Incesto sentido 2011

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Cap. 1 O dia em que eu cheguei à prisão, foi até hoje, o dia mais marcante da minha vida. Não sabia eu, que mais tarde outros se revelariam muitíssimo mais marcantes. Já passava das duas horas da tarde, quando dois homens corpulentos, num exemplo de força e autoridade, me introduziram no interior dum carro celular, escuro e medonho; uma autêntica prisão de alta segurança. Deixei-me levar sem resistência. Fechei os olhos e abandonei o meu corpo às sacudidelas próprias dum carro em movimento. Na escuridão da minha mente, imagens terríveis desenrolam-se dentro do meu cérebro, como um filme de terror. Como fui capaz!? Como fui capaz Santo Deus!? A viagem não foi longa, vinte minutos se tanto. O carro parou e o meu corpo foi projectado para a frente, obrigando-me a firmar bem os pés para não cair. Ouvi um portão abrir, accionado por um mecanismo eléctrico e o carro arrancou de novo, desta vez o meu corpo foi projectado para trás. Alguns metros à frente, parou definitivamente. As portas do furgão abriram-se e eu saí ficando com os olhos ofuscados pela claridade. Fiquei parada, como se os sapatos estivessem colados ao chão. Agora estava num beco sem saída, não podia fazer fosse o que fosse para sair daquele pesadelo. Estava destruída. Tentei afastar essa ideia deprimente do meu espírito; eu tinha de ser forte para meu próprio bem. Como o avô costumava dizer, “ há momentos em que é preciso encarar a vida bem de frente, olhos nos olhos, com a força e a coragem com que o forcado enfrenta o touro na arena”. As lágrimas deslizavam pela cara abaixo, formando nos meus olhos uma espécie de névoa, que me impedia de ver o caminho. Perturbadíssima, caminhei com passos vacilantes, acompanhada pelos guardas prisionais. Enquanto prosseguia, ergui a cabeça e lancei um olhar à minha volta.Um edifício enorme, um pátio, algumas árvores; tudo isto delimitado por um muro altíssimo, coroado de arame farpado.

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“E é aqui atrás destes muros brancos, que irei passar os melhores (piores) anos da minha vida. – Pensei.” Caía uma chuva miudinha e estava frio. Coloquei o casaco sobre os ombros, baixei a cabeça e caminhei em silêncio, com as lágrimas deslizando livremente pela cara abaixo. O chão à minha frente começa a ondular como se caminhasse sobre a água do mar. Na esperança de encontrar conforto na minha fé, elevei os meus pensamentos para Deus e rezei mentalmente. “ Perdoa-me Senhor, dá-me força; é tudo o que eu preciso neste momento” A oração é um conforto, um alívio, dá-nos segurança e por vezes funciona como uma âncora. “Quando o céu está negro, e a tempestade passa por cima da nossa cabeça, é preciso saber esperar, porque o sol voltará a brilhar”. – Dizia a minha catequista. Obrigada irmã Zélia, contigo aprendi a ter fé, quando nos dizias que a fé nunca estaria em vias de extinção e a confiança em Deus haveria sempre de continuar… tu estavas certa. Fomos recebidos por um homem atarracado, careca, sentado atrás duma secretária. Falou com o cigarro preso nos dentes e o ar à sua volta estava irrespirável. À sua frente, estava um cinzeiro já cheio de pontas de cigarros. Não me recordo o que me perguntou, nem tão pouco o que lhe respondi, só sei que pouco depois uma mulher guarda acompanhou -me em silêncio, através de um corredor enorme, sombrio, onde ecoavam os nossos passos. Um molho de chaves tilintava nas suas mãos. Calmamente escolheu uma, introduziu-a no buraco da fechadura rodou-a e a porta abriu com um estalido. Fez-me entrar numa cela, saindo de seguida, fechando a porta atrás de si com estrondo. Olhei aquele cubículo que não tinha mais que seis metros quadrados. Era completamente desolador. Era-me impossível imaginar um lugar mais desumano para se viver. Fiquei imóvel como uma estátua. Com os olhos arregalados percorri todo o espaço; uma mesa, uma cadeira, uma enxerga imunda… as paredes eram negras e frias, senti a humidade penetrar-me nos ossos.

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De repente como um touro enraivecido, despejei ali toda a minha raiva; dei murros nas paredes, pontapés na porta, gritei como uma louca até ficar exausta. Deixei-me cair de joelhos e chorei, chorei desesperadamente. Que fiz eu Senhor, o que vai ser da minha vida!? Senti-me amargamente arrependida, terrivelmente culpada, mas já não podia voltar atrás. Viver ali naquele lugar durante anos, era um pensamento aterrador, arrepiante. Senti-me asfixiada, como se tivesse dentro de uma caixa hermeticamente fechada. Fechei os olhos e deixei que a imagem dos meus avós emergisse no meu cérebro perturbado. Como uma miragem, lá estava o meu avô, de pé frente à casa, olhar distante como se esperasse alguém. Como eu o consegui ver tão nitidamente nas suas calças de cotim azul, o colete já gasto pelas lavagens, sobre a camisa de mangas arregaçadas. A avó, no seu eterno luto, movimentava-se de um lado para o outro, dentro das suas enormes saias, o lenço atado atrás da nuca. Fiquei por momentos suspensa no tempo, saboreando aquelas imagens tão reais, tão próximas dos meus olhos e do meu coração, e tão longe no tempo e no mundo. Senti um aperto no coração. Ai, se eles soubessem como estou a sofrer! Chorei desoladamente como uma criança inconsolável. De repente todas as luzes se apagaram dentro de mim, fiquei numa completa escuridão, perdi os sentidos e perdi a noção do tempo. E eis que uma luzinha trémula aparece novamente diante dos meus olhos; apercebi-me que estava caída no chão, frio e sujo. Doía-me a cabeça, devo ter batido com ela no chão duro. Tentei levantar-me, uma tontura fez-me cambalear, aproximei-me da cadeira e sentei-me. A pouco e pouco, tudo ficou

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mais claro no meu espírito. Nunca me tinha sentido tão mal, em toda a minha vida. Ouvi ruídos difusos, vozes, portas a bater num estrondo ensurdecedor. No chão o saco de lona. Dentro dele estava a minha precária bagagem: um sabonete, pasta e escova de dentes, um lençol de banho, uma toalha de rosto, uma escova para o cabelo, champô, desodorizante, um frasco com perfume e alguma roupa interior. A Mónica não se esqueceu de nada. A Mónica é um anjo que Deus pôs no meu caminho. Ela sabe sempre como sarar as minhas feridas, as suas palavras funcionam como uma pomadinha milagrosa; ela é a irmã que eu nunca tive, sei que estará sempre pronta para me ajudar em qualquer situação. Da minha bolsa tirei a única herança deixada pela minha mãe, uma fotografia a preto e branco e um diário que eu guardo religiosamente. É sem dúvida o meu tesouro mais valioso. Quando morreu eu só tinha dois anos, era tão pequena que não consegui registar na minha memória qualquer imagem dela. Olhei o seu retrato, o seu sorriso, os olhos enormes e os cabelos longos caíam como cascatas sobre os ombros. Como era linda a minha mãe! Mais dois retratos a preto e branco, também eles tão importantes para mim: um do meu avô e outro da minha avó; como estão janotas nas suas fatiotas domingueiras. Reparei como a minha mãe tinha o sorriso igualzinho ao do meu avô, como se pareciam! Guardei tudo de novo.

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Fiquei parada no tempo com um turbilhão de pensamentos na minha cabeça. Num relance, voltei a olhar para aquela suposta cama, pensar que teria de dormir ali era uma ideia simplesmente repugnante. Lembrei-me da minha cama fofa, os lençóis macios, imaculadamente limpos, do meu edredão quentinho e leve... e o que vejo? Umas mantas surrentas e ásperas. Que horror! Sem querer recomecei a chorar baixinho. Alguns raios de sol, entraram pela janela minúscula, com grades de ferro. Limpei as lágrimas, levantei-me, caminhei até à janela e espreitei; lá fora o céu estava cinzento, o sol começa a penetrar através das nuvens, parou de chover. Ouvi vozes, portas a bater, passos junto da minha porta, o tilintar das chaves. Uma chave entra na fechadura com um estalido, e a porta abre-se, uma mulher fardada chamou-me para o jantar. Obedeci silenciosamente, apesar de não ter apetite. Saí para o corredor apinhado de gente em algazarra. O refeitório era uma verdadeira loucura, um barulho infernal. Sentei-me e fiquei imóvel, desejando que ninguém reparasse em mim. Impossível,a pouco e pouco, todos os olhos estavam cravados no meu rosto. Apercebi-me de alguns comentários desagradáveis. Senti-me mal, baixei o olhar envergonhada, desprezível como um cão abandonado à sua triste sorte. - Não comes? - Perguntou alguém a meu lado. Levantei o olhar para ela. Era uma rapariga de rosto redondo, salpicado de sardas. “ A comida é uma porcaria, mas na falta de outra melhor temos de a comer. Não vale a pena reclamar, a de hoje é igual à de ontem, e a de amanhã será igual à de hoje, não esperes melhoras.”

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- Não me apetece – consegui dizer. A minha voz soou oprimida como se tivesse uma pedra entalada na garganta. O ambiente era tenso, agressivo, gente sem educação, falavam alto, o barulho dos talheres, dos tachos e das terrinas era estrondoso. Havia ofensas de reclusas para recusas, insultos, gente que já se conhecia de outras paragens, velhos ódios, vinganças. As guardas passeavam, entre as fileiras das mesas tentando manter a ordem, mas não era fácil: voavam objectos pelo ar, que por vezes lhe passavam rente às orelhas. Aproxima-se a noite, olhei para a cama (?) e não consigo imaginar-me deitada nela. Resolvi não me despir, estendi a toalha de turco, deitei-me sobre ela, por cima o lençol de banho e não me restava alternativas: puxei as mantas. Miseravelmente acomodada, mais uma vez amaldiçoei o meu destino. Deitada às escuras nessa noite fui incapaz de adormecer. Sentia-me desconfortável, horrivelmente desconfortável. Vozes, gritos, pontapés nas portas; alguém chorava na cela ao lado e, no silêncio da noite, todos os ruídos tomam outras proporções. Vivi uma verdadeira noite de pesadelo. Estava apavorada. Tinha fome e não conseguia comer, tinha sono e não conseguia dormir. Amanheceu numa enorme algazarra, era a hora do pequeno-almoço. No corredor cheirava a excrementos humanos ainda fumegantes, vi rostos destorcidos com vergões, olhos inchados e bocas que cheiravam a podre. No refeitório cheirava a café e a pão fresco, ainda quente, este contraste de aromas revoltou-me o estômago, não consegui evitar um vómito. Bebi um pouco de café já morno, e comi um pouco de pão com manteiga, para acalmar o estômago. Chegou a hora do recreio. No pátio de terra batida, observei os rostos de tantas mulheres, na ânsia de encontrar alguém com quem pudesse conversar. Vi caras tristes, angustiadas, humilhadas, vi ódio e vingança nos seus olhos,

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muito sofrimento; gente que vive o presente com os olhos postos no passado. Vi também rostos risonhos, cheios de esperança; gente que vive o presente, com os olhos postos no futuro.

Tal como escreveu o escritor Inglês Frederic Lambridge “ Duas pessoas olham através das mesmas grades, uma vê a lama e a outra as estrelas”.

Senti-me só, tristemente só; tive pena, raiva e vergonha de mim própria. Escolhi um lugar onde pudesse passar despercebida e sentei-me no chão. Continuei com um olhar perscrutador pelo pátio: vi mulheres gordas, flácidas, desmazeladas, despenteadas; gente errante, sofredora e não consegui evitar uma explosão de lágrimas. Como eu estava deprimida! As lágrimas deslizavam pelo meu rosto e eu estava a perder o controlo das minhas emoções. Regressei à minha cela com uma penosa sensação de rejeição. Por que é que ninguém se aproximou de mim? Que falta de calor humano, que falta de solidariedade! Como são complicadas aqui as relações humanas; fazer amizades deve ser um verdadeiro milagre.

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Cap. 2 A Mónica veio visitar-me. Ver um rosto familiar no meio duma multidão de gente desconhecida, trouxe-me algum conforto. Ela e os seus pais, são a minha segunda família, foram eles que me acolheram em sua casa quando eu fui forçada a sair do meu país e vim viver para França. - Olá querida como estás? – Foram as suas primeiras palavras. Percebi que estava ansiosa, tensa. - Como achas que posso estar? – Respondi tristemente. “ Não acha nada, não imagina, não sabe como é. - Pensei para comigo.” Era mais forte do que eu, queria aparentar coragem, mas fui traída por uma torrente de lágrimas teimosas. - Calma! – Disse-me. – Colocando as suas mãos sobre as minhas. Apercebi-me que também ela não conseguia conter as suas lágrimas; Ambas fizemos um esforço enorme para nos controlar. - Olha trouxe-te… – disse com a voz trémula – flores, um livro, fruta, sumos e bolachas. - Obrigada, sorri-lhe tristemente. Fez-se um pequeno silêncio entre nós. - Não imaginas como é complicado entrar aqui como visita. – Disse. - É mais difícil entrar como reclusa – respondi secamente. Continuou, ignorando o meu comentário. - Lá fora uma multidão de gente aguarda a hora da visita. Gente com mau aspecto e sem o mínimo de educação; gritam impacientes, ameaçam arrombar os portões, ofendem os guardas, dizem palavrões. Tive medo acredita! – Continuou. - Algumas pessoas como eu, educadas, civilizadas

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esperam em silêncio, tentando disfarçar a vergonha e o mal-estar – é desconfortável. - Desconfortável!? – Repeti com desdém Continuou Depois quando se abrem os portões entram aos empurrões; é uma verdadeira aventura. Cá dentro tudo é revistado, passam tudo a pente fino, dizem que é preciso verificar tudo o que entra para dentro da prisão. Uma mulher trazia um pão-de-ló, cortaram-no em fatias; imagina até onde vai a imaginação das pessoas, dentro do bolo encontraram uma dose de droga. Somos revistados, apalpados, alguns mais suspeitos são obrigados a ficarem completamente nus; nunca imaginei que fosse assim. - Nem eu! - Disse sem interesse. Observei o ambiente: umas riem, outras choram, desabafam, querem saber coisas da família, do mundo lá fora. Um atropelo de perguntas sem esperarem pela resposta – o tempo é pouco e tanta coisa para dizer. Terminada a visita é o regresso às celas. Regressei de cabeça baixa. Algumas

choravam

baixinho,

outras

vinham

animadas,

quase

felizes;abriam prendas, encomendas e a alegria de umas era ofensa para a tristeza de outras. Algumas

portas

fecharam-se

com

estrondo,

ouviram-se

gritos,

palavrões, pontapés nas portas, uma verdadeira loucura.

Flores e um livro. - É impressionante como trouxeram um pouco de vida à minha cela; o ambiente ficou mais acolhedor. Coloquei as flores dentro de água – como eram lindas e perfumadas.

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Veio-me à memória a primeira vez que recebi flores. Pierre trouxe-me rosas vermelhas, fiquei feliz, nunca ninguém me tinha oferecido flores antes. “São lindas disse-lhe. Pôs as mãos à volta da minha cintura, puxou-me para ele, beijou-me apaixonadamente e disse com ternura: - Um homem que não oferece flores, não sabe amar verdadeiramente. “Grande canalha, patife, hipócrita!” Tentei afastar de mim estas recordações que só me faziam sofrer. Peguei no livro; “O Alquimista” de Paulo Coelho. Voltei a pousa-lo em cima da mesa, não tinha cabeça para nada, estava num grande sofrimento moral e para ler é preciso ter o espírito limpo, receptivo. Guardei as bolachas, a fruta e os sumos. Maquinalmente voltei a pegar no livro, abri ao acaso na página sessenta e sete, mais ou menos a meio, li: “... E sentiu pena de si mesmo porque às vezes as coisas mudam na vida, no espaço de um grito antes que as pessoas possam acostumar-se com elas...” Voltei a ler e achei que estas palavras foram escritas especialmente para mim, voltei a fechar o livro e fiquei pensativa. Na contracapa três frases chamaram a minha atenção “Escuta o teu coração” “Ele conhece todas as coisas” “Porque onde ele estiver é onde estará o teu tesouro” Não consegui entender o que o escritor queria dizer, os meus pensamentos ficaram impregnados destas palavras, não parei de pensar durante toda a tarde nestas frases na esperança de encontrar um sentido mas

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achei que não faziam sentido nenhum. Contudo, cheguei a uma conclusão: era importante ter algo para ocupar o meu espírito, ajuda a passar o tempo. Claro! Mónica teve uma excelente ideia. Ler ocupa o espírito, o livro é um amigo; mas agora não. O meu espírito está demasiado ocupado, não há nele espaço para a leitura. De novo apercebi-me que a porta da minha cela estava a ser aberta. Incomoda-me esta falta de educação, de respeito, abrem as portas sem bater, sem pedir licença, dão-nos ordens e nós limitamo-nos a obedecer sem pedir explicações. Aqui deixamos de ser tratadas como gente, de ter vontade própria; perde-se o direito à privacidade, à dignidade, descemos ao mais baixo da condição humana. Uma guarda entra e antes que tivesse tempo de dizer o que quer que fosse disse-lhe num impulso: - Olhe, não dá para bater na porta antes de entrar? E que tal pedir licença? Acho que isto é uma invasão à minha privacidade. Respondeu-me com uma gargalhada sonora, que me atingiu como um soco no estômago. Olhou-me de frente e disse-me: - A madame pensa que está num hotel de cinco estrelas? Não seja tonta! Se estava habituada a ser tratada assim com tanta importância, fique sabendo que tudo isso ficou para lá do portão, cá dentro são todas tratadas da mesma maneira. - Sem respeito. - Respeito!? Por favor não enxovalhe essa palavra, como pode falar de respeito, alguém que matou duas pessoas sem o mínimo de respeito pela vida humana.

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- Nunca ninguém diga “ desta água não beberei”. Cinco minutos antes de o fazer, também eu juraria a pés juntos que nem uma galinha seria capaz de matar. - Bem, já lhe estou a dar muita conversa; vamos, o seu advogado está à sua espera. - Pois que espere, está a ser muito bem pago para isso – disse-lhe com altivez.

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Cap. 3

O homem que me esperava levantou-se quando eu entrei na sala, estendeu-me a mão, eu dei-lhe a minha para que a apertasse. - Sou o Dr. Robert Fontaine, muito prazer madame Rosaire – pronunciou o meu nome em Francês. - Igualmente – respondi sem entusiasmo. - Sente-se por favor – num gesto amável indicou-me a cadeira. - Muito obrigada. Observei-o discretamente, era um homem muito elegante, ainda jovem, cheirava a perfume e a tabaco numa combinação agradável. Vestia um fato cor de chumbo, a camisa azul e uma gravata com risquinhas miudinhas, que lhe dava um ar ainda mais jovem. O seu sorriso era agradável, mostrava uns dentes certos e excessivamente brancos, o seu hálito era fresco. Estávamos sentados frente a frente, separados por uma mesa de madeira. Coloquei as mãos em cima da mesa, acho que tremiam, aliás toda eu tremia; estava nervosa, a situação era constrangedora, estava muito abalada, amedrontada à perspectiva de um julgamento; tudo era tão novo para mim. Ao aperceber-se da minha inquietude, do meu nervosismo, colocou as suas mãos sobre as minhas. - Calma, estou aqui para a ajudar. Meu Deus, que insensata atitude a dele. O calor das suas mãos percorreu o meu corpo como um choque eléctrico. Rectifiquei a minha posição na cadeira e retirei as minhas mãos com naturalidade. - Vamos conversar – sugeriu. - Claro, foi para isso que veio. - Respondi.

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- Por favor, peço-lhe que me conte tudo sem omitir nada, é muito importante. Não esqueça nenhum detalhe. - Claro. – Fiz uma pequena pausa, enquanto procurava as palavras; difícil era começar.

- Conheci Pierre numa noite de tempestade, uma noite horrível, chovia torrencialmente e o vento soprava forte, tudo isto acompanhado de trovões e de relâmpagos (quem sabe um aviso de Deus, que eu não soube entender) – Disse como se falasse comigo própria. Estávamos numa festa de aniversário de uma amiga comum, fomos apresentados; desde o início algo nele me atraiu: as suas maneiras delicadas, sempre tão gentil,alegre e divertido. Comecei a reparar que também ele me olhava com insistência, comecei a ficar pouco à vontade; o seu olhar sempre colado no meu rosto, constrangia-me. Andámos pela sala cheia de gente jovem e divertida. Inconscientemente dei por mim procurando o seu rosto no meio de toda aquela gente. Nessa festa reparei também num rapaz de aspecto extravagante, alto, bem constituído, olhar distante e cabelo comprido apanhado em forma de rabo-de-cavalo. Confesso que não senti a menor simpatia por ele, pelo contrário. Reparei que Pierre e Phillipe, assim se chamava, eram amigos inseparáveis; a partir daí, sempre que nos voltamos a encontrar, lá estava ele junto de Pierre, como uma sombra. Entretanto umas semanas depois Pierre estava à minha espera quando eu saía para trabalhar. Era bastante cedo, fiquei surpreendida, convidou-me para tomar o pequeno-almoço com ele, aceitei; eu estava excessivamente nervosa e os meus gestos desajeitados. Foi nessa manhã que ele me falou do seu amor por mim, e eu lhe falei do meu amor por ele; despedimo-nos com um longo beijo. Quando alguns meses mais tarde, me convidou para viver com ele, eu aceitei sem hesitar, estávamos tão apaixonados um pelo outro (eu estava apaixonada); desculpe, estou a ser maçadora, talvez fosse melhor abreviar. 16


- Esteja à vontade, continue. - Phillipe começou a ser presença assídua lá em casa; movimentava-se com um à-vontade, como se estivesse na sua própria casa. Ligava a música, desligava, ligava a televisão, mudava de canal, tirava um livro da estante, sentava-se no sofá, pernas esticadas, os pés em cima da mesa, ìa à cozinha, comia e bebia do que lhe apetecia; e eu engolia tudo isto, sem saber porquê. Apetecia-me virar a mesa, pô-lo no olho da rua, dizer-lhe que não aguentava mais, que não o suportava; no entanto, não disse nada. Aguentei, aguentei e quase rebentei; porque o fiz? Pensando bem eu até sei porque o fiz; porque ambos estamos no mesmo pé de igualdade, a casa não pertencia nem a um nem ao outro. Duma coisa eu estava certa, se eu não fizesse nada ele ia acabar com a nossa relação. O apartamento era do Pierre, eu não me sentia com autoridade para lhe dizer quem é que ele devia, ou não, levar para a sua própria casa. Mas bolas, nós não estávamos a viver juntos, não éramos como se fossemos marido e mulher? Achei que isso me dava o direito de dar a minha opinião, de mostrar a minha repulsa por esse rapaz. “Não gosto desse teu amigo Phillipe”- disse-lhe. Perguntou-me porquê. - “Não gosto e pronto, agradecia que lhe dissesses isso mesmo. - Por favor tudo tem um limite; só falta dormir cá em casa. Quase não temos tempo para estarmos sós” Pierre ficou pensativo, notei-lhe alguma tristeza no olhar. Confesso que senti pena dele, será que fui ríspida demais? Acariciei-lhe o rosto, não precisas de ficar assim, só quero mais tempo para nós, acho que não é pedir muito. Nos tempos mais próximos Phillipe começou a aparecer de longe em longe. Um domingo, estava na cozinha e ouvi-os discutir na sala. Quis saber o que se passava, – não te metas, respondeu-me Pierre com a voz alterada - não te metas em assuntos que não são teus.

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Calei-me humilhada, meti-me no quarto, chorei durante bastante tempo; Pierre nunca tinha sido tão agressivo comigo. Ouvi a porta bater, tudo ficou em silêncio; levantei-me e fui até à sala na esperança de encontrar Pierre, mas ambos tinham saído. Senti raiva dos dois. Pierre chegou já o dia começava a clarear. Não consegui dormir durante toda a noite. Levantei-me com a cabeça pesada, como se tivesse apanhado uma bebedeira na noite anterior. Telefonei para o atelier de bordados, que eu e mais duas amigas tínhamos em sociedade; atendeu-me Sandrinne, avisei que não ia trabalhar, talvez aparecesse depois do almoço. Passou-se uma semana sem que ninguém se pronunciasse sobre aquela noite e Phillipe não voltou a aparecer. Pierre trabalhava numa rádio local, o Dr. Conhece com certeza. - Claro, Pierre Jordan fazia o programa da meia-noite às duas da madrugada “Entre na noite comigo”. - Exactamente, deitava-se bastante tarde como é óbvio, quando me levantava de manhã cedinho, fazia-o com o cuidado de não o acordar. Naquele dia fatídico, sai para o atelier esquecendo uns tecidos e umas linhas que tinha comprado na véspera. A meio da manhã, sai para tomar café aproveitando para ir buscar o tecido e as linhas que iríamos precisar ainda antes do almoço. Abri a porta do prédio, nem precisei de chamar o elevador porque ele estava precisamente no rés-do-chão. Subi, abri a porta cuidadosamente sem fazer ruído, entrei e algo chamou a minha atenção para o quarto; descalcei os sapatos para tornar imperceptível os meus passos. Aos meus ouvidos começaram a chegar gemidos, sons abafados de palavras, os meus níveis de adrenalina subiram, o meu cérebro ficou alerta e o meu coração começou a bater descontroladamente. A porta estava entreaberta, aproximei-me; aquilo que os meus olhos viram deixaram-me pregada ao chão, por momentos. Deparei então com a verdade nua e crua; Pierre e Phillipe estavam nus, faziam amor possuídos por uma volúpia de sentidos incontrolável.

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Homossexuais! Meu Deus! Como é que eu nunca tinha desconfiado. Que tapadinha! Algo em mim se transformou, como se uma besta habitasse em mim e tivesse acordado de um longo sono, incontrolável, agiu por sua conta e risco. Num impulso entrei no escritório de Pierre, abri a gaveta da secretária onde ele guardava o revólver, peguei nele, verifiquei se estava pronto a disparar e num instinto animalesco, abri a porta do quarto com um pontapé fazendo-a bater na cómoda com um estrondo enorme; ambos ficaram em pânico e foi com essa expressão gravada no rosto que cada um tombou para o lado depois de dois tiros disparados quase em simultâneo sem uma única palavra; perdi o controlo sobre mim, sobre os meus actos; os meus olhos ficaram escancarados de pavor. Fez-se um curto silêncio, Dr. Robert olhava-me quase sem pestanejar, a sua expressão ficou um pouco perturbada. Foi assim exactamente que tudo se passou; sei que não pode fazer muito por mim, matei dois homens...

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Cap. 4 Voltei á minha cela com uma dor cravada no peito: reviver toda a tragédia, a traição que eu havia vivido nos últimos dias, deixou-me de novo um sentimento de angústia, um desespero na alma. Estendi-me na minha enxerga, fechei os olhos e tentei esvaziar o meu espírito de más recordações, mas obtive precisamente o contrário: toda a cena passa em frente dos meus olhos como a película de um filme de terror. Estava moralmente destruída, havia precisamente três noites que não conseguia dormir. Decidi não descer para jantar, comi uma maçã; deliciosa, estaladiça, sumarenta, não resisti à tentação de comer outra; Caíram-me no estômago como pedras, comi duas bolachas e bebi um sumo. O meu aparelho digestivo reclamou, doía-me o estômago, uma sucessão de vómitos deixou-me transtornada, nunca na minha vida me havia sentido tão mal; deitei-me, na esperança de mergulhar no sono sem demora; no entanto, tal não aconteceu, permaneci acordada durante várias horas, apesar de me ter passado a má disposição e a dor no estômago. Finalmente adormeci vencida pelo sono e pelo cansaço, tive pesadelos horríveis, acordei aos gritos; aqueles acontecimentos tão recentes estavam gravados na minha memória com tamanha intensidade... Voltei a adormecer, mal fechei os olhos vi Pierre de pé junto da minha cama, sorria para mim, a sua presença era tão real, o seu olhar tão intenso no meu rosto. Abri os olhos ainda em estado de sonolência, a minha mente estava confusa, perturbada; será que tudo isto era apenas um pesadelo? Queria acreditar que nada aconteceu, mas voltei à realidade. Sentei-me na cama e chorei, estava exausta, doía-me o corpo e a alma duma forma tão profunda, tão íntima… será que voltarei a dormir tranquilamente, aquele sono doce, profundo, sereno? Levantei-me no silêncio da madrugada, na mais completa escuridão e rezei, fiquei em meditação até amanhecer; estes momentos em que estava com Deus e comigo própria eram momentos sagrados, que me aliviavam a alma, fazendo-me sentir mais limpa espiritualmente, mais forte. Os primeiros raios de sol iluminaram a minha cela. Começava um novo dia, o mesmo alvoroço, o ritual de abrir as celas, o mesmo cheiro nauseabundo, a correria para o refeitório, os vómitos. Sentada a meu lado,

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uma rapariga de corpo frágil, rosto miúdo, olhos azuis, cabelo louro, bastante curto e espetado. Reparei que tal como eu também ela era ainda muito jovem. Os nossos olhares cruzam-se, sorri-lhe, sorriu-me. Tinha um ar divertido. - O meu nome é Claire – disse – me. - O meu é Rosário; Maria do Rosário. – Sou Portuguesa. Algo nos atraiu uma à outra, talvez as nossas idades tão próximas a necessidade de partilhar as nossas desventuras, a urgência de um consolo e uma vontade enorme de aprender a viver uma vida nova. Tanto sofrimento oculto! Olhei em redor, as mesmas pessoas, os mesmos modos (ou falta deles), toda esta gente fazia agora parte da minha vida, vivíamos no mesmo mundo – pensei. Claire – O seu rosto permaneceu nítido diante dos meus olhos a tarde inteira, cara de anjo, que crime cometera? Existem crimes repugnantes, como repugnantes são as suas causas e como uma vida muda à velocidade de um relâmpago, sem que possamos fazer nada para voltar atrás – recuar no tempo é coisa impossível. Fizemo-nos amigas, procurávamos todas as ocasiões, para estarmos juntas: Falou-me de si, do motivo porque estava ali – assalto. - Sabes, gosto de falar contigo – disse-me – fazes-me sentir gente, dás-me atenção, escutas-me com paciência, parece que sentes prazer nas minhas palavras, talvez até te aborreças com as minhas lamúrias, mas não deixas transparecer: vejo sempre no teu sorriso um incentivo para continuar; talvez eu esteja a cair no erro da maioria das pessoas que só falam de si próprias, esquecendo a necessidade que os outros têm de falar deles também. -Temos tanto tempo Claire! Tanto tempo! – Respondi devagar.

