[publicação] Quem somos nós

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“Quem somos nós?” é um projeto desenvolvido pelo Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC), patrocinado pela Petrobras, por meio do Programa Desenvolvimento e Cidadania, cujo objetivo central é realizar oficinas com mulheres das penitenciárias femininas de São Paulo sobre os temas: Gênero, Violência e Cidadania. Desde 2007, o projeto atua nas penitenciárias femininas de regime fechado Sant’Ana e Capital, além do Centro de Atendimento Hospitalar da Mulher Presa (CAHMP) e do Centro Hospitalar do Sistema Penitenciário (CHSP), centros estes em que as mulheres que tive-

ram seus filhos no cárcere ficam com eles até os 6 meses de idade. Ao final de cada ano do projeto, organizamos uma publicação com o intuito de divulgar resultados, conquistas e desafios. Com esta segunda publicação, pretendemos dar voz às mulheres presas, compartilhar nossas experiências e visões, proporcionar uma reflexão acerca das temáticas trabalhadas, sensibilizar a sociedade para as questões relacionadas ao cárcere, bem como enfatizar a importância do exercício da cidadania na garantia dos direitos humanos.


créditos pg | 30

indicação de leitura pg | 29

avaliação pg | 24

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Por fim, agradecemos especialmente às mulheres que generosamente aceitaram dar seus depoimentos de vida para a realização desta cartilha, confiando em nós e em nosso trabalho, enfrentando o desafio de retomar e contar suas histórias – frequentemente perpassadas por diversos sofrimentos –, de modo que elas pudessem ser lidas por outras pessoas e, assim, suscitar reflexões e produzir novos sentidos.

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Nestes encontros, aprendemos com elas a arte de resistir diante de situações tão adversas, mantendo viva a abertura para o novo, a crença em um mundo melhor. Estar com elas e conhecer suas histórias nos dá força para continuar e, mais do que isto, faz com que nos coloquemos de alguma forma diante do mundo do qual fazemos parte e tomemos uma posição, sem nos endurecermos nem nos cegarmos. O trabalho também contou com o apoio de instituições onde atuamos

e de seus funcionários (agentes penitenciários, diretores etc.), a quem agradecemos pelo interesse e recepção ao nosso projeto. Sem isso não teríamos realizado nosso trabalho nem nos aproximado ainda mais das questões que envolvem o sistema penitenciário como um todo e sua relação complexa com a sociedade em que vivemos.

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mulheres com as quais estabelecemos vínculos de cumplicidade amistosa, entrega mútua, reconhecimento e respeito durante as oficinas. Pudemos juntas, frequentemente, resgatar o prazer de estarmos com os outros e sermos quem somos.

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Agradecemos a todas as

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Agradecimento


Redescobrindo Histórias

Introdução

O projeto “Quem somos nós?” encerra seu segundo ano

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de trabalho. Durante esse período de atuação dentro do sistema penitenciário feminino, construímos novos ideais e objetivos, além de inúmeras conquistas e desafios que surgiram ao longo de uma vivência próxima e intensa com algumas mulheres presas. No primeiro ano, finalizamos nossa atuação com uma publicação cujo principal objetivo foi descrever a metodologia de trabalho e a maneira como tratamos dos temas centrais do projeto: gênero, violência e cidadania. Já para esta nova edição, a grande meta foi potencializar a força dessas mulheres de uma

maneira que suas vozes conseguissem transpor este grande obstáculo que são os muros da prisão. Qual a melhor maneira de fazer isso? Durante o trabalho realizado em grupos ou individualmente, na aplicação de questionários, muitas histórias de vida são contadas. Histórias ricas em detalhes e sentimentos. São essas trajetórias de vida que nos orientam para discutirmos, nos grupos, as questões que acreditamos pertinentes e relevantes para contribuirmos com a reflexão e, com isso, possibilitar que elas se reconheçam como mulheres e cidadãs. Em um universo de aproximadamente 850 mulheres participantes

do projeto, obviamente (e infelizmente) não foi possível trazer para esta publicação todas as histórias que gostaríamos. Por isso, depois de um cuidadoso trabalho de seleção, escolhemos trechos de relatos de dez mulheres que estão presas na Penitenciária Feminina de Sant’Ana. São trechos de avaliações escritas que aplicamos no fim de cada ciclo de seis encontros, realizados nas quatro penitenciárias, e também trechos de cartas que a equipe do projeto recebe das mulheres participantes dos grupos que, mesmo sendo experiências únicas, representam a realidade de cada uma e de muitas outras. Acreditamos também que, ao trabalharmos com depoimentos, conseguiremos trazer um “rosto”, uma identidade a cada relato, quebrando o padrão de que a prisão destitui o cidadão de sua singularidade para torná-lo apenas um número. Para escrever as narrativas, realizamos conversas individuais a partir de um roteiro baseado nos mesmos temas tratados nas oficinas, sempre com a preocupação de que o registro fosse o mais fiel possível aos relatos. Sabemos que contar uma passagem de nossa vida nos faz reviver alguns sentimentos e, mais do que isso, nos permite atribuir novos significados a eles. Acreditamos ainda que as mulheres selecionadas possam ter tido um possível momento especial, de confrontar seu passado de maneira diferente e de se revelar, mais uma vez contribuindo para nosso conhecimento a respeito delas.

Com o intuito de preservar as mulheres de qualquer tipo de julgamento ou constrangimento, seus nomes verdadeiros foram substituídos por fictícios. Os capítulos foram separados pelas mesmas temáticas que norteiam o projeto: gênero (Que mulheres somos: reconhecendo-se),violência (A violência no cárcere. Só no cárcere?) e cidadania (Cidadão, ser e não ser), além da vida dentro da prisão (Por detrás dos muros) e um capítulo específico com os resultados do projeto (Amplificando Vozes). Em todos eles, os relatos são intercalados com reflexões. Esta é a mesma forma que trabalhamos nas atividades com os grupos nas penitenciárias. E do mesmo jeito que acontece nos grupos, essa divisão é apenas formal, pois há uma intensa relação entre as temáticas que aparecem nos relatos, na construção do nosso texto e que perpassam a vida destas mulheres de maneira simultânea. Sabemos que as experiências diferem de indivíduo para indivíduo e que cada história é singular, mas o que esperamos é que haja reconhecimento, identificação por parte de todas(os) as(os) leitoras(es), e que tudo isso desperte a reflexão sobre quem são como cidadãos, como seres humanos. Neste momento, estamos discutindo os temas gênero, violência e cidadania, os quais orientam o nosso trabalho no cárcere, mas estas histórias se repetem tanto dentro como fora da prisão.


Por de trás dos muros

Só quem observa, pode as escutar... Que por falta de oportunidades... Vozes embargadas, solitárias, abandonadas... Com choros reprimidos por medo de tentar ser ouvido por aqueles que podem mudar nosso destino Onde vivemos, sem ser detidas, confundidas Somos três mil, se um terço fosse ouvida Esperanças não seriam contidas Muitos talentos descobririam haveria mais alegrias, mais vidas menos lágrimas e mais, muito mais equilíbrio”.

portões abrindo e fechando, pessoas cantando, conversando e muita gritaria. Por detrás dos muros, percebemos que há muito o que conhecer entre tantas mulheres que se encontram privadas de liberdade. Sentimentos, sonhos, contradições, saudades, medo, revolta e esperança se misturam dia após dia neste lugar. “Somente quem se encontra privado da liberdade pode explicar o valor que ela tem. Quando se está distante, se encontra extremamente perdido em meio à multidão. Quando você olha para os lados, somente encontra a solidão e o desespero. Que falsa morada! Em paredes de concreto, tudo aquilo que te fazia sorrir se escondeu atrás de uma muralha e sobrou só a dor e a saudade que hoje no meu coração habita. Mas como guerreira jamais desistirei de lutar, em meio as dificuldades, meu objetivo é seguir adiante sem ter medo de fracassar”. (Isabel)

(Grito Silencioso – Rosa)

Chegamos à penitenciária, portas grandes e pesadas. Agentes de segurança abrem as trancas e a equipe do projeto Quem somos nós? caminha ao encontro de rostos ainda desconhecidos. É uma mistura de sentimentos. Entre portões que vão se fechando ao entrar, o medo do desconhecido insiste em continuar. Ouvimos barulhos de

Quando iniciamos as oficinas, deparamo-nos com uma realidade pouco conhecida, em que existem mulheres com histórias e experiências diferentes. Mulheres que vieram de algum lugar da cidade ou do estado de São Paulo, e até mesmo de outros estados e países. Mulheres com jeitos, criações, hábitos, idade, raça e orientação sexual diferentes que, por alguma razão, estão presas, mas que não deixaram de fazer parte desta sociedade.

