque a flor tem espinho; mas te dou meu coração cheio de amor e carinho. xxx Nesse contexto, viro mãe para muitas crianças que me deixam suas mensagens de amor e carinho:
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Jaime aparece no meio das a vidades e descobre o caderninho, fonte de ternura e poesia. Lê a dedicatória e a data. Curioso, quer saber mais. Vou contando a história. Outros ouvintes se aproximam. Abrimos numa página qualquer e começamos a ler. - Me empresta esse caderno!? Quero ler pra minha mãe! - Vou copiar esta para levar pra escola. A professora mandou levar amanhã. Eu não achei nada. Lá em casa não tem livro. - Eu também não achei nada. Nem na biblioteca. - Vamos ler juntos! Vamos ler todos os poemas do seu caderno, para escolher o mais bonito. Vamos! Assim: a Senhora lê uma estrofe, eu leio outra, a Liliane, outra. Cada um lê o que quer. Improvisamos um coral. Na primeira leitura, muitos se perderam. Fazemos uma segunda e uma terceira. Perfeito. Jaime acorda a ideia de fazer a apresentação na escola. Como cada par cipante estuda numa escola ou classe diferente, combinam formar um coro com os colegas. Mas logo esbarram no problema: precisam de muitas cópias. Sugiro passar no quadro de sua classe. Enquanto copiam, vão familiarizando com o poema, pois quem copia lê três vezes. Concluo. Novas ideias vão surgindo: - Eu vou ler pra minha mãe no Dia das Mães. - Oba! Eu vou falar com meus irmãos. Cada um faz uma cópia pra gente ler junto, igual nós fez aqui com a Senhora.. Primeiro, a gente treina bastante, pra ninguém dar nem uma erradinha! E, domingo, faz uma surpresa pra ela na hora de entregar o cartão. Pode ser na hora do almoço, não pode? Eu falo com os meninos pra ninguém sair. Minha mãe vai ficar feliz, não vai? Terminado o assunto, fazemos a roda-de-despedida. Todos se abraçam. O grupo se dispersa. Alguns são colegas de classe ou de escola e con nuam na calçada. Fazem planos.
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AGORA EU VOU NAVEGAR Éverton vem com o irmãozinho me encontrar bem antes do ponto marcado. E não despenca da árvore nem sai correndo anunciando, como nos outros dias: “A mulher das historinhas!” Desta vez, vem cauteloso, trazendo somente o irmãozinho pela mão. - Hoje fica aqui na minha porta! Pede, olhinhos suplicantes. Explico que a turma está esperando na rua de cima, conforme combinado. - Vai não! Fica aqui! Hoje, eu não posso ir. Eu tenho que ficar esperando pra ver se minha mãe vai chegar. Ela falou pra gente não sair; esperar ela aqui. Eu tô tomando conta do meu irmão. Senta aqui! Lê uma história pra nós! Deixa ver o livro! - Então, vamos sentar ali na frente. Mais tranquilo. De lá, dá para ver a sua casa. O menino caminha nas nuvens, olhos fixos no livro: - “O ... fala não, fala não! Deixa ver se eu sei. Insiste. Esta aqui eu sei: é a letra do meu colega. Peraí que eu sei... Ba... bar-co. Barco! É barco que tá escrito aqui!?” Pergunta num assombro de alegria. E repete, agora sem soletrar, o tulo do livro: O Barco³ Fascinado, abre o livro. Folheia. Vai entrando na história com o irmãozinho, por meio das imagens: - Olha os peixes! - Chi! Que tanto! Olha o peixinho! Peixinho pequenininho. O peixinho tá nadando no rio. - Aqui o peixão grandão. - Esse é o pai e essa é a mãe do peixinho. - Olha a tartaruga! - Tartarugona! A tartaruga tá nadando. - Aqui a onça! - A onça tá bebendo água no rio. Iche! A cabeçona do jacaré! ³ FRANÇA, Mary; FRANÇA, Eliardo. O Barco. São Paulo: Á ca, 1997.
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- Este livro é bom. Tem pouca escrita. Deixa ver se eu dou conta de ler! Me ensina! Voltamos à primeira página. Entramos todos no mesmo barco: Adeus, papai! Adeus, mamãe! Agora vou navegar. Navegamos com o novo marinheiro no comando. O pequeno navegante viaja com fé e determinação. Guiado pela mesma estrela, o pequeno herói repete a façanha dos maiores navegadores de todos os tempos. Tropeça nas sílabas, mas não desanima. Consulta o mapa e faz seu próprio caminho: “Peraí, não fala ainda, não. Deixa, que eu sei. Este pedacinho tem no nome do meu colega.” Um novo mundo se descor na. De letra em letra, de sílaba em sílaba, de palavra em palavra, vamos singrando os mares, descor nando o novo mundo da leitura; entrando na história, compondo a história. Ventos sopram a favor da embarcação. Daí por diante, a viagem segue normalmente. Aportamos na úl ma página. O pequeno leitor descobre o novo paraíso. E termina, aqui, a sua fantás ca aventura, lendo a úl ma frase do narrador-personagem como se sua fosse: vou longe...longe... com meu barco de papel.
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RISADINHA, O PIOLHO E OUTROS PIOLHOS Todos querem sentar perto, sentar no colo, ficar abraçados comigo. Késsia, seis anos, vai chegando e se achegando: - Viu? Eu deixei a chupeta lá em casa. Eu não vou chupar chupeta nunca mais. Fala com determinação a pequena, que encontra no afeto, nas brincadeiras e experiência de leitura força e mo vação para abandonar o hábito que dificulta a fala e a faz ví ma de zombaria dos companheiros. Logo em seguida, carente ainda da chupeta inseparável, pede: - Deixa deitar no seu colo um quim?! - Deixa essa menina encostar na Senhora não! Ela tá cheia de piolho. Grita a turma com desprezo. A garota não se defende. Olhinhos tristes, vai-se afastando, desamparada. Encolhida na sua solidão, confirma: - É mesmo. Eu não posso encostar em ninguém, não. Eu tô de piolho. Peguei na escola. Aconchego a pequena nos braços e pergunto: - Quem mais pegou piolho na escola? Ninguém pegou. - Vamos namorar os livros! Convido, espalhando os livros dentro da roda. Na capa, o olhar matreiro da menina coçando a cabeça, com um sorriso largo na carinha redonda, atrai a criançada. - Este aqui! Vamos ler este!? pedem em uníssono. Pegamos o livro, acariciamos. Os pequenos leitores vão descobrindo pormenores, aguçando a curiosidade, a imaginação. Pulam para dentro da história antes de abrir o livro. O tulo, Risadinha o Piolho⁴, desperta o riso e a coceira. A menina a meu lado e a menina da capa já não estão sozinhas. Outros ⁴ SIMÕES, Ronaldo. Risadinha o Piolho. Belo Horizonte: Lê, 1999
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dedinhos entram em ação. Coçam distraidamente, gostosamente, enquanto entramos na primeira página. - A menina tá chorando. Observam. - A mãe da menina tá xingando, porque ela pegô piolho na escola. Antecipa outro. - A mãe tá lavando a cabeça da menina com xampu de matar piolho. - Lê! Vamo lê!? A menina chegou em casa coçando a cabeça. Estava com piolho. Todo ano, no começo das aulas, acontecia a mesma coisa. E vinha vinagre quente, catação de lêndeas, lavação de cabelo... - Não falei que a menina pegô piolho na escola? Não falei? Gritam vitoriosos. - Con nua! Deixa a Tia ler. A menina sen u uma cosquinha e, ao coçar, coçou a barriga do piolho. Ele era cosquento e começou a rir. Como o riso pega, no final, todo mundo na história da meninapersonagem e na história da calçada ri. Dizem que até o Sol, lá nas alturas, deu boas gargalhadas. - Na sua casa tem vinagre? Pergunta a menina fora da história. Amanhã, traz um quim no vidrinho pra minha mãe lavar o meu cabelo!? Pede, olhar suplicante. - Traz pra mim também. Os meus nha acabado. Mas eu peguei outra vez. - Eu não pego piolho mais não. Antes, eu pegava à-toa. O meu 49
sangue era docinho. Acho que agora o meu sangue não é doce mais não. Diz que piolho gosta é de sangue doce, né? - Eu não preciso, que a mãe bateu Neocid. - Lá na creche, a professora lava é com xampu de matar piolho. - Na Pastoral tem. A minha mãe vai pegar pra nós. Por que a sua mãe não pega procê também, Kessinha? - Vam’brincá de rão, rão, rão, minha machadinha! - Eu quero levar esse livro, viu? - Não. Eu é que vou levar. A Senhora me empresta? - Eu pedi primeiro. O jeito é decidir na adedanha, fórmula de escolha nas brincadeiras tradicionais, usada para decidir quem ocupa a posição de destaque. - A Kessinha ganhou. Gritam. - Hora que a Kessinha entregar, eu quero ele, viu?! Pra mim levar pra escola. Esquece não. Minha professora adorou aquele da semen nha. Lembra o da semen nha?⁵ - Minha professora falou que é pra gente pegar mais livro com a Senhora para ela ler pra nós. - Vam’brincá! Agora mesmo é hora de ir embora. E a gente não brincou nada. Reclama Vanessa.