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- “Nunca tive um amigo de verdade, quando desabafo contigo fico bem, mais leve, mais forte, Nunca ninguém me amou, nunca ninguém me deu um conselho”. Afaguei-lhe o rosto com um sorriso – ser amigo é isto mesmo Claire, é escutar mais do que aconselhar; um conselho dá-se quando nos é pedido. A mãe abandonou-a – fez-se à vida. Do pai nunca quis nada. Cresceu aos cuidados da avó materna, – viúva e pobre. Ambas viviam numa barraca de tábuas, partilhando a mesma miséria, fome e falta de higiene. O cheiro era insuportável, principalmente no verão, atraindo milhares de moscas Imaginei o cenário: Uma velha miseravelmente vestida, suja e despenteada e uma criança seminua, descalça, cabelo empastado, cara suja e ranho no nariz. Senti uma ternura enorme por ela, fiquei imensamente emocionada, os meus olhos estavam marejados de lágrimas. Não notei revolta nas suas palavras, relatou tudo como quem conta o último filme a que assistiu. Falava com graça e vivacidade, as suas palavras tinham um som agradável, sentia necessidade de falar e nunca lhe faltava assunto. Senti um impulso, uma vontade quase incontrolável de a abraçar, de beija-la, de lhe dizer que queria ser sua amiga. Mas não o fiz, não podia fazê-lo, limitei-me a olha-la, a ouvi-la em silêncio com um nó na garganta. Amanheceu, levantei-me e quase de imediato comecei com uma nova sessão de vómitos, uma mulher guarda que na altura passava no corredor espreitou. - Que se passa? – Perguntou. Não consegui falar, os vómitos impediram-me de o fazer. Ouvia -a dizer: -Ai minha filha Deus queira que eu esteja enganada!... Que queria ela dizer? Estremeci perante a ideia de adoecer na prisão. Não desci para o pequeno-almoço, passei a manhã deitada. Levantei-me com

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tonturas. Depois do almoรงo comecei a sentir-me melhor, aproveitei a hora do recreio para respirar ar puro e apanhar algum sol.

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Cap. 5 Acordei cedo. Lá fora o sol apareceu timidamente por detrás das nuvens. Mais um dia em que a Mónica veio visitar-me; falei-lhe dos vómitos – Deve ser da comida, ou do sistema nervoso. Espera ai! – Disse, como se tivesse tido uma ideia brilhante – Rosarinho, tu estás grávida!?... Estas palavras bateram-me no rosto como uma bofetada. Meu Deus, como não tinha pensado nisso? Seriam essas as suspeitas da mulher guarda? Grávida – na prisão. Não, isso não me podia acontecer. - Já aconteceu! Mónica falou com tanta certeza que me irritou. O meu coração batia com força, fiquei aflita, confusa, impressionada – um filho! O grande sonho da minha vida, – ser mãe! Mas agora? Ironia do destino, só pode ser castigo. - Não digas asneiras, um filho nunca é castigo e, além disso, não tens a certeza. Talvez seja mesmo da comida. Regressei à minha cela, completamente alheia a tudo o que se passava à minha volta, os meus pensamentos, faziam faíscas dentro da minha cabeça. Tantas perguntas, tantos receios, tantas incertezas. Um filho na prisão. Quis saber, eu tinha de saber como era. - Eu sabia! Quando a ouvi aos vómitos, e olhe que raramente me engano – disse a mulher guarda. - Como é?! Quando chegar a altura, lá dentro é que ele não fica. Não é o único, estão ai dezenas deles no infantário. - É possível fazer o teste para ter a certeza? Não aguento esta ansiedade. - Calma, vou tratar disso. E se eu estiver grávida? Não sabia se estava feliz se estava triste. No dia seguinte tive a confirmação. Estava grávida e estava feliz.

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Seja em que circunstância for, esperar um filho é, e será sempre motivo de felicidade, Deus sabe o que faz. Começaram então as minhas preocupações em relação ao futuro. Eu não sabia durante quantos anos iria permanecer ali e não era justo que o meu filho ficasse neste lugar, privado de liberdade sem ter cometido nenhum crime. A senhora Laura, a mãe da Mónica, veio visitar-me prontificando-se a ajudar-me em tudo. -“Obrigada, vou com certeza precisar da vossa ajuda, vocês são a minha família, não tenho mais ninguém.” Os dias passavam com uma lentidão angustiante, tentei vencer a sua dureza e tudo lá fora, tão inacessível. Imaginei-me feliz, de mãos dadas com Pierre percorrendo as ruas de Paris, entrando nas lojas para comprar o enxoval do nosso filho, com o coração transbordando de felicidade. Um pensamento que passou pela minha cabeça como o clarão dum flash duma máquina fotográfica. Nunca saberei avaliar essa felicidade. A vida deu-me tudo pela metade, não era justo! Que merda de vida! Senti saudades dos meus avós. O meu avô, se ele estivesse a meu lado, para me dar a força e o ânimo de que tanto preciso! “Sabes Rosarinho, uma pessoa só, que não tem com quem falar sobre aquilo que vê, que sente, sobre o seu sofrimento ou as suas alegrias é como um dia sem sol”. Era precisamente assim que me sentia, escura por dentro.

O avô conhecia o poder da palavra certa, na hora certa, era um homem alegre, um bom contador de histórias. Tudo o que sei a ele o devo. Tanta coisa ficou por dizer; tanto ainda eu precisava de aprender e tanto ainda ele tinha para me ensinar. A sabedoria de um homem sem estudos, tantos anos acumulando conhecimento e experiência. Como ele tantas vezes dizia “vale mais o corrido que o lido;” entre nós havia cumplicidade, companheirismo,

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carinho, amizade, amor, tudo. O melhor avô do mundo; como fui feliz e joguei tudo para o ar. Que loucura, como me arrependo! As lágrimas deslizavam pelo meu rosto deixando nos lábios um sabor a sal. Quando penso na rapariga que eu era: calma, alegre, cheia de doçura, carinhosa, não posso deixar de sentir uma grande compaixão por mim própria. - Chegaste a chuchar no dedo, observando tudo e todos, com os olhos espantados e assustada como uma bezerrinha desmamada – contou-me um dia o avô – trazias surro que formava uma crosta na pele. A tua avó deu-te um banho com água quente e sabão azul e branco. Não foi tarefa fácil, tiveste de ficar de molho e depois de tanto esfregar ficaste mais vermelha que um tomate. – Tchii! A sério avô? – Perguntava eu, rindo como uma tolinha. - Sério. – Respondia ele. Para acalmar a pele, a avó besuntou-te o corpo com creme nívea. Depois o avô atrelou o cavalo à carroça e levamos-te ao hospital de Évora para seres vista por um médico. Ele olhou para ti, com uma cara muito séria, e disse: - Está muito fraquinha a pobrezinha. Tem diarreia? – Perguntou. - Tem sim senhor doutor – respondeu a avó prontamente – já se borrou uma data de vezes a magana, eu pensei que tivesse sido da viagem. - Verdade avô? Estás a brincar. - Ora, pergunta à tua avó. - É verdade avó? – Perguntava eu divertida. -O que é que é verdade? Resmungava ela junto do fogão. - A história que o avô está a contar? - Tenho lá tempo para histórias. - Respondia atarefada com os tachos e as panelas. E o avô prosseguia:

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- Tem cólicas na barriguinha – continuou o senhor doutor, – enquanto te calcava na barriga e tu gemia com dores. - Não acredito. - Verdade avô? – Eu ria, ria, que nem uma perdida. Quando o médico nos informou que tu terias de ficar no hospital, perdemos todas as esperanças. Voltastes três dias depois, sem diarreia e sem cólicas; sã como um pêro. – Rematou ele. E foi assim que comecei uma vida nova junto dos meus avós. A minha vida sofreu uma reviravolta; com apenas dois anos, eu não tinha a percepção suficiente para me aperceber do que se passava à minha volta. Desde o princípio o avô soube cativar-me, ele era um homem feliz; era algo que fazia parte dele, apesar dos momentos de grande tristeza o resto do tempo fazia questão de ser feliz e de fazer os outros felizes. Possuía uma boa disposição contagiante e um sentido de humor que ninguém conseguia ignorar. As suas gargalhadas tão genuínas, estão sempre presentes na minha memória. A minha avó era precisamente o oposto. Uma mulher rude, mãos grossas e ásperas das lides do campo. Só falava de terra e de sementes. Sempre ocupada em pequenas ou grandes tarefas. Uma mulher possante, carregava sacos de batatas, de milho, de trigo ou fardos de palha, com a mesma facilidade com que tirava o pão do forno e o colocava na mesa. Mugia as vacas e as ovelhas, fazia os queijos, tratava das galinhas e ainda fazia todo o trabalho na horta. Uma vida de muito trabalho e muitos desgostos, transformaram-na numa mulher amarga e triste. Cheguei a duvidar, do seu amor. No fundo, eu sabia que ela me amava, apesar dela nunca o demonstrar. Escondia os seus sentimentos, como algo de vergonhoso, fazendo desencadear em mim, frustração, insegurança e por vezes até alguma revolta. Como a detestava em certos momentos. Sentirei para sempre, uma verdadeira nódoa negra no meu coração; como foi difícil crescer a seu lado. Como gostaria de a poder abraçar, dizer-lhe, que a adoro, que hoje posso compreender o seu constante sofrimento, como desistiu de ser feliz.

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Sei que o sofrimento nos deixa reduzidos a nada, prostrados na valeta da vida, como um vagabundo, sem eira nem beira. Por vezes a vida deixa de fazer sentido, tudo parece irremediavelmente perdido. Depois da morte da minha mãe, vestiu-se de luto dos pés á cabeça: foi assim que a conheci, negra como um corvo. Três anos, mais tarde, a tragédia assombrou de novo a sua vida. A morte do único filho que lhe restava – num acidente de mota. Começou, a deambular pela casa como uma sonâmbula, alheia a tudo e a todos. Perdeu o gosto pela vida, pelas lides domésticas, pelo trabalho. Desleixou a sua aparência, envelheceu. O marido observava-a com o coração despedaçado, também ele estava destroçado. Tentou acalmar a dor que era de ambos, mas todas as palavras que ele lhe pudesse dizer naquele momento, para a trazer de novo à vida, ficavam perdidas no seu olhar distante, ausente. Entregou-se à cama, refugiou-se na sua dor. Afastou de si velhas amizades, gente que vinha com palavras de consolo, mas ela continuava inconsolável. - Falar é fácil, quando os desgostos são dos outros. - Dê Graças a Deus, comadre – tem um bom marido e uma netinha linda! – Disse -lhe, a tia Gertrudes, que fora madrinha da minha mãe. Ficava em silêncio, absorta em pensamentos. Chorava noite e dia. O marido, com palavras de carinho e sempre tão condoído, tão compreensivo quase lhe implorou: - Aceita a vida Mariana, também eu estou a sofrer, também eu amava os nossos filhos tal como tu; temos de aceitar as coisas, quando não as podemos mudar, temos de ter coragem para continuar. Eu sei que nunca nada será como antes, Deus assim quis; temos que respeitar a sua vontade. Fez uma pequena pausa - Onde está a tua fé, a tua coragem mulher?

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- Já não tenho mais – disse, com o olhar parado. - Que Deus é esse de que tu me falas, Joaquim? Que Deus é esse que nos leva dois filhos sem dó nem piedade? Porquê tanto castigo, que fizemos nós para o merecer? - Não entendas isso como um castigo Mariana, a morte é cega; quando vem, vem ás apalpadelas; aquele que se deixa cair nas suas garras, já não se pode livrar dela. Abraçaram-se comovidos. - Que seria de mim, se não te tivesse sempre a meu lado, homem? As lágrimas eram agora dos dois, porque ambos padeciam do mesmo sentimento de perda; embora a coragem para o enfrentar fosse diferente. Os homens são mais fortes, mais corajosos, diz o povo. Mas, nem por isso deixam de sentir a dor com a mesma intensidade. Presos ainda a uma educação em que lhes foi dito que é feio um homem chorar, que é sinal de fraqueza; aprenderam, assim a reprimir as suas lágrimas e a abafar a dor dentro do peito. Algumas vezes vi o meu avô chorar e nunca achei que demonstrasse fraqueza pelo contrário; penso que, quem mostra os seus sentimentos, quem liberta as suas emoções através das lágrimas, demonstra que é uma pessoa sensível, de coração aberto. Chorar alivia a alma e acalma o peito, ajuda a deitar cá para fora os demónios, que existem dentro de nós. Por isso, sempre considerei o meu avô, tão íntegro, tão honesto, tão verdadeiro com os outros e consigo próprio.

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Cap.6 Recordo o dia, que parti para França. O avô estava ansioso: andava dum lado para o outro: - Como serão, aqueles Franceses? _São, pessoas como nós, avô; simplesmente, falam de maneira diferente. - Não os vais entender! - Aprenderei, não se preocupe. Ouvi o pranto do seu coração. Tentei acalma-lo; também eu estava em desespero, preocupada e triste por deixá-los, por deixar a minha terra. Uma revolta sem tamanho. - Tu enches esta casa com a tua alegria, a tua juventude. Sem ti a casa ficará vazia, as nossas vidas também. Mais tarde ou mais cedo, eu sempre tive consciência de que um dia partirias, mas, nunca pensei que fosse desta forma - Isto não fica assim! Podes ter a certeza, irei esclarecer toda esta história. - Não avô, por favor não faça isso! É gente perigosa. Bem sabe das ameaças que eu tenho vindo a receber. É só durante algum tempo até tudo ficar esquecido, depois eu volto. - Esquecido? Existem coisas na vida que jamais se esquecem Rosarinho! - Eu sei avô, não era isso que eu queria dizer. Vamos deixar o pó assentar, é só isso. A minha avó assistiu a toda esta conversa, completamente calada, como se nada lhe dissesse respeito. Custava-me tanto vê-la assim indiferente, quando eu sabia que estava a sofrer tanto ou mais do que nós.

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Ouvi o motor dum carro. Os cães ladraram. Era o tio Vicente e a tia Amélia que me vinham buscar. Eram eles que me iam levar ao aeroporto da Portela a Lisboa. A tia Amélia era irmã da minha avó. Vivia na cidade de Setúbal. Ela e o marido gostavam muito de mim e eu também os adorava. Saímos para os receber, eu estava à beira dum ataque de lágrimas. A hora da despedida aproximava-se; a despedida nunca é fácil, nem para quem fica, nem para quem parte. Era uma manhã fria de Fevereiro. Entrei no carro, o seu interior estava agradavelmente aquecido. Senteime no banco de trás, olhei pelo vidro traseiro, apercebi-me de tudo aquilo que deixava aqui: os meus avós, a minha casa, os meus cães, os meus gatos, as minhas ovelhas, enfim, toda a minha vida. Um misto de raiva e de desgosto apoderava-se de mim. - Que loucura! – Disse em voz alta. Por que é que as coisas tinham de ser assim? Por que é que o destino comanda assim as nossas vidas? Eu não queria sair daqui. Aqui é o meu lugar. - Calma, Rosarinho. É só algum tempo, não é o resto da vida. O tio Vicente conduzia com cautela; embora gostasse de pisar no acelerador de vez enquanto, principalmente na auto-estrada. Num instante chegámos á ponte 25 de Abril. Era a primeira vez que eu vinha a Lisboa. Nasci e vivi cá até aos dois anos de idade; no entanto foi como se nunca cá estivesse estado. Olhei o rio, a cidade majestosa, iluminada pelo sol da manhã. Não sei porquê, senti uma vontade enorme de chorar. Sei que algures nesta cidade eu nasci e a minha mãe morreu. A Tia virou-se para trás e tentou mais uma vez acalmar-me 31


- Rosarinho, então, vais chegar ao aeroporto com os olhos inchados de tanto chorar! Tens de aprender a controlar as tuas emoções. - Pensa que vais passar umas férias – disse o tio Vicente, que se tinha mantido calado durante quase toda a viagem. - Quantas pessoas gostariam de ir a Paris e nunca terão essa oportunidade? Vais para casa dumas excelentes pessoas, vais conhecer outras pessoas, outras culturas… vai ser muito bom para ti. Sabes, ás vezes há males que vêm por bem! Acredita no que o tio te está a dizer. Eu sabia, que as intenções deles eram as melhores; esse pensamento deu-me um novo alento. “É tão bom saber que temos alguém que nos ama verdadeiramente.” Endireitei-me no banco, ajeitei o casaco. Observei a cidade em movimento, um trânsito infernal, edifícios enormes, lojas, hotéis, praças… muita gente, tudo fervilhava de actividade. Pensei na tranquilidade do meu Alentejo; as lágrimas ameaçaram saltar-me dos olhos, mas desta vez não lhes fiz a vontade. Tinha de seguir o conselho da tia Amélia; precisava de controlar as minhas emoções. Finalmente chegámos ao aeroporto. Despedi-me dos meus tios. De repente fiquei só, perdida no meio de tanta gente desconhecida. Ao entrar no avião, pensei: “Hoje é o princípio duma vida nova para mim, Que Deus me proteja!” Que sensação tão estranha, viver num lugar longínquo, num mundo totalmente diferente do meu. Por um lado era excitante, mas ao mesmo tempo assustava-me. Tranquilizei o meu coração, estava a apoquentar-me à toa, “tudo irá correr bem, se Deus quiser”. Era a primeira vez que eu viajava de avião. Confesso que fiz toda a viajem completamente apavorada; quase em estado de choque. Pouco depois da descolagem do avião, as hospedeiras distribuem revistas, jornais e comida. O Meu coração parecia ter subido para a garganta. Não consegui comer

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absolutamente nada. Uma sensação horrível de estar permanentemente exposta ao perigo. O avião aterrou no aeroporto de Roissy-Charles-de Gaule, em Paris. Senti-me como se tivesse aterrado noutro planeta. Assisti com a máxima atenção ao desfilar das malas de viagem, na passadeira rolante. Foi com grande alívio, que vi aproximar-se a minha. Cheguei à sala de espera completamente atordoada. Impaciente, procurei o rosto da Mónica ou dos seus pais, no meio de tanta gente que esperava ansiosamente. Mónica. Lá estava ela, sorridente, acenando-me. Nasceu em mim uma alma, já começava a ficar desesperada. Estar num País sem conhecer ninguém, sem falar uma única palavra da sua língua é aterrorizante - Rosarinho, que saudades, estás linda! - Tu também estás linda, Mónica – respondi-lhe – Segurei na sua mão. - Estás a tremer ma chérie ! Caminhamos até ao carro que estava, no parque subterrâneo do aeroporto. O ar, saturado de gases dos escapes dos carros, fizeram-me arder os olhos e a garganta. - A viagem, como foi? Perguntou ela enquanto conduzia. - Que queres saber, se tive medo? Acho que nunca tive tanto medo, em toda a minha vida. – Riu-se. Chegámos. Os pais da Mónica esperavam-nos. “O senhor, António e a senhora Laura, são um casal amoroso. O carinho com que me receberam fez desencadear dentro de mim uma sensação de bem-estar e segurança”

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Mostraram-me a casa. O quarto da Mónica era lindo, comparado com o meu. - Fica à vontade, como se estivesses em tua casa – disse, a senhora Laura. - Agora, vai tomar um banho, far-te-á relaxar. Estás muito tensa. A casa de banho era um luxo. Como aquela, só a da tia Amélia em Setúbal. Jamais, me esquecerei: O meu primeiro banho de banheira. Eu tinha uns cinco ou seis anos, quando os tios me levaram para passar uma semana com eles. – A menina precisa sair daqui senão transforma-se num bicho-do-mato – disse a tia Amélia, aos meus avós – Vamos fazer uma semaninha de praia, a criança irá gostar. Eu estava eufórica. Partimos, com o carro carregado de batatas, cebolas, fruta e hortaliças. Deixamos a estrada de terra batida, deixando atrás de nós uma nuvem de poeira, e entramos na estrada de alcatrão. O carro deslizava velozmente. Sentada no banco de trás, observei de olhos esbugalhados os carros que se cruzavam com o nosso. As árvores e as casas iam ficando para trás; também elas, pareciam deslizar a uma velocidade alucinante. Chegamos já era noite. A cidade estava toda iluminada. Foi o meu primeiro contacto com a cidade. A cidade assim iluminada parecia mágica. Eu, que vinha da escuridão e a única luz a que estava habituada era a do candeeiro a petróleo ou de velas, fiquei maravilhada com tanta luz. Subimos no elevador, outra aventura para mim. Lembro-me que estava, ansiosa, como hoje. Nunca tinha visto uma casa tão linda. Parecia que estava a sonhar. - Rosarinho estás cansada? É melhor ires tomar um banhinho, para depois ires dormir, já é tarde – Falou a tia, sempre tão carinhosa comigo.

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A banheira estava quase cheia. Entrei com cuidado, a água estava quentinha. Uma nuvem de vapor encheu a casa de banho, embaciando os espelhos. Deixei-me ficar, sentindo com prazer, a água no meu corpinho rosado. À minha volta havia: sabonetes, escovas, esponjas, gel de banho, champô e cremes para o cabelo. “Como é delicioso tomar banho assim. Que aroma, que sensação!” Eu que sempre tomei banho dentro dum alguidar, no centro da cozinha, com a água aquecida ao lume, e a cheirar a fumo. Esfreguei o meu corpo, lavei os meus cabelos, fazendo imensa espuma. Fiquei a saborear este momento único, só com a cabeça fora da água e o queixo a roçar na espuma. Suspirei de contentamento. Saí só quando a água começava a esfriar. Enxuguei o meu corpo com uma toalha macia. Senti-me limpa por dentro e por fora. Mónica esperava-me. Se calhar demorei demasiado tempo, entretida com as minhas recordações. -Vamos jantar? A minha mãe preparou um jantar especial para ti. - Oh, não havia necessidade, eu sou de boa boca, como tudo. Bacalhau com natas, azeitonas, salada de alface e à sobremesa um arroz doce delicioso, tão cremoso! Eu, que até não era muito apreciadora de bacalhau, adorei. - Estava uma delícia, muito obrigada por tudo. Agora, depois dum bom banho e desta agradável refeição, só me falta uma cama, para me sentir no céu – disse-lhes, mortinha de cansaço. - Oh, ma chérie, é só quereres – disse a Mónica levantando-se de imediato, aprontando-se para me acompanhar ao quarto. - Boa noite, desculpem, mas, estou cansadíssima.

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- Claro filha, não tens de que te desculpares, boa noite também para ti. “A senhora Laura, é uma excelente pessoa, até me tratou por filha. Juro que até fiquei emocionada.” Experimentei então, um momento de pura tranquilidade, como se estivesse em minha própria casa. Dormi como um anjo, num sono só. -Bonjour, ma chérie! Dormis-te bem ? Ouvi a voz da Mónica. –Bonjour, ma chérie. Dormiste bem? Ainda meio a dormir e meia acordada, tomei consciência que estava a acordar num Pais e num quarto que não era meu. - Meu Deus se dormi bem! Já é manhã? Acho que o tempo aqui passa mais depressa, mesmo agora me deitei! Rimos, felizes. Mónica levantou as persianas, espreitou lá para fora – para variar o dia está cinzento – disse decepcionada. -Aquele sol maravilhoso a que estavas habituada, aqui, é quase impossível. Enfim, temos de viver com o que temos. Aproximei-me da janela. Estava ansiosa, para conhecer a cidade; de facto, o dia estava bastante cinzento. A cidade estava completamente coberta por um manto de nevoeiro. Mónica, era bastante mais alta, do que eu. Era bem feita de corpo, e tinha uns cabelos compridos muito lindos. O seu rosto parecia de porcelana, tinha cara de boneca. - Lembro-me da primeira vez que fui a tua casa. Passei lá a semana, mais emocionante de toda a minha vida. – Disse ela. - Os campos estavam cobertos de flores brancas, amarelas, vermelhas… Borboletas esvoaçavam sobre elas, extraindo o seu pólen. Das ervas secas, saltavam gafanhotos, manadas de vacas pastavam, outras estavam deitadas em grupos à sombra dos sobreiros e os tractores preparavam a terra para as próximas culturas. Os teus tios disseram, que estava - mos quase a chegar. -Vês, aquele monte acolá? Aposto que a Rosarinho está com os olhos posto no caminho,

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ansiosa para te ver. Também eu estava ansiosa. Estava uma manhã linda de verão e cheirava a rosmaninho. Entrámos numa estrada de terra batida. De ambos os lados, havia giestas e carqueja (a tua tia, ia-me ensinando o nome de tudo.) As casas, eram tão poucas, ou melhor, quase não havia casas; apenas paisagem e silêncio. Ali o silêncio era rei e senhor. Passamos depois perto duma lagoa cheia de caniços, donde saiu um bando de patos bravos. - Lembras-te, quando chegamos? Foi uma festa, aliás foi uma semana inteirinha de festa. Corríamos pelos prados verdejantes, os pés descalços, rebolávamo-nos no chão até ficarmos tontas. Ao lanche bebia-mos leite morno acabado de ordenhar, até ficávamos com bigodes de espuma; comíamos pão quente que a tua avó cozia no forno a lenha. - Sabes, ás vezes fecho os olhos e ainda sinto o cheiro e o sabor de tudo, da fruta acabada de colher, das árvores, do mel, das compotas… - Recordas-te daquela manhã, em que eu queria assistir ao nascer do sol? Levantámo-nos cedíssimo, nós duas e a Madalena; saímos ainda mal se via. O prado ainda estava molhado, do orvalho que caíra durante a noite, chegamos ao cimo do monte, com os pés todos molhados. As nossas pernas ágeis, moviam-se rapidamente em passos saltitantes. Ainda na penumbra do amanhecer os pássaros piavam suavemente e saíam de dentro das árvores, onde pernoitavam, fazendo o orvalho acumulado nas folhas cair-nos em cima. O céu começou a clarear; ficou tingido dum amarelo-alaranjado. Os nossos olhos ficaram fixos no horizonte e durante algum tempo, em silêncio, como que hipnotizadas, aguardávamos a aparição dos primeiros raios. Para mim, sempre tão sensível, este nascer do sol foi como se também eu estivesse a nascer para uma nova vida. Dos meus olhos desceram algumas lágrimas, que eu consegui esconder para que vocês não se rissem de mim. Nem eu própria sabia porque chorava. Sempre fui muito romântica. Rimo-nos.

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- Como é bom recordar as coisas boas, que os anos vão deixando para trás. – Disse eu – E ainda somos umas crianças, imagina quando formos velhinhas! - Outra vez, fomos para junto duma figueira carregada de figos. Lembras-te? - Como é que me podia esquecer? Enchemos a barriga até nos rebentarem os cantos da boca. - Continuou com a felicidade estampada no rosto. - Um cão ladrou e alguém veio espreitar – era a dona da figueira. Ralhou, mas a sua voz ficou abafada com o ladrar do cão, não percebemos o que dizia, no entanto, não era difícil adivinhar. Corremos até casa, com os calcanhares a baterem no cu e os figos a quererem saltar-nos pela boca. Guardo tão boas recordações daquele tempo, Rosarinho, não imaginas como eu desejava que chegasse Agosto, para irmos para Portugal, para passar uma semana contigo. Às vezes, até me zangava com os meus pais, para me deixarem ficar mais tempo. Mas um mês passa tão depressa, tínhamos de visitar toda a família e fazer pelo menos duas semanas de praia. Aprendi tanta coisa contigo, com os teus avós. Aquele contacto com a natureza, acordar ao som do cantar dos galos, abrir a janela e encher os pulmões de ar puro. – Suspirou. - Ah! Ouve outro momento que me marcou imenso. O parto da égua, lembras-te? Ouvimos o teu avô dizer para a tua avó: a égua está com as dores, vamos ver se corre tudo bem. E tu explicaste-me, que a égua ia parir um cavalinho. Pedis-te ao teu avô se podíamos assistir ao parto. Porém ele foi peremptório: - Não, não podem; os animais quando estão com as dores de parto não gostam de sentir a presença de estranhos, o animal tem de estar tranquilo. - Oh, que pena, gostava tanto de ver! – Disse eu decepcionada. Seguraste na minha mão, e levaste-me para um esconderijo, onde podíamos ver sem sermos vistas. A égua estava aflita, de vez enquanto levantava-se e voltava a deitar-se; via-se que estava num grande sofrimento. Bastante tempo depois, e após um grande esforço, apareceu a cabeça do cavalinho. Estávamos no lugar ideal a posição em que o teu avô se encontrava não nos tapava

a

visibilidade

Estávamos num silêncio

absoluto, quase

nem

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respirávamos, não fosse o avô ouvir. Depois de horas de grande sofrimento, finalmente saiu o resto do corpo. O bebé caiu no chão e a mãe começou a lambê-lo; depois, tentou pôr-se de pé, mas as suas pernitas, ainda não tinham força para sustentar o corpo. Tu já tinhas assistido a vários partos, cresceste junto dos animais, mas para mim, foi uma experiência inesquecível. – Continuou a relembrar com entusiasmo. - Na cidade, nós só sabemos como funcionam os elevadores, a televisão, apanhar o autocarro para ir para a escola, ou para o trabalho; passamos dias inteiros fechados dentro de casa. Vamos à janela e só se vêm carros e gente correndo dum lado para o outro como loucos. Respiramos ar poluído, que nos destrói os pulmões; no campo, anda-se sem pressa, respira-se sem medo. O que mais me fascina é estar em uníssono com a natureza, assistir ao multiplicar das espécies que dão continuidade à vida. - Não imaginas, como está tudo tão vivo na minha memória. É tão bom recordar estes momentos, e sentir a alegria de os ter vivido. Mas tenho que te confessar uma coisa: é tudo muito lindo, muito saudável; mas eu agora não vivia lá nem que fosse amarrada a um sobreiro. Na cidade, temos outras oportunidades: podemos estudar, trabalhar, divertirmo-nos; estamos perto de tudo; temos acesso a tudo. -Depois um dia me dirás se não tenho razão! “Tive medo. E se um dia, eu lhe der razão? Isso significa que eu vou gostar tanto de viver aqui, que já não vou querer voltar. Eu prometi ao meu avô que vinha só algum tempo, não posso fazer isso com ele”. - Pensei. Era domingo, um domingo igual a tantos outros, excepto para mim. Fomos almoçar a um restaurante muito elegante e confortável. Escolhemos a mesa mais próxima da janela; era o lugar mais agradável, assim podíamos almoçar e admirar a paisagem simultaneamente. As mesas eram redondas, cobertas com toalhas até ao chão e as janelas elegantemente vestidas, do mesmo tecido. Além dos candeeiros de tecto, havia nas paredes algumas lanternas, que davam ao ambiente um certo requinte.

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O restaurante estava cheio de gente alegre e bem disposta. O meu constrangimento era enorme, nunca tinha estado num lugar tão chique; no entanto, adoptei um comportamento calmo, o mais natural possível. Depois do almoço, fomos dar um passei de carro, para eu conhecer um pouco a cidade. Fiquei completamente fascinada. As ruas, as avenidas, os jardins, o L`Arc de Triomphe, a Tour-Eiffel, a Cathedral-de-Notre – Dame e tantos outros lugares lindos e importantes da cidade. Vi também gente de toda a espécie: pessoas elegantemente vestidas, outras com aspecto mais descontraído, jovens com brincos nos lugares mais esquisitos, como por exemplo: nos lábios, sobrancelhas, nariz, umbigo e nas orelhas. Os cabelos espetados, de várias cores e cortes, tatuagens no corpo... A senhora Laura interrompe os meus pensamentos perguntando-me: - Então Rosarinho, estás a gostar, vais tão calada? - Sim, de facto estou sem palavras, isto aqui é outro mundo! - O teu mundo é que era muito limitado, não admira que estejas surpreendida com a diferença. E ainda não viste nada, isto foi só uma pequena amostra. Havia uma coisa que martelava na minha cabeça,- o facto, de ninguém me falar no motivo pelo qual eu vim viver para cá. Por um lado, sentia-me bastante aliviada, dava tudo para não ter de falar sobre o assunto embora eu soubesse ser minha obrigação contar tudo e de nada adiantava adiar, pelo contrário, só fazia aumentar dentro de mim uma ansiedade, que me estava a torturar. Por isso, depois do jantar fui eu mesma que sem mais rodeios, fiz questão de ir directa ao assunto. Um assunto tão doloroso, que falar sobre ele, era como esgravatar numa ferida quase sarada. Depois de jantar, concentrei todos os meus pensamentos e revivi mentalmente toda a cena. Calmamente, comecei por pedir desculpas por só agora lhes dar uma explicação; não o fiz antes por falta de oportunidade, disselhes.