As informações que são transmitidas sobre a prisão levam-nos a pensar a partir do senso comum segundo o qual todas as pessoas presas são perigosas e sem coração, e que merecem pagar pelo que fizeram. “Antes de ser presa, eu achava que bandido tinha que morrer. Depois de conhecê-las, independentemente do que fizeram, são seres humanos, eu passei a respeitar a vida”. (Simone) “Muitos têm preconceitos de nós presas, a maioria acha que somos animais por estarmos aqui, mas nem todos sabem a dificuldade que passamos”. (trecho de avaliação)

Grande parte das pessoas pensam desta forma. Este tipo de pensamento surge até entre algumas mulheres presas que anteriormente não tiveram contato com a prisão. O senso comum proporciona uma visão negativa sobre as pessoas que se encontram em privação de liberdade, e, muitas vezes, impede nossa aproximação com esta realidade a fim de conhecê-la melhor. O início de um grupo novo é sempre uma surpresa para a equipe, pois não sabemos como vamos ser recebidas, apenas sabemos que entre as diversas inscrições realizadas pelas mulheres para participar,

Prisao

“Ouço vozes diversas, indefinidas Vozes não ouvidas não atendidas Com o curso de vida sofrida Do fundo da galeria, ouço-as sem cessar.


O termo “senhora”, ao se referir a cada uma de nós da equipe, parece uma fala natural, quase involuntária, que faz distinção de quem está de “calça amarela” (presas) para quem está de “calça azul” (funcionários). Mas não queremos ter este tipo de relação com as mulheres, queremos, com elas, descobrir Quem somos nós.... “Não procuram saber o motivo, o porquê e em que condições você estava. Você errou e tem que pagar. Não pensam que amanhã pode ser alguém da própria família deles. Está aberto a qualquer família, independente da condição social, status. Poder ser alguém que teve carência afetiva, falta de compreensão, falta de amor”... (Joana)

Em meio aos diálogos e atividades, percebemos que há diversos fatores que levam uma pessoa à prisão. Não podemos generalizar e simplificar como se fosse uma questão de caráter, pois todos estão sujeitos a erros e acertos. Precisamos, sim, considerar que a grande maioria dessas mulheres encarceradas pertence a uma massa da população empobrecida de nosso País.

Prisao

“... a prisão tem que fazer a gente se sentir humana e não um lixo”. (Ana)

“... levo a esperança de um dia ter uma sociedade mais justa, que os homens não precisarão mais de grades para dividir os ‘bons’ e os ‘maus’ na visão ‘deles’”.(trecho de avaliação)

São mulheres que não se conformam em estar na prisão e serem tratadas apenas como criminosas e não como pessoas. Elas nos contam que para suportar o dia a dia buscam diversas maneiras para sobreviver. Cada uma à sua maneira, cada uma do seu jeito, procurando coisas para passar o tempo, muitas vezes “rindo para não chorar”. “Quando entrei aqui me senti mal. Tinha a impressão de estar perdida, e não ter escapatória. Eu não conseguia achar um ponto de fuga. Eu não queria me misturar, queria ficar só na cela, porque nunca fui do crime. Fiquei em pânico, era sufocante, eu sentia medo, queria sair daqui. Foi o mesmo que jogar uma uva no meio de espinhos. No começo ela fica machucada, mas depois as sementes caem na terra e floresce no meio dos espinhos”. (Simone) “O cotidiano? Arrumar cela, ela é toda emperiquitada... vasos... Almoço, faço algum trabalho de manhã. Mas na maior parte do dia não dá para saber como vai ser. Sempre tem coisa nova”. (Joana)

O cotidiano é repleto de sentimentos e de momentos marcantes, e é por este motivo que, durante as oficinas, compartilhamos alguns desses sentimentos. Sempre quando chegamos ao pavilhão para o início das atividades perguntamos a elas: “Como foi a sua semana?”. E a resposta muitas vezes depende de como foi o dia de visita. “Meu pai, minha mãe e meu irmão vêm me visitar de 15 em 15 dias. Eles ficam muito abalados quando estão aqui e me pedem para eu nunca mais ir no embalo de nin-

guém. Quando eles vêm eu tento me manter bem, mas é difícil. A melhor coisa para mim é que eles me abraçam (o que não acontecia antes). E ouvir a voz deles também é muito bom”. (Alice)

É muito importante para estas mulheres receberem visitas, pois além de representar um momento em que elas podem “matar a saudade”, também proporcionam um contato com as pessoas que estão fora da prisão, com pessoas queridas, com suas referências do outro lado do muro e possibilitam ainda a reflexão sobre a própria vida. Contudo, sabemos que várias mulheres presas não podem contar com o apoio de suas visitas. E quando questionamos quais são esses motivos, elas nos contam que podem ser os mais diversos: porque o marido/companheiro a abandonou quando foi presa, ou porque ele também está preso; porque as pessoas moram longe e não têm condições de irem visitá-las; porque a família não

aceitou e/ou não compreendeu o motivo que a levou a ser presa. E ainda há casos em que a família gostaria de visitá-las, mas algumas mulheres não querem ser vistas por detrás dos muros. Independentemente de receber visita ou não, todas as mulheres precisam enfrentar o cotidiano do cárcere. São obrigadas a conviver com diversas pessoas dentro da prisão e não sabem ao certo com quem estão lidando. A aproximação é difícil, são muitas desconfianças, elas dizem que não é fácil ter amizades verdadeiras neste lugar. Os assuntos normalmente são sobre a rotina lá de dentro, e contraditoriamente, também declaram que algumas vezes podem contam com um ombro para desabafar, encontrando momentos de solidariedade e companheirismo. “... não tenho visitas, sedex, jumbo. Todo dia conto com alguém. Tem pessoas nem aí, mas tem a bondade também. Acolho todo mundo todo dia e sou acolhida também”. (Joana)

Na sociedade há regras a serem seguidas. Assim como fora, dentro da prisão é preciso seguir “à risca” o que é imposto: Horário para contagem: “Acordam a gente bem cedo de manhã, batendo na boqueta (pequena abertura na porta da cela) e mandando a gente se mexer para ver se não estamos mortas”. Horário do café: “É servido um pão e uma caneca de café com leite às 8h da manhã e depois somente

vamos comer às 12h quando é servido o almoço”. Horário para almoçar: “As mulheres pagam (distribuir) a bóia ao meio dia, e enquanto elas estão distribuindo o bandeco (recipiente onde a refeição é servida), ninguém pode passar pelos corredores”. Horário do lanche: “Lá para as três horas da tarde, vem um pãozinho e um café com leite”. Horário para jantar: “A última comida é servida às cinco horas (tarde) e daí quem não tem o que comer depois, vai dormir para esquecer da fome”. Além dos horários, também é necessário ter bom comportamento e respeito aos funcionários, e saber que dentro de uma prisão também existem algumas regras criadas entre as próprias mulheres, como por exemplo, trocar cigarros por outros objetos, utilizando-os como moeda/dinheiro; algumas mulheres são responsáveis pela limpeza e funcionamento dos pavilhões, como entregar requisições, entregar jumbos (as “faxinas”) etc.; não jogar “bituca” de cigarro nos corredores; entre outras. Também algumas gírias e dizeres são próprios da prisão como: bandeco (recipiente onde a refeição é servida), bóia (comida), tranca (fechamento das celas), menina veneno (pessoa que não recebe visita), dar um salve (comunicar, informar), ripada (quando é sentenciada), entre outros. Com tantas informações, percebemos que somente quem está dia após dia dentro da prisão sabe realmente o que acontece neste lugar. Ao

entrar, algumas dificuldades e necessidades são visíveis e podem ser expressas pelas mulheres em momentos como: “Quando cheguei fiquei na inclusão de RO uma noite, lá eles te dão o uniforme, um colchão, um copo, uma colher, uma pasta de dente, uma escova e um sabonete”. (Simone) “Dentro da penitenciária não recebo visita, porque meu marido foi preso pouco tempo depois de mim. Passo por muitas necessidades, principalmente fome, porque a comida é muito pouca.” (Carolina) “Passo necessidades aqui. Principalmente quanto à alimentação. Eu não recebo alimentos de fora. Meu marido é assalariado, ele tem as despesas dele e ainda visita meus filhos que nem são dele, todos os sábados. Ele também vem aqui todos os fins de semana me ver e meus filhos me escrevem”... (Simone)

Prisao

podemos selecionar apenas vinte ou vinte e cinco delas para compor cada grupo. Quando elas começam a chegar, a prisão deixa de ser aquele lugar frio e cheio de grades e passa a ter rostos e histórias.