⁵ FARIA, Edmeia. Juninho Descobre a Esperança. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1985.
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TERNURA SEM SABER A QUEM DAR - Vamos fazer cartão pros pais? Convida Claudiene. Domingo é Dia dos Pais. - É mesmo! A gente fez pras mães. Tem de fazer pros pais também. - Posso ajudar a distribuir as folhas? - Por que a gente não faz assim: uma rodinha aqui e outra ali? Cada rodinha tem uma caixa de lápis. Fica uma com os de lá, e outra com os de cá. O resto, a gente divide. Sugere Geraldinho. Lápis, giz e cane nha entram em ação. E vão desenhando o amor e a ternura, mesmo sem saber a quem dar. - Eu tô fazendo, mas não sei pra quem, não. Eu não tenho pai! - Dá pro namorado da sua mãe! Propõe o colega. - Eu vou fazer é pro Zé do bar. Ele é meu amigo. Decide. - Eu também vou fazer pro meu amigo. - Eu tenho dois pais. Pra qual deles a Senhora acha que eu faço? Quer saber o menino mais dócil do mundo, seis anos de idade. Pergunto quem são os dois pais. Responde com naturalidade: - Tem o meu pai de verdade. Este, eu não conheço, não. Eu nunca vi ele. Mas eu tenho um pai de verdade. E tem o pai que mora com a minha mãe. - Faz pro que mora com a sua mãe. Ocê mora é com ele. Ele não é bom procê? O outro, ocê não conhece, uai! Eu vou fazer é pro meu vô, que eu moro é com ele. E chamo ele de pai. Interfere uma das meninas. - Faz pro que ocê gosta mais. Opina um segundo. - De quem ocê gosta mais? Indaga um terceiro. - Do meu pai de verdade. Responde sem tubear. - Eu vou fazer dois. Decide afinal. Um pro meu pai de verdade e outro pro que eu moro com ele. Eu gosto dos dois. Eu sei de uma pessoa que conhece o meu pai de verdade. Ele também é caminhoneiro e é meu amigo. Falou que um dia vai me levar pra conhecer meu pai. 51
VÓ ZINHA Faço ponto no passeio do Vô Zé e da Vó Zinha. Toda tarde, quando chego, encontro os dois no portão. Ela, do lado de dentro, debruçada no muro, mera espectadora. Ele, sentado do lado de fora num banquinho de madeira, fuma seu cigarrinho de palha. Comenta: - A Senhora tem paciência! Aguentar essa meninada! Gosto de ver o seu jeito de lidar com eles. É uma caridade que faz com esses coitadinhos; ensinar a ler. A meninada adora! Chega de tarde, vai juntando tudo aqui na porta. Fico reparando: quando a Senhora começou a sentar aqui com eles, nha menino que não sabia ler direito. Com as histórias, num instan nho, desasna. A minha neta mesmo, coitadinha, precisa demais dessa aula. Ela tem muita dificuldade de aprender na escola. Até poucos dias, não sabia ler. E não gostava; morria de preguiça. Agora, vejo aqui, todo dia, ela quer ler um livrinho. Todo dia, quer levar pra escola. Já tomou gosto. Hoje, Dona Zinha entra na roda. Os olhos redondos brilham como os dos meninos na hora da leitura de uma história. - A Senhora agora deu pra trazer uns livro bão! Ontem, a minha neta pegou um de letra grande. Esse, até eu dei conta de ler. Toda vida eu fui doida por história. Mas nunca pude ler. Só no serviço desde pequena. Depois, casei, fui criar menino e lavar roupa pra fora. Quando chegava de tarde, o serviço da casa todo por fazer, minha roupa pra lavar. Também, a gente não nha livro! Agora, fico aqui criando neto pras filhas trabalhar, pelejando com essa meninada. Também, já tô velha. Não ando enxergando que presta. Mas esse livro de letra grande... Quando ver mais, traz pra minha neta! Ontem, eu fiz igual a Senhora: sentei com todos em roda e fui ler história pra eles. Trem mais bão, sá! Todo mundo sossegadim. Sabe, é até um jeito mais fácil de controlar a meninada. 52
DE MÃOS COM A POESIA 7x5 = 45. Os que já dominam a tabuada de mul plicar, atentos à leitura do texto não esperam. Entram na história e gritam antes da personagem: - Tá errado! Tá errado! 7 x 5 = 35.⁶ Con nuamos a leitura em roda: leio um parágrafo. Passo o livro para o que está a minha direita. Este passa para o da sua direita. Assim por diante. Os que ainda não são alfabe zados leem as ilustrações e eu leio as palavras. Os que estão em fase de alfabe zação leem só uma frase, passando em seguida para o próximo. As crianças saltam para dentro da história e revivem cenas vividas no dia a dia da escola: - Eu não escrevo no quadro de jeito nenhum. Na minha sala, os meninos ficam rindo da gente. - Na minha sala, quem vai no quadro é só a Natália. A professora é puxa-saco dela. - Eu nunca fui no quadro. A professora diz que eu não sei escrever: a minha letra é feia. Nesse jogo, vão expressando ressen mentos guardados, mágoas reprimidas, gostos e preferências, simpa as e aversões. Terminada a leitura, a história con nua. Os meninos aproveitam os numerais que ilustram o livro para um desafio: - Quero ver quem sabe a tabuada. Quanto é: - 7 x 6? - 8 x 5? - 9 x 4? A Aritmé ca vai entrando diver da no meio da brincadeira. Alguns reclamam: - Eu só sei con nha de mais. A professora ainda não ensinou de vez. ⁶ ALBERGARIA, Lino. Coração Conta Diferente. São Paulo: Scipione, 1993.