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- Bem, nós sabemos alguma coisa sobre o assunto, a tua tia Amélia contounos. Claro que não é a mesma coisa. - Disse, o senhor António – Já sabes que, quem conta um conto, acrescenta-lhe um ponto. - Neste caso – respondi – só quem vive as situações, é capaz de contar tudo ao mais ínfimo pormenor. Foi horrível! Ninguém consegue imaginar o vendaval que se levanta dentro de nós. Um vendaval capaz de derrubar a pessoa mais corajosa. - Respirei fundo – Eu andava a pastar as ovelhas, de repente reparei num carro, parado nas traseiras da casa. Um carro azul, que eu nunca tinha visto por ali. Num instinto, corri para casa. Em Évora, já se falava numa vaga de assaltos, em todo o pais. Os assaltantes escolhiam lugares isolados, e principalmente pessoas idosas; aliás, o senhor lá da taberna estava constantemente a avisar as pessoas para terem cuidado. De dentro do carro vi sair dois vultos, contornaram a casa e entraram com a maior naturalidade. A minha avó estava lá dentro, fiquei completamente apavorada. Eu sabia onde o meu avô guardava a espingarda, tinha de fazer alguma coisa; era inútil pedir socorro, ali não havia vivalma que nos acudisse em caso de aflição. - Que horror – interrompeu a Mónica, – ainda bem que saíste desse lugar. Achas que nesse lugar alguém pode viver tranquilo e em segurança? - Quantas vezes eu já te tinha convidado para vires para cá? - Por favor Mónica, existe algum lugar à face da terra, onde se possa viver em total segurança!? – Respondi, com uma pitadinha de altivez. -Olhou-me com estranheza. -Continuei: - Como estava a contar, fui buscar a espingarda e carreguei-a com dois cartuchos. - A desgraça que se podia ter dado! – interrompeu, a senhora Laura, levando as mãos à cabeça. - Nunca foi minha intenção servir-me dela para matar; Deus me livre, era apenas para assustar. Pulei pela janela do meu quarto e, em bicos de pés, aproximei-me da porta entreaberta, e espreitei com o máximo de cuidado. O que vi, deixou-me completamente arrepiada. De facto a minha avó corria perigo: um homem encapuzado, mantinha-a sentada na cozinha, apontando para ela, a faca com que o avô costumava matar os porcos. Aí, confesso que

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senti medo. O mais pequeno ruído chamaria a sua atenção. Tive de raciocinar rapidamente. Recuei. Se eu entrasse pela porta que dava para a rua, ele estava de costas, não me via; mas a avó estava de frente, e quando desse pela minha presença ficaria assustada, não sabia qual iria ser a sua reacção, era muito perigoso. Lembrei-me então, que a avó estava sentada com o corpo dele à sua frente, tapando-lhe a visão, portanto, não podia perder nem mais um segundo, tinha de agir rapidamente. Entrei em casa como um furacão, sem lhe dar tempo de manobra; chamei a mim todas as forças e coragem, que jamais julguei possuir, e dei-lhe com os canos da espingarda na cabeça, fazendo-o cair a meus pés, como um trapo. Perante o olhar incrédulo da minha avó, tireilhe a faca e fiz sinal para ela continuar em silêncio. Entrei no quarto dos meus avós. Estava completamente de pernas para o ar. Havia roupa espalhada por todo o lado, as gavetas vazias. O homem que se encontrava no seu interior, também ele encapuçado parou, olhando na minha direcção. - Não se mexa – disse-lhe com autoridade, apontando-lhe a espingarda a um palmo da testa. Ordenei que me seguisse. Obedeceu sem mostrar resistência. À medida que eu ia dando passos para trás, ele ia dando passos para a frente, como se estivesse colado a mim. Eu tremia da cabeça aos pés. Ainda hoje não sei onde fui buscar tanta coragem. - Estou, sem palavras Rosarinho, nunca pensei que fosses tão corajosa, e tão decidida; uma verdadeira mulher de armas! - Conta o resto – pediu a Mónica, impaciente. - Entretanto, o outro começava a dar cor de si. Dei graças a Deus, cheguei a recear que estivesse morto. Já na claridade da cozinha, tive a certeza de conhecer muito bem aqueles olhos que espreitavam através dos buracos do capuz. Foi uma reacção impensada que me hei-de arrepender para toda a minha vida. - Arrepender, porquê!? Mónica estava a vibrar, os seus olhos estavam prestes a sair das órbitas. - Porquê? Porque mandei-o tirar o capuz. Primeiro, não era um homem, era uma mulher. Segundo, eu estava certíssima, conhecia muito bem aqueles

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olhos: eram os olhos, a cara, os cabelos, o corpo todo, da Madalena. Dá para acreditar? Imaginas por acaso o que eu senti naquele momento? Não imaginas. Ninguém consegue imaginar. A minha melhor amiga. Ela ficou tão aterrorizada quanto eu. Andamos juntas na escola, éramos confidentes uma da outra, uma amizade inigualável. Ambas ficamos imóveis frente a frente, apenas um silêncio fúnebre caiu sobre nós, como um manto negro. A minha avó estava estupefacta, foi ela que quebrou o silêncio: - Como foste capaz duma barbaridade destas, sua desavergonhada!? Ingrata, é assim que retribuis a amizade que tínhamos por ti? Já pensaste na explicação que vais dar aos teus pais? O desgosto e a vergonha que vão passar por tua causa? A minha avó levantou-se num impulso, com um pontapé fez levantar o outro que continuava estendido no meio da cozinha – Levanta-te daí seu desgraçado, mostra lá cara. Pedi a Deus que não fosse ninguém conhecido, uma traição já era demais, duas não sei se suportaria. Pôs-se de pé num salto. O pontapé atingiuo nas partes mais sensíveis. Com um puxão rápido, tirou a carapuça e aproximou o seu rosto ao da minha avó como se o quisesse enfiar dentro dos seus olhos, e disse: Vá, olha bem para a minha cara, velha de merda, não me conheces pois não? Mas talvez a tua netinha um dia me venha a conhecer muito bem. Ela afastou-o com um empurrão violento, fazendo-o desequilibrar e cair de costas. - Que queres tu dizer com isso, seu gabiru? A minha neta não precisa conhecer gente da tua laia. Foi a gota que fez transbordar o copo. Encostei-lhe a espingarda à nuca com bastante força e sem vacilar, ordenei aos dois que se retirassem imediatamente. Entraram no carro e arrancaram em grande velocidade. Para que soubessem, que a espingarda era a sério e eu não estava a brincar, atirei dois tiros para o ar. - Oh! Mon Dieu! Mais dites-moi, et après ? - Desculpe, senhora Laura, não entendi, o que disse? 43


- Ai filha, não ligues, estou com as ideias tão baralhadas que até já estou a falar francês contigo. Perguntava-te: e depois o se passou? - Depois, foram as ameaças. Todos os dias recebia ameaças, do género: «Saber demais às vezes mata» «Cuidado não dês com a língua nos dentes porque eles podem cair-te» «Vais ficar de boca fechada ou eu te calarei para sempre» Foi horrível, eu já não conseguia dormir, tinha pesadelos terríveis: que me estavam a matar... sei lá, coisas de que nem gosto de me lembrar. Eu e os meus avós temos vivido num verdadeiro inferno. E agora temo por eles, se lhes fazem alguma coisa, eu morro de desgosto. O senhor António tranquilizou-me: - Ninguém fará mal aos teus avós, fica descansada. - Deus o oiça. Ninguém imagina o meu sofrimento. Tive de abandonar tudo aquilo, que mais amava na vida: os meus avós. E eles, já pensaram como estão a sofrer? Eu era o único elo que os prendia à vida. Ainda trago nos ouvidos as últimas palavras do meu avô, – «sem ti esta casa ficará vazia e as nossas vidas também». - Pronto, não vamos falar mais sobre isso. - Concluiu a senhora Laura. Retirou-se, deixando na sala uma atmosfera de constrangimento. Senti uma vontade enorme de pegar nas minhas coisas e voltar para o lugar donde nunca deveria ter saído! Sempre que penso, em tudo aquilo que se passou, sinto uma revolta... não consigo perceber o que levou a Madalena a fazer um acto destes, que destruiu uma amizade tão pura; onde foi ela, conhecer aquele tipo? Um marginal. Nós nunca tivemos segredos, porque é que ela nunca me havia falado dele? É tudo tão sórdido! Porque não a procurei, para lhe pedir uma explicação? Que explicação!? - Raios a partam. Por sua causa é que eu estou aqui, metida nesta cela fedorenta. Não é bem assim, eu sei; mas, se não tivesse, vindo para cá, não teria conhecido o Pierre. Se, se, se; tudo na vida é feito de «ses»; Se não tivesse feito isto, se não tivesse dito aquilo. Enfim, se a minha avó não tivesse nascido, também eu não existiria. 44


E este filho que trago dentro de mim!? É nele que tenho de pensar, é por ele que tenho de continuar a lutar e ter esperança num futuro melhor. Naquele dia, quando sai do apartamento do Pierre, perseguida pelo pavor da morte, totalmente descontrolada, dirigi-me para a casa da Mónica. Entre prantos e lágrimas, num emaranhado de palavras, tentando explicar o que acabara de acontecer. _ Calma, minha filha – disse-me o Sr. António – sentando-me no sofá. Tens de te acalmar Rosarinho, nós assim, não percebemos nada. Sentou-se a meu lado, enquanto a Sra. Laura me trouxe um copo com água. A Mónica estava boquiaberta, os olhos escancarados sem articular uma única palavra. Um pouco mais calma, consegui então, explicar exactamente como tudo se passou. -Eu não acredito! - Disse a Sra. Laura começando a andar dum lado para o outro, cada vez mais nervosa. - Eu bem sei, que não há nada que mais nos ofenda, do que a falta de respeito pelos nossos sentimentos, mas confesso que estou chocada com a tua reacção; pensava-te incapaz de tamanha barbaridade. - E o que ele fez comigo, não foi também uma barbaridade? Esta traição atingiu-me como um punhal. - Disse, como se pedisse a sua compreensão. - Eu também estou abismado. – Disse o senhor António abanando a cabeça. - Pierre, foi um sacana da pior espécie, tu não merecias. O que ele fez contigo foi imperdoável; mas Rosarinho nada justifica o que tu fizeste – não se pode matar assim duas pessoas tão friamente. - Depois duma pequena pausa prosseguiu. - Matar é um pecado que Deus não perdoa. - Eu não queria – disse, recomeçando a chorar – eu não queria, agi por impulso, movida por uma força sobrenatural. As primeiras palavras da Mónica foram quase uma súplica:

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- Foge Rosarinho, vai para Portugal, no próximo avião, ainda estás a tempo! Levantei-me do sofá, limpei as lágrimas e encarei-a bem de frente. - Não minha amiga. O que me estás a pedir chama-se cobardia; não faz parte dos meus princípios, fugir, nunca. Tenho de pagar por aquilo que fiz. - Fazes bem Rosarinho, eu não podia esperar outra resposta da tua parte – aprovou o pai da Mónica – nós estamos contigo, para te apoiar. Podes sempre contar connosco. - Obrigada, é muito bom poder contar com a vossa amizade, numa hora destas. Agradeço o vosso carinho e a vossa compreensão. Jamais esquecerei tudo o que fizeram por mim desde que cheguei; a forma como me acolheram em vossa casa, a maneira como sempre me trataram. Por favor, desculpem pela vergonha que os estou a fazer passar. Caí nos braços da Mónica e chorei desesperadamente.

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Cap. 7 Acordada na escuridão da minha cela fiquei a cismar... “Pierre foi um sacana, aproveitou-se do meu amor, da minha ingenuidade, fez-me sentir enganada, humilhada, fez de mim uma assassina.” Como alguém disse um dia: «O amor, tem um poderoso irmão; o ódio. Procura não ofender o primeiro, porque o segundo pode matar-te.» Estes pensamentos martelam noite e dia na minha cabeça. “Eu sei que não agi correctamente, devia ter saído da sua vida da mesma forma como entrei; mas naquele momento, o sangue ferveu-me nas veias. O amor para mim tem de ser jogo limpo, não pode haver batota. Oh, Pierre como eu queria acreditar, que o teu amor por mim não foi uma mentira! Não pode ter sido uma mentira! Eu preciso acreditar que o filho que trago dentro de mim foi fruto dum grande amor”. Pela janela alta, o vulto negro da noite encheu a minha cela. Lá fora, a chuva caía com violência. Tentei não pensar em nada, esperei pelo sono que tardou em chegar. “Quem, esteve aqui antes de mim? Como era? Que crime cometera? Quem virá um dia, ocupar o meu lugar? É mais fácil, encontrar uma cama livre no hospital do que uma cela vazia na prisão. Que mundo é este Senhor!? Tanta violência tanto ódio.” Acordei cedo, lá fora o sol apareceu timidamente por detrás das nuvens. Mais um dia e a ilusão de que o dia seguinte seria diferente, todavia tudo era igual ao dia anterior. No pátio, rodeada de outras mulheres, isolei-me. Recuei no tempo e uma vez mais fiz uma síntese do que foi a minha vida até hoje: a criança que fui, a moça, a mulher em que me transformei. E dei por mim a analisar as mulheres que deambulavam pelo pátio: tal como eu, também elas já foram crianças, adolescentes e hoje mulheres... e pensei como éramos todas diferentes e afinal todas iguais.

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Comecei a vê-las com outros olhos. Pensei em todo o mistério que nos envolve: os anseios, as frustrações, as necessidades… o que se esconde no mais insondável que existe em cada uma de nós. Senti-as mais próximas, nasceu em mim uma vontade de aproximação. Cada uma tem a sua cota de infortúnio na vida e todas, sem excepção, caímos em desgraça e é essa realidade que faz com que nenhuma se sinta mais desgraçada que a outra. Alguém se aproximou de mim projectando a sua sombra na minha frente. Levantei a cabeça e o olhar, era a Claire. Sorriu. Sentou-se a meu lado, em silêncio. - Olá. - Disse-lhe – retribuindo o sorriso. Convidei-a a sentar-se - Se preferes estar só, não faças cerimónias; é só dizeres que eu voume embora. - Fica. - Pedi – tu contaste-me tudo sobre ti, eu não te contei nada sobre mim. -Eu sabia que, mais dia, menos dia tu me contarias, afinal, temos tanto tempo, como tu própria desses-te... e também podias não querer falar; há pessoas que preferem calar para sempre, guardando só para si, o que, afinal só a si próprio diz respeito. Calmamente, acendeu um cigarro, ofereceu-me outro. -Não obrigada, não fumo. - Morres na mesma! Ignorei o seu comentário. Falei-lhe do meu País, do lugar onde vivi, da minha infância, da minha fuga para Paris. Senti-me bem ao fazê-lo, enquanto ela me ouvia sem pestanejar.

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- Fui feliz junto dos meus avós em Portugal, fui feliz aqui em Paris, muito feliz! Adaptei-me com facilidade a este Pais e rapidamente aprendi a vossa língua. Fiz amigos, diverti-me, estudei, trabalhei, apaixonei-me, estraguei tudo. - Como assim!? - Porque me apaixonei pelo homem errado. Franziu a testa, esperou que eu continuasse. - Apanhei-o na cama com outro. - Matei-os. - Oh, Mon Dieu! - Ergueu-se num salto. - O gajo era “paneleiro”, e tu não sabias? - Não, nem em sonhos essa ideia me passou pela cabeça. Como eu o amava, como eu acreditei no seu amor por mim! Quando o conheci, achei-o diferente dos outros rapazes da nossa idade, um olhar doce, meigo, os seus gestos tão calmos. Havia nele um magnetismo... não consegui resistir aos seus encantos, instalei-me na sua vida sem cerimónias. Precipitei-me. Atirei-me de cabeça e agora que bati no fundo, é que tomei consciência do erro que cometi. Estou a pagar bem caro, traiu-me da forma mais cobarde, mais nojenta... - Eu não merecia, entreguei-me toda, sem reservas... – comecei a chorar, o meu desespero era insuportável – não consigo conviver com esta culpa. - Vá lá limpas essas lágrimas e esquece essa história de culpa. Era só o que faltava, estares a torturar-te porque matastes dois gajos que não valiam a ponta dum corno. - Deus, nunca me vai perdoar – disse como se falasse comigo própria. - Deus? Quem é esse? - Falou, com ironia. Olhei para ela, incrédula, esperei que continuasse. - Que te leva a acreditar nele?

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- Quem acredita, não precisa explicar-se; acredito e ponto final. - Quantas vezes em oração, lhe suplicaste, que não te deixasse cair em tentação e que te livrasse de todo o mal? Olhei para ela, sem deixar cair uma única palavra. - Eu sei, que vezes sem conta, ergueste as mãos para o céu implorando ao Senhor: “E não me deixeis cair em tentação…”. Achas que ele te ouviu? Não, não te ouviu. - Continuou. Sorriu, perante o meu ar chocado. - Anda meio mundo de mãos erguidas para o céu, orando, suplicando que terminem as guerras, a fome, as injustiças e o mundo está cada vez mais desgraçado. Eu pergunto, o que leva toda esta gente a acreditar, se não obtêm resposta? Se Deus de facto existe, deve de estar surdo coitado, é da velhice. - Claire pára por favor, se não acreditas tudo bem, tens esse direito, mas não queiras derrubar a fé dos outros! Eu preciso acreditar; uma pessoa sem fé é como uma vela apagada, não passa dum simples objecto. Deus é a chama que lhe dá vida, é a luz que ilumina o meu caminho. - Vê-se perfeitamente. - Disse com desdém. - Deus quando nos criou, quis que nós fossemos livres; por isso, todos nós somos livres e responsáveis pelos nossos actos. Deus concedeu-nos o direito de escolha, entre fazermos da nossa vida uma bênção ou uma maldição. Não julgues que Ele está contente com a forma como os homens se estão a destruir e a destruir o mundo que Ele nos deu, que Ele criou para nós. - Excusez-moi, mademoiselle! Como posso acreditar, se à minha volta só vejo sofrimento, miséria e injustiça? – Sussurrou um “até logo”, quase inaudível. Rodopiou sobre os calcanhares e foi-se embora deixando-me a falar sozinha. Coitada, tenho de admitir que a vida nunca se compadeceu por ela. Disse-me noutro dia: “foi na rua que aprendi a ser gente, a sobreviver à minha maneira. Carente de valores, de estímulos, de motivações; ninguém me ensinou a sonhar, a ter ideais de vida, nunca frequentei a escola. Na rua cresce

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-se depressa e não se olha a meios para alcançar os fins; ninguém faz nada por nós. Vivemos entregues a nós próprios. Cresci sem horários, sem compromissos, sem responsabilidades”... Perdoa-me Claire, mas só consigo ter pena de ti

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Cap. 8 Um raio de luar rasgava a escuridão, projectando sombras nas paredes da minha cela. Transida de medo, tapei a cabeça com os cobertores. Queria vencer aquele medo, mas era algo que já fazia parte de mim e de que não conseguia dissociar-me. Tapei os ouvidos, fechei os olhos e o sono teimava em não chegar. Na cela ao lado, mais uma vez ouviram-se gritos; a porta bateu estrondosamente, alguém falou alto no corredor. Depois...o silêncio. Adormeci algum tempo depois. Tive um sono bastante agitado. Entrei numa sala enorme e fria. No centro, estava um caixão de madeira castanha. Aproximei-me. Um vulto de mulher vestida de negro, estava debruçado sobre o defunto. Caminhei na sua direcção, estava cada vez mais perto dela. Soluçava baixinho. Pousei a minha mão no seu ombro, assustada, virou o seu rosto para mim. - Avó!? Debruçou-se novamente no caixão, não me reconheceu. Chorava em silêncio. Entre cetim, rendas e flores, estava o corpo dum homem ainda jovem. Reconheci-o imediatamente, era Pierre. A pele cor de cera, as pálpebras cerradas e as mãos cruzadas sobre o peito. A mulher levantou de novo a cabeça. O seu olhar quase me trespassou - Avó! Que faz aqui neste lugar? – Quis, perguntar mas as palavras não saíram da minha boca. Constatei então que essa mulher não era a minha avó, mas sim a mãe do Pierre. - Porque vieste? Sai, quero ficar só com o meu filho, não quero que nada perturbe o seu sono! Obedeci ao seu pedido. Os meus passos enchiam o silêncio fúnebre daquela sala sem fim. Caminhei, caminhei sem encontrar uma saída, estava completamente perdida. Andei como uma louca, desesperada, corri à procura duma porta ou duma janela para sair dali mas só via paredes. Atrás de mim duas mulheres riam, e o eco das suas gargalhadas, batiam na parede como bolas de pingue – pongue.

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- É inútil procurares, não tens saída, ficarás aqui para sempre. -Disseram em uníssono. Fiquei profundamente impressionada. Não conseguia levantar a cabeça do travesseiro. As minhas ideias estavam baralhadas; de repente não percebi, se tudo aquilo se estava a passar realmente ou não passava dum horrível pesadelo? Fiz de novo um esforço para me levantar. Doía-me a cabeça, tinha zumbidos nos ouvidos e estava a arder em febre. “Estou doente. Que vai ser de mim? Morrerei á míngua, ninguém se irá preocupar comigo; é menos uma a dar prejuízo ao Estado.” – Pensei. Deixeime ficar. Afinal as coisas não funcionam assim; logo que souberam da minha doença uma carrinha da prisão transportou-me ao hospital, acompanhada por dois guardas prisionais Fui atendida por um médico, com cara de enfezado e olhos de coruja, escondidos atrás duns óculos enormes, encavalitados em cima do nariz. - Que se passa? – Perguntou, enquanto escrevia o meu nome num papel. - Je suis malade. – respondi timidamente. - Oh. C’est vrai !? – O tom irónico com que falou irritou-me profundamente. - “Se não estivesse doente, o que vinha aqui fazer? Olhar para os seus lindos olhos?” Apeteceu-me dizer, no entanto achei por bem, mudar o tom do meu discurso, só tinha a perder; infelizmente quem precisa tem de baixar as orelhas. - Dói-me a cabeça, tenho zumbidos nos ouvidos, tenho febre e estou grávida de quatro meses. - Disse-lhe

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Começou a escrever sem levantar os olhos da receita, e entregou-ma sem mais comentários. - Excusez-moi, eu preciso saber o que tenho e como vou tomar esses remédios!? - Parece tratar-se duma simples gripe; quanto á forma de tomar os medicamentos, vai tudo explicada na receita, passe bem...Ah receitei-lhe também umas vitaminas e cálcio por causa da gravidez. Esta gripe valeu-me uma semana sem sair da cela, por uma questão de prevenção. A gripe é altamente contagiosa. Foi uma semana terrível, sentia-me duplamente prisioneira. Olhei, para as embalagens dos medicamentos; que exagero, tanta coisa por causa duma gripe “Este, deve ter um acordo com a farmácia” – pensei. Nada que a minha avó não resolvesse com uma aspirina e um chá de limão, um copo de leite com mel ao deitar e carradas de “vicks” no peito. Coitada, tinha solução para tudo: fosse ele, um pé torcido, uma dor de cabeça ou uma constipação; tudo se resolvia com umas rezas e mesinhas caseiras. Antigamente não havia farmácias, - dizia ela - e tratava-se tudo com o que a natureza nos dava Como sinto a sua falta. Por vezes é preciso que aconteça algo de terrível na nossa vida, para nos darmos conta do quanto amamos verdadeiramente alguém. Naquele dia, quando vi o seu olhar fixo na ponta daquela navalha- pela primeira vez na minha vida, eu tive consciência de como amava aquela mulher, minha avó e minha mãe. Arrisquei a minha vida por ela, e teria morrido, se fosse preciso. Nunca houve entre nós o hábito de carinho; nunca nos abraçamos nem nos beijámos; bom dia, boa noite ou até amanhã se Deus quiser. Sempre existiu entre nós uma certa inibição em relação aos nossos sentimentos. Uma frieza, uma distância… a minha avó passou pela minha vida, sempre tão presente e tão ausente. Tantas vezes, almoçamos ou jantámos em silêncio, evitando o olhar uma da outra; amuos por coisas insignificantes O avô esforçava-se por aliviar a tensão entre nós. Meu grande amigo, ele era como

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um pilar, a que eu me segurava, quando tudo tremia à minha volta. Ele sempre me valorizou, ensinou-me a gostar de mim própria e isso foi muito importante. Quem não gosta de si mesmo, nunca está de bem com os outros – dizia ele. - É o que acontece com a avó, não é? Então ele olhava-me com ternura e dizia-me: - tu és muito inteligente! (eu era a luz dos seus olhos, sem dúvida o seu tesouro mais valioso.) - Não ligues, ela tem aquele feitio, mas gosta muito de ti, eu sei. Quantas e quantas vezes, eu chorava de raiva e dava largas à minha revolta. – “Velha má!!!” Depois arrependia-me. Eu tinha noção, de que não devia ter maus pensamentos, nem alimentar ressentimentos em relação a ela; por isso pedia perdão a Deus. Nas minhas orações eu pedia, que Ele tirasse de dentro dela toda a malvadez, que aliviasse os seus problemas, os seus desgostos, para que se tornasse numa pessoa melhor, mais meiga, mais terna... infelizmente, era sem nenhuma esperança que o fazia; eu sabia que só um grande milagre a podia transformar nisso tudo. Sinto um desconforto na alma ao recordar tudo isto. Havia coisas que me esqueci completamente, por isso foi como se nunca tivessem acontecido; todavia, a minha memória estava repleta de recordações, umas boas e outras menos boas. Embora estes pensamentos me deixassem um sabor agridoce de nostalgia, era bom recordá-los. “Recordar é viver” não é assim que diz a sabedoria popular!? Senti saudades das manhãs de verão, quando eu levava as ovelhas para o pasto. Aquele contacto com a natureza! Apesar da responsabilidade de tomar conta do rebanho, aproveitava para ler ou para ouvir telefonia. Um transístor que o meu avô me comprou em Évora. Os livros era a tia Amélia que me oferecia, quase todos de aventuras, eram os que eu mais gostava, e o tempo deixava de existir. ... E o Fiel!? Meu grande companheiro, como me era útil; bastava um assobio e lá ia ele dar a volta ao rebanho. Aquele cão era o meu orgulho. Um corpulento labrador castanho – dourado. Dava-lhe banho e escovava-o, para o

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pêlo ficar brilhante. Durante a noite ficava junto á lareira e de madrugada, quando o calor das cinzas se extinguia por completo, ia para o meu quarto. Dava uma volta sobre si mesmo, procurando a melhor maneira para se deitar em cima do tapete. Pouco tempo depois adormecia e eu dormia tranquila, a sua presença dava-me segurança. Ainda me sentia um pouco fragilizada, aquela gripe deixou-me de rastos. Já não suportava mais aquele isolamento, precisava sair dali, respirar o ar da rua. Dei uma olhadela pela janela, parecia estar mau tempo, no entanto, não me pareceu que fosse chover. Vesti um casaco quente e saí para o pátio. Um vento gelado esperava-me lá fora. Puxei as golas do casaco para aconchegar o pescoço; tinha de ter muito cuidado podia ter uma recaída e, logo agora, que estava praticamente curada. Claire apareceu na minha frente tão repentinamente, como se tivesse caído do céu. Abraçou-me com força, quase me estrangulou. - Oh, mon amour, que falta me fizeste ! Já estás boa!? - Estou quase boa, obrigada. - Disse-lhe calorosamente – também já não aguentava nem mais um dia, dentro daquela maldita cela. Andamos um pouco apesar do frio. Colocou o braço por cima dos meus ombros, encostou o seu corpo ao meu para me proteger do vento. Ignoramos alguns comentários maliciosos de quem passava. - Não dês ouvidos, são todas umas taradas. - Sabes como se diz na minha terra? – “Os cães ladram e a caravana passa”. - Rimo-nos. -Neste caso, “as cadelas ladram.” - Oh, oui. C`est vrai. Gostava do seu ar gaiato, do seu sorriso atrevido, o seu sentido de humor contagiava-me, deixavam-me mais leve, mais bem disposta.

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No dia seguinte, Claire não apareceu. Estranhei a sua ausência. Percorri com o olhar o pátio apinhado de mulheres tagarelas. Nem sombras da Claire. Deixei-me ficar sentada, os cotovelos assentes nos joelhos, a cabeça apoiada nas mãos, os olhos fixos no chão e o pensamento a muitos quilómetros de distância. “Tenho de arranjar coragem, ânimo para escrever uma carta à tia Amélia. Sinto-me na obrigação de o fazer, por muito que me custe

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Cap. 9 Senti uma mão pousar no meu ombro.” É Claire.” - Pensei. - Mas pensei mal, junto de mim estava uma mulher que eu ainda não tinha visto. Um rosto moreno, cabelos negros bastante compridos. -Bonjour, mademoisele. Escuse-moi, je m´appelle Marie. - Bonjour. - Respondi – je m’appelle, Rosário, Maria do Rosário. - Oh! És Portuguesa? - Oui, je suis Portugais. - Pareces assustada! É normal; os primeiros tempos são terríveis, depois, habituamo-nos. O ser humano tem uma grande capacidade de adaptação. - Chegas-te há pouco tempo? Ainda não te tinha visto. - Perguntei. - Não. Estou cá há quase dois anos. Saio pouco, aproveito o tempo para ler, para estudar e para escrever. Estou a fazer aquilo que sempre quis fazer, nunca me senti tão bem em toda a minha vida; estou feliz. - Como é que alguém pode estar feliz num lugar horroroso como este, será que ouvi bem!? Juro que era a única expressão que nunca esperei ouvir da boca de alguém que está privada da liberdade. - A maior parte das pessoas passam a vida a dar valor àquilo que não tem valor nenhum. Uma nuvem de tristeza ensombrou o seu semblante. - Aqui posso pensar livremente, ser eu própria; a autenticidade de cada um de nós é sermos nós mesmos, sem que a opinião dos outros nos intimide, nos transforme, para lhes agradar. Olhei-a com um ar aparvalhado.

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- Esquece. Abanou a cabeça como se enxotasse uma mosca. - Estava a pensar alto. No início pensei que enlouquecia, tomava calmantes, dormia dias inteiros. Um dia disse para mim própria: isto não é vida, tenho de reagir, é preciso esquecer o passado e olhar em frente, a vida continua. Hoje vivo o presente sem me preocupar com o futuro. Vivo cada dia como se fosse único. Colocou o seu braço no meu, puxou-me para um passeio pelo pátio. - Tens de dar tempo ao tempo – continuou – não te deixes derrotar pelas vicissitudes da vida; quem baixa a cabeça acaba sempre por perder. A vida é um jogo, tens de ter capacidade para fazer com que os teus dias sejam diferentes, mesmo quando tudo parece igual. Parou. Colocou-se à minha frente, pousou as suas mãos nos meus ombros, olhou bem fundo, nos meus olhos. Depois com toda a serenidade disse: - Vejo nesse olhar uma vontade enorme de viver, de ser feliz. “Que mulher!”… eu até estava arrepiada. - Primeiro, – continuou – tens de conseguir desligar-te do mundo lá fora, esquecer o passado. - Mas eu não posso, nem quero esquecer o passado – interrompi bruscamente quase ofendida. O passado faz parte de mim como um estigma... fui muito feliz. E serão as recordações dos bons e dos maus momentos, que me darão forças para continuar. Claro que só queria recordar as coisas boas, mas isso é impossível. - Óptimo, ma chérie.- Retorquiu ela rapidamente – óptimo. Como te invejo! - O meu problema é o presente – respirei fundo, baixei o olhar. - Levanta a cabeça, pensa que a vida vale sempre a pena, estejas tu onde estiveres, é só aceitares as coisas. Percebi. Marie queria trazer-me o conforto da sua experiência.