“Trabalho no jurídico e busco reivindicar os pedidos das demais mulheres. Aqui há muitas mulheres que também querem mudar, mas é necessário ter conhecimento.” (Carolina) “O que precisa dentro de uma prisão é ter coisas que pudessem reabilitar, fazer pensar. O fato de estar presa não quer dizer que a vida acabou”... (Ana) “Aprendemos no curso sobre direitos, deveres, leis, amor, expressão do ser humano, de uma forma descontraída”. (trecho de avaliação)

Nesta “cidade”, além das mulheres presas, também convivem outras pessoas que fazem parte do sistema – os funcionários. Pessoas que são pouco citadas, mas que durante aquele período de trabalho estão por detrás dos muros vivendo a dinâmica existente na prisão. “Há agentes (penitenciários) que tratam a gente de igual para igual, são humanos, tratam com respeito, como gente. Mas também têm outros que tratam como animais... Mas a maioria não concorda com o sistema, gostariam que fosse diferente, que tivesse mais projetos pras presas participarem”. (Simone)

São eles (os agentes penitenciários) que abrem e fecham as portas, que nos ajudam a chamar as mulheres para participarem das oficinas. São pessoas que veem a equipe com a camiseta es-

crita Quem somos nós? e questionam o que fazemos. Perguntam, sorriem, desconfiam. Muitas vezes não entendem o que de fato estamos fazendo naquele lugar. Um dia, quando estávamos saindo da penitenciária, um desses funcionários nos questionou: “Vejo vocês aqui, e um dia fui falar para a minha família de vocês, mas não sabia explicar o que vocês fazem. Vocês podem me contar um pouquinho para eu explicar para eles?”

Sempre que há interesse em conhecer melhor o trabalho, temos a oportunidade de explicar e esclarecer sobre o que fazemos, e percebemos que muitos concordam e se tornam favoráveis à nossa ação. Outros acham estranho nosso interesse em discutir e refletir sobre a vida na prisão,

mas a maioria se sensibiliza, colabora, facilita e se interessa pelo trabalho. Entre os sentimentos e conflitos de emoções que encontramos, a frase mais ouvida dentro da prisão é: “Eu quero minha liberdade”. A palavra liberdade também é expressa por meio de alguns nomes que são dados pelas mulheres aos seus grupos: “Liberdade”, “Em busca da liberdade”, “Salto à liberdade”, “Guerreiras em busca da liberdade”, “O dom da liberdade de cidadãs que nunca desistem e fazem acontecer”, entre outros.

Prisao

E nos perguntamos: Será que só no momento em que se está privado de liberdade é que sentimos falta dela? Mas o que significa esta palavra? Realmente é uma pergunta difícil de ser respondida, pois ela não está apenas relacionada ao direito de ir e vir, mas se refere a uma condição humana.

“Crescer como ser humano, amadurecer ideais, almejar uma liberdade tão grande, a interior. Pois sem liberdade o ser humano se deprime, se asfixia, perde o sentido existen-

cial. Sem liberdade, ou ele se destrói ou destrói os outros”... (Patrícia)

Para muitas, a prisão, além de ser um castigo contra o corpo, também pode aprisionar a alma, a mente e o coração. E como não deixar que as paredes, as grades e os muros altos endureçam, brutalizem todas as pessoas (mulheres e funcionários) que estão dentro da prisão? “Aqui, mais um dia se passa e outra tranca que se fecha. Vejo, está escurecendo, quando me vejo, estou só com grades na minha cela. Amanhece o dia. Ando, procuro, mas não vejo nada aqui, só mulheres, desce e sobe nas escadas, é difícil, todo dia a mesma coisa, gritaria, falação. Ninguém merece. Quero ir embora cuidar dos meus filhos, construir uma família, trabalhar e terminar meus estudos”. (Isabel)

Um dia será necessário recomeçar. O tempo na prisão, por mais que seja lento, terá um fim, e essas mulheres sonham todos os dias com este momento: a saída, a liberdade. Algumas sabem que vão reencontrar seus filhos, sua família, mas mesmo em meio a algumas certezas, há muitas dúvidas de como será o futuro para a maioria delas.

“Penso que quando uma pessoa sai da penitenciária, após ter pago por seus erros, poderia ter uma chance de acertar, de ter uma nova vida, com uma profissão e oportunidade de emprego, isso lhe daria pelo menos uma chance de escolha, isto é, dois caminhos, porque na maioria das vezes o caminho é único e difícil”. Enquanto estamos pagando por nossos erros só nos restam dúvidas sobre o futuro”. (Letícia)

Prisao

A partir das conversas nas oficinas, temos a oportunidade de compreender melhor essas mulheres. Em meio às atividades lúdicas e alegres, trocamos experiências de vida, informações, conhecimentos e percebemos o quanto é precioso poder contribuir com momentos de reflexão sobre os direitos enquanto cidadãs, mulheres, mães e, naquele momento, como presas.


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GĂŞnero


: s o m o S s e r e h l e u S M o e d n Qu e c e h n o C ) e (R Falar sobre mulher significa

falar sobre algo íntimo, já conhecido por muitas de nós. Mas como falar de gênero dentro das penitenciárias femininas de São Paulo? O projeto Quem somos nós? faz esta reflexão e revela a importância de se discutir a condição da mulher, especialmente da mulher presa, e sua complexidade no que diz respeito aos seus direitos, à relação com a família, à orientação sexual, entre outras. No início, quando as mulheres chegavam às oficinas do projeto Quem somos nós?, percebemos que muitas delas estavam retraídas, tímidas e receosas, com uma sobrecarga de sentimentos muitas vezes abafados e sufocados no dia a dia. Talvez por medo de serem avaliadas e julgadas novamente por outras pessoas. Algumas delas revelavam estar se sentindo sozinhas dentro de suas celas, apenas com lembranças que inúmeras vezes não podem ser compartilhadas:

“Ser mulher é um conjunto. Aprendi a usar tudo isso. Tem mulher que acha que ser mulher é usar a beleza. Eu acho que é ser forte, é saber, é batalhar por que quer, seguir um ideal. Inteligência, sabedoria, amor, carinho. Agora uso mais a inteligência. Antes usava mais a beleza”. (Joana) Observamos que na oficina voltada ao tema gênero, as mulheres falam mais sobre si, trocam experiências, se reconhecem e se descobrem dentro de uma realidade que é do grupo. “Nós debatemos assuntos relacionados à sociedade e aos problemas que nela há. O que podemos fazer, e como nossa união e opinião também são válidas, pois muitos pensam: ’já somos presas, não podemos expressar o que pensamos”. (Trechos da avaliação) “Estava pesando demais e me pediram para arrancar as fotos dos meus filhos da cela, toda vez que os via, chorava.” (Rose)

E esta tarefa é difícil. Narrar episódios dolorosos e, em alguns casos, mantidos em segredo por longos períodos requer um espaço protegido de escuta e cumplicidade. Cada vez que uma historia é contada, percebe-se algo novo, algo que estava na história, mas que não tinha sido visto ou valorizado. As oficinas possibilitam este espaço de contar, recontar, ouvir, se comover e reconstruir possibilidades. O primeiro contato com este tema aproxima as mulheres de suas realidades, faz com que elas contem parte de suas histórias. Em seguida, as oficinas oferecem instrumentos para o reconhecimento da violência que, às vezes, suscitam o desejo de mudança, e elas começam a trilhar caminhos e estratégias de resistência.

“Aqui dentro, sabonete e sabão em pó nem sempre vem, só de vez em quando, porque quando vem é de doação. A penitenciária mesmo só dá alimentação. (...) precisei arrumar tudo por aqui, absorvente, coisas... Então comecei a limpar a cela das pessoas, perguntar se tinha alguém que precisava que limpasse a cela”. (Simone)

A preocupação das mulheres não se limita aos muros da prisão. Vai além disso, pois as mulheres que são mães, e a maioria delas são, preocupam-se por não saber com quem estão seus filhos. Elas têm medo de perder a guarda, medo de como eles possam estar sendo educados, medo de como os filhos vão reagir, quando estiverem maiores, ao saber que elas estiveram presas etc. “Dentro da prisão feminina a maioria das mulheres sofre por causa de seus filhos e por mais que as pessoas vão endurecendo, quando se fala em filhos é diferente. Acaba sendo dois olhares: um radical e outro humano”. (Carolina)

“De tudo o que eu mais gostei foi principalmente sobre a parte de violência contra a mulher. Eu não sabia, por exemplo, a respeito da lei Maria da Penha e aqui descobri. Então, são pequenos gestos que nos fazem sentir ainda membros da sociedade”.(trechos da avaliação) “Convivi com o pai do meu filho por dez anos e nos últimos anos eu sofri muito porque ele me batia. Não conhecia ninguém aqui em São Paulo, me sentia sozinha, até o dia em que tomei uma decisão e não foi fácil começar a vida de novo.” (Alice)

Este é uns dos temas que inquieta as mulheres, ainda que a responsabilidade dos filhos não seja só delas, mas também dos homens e da sociedade. Ainda hoje, em nossa cultura, ser mulher é quase sinônimo de ser mãe, cabendo a ela toda a responsabilidade sobre os filhos.

As discussões e as contribuições das mulheres giram em torno de problemas do dia a dia, como saúde e questões específicas das mulheres, falta de produtos de higiene pessoal, ginecologistas, exames de mamografia, exame papanicolau, entre outros.

“Não escolhi ter minha filha. Aconteceu. Eu não planejava... Eu não me via como mãe. Me surpreendi. Saiu de mim? Pensei. Não acredito. Estranhei no começo. E amei ela desde o primeiro momento”. Sobre o pai da minha filha: só serviu como reprodutor. Ela não tem raiva dele e ele não transmite raiva de sua filha”.