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Então, o grupo sugere desafio da tabuada de somar. E prossegue a brincadeira. Em vez de lápis e papel, hoje, trouxe giz de cor. O giz entra em ação e vai desenhando a Matemá ca. Números saltam pela calçada, fazem pirueta, dão cambalhotas. Somam, mul plicam, subtraem. - Somar e mul plicar, eu sei. Eu não sei é dividir. Eu fiquei com nota baixa na prova por causa disso; a professora deu quase só conta de dividir. E essa, eu não sei fazer. Me ensina! - A Senhora é professora, não é? Eu queria que a Senhora fosse minha professora. - É mesmo! Por que a Senhora não dá aula na escola pra nós? Explico que agora eu só quero ler, contar e escrever história. E brincar com criança na rua. - Só pra nossa turma! insistem ainda. Entre um número e outro, o sol se põe. A lua surge no céu assim de estrelas. - Vam’brincá de roda? Os números ganham espaço na brincadeira e a simpa a do grupo. Entram na roda de mãos dadas com a poesia: Ciranda, cirandinha, vamos todos cirandar; vamos dar uma vol nha numa noite de luar. Sete e sete são quatorze, três vez sete, vinte e um soletrai a letra p, a paixão de cada um. Sete e sete são quatorze, com mais sete vinte e um; todo mundo tem amor, só eu não tenho nenhum.
Cantamos a variante, para o grupo de mais, como eles chamam a tabuada de somar, não reclamar e ir percebendo que 7 + 7 + 7 = 3 x 7. A brincadeira não tem fim. O tempo de ficar na rua, sim. - Tiau... au... - Vai não! Vam’brincá mais... - Só mais um pouquinho.Tão bom! insistem. - Tiau... au... Correm todos para o abraço. - Amanhã, a Senhora vem de novo!? - Nós vamos levar a Senhora até ali perto do boteco. De lá, nós volta, e a Senhora passa correndo: de noite ali é uma bagunça! Alertam. Vamos andando e conversando; conversando e andando. A menina não desiste: - A Senhora não quer dar aula na escola. Então, por que não faz assim: arruma um cômodo e faz uma escolinha pra nós? Só pra nós, né, Geraldinho? A minha mãe tem um cômodo lá perto de casa. Capaz dela alugar; ela fechou o salão. O cômodo é pequeno. Deve caber uns doze. Mas, também, a Senhora não vai querer muito aluno, vai? Bom é pouco menino. Assim, dá pra ensinar cada um. - Muito menino, vira bagunça. A gente nem não escuta direito o que a professora fala. Ah, nem... Na minha sala tem menino bagunceiro demais! A Senhora vai dar aula pra nós, não vai? Fala que vai, fala! Reforça Geraldinho. - Vou pensar. Respondo sem pensar. Agora, voltem! Preciso andar depressa. Está ficando tarde. Cuidado com a rua! Vão pelo passeio de lá. Cada um olha se não vem carro, moto, bicicleta. - Com Deus, Tia! Caminhamos agora em direções opostas, guiados pela mesma estrela, tendo a lua por companheira.
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CARNEIRINHO, CARNEIRÃO - A Senhora já pensou? - Pensei o quê, Claudiene? - Se vai abrir aquela escolinha. Eu falei com a minha mãe; ela aluga o cômodo; um salário por mês. Ela não precisa dele agora. Meu pai gosta demais da Senhora. Falou que a Senhora não cai no chão pra ele; a Senhora me dá carinho. E me faz tão feliz! Escola não cabe nos meus planos. O insistente pedido dos meninos, no entanto, reforçado pela expressão de es ma do pai me comove e leva a repensar. Enquanto procuro argumento, Geraldinho me salva: - É! Mas escola precisa de mesa, cadeira, né, Dica? - Ih! É mesmo! Outras crianças vão chegando e entram na conversa: - Mesa e cadeira manda fazer na oficina. O padrinho do Preto tem oficina. - Eh! Mas fica caro. - Será se a gente pede o Prefeito, ele dá? Quem compra carteira pra escola? - Na escola, tem um monte de cadeira quebrada. A gente pode mandar arrumar. Por que a Senhora não vai lá e pede? - O quadro-negro... Ih! Precisa de quadro-negro... - Na casa do meu o tem uma pedra ardósia grande, deste tamanho, atrás da casa. No dia que eu fui lá, nós brincou de escolinha. Eu levei giz. Nós escreveu na pedra. É mesma coisa de quadro. E o meu o deve de dar ela pra nós; ele não precisa dela. É só pedir. Qué que eu peço? - Trouxe o livro da Branca de Neve? - Quem tá com o Chá de Sumiço⁷? - Eu já entreguei. Esse livro é bom demais! A boneca da Ri nha ⁷ BANDEIRA, Pedro. Chá de Sumiço. Rio de Janeiro: Moderna, 1992.
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sumiu, porque ela não nha cuidado. Eu tenho o maior cuidado com a minha. Eu ganhei no meu aniversário. Foi a minha madrinha quem me deu. Tem muito tempo já. Até hoje, ela não sumiu. Tá lá. Guardadinha. Todo dia, depois que eu brinco, eu guardo ela na caixa. - O dia que o Márcio entregar O Caçador de Lobisomem, a Senhora me empresta? Eu gosto de livro é assim: de mistério. - Tem nego que leva livro pra casa e não lê, não. Fica só olhando figura e desenhando. - Tem poesia? Vamos ler poesia? - Lê essa daqui! Pede um novato, apontando para o poema Os Carneirinhos⁸, de Cecília Meireles. Leio. Depois canto. E todos se encantam. Agora, cantamos juntos. Uma canção acorda outra canção; um carneirinho atrai outro carneirinho: - Vam’brincá de roda? Carneirinho, carneirão, neirão, neirão, olhar pro céu, olhar pro chão, pro chão, pro chão, manda o rei, nosso senhor, senhor, senhor, para todos se assentarem. (...) Depois de cumprirem todas as ordens do rei, nosso senhor, as crianças olham novamente para o céu. De repente, um grito de assombro: - Tô vendo um carneirinho lá no céu. - Cadê? - Eu não vi, não. Me mostra! - Alá, bobo, que tanto. Eles lá vai embora. - Tô vendo um elefante. - Uma foca com bolinha no nariz! ⁸ MEIRELES, Cecília. Ou Isto ou Aquilo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990.
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- Alá, alá! - O quê, Binho? - Um avião. Olha o rasto dele! - Que dia a Senhora vai viajar? - Depois de amanhã. - A Senhora vai é de avião, não é? - A Senhora não tem medo de andar de avião? - Vai de ônibus, Sá! Eu tenho medo de avião. - Me leva! Deve ser bão andar de avião! - Ahn! Rimou. A Manu fez uma rima! Alvoroçam.
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AMOR POESIA Hoje é o nosso primeiro encontro depois de minha viagem a Brasília, onde passei a semana entre livros, professores e alunos. Trago o livro Candanguinho⁹ na cesta básica da vida, presente do Centro Educacional 13 do Gama, cidade satélite, juntamente com outros ar gos de primeira necessidade, ou seja, livros de história e de poemas; flores e o CD Amor Poesia, de Carlos Drummond de Andrade, por Scarlet Moon, que deixo para saborear com adultos. Com o Candanguinho, as crianças entram na história e viajam através da História, conhecendo a Capital do Brasil. Algumas querem saltar logo para a úl ma página, na curiosidade de descobrir onde mora a nossa personagem. Seguro. Aproveito o suspense do autor, para fazer suspense na leitura, aumentando o grau de curiosidade, intensificando o desejo, que sustenta a caminhada. Apesar de seguir todas as pistas dadas pelo autor, ninguém descobre, enquanto não viramos a úl ma página e... abrimos a por nha. Candanguinho e a saudade mo vam os trabalhos dessa tarde.
⁹ RIBEIRO, Helena. Candanguinho. Brasília: Fábrica do Livro, 1998.