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Claire esperava-me no corredor. Perguntou-me à queima-roupa: o que é que a princesa queria contigo? Tantas intimidades, toma cuidado com ela; é mais falsa do que judas! Olhei para ela estupefacta: - não estou a perceber essa tua reacção! - Não quero que nada perturbe a nossa amizade é só isso. - Respondeu com ar de imbecil. - Desculpa, mas continuo sem entender. Queres monopolizar a minha amizade é!? Era só o que me faltava. Virei-lhe as costas, prosseguindo o meu caminho. - Excusez-moi.! Quase gritou. Reflecti um pouco sobre o que acabara de ouvir: “uma cena de ciúmes!? Será possível? Esforcei-me para não pensar mais no assunto, vou fazer de conta que não percebi.”

O dia do meu julgamento aproximava-se a passos largos. O meu advogado voltou, precisava falar comigo. - Como está, mademoiselle? – Perguntou, amavelmente, apertando-me a mão. - Na medida do possível e o doutor, passou bem? “Meu Deus, que homem! Que classe, que charme!” O seu perfume entrou nas minhas narinas, deixando-me como que embriagada. Depois duma longa conversa, despediu-se de mim com um conselho: já sabe, tente manter a calma, responda só e exclusivamente ao que lhe for pedido e lembre-se que eu estarei lá para a defender, o melhor que eu souber, e puder. Lógico que não faço milagres!

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Já no aconchego da minha cela, deitei-me. Não conseguia deixar de pensar naquele homem. Caramba! Estava mesmo impressionada. Recordei cada palavra, o seu olhar tão meigo, uma postura tão calma. Claro, porque não havia de estar calmo? Não é a sua liberdade que está em jogo, é a minha. Deixei-me vencer por uma breve tristeza; felizmente eram horas de ir almoçar, já se ouvia o reboliço no corredor. Claire esperava-me. - Bonjour! - Disse simplesmente. - Bonjour. - Respondi sem a menor disposição para conversas. Seguimos umas atrás das outras, como um rebanho de ovelhas para a pastagem. - Estás triste? - Perguntou acanhada. - Claro que estou triste, como querias que estivesse, a pular de contente, sabendo que vou ser julgada e condenada daqui a cinco dias? Aqueles dias passaram, com uma lentidão angustiante. Passei a manhã, com os olhos postos no relógio; às catorze horas tinha de estar no tribunal e a minha ansiedade aumentava, como se estivesse presa aos ponteiros. No espaço exíguo da minha cela, não cabia tanto nervosismo, tanta angústia, tanta ansiedade, tanta revolta...pela primeira vez senti-me obrigada a pedir um calmante. Lavei-me, coloquei um pouco de água-de-colónia, vesti um vestido que a Mónica me trouxe propositadamente para este dia. Pus uma maquilhagem suave e penteei-me. “A imagem é muito importante” – disse-me a Mónica. “Que importa sentir-me linda por fora, se por dentro estou um caco.” Pensei. Não podia sair dali num estado tão lastimável; tinha de fazer algo pela minha auto-estima, que estava mirradinha como um rato. Sentei-me, respirei fundo durante um bom bocado pensando apenas em coisas agradáveis.

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Depois rezei. Rezei por mim, por Pierre, por Philippe; que as suas almas descansem em paz. Pedi perdão a Deus e mais uma vez pedi a Sua protecção. Apreensiva, segui o guarda até á carrinha que nos aguardava lá fora. Ouvi o roncar do motor e o começo duma interminável viagem, num pára arranca, no infernal trânsito da grande cidade

Chegamos. O meu coração dava pulos dentro do peito, como um touro encurralado. Ao sair da carrinha, fiquei por instantes ofuscada pela luz do dia. Havia imensas pessoas fora do edifício, nos corredores, na sala de audiências. Ao entrar na sala apinhada de gente, fez-se ouvir um burburinho, que pouco depois, deu lugar a um silêncio mortuário. Eu estava pronta a desfalecer, as pernas bambas, um frio desceu pelo meu corpo, fiquei imóvel como um bloco de gelo. Quando arranjei coragem, relanceei o olhar pela sala. Senti-me a mais desprezível das criaturas. Lá estava Madame Rose, a mãe do Pierre, na primeira fila, envergando um vestido preto e um ar abatido. A seu lado, um casal igualmente enlutado, que supus serem os pais do Philippe. Muitos amigos de Pierre e de Philippe, a maioria porém, constatei, eram meus amigos: Mónica e os seus pais, Suzanne, Sandrine, (minhas sócias e boas companheiras de trabalho) e tantos rostos conhecidos que vieram prestar a sua solidariedade para comigo. Era bom saber que, apesar de tudo, as pessoas continuavam ao meu lado para me darem força e o apoio de que tanto precisava naquele momento. A mãe do Pierre, olhei na sua direcção; vi-a procurar algo na carteira, tirou um lenço, limpou os olhos, levantou a cabeça; os nossos olhares cruzaram-se por momentos. Não consegui abstrair-me daquela presença incómoda. Endireitei-me sentindo, no entanto, o seu olhar cravado na minha nuca, como uma espada. Senti pena daquela mulher; o seu desgosto era legítimo. Como tenho sido egoísta, pensando apenas no meu sofrimento. Como deve estar a sofrer! Eu testemunhei durante toda a minha vida, o sofrimento da minha avó, a dor de perder um filho; nada é mais devastador. É sem dúvida a mais sentida, a mais sofrida de todas as dores. Eu não podia ficar indiferente ao sofrimento daquela mulher. Que seria da sua vida

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daqui para a frente? Ver assim arrancado da vida, o seu único filho, tão tragicamente. Ficou só, no mundo sem ninguém a seu lado, que a possa apoiar. Meu Deus como me deve odiar! Mais uma vez senti raiva de mim própria. A minha auto-estima rolou por água abaixo, como uma folha seca, arrastada pela corrente dum riacho. Os meus pensamentos foram interrompidos pela entrada dos advogados e do juiz na sala. Toda a audiência se levantou. O primeiro julgamento, a que eu assisti, o meu próprio julgamento. O horror de sentir centenas de olhos espetados em mim como agulhas; uma sensação de pânico apoderou-se de mim. Foi lido o meu processo: No dia vinte de Janeiro do ano... (deixei de o ouvir por instantes, precisei olhar uma vez mais para o rosto dos meus amigos, na esperança que me transmitissem a força e coragem que tanto precisava naquele momento). Ouvi pronunciar o meu nome. Maria do Rosário Espírito Santo... ouviu-se um grito na sala, olhei repentinamente para a assistência: madame Rose estava a ser vítima dum ataque nervoso. Um amontoado de gente precipitou-se para ela, numa desesperada tentativa de ajuda. Foi evacuada da sala, em braços, para uma ambulância que se encontrava à entrada do edifício; o seu estado era bastante grave. Ouvi depois, alguém comentar. O silêncio instalou-se de novo; a sala fervilhava de expectativa. Assisti à leitura do processo, semi-ausente; corroída de remorsos O meu advogado levantou-se. As suas palavras expandiram-se no silêncio da sala, via-se que trazia a lição bem estudada. Emocionada, admirei a segurança, a convicção com que me defendia. Bebi cada palavra sua, como o mais delicioso dos néctares. Falou para a audiência, para os jurados e para o juiz como um actor de cinema; movimentava-se e falava com tanta segurança… Eu estava completamente deslumbrada. “Que homem!”

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As testemunhas iam sendo chamadas, uma de cada vez: respondendo objectivamente às perguntas, com respostas bem preparadas. De vez em quando aqueciam os ânimos na sala, obrigando o juiz a solicitar silêncio. Desejei que tudo terminasse depressa, queria sair dali o mais rápido possível. Ansiava a decisão final do juiz. Mas para minha grande surpresa, o julgamento ficou adiado. Que horror! Nem podia imaginar que tinha de voltar ali de novo, encarar toda aquela gente novamente. Lá fora esperava-me uma multidão de curiosos. Fotógrafos, repórteres, jornalistas; como um bando de abutres prontos a devorar o que restava de mim. Rapidamente fui enfiada dentro da carrinha, que me levou de volta à cadeia. Parti com a alma vazia e a sentença adiada. “Não era justo!” Perecia de propósito para aumentar o meu sofrimento, a minha ansiedade. O tempo, ficou suspenso, os dias vazios. Sempre que pensava no desconforto de ser o centro das atenções, de ser julgada negativamente por toda aquela gente... Pensei uma vez mais no meu advogado, não conseguia deixar de pensar naquele homem. O seu rosto permanecia tão nítido diante dos meus olhos; o seu sorriso, os seus olhos tão meigos. Será que também eu não lhe era indiferente? Aquela paixão, está a dar-me volta à cabeça! Como me atrevia, a pensar em amor, numa situação daquelas? Estava presa, sabia-se lá até quando. “estava presa, mas não estava morta!” - pensei – e os meus sentimentos ninguém os podia prender. Fechei os olhos, agarrei-me à almofada e tudo parecia tão real: senti o seu rosto colado ao meu, o calor dos seus lábios nos meus. Deixei-me cair nos seus braços. “Esperarei por ti, o tempo que for preciso, amo-te, tanto!”murmurou no meu ouvido. Apertei o seu corpo contra o meu, encostei a minha cabeça no seu peito e chorei. “Santo Deus, que loucura!” Pela primeira vez senti o meu filho mexer dentro de mim. Uma sensação impar; acariciei a minha barriga, como tinha crescido! Uma vida a 64


formar-se dentro de mim: carne da minha carne, sangue do meu sangue; o maior milagre da natureza. Era por ele que tinha de continuar a viver! Claire esperava-me, queria saber novidades. - Um verdadeiro horror! O pior é que tenho de voltar, o julgamento ficou adiado. - É sempre assim! – Respondeu a voz da experiência. - Porque não me disseste antes? Estava tão convicta, que tudo era decidido, num dia só. Sabes que sou noviça nisto! – Disse-lhe, com um sorriso amarelo. - Duplo Homicídio. Vinte anos de prisão. – Falou como quem pensa alto. Anoiteceu dentro de mim. Foi como se alguém de repente me tivesse puxado o tapete e eu tivesse caído desamparada no chão. “Que crueldade, vinte anos, não era possível, ninguém suportaria viver aqui durante tanto tempo.” Pensei. - Que esperavas, ficar absolvida, depois de teres liquidado aqueles dois? -A vida é uma merda, percebes? -Ah é!? E só agora é que te apercebestes? - Quando pensamos, que tudo está bem, que tudo nos corre às mil maravilhas, zás, tudo se desmorona. O mundo inteiro cai-nos em cima, deixanos de rastos a esgravatar no chão, num esforço enorme até conseguirmos levantarmo-nos de novo. Isto para não falar, nas mazelas que nos ficam na alma. Nenhuma pessoa voltará a ser a mesma, por muitos anos que viva. - Acalma-te, tenta comer, assim só estás a piorar as coisas. Sabes, a minha vida sempre foi uma merda, por isso nunca esperei nada de bom para mim, estar cá dentro, ou lá fora é-me indiferente. Pensando bem, acho que até estou melhor aqui. A falta de conforto não me incomoda, sempre vivi sem ele, quanto à comida; nunca comi tão bem – rematou.

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Rendi-me ao peso duma condenação merecida. Tentei ser o mais racional possível. Comecei assim, uma nova etapa da minha vida.

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Cap. 10 Naquele dia acordei decidida a escrever a tão adiada carta para a tia Amélia. Precisava organizar as coisas na minha cabeça. “Querida tia.” Não sei se está tudo predestinado, ou se somos nós que fazemos o nosso próprio destino. A verdade, é que a vida nos prega rasteiras que até os mais precavidos nelas caem. Os meus próximos vinte anos serão passados aqui, longe do mundo das pessoas que se dizem livres; não sei até que ponto o são; as vezes penso, não seremos nós escravos dessa mesma liberdade? Já tenho aqui duas amigas. Ambas dizem serem mais felizes cá dentro do que foram lá fora. - Imagine! Quem sabe também eu consiga um dia alcançar aqui essa felicidade. E o que é afinal a felicidade, se não a ilusão de breves momentos de bem-estar e boa disposição!? Tia, quero lhe pedir que dê muito apoio aos meus avós, ajude-os a superar mais este desgosto nas suas vidas. Peça-lhes perdão por mim. Digalhes que me esperem porque eu voltarei, tal como lhes prometi. Desculpe, vou ficar por aqui, estou imensamente emocionada e muito abalada psicologicamente. Quero que saiba que continuam a ser muito importantes na minha vida. Despeço-me enviando muitos beijinhos: para si, para o tio e para os meus avós. Lembrar-me-ei de vocês todos os dias. Da vossa: Rosarinho.

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O Natal aproximava – se. Faltava pouco mais dum mês, todavia, não quis mencionar essa data festiva. Também ela certamente já pensou, que será o primeiro Natal que não passaremos juntos. Deixei-me envolver numa doce nostalgia, tal como uma filhós se deixa envolver em açúcar e canela. O Natal e a Páscoa fazem parte das minhas mais doces recordações. Dias antes, começava a azáfama das limpezas, a avó caiava a casa por dentro e por fora, até tudo ficar imaculadamente branco. Lavava o chão, limpava os móveis e dos armários saíam a toalha, os guardanapos e as loiças guardadas exclusivamente para estas ocasiões. - Valha-me Deus! - Dizia a avó, lamuriosa – não tenho paciência nem alegria para festas. O Natal é um dia como os outros! Todos os anos repetia a mesma coisa. Eu esperava ansiosa, a chegada da tia Amélia e do tio Vicente. Todo o ambiente se transformava; até a avó ficava mais descontraída. A tia usava roupa alegre, os cabelos impecavelmente penteados, as mãos bem cuidadas, as unhas pintadas; tão diferente da minha avó. Cheguei a duvidar que fossem mesmo irmãs. A tia era uma mulher da cidade e o ambiente onde vivemos é muito importante para a nossa personalidade. “ Fez-se uma grande finória, desde que foi viver para a cidade” dizia a minha avó, com desdém. Eu adorava-a, sempre tão bem disposta, tão decidida. “Quando for grande quero ser como a tia”. - Dizia eu, vezes sem conta. “E o marido, que classe! Sempre tão carinhoso, até lhe oferecia flores!” “Mariquices!” Era assim que a avó definia este gesto de ternura entre eles. “O meu marido nunca me ofereceu flores e também gosta de mim, que eu sei!”

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Depois dos beijinhos e abraços, os tios mudavam de roupa e estavam prontos para ajudar. Matava-se o peru, cozia-se a abóbora para os sonhos, a batata-doce para as azevias, preparava-se a massa que era tendida com o rolo em cima da mesa da cozinha. Eu participava eufórica, nada me dava mais prazer: poder ajudar a preparar todas aquelas delícias. A ceia era sempre o tradicional bacalhau com couves, a única coisa que eu dispensava de bom grado, sempre detestei bacalhau. - “A quem não come bacalhau, o menino Jesus não dá presentes” dizia a tia Amélia. Era ouvir pronunciar esta frase e eu devorava o bacalhau todo, como o melhor dos manjares. Pelo canto do olho eu via os seus olhares e sorrisos. Que importava? Eu queria mesmo eram as prendas e não via a hora de as receber! À noite antes de ir para a cama, colocava o sapatinho na chaminé, com mil recomendações à avó para retirar as últimas brasas, para que o menino Jesus não se queimasse. Aquela noite era mágica para mim, dormia em sobressalto e nunca mais era manhã! Essa magia terminou no dia em que eu descobri que não era o menino Jesus, nem o Pai Natal, que traziam as prendas através da chaminé, mas sim os nossos familiares. Tudo perde a magia, à medida que vamos crescendo e a idade da inocência termina. A Mónica veio visitar-me; trouxe-me um livro, enorme, para futuras mamãs. Um livro muito útil: falava da gravidez desde o início até ao dia do parto. O corpo da mulher e as suas transformações, o bebé e o seu desenvolvimento. Exercícios de ginástica, para preparar os músculos, exercícios

de

respiração

e

muitos

conselhos

para

tratar

do

bebé,

principalmente para quem vai ser mãe pela primeira vez. Adorei!

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Entreguei-me de alma e coração à leitura, e a observar as gravuras com todo o interesse. De facto nenhum livro me poderia interessar mais neste momento. Passava horas completamente abstraída de tudo o resto. Estava a habituar-me à ideia de ser mãe e tudo me parecia um sonho. De repente, lembrei-me de madame Rose, “como irá reagir quando souber que tem um neto!? Irá certamente querer conhecê-lo; aposto que não terá coragem! Isso significa ter de se aproximar de mim” Pierre era o seu único filho. Nasceu duma relação falhada. A mãe passou a vida a protegê-lo e a mimá-lo. No dia em que o filho lhe comunicou que queria viver sozinho, a vida deixou de fazer sentido para ela – disse-me um dia o Pierre, com a lagriminha no canto do olho. “Eu precisava da minha independência: sentia-me sufocado, esmagado, debaixo das suas asas de mãe galinha.”- Queria convidar-te para almoçares connosco, no domingo, ela gostaria de te conhecer. - Claro, também estou ansiosa por conhecer a minha sogra – Respondi em tom de brincadeira. No domingo à hora combinada, foi-me buscar. Minutos depois, chegamos a um bairro pobre, nos arredores de Paris. Entrámos num prédio degradado. Um corredor escuro e frio conduziu-nos a uma sala, onde o sol entrava tímido através das cortinas. As paredes de um branco sujo, completamente nuas; não havia um quadro ou qualquer outro adereço. A um canto, um velho sofá onde repousava uma pequena manta de lã. Entre os móveis velhos e maltratados, alguns vasos com plantas raquíticas, sem viço. Uma mulher ainda jovem saiu da cozinha, limpando as mãos ao avental. Rosto redondo como uma lua cheia, olhos negros, enormes e pestanudos. Olhou-me acanhadamente; eu também estava pouco à vontade. Sem perceber porquê senti uma certa compaixão por aquela mulher – todo aquele desleixo era reflexo dum desinteresse... imediatamente lembrei-me da minha avó. - Como está a senhora? - Perguntei educadamente. - Para aqui vou vivendo, só como um cão: - disse queixosa. 70


- A mãe não vai começar, pois não? - Interveio o filho – esse disco já está riscado de tanto tocar; vamos almoçar em paz, sim? Aposto que fizeste arroz-doce, cheira-me a canela. - Disse Pierre, farejando o ar. Entrámos numa cozinha minúscula, onde almoçamos sem cerimónias, um delicioso cozido à Portuguesa. -Está divinal. - Elogiei. A minha avó também costuma fazer e depois faz uma massinha no caldo, com um raminho de hortelã, que é uma delícia! -Às vezes também faço. Falou com o olhar parado, como se os seus pensamentos estivessem ausentes -A comida portuguesa é a melhor do mundo – continuei para manter a conversa. O ambiente era tenso, senti-me muito mal. Madame Rose estava longe, muito longe daquilo que eu imaginava. Pierre levou-me até à varanda, abraçou-me; senti nos seus braços o conforto e a calma de que necessitava naquele momento. Lá em baixo, as crianças brincavam no parque infantil. Ficamos a observa-las, uma alegria contagiante -Como se divertem! – Disse ele. -É sem dúvida a melhor idade, não existem problemas, a não ser umas esfoladelas nos joelhos ou um galo na cabeça! - Rimo-nos. Entrámos de novo na sala, beijamo-nos. Só depois me apercebi que a sua mãe estava sentada no velho sofá, a olhar para nós. Baixou a cabeça; indicio dum certo pudor, normal, quando se está na presença de alguém que se ama. Pensei melhor: podia não ser pudor, provavelmente eram ciúmes. Confesso, que senti pena daquela mulher, uma sensação inexplicável. -Vamos embora? - Sugeri – sem querer dar a entender que estava mortinha por sair dali. Despedi-me, agradecendo o almoço, com a promessa de voltar. Deixamo-la de novo entregue à sua solidão.

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Sacudi esses pensamentos da minha cabeça, como quem sacode uma melga impertinente. Cada vez que pensava naquela mulher, no seu sofrimento, ficava deprimida. “Todo o sofrimento, seja ele físico ou moral, que estiver destinado para nós, não o podemos pôr à porta de ninguém.” Este pensamento ajudou a acalmar um pouco o desconforto que se instalara no meu coração. Estendi uma manta no chão, deitei-me sobre ela tentando fazer alguns exercícios, seguindo as instruções do livro. “Há momentos na vida, em que precisamos de pensar mais em nós, do que nos outros” – pensei. Quis perguntar à Mónica se iam passar o Natal a Portugal, mas as palavras ficaram no pensamento, coladas como lapas. Tive medo da resposta. No entanto, antes de sair, disse-me: - Ah, já me esquecia... este ano não vamos a Portugal, decidimos passar o Natal em casa. “Bolas, até parece que lê os meus pensamentos!” Embora, a ideia me agradasse, senti-me mal comigo própria; eu sabia que ficavam por minha causa, não era justo. Todo o emigrante anseia o Natal e o verão para ir a Portugal matar saudades, não podia permitir...aliás, os meus tios e os meus avós deviam estar ansiosos, por saberem notícias minhas. Tinha de os convencer a mudarem de ideias. -Por tua causa?! Não minha filha, nem penses nisso. - Justificou-se, D. Laura – sabes, pensámos fazer umas obras em casa no princípio do ano, e julgamos por bem economizar esse dinheiro. Vamos depois em Agosto; nada se faz sem sacrifício. “Obras?! Que obras? A casa está impecável” – fiquei a magicar. Enfim, eles lá sabem da sua vida. Apesar de reinar por toda a cadeia um espírito natalício, apercebi-me que ninguém estava feliz., Era no natal que todos pensavam mais na casa e na família. Quem a tem; alguns não têm nem uma coisa nem outra. A angústia que se instala em nós, era devastadora. Falo por mim, é certo, mas salvo as

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excepções, a que já fiz referência, acho que o sentimento é generalizado.Nada nos alegrava, nem a comida que era um pouco melhor, nem a festa... Aproximava-se a hora das visitas. Notava-se uma grande ansiedade. Lá fora já se fazia ouvir uma algazarra infernal, uma loucura! A Mónica apareceu sorridente seguida pela mãe e o pai; cada um trazia consigo um embrulho “ um presente “ - pensei, emocionada. -Não precisavam… de repente, fiquei entupida, literalmente. Não podia estar a ver bem, só podia ser uma miragem, o meu avô, a minha avó, a tia Amélia e o tio Vicente. Senti-me desfalecer. Reagi com todas as minhas forças; - Vocês querem matar-me, o meu coração não vai aguentar tanta emoção. Ouvi estas palavras longe, como se estivessem a sair de outra boca, que não a minha. Palavras, abraços, beijos, lágrimas, senti-me a mais amada das criaturas. Como eu queria perpetuar este momento mágico! Com um soluço entalado na garganta, olhei para a dona Laura: - com que então, obras em casa! - Meu Deus, que prenda de Natal! Oh, meu avô, que saudades! Avó... amo-vos tanto! Perdoem – me. - Chio! Não se fala em coisas tristes. - Intercedeu o tio Vicente – o que está feito, está feito, vamos lá limpar essas lágrimas. Tinha de admitir que ele estava coberto de razão, não tinham feito uma viagem destas, para me ouvirem cantar “o fado da desgraçadinha.” Perdi completamente a noção do tempo, mas o meu instinto avisava-me que a visita estava a chegar ao fim. Um desespero atroz apoderou-se de mim. Momentaneamente deixei de os ouvir de os ver; estava à beira dum precipício, aproximava-me cada vez mais e começava a escorregar lentamente; sabia que quando todos saíssem eu iria cair no fundo, completamente despedaçada. Perguntei a mim própria: seria preferível que não tivessem vindo? -Rosarinho?! -Desculpem, estava a pensar...disse, como se tivesse acordado dum longo sono.

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-Estavas a pensar que estamos quase a sair, não é? - Perguntou a Mónica; como sempre, ela tem o dom de adivinhar os meus pensamentos. Não há palavras que possam explicar a dor, o sofrimento de ter de dizer adeus a quem se gosta tanto, sem saber quando nos voltaremos a ver de novo. Regressei à minha cela, com a alma destroçada. Pousei os presentes em cima da mesa e deitei-me de bruços na cama, soluçando convulsivamente como uma criança. As semanas que se seguiram passaram duma forma lastimável; numa total apatia; aliás, eu sabia que aquela visita tão inesperada e tão emocionante me iria deixar de rastos. Só uma semana depois me decidi a abrir os presentes; engraçado, tantos presentes e nenhum era para mim; todos para o meu bebé: uma alcofa, roupinhas, um biberão, cremes, água-de-colónia, pó de talco... Enfim, um enxoval completo. Olhei para tudo com uma ternura invulgar. A vida sedentária que tinha feito nas últimas semanas estava a prejudicar-me imenso; deixei de fazer a minha ginástica diária; já me movimentava com alguma dificuldade. A minha barriga estava enorme, os meus pés estavam demasiado inchados. Confesso que aguardava com algum receio a hora do parto; aquele momento tão desejado: ter nos meus braços o filho que, apesar de ainda não o ter visto, já o amava tanto. Será menina? Será menino? Tanto faz. O meu filho nasceu no dia vinte de Janeiro, às quinze horas. Era um rapaz enorme; quase quatro quilos. Chamei-lhe Jean Pierre. Meu Deus, nunca pensei que parir fosse tão doloroso; mas a alegria de sentir o meu filho, ainda ensanguentado, em cima do meu ventre, de o ouvir chorar e de me certificar de que não trazia nenhuma deficiência compensou todo o sofrimento. O meu coração transbordou de tanta felicidade.

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Muitos amigos foram visitar-me e conhecer o meu menino. Trouxeramme flores e presentes. Aquele foi sem dúvida o dia mais feliz da minha vida. Nenhuma mulher será a mesma, depois de pôr um filho no mundo. Ser mãe é, sem dúvida, a maior de todas as felicidades. O mundo começa a ter outra dimensão, outro sentido. São eles que nos empurram para a frente, que nos dão esperança e forças para continuar. Os meses que se seguiram constituíram uma experiência muito enriquecedora para mim. Passava os dias tão ocupada a alimentar, a mudar as fraldas e a dar banho ao meu menino, que nem dava pela passagem do tempo; até parecia que o tempo passava no corredor e rapidamente passava para a cela ao lado para não nos incomodar. Lá fora a chuva caía com uma violência assustadora, estava um frio de congelar. Enquanto ele dormia eu velava o seu sono, aconchegando os cobertores para o proteger do frio. Era nesses momentos, que eu me deixava abater: pensar que o meu filho não poderia ficar todo o tempo comigo aterrorizava-me. Olhava aquele corpinho, aqueles olhinhos, aquela boquinha e ficava louca de amor por ele. Embora eu tivesse a nítida consciência de que este ambiente não era próprio para o crescimento saudável duma criança, sentia-me estremecer só de pensar que tinha de me separar dele. Na minha memória passavam imagens soltas, perdidas da minha infância; como eu gostava que ele crescesse naqueles campos onde eu cresci. Não. Nem me atreveria a pensar em mandar o meu filho para junto dos meus avós; coitados, já lhes faltam as forças e a paciência para criarem outra criança... e depois, ficaria tão longe. Era muito importante para ambos que não perdesse-mos o contacto; ali eu sabia que a Mónica não deixaria que isso acontecesse. “Nunca irei poder compensá-lo da minha ausência. Não estarei presente nos momentos mais importantes;” também eu senti essa lacuna na minha vida.

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No momento em que coloquei o meu filho nos braços da Mónica, fi-lo com a tranquila certeza de que ninguém, melhor do que ela, saberia cuidar dele. - Por favor amiga, -disse-lhe, com uma calma que me surpreendeu a mim própria. - Educa o meu filho como se fosse teu próprio filho, faz dele um homem digno, ensina-o a respeitar-se a si próprio e aos outros. Houve um breve silêncio; ela esperou que eu continuasse. - Nunca lhe escondas nada; quando ele começar a fazer perguntas sobre a mãe, diz-lhe que a mãe dele fez uma maldade muito grande e agora está de castigo. Fala-lhe de mim, por favor; fá-lo entender que a mãe dele é uma pessoa boa. Diz-lhe que eu o amo muito, e que sofro por não poder estar junto dele todos os dias. Um dia quando ele entender, eu lhe pedirei perdão por ter feito com que ele nunca pudesse conhecer o seu pai; explicar-lhe-ei como tudo se passou, embora eu saiba que ele nunca irá entender. Dir-lhe-ei que só acredito numa relação a dois, quando essa relação se baseia no amor, no amor verdadeiro, onde exista cumplicidade, lealdade, fidelidade e muito respeito. Agora vai, eu preciso ficar só, urgentemente. O meu coração começava a sangrar, como se tivessem cortado um pedaço dele. Sofri em silêncio; nem uma lágrima, secaram; já não tenho mais. E depois, de que adiantava chorar? Não iria mudar nada, era preciso enfrentar a vida de frente, não é avô? Pois bem, é assim que vai ser daqui para a frente: cabeça bem erguida, olhos nos olhos com a vida. Claire esperava-me. - Oh, ma chérie estás bem ? - Sim, estou bem mercí. O meu filho já respira liberdade, vai crescer como um príncezinho, tenho a certeza que eu não o faria melhor; por isso, estou em paz comigo própria. Olhou-me, incrédula, esperava ver-me desfeita em lágrimas; também eu! -Estás mesmo bem!? - Insistiu.

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-Claro que estou bem, não me chateies! -Sabes, é que a tua boca diz uma coisa e os teus olhos dizem outra. Os olhos são o espelho da alma, é inútil mentires. -Agora o meu filho tem um lar e uma família e apesar do sangue deles não ter nenhum parentesco com o nosso, considero-os nossa família de verdade. Sei que está em boas mãos, essa certeza tranquiliza-me. Claro, não posso negar que essa separação me está a corroer por dentro como um ácido, mas não me vou deixar abater, não quero, percebe? Começava aqui, uma nova etapa da minha vida. Entrei na minha cela, cheirava a pó de talco e a água-de-colónia. Parecia que ainda ouvia Jean Pierre a palrar, a rir. Senti o calor da sua mãozinha tão pequenina como quando eu lhe dava o meu dedo e ele o apertava com força. Eu puxava o dedo devagarinho e ele recusava-se a largar. Depois de voltas e mais voltas, consegui enfim adormecer; um sono leve, sobressaltado. Já a madrugada era quase manhã, acordei com um aperto na alma. O meu filho estava a chorar. Eu sabia, coração de mãe nunca se engana. Também ele sentiu a minha falta. Falei interiormente como se ele me pudesse ouvir: - Não chores meu filho, já passa, a tia Mónica ajudar-te-á a ultrapassar este momento difícil da tua vida. A mamã não te abandonou, simplesmente fez o que era melhor para ti. Quero que saibas que estarás sempre nos meus pensamentos, de noite e de dia. Apesar de ausente, tu estarás sempre presente no meu coração, na minha vida. Agarra-te à vida, Jean Pierre, com a força com que apertavas o dedo da mamã, lembras-te? Não desistas por favor. Os dias passavam vazios e eu procurava desesperadamente uma forma de preencher esse vazio; mas como, se também eu me sentia vazia?

