Reunião de trabalho sobre a política nacional de alternativas penais

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Reunião de Trabalho Sobre a Política Nacional de Alternativas Penais Organização: Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC) Heloisa Adario Marina Dias Apoio: Move Social Local: Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas (FGV Direito SP) 5 e 6 de novembro de 2015

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Nos dias 5 e 6 de novembro de 2015

A professora Maíra Machado contextuali-

aconteceu, na Escola de Direito de São

zou o desafio de conciliar o objetivo de uma

Direito SP), uma reunião de trabalho sobre

maior do grupo reunido no evento – com

Paulo da Fundação Getulio Vargas (FGV

sociedade sem prisões – que é o propósito

as alternativas penais no Brasil. O evento

as atuais possibilidades de intervenção no

– organizado pelo Instituto Terra, Trabalho

país. Sua fala apoiou-se principalmente em

e Cidadania (ITTC), Heloisa Adario e Ma-

duas de suas pesquisas. A primeira anali-

rina Dias, com facilitação da Move Social

sou uma série de projetos de lei tramitando

– contou com a presença de representan-

no Congresso Nacional e revelou a ausên-

tes da sociedade civil e de especialistas de

cia de ideias novas no cenário parlamen-

São Paulo, Bahia, Rio de Janeiro, Brasília

tar. A segunda discutiu o papel do juiz na

e Minas Gerais, incluindo membros da Ou-

aplicação da pena e identificou o chamado

vidoria Geral da Defensoria Pública de São

“automatismo decisório”, que é o fenômeno

Paulo, organizações não governamentais,

da restrição do espaço de atuação desse

juízes, advogados, assistentes sociais,

ator, inclusive em relação à análise do caso

pesquisadores e professores. Durante os

concreto, do sujeito e de sua biografia.

dois dias de encontro, o grupo debruçou-se

Diante disso, a professora vê nas alter-

sobre os desafios, as tensões e os consen-

nativas penais um maior espaço de atua-

e discutiu elementos práticos, teóricos, ins-

volvimento de práticas inovadoras e com

sos acerca das alternativas penais no país

ção jurisdicional, propício para o desen-

titucionais e históricos da política de alter-

potencial transformador da atuação dos

nativas penais.

atores e do próprio sistema de justiça cri-

O evento iniciou-se com exposições, de

minal. Isso porque a aplicação de alterna-

15 minutos cada uma, realizadas, respec-

tivas penais não depende de modificação

tivamente, pela professora Maíra Macha-

legislativa e se desenvolve com o tempo,

do, FGV Direito SP; Raquel da Cruz Lima,

visto que obriga os atores envolvidos – de-

coordenadora de pesquisa do ITTC; Andréa

fensores, promotores, juízes e assistentes

Mércia, coordenadora-geral da Central de

sociais – a praticarem tarefas que antes

Penas Alternativas da Bahia; e Petronella

não praticavam.

Nelly Boonen, representante do Centro de

Para Maíra, a dinâmica que promove o

Direitos Humanos e Educação Popular de

encarceramento tem um funcionamento

diferentes perspectivas, lançar questões e

alternativas penais ao âmbito da redução

Campos Limpo, com intuito de apresentar

próprio e, por isso, não se deve reduzir as

fazer provocações para iniciar os debates

da população prisional. Dessa forma, as

que se seguiram.

alternativas, com sua capacidade de pro3


mover práticas inovadoras, podem trazer

de lado a presunção da inocência, que vem

alterações significativas na qualidade da

sendo constantemente negligenciada.

atuação do sistema de justiça.

A assistente social Andréa Mércia abor-

A advogada Raquel da Cruz Lima ressal-

dou os desafios e tensões presentes no

as alternativas penais em uma agenda de

ternativas, incluindo os conflitos com ges-

tou a importância de situar o debate sobre

trabalho realizado na central de penas al-

redução do encarceramento, bem como os

tores e juízes, que focalizam o aspecto

desafios a serem enfrentados para a im-

fiscalizatório e punitivista do processo de

plementação de uma política que vise ao

execução e acompanhamento das penas

desencarceramento e à resolução de situa-

alternativas. Ela apresentou um diagnósti-

ções de marginalização social. Ela desta-

co da situação prisional e do cumprimento

cou a vulnerabilidade e os recortes de clas-

das penas e medidas alternativas na Bahia,

se, raça e gênero da população do sistema

apontando os recortes de classe e raça que

penal, tanto no cárcere quanto nas alterna-

marcam o público dos dois sistemas, ain-

tivas penais, e enfatizou a necessidade de

da que o sistema prisional abrigue pessoas

uma atuação mais atenta às pessoas sobre

em situação de maior vulnerabilidade.

as quais incide o poder punitivo.