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FELIZ ANIVERSÁRIO As crianças estão em festa com o livro e o desenho na calçada. Só o Geraldinho hoje não veio. Pergunto pelo menino sumido. - Ele tá lá em casa. Ele é meu primo. Hoje é aniversário dele, oito anos. Informa uma garo nha. Mando chamar o Geraldinho. A turma tem uma ideia: Fazer, de surpresa, cartões para homenagear o colega. Depois de prontos, uma turma vai buscar o aniversariante. E chega com ele carregado nos ombros, como fazem os jogadores de futebol com o campeão. A turma, de pé, entoa um animado Parabéns pra você... Geraldinho desce dos ombros para os abraços dos companheiros. Todos se apressam em oferecer a sua mensagem. O garoto não sabe o que fazer. Com os olhinhos redondos brilhando mais que nunca, pede a minha ajuda para ler as mensagens. São votos de felicidade, pedidos de desculpa por alguma briguinha e outras ofensas. Tudo na linguagem deles, numa expressão espontânea dos sen mentos mais fortes de cada um. Apanhada de surpresa, improviso um presente: alguns lápis de colorir sonhos e umas folhas de papel. Faço um embrulho improvisado e ofereço com o cartão, também improvisado, com a marca do meu beijo e a mensagem inspirada no presente. Geraldinho pede um envelope grande para guardar os cartões. E corre para casa. Explica: - Eu já vou embora. Lá em casa, eu quero ler tudo de novo. Eu quero ler sozinho. No meu quarto. E guardo de lembrança. Esta foi a minha melhor festa de aniversário. Quando eu fiz cinco anos, a minha madrinha fez uma festa pra mim. Me deu um bolo de chocolate e cantou parabéns. Mas não nha menino pra gente brincar nem cartão nem nada. Bom receber cartão, não é? Todo aniversário podia ser assim: na calçada. Que dia é o seu aniversário? Me pergunta.
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VOCÊ GOSTA DE MIM? Você gosta de mim, oh, José? Eu também de você, oh, José? Vou pedir a seus pais, oh, José, para casar com você, oh, José. Estamos brincando de roda no final das a vidades. Chega uma professora com a filhinha pela mão. Pede para falar comigo. Saio da roda e escuto: - Ia passando com a minha menina, vi vocês brincando aqui, cantando uma can ga tão bonita, que eu fui em casa pegar um caderno e uma caneta e voltei. Se puder repe r... Vou copiar pra cantar com os meninos. Estou trabalhando na creche. Comecei este ano. É o meu primeiro emprego. Estou tendo a maior dificuldade! Dizem que a gente tem de brincar com as crianças, cantar, contar história. Vergonha! Eu formei pra professora, mas, falar verdade: eu não sei uuuuuma história! Eu não sei uuuuma brincadeira! Nenhuma can ga de roda! As outras monitoras é que me passam alguma coisa. Eu nunca brinquei de roda. Acredita? Nunca ninguém brincou comigo nem contou história pra mim, quando eu era pequena. Não tenho nenhuma lembrança da professora ler história pra gente na escola. Acho que não nha isso, não. No curso de Magistério, também eu não ve nada disso. Agora é que eu leio alguma história, que os meninos levam para a creche. Eles pegam o livro com a Senhora e pedem para eu ler. Minha filha vê os outros contarem, fica doida pra par cipar. Mas eu não sabia que a Senhora vinha aqui perto da minha casa, não. Tem muito tempo já que a Senhora vem por esses lados? Estou atrapalhando a brincadeira. Dá pra cantar aquela can ga de novo? Eu peguei só uma parte. Pode ir. Eu vou sentar aqui no meio-fio e ver se dou conta de copiar. Já estou de saída. Mas decido ficar. Convido a Professora para entrar na roda, cantar, brincar; ela e a filha. Se não aprender brincando, 63
eu dito depois a letra. Prometo. A Professora prefere ficar sentada no meio-fio olhando. Só olhando. Puxo a menina, que nunca brincou, para dentro da roda. Outras mães estão assis ndo no portão. Estendo a mão, convidando para a alegria. As crianças se divertem. Estranham as mães de mãos dadas, assim, unidas na mesma tarefa de brincar.
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LAÇOS DE TERNURA - Trouxe papel pra desenhar? Eu ajudo a distribuir. Em poucos minutos, as crianças se organizam. Hoje, um grupinho só de menino-homem foi sentar distante dos outros grupos. - Vem cá não, viu? - O que é que vocês vão fazer? - Uma coisa. Olham uns para os outros com cara de cumplicidade. Pode ver não. Senão atrapalha. Hora que acabar, nós chama a Senhora. - O que esses meninos estão aprontando? Me pergunto. Mas fico na minha. Hoje, está todo mundo misterioso, cheio de segredos e silêncios. - Pronto. Não pode abrir ainda, não. É pra Senhora ler em casa. Vontade de ir embora correndo e trancar no quarto como adolescente com carta de namorado. - Vam’brincá de roda! - Só um pouquinho, viu, gente. Que a Dona Edméia tá com pressa. Respondem por mim. Na despedida, recebo outras car nhas. Umas, secretas: - Só pode abrir em casa, viu! Só a Senhora é que pode ler. Outras são públicas: - Lê! Pode ler para os menino. Lê agora! Em casa, leio e releio. Com a alma inteira. E guardo, como carta de namorado, esses laços de ternura.
Welinton Conceição Cruz Souza– 8 anos
Valéria de Fá ma Matos – 8 anos
Sílvia Ta ane Almeida de Souza – 7 anos
Gláucia Ta ane da Silva – 10 anos 67
As crianças deixam mensagem também umas para as outras.
Aline – 7 anos 68
SONHO DE CRIANÇA CIDADÃ Por causa do agravamento da doença de meu pai, não pude ir ao encontro do grupo das gêmeas, organizado pelas irmãs Yara e Nayara, no passeio do avô, onde a família se reúne aos domingos. Por isso, decidimos reunir aqui mesmo no passeio de meus pais. O material já está na calçada, quer dizer, no pá o. Aqui, usamos o pá o. Mas ainda não posso me dedicar às crianças. Explico. E entro para cuidar de meu pai antes mesmo de iniciar qualquer a vidade. Edvânia, doze anos, chega e assume a liderança. Quando retorno, vejo que escolheram o livro Sô Lobo, de Edimir Perro . Cantam e brincam animadamente: Vamos passear na floresta, enquanto Sô Lobo não vem. Edvânia conduz tão bem a brincadeira e as crianças, que decido dar marcha à ré e ficar assis ndo de longe. Só depois de algum tempo, entro na brincadeira. Outras crianças vão chegando. Contam agora cerca de quinze, entre dois e treze anos. Pedem para desenhar. Distribuo o material com a ajuda dos par cipantes. Duas caixas com lápis de escrever, lápis de cor, borracha, caneta hidrocor, giz de cera são colocadas no centro. Para facilitar o acesso ao material, se dividem em dois grupos; cada qual com uma caixa. As menores se entregam ao desenho, expressando livremente e só se comunicam umas com as outras para pedir ou passar material. Nesses dias, a bandeira do Brasil tem sido mo vo comum à maioria dos trabalhos. Influência da Copa do Mundo de Futebol. Desfralda entre fadas e bruxas, bola e borboletas, atletas e gigantes. Sempre com o sol da liberdade a brilhar em raios fúlgidos no céu da Pátria. Já as maiores são menos concentradas. Falam, brincam e riem o tempo todo, enquanto desenham. As meninas falam de namorado na maior naturalidade, misturando um resto de inocência com um início de puberdade. Há sempre um sol sorrindo, ou uma lua român ca no desenho delas; nuvens leves, estrelas, corações. Muitos corações. Tudo personificado; uma casinha com boca de beijo em lugar de porta; e olhos, que são janelas. Castelos e casinhas com cor nas român cas, 69