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Cap. 11

Marie, passou junto de nós, olhou-me e sorriu. Claire franziu o rosto num esgar de desprezo. -Dão-se mal é? – Perguntei com a maior simplicidade. -Não nos damos mal nem bem; simplesmente não nos damos. -Esquisito, deve haver uma razão – insisti. - Esperei por uma resposta, obtive o seu silêncio. Caminhámos pelo pátio, silenciosas. Uma mulher já idosa cruzou-se connosco. Trazia as mãos cheias de bolachas. Sorriu mostrando as gengivas desdentadas, cobertas por uma massa de bolachas e saliva. Continuamos, ignorando-a. -Oú vas tu, Annette ? Olhei para ela, tive a noção de que se dirigia a mim. -Excuse-moi madame, eu não me chamo Annette. -Mentirosa, sempre fostes uma mentirosa. Senti-me corar até à raiz dos cabelos. Claire puxou-me pelo braço. -Está louca, não ligues. O tom da sua voz alterou-se: - Esquecestes de mim, Annette? Olhei para trás, os seus olhos estavam vidrados, uma pasta de bolacha saía pelos cantos da boca. - Não sei do que está a falar - disse-lhe amedrontada.

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-Esquecestes da tua mãe, Annette? Fostes tu que o matastes, sabes bem. Eu não fiz nada, meteste-me aqui, só aceitei para te proteger. O pátio estava cheio de mulheres. Caminhamos entre elas. De repente, um forte murro nas costas projectou-me para a frente, caí de bruços, protegendo o rosto com as mãos. Completamente atordoada, levantei-me com a ajuda da Claire e de outras mulheres que vieram em meu auxílio. - Essa mulher está completamente louca, cismou que eu era sua filha. Juro que não conheço essa mulher de lado nenhum. - Vou falando enquanto limpo os joelhos esfolados. Fiquei a tremer, quase não conseguia aguentar-me de pé. Vi-a afastar-se; caminhou entre grupos de mulheres. De vez em quando olha para traz. Por momentos deixei de a ver; reapareceu de novo à entrada do edifício, voltou a olhar para traz, desconfiada. Acompanhada de Claire, fui à sala de primeiros socorros, desinfectar os ferimentos, nos joelhos e nos cotovelos. Só me faltava mais esta – pensei – enquanto suporto a dor. Por incrível que pareça, em nenhum momento senti raiva daquela mulher; pelo contrário. Acreditei que estivesse a falar a verdade. Assumiu um crime que não cometera para proteger a filha; sim, é uma atitude típica duma mãe... depois sentiu-se abandonada. Deve haver algumas semelhanças entre a filha e eu; daí ter feito confusão e, depois, há quantos anos não vê a filha, talvez até já nem se lembre do seu rosto. -Coitada, preciso falar com essa mulher. -Estás mais doida que ela! -Faz sentido não achas?

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-E depois? Não tens nada com isso. O problema é dela. Já não te chega o espectáculo desta tarde? Esquece. Claire tinha razão, mas eu não conseguia esquecer. Meu Deus, que injustiça! Bebi um pouco de leite directamente do pacote. Mordisquei um croissant, voltei a pousá-lo, não me estava a cair bem. Saí decidida a falar com aquela mulher; tinha de o fazer. De certeza que não iria agredir-me de novo, se o fizesse eu estaria prevenida. Estava

de

costas,

reconhecia-a

imediatamente.

Aproximei-me

tranquilamente. -Podemos conversar? Virou-se. A sua expressão mudou como se tivesse visto assombração. -Podemos falar? - Voltei a perguntar. -Quero que me desculpe, por favor menina! Não sei como fui capaz de fazer uma coisa daquelas. – Reparei então que, as suas gengivas ontem desdentadas, hoje estavam escondidas dentro duma dentadura postiça. Pegou-me no braço e olhou dentro dos meus olhos, um olhar que me chegou à alma. - Diga que me desculpa. Nem consegui dormir, que vergonha! -Diga-me, aquilo que disse ontem é mesmo verdade? -Claro que é verdade. Eu não estou doida, acredite. Às vezes tenho medo que um dia isso aconteça...tenho medo, tenho. Ontem estava bastante perturbada. -Porque deixou que as coisas acontecessem dessa maneira? -Porquê? Porque ela fez aquilo que eu nunca tive coragem de fazer. -Como assim!? -Senta-te, vou contar-te como tudo aconteceu. 80


Sentamo-nos junto ao canteiro das flores, como grandes amigas, perante o olhar incrédulo de quem passava, inclusive a Claire. -Os meus filhos nunca me perdoaram por eu ter voltado a casar logo após ter enviuvado. Eles adoravam o pai. Para eles outro homem na minha vida, a ocupar o seu lugar, era completamente impensável. Aconteceu. Infelizmente não deu certo. Esse homem que me deu volta ao miolo, começou a fazer da minha vida um autêntico inferno. Bebia demasiado, tornou-se agressivo para mim; várias vezes o quis sacudir da minha vida, mas em vão. Estava preso a mim como uma carraça. Um dia, depois duma violenta discussão, bateu-me tanto que eu perdi os sentidos. Annette chegou momentos depois, ainda eu estava caída e ele estava debruçado na janela. Pensando que eu estava morta, segurou-o pelas pernas e num abrir e fechar de olhos atirou-o janela abaixo. Depois ajudou a levantar-me, tinha o corpo todo dorido, sem saber o que tinha acontecido. -Fostes tu, ouviste? Nunca te atrevas a dizer o contrário. - Gritou ela. -De que estás a falar, filha? - Quis saber. -Não me chames filha, nunca mais. Vais apodrecer na prisão, foi a vida que escolhestes, não foi? Com um safanão puxou-me por um braço, levou-me até à janela. - Vês onde ele está? Eu não podia acreditar, a minha cabeça girava como uma ventoinha. Lá em baixo um amontoado de gente e ao longe a sirene da ambulância despertaram-me para a realidade. Ela atirou-o do sétimo andar, matou-o e eu não tinha saída; para todos os efeitos fui eu que o matei. Ele não era boa rês, teve aquilo que mereceu. -Mas não é justo a senhora pagar por aquilo que não fez. -Isso não tem importância. Só lamento o abandono a que os meus filhos me condenaram: essa foi a maior condenação. - Mergulhou em si própria,

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levou algum tempo a vir de novo à tona. Depois, continuou como se falasse de si para si – há palavras que se dizem num segundo e perduram a vida inteira «não me chames filha nunca mais» e «vais apodrecer na prisão» – Sabe, estas palavras ficaram gravadas na minha alma, atormentando-me de dia e de noite: adormeço e acordo pensando nelas. Jacques, meu filho... também se esqueceu de mim. -Francamente, como pode haver gente tão insensível!? – Desculpe. O seu nervosismo era bem visível; tremia incontrolavelmente. Segurei na sua mão – acalme-se, um dia as coisas podem mudar e a senhora tem o direito de ser feliz. -Feliz!? Ai menina...há dez que aqui estou, o mundo lá fora é uma lembrança remota. Aprendi a viver no cativeiro como um pássaro a quem cortaram as asas; já não sonho, deixei de sonhar no dia em que entrei para aqui. Sei que um dia tenho de sair, e essa é a minha grande preocupação: não tenho coragem para enfrentar o mundo de novo; nesse dia só preciso de coragem para me afogar nas águas do Sena, a minha vida já não faz sentido nem cá dentro, nem lá fora. -Não faça isso. Procure os seus filhos, vai ver que a vão receber. A sua expressão de repente fica transtornada. - Isso nunca! Eu também tenho o meu orgulho. Levantou-se com alguma dificuldade, coxeou um pouco, retirou-se. Já não havia mais nada a dizer. Vi-a afastar-se de cabeça baixa, arrastando consigo a sua existência. Deixei-me ficar no pátio já deserto. Claire apareceu tão rapidamente na minha frente como se tivesse caído do céu.

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-Parabéns; conseguistes fazer a velha falar? Sabes, essa velha deve ser a pessoa mais reservada, mais impenetrável que está aqui dentro. Da sua boca nunca saiu um queixume, um desabafo...afasta-se de toda a gente: gentia como um animal selvagem. -Lá terá as suas razões, não achas? -Razões todas nós temos. -As pessoas não são todas iguais, temos o direito à diferença, não? O passado tem um peso esmagador na sua alma. Sabes que ela está aqui inocente? -Acreditas mesmo nisso? -Claro que acredito. Acordei bastante cedo, lá fora estava um nevoeiro cerrado. À volta do candeeiro, que ficava em frente á minha cela formou-se uma auréola de luz pardacenta. Olhei o relógio; seis horas, deixei-me ficar mais um pouco, estava frio, um frio húmido. Aconcheguei os cobertores e fiquei a pensar no meu filho. Como o amava! Como sentia a sua falta! Porque se ama um filho tanto assim? Eles sabem que o amor dos pais é um dado adquirido; saberão eles retribuir o amor e o carinho? Parece que não. O caso de...não sei o seu nome, vou continuar a chamar-lhe de velha. Pareceme não haver nenhuma espécie de sentimentos no coração daqueles filhos. Como se pode fazer uma coisa desta a uma mãe? Não entendo, recuso – me a entender, é demasiado cruel. Levantei-me, bebi um copo de água e duas bolachas de aveia. Lavei os dentes, passei um algodão com leite de limpeza sobre o rosto, espalhei um pouco de creme hidratante e massajei com a ponta dos dedos. Desde muito cedo me habituei a cuidar da minha pele. Maquinalmente, passei a escova pelos cabelos e apanhei-os em rabo-de-cavalo. Gostava de me ver assim, com

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o rosto completamente descoberto. Mirei-me ao espelho e gostei da imagem que ele me devolveu; aliás, sempre achei que tinha um rosto bonito, umas feições suaves e uns olhos bastante expressivos. Sorri. Se calhar estou a ser excessivamente convencida! E as pessoas feias? Será que se acham feias? Acho que não, vão-se familiarizando com a sua imagem. Pensando bem, não levem em conta a minha opinião: é uma opinião muito pessoal, mas quero continuar a pensar que sou bonita, nem que seja só para encher o meu ego. Instintivamente, peguei num livro. Um ao acaso, de tantos que a Mónica me tem oferecido: «As Vinhas da Ira» de «John Steinbeck» traduzido em português; óptimo, prefiro assim. Li a primeira página, compreendi de imediato porque mo comprou: Fala de terra, de sol, de milho, de arados...Mónica, como me conhece bem! Durante duas horas, deixei-me embrenhar profundamente na leitura com uma concentração que há muito não me era permitido. Foi com enorme satisfação que constatei esse facto. Os meus neurónios continuam a funcionar; havia de facto imenso tempo que não me sentia tão lúcida, com as ideias tão límpidas. Comecei a ler compulsivamente. Habituei-me a visitar a biblioteca, de vez em quando. Aqui convive-se com pessoas doutro nível intelectual. A primeira vez que aqui entrei encontrei Marie remexendo nas prateleiras; mostrou estranheza por me ver ali e simultaneamente um certo contentamento. - Ajudas-me a escolher um livro? Já li todos os que tinha. -Claro, que género preferes? Romance, policial, científico, biografia, sei lá.... - Um romance. – Respondi, sem hesitar. - Tens algum escritor preferido? Eu, pessoalmente, gosto muito de John Steinbeck, Aldous Huxley, Thomas Mann; olha estes, por exemplo

são

óptimos: «A montanha mágica» e «Os buddenbrook».

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-Desculpa – disse-lhe ao ver na prateleira ao lado o «Diário de Anne Frank» vou levar este, dizem que é um grande livro. -Sem dúvida, um grande livro escrito por uma adolescente, durante a repressão Nazi... lê, vais ficar impressionada. Sentei-me, olhei à minha volta: prateleiras cheias de livros, cadeiras, algumas mesas e sobretudo um grande silêncio. Confesso que me senti bem naquele lugar. Senti-me como se estivesse num lugar sagrado. Uma tranquilidade que convidava à leitura e à reflexão. Observei a Marie; a sua expressão tranquila, sempre tão senhora de si. Estava só; à sua frente um calhamaço enorme donde ia tirando apontamentos, completamente alheia a quem estava à sua volta. Tentei seguir o seu exemplo: abri o «Diário de Anne Frank» e comecei a ler. O meu coração começou a bater a um ritmo diferente. Comecei a adquirir de novo o gosto pela vida; a pouco e pouco fui arrumando as ideias dentro da minha cabeça. Aprendi a respeitar as regras do jogo: não adiantava espernear nem barafustar, só me restava aceitar. Criei defesas e senti que era possível ficar imune ao sofrimento. Ver a vida de outro modo, ser de novo feliz. Sempre tive necessidade de me manter ocupada e a leitura ajudava-me imenso. Ler era de facto, o melhor dos vícios; a melhor maneira de ocupar o tempo e o espírito... A Marie aproximou-se de mim; estava tão embrenhada nos meus pensamentos que nem dei pela sua presença. Sentou-se a meu lado, colocou o braço à volta do meu pescoço. -Gosto de te ver aqui, estás no lugar certo, este ambiente combina contigo; melhor dizendo, tu é que combinas com este ambiente. Não me perguntes porquê, pressinto. Vejo que não és uma pessoa vulgar, é daquelas coisas que não se traduz em palavras. Há em ti algo de superior, que não se aprende, nem se ensina, nasce connosco. Percebes?

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-Meu Deus, falando assim até me assustas, só falta dizeres que eu sou uma criatura sobrenatural. -Nada disso, o que eu quero dizer é que tu tens classe, charme e vejo no fundo do teu olhar uma grande vontade de aprender; sabes o que queres da vida; tens objectivos, metas a alcançar... -Desculpa lá, tu és vidente? Eu estou estupefacta! Mas tenho de admitir que é bastante agradável ouvir alguém falar assim de nós. Riu-se. - Olhou-me fixamente, bem de frente, com o nariz quase a tocar no meu por uns instantes, antes de se decidir a falar: -É preciso saber esperar pelo momento certo, e lembra-te sempre duma coisa muito importante: “Nunca seremos nada na vida se não quisermos tentar.” Tu és suficientemente inteligente... Fez um breve silêncio, voluntário. Fui eu que o quebrei. - Posso perguntar-te uma coisa? Não tem nada a ver com o que acabamos de falar. Sei que não são contas do meu rosário, mas faz-me alguma confusão: porque é que, precisamente as minhas melhores amigas aqui dentro, não falam uma com a outra? -Ah! Não te incomodes com isso. Sabes nós somos como o íman do mesmo pólo, repelem-se sempre um ao outro. -Não percebo, porque só falam em metáforas! -Por favor, poupa-me a pormenores. - Levantou-se. A caminho da porta de saída, deteve-se, deu meia volta e disse - Queres um conselho? Afasta-te dela; não é boa influência nem para ti nem para ninguém. Nunca me irei afastar de Claire, – pensei – nunca!

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Esta conversa deixou-me um pouco transtornada, tentei retomar a leitura, mas não consegui concentrar-me; os meus olhos corriam por cima das palavras, mas o meu cérebro não conseguia captar nem uma sílaba. Abandonei a biblioteca. Percorri o corredor languidamente, ruminando estes pensamentos: «Nunca seremos nada na vida se não quisermos tentar». A Marie tem o dom de pensar mais além: uma sabedoria indefinível. Saí para o pátio, senti o vento fresco no rosto. Procurei alguém a quem me dirigir. A velha... senti uma pontada no coração. Meu Deus, porque me fizeste tão sensível ao sofrimento dos outros? O drama desta mulher mexe com os meus sentimentos mais profundos. Não posso acreditar! É assim que funciona a justiça? Acontece um crime, alguém se confessa seu autor: óptimo! Está o caso resolvido. As coisas não podem, nem devem funcionar assim. E as provas materiais? E a convicção com que a pessoa confessa o crime? Será ela tão boa actriz, assim? Aproximei-me. Trazia os cabelos apanhados em carrapito, exactamente como usava a minha avó. -Bonjour, madame. -Bonjour, mademoiselle. O seu olhar estava distante. Depois de algum tempo, completamente ausente, disse como quem pensa alto: Infeliz, daquele ou daquela que não tem razão de viver. -Por favor, não vamos falar de coisas tristes, não? - Pedi-lhe com uma ternura quase maternal. Posso tratá-la por avó? Sabe, agora mesmo quando me aproximava de si achei-a tão parecida com a minha avó; sabe que ela usa os cabelos assim apanhados como os seus? Sorriu, os olhos adquiriram um brilho invulgar. Nem parece a mesma. Como um sorriso pode transformar, uma pessoa! A minha avó... recordei quando penteava os seus longos cabelos, tão finos, tão sedosos... Depois, enrolava-os cuidadosamente em carrapito.

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Parecia que a estava a ver sentada na velha cadeira de baloiço, debaixo do alpendre, rodeada de hortenses azuis... -Gosta muito da sua avó, já vi. - Não imagina as saudades que eu tenho dela. Está longe, muito longe; em Portugal, já ouviu falar? -Se já ouvi falar!? Já lá estive. A minha segunda lua-de-mel passei-a no Algarve; terra linda, gente boa. Ficou com o olhar perdido, silenciosa, abandonada às suas próprias recordações. -Gostava de conhecer a sua filha. – Disse-lhe, abruptamente. - Se me pudesse dar o seu contacto. Pôs-se de pé tão depressa como se tivesse sido mordida por um bicho. -Oh mademoiselle, já lhe disse noutro dia que ainda não perdi o tino. Não queira fazer de mim parva, e se quiser ser minha amiga nunca mais ouse tocar nesse assunto. Eu até entendo as suas intenções... agradeço-lhe, mas não se incomode. Saber que se preocupa comigo já é muito bom. O que ela fez não tem perdão, nunca mais a quero ver, nem viva nem morta. -Desculpe, falei sem pensar. Que ideia tão descabida! Deitei-me. Adormeci até à manhã seguinte. Era um dia muito especial para mim, o meu filho comemorava o seu primeiro aniversário. Mónica ia trazêlo, anseio pela hora da visita. Sabia que até lá não ia conseguir concentrar-me em mais nada. Andei dum lado para o outro como uma barata tonta. Estive com Marie na biblioteca. Contei-lhe a história de... ainda não sei o seu nome, a velha. Precisava desabafar com alguém. -Não fiques assim, dizes que ela até percebeu que a tua intenção era ajudar.

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-Eu sou como uma esponja, absorvo todo o sofrimento à minha volta. Detesto ser assim, mas não posso mudar a minha maneira de ser. -Já reparaste como uma pequena frase dita sem pensar te deixou? Tens de ter mais cuidado com o que dizes. Sabes, um grande filósofo já muito antigo chamado Aristóteles, dizia: “O Sábio nunca diz tudo o que pensa, mas pensa sempre em tudo o que diz”. Por vezes somos escravos das palavras que pronunciamos; mas somos donos e senhores daquelas que ficam por dizer. Enfim, é preciso saber o que se diz, como se diz, e a quem se diz. Santo Deus, que prudência! Às vezes pergunto-me, qual seria o motivo que atirou com esta mulher para traz das grades!? Uma pessoa tão sensata, tão ponderada... esta deve ser do género: «Olha para o que eu digo, não olhes para o que eu faço». Talvez a Claire tenha razão, quando diz: cuidado, não seja ela um lobo disfarçado de cordeiro. “É mais falsa do que judas!” Já o meu avô dizia: confia, desconfiando. Que mundo é este Senhor, será que não se pode confiar em ninguém!? O meu filho estava um rapagão enorme. Tinha um sorriso lindo, fazia duas covinhas nas bochechas. A última vez que o tinha visto mal se conseguia equilibrar nas pernitas, agora já dava passadinhas. Peguei nele ao colo, apertei-o contra o meu peito, sussurrei no seu ouvido: Dá um beijinho à mamã, dá. Beijou-me efusivamente, beijos quentes; lambuzou-me a face, puxou-me os cabelos… Tive de novo uma recaída; eu queria tanto acompanhar todos os momentos do seu desenvolvimento. Ser a primeira na sua vida. A primeira pessoa que ele visse ao acordar, e a última ao adormecer. Senti no mais íntimo de mim, uma inveja da Mónica.

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Caí de novo num abismo terrível, nem me apetecia levantar, nem lavar, nem comer, nem sair. Tinha de reagir, eu prometi a mim mesma que nunca mais me deixaria abater. Ainda no dia anterior eu pensava que estava imune ao sofrimento. Que estupidez! Levantei-me, molhei o rosto com água fria, e dei um safanão na tristeza. Peguei no leitor de C Ds, Que a Mónica me ofereceu, pus um CD dos Beatles – «Yesterday», que ironicamente é um dos meus preferidos, e li o “Diário de Anne Frank”. Invariavelmente, deixo-me envolver sempre nas histórias dos livros que leio, mesmo sabendo que não passam de histórias criadas e inventadas por grandes escritores; mas no caso do «Diário de Anne Frank» era diferente, tudo se

passou

na

realidade.

Houve

uma

frase

que

me

impressionou

particularmente: “Se Deus me deixar, viver, hei-de ir mais longe de que minha mãe. Não quero ficar insignificante. Quero conquistar o meu lugar no Mundo e trabalhar para a Humanidade”. No entanto, sabe-se que Anne Frank foi levada para um campo de concentração, onde acaba por morrer. Imediatamente lembrei-me da Claire, que certamente perguntaria: “Continuas a acreditar em Deus?” E eu responder-lhe-ia: “Continuo a acreditar em Deus, e começo a desacreditar nos homens”.

Sem me aperceber comecei a viciar-me na leitura, como quem se vicia em droga, já não conseguia parar; corri para a biblioteca a fim de trocar aquele livro por outro. A

Marie,

estava

como

sempre

compenetrada

na

leitura,

tão

compenetrada que nem deu pela minha presença. -Oh, mon amour, não queres sentar!? -Não quero incomodar. - Respondi com acanhamento. -Senta-te, não sejas tola.

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Foi nesse dia, que ela me incentivou a escrever. -Escrever!? Eu? -Sim, porque não? -Escrever sobre o quê? -Sobre tanta coisa, sei lá... sobre ti, podes até imaginar uma história, como fazem os escritores a sério. -Oh, tenho lá jeito para isso! - Reflecti um pouco – a minha mãe escreveu um diário, quer dizer, talvez não seja propriamente um diário; um pequeno caderninho onde ela escrevia as coisas mais importantes que lhe aconteciam. Gosto tanto de ler aquilo que ela escreveu. Sabes, tenho pena que ela não tivesse escrito mais, costumo dizer que foi a única herança que ela me deixou. -Podes fazer o mesmo, será uma herança para o teu filho. -Vou pensar, prometo. Não sabia ela, nem sabia eu, que a minha vida começava verdadeiramente a mudar nesse preciso momento. Escrever. Porque não? A Marie diz que escrever é a melhor das terapias para afugentar a solidão. Pedi à Mónica que me trouxesse um caderninho e uma esferográfica. Entregou-me tudo sem perguntas nem comentários.

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Cap. 12 Limpei a mesa, abri o caderno e fiquei a olhar para a folha em branco. As horas iam passando e eu continuava a olhar a folha completamente intacta. Procurava as palavras e nada me ocorria, como um nó cego na minha cabeça que eu não consigo desatar. “É preciso saber esperar pelo momento certo”. Esperarei. Fechei o caderno, guardei-o com uma sensação de fracasso. Durante horas e horas torturei a minha cabeça, procurando ideias, momentos importantes da minha vida, acontecimentos... Passá-los para o papel era mais complicado do que eu pensava. Levantei-me e fui buscar o caderninho da minha mãe na esperança de encontrar aí alguma ideia, uma inspiração... Li-o de ponta a ponta; havia tanto tempo que não o fazia! Emocionei-me, era inevitável. Talvez fosse uma boa forma de começar a minha história com a história da minha mãe; afinal era aqui que estava o princípio da minha vida, desde a minha concepção até aos dois anos. Uma fase da minha vida, que eu não consegui reter na minha memória. Exactamente como se não a tivesse vivido. Fui de novo buscar o caderno e copiei as partes que julguei mais relevantes. “Tudo começou, naquele dia, quando estive em casa da tia Amélia, que vivia em Setúbal. Imediatamente me convenci que não nascera para viver no campo. Tudo tão monótono, sempre igual; na cidade há vida, há agitação. Particularmente, o que mais me impressionou foram as casas. O luxo. Abrir uma torneira e sair água, quente ou fria; pressionar um botão e acender a luz... e a televisão! Senhores, o mundo inteiro ali à nossa frente!

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Senti-me triste; desejei ser uma pessoa diferente, ter nascido numa família diferente, viver na cidade. Estava apaixonada pela cidade. A minha vida nunca mais será a mesma; agora que conheço o luxo, já não consigo viver sem ele. - Pensei. Tornei-me bravia e triste. Nunca mais fui a rapariga alegre e tagarela, que os meus pais estavam habituados. Eu não sabia como lidar com este monstro que vivia dentro de mim, e crescia comigo. Andei dias, semanas, meses a arranjar coragem para falar da minha decisão; eu sabia que não era tarefa fácil convencer os meus pais. Mas eu tinha de o fazer, caso contrário eu iria enlouquecer. - Mãe, tenho pensado muito, e estou decidida a sair daqui. É minha intenção ir trabalhar noutro lugar, eu não suporto mais esta vida; trabalha-se muito e ganha-se pouco. Vou para Setúbal ou talvez para Lisboa procurar trabalho. -Que raio de conversa é essa rapariga? Julgas que o teu pai vai permitir uma coisa dessas!? -Não deixa a bem, deixa a mal. Irei de qualquer jeito. Sabe, quem se contenta com o que está perto, nunca alcança o que está longe. -Quem te ensinou a dizer essas coisas, Maria Rosa? Quem te anda a pôr ideias nessa cabeça filha!? -Ninguém. (Eu nunca poderia dizer que aquela ida a casa da tia Amélia, me tinha dado volta à cabeça; ela iria culpar a irmã até à eternidade, e a relação delas já não era das melhores) A vida é minha, eu faço dela o que bem entender. Não adianta vir mãe, nem pai; pode até vir Jesus em pessoa que ninguém me consegue demover. -Onde ouviste tu isso que acabastes de dizer Rosita? -Li numa revista. E o que é que isso interessa? -Deixa o teu pai chegar, e verás o que é que isso interessa.

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-Aqui a vida parou; aqui só há lugar para gente rude, gente sem ambição. Odeio esta terra; sinto os meus sonhos aprisionados, sem espaço para crescer. -Acho que andas a ler revistas a mais. - Interveio Zé Manel – Seu irmão que ouvira parte da conversa. - Não te metas onde não és chamado. Pedi a tua opinião por acaso? - Mas devias ter pedido. - Disse com um sorriso maroto. Logo que o meu pai chegou, a minha mãe encarregou-se de o pôr ao corrente da situação. Ouviu pensativo, sem pronunciar uma só palavra. Sentou-se lá fora a apanhar o fresco da noite. Sentei-me a seu lado. O seu sofrimento estava bem expresso no seu rosto, e no seu silêncio. - Meu pai, entenda-me, vou à procura duma vida melhor. A grandeza dos meus sonhos, não cabe na pequenez deste lugar. - Se é essa a tua vontade, que posso eu fazer? Vai atrás do teu sonho minha filha, ninguém te pode negar esse direito. – Depois duma curta pausa, continuou – mas se um dia as coisas não correrem como esperas, volta, porque esta casa será sempre a tua casa. - Obrigada meu pai, não imagina o que significam para mim as suas palavras, jamais as esquecerei. Partirei amanhã de manhã, quando o pai for a Évora levar os queijos. O meu pai deu-me carta branca, para eu própria gerir o meu destino. Na hora de partir, a minha mãe estava visivelmente transtornada: Tem cuidado minha filha, porta-te bem, não faças nada que te possas arrepender depois, e lembra-te que esta será sempre a tua casa. Vai com Deus, dá cá um beijo à tua mãe.

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- Obrigada mãe, fique descansada, darei noticias. Parti com a cabeça cheia de sonhos, mas com o coração apertado. Em Évora apanhei a camioneta para Setúbal; aí, informaram-me que tinha de apanhar outra para Cacilhas e depois em Cacilhas apanhava o barco para Lisboa. -

Barco!? Foi isso que disse?

-

Sim, o cacilheiro

-

Sabe eu nunca andei de barco.

Olhou-me como se eu fosse uma ave rara. Serei a única pessoa no mundo, que nunca andou de barco? Nunca tinha feito uma viagem tão longa. Pensei na vida que deixei para trás, e na vida que me espera daqui para a frente. Só Deus sabe. De repente fiquei ansiosa. Sai da camioneta em Cacilhas, completamente desorientada sem saber para onde ir. Caminhei atrás da multidão, (à terra onde fores ter, faz como vires fazer) tirei o bilhete. Ao entrar no barco perdi o equilíbrio, só não caí porque não tinha espaço; nunca na minha vida tinha visto tanta gente junta. Confesso que tive medo. Como era possível o barco não ir ao fundo com tanto peso? O barco baloiçava ao sabor das ondas, senti-me embalada como se estivesse num berço. Olhei o rio e, ao longe, a cidade que me esperava. Estava deslumbrada! Apercebi-me então que a viagem tinha terminado quando toda a gente começou a levantar-se e se aproximou das portas de saída. De repente, um solavanco, e toda a gente saiu ao empurrão, fazendo-me lembrar as ovelhas quando saem para a pastagem. E finalmente, Lisboa. Meu Deus, um arrepio de medo percorreu o meu corpo. O sangue correu-me nas veias ao ritmo da cidade. Senti-me perdida num mundo que não

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era o meu. Não sabia para onde ir. O ruído do trânsito era ensurdecedor, as ruas estavam cheias de carros, que passavam a uma velocidade louca. Tive medo de atravessar a rua. Deixei-me envolver naquela multidão e senti-me só, completamente só, no meio de tanta gente desconhecida. Andei um pouco à deriva. Entrei numa tasca para comer alguma coisa, tinha uma fome dos diabos. Um homem dos seus sessenta anos, mais coisa menos coisa, limpava o balcão de copos e chávenas, passando em seguida com um pano húmido sobre ele. Timidamente pedi qualquer coisa para comer. Fiquei mais tranquila quando vi algumas mulheres, também elas a petiscar; na minha terra, só os homens tinham o privilégio de entrar numa taberna. Perguntei ao taberneiro se me sabia indicar uma pensão onde eu pudesse passar a noite. Saiu de dentro do balcão e veio até à porta, todo cheio de atenções e boa vontade; - A menina sobe esta rua, – disse com o braço esticado – à sua direita, no número 58... a menina vê logo, tem uma placa que diz “Pensão Vitória”. Coisa boa, asseada e gente muito séria! Diga que vai a mandado do Artur da tasca. - Direi, muito obrigada. E segui rua acima toda cheia de confiança.Toquei a campainha da porta. Uma mulher magra de cabelo amarelado e boca pintada, veio abrir a porta. Sorriu amavelmente, e convidou-me a entrar. - Entra. Vens para ficar? - Sim, se poder ser. - Donde vens? - Do Alentejo. Procuro trabalho; por acaso sabe de alguém que precise dos meus serviços? - Estás com sorte, eu estava mesmo a precisar duma rapariga aqui para a pensão. Sabes passar a ferro? - Sei sim, minha senhora, sei fazer tudo dentro duma casa.