Andréa expôs as conquistas, os embates

Apesar do fortalecimento da política de

e os desafios de se estabelecer diálogo com

to alinhada às diretrizes internacionais na

pontuou que o caminho adotado nesse en-

alternativas penais, aparentemente mui-

um Judiciário muitas vezes conservador e

matéria, o Brasil ainda não viu nenhuma

frentamento é a busca de qualificação das

redução de sua população prisional. Na

práticas adotadas pela equipe no trabalho

verdade, esse problema foi agravado. Para

cotidiano de acompanhamento das penas

Raquel, a política de alternativas penais

e medidas alternativas. Essa prática qua-

tem reunido instrumentos e utilizado dis-

lificada consiste em: atendimento cuidado-

cursos que reforçam a centralidade do cár-

so, no que diz respeito às vulnerabilidades

cere, como as argumentações calcadas no

do público e sua situação social e familiar;

baixo custo, na baixa reincidência e no ca-

avaliação sobre as possibilidades de cum-

ráter restaurativo das alternativas penais. A

primento da pena ou medida; devolução ao

advogada defende que uma política de al-

Judiciário de casos que envolvem penas

ternativas penais de fato desencarcerado-

vexatórias; articulação e envolvimento da

ra deve impor medidas passíveis de serem

sociedade civil, que é a protagonista funda-

cumpridas e que não incidam nessa popu-

mental no cumprimento da execução penal

lação de maneira a agravar sua situação de

no caso das alternativas penais.

vulnerabilidade social, além de fornecer um

A assistente social ressaltou ainda a im-

espaço de amplo exercício do direito de de-

portância de se considerar as questões de

ção das defensorias públicas, sem deixar

multidisciplinar envolvida nas penas e me-

fesa, das garantias processuais e de atua-

ordem ideológica na formação da equipe

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didas alternativas, defendendo que o ser-

penais. Um tema que teve destaque foi a

psicologia não seja patologizante e que o

tanto no que se refere à sua implantação no

viço social não seja assistencialista, que a

institucionalização da justiça restaurativa,

direito não seja encastelado e legalista.

contexto da política de alternativas penais,

A socióloga Petronella Nelly Boonen apre-

quanto no tocante à sua regulamentação.

sentou a justiça restaurativa como paradig-

Para alguns, o fato de a justiça restaurativa

ma distinto no entendimento e na resolução

estar no escopo da política de alternativas

de conflitos. Segundo ela, as alternativas

penais pode ser um sinalizador de um novo

penais, ao enfatizar a figura do agressor e

paradigma de justiça no tratamento de con-

não a da vítima, representam uma continui-

flitos no âmbito penal. A superação do pa-

dade do sistema penal, enquanto a justiça

radigma punitivista mostrou-se norteadora

restaurativa se distingue pelo rompimento

dos ideais do grupo, que reconheceu a im-

com o paradigma punitivo. A justiça restau-

portância de se repensar o funcionamento

rativa aparece como fruto de um entendi-

da justiça e de suas engrenagens. Alguns

mento mais amplo do contexto social que

demonstraram preocupação com relação à

envolve as situações conflitivas. Nesse

observância das garantias constitucionais

sentido, sua fala ressaltou as condições

individuais no âmbito das alternativas pe-

objetivas, estruturais e funcionais que es-

nais, uma vez inseridas no sistema penal.

tão na origem das situações problemáticas

O desencarceramento como finalidade

hoje entendidas como crimes.

da política de alternativas penais foi outro

tir da justiça restaurativa é restaurar o justo

cia de que o enfrentamento do superencar-

Para Petronella, elaborar respostas a par-

consenso do grupo, bem como a importân-

e instaurar o direito para todos, é fomentar

ceramento passe, necessariamente, por

as relações. A participação da comunidade

uma discussão sobre descriminalização,

no gerenciamento e na resolução dos con-

despenalização e controle penal mínimo.

flitos é central, a fim de que a comunidade

Ponderou-se que as penas e medidas al-

protagonize essas ações. Daí a importân-

ternativas não devem servir de instrumen-

cia da descriminalização de condutas e do

to para o expansionismo penal, mas como

investimento em uma política educacional

abertura para um novo modelo de justiça.

que problematize a cultura punitiva.