perdidas no meio de floresta. Muitas flores e borboletas. Os desenhos são coloridos, destacando-se o rosa, o azul claro, o amarelo ouro, o vermelho e o verde. O coração é representado sempre cheio; de coraçõezinhos, de flores, ou de mensagens: declarações de amor, usando texto próprio e quadrinhas aprendidas de cor. Muitas vezes, seus corações são feridos pela flecha de Cupido, deus do amor. Nunca fechados. Não raro, desenham corações entrelaçados. Insa sfeitas, começam e recomeçam muitas vezes o desenho, que nem sempre terminam. Ao contrário das pequenas, estão mais preocupadas em copiar a colega do que em ser original. O desenho da outra é sempre mais bonito. Todos se divertem, menos a Dane, meio tris nha num canto. Hoje não quer desenhar. Convido para ler uma história, um poema. Também, não. Hoje não quer ler nem desenhar nem folhear revista nem recortar, nada. Até nem vinha. Tinha esquecido, diz. Depois, lembrou. Mas não vinha por causa da mãe, con nua. - E o que tem a sua mãe? Não queria que você viesse? - Minha mãe tá internada. Responde, expressando a sua preocupação. Dane não sabe porque a mãe foi para o hospital. E isto aflige a garota ainda mais. Abraço a pequena, acaricio; brinco com seus cabelos de mel cacheados. Deita no meu colo. Massageio a sobrancelha e a ponta dos dedos. Relaxa. Sorri. Tranquilizada, reanima. Quer uma a vidade diferente. Pergunto se quer fazer dobradura. Não sabe. Pego o livro, uma folha de papel e oriento. Corta um quadrado. Tenta a primeira dobra. Não consegue. Ajudo. Juntas, fazemos um peixe. Pede um cachorrinho. Fernanda interrompe o desenho para mostrar que também sabe a arte japonesa de dobrar. Outras crianças se interessam. Depois da dobradura, dão por encerrada a sessão. Cada um me oferece o desenho, menos as gêmeas e as novatas. Essas querem levar para a mamãe. Já os bichinhos de dobradura, todos levam para mostrar aos colegas na escola. O sol vai baixando; daqui a pouco anoitece. Muitos moram 70
longe e estão sozinhos. Apressam em guardar o material e limpar o pá o para brincar ainda. Cada qual quer uma brincadeira diferente. Ganha a maioria com a brincadeira de roda com a tradicional can ga Fui no Tororó. Mateus, cinco anos, pede para ficar no centro. Todos concordam. Sou a escolhida para ser seu par. Valsamos ao compasso da música e de palmas ritmadas: Valsa, valsa, meu benzinho, valsa, valsa, engraçadinho, e depois não vai dizer que você dançou sozinho. Meu benzinho valsa, valsa engraçadinho nos meus braços. Os olhinhos redondos brilham iluminados pelo sol do novo mundo. Do Tororó, passamos para outras can gas, encerrando com a Dança da Carranquinha, do agrado de todos por teminar em abraços. A dança da Carranquinha é uma dança estrangulada que põe o joelho em terra, faz o povo ficar pasmado. Carranquinha, sacode a saia, Carranquinha, coça a cabeça; Carranquinha, abre os braços, Carranquinha, me dá um abraço. Iara aproveita a roda para ensinar fazer o caracol. Agora, querem brincar de Coelhinho sai da Toca. Estamos nos organizando. De repente, tenho de sair da minha toca para ajudar passar meu pai da cadeira de rodas para a cama. Deixo uma criança no meu lugar. Todos os coelhinhos saem de suas tocas para ver o Vovô. E o quarto se enche de espectadores comovidos. Dezenas de mãozinhas se estendem para 71
meu pai, que abençoa e agracia a todas com um sorriso amável, apesar do desconforto. De mãos dadas, um coro de vozes infan s sobe aos céus num fervoroso pedido: “Deus dê ao Senhor melhora!”Os sinos tocam anunciando a Hora do Ângelus. O rádio anuncia: Seis horas. Ave Maria! O ar se enche de música e mís ca. Tudo convida à reflexão e oração. Um silêncio se faz entre nós. Os anjos dizem amém. Deus parece atender ao pedido, pois deixamos meu pai com ar de serenidade no rosto e um quase sorriso. De volta ao pá o, os livros, com as capas mais coloridas, mais suges vas, convidam para brincar. As crianças quebram o silêncio: - Vamos fazer aquela brincadeira de namorar os livros? A tarde se enche de algazarra de criança e passarinho. Fazemos a roda-de-despedida e encerramos, cantando a quadrinha tradicional: Tô preso, meu bem, tô preso, tô preso por um cordão; me solta, meu bem, me solta, me prende no coração.
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Presos no coração, nos despedimos até o próximo Domingo. - No passeio do Vô das gêmeas? Ou aqui? Querem saber. Cada par cipante, abraçado com o livro escolhido, retorna a casa, guiado por uma estrela, abraçando o sonho de criança cidadã. Entre um chamado e outro do meu pai, leio as declarações de amor.
Edvânia Maria Barbosa – 12 anos
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Liliane da Costa Barbosa - 7 anos 74
Edvânia Maria Barbosa – 12 anos
Edvânia Maria Barbosa – 12 anos 75
Marcos Rodrigues da Silva – 12 anos 76
SALA BRINQUE E LEIA Brincando, cantando e contando história, não vimos o tempo passar. A lua chega de mansinho, alumiando a rua mal iluminada para a criançada brincar: - Alá a lua! Aponta Tainara. - Ahn! Que linda! Exclamam em uníssono. - Vam’brincá! Convida uma vozinha no meio do grupo. A magia da lua cheia e o céu assim de estrelas inspiram a leitura, as can gas e brincadeiras desta noite: Oh, que noite tão bonita, oh, que céu tão estrelado, quem me dera ver agora, o meu lindo namorado. Lá no céu tem três estrelas, todas três encarrilhadas; uma é minha, outra é sua, outra é do meu namorado. - Alá as Três Marias! aponta um dedinho no meio da roda. - Cadê? Me mostra! - Me ajuda achar o Cruzeiro do Sul! - Alá. - Se a gente apontar estrela com o dedo, cria berruga, não cria? Eu tenho uma colega que tem uma berruga bem aqui, ó, na pon nha do nariz. As crianças seguem falando sobre o que veem e o que sabem a respeito das estrelas: - Quando a gente vê uma estrela cair, não pode contar pra ninguém. Se contar, fica linguarudo, não fica? 77
Entre brincadeira e supers ção, jogo a quadrinha aprendida de cor, numa declaração de amor aos meus companheirinhos: Das estrelinhas do céu, mandei fazer um cordão, para prender meu amor dentro do meu coração. - Fala de novo! Pedem em coro. - Vamos cantar! Assim, fica mais fácil de aprender. E saímos cantando rua afora, fazendo um cordão, para prender meus amores dentro do meu coração. Brincando, brincando, a lua vai subindo. E eu preciso descer, que está na hora do remédio do meu pai. - Vai não! Vam’brincá mais um pouquinho. - É mesmo! Fica! Tá tão bom! - Vam’brincá de rão, rão, rão, minha machadinha! - Tiau, au! Vou saindo. Todos sabem que a hora do medicamento do meu pai é sagrada. - Deixa ela ir, gente, dar remédio pro pai dela! - Por que a Senhora não faz uma sala bem grande, per nho da casa do seu pai, e leva nós pra lá toda noite? Faz assim: primeiro, a Senhora vai lá dentro e dá o remédio pra ele não sen r dor. Depois, lê e brinca com nós. Toda hora que o pai da Senhora chamar, um vai e ajuda cuidar dele. Faz! Uma sala bem grande! E escreve na frente: Sala Brinque e Leia. Vai sonhando a menina Helen, guiada por uma estrela.