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- Então estás contratada. Trazes fome? - Não senhora, comi uma carcaça com torresmos ali na tasca do senhor Artur; foi ele que me mandou para aqui. - Ah, o Artur, é um santo homem. - Anda, vou mostrar-te o quarto. Caminhamos por um corredor enorme e escuro. Abriu a porta do quarto, entrámos. - É pequeno, mas para ti chega bem, o que achas? - Está muito bom. Obrigada - Que idade tens tu? - Quinze anos. - Tenho uma filha pouco mais velha do que tu. Chama-se Beatriz, espero que se entendam bem, mas vou já prevenir-te: olha que ela tem nariz empinado! Limitei-me a sorrir. Se for simpática como a mãe - pensei. Deixou-me só. Dei uma olhadela ao quarto que iria ser meu. Um cantinho só meu no meio duma cidade enorme. Nem queria acreditar, era bom demais para ser verdade. Dormitei um pouco. Acordei a pensar nos meus pais; pedi a Deus que tranquilizasse os seus corações, uma vez que eu não tinha como lhes comunicar. Conheci a Beatriz. Era muito bonita, gostei dela e acho que ela também gostou de mim. Mirou-me de alto a baixo e disse-me, sem papas na língua: - Desculpa lá ó boneca, tu até és bonitinha, tens uns olhos lindos, mas essas roupas, estão fora de moda. E esse cabelo, há quanto tempo não vê tesoura? Já reparaste como estão secas e espigadas, as pontas? Amanhã levo-te ao cabeleireiro, queres?

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Disse que sim com um abanar de cabeça. Era franca demais para o meu gosto, mas como era para meu bem... afinal eu agora era uma rapariga da cidade portanto tinha de me arranjar como tal; e eu não passava duma campónia principalmente para uma rapariga sofisticada, que sempre viveu na cidade. - Também precisas de comprar umas roupas – continuou, no mesmo tom, de quem põe e dispõe. - Sim, o problema é que tenho pouco dinheiro. Senti-me uma reles, uma pobretana. Apesar do cansaço, tive dificuldade em adormecer; o meu corpo estranhou a cama e, de longe em longe passavam carros; ouvi vozes durante toda a noite. Levantei-me cedo. Abri a janela do meu quarto e observei a rua cheia de carros e de gente. Gente que corria dum lado para o outro como loucos. Perguntei a mim mesma para onde ía toda esta gente. Que frenesim! A Beatriz veio chamar-me para comer (tomar o pequeno almoço) disse ela. - Só consegui marcação para o cabeleireiro às quatro horas; que tal irmos às compras agora de manhã? Disse-me, enquanto molhava bolachinhas no café com leite. Eu tenho pouco dinheiro já te disse, e a tua mãe vai precisar de mim com certeza. - Não te preocupes, está tudo sobre controlo. - Não percebi muito bem o que quis dizer, mas pronto, entreguei-me nas suas mãos como quem se entrega a Deus. Passámos a manhã de loja em loja: nunca tinha visto tanta roupa bonita. Aqui era de facto outro mundo.

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Eu estava deslumbrada, Beatriz era tão decidida e tinha tão bom gosto. Foi ela que me ajudou a escolher as saias e as blusas que comprei. Comprei também umas sandálias de saltos altos. Foi ela quem pagou tudo, disse que mais tarde faríamos contas. - Nem cabia em mim de contentamento. - Fica-te lindamente. Agora calça as sandálias. - Não sei andar com isto, parece que vou cair a todo o passo. - Não desanimes miúda, precisas de prática. Não podes andar com os joelhos flectidos e com o corpo inclinado para a frente, não é elegante. Vá lá, endireita esse corpo, imagina que levas uma cesta com ovos em cima da cabeça. Achei tanta graça que me fartei de rir. Comecei a ficar mais à vontade com ela. - Outra coisa, à mesa também tens de aprender a utilizar os talheres. - Fiquei a olhar para ela, de testa franzida. - Não sabes o que são talheres!? Fiz que não com a cabeça, envergonhada da minha ignorância. - As colheres, os garfos e as facas chamam-se talheres, percebes? E não precisas de ficar envergonhada, ninguém nasce ensinado; tu, de certeza, sabes muita coisa que eu não sei. Senti vontade de lhe dar um beijo, mas ainda não tínhamos intimidade para tanto, mas que fiquei contente com as suas palavras, fiquei. Cada tesourada no meu cabelo, representava menos um ano no meu rosto. Tinha a certeza que se os meus pais me vissem agora não me reconheceriam. Parecia uma menina de dez anos. Olhava para o espelho e nem queria acreditar que aquela era mesmo eu. Estava completamente transformada. Ao jantar todos os hóspedes da pensão repararam em mim.

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Um mais atrevidote comentou: - Oh D. Vitória, esta é a Alentejaninha que chegou cá ontem!? Não acredito, como se transformou numa lisboeta em tão pouco tempo!? - Caiu nas mãos da minha Beatriz, que estavam à espera? Todos riram, eu até corei; mas estava deveras feliz. Depois do jantar, chamei Beatriz ao meu quarto: - Olha o que me fizeram as sandálias - disse-lhe mostrando os calcanhares cheios de bolhas de água. - Ah! Que horror, deve doer imenso!? As sandálias são para saíres à rua. - Vou trazer-te umas chinelas, espera. A Beatriz era uma amiga a valer. Quando ela voltar com as chinelas tenho que lhe pedir que me ajude a escrever para os meus pais, não posso prolongar o desespero que eles devem estar a sentir por falta de notícias minhas Hoje foi o meu primeiro dia de trabalho; arrumei os quartos dos hóspedes, passei a ferro e ajudei a D. Vitória na cozinha. A Beatriz saiu cedo para a escola; diz que quer estudar para ser médica. Com a esperteza que ela tem, chega lá com certeza. Depois do almoço, disse-me: anda daí boneca, vamos lá escrever a carta aos teus pais. Fomos para o meu quarto. - Escreves tu, ou escrevo eu? - Eu sei escrever; quero ser eu a escrever, se não te importas. Não sou assim tão parva, quer fazer de mim uma néscia. É tão esperta e não compreende que uma carta é coisa particular, coisas de famílias... mas também eu fui culpada, pedi-lhe ajuda em vez de pedir

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simplesmente que me arranjasse uma carta e um envelope. Espero que não lhe tivesse parecido mal; sei lá, esta gente da cidade são todas cheias de “ não me toques”.

Zé Manel Espero que estejam bem de saúde, pois eu estou bem na graça de Deus. Quero dizer-lhes, que arranjei trabalho no mesmo dia que em cheguei. A senhora da pensão onde estou hospedada, precisava duma rapariga para arrumar os quartos e para passar a ferro. Aqui a luz é tanta que nem consigo ver as estrelas. Estou muito contente por aqui estar, logo que receba algum dinheiro irei visitá-los. Não se apoquentem. Já me esquecia, a dona da pensão tem uma filha que anda a estudar; quer ser médica. Somos já grandes amigas, eu depois conto tudo quando for a casa. Tens de vir cá um dia, mano. Isto aqui é outro mundo. Mando muitos beijinhos para vocês, e não te esqueças de ler a carta para a mãe e o pai ouvirem. Maria Rosa.

Era de facto outro mundo; aqui vive-se a um ritmo alucinante. Percorri, sem pressa, ruas e avenidas observando os transeuntes na sua azáfama diária. Observava as montras, fascinada; ficava com o nariz encostado aos vidros até ficarem embaciados. Iludida na descoberta, aconteceu perder-me várias vezes; depois de voltas e mais voltas, encontrava de novo o caminho de regresso à pensão. Chegou à pensão um rapaz. Vinha acompanhado pelos pais. Por aquilo que percebi vinha estudar para cá. Éra bonito, tinha os cabelos claros e os olhos azuis da cor do céu.

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Ouvi a mãe, chamar-lhe Pedrinho – deve chamar-se Pedro, as mães têm esta mania; eu também me chamo Rosa, e lá em casa, todos me chamam Rosinha. Ao jantar, os nossos olhares cruzaram-se várias vezes. Já passaram dois meses desde que cheguei; tinha tantas saudades dos meus pais e do meu irmão. Enquanto arrumávamos a cozinha, enchi-me de coragem: - D. Vitória, eu gostava de ir a casa, já não aguento tantas saudades. Se não fizer diferença… - Claro minha filha, não faz diferença nenhuma. Respondeu em tom maternal. - Partirei no Sábado cedinho, e no domingo à noite estarei de volta. O meu pai esperava-me. Saí da camioneta a correr. - Meu pai, que saudades! - Abracei-o com tanto carinho como nunca na minha vida o tinha feito. - Como estás linda Rosinha, a tua mãe não te vai conhecer! - Gosta pai? - Perguntei feliz da vida. Subi para a carroça, com todo o cuidado para não estragar as minhas roupas novas. Pelo caminho ia cumprimentando as pessoas conhecidas. Que bom voltar a ver toda esta gente. Gente que me viu nascer e crescer: - esta era a minha gente! A mãe recebeu-me com a felicidade estampada no rosto, e os olhos marejados de lágrimas. - Ai Rosinha, como estás bonita, nem pareces a mesma! - Eu agora sou uma menina da cidade, mãe! Abraçamo-nos comovidas.

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- Sentem-se aqui, tenho tantas coisas para contar. Sentámo-nos debaixo do alpendre rodeados de hortenses. Contei – lhes tudo, desde aquele em dia em que parti com o coração mirradinho dentro do peito.

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Cap. 13 Era outra vez domingo, a semana de trabalho passou tão rápida que quase nem me apercebi. Pedro convidou-me para dar um passeio para conhecer melhor a cidade. Falamos de banalidades, da vida e acabamos a rir como dois tontos. Andamos pelas ruas de Lisboa, observando tudo, como duas crianças. Dei graças a Deus por estar neste lugar maravilhoso; estava condenada a viver a minha vida inteira na pasmaceira que era o Alentejo. Foi já debaixo dum céu carregado de nuvens que descemos a passos largos o Parque Eduardo VII. O vento soprava forte de sul, alguns pingos esporádicos salpicam-nos o rosto. - Parece que vamos apanhar uma molha. – Disse eu amedrontada. - Há coisas piores, - respondeu o Pedro tranquilamente. Minutos depois começava a chover. Chegámos à pensão encharcados até aos ossos. Passo os dias a pensar nele, não vejo a hora dele regressar da faculdade. - Que se passa Rosa, andas tão calada? D. Vitória apanhou-me de surpresa, não sabia o que responder; acho que corei. - Ai ai, parece que anda aí coisa. - Continuou ela com um sorriso matreiro. Depois do jantar, Pedro convidou-me para sair. - Não sei. D. Vitória não vai gostar. - Não vai gostar? Ora essa, ela não é tua mãe. - Mas é como se fosse.

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- Deixa-te disso, vamos lá dar uma voltinha, não demoramos muito. Pedi para sair, sentia-me na obrigação de o fazer. A noite estava fria. Caminhamos devagar, sentindo a brisa gelada a bater-nos no rosto. Pedro estava lindo, o vento fazia ondular os seus cabelos louros. Os nossos corpos aproximaram-se. Senti as suas mãos pousarem em cima dos meus ombros. Puxou-me para si. Uma onda de felicidade fez vibrar o meu corpo. Seguimos em silêncio, rua Augusta abaixo, em direcção ao rio. Nunca na minha vida, tinha experimentado esta sensação: será que estava apaixonada? O meu coração batia descompassadamente. A lua reflectida no rio brilhava como vidro. Sentámo-nos juntinhos abraçamo-nos com força e ele beijou os meus lábios suavemente. - Temos de voltar, está frio e já começa a fazer-se tarde. - Disse-lhe com a voz sumida. Detivemo-nos um pouco antes de entrar. A rua estava deserta, beijoume de novo. Entramos na pensão como dois ladrões, em bicos de pés. Já todos tinham recolhido aos seus quartos. - Até amanhã – dissemos baixinho. Fechei a porta do meu quarto, fechei os olhos e revi os momentos mais felizes de toda a minha vida: Obrigada Meu Deus! Estava gelada, deitei-me. Estar a sós começava a ser cada vez mais uma necessidade pungente. Falou-me da sua terra, dos amigos que lá deixou, da família, das saudades. De repente, como se acordasse dum breve sono, disse: “esquece, agora tenho-te a ti e esta cidade maravilhosa!”

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Um pensamento passou pela minha cabeça como uma faísca de lume. Quando terminar o seu curso de engenheiro, voltará para a sua terra, para junto dos seus. Irei perdê-lo para sempre. Como poderei viver sem ele? Não, nunca mais o irei perder, para onde for irei consigo! Essa ideia trouxe-me alívio. Pela primeira vez, tomei a iniciativa de o beijar; beijei-o com sofreguidão nos lábios, na cara, no pescoço, nos cabelos. Senti o seu perfume penetrar nas minhas narinas, fiquei louca de amor; já nada nos conseguia fazer parar. Fizemos amor, pela primeira vez. Ambos tínhamos a beleza da juventude: os meus cabelos negros, a pele ainda tostada pelo sol, olhos cor de mel; ele de cabelos louros, (nunca mais os cortou desde que chegou, mas ficava - lhe bem; ás vezes apanha-o em rabo de cavalo. Era moda, viam - se muitos rapazes com os cabelos compridos) a pele clara e olhos azuis. Convidei-o para ir comigo da próxima vez que fosse visitar a minha família. Aceitou. Fiquei radiante, queria fazer uma surpresa aos meus pais. Mais tarde percebi que não foi boa ideia. Estávamos os dois muito nervosos, como é natural nos momentos importantes da vida. Como sempre, o meu pai esperava-me na estação. A sua expressão mudou quando me viu acompanhada, mas não fez comentários; seguiu silencioso até casa. A nossa felicidade eram tanta, que nem demos muita importância ao silêncio do meu pai. - Está acanhado. - Pensei. Mais tarde, a minha mãe fez-me entender que não era acanhamento. - Rosinha, os teus pais estão muito desgostosos, como te atreveste a trazer cá a casa um rapaz, que mais parece uma rapariga? Onde já se viu... Que dirão as pessoas? O meu coração estava mirradinho. - Mãe, que importa o que as pessoas possam dizer, é gente que encara as coisas de outra forma; lá em Lisboa é moda.

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- Moda? Homem que é homem, não alinha em modas. - Depois duma pequena pausa falou como quem pensa alto: um maricas é o que ele parece. - Mãe, – disse eu já à beira das lágrimas, na tentativa de a fazer mudar de ideias – ele anda a estudar, vai ser engenheiro; nós gostamos muito um do outro, é isso que vocês têm de entender. É vosso dever gostar do homem que faz a vossa filha feliz. A minha mãe saiu cabisbaixa. Esta conversa, provocou dentro de mim um vendaval; fiquei revoltada da cabeça aos pés. Vou arranjar as minhas coisas, vamos voltar para Lisboa. Não sei se voltarei; se não o aceitam a ele, também não me aceitam a mim nem aos filhos que do nosso amor irão nascer - Queres matar-nos de desgosto, isso é que é. - A mãe já teve a minha idade, por acaso sabe o que é gostar assim tanto de alguém? É a coisa mais bela que existe no mundo. Eu cheguei tão feliz e vou partir com o coração despedaçado, não é justo! A mãe acha certo? Não pude, nem quis ocultar ao Pedro a razão de toda esta discussão. - Se o problema é o cabelo, eu corto-o agora mesmo. – Disse tranquilamente, como é seu jeito. Olhei-o, incrédula. - Nunca faças isso! Nunca mudes nada para agradares aos outros. As pessoas têm de gostar de ti tal como és. Eu gosto de ti assim mesmo, o resto não importa. Fizemos a pé todo o caminho de regresso a Évora. - Caramba, nunca andei tanto duma só vez! - Vamos apagar para sempre este dia das nossas memórias. Consegues?

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- És parva, há coisas na vida que nunca se esquecem por muito que vivas. - Tens razão... – disse-lhe com uma dor na alma. Chegámos já a noite reinava sobre a cidade. A esta hora, o barco transporta meia dúzia de pessoas. Vista de longe, a cidade toda iluminada, reflectida no rio, era coisa digna de se ver. – Um espectáculo. Palmilhamos, ruas e mais ruas. Havia pouca gente, gente que caminha como nós, cada qual ao seu destino. Estremeci ao dar de caras com um vulto, num recanto escuro. - Que será? – Perguntei a tremer de medo. - É um sem abrigo. - Um quê!? - Um sem abrigo, gente que vive na rua. -Triste vida. Vale mais a morte que tal sorte. – Respondi, completamente incrédula Um bêbado cambaleava à nossa frente, as paredes ajudavam-no a equilibrar-se, falava alto. Olhámo-nos. Pedro sorriu. Segurei na sua mão e apertei-a com força. - Estás com medo? – Perguntou com carinho; pôs o braço à volta do meu pescoço e apertou-me contra si. - Estás a tremer? - Tu não tens medo? Perguntei inocente. - Medo de quê? Tive dificuldade em adormecer. Que dia, Meu Deus! Estava tão impressionada. Não conseguia deixar de pensar naquela gente que dorme no chão, ao relento da noite, abandonados como cães vadios.

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Pensei nos meus pais, na cena vergonhosa, na humilhação que me fizeram passar. Dias depois a D. Vitória chamou – me à sala, eu nem queria acreditar: Zé Manuel, que bom, vieste visitar-me! - Lancei-me ao seu pescoço – tinha tantas saudades tuas, mano. - Vim conhecer esse gajo que anda a desencaminhar a minha irmã, onde está ele? Fiquei sem pinga de sangue. - O que disseste!? - Isso que acabaste de ouvir, não te faças de néscia. Num impulso, peguei no seu braço e arrastei-o até à porta. - Se foi para isso que vieste, perdeste o tempo e a viagem. Sai e não voltes nunca mais, esquece que alguma vez tiveste uma irmã. Ele saiu e eu fiquei num desespero, como nunca tinha sentido antes.

Era outra vez Domingo, a semana passou como as outras; eu é que não consegui ser a mesma, sentia uma tristeza dentro do peito, uma vontade tamanha de chorar. Era no refúgio do meu quarto que dava largas a esse desgosto que me iai consumindo, dia após dia. Porque é que as coisas tinham de ser assim? Porque é que a felicidade nunca é completa? Existe sempre uma nuvem negra por cima de nós, que nos impede de ver o sol em toda a sua plenitude.

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CAP 14

Hoje os pais do Pedro estiveram cá. Vieram de comboio. O pai dele fez uma fita dos diabos, em frente de toda a gente da pensão. Fez o filho prometer que amanhã iria cortar o cabelo como os homens. Que vergonha, foi um espectáculo! Que mania que os pais têm de se meter na vontade dos filhos; porque é que cada qual não há-de usar o que quer, como bem lhe apetece? O Pedro, nunca mais foi alegre como antes. Tentava consolá-lo; mas também eu estava inconsolável. Comecei a senti-lo cada vez mais distante. Chegava tarde, por vezes nem vinha jantar. Perguntava por onde tinha andado, encolhia os ombros: - Sei lá, por aí. Hoje, se ele não vier cedo irei procurá-lo. - Pensei, para comigo. Se bem o pensei, melhor o fiz. Saí sem que ninguém desse por isso. Vasculhei todos os lugares onde já tínhamos estado antes, na esperança de o encontrar. (tive medo de o encontrar com outra, porque não? Podia ter deixado de gostar de mim, anda tão diferente.) Não o encontrei em parte nenhuma. As ruas estavam desertas. Comecei a ouvir passos atrás de mim. O coração batia com força, acelerei o passo e segui o meu caminho sem olhar para trás. Percebi que alguém se aproximava de mim, será o Pedro? No momento em que olhei para trás, um homem agarrou-me pela cintura, encostando o seu corpo ao meu. Do bolso tirou uma navalha, a sua lâmina brilhou à luz do candeeiro de iluminação pública. Ordenou-me que lhe entregasse todos os objectos de valor que trazia comigo. Obedeci sem mostrar resistência: com as mãos a tremer, dei-lhe todo o ouro que trazia comigo: um fio, uma pulseira, dois anéis e o relógio. Olhei a rua deserta e ninguém a quem pedir socorro

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Lembrei-me de ter acordado estendida na calçada, rodeada de caras desconhecidas. Nunca senti tanto medo em toda a minha vida. O Pedro não estava nada bem. O olhar parado, estranho. Estava cada vez mais preocupada, já não sabia o que fazer. Um desinteresse por tudo: por mim, pelos estudos, nunca mais o vi pegar num livro. - Sinto falta das tuas carícias, do teu amor. - Disse-lhe. - Queres sair comigo depois do almoço? -Perguntou sem entusiasmo. - Claro, se a D. Vitória não se importar, sabes que hoje é dia de trabalho! Não tens aulas? - Não. Preciso de ir ter com um amigo, que ficou de me emprestar uns apontamentos. Apanhámos o autocarro, era demasiado longe para ir a pé. Chegámos a um bairro, pobre e bastante degradado. Aqui e ali viam-se jovens estendidos no chão, outros andavam como bêbados, completamente indiferentes a quem passava. Ao fundo da rua um grupo de gente; falam alto, gesticulam; em pouco tempo gerou-se uma cena de violência, da qual nos afastamos. A minha inocência sobre o que se passava ali era total. Um rapaz, passou por nós a cambalear, roupas sujas, cabelos empastados. Entrou numa barraca de folha. Olhei à minha volta e viu-os como personagens dum filme. Seguimos num silêncio total. Aproximou-se um carro da polícia; num piscar de olhos o grupo desfez-se; o carro continuou a sua marcha, passou por eles, passou por nós, até desaparecer no fundo da rua. - É sempre a mesma coisa – disse alguém. - Está a vizinha a ver, isto é uma vergonha! Nem a polícia faz nada e ainda o carro vai ao fundo da rua, volta tudo ao mesmo; isto é uma vergonha! - Eles têm medo, o que é que julga? 111


- Acredito, acredito. Isto é um dó de alma ver estes jovens a matarem-se pelas suas próprias mãos, enquanto outros enchem os bolsos à conta da sua desgraça. - Nem me fale vizinha, nem me fale, que eu tenho dois filhos, e não sei para que estão guardados! A viverem neste ambiente o que é que os espera? Nem me quero lembrar. Que Deus não me tenha no mundo para tamanho desgosto. Olhei para o Pedro, esperei a sua reacção sobre o que acabamos de ouvir. Respondeu com um encolher de ombros, como era seu costume quando não lhe apetecia falar. - Não gosto deste lugar, não vivia aqui nem morta. Que raio te deu para me trazeres aqui? - Já te disse que venho ter com um colega da faculdade. - Que raio de lugar, esse teu amigo escolheu para viver! Voltámos àquele lugar vezes sem conta. Um dia o Pedro abriu o jogo, contou-me tudo; pediu-me desculpas por me ter mentido. Perguntou-me se eu queria experimentar. Eu experimentei para ver como era. E depois, se ele dizia que era bom, eu estava com ele para o que desse e viesse. - Dá uma sensação espectacular, és o maior; é como se vivesses noutro planeta, noutra dimensão; é o máximo! Quando caí na realidade já era tarde demais. As coisas entre nós já não têm a mesma importância; acho que a nossa relação passou para segundo plano. - A D. Vitória já se apercebeu que as coisas não andam bem, já viste se ela descobre!? Põe-nos no olho da rua, e sem dinheiro não há nada para ninguém.

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- Não descobre nada, a velha nem sabe o que isso é, anda a leste do paraíso! Às vezes sentia-me dona do mundo, outras vezes não era dona nem da minha própria vontade. Estava a ser cada vez mais difícil manter as aparências. Sentia-me mal, já quase não tinha forças, nem para fazer as camas. Não me apetecia fazer nada, um desinteresse por tudo... Um dia, quando preparava o café da manhã, D. Vitória surpreendeu-me, com umas perguntas que eu não estava à espera: - Rosa, está zangada com a banheira, é? Há quantos dias não tomas banho? E será que não tens mais roupa nenhuma? Não tive palavras, foi como se tivesse ficado muda de repente. Que se passa contigo? - Continuou. - Estás doente, rapariga? Estás magra, e com umas olheiras que metem medo. - Sinto-me bem; não se apoquente, – respondi insegura. - Não me queiras enfiar Lisboa pelos olhos dentro; eu bem vejo que não andas bem. Tem cuidado, vê bem o que andas a fazer, olha que quem te avisa teu amigo é! Senti um calafrio na espinha, tive medo. Meu Deus, ela tem razão. Entrei no carrossel e ele agora não pára para eu descer e saltar com ele em movimento... não tenho coragem, vou quebrarme em mil pedaços. Olho para trás e não me reconheço, estou a destruir-me... não era esta a vida que eu vim à procura. Pedro veio ao meu quarto. Sentou-se na minha cama. Sentei-me a seu lado. Contei-lhe a conversa com D. Vitória. - Não ligues. – Abraçou-me, como há muito não o fazia. - Amo-te muito.

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Rolamos sobre a cama, senti o calor dos seus lábios, do seu corpo. - Eu também te amo. Nunca deixarei de te amar. Cheguei da mercearia carregada que nem uma burra. Pousei os sacos na cozinha. Beatriz chamou-me da sala. Pegou na minha mão e conduziu-me até ao meu quarto, como se eu fosse uma criança. - Senta-te Rosa, não vais acreditar no que eu tenho para te dizer. - O que foi? Estás a assustar-me, aconteceu alguma coisa com o Pedro? - Eu vi na cara dela que não era coisa boa. - É sobre o Pedro, sim. - Diz, o que estás à espera? - Pedi quase em desespero. - Ele foi-se embora. Os pais vieram buscá-lo, saíram ainda não há dez minutos. - Não acredito. Foi-se embora como? - Foi para casa. Levou tudo. Pagaram a conta; acho que não vai voltar. Coitado, se visses a fita que o pai dele fez... e a mãe? Chorava como uma Madalena, só dizia: - ao estado a que o meu filho chegou!!! - Como pôde fazer isto, comigo? Partiu sem dizer adeus, nem um bilhete sequer!? - Calma Rosa, não chores. Tens de ter coragem. - Beatriz, como queres que não chore, ele foi-se embora sem se despedir de mim!? - Ele não queria ir, foi tudo tão rápido. Tu sabes por que é que os pais o vieram buscar, não sabes Rosa? Olhei para ela, não lhe podia mentir, era inútil mentir. - Sei. - Respondi sucintamente.

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- Talvez seja melhor para os dois, não achas? - Ele vai voltar. O nosso amor não pode acabar assim dum dia para o outro. Naquela noite, não adormeci. Chorei, pensei em nós, no nosso amor, e algo dentro de mim me dizia que ele voltaria. Sosseguei o meu coração; esta certeza deu-me ânimo para continuar. Sem ele, a minha vida perdeu todo o interesse. Cada dia estava mais “agarrada.” Comecei a viver num constante sobressalto: de cada vez que tocavam à porta, esperava com o coração aos saltos para ver quem entrava. A esperança dele voltar ainda não morreu dentro de mim, apesar de já terem passado dois meses desde o dia em que ele se foi embora. Cada dia que passava estava mais certa da minha gravidez. Meu Deus, vim atrás de sonhos e só encontrei pesadelos. Lembrei-me das palavras da minha mãe, no dia em que eu parti: “tem cuidado filha, não faças nada de que te possas arrepender” e “se as coisas não correrem como esperas, volta, esta casa será sempre a tua casa”. Senti um aperto enorme no coração, chorei as lágrimas mais dolorosas de toda a minha vida. Pensei bastante: voltar nunca, estava completamente fora de questão; seria incapaz de encarar os meus pais. A minha vida transformou-se num autêntico pesadelo; queria acordar e ver que tudo isto não me estava a acontecer. Já não era possível esconder. Falei com a Beatriz, ela tem sido como uma irmã para mim, uma grande amiga, sabia que podia confiar nela. - Grávida!? Só tens quinze anos Rosa; e agora, que vais fazer? - Não sei. Ajuda-me, por favor! – Deixei-me vencer pelo desespero. Subitamente um rancor contra tudo e todos, avolumou-se dentro de mim. 115


- Se o Pedro não voltar, rejeitarei tudo na minha vida, inclusive este filho que ele deixou dentro de mim. - Não digas asneiras. Vamos lá pôr tino nessa cabecinha. Segui todos os conselhos que a Beatriz me deu. Eu tinha de acordar de novo para a vida. O primeiro passo era deixar a droga, eu tinha de ser mais forte do que ela. Foi horrível. Sentir no organismo a sua falta, é algo que não se descreve em palavras: um desespero...é como as garras dum gato a arranha-nos por dentro. Eu tinha de conseguir, custasse o que custasse, pelo Pedro e pelo filho que crescia dentro de mim. A Beatriz, disse-me que o Pedro não vinha porque estava a fazer um tratamento, uma desintoxicação e isso deu-me força. Quando ele voltar, eu também quero estar livre deste maldito vício. Havia momentos que pensava não suportar tanto sofrimento: rebolavame na cama, contorcia-me de dores. - Tens de ser forte Rosa, aguenta. - Dizia para mim mesma. Estas foram as últimas,palavras que a minha mãe escreveu. Soube pelos meus avós que ela renunciou a família; o meu pai nunca voltou e ela morreu carbonizada, junto com outros toxicodependentes, quando um incêndio destruiu a barraca de madeira, onde eles se reuniam nesse tal bairro de que ela fala no seu diário. Eu fui encontrada, abandonada, à porta duma igreja. Comigo, estava toda a documentação, da minha mãe. Desde muito cedo foi-me incutido no espírito: que nem sempre, alcançar o que está longe nos trás felicidade; podemos ser felizes, contentando-nos com o que está perto. A felicidade está dentro de nós e, às vezes, é nas coisas mais simples da vida que a encontramos.

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Mas o destino é mais forte. A minha mãe foi atraída pela miragem dum mundo desconhecido. Caiu em desgraça por arrastamento, penso mesmo, por complacência. São coisas que acontecem na nossa vida, independente dos nossos objectivos. Quantos sonhos, quantos projectos, ficam na vontade; desiste-se de tudo, perde-se o encanto... É a dolorosa realidade da vida, sempre mais sofrimento, que alegrias. Decidi passar o resto da tarde a descansar, a reflectir. Abandonei-me ao meu sentir, aos meus devaneios, e era bom; era como cair numa doce embriaguez. Recuei no tempo, até onde a minha memória conseguia chegar. Senti uma explosão de energia dentro de mim, vieram-me à mente tantas lembranças, tantas ideias; queria escrevê-las e de repente dava-se um nó cego no cérebro. Outras vezes, o meu raciocínio ficava claro, fértil; como se acendesse uma luz. As ideias escorriam do meu cérebro para o papel, como uma dádiva de Deus; então escrevia até à exaustão, com uma paixão, um entusiasmo... estudava cada palavra, cada frase, lia várias vezes, emendava. Repartia os meus dias, entre a leitura e a escrita. Deixei de ler só pelo prazer de ler; mas também com a preocupação de aprender: técnicas de escrever, pontuação, vocabulário...comecei a sentir uma lucidez, uma agilidade mental como nunca havia sentido antes. A minha alma ganhava asas e eu sentia-me a pessoa mais livre, mais feliz do mundo. Eu bem sei que parece um despropósito esta minha afirmação; era o que sentia realmente. Passar para o papel a nossa história; é como um rasto que fica depois da nossa passagem pela vida. A minha memória estava repleta de recordações, e passá-las para a eternidade através da escrita, era uma arte a que eu me estava a entregar de alma e coração.