O direito de escolher ter filhos ou não dependerá também de quanto as mulheres já conseguem ou não negociar com seus companheiros o uso de métodos contraceptivos, além do fato de que costumamos reagir com estranhamento às mulheres que passaram a não desejá-los, a não tê-los. “Todos os temas são interessantes e nos ajudam a enxergar o nosso papel diante de uma sociedade tão machista e preconceituosa (...) você aprende a se valorizar mais como ser humano (...)”.(Trecho da avaliação)

Com isso, observamos que inúmeras mulheres presas sofrem com a separação de seus filhos, importam-se com o bem-estar e a segurança deles, e por não estarem por perto, temem que o vínculo que têm com eles seja prejudicado no período em que estão presas, pois não são raros os casos em que elas ficam por longos períodos sem receber visitas, e mesmo quando as recebem, a maioria são de outras mulheres e não de seus maridos ou companheiros. “A única pessoa que vem me ver é a minha cunhada, mas é melhor quando ela não vem porque a dor é muito grande. Meu filho nunca veio porque não tem ninguém para trazêlo, faz um ano e cinco meses que não vejo ele”. (Alice.)

As dificuldades em vê-los são inúmeras: crianças e adolescentes que dependem dos adultos para trazê-los; condições financeiras ou distância entre as penitenciárias e os bairros, as cidades, os estados ou até entre os países de origem, e também as dificuldades do próprio sistema,


Há mulheres que se privam da visita dos filhos para que eles não tenham a experiência de entrar em uma prisão, o que muitas vezes pode ser humilhante. No entanto, este vínculo e esta preocupação com os filhos, ao mesmo tempo em que geram dor pela insegurança e pela saudade, também representam laços que as mantêm ligadas às partes de suas vidas fora da prisão, e se expressam em força e esperança para enfrentar a vida no cárcere. Em nossas discussões, muitas delas revelam que foram criadas só por mulheres, geralmente por suas mães, irmãs mais velhas, tias vizinhas, entre outras, e que hoje, de alguma forma, repetem a mesma historia: cuidam sozinhas de seus filhos e são provedoras de seus lares.

Gênero

“Fui criada sem pai. Minha mãe nunca me criou para ter raiva. Ela cria minha filha assim também. Aceitar as escolhas sabendo que ele [o pai de sua filha e seu pai] vai colher depois. Meu pai sumiu quando eu tinha 7 anos. Não tive mais notícias. Depois ele voltou em 2006 e ficou 4 dias em casa. Depois saiu de novo. Ele batia muito em mim e em minha mãe. Ele tentou matar ela. Ela perdeu o bebê que estava esperando...”.(Joana)

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São diversos os entendimentos possíveis a partir das oficinas sobre as vivências da condição femi-

nina. Ouvimos os mais variados relatos, que agregam sentimentos e emoções de raiva, orgulho, medo, alegria, entre outros, acerca do que significa ser mulher hoje. Os nossos questionamentos aos grupos relacionam-se ao significado de ser mulher na sociedade e em que momentos elas identificam como isso faz diferença em suas vidas: “Ser mulher fez diferença, diferenças boas e diferenças ruins. Foi mais difícil conseguir emprego, passar pelo preconceito de ter de mostrar que você é capaz. Mas também ajudou porque na sociedade acham que a mulher pensa bastante, que é mais inteligente. E mulher é mesmo mais inteligente, né? (risos). Gosto de ser mulher, ser mãe”. (Simone)

Falar sobre preconceitos nas oficinas significa respeitar as diferenças, desconstruir papéis tidos como referenciais e, assim, criar um espaço propício à revelação dos preconceitos por elas sofridos. Durante as discussões, algumas mulheres revelam sentir medo, culpa ou orgulho por suas orientações sexuais, que são diversas dentro da penitenciária feminina. Algumas delas se identificam com o caráter que atribuímos normalmente aos homens e se comportam, falam, vestem-se e trocam seus verdadeiros nomes por nomes masculinos e identificam-se com estes papéis. (A pessoa ideal) “Se aplica também à mulher. Mas convivência com mulher é mais difícil. Tem TPM, falação, perfeição, cobranças a mais... Eu acho possível também amar alguém do mesmo sexo”. (Joana)

Conhecer a história do cotidiano destas mulheres

significa conhecer experiências marcantes. E isso se dá também pela violência de gênero que muitas já vivenciaram ou conheceram outras mulheres cuja trajetória de sofrimentos e de agressão está relacionada ao fato de ser mulher nesta sociedade. Clarice mostrou as marcas das facadas e queimaduras pelo corpo todo feitas pelo primeiro marido. Contou que seu marido chegava alcoolizado em casa, a espancava e a agredia verbalmente. Ela nunca conseguia reagir, protegia o rosto com as mãos das coronhadas e dos ataques. Assim como Clarice, muitas mulheres contam que depois de serem agredidas tiveram medo e encontraram dificuldades em obter informações de como fazer as denúncias. E mesmo quando procuram atendimento em serviços diversos – hospitais, delegacias, entre outros, não raras vezes passam por constrangimentos e descaso. “Acho que minha mãe tentou denunciar (...) É meio complicado. Pra fazer queixa de violência doméstica tem que estar com hematomas. Tem que provar. Vão em casa, se não tiver o agressor não voltam. O descaso sobre isso é muito grande ainda (...) Vi que minha mãe se acabou, perdeu a vida, a beleza. Ela era tão bonita quando era mais nova. Mas vieram os filhos, apanhou muito (...) Não quero perder a juventude”. (Joana.)

Ao ouvirmos nas oficinas que a desigualdade entre homens e mulheres já não existe mais, isso pode significar que algumas mudanças ocorreram, mas é preciso lembrar que ainda há inúmeros casos de violência doméstica ou relacional.

Não é raro hoje encontrarmos apenas mulheres como chefes de família. Afirmar que a desigualdade existe significa dizer que ela se manifesta hoje de diferentes formas. Reconhecê-las é uma maneira de buscar combatê-la, mas também é um grande desafio. Não somente porque é dolorido identificar situações em que somos tratadas como desiguais, como também porque nos depararmos com situações de desigualdade em relação ao homem é imobilizador e discriminatório. “A única vez que fui registrada eu trabalhava como recepcionista em uma escola de informática. Ganhava R$400,00, mas o meu patrão me fez uma proposta indecente para eu ter um salário melhor e então tive que sair do emprego”. (Ana)

No decorrer das discussões, as mulheres começam a relembrar situações antes não reconhecidas como violência de gênero. Muitas vezes essa violência é provocada por pessoas de quem gostamos ou por quem sentimos desejo. Exemplo disso é a atração que os homens poderosos, envolvidos com o crime, podem exercer. Neste caso, a atração é muito maior do que aquela exercida por homens simples, com empregos formais, ainda que com o primeiro sejam maiores os riscos relacionados às situações violentas e aos problemas se comparado ao segundo. A questão de gênero está intimamente ligada à questão do poder. Ambas se expressam no cotidiano dessas mulheres, que oscilam entre a subserviência e o desejo de reconhecimento e poder. O difícil é reconhecer esses sentimentos e os caminhos aos quais eles nos levam.

“Tinha 15 anos, já usava drogas e ele era trabalhador, “Zé povinho”, família legal. Condição de vida melhor”. (Joana) “O tráfico é lugar de macho. Os grandes traficantes são homens, porque os homens não ficam com briguinhas como as mulheres, quando precisa resolver algo, eles não têm medo de matar. Eu era muito respeitada como eles (...)”. (Carolina)

Mas hoje muitas mulheres já não aceitam viver ou assistir a outras mulheres vivendo situações de desigualdade, e algumas se fecham para relacionamentos: “Casei por conveniência. Sempre tive medo de ser sentimental igual minha mãe. Gostar para mim era sinônimo de submissão. A mesma mão que dava carinho depois batia”. (Clarice)

Algumas não acreditam que possa haver outros significados em ser mulher, e que eles possam ser até positivos. Outras procuram inverter os lugares de quem pode mais e de quem pode menos, devolvendo na mesma moeda as ofensas, as traições, as humilhações.

O que não nos perguntamos é por que não podemos ter uma sociedade em que os homens e as mulheres possam ter poder sem que ninguém seja mais do que ninguém, para não repetirmos as mesmas ações que só nos trouxeram sofrimentos? Por fim, as questões de gênero discutidas durante as oficinas não têm nada de novo ou de diferente para as mulheres, mas tem agravantes para as que estão presas. O possível é rever valores, amores e sonhos, o possível é planejar o recomeço, mas essa não é uma tarefa simples para ninguém. Menos fácil ainda para essas mulheres marcadas pelo cárcere e pela desigualdade social, que esperam todos os dias, ansiosamente, pela liberdade. Cada detalhe da vida fora dos muros causa-lhes saudades, despertam-lhes lembranças e, ao mesmo tempo, forças para continuar a luta.