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FESTA NO CÉU Vou ao velório da avó de Carolina. A garota está desesperada. Num pranto convulso, suplica: - Vó, acorda, Vó! Olha pra mim, Vó! Fala comigo, Vó! Dizem que está assim desde que chegaram do hospital com o corpo. Vou ficando aflita. Alguém tem de fazer alguma coisa pela menina. E urgente. Tento me aproximar. Mas a minha presença só faz aumentar o desespero da pequena: - A minha avó, Tia! Ela não fala comigo! - Deixa a vó dormir, filha! Ela precisa descansar. - Eu quero a minha vó. Eu cuido dela. Acorda, Vó! Fala comigo, Vó! O momento da saída é ainda mais doloroso. Carolina tenta impedir aos gritos: - Não leva a minha vó! Deixa ela comigo! Sai o cortejo. Com o coração dilacerado, acompanho a cena. Espero que os pais voltem com a filha antes de chegar ao cemitério. A mãe, entorpecida, parece não se dar conta do sofrimento da pequena. Uma colega caminha ao lado tentando consolar: - A minha vó também morreu, Carol. - Mas a minha vó não podia morrer. Tenho uma ideia: sair do cortejo, levando as duas comigo. Carolina é louca para ir a minha casa; ver onde ficam os livros. Quem sabe... Proponho. A colega se ilumina: - Vamos, Carol, ver os livro da Tia Edmeia! Ela conta uma história pra nós duas, não conta? Lá vamos as três de mãos dadas, em silêncio, levando um segredo e uma esperança no coração. Entramos para a sala de leitura. Há uma cama pequena. Carolina se a ra entre as almofadas totalmente entregue a sua dor. Abro as portas da estante e convido para entrar no mundo mágico das histórias. Marcela não vê a hora de mudar a realidade; tenta atrair a 79
atenção da coleguinha para os livros a sua frente, para o sonho, ali, ao alcance dos dedos: - Olha, Carol, os livros da Tia Edméia! Vamos escolher uma história, e ela lê pra gente. Não responde. Depois de um pesado silêncio, recomeça o desespero: - Eu quero a minha vó! Começo a ques onar: há uma sabedoria paterna. Talvez fosse melhor ter deixado a menina ver enterrar a avó; tomar consciência de todo o processo da separação. Talvez... Mas achei dolorosa demais a cena, forte demais a emoção para uma pessoinha da idade da nossa personagem. Eu quis poupar a Carolina. E já não consigo poupar nem a mim. Impotente, sento ao lado de minha companheirinha sem mais uma palavra. Começo a alisar seus longos cabelos loiros, a massagear as sobrancelhas, a fronte, os dedinhos da mão. O desespero vai-se acalmando. Vez em quando, um suspiro. De repente: - A Senhora tem vó? - Não. - E mãe? A Senhora tem mãe? - Tenho. Se a mãe da Senhora morrer e o pai casar de novo, a Senhora gosta da outra mulher? Sem esperar resposta, adianta: - Eu não deixo o meu vô casar com outra mulher. Eu quero a minha vó. A minha vó contava história pra mim. Aproveito a deixa: - Sei que ninguém conta história como a vó da gente. Mas, se você quiser, eu conto uma história. Do meu jeito. Falo, massageando os dedinhos dos pés já descalços, à vontade em cima da cama. - Vamos ver os livros! Pode por no chão? Indaga Carolina reanimada. Deixo a tarefa com as duas, enquanto vou até a cozinha rebentar pipoca. 80
Quando volto, encontro as garo nhas eufóricas no meio dos tulos: - Chapeuzinho Vermelho... Olha! - Tem Branca de Neve? - Festa no Céu!!! Surpreende Carolina. A minha vó contava essa história. Será que a sua é igual? - Vamos ver! Sentamos as três no chão. A versão que tenho é a mesma da avó. A menina voa. Chega no céu em festa, junto com a avó, pela magia da história. Carolina se ilumina. Depois de comer pipoca com guaraná, volta para casa abraçada com o livro, abraçada com a avó ressuscitada pelo milagre do amor e poder da fantasia.
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NADA DE NOVO Toca a campainha. É Patrícia. - Eu preciso falar com a Senhora. Tô com um problema. E falei: só a Tia Edméia pode me salvar. Vai falando apressada. Vejo que o assunto é urgente. Mas tenho um compromisso que também não pode esperar. Explico, adiando a escuta para o dia seguinte. Nossa Narizinho sai com o nariz menos arrebitado. Vejo que carrega um peso na alma. E eu nada posso fazer. Dia seguinte, não aparece. Coisa de adolescente. Tempestade em copo d’água, penso. Vai ver, já passou. Tanto melhor. Nos reencontramos hoje. Nada de novo. O problema não mais aflige a garota. Mas me incomoda. Procuro saber. - Eu não voltei, porque eu resolvi o problema. Tá tudo certo. É que minha mãe ia mudar pra Belo Horizonte. E eu não queria ir. Eu já perdi um ano por causa de mudança. Falei: “não vou perder outro.” Se eu mudar agora, sei que tomo bomba. Não sei nem se minha mãe consegue colégio lá pra mim este ano mais. Eu já tô na 5ª Série e tenho tudo pra passar de ano! Meu bole m não tem uma nota vermelha! Por isso, não quero mudar com a minha mãe. Mas eu não nha onde ficar. Então, pensei: só a Tia Edméia pode me salvar. Vou pedir pra morar na casa dela. Se ela me aceitar... - Aí, sua mãe desis u da mudança. - Não. Ela já foi. No outro dia cedinho. Eu fiquei na casa da minha prima. Pedi pra morar lá até o fim do ano. Ela deixou. Minha mãe concordou. Quando entrar as férias, vem me buscar.
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VARINHA MÁGICA Aqui na casa de meus pais, usamos o pá o e a varanda. As primeiras crianças que chegam se encarregam da organização: forram o piso com jornal e espalham o material. Num primeiro momento, desenham, recortam, pintam. Depois, vão-se espalhando pelo pá o com brinquedos e brincadeiras. Corro dum lado a outro, atendo solicitação dos grupos e de cada um individualmente. O livro é um brinquedo entre bolas, bonecas, carrinhos, quebra-cabeça, boizinhos de mamão. Também com aquele material as crianças brincam em grupo, em dupla e individualmente. Quem quer escutar história, escolhe o livro e vem sentar a meu lado. Seduzida por um gre ves do de fada, com uma varinha de condão, Nayara escolhe o livro Tem Uma Varinha Mágica¹⁰, de Ronaldo Simões, e vem correndo pedir: - Lê essa história pra nós! Pegamos o livro, acariciamos, lemos a capa. Por fim, entramos no mundo da fantasia. Leio: É verdade que Você quer ser um gre? Nayara não espera a resposta do menino-personagem. Com os olhos redondos brilhando, responde um grande SIM sem pensar. O menino-personagem resolveu pensar um pouquinho antes de responder. Acabou fazendo uma pergunta: - Tigre tem avô? - Só lá na Ásia, — o homem respondeu. O menino pensou mais um pouquinho e preferiu ser ele mesmo: pulou no colo do avô, enquanto o homem da varinha mágica se despedia, deixando uma grande certeza no seu coração. ¹⁰ SIMÕES, Ronaldo. Tem uma Varinha Mágica. Belo Horizonte: Lê, 1999.