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Comecei a perceber que não estava só; estava comigo, com os meus sonhos, com os meus anseios e aquela solidão começava a ser um luxo. Precisava de estar só, o silêncio era imprescindível para a minha total concentração. Mas como “Não há mal que sempre dure; nem bem que não se acabe...” naquele dia, quando a Claire veio viver para a minha cela, senti a minha privacidade invadida: adeus sossego, adeus solidão. Vieram sem aviso prévio. Protestei, inutilmente: - Como é possível!? Só podem estar a brincar comigo. - Brincar!? - Disse a mulher guarda, com cara de poucos amigos – o caso é sério; isto está cheio que nem um ovo. É mais fácil encontrar uma cama livre num hospital, do que uma cela vazia numa prisão. Tive de concordar. E afinal, tinha de dar graças a Deus por ser a Claire a escolhida; podia muito bem ser uma desconhecida e, como é certo e sabido, aqui vem parar gente de toda a espécie. Claire estava mortinha de contentamento. Claro, para ela não podia ter havido uma ideia melhor, – vir para junto de mim. A minha enxerga foi substituída por um beliche de duas camas. Posou a sua reduzida bagagem e olhou-me decepcionada. - Não estás contente? - Desculpa Claire, não estou nada contente; achas fácil dividir um espaço, já de si tão escasso para uma só pessoa!? - Ah, é só isso!? Assim estou mais satisfeita, pensava que não gostavas da minha companhia. O seu carinho quase me comoveu. Olhei o seu rosto infantil, olhar vivo, tão simples, sem artifícios. 118


Conhecemo-nos, tornámo-nos amigas e com o tempo muito mais do que isso. A nossa aproximação induziu-nos a certas confidências e, algumas intimidades. Depois de guardar as suas coisas dentro do armário, sentou-se no chão, na posição de Buda e acendeu um cigarro. - Que estás a fazer!? - Perguntou, aproximando-se da mesa. - Estou a escrever. - A escrever o quê? - A história da minha vida. Deu uma gargalhada tão espontânea, tão sentida; quase me senti ofendida: - Não percebo onde está a graça! - Desculpa lá, tu tens ideias que não lembra ao diabo. - Diabo!? Não digas que acreditas no diabo? - Perguntei com ironia. - Tu não acreditas em Deus? Porque é que eu não posso acreditar no diabo? - Claro, claro… - Ó Rosarinho, essa coisa de estares a escrever a história da tua vida é que eu não concordo. É pura perda de tempo; e depois, quem vai ler isso? - És tão ignorante. - Respondi quase com raiva. - Repara. – Continuou impertinente – com o tempo, o papel amarelece e as letras desaparecem. - És capaz de ficar calada, para eu me poder concentrar? - E se contasses essa história só para mim!?

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- Importas-te de me deixar em paz? Por favor! - Gritei. - A não ser que queiras publicar um livro. Não estou a menosprezar o teu talento; aliás, nem sei se o tens; mas se é essa a intenção, aviso-te desde já, que é mais difícil do que escalar o Evereste. - Que sabes tu dessas coisas!? - Conversas que apanho no ar. Sabes que às minhas orelhas não escapa nada, ou pensas que ando cá só para ver andar os outros? - Por momentos ficou a olhar o fumo do cigarro, a subir em espiral para o tecto; depois, falou sem desviar o olhar. - Acho que sei quem te meteu essas ideias tolas na cabeça. Fiz de conta que não percebi. - Tu és um verdadeiro achado, que seria de mim se não te tivesse encontrado!? Girava à minha volta como um satélite. Parecia uma matraca nos meus ouvidos. Não havia nada a fazer; era um caso perdido, uma missão impossível. - É preciso ter azar! Preciso de silêncio, será que tu não consegues perceber isso? - E eu preciso de falar; senão rebento. Não pude conter o riso. De repente deu-me um ataque de ternura: - Desculpa Claire, não posso pedir que te cales; é o único direito que tens, desculpa. Sem me dar conta estava a ser demasiado injusta contigo. Afinal este espaço que me habituei a chamar meu, é agora teu também. Ambas temos os mesmos direitos sobre ele. Esqueci-me que aqui ninguém é dono de nada; a não ser do seu próprio nariz. Comecei a senti-la como um peso que me caíra em cima dos ombros.

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Reconheci que tenho sido bastante seca, quase fria com ela. Tinha de ser mais benevolente. É óbvio que gostava da sua companhia, mas vinte e quatro horas por dia... era dose! Optei pela biblioteca, aí havia o silêncio de que tanto precisava. Não foi fácil convencê-la, dessa minha necessidade. Fez-me sentir culpada porque a abandonava; pensava que isso só era um pretexto para estar perto da Marie. Havia dias que ficava tão silenciosa, que a sua presença se tornava quase imperceptível. Foi a estratégia que usou para eu permanecer junto dela. Havia momentos que não suportava o seu mutismo. E eu, que tantas vezes lhe pedi que se calasse, pedia-lhe agora que falasse. Olhava-me com ternura e dos seus lábios não saía uma só palavra. Aquele comportamento começava a preocupar-me, a incomodar-me. Sentia-me terrivelmente deprimida e frustrada. Observei-a enquanto dormia; sonhava, via -se pelo leve sorriso, os olhos moviam-se debaixo das pálpebras. Instintivamente, senti-me atraída por ela; Maquinalmente aproximei-me, sentei-me na beira da cama e passei a mão pelos seus cabelos. Abriu os seus lindos olhos azuis, parecia uma boneca de porcelana. - Estavas a sonhar. - Disse-lhe, um pouco sem jeito. Olhou-me demoradamente nos olhos, um olhar terno, doce. O meu coração bateu ao mesmo compasso do dela. - Gosto muito de ti. – Disse com voz infantil. Limitei-me a sorrir. Levantei-me e caminhei até à janela. Vi o sol a despedir-se e a noite a aproximar-se. - Está um frio de fazer bater o dente. - Disse 121


Claire chegou perto de mim, iIgnorando as minhas palavras. - É quase noite, mais um dia se passou. – Continuei. Sem palavras, meteu a cabeça debaixo dos meus cabelos, beijou-me o pescoço, as orelhas, os lábios...empurrei-a suavemente. - Por favor Claire, controla-te. Apreensiva, sentei-me na cadeira e fingi que estava a ler. Queria aquietar o meu coração, mas involuntariamente ele continuava a bater a um ritmo acelerado. Tive medo pelo rumo que as coisas estavam a tomar. Senti um conflito interior, uma angústia. - Vou dormir, estou a cair de sono – bocejei. Mentira, nessa noite não houve sono que me chegasse. Senti vergonha dos meus sentimentos, não estava a ser coerente com os meus princípios. Já a noite se fazia dia, apercebi-me então que a Claire já se havia levantado; acabara de acender um cigarro, o primeiro do dia. No corredor quase chocamos com a Marie, cumprimentei-a como era habitual. Claire lançou-nos um olhar fulminante. - Eu passo-me com esta gaja, – havia rancor nas suas palavras. - Um dia ainda lhe parto o focinho, vais ver. - Não vou ver nada, porque isso não vai acontecer. Não fostes tu que me disseste que eras contra a violência!? - Sabes, quando reparo na arrogância das pessoas que sempre tiveram tudo, mais me orgulho da minha humildade, de pessoa que nunca teve nada. - Ainda tens de me dizer o porquê de tanto ódio. Sim, porque é ódio o que sentes por ela. É tão desprezível esse sentimento!

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Não pronunciou uma única palavra durante o almoço, apercebi-me da sua indignação, respeitei-a. Sempre tão alegre e despreocupada, tinha agora nos olhos uma expressão melancólica. Só a presença da Marie a conseguia deixar assim! Não conseguia perceber o porquê de tanto mistério. Parece que nem sob tortura as faria falar. Após o almoço regressamos ao nosso buraco. Tirou um cigarro e acendeu-o, as suas mãos tremiam. Fumava o primeiro, o segundo, o terceiro...o ar começava a ficar irrespirável. Ardiam-me os olhos, tossia, e começava a perder a paciência: - Que merda de vício! Assim não pode ser. - Tens razão. Das duas, uma; ou eu acabo com o tabaco, ou o tabaco acaba comigo. - E comigo. – Resmunguei. Uma tarde, em que eu escrevia, ela observava o meu entusiasmo; cotovelos assentes na mesa e a cabeça apoiada nas mãos em forma de concha. Comecei a ler aquilo que acabara de escrever. Li alto para que ela pudesse ouvir e também para quebrar o silêncio pesado que pairava sobre nós. Ouviu com atenção, sem me interromper. No final, quis saber a sua opinião: - Que achaste? - Acho que tens futuro como escritora, continua. Reparei que estava a dizer tudo aquilo só para me agradar; não me dei por vencida: - Confesso que não me desagrada de todo a ideia. Sabes que estou a levar isto muito a sério.

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Levantou-se, estendeu-se na cama de baixo que por sinal era a minha, cruzou os braços em cima da testa e falou entre dentes: - Escritores, uma cambada de idiotas, que ganham a vida sem fazerem nada de útil. Magoou-me a hostilidade com que falou. - Não sabia, que tinhas uma opinião tão bem formada acerca dos escritores, bravo! - Bati palmas – muito bem. Mas não achas que essas palavras, vindas da tua boca, perdem um pouco o sentido? O que é que tu já fizeste de útil, desde que nascestes? - As minhas palavras foram ditas num tom pejorativo, propositadamente. Naquela madrugada tive um pesadelo horrível. Acordei aos gritos, dei um salto da cama, bati com a cabeça na cama de cima. Claire levantou-se assustada. - Que se passa Rosarinho? - Escutei-a semi-ausente. - Foi um sonho mau? Eu estava incapaz de dizer fosse o que fosse. Uma sensação de angústia, um aperto no peito, só me apetecia gritar por socorro. Estava em Setúbal na casa da tia Amélia. Saímos para um passeio pela serra da Arrábida. O carro deslizava pela estrada serpenteada. Lá do alto da serra olhei o Rio Sado em toda a sua extensão. A Tróia. Era tudo tão magnífico, tão grandioso. Repentinamente, o carro saiu da estrada, precipitou-se serra abaixo, como uma bola de pingue – pongue. Parámos na areia da praia. Eu e a tia estávamos bem. Saímos do carro, totalmente destruído. O tio Vicente estava morto; o seu corpo inclinado sobre o volante e na cabeça um ferimento enorme donde saia sangue em cataratas. A visão deste acidente, instalou-se em mim, como um pressentimento. 124


Aconteceu alguma coisa com o tio. Queira Deus, esteja enganada. Não consegui ter sossego, precisava urgentemente ter notícias dele. A ideia dele poder estar morto, causou em mim um desespero, uma ansiedade... O tio Vicente: via-o sentado na poltrona de veludo azul, rodeado de livros. Sempre tão elegante, tão fino – era um homem da cidade. Lembrei a primeira vez que me levaram, para passar a semana com eles. Eu tinha cinco ou seis anos. - Aqui ao pé da gente é que ela está bem! Disse a avó, mais azeda que vinagre; aliás era o seu estado normal. -Vá lá – insistiu a tia Amélia – a criança também precisa sair daqui. Vamos fazer uma semana de praia, ela iria gostar e, fazia-lhe bem. Eu apertava a mão da tia, como que a pedir-lhe que não desistisse. - O avô deixa! - Eu sabia que isso a deixava furiosa, mas eu tinha de usar todas as armas para ganhar aquela guerra. - Vou pedir-lhe. Desatei a correr ao encontro dele. Como ele me sabia fazer feliz! - Uma semana, isso não será muito tempo!? - Não é muito tempo, não senhor. A tia disse que íamos para a praia; eu nunca fui para a praia, pois não avô? Pegou-me ao colo, levou-me para a cozinha, onde estavam os tios e a avó. - O avô deixa, tia. - Gritei eufórica. A avó rosnou algumas palavras, que todos ignorámos. Fizemo-nos à estrada depois do jantar, já o manto negro da noite cobria a terra; apenas os faróis do carro abriam caminho na escuridão.

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E finalmente a cidade, toda salpicada de mil luzinhas. Acordei cedo. Aproximei-me da janela, lá fora a cidade já mexia, estava maravilhada; tantas casas, tantos carros e tanta gente. Aqui é outro mundo – Pensei para comigo. O tio Vicente estava sentado, atrás duma secretária. Acendeu o charuto. O telefone tocou. Calmamente, levantou o auscultador; fazia tudo com uma tranquilidade que cada gesto seu, parecia pensado, estudado. Começou a falar palavras que eu não entendi. Como admirava a sua personalidade, a sua postura. - O que estava a falar, tio? Não percebi nada. Sentou-me ao seu colo e sorriu. - Estava a falar Inglês, é natural que não tenhas percebido. - Eu também queria falar...isso que o tio disse!? - Inglês!? Um dia aprenderás quando fores para a escola. Agora vai dizer à tia que não se atrase com o almoço! Estava um dia de grande calor, as persianas estavam baixas para o sol não comer a cor das cortinas. - Explicou a tia. A seguir ao almoço fomos para a praia da Arrábida, eu estava ansiosa para ver como era. Para lá chegarmos tivemos de enfrentar uma fila interminável de carros. Por mim tudo bem, assim podia regalar os meus olhos, a observar a paisagem, linda de morrer. - Ali é o quê, tia? - Perguntei, apontando para um lugar mesmo no meio do rio. - Ali é Tróia, é uma praia também muito bonita. Amanhã vamos lá. Apanhamos o barco e… - O barco!?

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Rezei para que o tempo passasse depressa, não via a hora de apanhar o barco. Eu nunca tinha andado de barco; será que vou ter medo? Passámos

por

várias

praias:

Albarquel,

Figueirinha,

Galapos,

Galapinhos e finalmente chegámos ao Portinho da Arrábida. A praia estava apinhada de gente: uns caminhavam ao longo da praia com as ondas a lamberem-lhes os pés descalços, outros apanhavam sol deitados na areia, outros brincavam dentro de água, jogavam a bola, riam, falavam alto. Foi nesse dia que conheci a Mónica e os seus pais. Em pouco tempo já estávamos a brincar. E entre nós nasceu uma amizade, que jamais terá fim. - Amanhã vamos para Tróia, de barco. - Disse-lhe – Não podes ir? Lembro-me que regressámos pela serra. Tive medo. À medida que subíamos a profundidade aumentava. Embora esse medo me acompanhasse até ao fim da descida, eu estava maravilhada, nunca tinha visto nada assim. A beleza desse lugar ficará para sempre guardada num cantinho muito especial da minha memória. . Sentia-me feliz por ter recordado estes momentos. Foi como se o tempo tivesse ficado suspenso e eu tivesse, por artes mágicas, voltado atrás no tempo. O luar entrava pela janela, iluminando o interior da cela. A Claire, estava envolta numa nuvem de fumo, observava-me. Agradeci, por me ter dado espaço. Durante alguns minutos, fiquei só, com as minhas recordações. - Não devias estar a dormir? Que horas são? - Quatro. Virei-me para o outro lado, tentei pegar de novo no sono. Entrou na minha cama, encostou o seu corpo ao meu. Senti o calor do seu corpo. Deixeime ficar completamente imóvel. Acariciou-me as costas, as omoplatas, o

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pescoço, o peito, as mamas...segurei-lhe a mão impedindo, assim, a viagem pelo meu corpo; já estava a ir longe demais. Virei-me para ela. Rocei nos seus mamilos, só então reparei que estava completamente nua. Que falta de pudor! – Pensei. Pôs os braços à volta do meu pescoço, puxou-me para si e beijou-me. - Je t`aime. - Sussurrou ao meu ouvido. Os nossos corpos encontraram--se de novo, passei com a mão pelos seus seios rijos, acariciei-os devagar. Deixei-me levar pelo desejo, com um sentimento de culpa a crescer dentro de mim. Senti uma pontada no coração; lembrei-me de Pierre e de Phillippe, Eu não podia estar a fazer uma coisa destas! Que Deus afaste de mim esta tentação. Saltei da cama, amedrontada. - Não posso, Claire. Por favor, tenta compreender! Eu não posso! Um pranto mudo estava-me a consumir por dentro. - Saiu da cama devagar, aproximou-se de mim, pôs os seus dedos nos meus lábios: - Não digas nada, eu sei o que te está a afligir. Esquece lá esses dois; Não te culpes por tudo o que fazes, ou fizestes. - Tentei manter-me fiel aos meus princípios, à educação que recebi. Foi assim que cresci como pessoa, agarrada a valores que me foram transmitidos. - Preocupas-te demasiado, vives amedrontada e limitas-te a seguir uma educação tradicional, transmitida de pais para filhos, e de avós para netos. Tu és aquilo que os outros fizeram de ti; foste moldada como um boneco de barro. – Estás cheia de ensinamentos, de preconceitos idiotas. Eu cresci sem ninguém que me dissesse o que estava certo, ou errado. Aquilo que sou a mim o devo; vivo a vida sem culpas nem preconceitos. Estou em paz com a minha

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consciência. Porque não tentas fazer o mesmo? - Escuta o teu coração, amar, não é pecado! - Nunca pensei que fosse possível, chegar a este ponto de intimidade. - E depois!? Que mal é que isso tem? O amor não tem idade, sexo, raça ou religião. O que importa é amar, amar incondicionalmente. Liberta-te de culpas e preconceitos, só assim conseguirás ser feliz. As circunstâncias em que vivemos, carentes de carinho e de afecto; qualquer corpo precisa de sentir o calor, a carícia, o toque de outro corpo – faz parte da natureza humana. -Também nunca antes, me sentira atraída por uma pessoa do mesmo sexo. - Confessou. Estas suas palavras deram-me uma certa tranquilidade. Estendeu-me as mãos, as minhas foram ao seu encontro. Puxou-me para si, beijamo-nos apaixonadamente. Enquanto a beijava, passava na minha memória as imagens de Pierre e Phillippe amando-se, os tiros, a morte... Travava-se dentro de mim uma batalha muito difícil de vencer. Olhei para ela, estava tão linda, um corpo perfeito: cintura fina, braços fortes, pernas bem torneadas, com todo o viço da juventude. Senti-me atraída. A lua lá fora era a única testemunha, observando -nos sem pudor. Até da própria lua tive vergonha; o que se estava a passar dentro desta cela... e dentro das outras celas!? Que se passa dentro das outras celas!? Nunca tinha pensado nisso. Como é que eu nunca tinha pensado!? Claro...quantas mulheres e quantos homens estão a fazer o mesmo que nós (ou pior)!? Raios partam tudo o que me impede de ser eu mesma. Era como se tivesse duas vozes a buzinar-me ao ouvido; enquanto uma me diz: vai em frente, nestas coisas do amor, o coração fala mais alto, a outra diz: pensa bem, o que estás a fazer não está moralmente correcto. Decididamente resolvi assumir esse amor, entreguei-me de corpo e alma, sem culpas nem preconceitos.

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Geladas, apertamo-nos uma contra a outra, para que o calor dos nossos corpos se fundisse um no outro. Pus a mão em cima do seu ventre, sentindo o leve levantar e baixar, provocado pela sua respiração. Um desassossego invadiu o meu corpo, perturbado. Fechei os olhos e aceitei com prazer as suas carícias. Instintivamente, comecei a amá-la. Era preciso alguma descrição; se descobrem, separam-nos. M.me Laura veio visitar-me, trouxe o meu filho com ela. A primeira coisa que fez quando chegou foi dar-me um lindo ramo de flores. - Que lindas! Obrigada, filho. Vá agora dá um beijão grande, e um abraço muito, muito apertado à mamã. Ficava sempre tão feliz! Estar com o meu filho, observar o seu desenvolvimento, desde a última vez... quem estava com ele todos os dias nem se apercebia. Estava um tagarela, falava sem cessar. M.me Laura tem tido notícias dos meus tios, e dos meus avós? - Sim. - Está tudo bem? - Está, está tudo bem. - De certeza? Não me está a esconder nada? - Insisti. - Não estou a perceber!? - Sabe, é que eu sonhei com a tia Amélia e com o tio Vicente, foi horrível. Um acidente de automóvel; o tio Vicente estava morto, agarrado ao volante. Fiquei tão impressionada. - Fica tranquila, não aconteceu nada, foi só um pesadelo. Pesadelos, quem não os tens?

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Regressei ao ninho, como uma ave depenada. Era inevitável, sempre que dizia adeus ao meu filho, ficava deprimida, abatida. Claire espera-me: - Gostas? - Perguntei, exibindo o ramo de flores. - Foi o teu filho que te ofereceu? … - Sabes, sempre que recebo flores lembro-me de Pierre e da felicidade que senti quando pela primeira vez, ele me ofereceu flores; nunca ninguém me tinha oferecido flores. -- Flores! Que falta de imaginação, nas algibeiras! Ainda se fosse um anel de brilhantes. Flores! Tão efémeras coitadas, dois três dias, e lixo. - Fez uma pequena pausa, e concluiu: - São como algumas paixões... - Tu deixas-me sem palavras! Esqueces que são as pequenas coisas que nos fazem felizes. E depois, não conheço nenhuma mulher que não goste de receber flores. - É pena que algumas só as recebam no dia do seu funeral. - És capaz de ter razão. - Respondi, pensativa. Era impressionante! Ela tem o dom de me acordar para a realidade. Sempre tão terra a terra, e eu sempre tão no ar.

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Cap. 15 O tempo vai passando, e eu vou escrevendo, entre os silêncios da Claire. A história de família que estava a escrever, para o meu filho, deixei-a em stand – by; só de vez em quando acrescento uma ou outra coisa, que me vem à memória, e que acho que vale a pena escrever. Seguindo o conselho da Marie, comecei a escrever também uma história, totalmente criada pela minha fértil (?) imaginação. (Como fazem os escritores a sério) Estava já numa fase bastante adiantada, mais duas a três semanas… e estaria pronta A Marie disse que gostaria de a ler, para poder avaliar a qualidade da minha escrita. Acordei, A Claire estava a dormir agarrada a mim. Tentei levantar-me devagarinho, para não a acordar. Abriu os olhos, meia ensonada. Fez-me deitar de novo. - Diz que me amas. - É uma ordem, ou um pedido – gracejei. Rimo-nos. - É um pedido. Diz que me amas, mesmo que isso não corresponda totalmente à verdade: eu prefiro uma mentira piedosa, do que uma verdade cruel. Senti, uma sensação de embaraço. - Amo-te, amo-te muito; acredita, é mesmo verdade. Eu não podia acreditar, que estas palavras estavam a sair da minha boca.

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Quando a Marie me disse que gostou imenso do meu trabalho, pensei que estava apenas a ser gentil comigo. E eu, ao contrário da Claire, prefiro uma verdade, mesmo que seja cruel, do que uma mentira piedosa. - Sério! Está óptimo! Queres que o entregue à minha editora? - Tentar não custa, não é verdade? - Sabes, os candidatos a escritores são muitos, mas os escolhidos são muito poucos. Eu estava consciente da minha insignificância, da minha pequenez; ao pé de grandes vultos da escrita, eu não passava duma minúscula formiguinha. No entanto nasceu em mim uma esperança; se Marie achou óptimo... Escritora, eu!? Não será uma grande pretensão da minha parte? Mas, como nada nesta vida é impossível… E como não concordo nada com a opinião da Claire, quando diz que os escritores ganham a vida sem fazerem nada de útil. Bem se vê que nunca leu um livro. Quem lê, sabe o que um livro pode fazer por nós: dá-nos horas de prazer, ensina-nos tanta coisa... faze-nos pensar duma forma diferente, – reflectir. Entrei na capela completamente vazia e deixei-me ficar entregue às minhas orações. Senti uma paz de espírito, um bem-estar interior, como já não sentia há muito. Falei com Deus como quem fala com um grande amigo. Um amigo que conhece todos os nossos problemas, os nossos anseios, os nossos pecados. Pedi que me perdoasse, e que me ajudasse a encontrar o meu caminho. Pedi também pela Claire, que já terminou a sua pena e vai sair em liberdade. Pelos meus avós, pelos meus tios e por todos aqueles que sofrem no Mundo inteiro. Para quem acredita, rezar, é como lavar a alma. Saí para a rua, onde a chuva caía e o vento soprava com uma violência assustadora. As árvores agitavam-se numa dança frenética, sacudidas por fortes rajadas de vento. Detive-me perante a sua fúria. Recuei para o interior da

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capela e deixei-me ficar como uma estátua a olhar o temporal. Sem me dar conta, comecei a falar baixinho, como que em oração. - Oh vento, todo-poderoso, tu que és o maior viajante do mundo, que conheces todos os lugares, todos os recantos do universo, que deslizas no deserto como uma cobra, que passas nos campos como o uivo dum lobo, que fazes transbordar o mar... tu que consegues tudo, diz-me: passaste no meu País? Viste os meus avós? Então vai, sopra bem quente como o bafo dum vulcão, como tu tão bem sabes fazer na minha terra, e leva-lhes saudades minhas. Diz-lhes que me esperem, porque eu estou quase a voltar Uma profunda tristeza instalou-se no meu coração, Atravessei o pátio numa luta feroz, contra o vento e a chuva, Entrei na cela encharcada de corpo e alma. A Claire guardava as suas coisas dentro do saco. Aparentava uma calma que estava longe de sentir. Para onde irá? Não tinha casa nem família; ninguém para a receber, para lhe dar as boas-vindas, para brindar com ela à liberdade. Nem podia pensar que ia para a rua debaixo deste temporal. E ela tão calma. Como pode!? Era melhor não pensar. Como dizia o poeta: «pensar incomoda como andar à chuva» ás vezes até mais. - Já viste o temporal que está lá fora? - Toda a vida houve temporais, não percebo qual a admiração! – Respondeu com frieza. Durante toda a noite ouvi a sua respiração sibilante. O seu peito movimentava-se com dificuldade. - Tu estás doente, Claire! - Disse-lhe, como se ela não o soubesse.

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Tosse. Uma tosse seca, que vinha das profundezas dos seus pulmões. Os olhos febris, raiados de sangue. - Meu Deus. Estás a arder em febre! – Disse preocupada. Levantei-me. Fui ao armário buscar uma aspirina. Os meus dedos bailam, incapazes de retirar o comprimido da embalagem. Deitei água no copo, entornando um pouco sobre a mesa. - Vá, toma. - Dei-lo na palma da minha mão. Pegou no comprimido com as pontas dos dedos trémulos. Colocou-o na boca, bebeu água engasgou-se; bati-lhe ao de leve nas costas. Cuspiu o comprimido, fez uma careta e,...Um novo ataque de tosse. Insisti para que o tentasse engolir. – Vá lá, não custa nada. Sugeri que pedisse o apoio da Assistente Social. De resto não era ela a única a pedir essa ajuda. Não se pronunciou sobre o assunto. Estaria ela decidida a pedi-la? Receio bem que não. Antes de sair, olhou bem no fundo dos meus olhos: - Eu volto. Espera por mim. - Deu-me um longo beijo e disse: não fiques preocupada, estou bem. - Cuida de ti. - Disse-lhe num fio de voz. Claire partiu. Foi como se tivesse levado com ela todo o ar que eu precisava para respirar. Um dia, quando me falava da vida miserável que tivera, virou-se para mim e disse: - É assim, imagina que só tens um naco de pão, não tens mais nada, nem “cheta” para comprares mais nada; Só pão e dentes. O que é que te apetecia mesmo? Um bife. Então fechas os olhos e concentras-te, mas concentras-te mesmo a sério. Visualiza um bife, um bife suculento, sente o seu aroma, o seu paladar. Abre o pão e imagina-te a metê-lo

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dentro dele; o bife quente, fumegante, o molho a penetrar no seu interior, e dizes para ti mesma em voz alta: Ummh!...Que cheirinho!... Enquanto farejas o ar. Dás uma dentada no pão, mas sempre concentrada no bife, e dizes em voz alta: Ummh, que delícia!... Come o pão e continua a dizer até ao fim: Ummh, esta bifana está deliciosa! A força da nossa mente é tão grande que se te souberes concentrar e acreditar, tudo se torna tão real. - Juro! - Disse olhando para a minha cara de espanto. – Juro que no final até vais arrotar a bife. Eu continuava a olhá-la completamente sem palavras. Desatei a rir. É impressionante como ela consegue transformar a sua tragédia numa comédia. O seu sentido de humor é o máximo. Recordei este episódio com o coração estraçalhado. Oh Claire, quantas vezes vai voltar a acontecer quereres um bife e não o teres; quem sabe até nem o simples naco de pão. – Pronunciei tudo isto em voz alta como se ela me pudesse ouvir. Sofri por ela e por todos os pobres do mundo inteiro que passam fome todos os dias, enquanto outros, comem do bom e do melhor, deitando para o lixo as suas sobras. Era naturalmente legítima a sua revolta e o seu cepticismo em relação à justiça Divina. Que argumentos podia arranjar, para a convencer que a justiça dos homens é que não está correcta, e que Deus lá no alto do seu trono assiste, inconformado, à maneira cruel como os homens estão a governar o mundo?

A sua ausência transformou a minha vida: de novo a angústia e o desespero. Não sabia como gerir esta falta. A falta das nossas conversas, do calor do seu corpo na minha cama, das suas carícias, do seu cheiro doce...e de novo perdi a vontade de tudo; de comer, de dormir, de ler e de escrever. Preocupava -me a sua saúde, especialmente. Em surdina essa dor ia - me consumindo.