Nesse sentido, discutiu-se muito em que

A partir das exposições iniciais, o gru-

medida as alternativas penais são “alter-

po procurou identificar os pontos de con-

nativas ao penal”, isto é, em que medida

senso e de dissenso e as questões que

elas funcionam como um complemento da

precisavam ser ainda mais aprofundadas

política de encarceramento. Foi identifica-

e debatidas.

do que a aplicação das penas e medidas

O debate acerca da natureza da justiça

alternativas se aproxima do modelo puniti-

restaurativa foi importante para problema-

vista, principalmente, pelo seu caráter fis-

tizar o escopo da política de alternativas

calizatório, mas também pelo fato de que o 5


aumento de sua aplicação foi concomitante

conceitualmente, fazer parte da política

Nesse sentido, buscar alternativas pos-

rompe com o paradigma punitivo e o es-

ao aumento do encarceramento.

de alternativas penais – uma vez que não

síveis que diminuam o encarceramento e

tigma de pessoa perigosa que precisa ser

se aproximem de outro modelo de justiça

mantida à distância e em vigilância –, na

pressupõe uma reestruturação das práticas

prática ele pode se tornar alternativa ao

adotadas e dos tipos de crime abrangidos

encarceramento.

por essa política, considerando o espa-

Nesse ponto, debates conceituais se

ço que as alternativas penais abrem para

misturaram a questões pragmáticas. Foi

po chegou a vislumbrar um futuro em que,

fletir sobre os significados e os valores em-

substituir o modelo punitivo. Parte do gru-

apontada, então, a necessidade de se re-

com a inovação de práticas, atuações e

butidos em termos como “justiça” e “segu-

atualização de pontos de vista, o modelo

rança pública”, por exemplo, uma vez que o

restaurador pode se afirmar. Para tanto, é

esforço em desconstruir ou transformar um

fundamental conhecer as práticas da políti-

sistema pressupõe, também, que os valo-

ca de alternativas penais que têm sido ado-

res e os significados que ele carrega sejam

tadas no país.

questionados.

A substituição do caráter penalizante e

Houve consenso em relação à descrimi-

fiscalizatório das alternativas penais por

nalização e ao direito penal mínimo como

dora de direitos deve considerar a seleti-

Nesse sentido, as mudanças legislativas

uma política socialmente justa e garanti-

forma de superar o sistema penal atual.

vidade racial e socioeconômica flagrante

com intuito de minimizar o encarceramen-

no sistema penal, bem como as desigual-

to massivo foram repetidamente citadas. A

dades no acesso à justiça. Somente uma

necessidade de descriminalizar condutas –

mudança de olhar sobre a produção da cri-

sobretudo no que tange ao uso e ao tráfico

minalidade, levando em conta as situações

de drogas, os maiores responsáveis pelo

de vulnerabilidade social e a adoção de

encarceramento no Brasil – foi apontada

práticas qualificadas no enfrentamento das

por diferentes participantes, assim como a

situações de conflito, pode tornar possível

importância de as penas alternativas dispu-

a superação do modelo punitivo dentro das

tarem espaço com a prisão.

alternativas penais. Nesse sentido, adotar

Ficou claro para o grupo que o gran-

alternativas penais não é, necessariamen-

de propósito é transpor o sistema penal

dentro dele aberturas capazes de promover

um caminho para a superação da cultura

te, legitimar o sistema penal, mas encontrar

e que as alternativas penais podem abrir

sua superação.

punitivista. Existe oportunidade de discu-

O debate sobre o monitoramento ele-

tir, capacitar e jogar luz sobre práticas e

trônico foi bastante controverso. Embora

experiências inovadoras, com um olhar in-

haja o argumento de que ele não pode,

terdisciplinar. 6


Outro ponto dos debates foi a utilização

beres práticos e técnicos, com elementos

para justificar ou defender as alternativas

líticos. O racismo, o estigma e as vulnera-

(ou não) dos indicadores de reincidência

que extrapolam os saberes jurídicos e po-

penais. Por um lado, esses indicadores fo-

bilidades sociais não devem ser ignorados

ram criticados pela forma como são cons-

na efetivação de uma política socialmente

truídos, bem como pela retroalimentação

justa, tampouco a participação social pode

inerente ao sistema – ao ser presa pela pri-

ser excluída de sua articulação, elaboração

meira vez, uma pessoa passa a ter maior

e controle.

possibilidade de ser presa novamente,

Foi estabelecido que na política de alter-

uma vez que a vulnerabilidade social se

nativas penais se deve manter espaço para

cia foi defendida como argumento essen-

algumas mudanças. No que diz respeito à

torna mais gravosa. Por outro, a reincidên-

as penas e medidas alternativas, mas com

cial para estabilizar o debate com os ato-

esfera legislativa, alguns debatedores pon-

res que presidem o contexto atual, como

tuaram que roubo e tráfico deveriam rece-

secretários de justiça e de administração

ber penas alternativas; outros defenderam

penitenciária. Assim, ainda que deva ser

a necessidade de estender as penas alter-

problematizada, a menor reincidência en-

nativas aos crimes punidos com mais de

tre os cumpridores de alternativas penais

quatro anos de pena e, dessa forma, abran-

foi tomada por alguns debatedores como

ger crimes violentos ou com grave ameaça.

possível ponte de diálogo.