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Nayara também tem um avô adorado. Fica pensa va e repete para mim a pergunta do menino ao mágico: - Tigre tem avô? Respondo com as palavras do mágico: - Só lá na Ásia. - A Ásia fica muito longe? - Do outro lado do Mundo. Respondem os colegas sem esperar minha resposta. A pequena viaja. De repente, pede: - Agora, conta a história. Sem ler. Conto. Desta vez, com minhas palavras. Quando conto que o avô levou um homem e sua varinha mágica, corrige: - Uma fada, né? Surpreendida com a reação inesperada, abro o livro e explico: - Aqui na história do Ronaldo Simões, o avô do menino conhece um homem que tem uma varinha mágica. Iara se ilumina e pergunta: - Então, se a minha mãe me der uma varinha mágica assim, eu também posso fazer igual? - Se a varinha ver pertencido a uma fada... Entro na fantasia. Quero saber o que as crianças fariam se ganhassem uma varinha mágica. - Eu ia transformar uma lâmpada. Responde Nayara sem pestanejar. - Transformar uma lâmpada!? Em quê? Pergunto admirada. - Numa lâmpada com gênio dentro. Assim, se eu perdesse a varinha, ficava com o gênio e podia pedir tudo. Conclui sabiamente. Quero saber, ainda, que pedido essa garota genial vai fazer ao Gênio dela. Mas, já outras fadinhas estão fazendo transformações que 84
eu não posso perder. Iara transforma o jardim em floresta, e a casa, em castelo. Ela é Branca de Neve. Eu sou Cinderela. Visto a fantasia e valso nos braços do príncipe. Encantada. Atenta às doze badaladas, esqueço o Gênio. Nessa brincadeira, as crianças vão desabrochando para a leitura e a escrita. Descobrem a alegria de viver pela magia da narra va, pelo poder da imaginação, pela força da amizade e convivência. Aprendem os próprios sen mentos e a forma de expressá-los. Com giz colorido deixam mensagens nos muros e passeios: Edméia, Você é o sol da minha vida. Valéria - 8 anos Edmeia, eu te amo. Você é a luz que me ilumina no meu viver. Celeste - 7anos Edméia, você ilumina o meu caminho. Gosto de você demais! Beijos, Emanuella -7anos Quando eu es ver velha e caduca nunca esquecerei a nossa amizade maulca. Lindamara - 8 anos
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HISTÓRIAS DE AVENTURA Hoje fizemos ponto na porta do Helker. Nosso companheirinho não espera no passeio como de costume. Os vizinhos não dão no cia. Só sabem que o garoto não tem aparecido para brincar nesses dias. Trouxe um livro especial para ele e decidimos chamar no portão. Quem aparece é a mãe. Conta que o filho sofreu queimaduras e não pode andar. Mas vai ver se ele consegue. Se souber que es vemos aqui, morre de paixão. Afirma. Lá vem o garoto mancando. O lado de fora da perna, em carne viva. - Hoje eu fui no Posto; o médico fez limpeza. Doeu demais da conta. Quero saber como aconteceu. Botou fogo no tambor de lixo; procedimento comum entre os moradores da cidade. O lixo queimou, o fogo apagou. Enquanto havia labareda, todos se man veram distantes. Depois, foram brincar. Helker esqueceu e encostou a perna no tambor quente. Aproveitamos para falar sobre o lixo; sobre as queimadas, a poluição. Acorda a lembrança da história O Monstro do Mar, lida pelo garoto dias atrás. Aproveita o momento para um comentário: - O monstro apareceu no mar. Ele alimentava era de lixo. Como os homens jogavam muito lixo no mar, ele foi crescendo, crescendo... A turma escuta atenta. Interfere na narra va. Dá opinião. Comenta a poluição dos córregos e rios. O assunto é familiar no grupo e desperta maior interesse por ser Pompéu cercada de rios: Paraopeba, Rio Pardo, Rio dos Peixes, Pará e São Francisco, onde costumam nadar, fazer piquenique, pescar; uma das principais atrações da região. Diversão do povo e meio de subsistência de famílias ribeirinhas. Todos querem ler o livro. O jeito é decidir u lizando uma fórmula de escolha como nas brincadeiras tradicionais. Helker con nua falando de livros. Ainda gosta das histórias de maravilha. E o livro bem ilustrado, colorido ainda o fascina. Mas, a sua preferência, 86
hoje, com doze anos de idade, cursando a 5ª Série, são as histórias de aventura e o livro com muito texto. - Eu gosto de livro é grande. Bem grande! Sabe por quê? A gente diverte mais. É engraçado, quando chega lá pelo meio, a gente entra na história e não vê nem escuta mais nada. Outro dia, eu tava lendo... Minha mãe me chamou e eu não escutei. Ela veio na sala, deu uma ordem e foi pro serviço. Quando chegou de tarde, ficou braba demais, porque eu não nha feito a tarefa. E eu não fiz porque não ouvi o que ela disse. Por isso, eu gosto de ler é de noite. Eu deito cedo só pra poder ficar lendo. É bom demais entrar na história! Ficar viajando, longe. Helker viaja. A perna já não dói tanto. E, mesmo caminhando com dificuldade, par cipa das a vidades.
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A FLOR DA FORTUNA Sete da manhã. Passo pela Rua Castelo Branco, de volta da caminhada. Rafael Augusto está no portão e vem correndo ao meu encontro. - A Senhora ainda conta história na Rua Dois de Novembro? Eu mudei. Agora, eu moro é aqui. Vem contar história pra mim! Aqui tem um lugar bom pra sentar, quer ver? Fala, me puxando para o banco, um tronco de árvore, no portão de sua casa. Não é hora. De manhãzinha, o meu compromisso é comigo. Tenho de apanhar os primeiros raios do sol que iluminam e aquecem. Tenho de respirar o ar puro e a poesia do amanhecer; tenho de sen r o infinito; escutar can ga de passarinho, mugido de vaca nos quintais, para aprender o meu silêncio e construir a minha paz; para con nuar acreditando na redenção do homem, na salvação da Humanidade. Tenho de brincar com as nuvens no céu, encontrar uma metáfora para a menina que ficou morando em mim. Não posso me perder. Mudei meu trajeto e horário de caminhada por conta da leitura na calçada de tarde. Mas uma criança quer entrar na brincadeira. E insiste: - Tem um livro comigo. Eu vou buscar. Espera aqui, tá? Não vai embora! Entra correndo e volta triunfante com o livro de história nas mãos. Entramos em O Castelo Encantado¹¹. Rafael arregala os olhos e, juntos, voamos nas asas da fantasia. Já conhece o enredo. Mesmo assim, prende a respiração cada vez que uma personagem se aproxima do castelo. Encontrada a flor da fortuna, Rafael quer recontar a história. E vai me prendendo. - Agora, preciso ir. Depois, conto mais. - Vam’brincá de roda! Fala e me dá a mão sem esperar resposta. ¹¹ Castelo Encantado. Conto popular. Coleção Vila Rica. Nova República.
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Só nós dois? Para brincar de roda é preciso mais gente. Lembro. Rafael olha para um lado, para outro, vendo se passa alguém. A mãe e a vizinha abriram o portão. Estão varrendo o passeio. O menino arrisca: - Vam’brincá de roda? Reforço o convite: - Vamos brincar de roda com o Rafael? As duas encostam a vassoura e se dão as mãos. O marido da vizinha vem chegando da padaria. Rafael pega a sua mão e, tomado de alegria: - Vam’brincá de roda, Vô? Você fica no centro. Você gosta de mim, Vô Aris des? Eu também de Você, Vô Aris des... Assim, começamos o dia, cantando e brincando de mãos dadas, numa roda que reúne três gerações, reverenciando o amor. Os primeiros trabalhadores passam e se surpreendem com a cena pouco comum. Alguns param, outros diminuem a marcha. Ninguém pode ficar indiferente. Pelo brilho dos olhos, sei que prosseguem levando na alma a lição de ternura. E vão trabalhar ouvindo o dia inteiro os versos dessa can ga tão an ga e sempre nova cantando em seus corações: Você gosta de mim, ô fulano / Eu também de você, ô fulano... porque todo mundo gosta de alguém. E necessita do perene comunicado.