“Muitas vezes me prostitui para ter dinheiro para comprar drogas, na hora não me sentia mal em fazer isso. Se meu pai me xingava de vagabunda então não me importava com o que os outros falassem. Mas acho que me sentia muito sem valor por ser mulher, hoje vejo que homem não é tudo na nossa vida”. (Alice) “Se mulher é ser igual a minha mãe, prefiro não ser mulher (...) Queria que ela deixasse meu pai, o traísse igual ele fez com ela. Não entendia por que ele a maltratava e a agredia. Ela estava sempre tão disponível pronta para cozinhar, costurar e satisfazê-lo”. (Clarice)

Gênero

como documentação, permissão para a entrada, suspensão de visitas por questões de saúde ou de comportamento.

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Nesta oficina, refletimos com as mulheres sobre o significado do termo, com vistas a propiciar o reconhecimento da violência estrutural nas experiências de vida de cada participante dos grupos e divulgar algumas informações sobre os direitos básicos descritos na Constituição. Antes de falarmos sobre violência estrutural fazemos uma pergunta intrigante e provocadora: Todos são iguais perante a lei?

Durante as oficinas do projeto

Violência

“Quem Somos Nós?” dedicamos um encontro para falar sobre a questão da violência estrutural.

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Para muitas pessoas, pode parecer um tema estranho, pois geralmente, quando se fala a palavra violência, nos remetemos primeiramente à violência física, depois à violência moral e à psicológica. Porém, será que não há outras violências sofridas constantemente, mas não nomeadas assim?

A resposta é unânime. Não! Todas são bem firmes e parecem indignadas com esta pergunta que para elas possui uma resposta óbvia. E o mais interessante é que a partir daí parece nascer delas uma necessidade crescente de falar, expor tudo o que acontece dentro do sistema penitenciário, pois este é um assunto que elas conhecem bem, conhecem na pele. Parece que dentro do sistema poucos estão dispostos a ouvir os problemas que elas querem expressar, ou talvez seja porque muitos já conheçam em alguma medida estes problemas, porém não sabem ao certo como resolvê-los, onde começou, como se estruturam, onde terminam.

“Aqui falta atendimento psicológico. Descaso. Muitas entram e ficam loucas. Caem em depressão. Teve uma mulher que morreu de depressão, no hospital da rua (atendimento hospitalar fora da prisão). O alvará dela chegou aqui logo depois dela morrer”. (Joana)

Violência

A violência no cárcere. Só no cárcere?

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Há diversos direitos não garantidos, tanto dentro como fora do sistema penitenciário. Fora do sistema existem escolas públicas, hospitais públicos, moradias populares construídas e financiadas pelo governo. No entanto, será que todos têm acesso a estes serviços? Será que são de boa qualidade? Quem tem dinheiro geralmente se sente obrigado a pagar pela saúde (plano de saúde), pagar pela escola (escola particular), comprar casas cada vez mais caras e pagar inúmeros cursos para aumentar as chances de se conseguir empregos ou melhorar os salários.

Violência

E quem não tem dinheiro para pagar por estes direitos? Estas pessoas formam grande parte da população brasileira. Elas dependem do Estado para terem seus direitos atendidos e viverem dignamente, mas não recebem a proteção de qualidade e os serviços necessários quando precisam, tendo que lutar sozinhas, aguardar em filas, receber ajuda para poderem superar parte de seus problemas.

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“Eu, meu pai, minha mãe e irmãos moramos numa casa cedida pelo patrão do meu pai. A gente só pagava conta de água, luz. Mas agora ele quer a casa de volta para vender e não temos para onde ir”. (Alice)

Nas oficinas, procuramos discutir este contexto maior em que todas estão inseridas. Um contexto de desigualdade, de diferenças, de falta de acesso a direitos, entre outras situações presentes na nossa sociedade. É uma reflexão difícil. Nesta oficina, tomamos um cuidado maior, pois este tema exige uma reflexão atenta e ponderada, pois pode tornar-se dolorosa e inquietante, gerando conflitos em muitas delas, que tentam sempre lidar com uma culpa individual. Quando julgadas, ou mesmo quando se julgam, dificilmente levam em conta o histórico de vida. Mostrar a violência pela não garantia de direitos se mostra mais fácil ao falar dos problemas presentes dentro do sistema penitenciário do que fora dele. Possivelmente isto aconteça porque dentro do sistema elas não podem resolver estes problemas individualmente porque as restrições são diversas e as escolhas são mínimas. Se fora elas poderiam procurar outro hospital público, caso no que estejam não lhes proporcione atendimento, dentro do sistema não há opções, a oferta é limitada. Nesse contexto, fica mais evidente como a violência estrutural se manifesta, os exemplos estão próximos, atinge a todas, desencadeia sentimentos de impotência e de injustiça. Fora dos muros, apesar de toda a precariedade, há o direito de ir e vir que lhes permite mais autonomia para tentar melhorar suas vidas:

“O que eu mais gostava quando ainda estava na rua era poder correr atrás do que eu queria, sou uma pessoa muito persistente, não admito derrota”. (Simone) Durante as oficinas, ao discutirmos a questão dos direitos dentro da penitenciária, o que as participantes mais questionam é sobre a garantia do direito à saúde. Isto parece acontecer por um motivo simples: elas precisam do corpo saudável para viver. Este é um problema que aparentemente atinge a todas. E durante as discussões, tentamos refletir sobre esta situação, tanto dentro como fora da penitenciária, pois há diversos problemas referentes à saúde, como por exemplo, a demora no atendimento médico, o descaso com que são tratadas por alguns profissionais, o não atendimento em momentos de urgência por falta de estrutura hospitalar, dentre outros problemas. Assim, aproveitam o espaço proporcionado para trocar experiências de vida, o que acreditamos ser de extrema importância, pois quando uma questão é percebida individualmente ela pode acarretar

mais dor, principalmente quando não há uma reflexão acerca do contexto em que este sofrimento se manifesta. Quando há mais entendimento sobre alguns problemas e percebe-se que há mais pessoas passando pelas mesmas dificuldades, há um fortalecimento conjunto em torno destas questões. A partir das experiências, elas trocam conhecimentos e formas descobertas para resolver algumas situações, atribuindo novos sentidos. Às vezes, usam como aparato a lei. “Outro problema sério da penitenciária é a saúde. Deveriam ter programas de prevenção, como palestras, preservativos femininos e masculinos, anticoncepcionais... É mulher. Mulher sente tudo. Tem lado mais sensível. Fica sujeita mais a tudo”. (Joana)

Não podemos esquecer que a saúde mental também faz parte da saúde. A necessidade de mais atenção à saúde mental se faz mais evidente quando pensamos no quão desorganizadora pode ser esta experiência de se estar presa – o que já podemos sentir ao entrar em uma penitenciária, mesmo que seja por um dia. São vários pensamentos e sentimentos ao mesmo tempo. Muito tempo ocioso para dispará-los. Querem que seus pensamentos saiam da penitenciária, mas o lugar para onde vão não é necessariamente melhor, mais acolhedor. Os pensamentos podem ir para suas famílias, reconfortando-as, mas também podem causar angústias, pois elas desejam suas famílias por perto; às vezes sabem que passam por necessidades sem ela; às vezes

desesperam-se ao pensarem sobre a idade dos filhos quando elas saírem da prisão; às vezes este desespero surge ao verem o filho chorar no momento da despedida. Às vezes por saberem que, ao trancar a cela, novamente terão que encarar as grades, as paredes da mesma cor, aquele espaço que não é delas, um espaço frio, amedrontador, e saber que é só isto que verão por muito tempo.

“Se não fosse a necessidade, o crime seria menor. Se a divisão de dinheiro tivesse sido feita direito, não teria tantas drogas, mortes...”. (Joana)

Muitas passaram fome antes de serem presas: “A gente passava muita fome. O dinheiro que minha mãe recebia não dava para sustentar, e meu pai sempre tinha alimento, mas ele escondia da gente”. (Carolina)

Elas narram situações difíceis, de abandono: Às vezes há também o arrependimento, mas para quem poderão gritar? Inúmeras pessoas precisam de ajuda para conseguir suportar tudo isso, ou apenas uma destas coisas, e ainda existem as questões pessoais, emocionais, culturais, sem falar na infinidade de outros agravantes à saúde mental das mulheres. “Aqui falta atendimento psicológico. Descaso. Muitas entram e ficam loucas. Caem em depressão. Teve uma mulher que morreu de depressão, no hospital da rua (atendimento hospitalar fora da prisão). O alvará dela chegou aqui logo depois dela morrer”. (Joana)

Quando questionadas sobre o direito que acreditam ter menos acesso fora da prisão, a maioria aponta o direito ao trabalho. Falam sobre a falta de oportunidades e dizem que esta é uma forte razão para muitas mulheres enveredarem pelo crime e chegarem à prisão: “Quando me vi passando necessidade comecei a fazer contato com algumas pessoas conhecidas que eram envolvidas com o tráfico e também comecei a vender”. (Carolina)

“Eu estava meio jogada, tinha sido despejada e os meus cinco filhos tinham sido levados para um abrigo. Morava num bairro simples, periferia, os moradores eram um povo simples, trabalhador, sofredor. A minha casa era alugada, e quando eu fiquei desempregada, não podia pagar o aluguel e fui despejada. A dona da casa que me despejou também chamou o Conselho Tutelar e disse que eu não tinha condições de cuidar dos meus filhos. Eu estava separada do meu marido na época. Eu trabalhava fazendo bicos, mas era difícil. Ou eu alimentava meus filhos ou pagava o aluguel. Quando o conselho chegou eu estava chegando do serviço, estava trabalhando de empregada doméstica”. (Simone)

Também refletem sobre a possível situação a ser enfrentada quando saírem da prisão: “Acham que criminoso tem que estar na cadeia. Quando você sai daqui você tem menos garantias do que alguém que está lá fora. Acho que é descaso. Acham que criminoso tem que estar na cadeia”. (Joana)

Durante os encontros tentamos refletir sobre a sociedade como um todo e relacionar os problemas dentro e fora da prisão.