A descriminalização foi outro consenso,

Nesse mesmo sentido, as mudanças

apesar de leituras diferentes. Alguns apon-

teradamente pontuada a necessidade de

tes específicas, enquanto outros focaram

legislativas não foram ignoradas. Foi rei-

taram a descriminalização em várias fren-

intervenção nesse espaço, com vistas a

a necessidade de adotar uma postura ab-

descriminalizar ou minimizar o controle pe-

solutamente descriminalizadora. Segundo

nal sobre determinadas práticas e a articu-

este último ponto de vista, concessões de

lar diálogos com os atores institucionais.

ordem prática excessivas poderiam pôr em

A participação social na elaboração das

risco a meta principal – a alternativa ao pe-

políticas de alternativas penais mostrou-se

nal. Entretanto, foram levantadas algumas

central. Não só a participação de represen-

dificuldades relativas à adoção de uma

tantes da sociedade civil, mas principal-

postura absolutamente descriminalizado-

mente daqueles afetados por essa política,

ra, principalmente no que diz respeito à

os que são capturados pela malha penal e

agenda de alguns movimentos sociais pela

que são, de maneira geral, ignorados em

criminalização de condutas historicamente

sua elaboração. É dessa maneira que será

opressoras, como a violência doméstica e

possível construir uma política com alterna-

o racismo.

tivas passíveis de serem cumpridas, com

Nesse sentido, debateu-se a necessida-

base em uma rede interdisciplinar de sa-

de de dialogar com alguns movimentos so7


ciais que há anos lutam pela criminalização

sempre dos mesmos instrumentos, foi res-

da que se busca estabelecer diálogo com

práticas menores e em lugares diferentes

de determinadas práticas, na mesma medi-

saltada a importância de que experiências

os atores do Judiciário, do Executivo e do

sejam ressaltadas e cultivadas.

Legislativo. Foi enfatizada a importância de

A conclusão principal foi pela fidelidade a

o grupo se apropriar das demandas desses

uma grande meta, que tem em vista outro

matizar o punitivismo que permeia algumas

tabelecido traga desafios. A justiça restau-

movimentos sociais, mas também proble-

tipo de justiça, ainda que o diálogo a ser es-

delas, assim como toda a estrutura do pen-

rativa chama as pessoas a se responsabi-

samento social.

lizarem pelo que fizeram, o que é diferente

O uso do indicador de reincidência foi

da responsabilização externa. Mesmo que

acordado, mas a partir de pesquisas mais

o caminho seja árduo, as propostas apre-

sérias, capazes de problematizá-lo como

sentadas buscaram a possibilidade de criar

verificador e indicador verídico.

mecanismos dentro do sistema penal atual

Concluiu-se, especialmente, que as pe-

que possam alcançar o lugar de controle

nas e medidas alternativas existem e, por-

penal mínimo, do responsabilizar-se e da

tanto, devem ser utilizadas como meio de

justiça social.

promover o desencarceramento. A partir

Por fim, foram organizadas algumas me-

dessa aceitação, o grupo formulou a neces-

didas para dar continuidade ao trabalho

ficação interdisciplinar e intersetorial, que

trabalho, capacitação de equipes, defini-

sidade de que suas práticas tenham quali-

que teve início nesse encontro: grupos de

vise à formação dos agentes atuantes e se

ção de metodologias de aproximação com

apresente na capacitação do atendimento,

a base, produção de debates sobre justi-

na metodologia e na consequente melhora

ça restaurativa nas comunidades, investi-

da atividade jurisdicional.

mento no diálogo e na articulação com os

A justiça restaurativa foi definida como

atores institucionais, curso de capacitação

forma de qualificar as práticas das alter-

para professores e operadores do direito,

nativas penais. Ainda que ela possa oxi-

fomento a práticas e produção acadêmica,

genar alguns espaços, é a busca por uma

mobilização comunitária, garantia de parti-

alternativa ao penal que deve orientar os

cipação de pessoas diretamente afetadas

passos para a superação do modelo puni-

nos espaços de discussão e deliberação,

tivista. Nesse sentido, foi abordada a ne-

entre outras. As ações foram mapeadas e

cessidade de extrapolar os âmbitos legis-

divididas em tarefas por organizações ou

lativo e jurídico, por exemplo, por meio da

indivíduos. Dados, pesquisas, participa-

elaboração de estratégicas mais amplas,

ções, aprofundamentos e diálogos são os

que alcancem a arte, o combate ao racis-

próximos passos na disputa que se organi-

mo e a educação. Como crítica à utilização

za no escopo das alternativas penais.

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