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ESTÁ QUENTE, ESTÁ FRIO Estou indo para o encontro na Volta do Brejo. Viro a esquina da Rua Padre João Porto e entro na Castelo Branco. Rafael brinca com os novos coleguinhas no passeio e interrompe minha caminhada: - Conta história pra nós! Todos deixam a brincadeira e se aproximam curiosos. A turma da Andrezza está esperando. Tenho um compromisso inadiável. Mas o momento é agora. Os olhinhos já começam a brilhar. Formamos a roda. Depois de namorar os livros, o grupo escolhe a história de Maria Mazze e: Está Quente, Está Frio¹². Na primeira página, a autora apresenta a casinha no meio da floresta, mas não iden fica, de imediato, a personagem que mora na casa. Cria o suspense, abrindo o diálogo com o leitor: - Será um ga nho? - Será um cachorrinho? A turma, já dentro da história, responde em coro: - É um coelhinho! Quando Bombom, o coelhinho, joga o dente em cima do telhado, a maioria, em fase de troca, se iden fica. Cada qual tem sua história para contar. Aparece, então, o Velho da Barba Comprida e esconde o dente de Bombom. As crianças se unem ao personagem na busca, para que ele ganhe um dente novo. Procuram daqui, procuram dali. O Velho da Barba Comprida sempre brincalhão: - Está frio, Bombom. As buscas se intensificam. As crianças vão na frente de ¹² MAZZETTI, Maria. Está Quente, Está Frio. Belo Horizonte: Bakana, s/d.
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Bombom. E procuram em lugares diferentes: - Está frio. Ih! Está gelado. Entro na brincadeira. - Será que o coelhinho vai achar? Será que ele vai ganhar um dentão? - Vai! Respondem confiantes os mais velhos, que já fizeram troca de dente. Bombom procura na sacola, na barba do Velho da Barba Comprida, onde Rafael nha certeza de achar. Debaixo da primeira pedra. E nada. Os de porteirinha aberta começam a ficar apreensivos: - E se ele não achar? - Fica sem dente. - Tadinho, como é que ele vai comer cenoura? - Ih, é mesmo! Ele não vai mais poder comer cenoura! - Já sei. Diz Rafael. Ele pica ela bem picadinha com a faca. - Bobo, coelho tem faca? Coelho corta cenoura é no dente! Corrige um sabido. - Se o coelhinho não achar o dente, nós vamos puxar a barba desse velho até achar. A gente toma o dente dele e dá pro Bombom. Ameaça Rafael indignado. Apresso-me em con nuar a aventura. - Achou! — grita o Velho da Barba Comprida. - Achou! — dizem os passarinhos... Criança ganha dente duas vezes. Coelho, só uma. Você achou. Você vai ganhar outro. Mas se perder, o Velho da Barba Comprida não dá outro, não. O Velho da Barba Comprida nem passeia mais pelo telhado! Conclui o narrador. Todos respiram aliviados. - Eu vou ganhar outro, não vou? Respondo com as palavras do Velho da Barba Comprida. Criança ganha dente duas vezes. 91
- Eh! Mas se perder, não ganha mais, não; fica banguela, ou tem de usar dentadura. Explica um mais experiente. - Pra não perder, tem que escovar todo dia. Acrescenta outro. - Eu escovo todo dia de manhã cedo, depois que tomo café. Apressa em contar um que já fez a troca de dentes. - Eu escovo de manhã cedo e de noite na hora que vou deitar . - Eu escovo lá na creche. O Velho da Barba Comprida vai trazer outro pra mim, não vai? Indaga um pequenininho. A conversa con nua. A história de cada um é agora mais importante que a do coelhinho Bombom. Escuto com atenção. No ponto marcado, as crianças esperam aflitas. Duas já vieram a meu encontro. Vem chegando outra de bicicleta e fala em tom de reprovação: - A turma tá esperando não é de hoje! Encerramos com uma quadrinha de despedida e vamos saindo. Rafael faz um úl mo pedido: - Posso levar o livro do dentão pra mãezinha ler de noite pra mim?
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ME PRENDE NO CORAÇÃO Na porta da Patrícia, só ela e as crianças pequenas. Pergunto pelo outro grupo. Responde que não sabe. Peço para chamar. - Eles falaram que não vai vim mais não. Explica. Quero saber por quê. - A mãe da Taís mais do Johninho não quer deixar eles vim mais, não. Esclarece. Os outros, ela não sabe. Patrícia não me convence. Alguma briguinha por trás de tudo. Questões de ciúme, eu conheço. Finjo acreditar. Os pequenos é que ficam beneficiados. Com o grupo menor, posso dar a atenção que esta faixa etária requer. Depois da história e do emprés mo de livros, como de costume, a brincadeira. Querem brincar de Coelhinho sai da Toca. Com o grupo reduzido, a brincadeira perde a graça. Formamos três tocas com três coelhinhos. E não sobra ninguém fora. Tentam rar um coelhinho; fica uma toca vazia. Depois de várias tenta vas, decidem brincar de roda. Comunico que hoje temos menos tempo; ainda preciso encontrar com o outro grupo para saber o mo vo da desistência. Quando despeço, todos querem ir junto, menos a Patrícia. Acaba confessando estar brigada com os colegas. Não vai mais chamar ninguém: “Belém, belém, nunca mais de bem; no meu passeio, não pisa ninguém”. Respeito o sen mento e a decisão da garota. Busco, porém, uma forma de con nuar com todos. Só encontro uma saída: criar mais dois pontos. Neste caso, con nuamos os encontos uma vez por semana com o tempo dividido entre uma turma e outra, ou cada semana visito um local. Vamos ver a sugestão dos outros grupos. Proponho. Agora, vamos primeiro na porta da Taís, na rua de cima. Fica um pouco distante. Sugerem ir cantando a nova can ga, para acabar de aprender. Liliane quer escrever a quadrinha no caderno. Camila vai ensinar para a mãe cantar com os meninos domingo na Pastoral da 93
Criança. Vontade do grupo é lei. Lá vamos nós de braços dados cantando rua afora: Tô preso, meu bem, tô preso, tô preso por um cordão; me solta, meu bem, me solta, me prende no coração. A cantoria atrai a atenção dos moradores e passantes. Adultos vêm para o portão; crianças saem acompanhando. Vamos engrossando o cordão. Na porta da Taís, paramos para contar história e trocar livros. A menina fica radiante com a surpresa; os vizinhos vêm se juntar a nós. Demoro pouco. Não posso deixar de passar também na casa da Andrezza, explico. Todos compreendem. Camila se oferece para ir de bicicleta na frente, avisar a turma. Assim, eles já reúnem. Sobra mais tempo pra gente brincar. Conclui. Cantamos a can ga de despedida. Mas ninguém se despede. De braços dados, tomamos conta da rua. O grupo da Andrezza vem ao nosso encontro. Já é tarde. A noite apaga o sol e acende a lua no céu. A lua cheia, que nasceu pra serenata, não pode ficar parada. Quando viramos a esquina e descemos a rua, as crianças observam: - A lua tá andando com a gente. Olha! Paramos. E a lua também para. Ficamos contemplando os encantos da imensa bola de luz. E todo mundo fica encantado. Aproveito para contar a lenda da Moça Lua. Depois, seguimos cantando: Me solta, meu bem, me solta/ me prende no coração. A Moça Lua fica presa em nossos corações. E, certamente, cada um de nós ficou preso no coração da Moça Lua, pois quando con nuamos a caminhada, ela nos acompanha brilhando feito os olhos das crianças.
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