Violência

Elas falam sempre com muita empolgação, indignação, e, tanto suas falas quanto seus gestos e emoções aproximam-nos desta realidade, aproximam-nos delas. Acreditamos que não temos acesso a tudo o que elas vivem, mas o que ouvimos e vemos contribui para conhecer esta realidade.

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Em geral, os trabalhos realizados dentro das penitenciárias são repetitivos e não proporcionam qualificação profissional a quem os executa. Porém, devido ao fato de não haver trabalho para todas, as pequenas vantagens tornam-se grandiosas. Assim, as mulheres não reclamam, mas acabam se sentindo privilegiadas em tê-los.

Durante a conversa com as mulheres sobre os questionários, e mesmo durante as oficinas, grande parte das participantes afirmam que antes de serem presas contribuíam com a renda de suas famílias e muitas vezes sustentavam sozinhas seus filhos. Além da ajuda aos familiares, o dinheiro que sobra é gasto com o próprio sustento dentro do sistema, com o intuito de comprar produtos e demais alimentos que necessitam diariamente.

Durante as oficinas, ao afirmarmos que o lazer é um direito básico, muitas mulheres se surpreendem diante desta informação. Diversas vezes em nossa sociedade o lazer é visto como um luxo, não como algo importante para a vida de todos os seres humanos, e o seu acesso nem sempre é para todos.

Violência

Percebemos também a importância do trabalho por ele diminuir o tempo ocioso das mulheres, pois dentro do sistema parece que mesmo um pequeno espaço de tempo mostra-se bastante penoso e parece demorar muito para passar. Se elas não trabalharem, este tempo acaba sendo maior, o que dificulta o cumprimento da pena.

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Dentro da penitenciária percebemos que o lazer tem um papel muito importante no cotidiano das mulheres. Elas procuram e se interessam por diversas atividades que envolvam desde arte até esportes, como por exemplo, peças teatrais, campeonatos esportivos, músicas, improvisação de instrumentos musicais, artesanatos, pinturas e desenhos, dentre outros. Diante de tanto potencial e tamanha demanda dos grupos, reafirmamos a importância de mais apoio e de incentivo para estas atividades relacionadas ao lazer.

“Falta atividade física. Fizeram uma academia, mas não conseguem se planejar para ver os horários dos plantões para que a academia possa começar a funcionar”. (Joana)

“(...) não tenho visitas, sedex, jumbo. Eu trabalho, faço bicos... (minha família) não tem condições monetárias de vir me visitar. Querer visita todo mundo quer, mas eu compreendo.” (Joana)

Quanto à educação, são poucas as mulheres que participaram dos grupos sem alfabetização. Além disso, grande parte tem o ensino fundamental , o que é uma surpresa. Dentre as instituições nas quais atuamos, em apenas uma das unidades encontramos alto índice de mulheres que frequentam a escola do sistema penitenciário. Nos demais casos, ou não havia escola dentro da instituição, ou havia, mas poucas mulheres frequentavam-na.

As mulheres se ressentem por sua condição social, pela falta de oportunidades, pela impossibilidade de estudo, de conforto material, entre outras situações injustas que relatam ter vivido ao longo de suas trajetórias. Nas oficinas, as mulheres nos dizem que dentro da prisão isso acontece mais uma vez, pois aquelas que possuem condição material melhor, um bom advogado, uma família abastada, são tratadas de forma diferente.

“Deveria ter mais oficinas profissionalizantes, de artesanatos, mais empresas”. (Joana) “O que precisa dentro de uma prisão é ter coisas que pudessem reabilitar, fazer pensar. O fato de estar presa não quer dizer que a vida acabou, a prisão têm que fazer a gente se sentir humana e não um lixo”. (Simone)

Fora do sistema penitenciário, no nosso País, o acesso aos direitos sociais ainda é um vir a ser, é uma busca, é uma luta. E não é diferente dentro dos muros da prisão.

Participantes das oficinas também narram ao grupo experiências de humilhação e de preconceito por que passaram fora das penitenciárias: “Meu filho é negro e foi até a padaria comprar pão, presunto e queijo para eu fazer misto para ele, quando voltou para casa chegou triste, perguntei o que era e ele contou que o homem da padaria disse para ficar de olho nele porque ele poderia roubar alguma coisa. Fui correndo até a padaria e fiz um escândalo e fui pra cima do homem. Eu nunca sofri preconceito, mas ver meu filho sofrer foi pior para mim”. (Alice)

Nas oficinas, refletimos juntas como podemos enfrentar essa estrutura que gera e reforça relações desiguais, como podemos, pelas nossas atitudes diárias dentro da prisão, fazer algo que não gere violência, que não leve à discriminação, que privilegie a solidariedade ou, ao menos, que torne aquele dia mais feliz.

“Nós vivemos em um mundo cheio de violência, e foi bom comentar e mostrar nossa indignação sobre o assunto”. (trecho de avaliação) “Todos somos iguais independente do lugar ou da classe social. Somos todos seres humanos... hoje nós somos maltratados pelas pessoas que estão no poder, o que também é violento.” (trecho de avaliação)

Elas nos dizem que são guerreiras. Vários grupos recebem este nome. A vida para muitas acaba parecendo mesmo uma guerra, em que elas são guerreiras e acham forças para resistir até o fim. E por mais que cheguem às oficinas endurecidas pelas constantes violências, percebemos que, ao longo dos encontros, há uma aproximação entre as mulheres do grupo e delas conosco, e assim nos sentimos mais próximas a essas mulheres, pelo conhecimento de suas histórias, seus receios, angústias e, principalmente, seus sonhos.

“A minha mensagem para as pessoas é que elas nunca desistam do que elas buscam. Há obstáculos, mas conseguirão se persistirem. Como que é aquela frase? ‘Desistir é a saída dos fracos. Insistir é a saída dos fortes’”. (Simone)

Violência

A questão do trabalho não é simples dentro das prisões. A maioria das penitenciárias não se encontra preparada para fornecer trabalho a todas as mulheres presas. O trabalho significa atividade, mas também remuneração durante o período no cárcere e significa remição, isto é, diminuição da pena de detenção.

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Acreditamos que discutir cidadania seja importante para todos nós, independentemente da condição em que nos encontremos. Quando nos reunimos durante as oficinas com as mulheres em situação de privação de liberdade, este tema se torna bastante relevante, pois dentro das penitenciárias encontram-se pessoas que não só não tiveram muitos de seus direitos como cidadãs garantidos ao longo de suas trajetórias de vida, como também estão, no momento, destituídas legalmente de sua liberdade. Em conversas e debates, ouvimos diversas histórias e relatos que nos revelam as dificuldades encontradas por essas mulheres em suas vidas, mesmo antes da prisão, com relação ao acesso a direitos básicos.

Cidadania

“Não quero uma vida de luxo, mas o que nos é garantido por direito: trabalho, estudo, saúde. Temos direito de exigir o que é garantido por lei, mas isto não é respeitado”. (Joana)

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Muitas vezes estas mulheres buscaram dar conta de problemas que surgiam quando estavam na rua, o que pode ser muito mais difícil, pois garantem apenas momentânea e individualmente o acesso àquilo que deveria ser de todos.

Estas experiências, não raras vezes, levam estas mulheres ao desconhecimento de seus direitos, como também, mesmo nos casos em que elas têm esta informação, à vivência de que estes direitos estão só no papel e de que elas não têm importância como cidadãs. Não são vistas nem tratadas dignamente como seres humanos, e suas vozes, frequentemente, não são ouvidas.

“Antes de ser presa, tinha os mesmos sonhos que ainda tenho hoje. Sempre sonhei em ser advogada. Quando era pequena brincava de júri, colocava todos os bonecos sentados e fazia a defesa. Mas não consegui estudar para ser advogada, parei de estudar por relaxo, cansei. O ensino hoje não supera as expectativas de quem quer estudar. Quem quer, desanima. Hoje não é preciso estudar, basta estar na escola que você passa. A educação no nosso País não dá expectativa de vida para ninguém. (...) Desisti porque queria aprender, queria cultura. Mas o que eu mais aprendia era a ter medo das situações. Isso contribuiu muito para largar a escola”. (Simone).

Entretanto, há mulheres que relatam experiências anteriores de participação coletiva e de resistência. Algumas buscam se engajar em questões também dentro da penitenciária, como participar mais ativamente nos eventos culturais, debater as condições de vida dentro da prisão quando um ou outro problema se agrava etc. No entanto, sabemos das dificuldades já dadas pelas próprias condições do lugar, seja por se tratar de uma instituição fechada – com suas regras e limitações –, seja por dilemas que podem surgir pelas próprias relações de poder estabelecidas entre elas.

Frequentemente, nas oficinas, as mulheres se espantam com a afirmação de que são cidadãs, ainda que estejam presas. Em sua maioria, ouviram que foram presas por não estarem aptas ao convívio com a sociedade por terem cometido um crime, e que a partir do momento em que vão para a cadeia deixam de ser cidadãs. Há também a surpresa de que a igualdade entre as pessoas está prevista na Constituição, assim como os direitos básicos. Somente esta afirmação já se mostra como um fator de fortalecimento e de sentimento de dignidade, aparecendo fortemente em suas falas como um dos maiores ganhos em participar dos grupos. “O projeto nos ensina que além de reeducandas somos cidadãs e merecemos respeito”. (trecho de avaliação).

Sabemos que apenas a afirmação sobre a cidadania não é suficiente, mas não podemos subestimar sua importância dentro deste contexto em que tudo reforça e destitui o valor de cada uma. “Antes eu achava que bandido tinha que morrer. Depois de conhecê-las, independentemente do que fizeram, são seres humanos, eu passei a respeitar a vida. Vejo que elas não tiveram opção, ou então não tiveram estrutura. Algumas não tiveram opinião própria, se deixaram levar pelos outros. Acredito que todas deveriam poder fazer qualquer coisa que pudesse dar uma razão para a vida que não só o crime”. (Simone).

Ainda assim, discutir cidadania continua a ser uma tarefa difícil diante da situação do cárcere,

Cidadania

Cidadãs: Ser E Não Ser

“Na época da ditadura participei da União Estadual dos Estudantes.O pessoal ia em casa para se reunir. Mas sempre precisou correr da polícia (riso). A gente tinha como arma um saco de bolinhas de gude que fazia os cavalos escorregarem. Saía pela rua com os manifestos dentro de gibis para disfarçar. (...) A mídia não era tão forte, nos bairros sempre tinham comícios para passar informações e na igreja tinha até uma rádio comunitária. (...) Meu pai me ensinava os direitos de cidadão e falava que tinha que saber entender as coisas, para saber criar os filhos”. (Carolina).

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Quando propomos pensar a igualdade entre todos, ao mesmo tempo em que cada pessoa é única – fundamental ao exercício da cidadania –, as mulheres descrevem as dificuldades encontradas para que estas ideias sejam colocadas em prática.

Cidadania

Encontramos nas penitenciárias mulheres com idades, histórias, opiniões e graus de envolvimento com o crime bastante diversos, vendo-se obrigadas a conviver proximamente, todos os dias, por longos períodos.

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Em oposição a esta proximidade física, apontam um grande distanciamento entre elas referente aos relacionamentos interpessoais. Há fortes sentimentos de medo, solidão, isolamento e desconfiança. Apesar de esta não ser uma regra para todos os casos, ouvimos muito que “mulheres são todas falsas, invejosas e fofoqueiras”, que confiar em outras pessoas deixam-nas expostas, que ajudar alguém pode colocá-las na posição de exploradas ou “feitas de bobas”, que falar pode ser perigoso, o que de fato, muitas vezes, pode realmente ser. A liberdade de expressão fica assim bastante prejudicada.

“Quando vim para a PE, vim junto com as meninas da DP, eu já tinha amizade com elas, uma delas já tinha sido presa antes e nos preparou. Ela me disse ‘fique muda, ouça menos ainda’. As palavras pesam muito aqui. Aqui dentro, sou muito querida por elas. Procuro ajudar como dá, elas desabafam comigo, pedem opinião. Quando precisam, eu faço uma oração, ensino artesanato. Ajudo as analfabetas a escrever cartas. Mas, normalmente, o assunto não sai da cadeia, os assuntos giram em torno daqui. Por isso também não conto minhas coisas para elas. Há muita falsidade. Por isso ouço mais do que falo”. (Simone).

Estes problemas não só dificultam a reflexão coletiva sobre as dificuldades por elas vivenciadas, como também pioram significativamente a experiência do cárcere, considerando-se que muitas mulheres já estão separadas ou abandonadas por seus familiares e amigos, privando-as dos contatos afetivos tão importantes para qualquer ser humano. Muitas vezes não encontram em seu cotidiano espaço para demonstrar emoções, rir, brincar, chorar, pois estas demonstrações podem ser vistas, por exemplo, como demonstração de fraqueza, infantilidade ou descaso com o sofrimento alheio. Algumas relações de poder observadas fora da prisão lá também se repetem. Durante os encontros, as mulheres identificam que fora da penitenciária, muitas vezes, elas têm mais poder ou são mais respeitados na medida em que possuem mais bens materiais ou melhores condições financeiras. “Já trabalhei de telemarketing, de analista de créditos, cuidadora de idosos. Quando fiquei desempregada, foi do telemarketing que fui mandada embora. Já fui garota de programa também. O trabalho que eu menos gostava era de doméstica, porque era muita humilhação. Como eu trabalhava na casa de pessoas que também eram pobres, mas tinham uma condição melhor do que a minha, eles queriam humilhar, maltratar”. (Simone).

Assim, além de outras questões pertinentes às relações de poder – tais como influência, uso da violência, habilidade em convencer e manipular pessoas – é quanto às relações estabelecidas pela posse ou não de bens materiais que as mu-

lheres mais se expressam e melhor identificam a questão da desigualdade. Apontam que, também dentro da penitenciária, não são vistas como iguais, mas como aquelas que têm mais e aquelas que têm menos, e por isso são mais ou menos importantes. As que têm menos precisam “dar um jeito” como podem para sobreviver na penitenciária, do mesmo modo que fora da prisão. “Como eu não tinha um bom jumbo, precisei arrumar tudo por aqui, absorvente, coisas. Então comecei a limpar a cela das pessoas, perguntar se tinha alguém que precisava que limpasse a cela. Só recebi um jumbo que veio muita coisa, então pude começar a trocar por cigarro. Saí gritando pela galeria quem queria comprar as coisas que vieram no jumbo” (Simone).

Quando há desigualdade, é muito difícil exercer a cidadania. Por isso, nos grupos, garantimos a todas as mulheres um espaço para falar na medida em que se sintam à vontade, reforçando a importância do sigilo e da opinião de cada participante. Aos poucos, o que era inicialmente um agrupamento de pessoas desconhecidas e que não conversavam (dirigindo a palavra, quase sempre, para as técnicas do projeto), começa a se constituir como um grupo, cujas opiniões eram respeitadas mesmo quando não havia consenso, e as falas passaram a ser dirigidas para todo o grupo. Vale destacar que se houver um espaço adequado para que outras facetas destas mulheres sejam expressas, respostas diferentes à pergunta Quem somos nós? podem ser dadas para além de “somos presas”. Outras posturas corporais – menos rígidas ou contraídas – e afetivas vão se tornando

possíveis e o diálogo vai se estabelecendo: toda voz é importante. Cada participante faz falta. Ao longo dos encontros, para muitas mulheres que haviam perdido a vontade de viver, encontrar no grupo apoio e sentir que sua ausência era sentida trouxe-lhes mais força para continuar. “Eu gostei de tudo e de saber as opiniões das pessoas que se encontram na mesma situação que eu, e principalmente da união de cada uma de nós”. (trecho de avaliação).

Ao compartilharem suas trajetórias neste espaço, não só podiam atribuir novos sentidos às suas experiências como podiam perceber vivências e questões comuns, solidarizando-se com histórias diferentes das suas. É um caminho para começar a pensar sobre preconceitos. Os que temos e os que sofremos. “Aprendi a escutar mais as pessoas, ser mais paciente, a entender melhor. Aprendi a ser paciente comigo mesma. Eu era ansiosa. Aprendi a ter paciência com as pessoas, com o lugar, com as situações. Aprendi a dar valor às menores coisas: árvore, passarinho, cachorro latindo, cheiro de uma comida, cheiro de fogueira. Agora presto atenção às pequenas coisas”. (Joana). “As pessoas no geral não se dão o valor, se arrumam para a sociedade. Aqui eu passei a me preocupar comigo mesma, com a minha saúde, sabe aquela coisa de você se cuidar pra você? Talvez seja uma forma de esquecer o sofrimento também. Passei a ver minhas qualidades. Quando eu ainda estava no mundão, eu não via, a não ser para ser melhor que os outros, competir”. (Simone).

Deste modo, transformamos os próprios encontros em grupo em espaços de exercício da cida-

dania, vivendo juntas a experiência de igualdade que fundamenta o “ser cidadã”, e fazendo com que o acesso aos direitos deixe de estar apenas no papel e passe a ser buscado a partir do sentimento de dignidade humana. “O grupo nos ensinou a ser mais companheiras e a nos sentirmos iguais”. (trecho de avaliação). “[O curso] despertou algo que já havia se apagado dentro de mim”. (trecho de avaliação). “O projeto é um desabafo, um encontro de realidade, uma oficina de verdades, e que nos motiva e nos ajuda a conhecer nossos próprios valores e que mesmo presas temos nossos direitos”. (trecho de avaliação).

E é este sentido de dignidade e do exercício da cidadania, somente possível quando estamos com os outros, que possibilita a todos nós pensarmos o coletivo, e quem sabe agirmos e participarmos, apesar das limitações impostas pelas situações em que nos encontramos, em especial quando falamos da condição destas mulheres privadas de liberdade.

Cidadania

na medida em que se encontram em uma condição aparentemente contraditória: ser cidadã ao mesmo tempo que não se é cidadã, em que seu real exercício se encontra impedido por diversas formas.

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“ “

Avaliação

O projeto nos capacita a encarar um mundo novo em nossas vidas, também aumenta a nossa autoestima e nos ajuda a conhecer melhor cada uma de nós . (trecho de avaliação)

Cidadania

A prisão exterior mutila o ser humano, não transforma a personalidade de um criminoso, não expande sua inteligência, não reedita as áreas do seu inconsciente que financiam o crime, apenas Se todos tivessem a mesma atitude de vocês, quem sabe teria menos po- imprime dor emocional. Nós precisamos pulação carcerária, menos moradores ser reeducadas, conscientizadas, tratadas, e é isso que o curso faz, em meio a de rua e menos violência . um túnel de descaso. O Quem somos (trecho de avaliação) nós? é a pequena fresta de luz no fim Na semana que passamos no curso, desse imenso túnel.(...) Neste curso eu nos dávamos o luxo de fechar os olhos aprendi valores que eu nem conhecia, e esquecermos do lugar que nos enresgatei valores que havia perdido, vi contramos. Pouca gente sabe, mas as que sonhos são como bússola, indicanreuniões realizadas no presídio nos re- do os caminhos que seguiremos e as gressam à sociedade. A comunicação metas que queremos alcançar, são eles entre as presas nos ajuda a reforçar a que nos impulsionam nos fortalecem e tese contra o preconceito . (Anita) nos permitem crescer . (Patrícia)

Trouxe alegria para o grupo e levo alegria... mesmo ruim (de saúde), não quis parar e quando vim doente, o sorriso do grupo me salvou, decidi me sarar e tomar meus remédios . (trecho de avaliação)

Destes encontros vou levar comigo várias coisas, em especial, uma revisão que fiz de mim própria, e esta está guardada, e levarei comigo ... (trecho de avaliação)

No curso discutimos Quem somos nós como cidadãs, mulheres e seres humanos. Colocamos nossas ideias, expomos opiniões e soluções não com o intuito de mudar a opinião das pessoas, e sim a nossa e encarar o futuro da melhor forma possível . (trecho de avaliação)

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É na força de todas as vozes e de todas as ações que podemos descobrir quem somos nós.

Além do carinho e dedicação das orientadoras, o projeto trata de maneira simples de alguns assuntos tão doloridos e tristes . (trecho de avaliação)

Todos os encontros para mim foram interessantes, pois no meu cotidiano esses assuntos são constantes e foi bom para o meu conhecimento e aprendizado . (trecho de avaliação)

Ainda que não seja possível medir e quantificar os ganhos de todas as participantes das oficinas, e desta equipe também, a construção de novas perspectivas é real e concreta. Por este motivo dedicamos este espaço para que mais algumas falas das mulheres participantes do Quem somos nós? possam expressar como foram estes momentos de reflexão individual e coletiva, de revisão de pontos de vista, de concepções, de valores e principalmente de mudanças positivas de atitudes.

Ao longo desta publicação, compartilhamos alguns desses momentos e, principalmente, proporcionamos, pelas falas de algumas mulheres que fizeram parte desses momentos, uma aproximação com a realidade vivida dentro da prisão. Com isso, o projeto busca unir forças com vistas à construção coletiva de um mundo justo e igualitário, mostrando para a sociedade que a união de todas as mulheres, de todos os homens – em situação de prisão ou não –, da sociedade civil e do Estado é fundamental.

Neste projeto nós podemos dizer tudo que nós pensamos e achamos de errado neste local que nos encontramos sem sermos interpretadas mal . (trecho de avaliação)

Amplificando vozes

expressar todas as sensações e sentimentos que a equipe do projeto Quem somos nós? vivenciou durante as oficinas, mas é por meio deste instrumento que podemos mostrar a todos um pouco de nossa experiência.

Somente com palavras é difícil

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INDICAÇÕES PARA LEITURA:

AFONSO, Lúcia (Org). Oficinas em dinâmica de grupo: um método de intervenção psicossocial. Belo Horizonte: Edições do Campo Social, 2000. BARATTA, Alessandro. Direitos humanos: entre a violência estrutural e a violência penal. Tradução de Ana Lucia Sabadell. Porto Alegre: Fascículos de Ciências Penais, 1993. BAUMAN, Zygmunt. Lei global, ordens locais. In: Globalização: as consequências humanas. Tradução de Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999. p.111-136.

GIORGI, Alessandro de. A miséria governada através do sistema penal. Rio de Janeiro: Revan ICC, 2006. GOFFMAN, Erving. Manicômios, prisões e conventos. São Paulo: Perspectiva, 1992. GONCALVES FILHO, José Moura. Humilhação social: um problema político em psicologia. São Paulo: Psicologia USP, 1998. vol. 9, n.2. JOZINO, Josmar. Casadas com o crime. São Paulo: Letras do Brasil, 2008.

BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999.

Cobras & lagartos. São Paulo: Objetiva, 2005.

BRASIL. Lei no 7.210, de 11 de julho de 1984. Lei de execução penal. Brasília: Presidência da República, 1984.

LISPECTOR, Clarice. Mineirinho. In: Legião estrangeira. Rio de Janeiro: Ed. do Autor, 1964. pp. 252-257.

BRASIL. Lei no 11.340, de 7 de agosto de 2006. Lei Maria da Penha: coíbe a violência doméstica e familiar contra a Mulher. Brasília: Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, 2006.

RAMALHO, José Ricardo. Mundo do crime: a ordem pelo avesso. Rio de Janeiro: Graal, 1979.

Ensaio sobre a cegueira. Direção: Fernando Meirelles. Brasil/Canadá/Japão, 2008. 124 min. Escritores da liberdade (Freedom Writers). Direção: Richard Lagravenese. Alemanha/EUA, 2007. 122 min. Estamira. Direção: Marcos Prado. Brasil, 2004. 116 min. Maria cheia de graça (Maria Full of Grace). Direção: Joshua Marston. Colômbia/EUA, 2004. 101 min. O cárcere e a rua. Direção: Liliana Sulzbach. Brasil, 2004. 80 min. O prisioneiro da grade de ferro. Direção: Paulo Sacramento. Brasil, 2004. 124 min. Monster – Desejo assassino (Monster). Direção: Patty Jenkins. Alemanha/EUA, 2003. 109 min.

Indicação de leitura

SAFIOTI, Heleieth. Rearticulando gênero e classe social. In: COSTA, A. O. BRUSCHINI, C. (org.) Uma questão de gênero. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1992.

A experiência (The experience). Direção: Oliver Hirschbiegel. Alemanha, 2001. 120 min.

Cidadania

FOUCAULT Michael. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. 31a ed. Petrópolis: Vozes, 2006.

INDICAÇÕES DE FILMES

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Créditos Instituto Terra, Trabalho E Cidadania Heidi Ann Cerneka presidente Michael Mary Nolan vice presidente Denise Néri Blanes tesoureira Sônia Regina Arrojo e Drigo secretária Ailton Brasiliense Pires, Marlete Scapineli Conte e Rosangela Calixto conselho fiscal

Equipe “Quem Somos Nós?” Denise Néri Blanes e Luciana Matumoto

Equipe Técnica Carla Fernandes de Andrade estagiária de psicologia Fernanda Cazelli Buckeridge psicóloga Flavia Novaes B. Rodrigues assistente social Natália Rose assistente social Vanessa Faro Chaves estagiária de serviço social

Colaboração Maria Regina Gomes Max Mu

coordenação

Projeto “Quem Somos Nós?” Realização

Instituto Terra, Trabalho e Cidadania – ITTC Patrocínio

Petrobras

Publicação “Quem Somos Nós?” Esta publicação foi elaborada pela equipe técnica do projeto “Quem Somos Nós?”

Revisão Cidadania

Airton Dantas

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Projeto Gráfico E Editoração Juliana Cabalin cabalindesign.com


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