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No refeitório, o mesmo reboliço de sempre. Olhei para a mesa; o seu lugar estava vazio. Senti um frio no coração, foi como um prenúncio de morte. Não tarda nada estará ocupado – tranquilizei-me. Uma tranquilidade pouco duradoira porque este pensamento arrastou consigo outro pensamento: e o seu lugar na minha cela será ele também ocupado!? Não. Não podia nem sequer pensar que, mais dia, menos dia, me entrava pela cela dentro uma matrona qualquer e se instalava de armas e bagagens no espaço que era nosso, – só nosso. Tentei a todo o custo pôr essa ideia repugnante de lado. Não, isso não vai acontecer! Não vou permitir que isso aconteça. Mas afinal, quem sou eu para permitir ou deixar de permitir seja lá aquilo que for? Entrei na nossa cela. Em cima da mesa jaziam os meus cadernos e o livro que andava a ler antes da Claire se ter ido embora. Passei por eles indiferente. A minha predisposição para estas coisas não era nenhuma. Deitei-me sobre a cama e deixei-me ficar a olhar o nada. O tempo arrastava-se, lento. Eu não podia continuar assim, tinha de reagir; a vida estava à minha espera, e eu não podia abusar da sua paciência. Levantei-me. Dei um jeito à minha imagem e fui até à biblioteca. A Marie veio ao meu encontro: - Oh ma cherie – disse, colocando o braço à volta dos meus ombros. - Ainda bem que vieste, tenho óptimas notícias para ti. - Colocou-se na minha frente com um sorriso sincero, efusivo. - O teu trabalho foi aceite. Gostaram imenso. Não estás contente!? - Claro que estou. – Respondi sem entusiasmo – claro... - Tu estás bem!? - Perguntou, franzindo o sobrolho. - Adianta mentir? 137


- Ah não, com essa cara não consegues mentir a ninguém! Queres contar o que se passa? – Sentou-se e fez-me sentar a seu lado – sou toda ouvidos. - Obrigada. Estou mesmo a precisar dum ombro amigo para desabafar, mas receio que não sejas a pessoa certa. - Desculpa...é sobre a Claire. A sua expressão transformou-se, ficou séria de repente. - Estou preocupada com ela. Receio que esteja bastante doente. Calei-me por uns instantes. Sabes que ela já saiu? - Não sabia. – Disse, como quem diz: não sei, nem quero saber. - Saiu, a semana passada. - Insisti – Só de pensar que ela não tem casa nem família... não consigo deixar de pensar nela percebes? Faz-me pena. - Muito sofre o corpo quando a cabeça não tem juízo. - Disse com despeito. Esquece, não se pode ajudar quem não quer aceitar a nossa ajuda. - Como a conhecesses bem. - Havia revolta nas minhas palavras - senti-me ofendida. Ambas têm um segredo; pode ser um estúpido segredo ou um terrível segredo, só não compreendo porque razões não o partilham comigo; Não é para isso que servem os amigos? - Merci beaucoup por teres apresentado o meu trabalho à editora, fico-te eternamente agradecida; és uma verdadeira amiga, – valeu. Agora desculpa, preciso ir. -Excusez- Moi… – Pareceu-me ouvir tristeza nas suas palavras, ou talvez não. Saí a correr, não queria ouvir mais nada. Tinha de mudar o rumo aos meus pensamentos, pensar na Claire só me trazia sofrimento e angústia. . Nem queria acreditar, era bom demais para ser verdade. Será que podia confiar nela? “Falsa como judas” – as palavras de Claire estavam ainda bem presentes na minha memória, eternamente presentes. De qualquer forma, 138


não me parecia que Marie fosse má pessoa; algo dentro de mim me dizia que podia confiar nela, e o que existia entre elas não era da minha conta. Ao entrar na minha cela, deparei-me com a mais terrível das realidades: estava ocupada. Uma mulher negra, nariz achatado, estava sentada na minha cadeira; tinha as mãos cruzadas no regaço e as lágrimas deslizavam pelo seu rosto brilhante. Os nossos olhares cruzaram-se, silenciosos. Não soube o que dizer; às vezes é melhor assim; não dizer nada. Entrei, sentei-me na cama, e disse, bonjour. Simplesmente bonjour. Não me respondeu. Levantou-se e foi-se sentar num recanto entre o beliche e o lavatório, – amedrontada como um cão rafeiro. Senti um desespero a crescer dentro de mim; algo de assustador, de inexplicável. Pensei aproximar-me, meter conversa; contudo, decidi que seria mais simples deixar-me ficar quieta, e proceder como se ela não existisse. Aquela presença, criava dentro de mim um desassossego crescente e incomodativo. O lugar onde se sentou ficava fora do meu campo de visão; para a poder observar tinha de virar o corpo e espreitar para traz do beliche. Espreitei. Estava sentada no chão, como um saco de viagem que alguém deixou abandonado. As pernas flectidas, os braços cruzados em cima dos joelhos e a cabeça apoiada sobre eles. A saia estava levantada, formando uma espécie de cabana, deixando a nu as pernas magras e ossudas. Assim enroscada sobre si própria, como um bicho-de-conta, permaneceu tempo sem fim. Perante a sua indiferença fui forçada a partilhar com ela a minha privacidade; comecei a observar todos os meus passos, todos os ruídos; coisas tão naturais, tão banais, que até então me passavam despercebidas, como por exemplo: o mastigar uma bolacha, roer uma maçã, um arroto, um bocejo e tantas outras coisas. Esta situação começava a afectar o meu sistema nervoso. Pensei mais uma vez na Claire; nem lhe passava pela cabeça…senti um afogamento na garganta, uma vontade enorme de gritar, de partir tudo à minha volta incluindo aquele estupor que me estava a pôr os nervos em franja. Maldita seja! Olhei de

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relance; continuava na mesma posição, como um animal embalsamado. Ouvi a sua respiração pesada, ruidosa e apercebi-me que tinha adormecido, ressonava; Contudo, o seu corpo não perdeu o equilíbrio. Era um ser humano em sofrimento, caramba! – Apelou o meu bom senso. Aproximei-me dela, toquei-lhe na cabeça e disse-lhe: porque não vais para a cama? Com um safanão rápido e eficiente obrigou-me a retirar a mão. Afasteime. Levantou a cabeça e lançou-me um olhar feroz de animal ferido. Fiquei, petrificada; - esta mulher está louca! Sentei-me a um canto, como que barricada atrás da mesa, e dali não saí a não ser para almoçar. Eu sabia que a adaptação era um processo lento e terrível; precisava de tempo, muito tempo. Já passaram dois dias; era impressionante como aquela mulher conseguia permanecer tanto tempo na mesma posição. - Ainda vai criar calos no cu como o macaco. - Ri-me da minha própria piada; a situação não estava para brincadeiras, bem pelo contrário. Deitada, mas com os olhos bem abertos numa luta permanente contra o sono, ia magicando uma forma de ajuda àquela mulher. - Chegou há dois dias; não come, não bebe, não caga e nem mija. Meu Deus, esta mulher vai morrer aqui, tenho de fazer alguma coisa. Estava eu absorta nestes pensamentos…ouvi um gemido, um estalar de ossos, como uma cadeira velha a desconjuntar-se, vi-a caminhar em direcção à mesa. Andava com dificuldade, um passo entrevado que me fazia lembrar o andar desengonçado duma pata. Observei-a então: era uma mulher alta, escanzelada, o traseiro demasiado proeminente. Senti o seu cheiro intenso, nauseabundo. Agarrou na garrafa da água e despejou-a pela goela abaixo com avidez. -Que péssimo hábito; a Claire fazia a mesma coisa. Aquela promiscuidade de beiços, bocas e saliva na minha garrafa enojava-me profundamente. Pousou a garrafa completamente vazia em cima da mesa. Cambaleou, levou a mão à parede, estava demasiado fraca. Continuei deitada, observando140


a pela nesga do olho; pensei levantar-me, perguntar se precisava de ajuda, mas achei por bem continuar quieta e calada. Bolas, já levei um safanão e um olhar de meter respeito. Sem mais nem menos, começou a vomitar pela parede abaixo; o seu corpo esquelético era sacudido por convulsões sobre convulsões. Não podia coabitar com tanto sofrimento e continuar de braços cruzados. Levantei-me, calcei os chinelos apressadamente e aproximei-me hesitante; não sabia o que dizer. Arrisquei o que me pareceu mais lógico para a ocasião: - Então, já passou? Queres que chame alguém? Perguntei carinhosamente. Virou-se de repente com o punho fechado e deu-me uma punhada nos dentes. Dei dois passos atrás, perdi o equilíbrio; no entanto, mantive-me de pé. Levei a mão à boca e simultaneamente senti um sabor a sangue quente, adocicado. Limpei a boca com a manga da blusa. Cuspi uma ou duas vezes, dirigindo-me para a porta. Comecei a bater e a gritar por socorro, como uma desvairada. Ela veio pelas minhas costas, agarrou-me pela blusa e puxou-me com uma violência feroz. Caí no chão e o céu caiu-me em cima, derrubando sobre mim uma chuva de estrelas, planetas e cometas. De repente uma nuvem negra passou diante dos meus olhos; perdi os sentidos. Não sei quanto tempo depois, voltei a mim e vi-a como um gigante, a observar-me lá do alto. Pôs um pé em cima da minha barriga, lançou-me um olhar furibundo e disse: “Chiu” se voltas a gritar, mato-te. Lembrei-me então duma frase que o avô costumava dizer: “com uma pessoa perdida ninguém se meta”, e esta mulher estava completamente perdida. Levantei-me com um esforço descomunal, levei a mão à boca para me certificar de que tinha os dentes todos no lugar. - Eu só queria ajudar – consegui dizer com a voz a tremer. - Não preciso de ajuda – respondeu bruscamente com uma voz de trovão. 141


Meu Deus, este animal vai acabar comigo, estou feita; se passar desta noite tenho muito que contar. Estava decidida, amanhã, se lá chegar com vida, tenho de falar com o director; nem mais um dia eu fico aqui com esta louca. Olhei-a uma vez mais, os seus olhos brilhavam no escuro como dois faróis. Nunca em toda a minha vida me senti tão exposta ao perigo. Nessa noite tive medo de adormecer; Mas como nesta coisa de guerras, onde há vencedores e vencidos, regra geral acaba sempre por vencer o mais forte, adormeci. Acordei cedo. Dormi como um anjo no colo de Nossa Senhora, – pensei. Sentei-me de imediato, meia sarapantada: Anjos, Nossa Senhora… será que estou no céu!? Será que aquela louca acabou comigo, e eu nem dei por isso? Olhei para o seu poiso habitual. Não estava, eclipsou-se durante a noite…esfreguei os olhos, não podia acreditar no que os meus olhos estavam a ver; o seu corpo estava pendurado por trás de mim. Amarrou os lençóis às grades da janela e enforcou-se. Dei um salto para o chão. Horrorizada tentei certificar-me se tudo não passava duma visão. Corri para a porta e gritei. Agora podia gritar sem medo; gritei com o máximo de volume que as minhas goelas podiam dar e só parei de gritar quando uma guarda apareceu. Abriu a porta, entrando atrás de mim para o interior da cela. – Há tantos anos que estou aqui e ainda não tinha assistido a nada igual. – Disse, retirando-se de seguida. - Nem eu. Fiquei só. Tive medo de olhar, mas a tentação era grande. O que vi fezme lembrar os bonecos de trapos que o avô fazia para afugentar os pássaros da horta. O corpo pendurado, a cabeça pendida para a frente, os olhos envidraçados e a língua de fora.

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Oh Senhor, como é que vou conseguir algum dia tirar esta horripilante imagem da minha memória!? O suicídio era algo que sempre me fez muita impressão. O que leva uma pessoa a pôr termo à sua própria vida? Talvez um desequilíbrio emocional, uma predisposição para odiar tudo e todos, incluindo a si próprio; ou quem sabe, um vazio interior que nada nem ninguém consegue preencher, enfim; acho que nunca irei entender. Há quem acredite que todas as pessoas que surgem na nossa vida são importantes no nosso processo evolutivo, como seres humanos; então se nós as atraímos, é porque fazem parte do nosso destino. Por isso, resta-me aceitar e perdoar por todo o sofrimento que me causou na sua breve passagem pela minha vida. Tive de enfrentar de novo o fantasma da morte, como uma penitência. Foi terrível permanecer naquela cela e sentir o frio da morte a entranhar dentro de mim, até me transformar num enorme icebergue. Foi através da minha fé que consegui superar mais uma vez esta catástrofe na minha vida. Pedi a Deus perdão por ela, por mim, e por todos os pecadores que infelizmente são cada dia mais. Saí para o pátio, o dia estava agradável. Algumas mulheres conversavam comigo acerca do que se tinha passado; não era todos os dias que aconteciam incidentes destes na prisão; compreendi, por isso, a sua curiosidade. Curioso. Por detrás dum grupo de mulheres, que se encontravam a algumas dezenas de metros, pareceu-me vislumbrar uma figura esguia, cabeça quase rapada; iria jurar que era Claire. Que estupidez a minha. Continuei a olhar, agora consegui vê-la; contornou o grupo, caminhava a passos largos na direcção do lugar onde me encontrava; o meu coração começou a bater num ritmo acelerado. À medida que caminhava ia encurtando a distância entre nós: era ela, não restavam dúvidas – era Claire em pessoa, não era invenção da minha cabeça. Apetecia-me rir e chorar, tal não era a emoção. Abriu os braços 143


e correu para mim, eu corri para ela – Abraçamo-nos, ignorando o olhar malicioso e as palavras obscenas daquelas mulheres. Isto não me estava a acontecer! Trazia consigo uma colecção de “piercings”, que me deixou estupefacta. Era demasiado extravagante para o meu gosto. - Eu não prometi que voltava? O prometido é devido! – Soltou uma gargalhada nervosa. - Fizeste-me tanta falta. - Deixei que estas palavras se soltassem da minha garganta. - E tu a mim. – Segurou o meu rosto com ambas as mãos e exibiu um longo beijo na minha boca, sem qualquer pudor. Desejei que um buraco se abrisse debaixo dos meus pés e me engolisse para sempre. Não podia negar que a amava, que a desejava e que a queria ter a meu lado para o resto das nossas vidas; mas era algo que não enquadrava na minha personalidade. Comecei então a preparar-me interiormente para o seu regresso. Depois de a pôr ao corrente de tudo o que se passou na sua ausência, pedi que me contasse como tinha sido a vida dela lá fora; respondeu com evasivas. Percebi que não queria falar, respeitei a sua vontade. Dias depois veio-me com uma conversa, que me deixou em estado de choque. Começou por dizer que ia pedir à guarda para a transferir de novo para a minha cela. - Acho melhor deixares as coisas como estão. – Aconselhei, sentindo o coração a bater num ritmo descompassado. - Deixa isso comigo, não há nada que o dinheiro não consiga. Se lhe passar um massito de euros por debaixo do nariz… 144


- Estás doida, onde tens tu esse massito de euros? - Eu não tenho, mas tu tens. – Respondeu com convicção. - Eu!? – Soltei uma gargalhada, – eu não tenho dinheiro nem para mandar cantar um cego. - É o que tu pensas. A minha expressão deve ter mudado como se assistisse a um filme onde uma cena cómica de repente passasse para uma cena de terror. Olhei em todas as direcções para me certificar de que ninguém nos estava a ouvir. - Eh lá! Espera aí, conta – me lá isso, tim tim por tim tim. - É obvio que eu não podia abrir uma conta em meu nome, não achas? A minha cabeça nesse momento começou a rodar a mil à hora. - Isso cheira-me a grande confusão, não me estás a querer lixar a vida pois não? – Perguntei com o ar mais sério que me era permitido. - És pobre e mal agradecida. Quando saíres daqui vais compreender o jeitão que te vai fazer. - Diz com a maior naturalidade do mundo. - Isso é muito grave, será que tu não percebes? - Não te preocupes, eu nunca faria nada que te pudesse prejudicar. – Fez uma curta pausa, e de repente perguntou-me num tom sério, quase de tristeza, pouco habitual nela: - Tu não tens mesmo noção do amor que sinto por ti, pois não? A pergunta deixou-me completamente sem palavras, senti um leve rubor nas faces; limitei-me a sorrir carinhosamente. No dia seguinte estava à minha espera, pescoço esticado como uma girafa. Estendeu-me um papel. - O que é isto? – Perguntei, franzindo o sobrolho.

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- Vê. Disse com um aceno de queixo na direcção do papel que eu segurava nas mãos. Passei os olhos rapidamente por cima de letras e de números, completamente incrédula. Em cima no canto superior esquerdo o nome do banco, um pouco mais abaixo no lado direito o meu nome, números…olhei para ela, e dela para o papel e do papel para ela, com as palavras sufocadas dentro de mim. Afinal é verdade; as provas estão ali nas minhas mãos, bem diante dos meus olhos. Um depósito de vinte e cinco mil euros em meu nome. Vinte e cinco mil euros pareceu - me uma quantia astronómica.

(Esta

mudança

da

moeda

deixou-me

completamente

desnorteada). - Posso ao menos saber a origem deste dinheiro? - Eu era incapaz de admitir que ficara contente com o que ela fizera. - Uma pequena herança que a minha avó me deixou – disse. Fiquei boquiaberta. – Uma herança!? Tu não me disseste que a tua avó era uma pobretana? Não estou a perceber. Não seria melhor contares toda a verdade. - Esta é a verdade, acredita. És a única pessoa neste mundo, a quem eu era incapaz de mentir. Pareceu-me tão sincera que continuar a duvidar da sua palavra era no mínimo uma grande falta de respeito da minha parte. - Quando saí daqui fui direitinha a casa da velha, sabes como é… já ela estava muito mal, – uma pneumonia dupla, (uma desgraça nunca vem só); disse-me, então, que uns tipos tinham estado lá afim de expropriarem os moradores das barracas para construírem um bairro luxuoso. Esse dinheiro é parte da indemnização que ela recebeu. - Agora explica-me porque carga de água é que essa indemnização veio parar à minha conta?

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- Elementar, minha cara; a velha bateu a bota duas semanas depois de receber esse dinheiro. É óbvio que, como sua legítima e única herdeira, esse dinheiro me pertencia; simplesmente eu decidi oferece-lo a ti. - Porquê, Claire? – Perguntei com a voz trémula de emoção. - Tu és a pessoa mais importante da minha vida e eu quero que fiques com ele; é um presente, por favor, aceita-o. - Mas esse dinheiro faz-te falta, não posso aceitar, desculpa. – “Quando a esmola é demais, o pobre desconfia”. Estava tão confusa. A minha cabeça estava mais emaranhada do que um novelo de lã nas unhas dum gato. - E já agora que estás em maré de confissões, podes dizer-me o porquê do teu regresso aqui ao hotel? - Isso é outro assunto. – Aprontou-se a responder: - Conheci uns tipos bué de fixes que me encomendaram um servicinho; nada de complicado, e como não tinha nada a perder, aceitei. Apenas tinha de transportar uma malita, maneirinha, e entregá-la a um gajo que me esperava num lugar previamente combinado; mas a coisa deu para o torto… e pimba, cá estou de novo, com muito prazer. Soltou uma gargalhada. - O que levava essa maldita mala dentro? – Perguntei na mais pura inocência. - Pichas murchas – disse com um ar muito sério; depois, explodiu a rir até às lágrimas. - Juro que nunca me passaria pela cabeça que houvesse alguém como tu; se me contassem eu não acreditava. – Rimo-nos, como duas adolescentes irresponsáveis. Seguimos para o refeitório, tagarelando.

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Amontoou uma pequena quantidade de arroz no prato e quase não lhe tocou. - Estás com falta de apetite! Desabituaste de comer, foi? Não me respondeu. Mas o seu olhar ficou, por breves instantes, toldado por uma inexplicável tristeza. - Estás doente? - Perguntei, preocupada. - Doente! Não sei onde fostes buscar essa ideia. - Se não estás, pareces. Já no aconchego da minha cela, fiquei a magicar. Será que podia confiar nela? Pareceu-me tão sincera e ao mesmo tempo tão misteriosa. E a velha frase que tantas vezes ouvi o meu avô citar: “confia, desconfiando”, que teimava sempre em estar presente nos momentos de insegurança. Por outro lado, podia estar a cometer uma grande injustiça, pôr em dúvida a sua palavra era menosprezar o amor que sentia-mos uma pela outra. “Quem ama confia.” Estive com a Marie, falamos um pouco; ela estava demasiado ocupada, como sempre. Falou-me da eventual possibilidade de eu estar presente na cerimónia de lançamento do meu livro. - Já sabes a data? – Perguntei, - sentindo já um friozinho na espinha. Ficava apavorada só de pensar; estar rodeada de muita gente, ser o centro das atenções. Recuei no tempo e senti a angústia do dia do meu julgamento, embora fossem situações bem diferentes, – pensei. - Não, quando souber aviso-te, no entanto, aconselho-te a falares com o director. Dei uma vista de olhos pelas prateleiras: escritores portugueses. Despedi-me da Marie com um au revoir e saí da biblioteca. Na mão levava “o memorial do convento” de José Saramago. Era indescritível o orgulho que senti ao passar por todas aquelas mulheres que vagueavam nos corredores. De repente apeteceu-me erguer o livro bem alto, como uma bandeira hasteada e

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gritar bem alto: Olhem, estão a ver este livro aqui? Foi escrito por um português, um português como eu, (porque eu sou portuguesa caso não saibam). Este homem é um grande escritor do meu País e ganhou o prémio Nobel da literatura. Percorri o corredor silenciosamente, guardando para mim própria esta felicidade invulgar, possuída duma importância como se eu fosse também laureada em conjunto com José Saramago. Entrei…não! Não era alucinação; era a Claire, em carne e osso, de novo na minha cela. Tirou-me o livro das mãos e atirou-o para cima da mesa. Lançou-se ao meu pescoço como uma criança perdida, que vê finalmente aparecer a mãe. - Como é que conseguiste? - Perguntei ainda meia atordoada pela surpresa. - Pergunta antes o que é que eu não consigo. – Soltou uma gargalhada marota. De repente senti-me invadida por um sentimento ambíguo; como hei-de explicar… um contentamento, descontente. O livro repousava em cima da mesa, irremediavelmente abandonado. Estamos mal companheiro – pensei para comigo. – Voltámos à estaca zero; adeus paz, adeus sossego. A Claire, instalou-se de novo na minha cela e na minha vida. E contra factos não há argumentos. Acordei, olhei para o relógio; seis horas. Deixei-me ficar. Ao longe, pareceu-me ouvir um latido dum cão… A Claire mexeu-se na cama, também já acordou. – Pensei. A cama começou a ranger, observei-a com uma curiosidade prudente. Estava nua; completamente nua, começou a acariciar o seu próprio corpo. Fechei os olhos com força e fingi que estava a dormir. Começou a arfar, contorcia-se, gemia… colocou a mão na vagina cabeluda e começou a masturbar-se. Que horror! Senti um mal-estar, uma certa repugnância… de

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repente, desceu para a minha cama e obrigou-me a continuar, o que ela havia começado. Senti as suas mãos no interior das minhas coxas, e os seus dedos no interior do meu corpo. Beijou-me com uma paixão desenfreada. …E aquele pudor que não me deixava ser eu mesma, que me impedia uma entrega total. Os meus dois “eus” confrontavam-se numa guerra terrível. Depois ficou deitada a meu lado, pensativa, com o olhar perdido. Reparei no seu ar abatido, macilento. Subitamente virou-se para mim, e deixou transparecer um sorriso atrevido. Acariciei o seu rosto. Agarrou na minha mão e apertou-a com força. Desviou o olhar involuntariamente, deixou escapar uma expressão angustiada que não me passou despercebida. Porque me inquieto tanto? Quis dizer algo mas as palavras ficaram silenciosas no interior do meu peito. Sentou-se, colocou o braço por cima dos meus ombros e perguntou: - o teu livro já saiu? – Fiquei deveras surpreendida, pensei que fosse a ultima coisa que lhe interessasse saber. -Está quase, estive com a Marie, disse-me que estava para breve. Sabes que nem acredito, eu não estava à espera; comecei a escrever pura e simplesmente para matar o tempo. Era também uma forma de desabafo, de deitar cá para fora tudo o que me ia na alma. Daí até publicar tudo isso num livro, era completamente impensável. -Tiveste imensa sorte, encontraste uma fada madrinha… – disse com desdém. - Talvez. – Respondi simplesmente, como quem põe uma pedra em cima do assunto. - O teu filho? - Está óptimo. – Respondi, satisfeita pelo seu interesse. – Está um reguila… Ah, sabes que vai ter um irmão? – Olhou-me com um ar aparvalhado,

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de quem não estava a perceber nada. – A Mónica está grávida. – Apressei-me a esclarecer. - Há! Já estou a perceber. – Que alívio! – Rimo-nos. Levantei-me, enchi dois copos de sumo; entreguei-lhe um, e fomos bebericando enquanto conversava. Ficamos deitadas no escuro, saboreando a companhia uma da outra. Aquela Claire que estava deitada a meu lado, não era a Claire que eu conheci. Voltou diferente, mais madura, mais calma; um pouco triste. A morte da avó deixou-a bastante abalada, nunca pensei que fosse tão pegada à avó! Como os desgostos mudam as pessoas; até deixou de fumar! Incrível!

Acordei com uma sensação aflitiva; durante alguns instantes, ouvi o vento a uivar lá fora; afigurou-se-me que alguém gemia junto à minha janela. Com um gesto brusco levantei-me e tentei vencer a escuridão; caminhei até à janela, tacteando com as mãos o espesso negrume que se estendia diante dos meus olhos. Lá fora uma escuridão cerrada. Ouvi um grito prolongado, aflito. Fiquei calada, esperei… a Claire continuava a dormir. Subi acima da mesa e espreitei tudo o que o meu campo de visão me permitia; no pátio iluminado, as árvores agitavam-se como fantasmas na noite. De repente, avistei na outra ala do edifício um pequeno vulto em cima do telhado. Santo Deus, seria alguém a tentar evadir-se…porque gritava!? Talvez fosse melhor ir para a cama e fazer de conta que não vi, nem ouvi nada. Foi nesse preciso momento que ouvi novamente um grito; virei-me e vi uns quantos gatos a correrem no pátio. Então lembrei-me que estávamos em Janeiro, altura em que as gatas andam com o cio. Respirei de alívio, que estúpida! - Tanto por tão pouco. Ouvi o tic-tac ritmado do relógio, olhei os ponteiros luminosos: cinco da madrugada. Voltei a deitar-me, estava completamente enregelada. Claire acordou sobressaltada; resmungou qualquer coisa, voltou a adormecer. Lá fora o vento ainda uivava como um lobo em noite de lua cheia; todavia, agora sabia que podia ficar tranquila. 151


-Deixaste de fumar? – Perguntei cuidadosamente, como quem toca numa ferida. Olhou-me com ar esgazeado. - Estás muito doente Claire, é inútil disfarçares. - Tenho tosse, nunca tiveste tosse? – Havia uma profunda reserva por detrás das suas palavras. - Não é só a tosse, tu sabes melhor do que eu; é a febre, a falta de apetite, estás magríssima, uma cor de pele… - Basta! Tiraste algum curso de medicina foi? – Respondeu com uma revolta exagerada. - Estás nervosa, ou é impressão minha? - É impressão tua. - Estás a esconder-me alguma coisa. – Insisti. Virou-me as costas e deitou-se de bruços sobre a cama com a cabeça enterrada no travesseiro. Sentei-me a seu lado, debrucei-me sobre ela, afaguei-lhe a cabeça com ternura. - O que se passa contigo Claire, porquê essa relutância em esconder que estás doente? Virou-se para mim, olhou - me nos olhos demoradamente, com o semblante carregado duma tristeza invulgar. Sentou-se, calçou as chinelas e caminhou até à mesa; bebeu um gole de água, poisou a garrafa e disse: - Queres mesmo saber porque deixei de fumar? Então vai buscar papel e lápis, e escreve; que a minha experiência e o teu livro sirvam para alguma coisa. Fiquei pasmada a olhar para ela.

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Então começou a falar como se tivesse a dar o seu testemunho, numa dessas associações de apoio… - Porque deixei de fumar, queres tu saber. Comecei a fumar era ainda uma “chavalita”; experimentei tudo, tudo a que tinha direito; haxixe, marijuana, tabaco… quando saí daqui eu estava bastante doente; aliás, tu sabes como eu estava doente. - Não imaginas o que eu sofri, o que me preocupei contigo sem poder fazer nada, sem noticias… Veio sentar-se junto de mim, peguei nas suas mãos trémulas, excessivamente geladas. -Fui ao hospital, – continuou – fiquei internada para observações durante alguns dias; fizeram-me todos os exames possíveis: raio-x, tac biopsia etc. Depois dos exames analisados, veio a pergunta fatal: - Fuma? - Sim. - Há quanto tempo? - Há tanto que já nem me lembro; mas acho que foi pouco depois de ter deixado as fraldas. – O médico olhou-me com cara de parvo – O gajo não tinha o mínimo de sentido de humor. Que cara de pau! - Fuma bastante, como depreendo. – Prosseguiu. - Um macito, dois… depende… – já começava a ficar farta daquele interrogatório; que lhe interessava isso, será que o gajo não fuma também? - Lamento… lamento muito, mas o que tenho para lhe dizer não é nada fácil – disse sem tirar os olhos dos exames espalhados em cima da secretária. – Nem sei como lhe dizer… - Diga doutor, desembuche, – aquilo já me estava a fazer nervoso miudinho. Então o homem encheu-se de coragem e disse: - A senhora tem 153


uma doença incurável. – Fez uma pausa voluntária. - Um tempo que me deu, para eu digerir a notícia. – Depois continuou. – Tem um tumor maligno entre o pulmão esquerdo e o externo. -Não acredito! – Consegui dizer. – Não pode ser verdade! – Nesse momento pensei em ti mais do que em mim própria; morrer, todos nós temos de morrer um dia; de cancro ou de outra coisa qualquer. Apertei as suas mãos, as lágrimas já caíam como cascatas pelo meu rosto; abracei-a com força sem conseguir dizer uma só palavra que fosse. - Falei-lhe numa possível cirurgia. – Continuou. - É completamente impossível, o tumor está numa zona inacessível. Vamos tentar a quimioterapia, mas não lhe posso dar grandes esperanças; lamento, sinceramente. Normalmente este tipo de tumor é muito resistente à quimioterapia;

talvez

a

radioterapia,

mas

não

alimente

demasiadas

expectativas… foram anos demais a inalar alcatrão, monóxido de carbono e outras substâncias cancerígenas; normalmente aparece em pessoas mais velhas. E pronto; foi assim, exactamente nestes termos, que me foi dada a minha sentença de morte. - Também não se perde grande coisa! - Eu não acredito no que estou a ouvir, não existe ninguém como tu, seguramente! - Os cigarros eram o meu consolo, ás vezes a minha única companhia; continuou no mesmo tom de voz – conselhos para deixar de fumar, foram muitos; tantos que eu já nem ligava; entravam por um ouvido e saíam logo pelo outro. Porque havia eu de deixar uma coisa que me dava tanto prazer e ainda ter de suportar o stress da sua privação? Ironia do destino; agora o cancro fezme perder todo o prazer de pegar num cigarro. – Tarde demais! No princípio foi difícil aceitar, agora já me habituei: o que não tem remédio, remediado está.

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- Não podes pensar assim, tens de consultar outros médicos, ouvir outras opiniões; esse médico pode ter feito um diagnóstico errado! Por favor Claire!... – Irrompi num choro que me silenciou todas as palavras. - Calma. Eu preciso de ti, do teu amor, até ao último segundo da minha vida e morrerei feliz; porque tu foste a única pessoa neste mundo que me soube amar verdadeiramente; a única pessoa que me ensinou o verdadeiro significado da palavra felicidade. Graças a ti eu posso dizer que a minha passagem por esta vida não foi em vão. Compreendes agora, porque não te contei antes? Acenei que sim com a cabeça. - Não chores, limpa essas lágrimas – disse, enquanto me ia secando o rosto com um lenço de papel. Era surpreendente, era ela que estava com os pés para a cova e, no entanto ainda me confortava. Acordei várias vezes durante a noite; a ideia de Claire ter cancro era simplesmente horrível, inacreditável; tão inacreditável que cheguei a pensar que tudo não passava dum terrível pesadelo. Olhei para ela, dormia como um anjo. O seu estado de saúde estava a agravar-se de dia para dia. Uma ambulância transportou-a para o hospital, onde ficou internada, afim de se submeter a alguns tratamentos

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Cap. 16 Quando fui informada que sairia em liberdade condicional cinco anos antes de cumprir a minha pena eu nem queria acreditar. Podia finalmente voltar para junto da minha família, do meu filho… e visitar Claire no hospital. Emalei todos os meus pertences, estava pronta para sair. Meu Deus foi a pensar neste momento que vivi cada dia, cada hora... nesse momento senti-me fortalecida, que prazer tão profundo!

Cheguei junto do portão. O mesmo portão por onde entrei havia quinze anos atrás. Tudo estava igual, apenas os meus sentimentos eram diferentes. Eu

tinha

vinte

anos,

era

uma

jovem;

aqui

fiz-me

mulher.

Detive-me um pouco. Pousei as malas e lancei um último olhar. Aqui ficaram quinze anos da minha vida. Aqui passei momentos difíceis; direi mesmo terríveis, mas também passei alguns momentos bons e foram esses momentos que me fizeram crescer como pessoa. Do outro lado da rua Mónica acabara de estacionar o carro; com ela vinha o meu filho. Precipitei-me para eles, numa ânsia de os abraçar. Jean Pierre tirou-me os sacos das mãos e colocou-os no porta-bagagem. À medida que nos embrenhávamos no trânsito cada vez mais caótico da grande cidade, senti uma agonia, um desespero, uma vontade enorme de voltar para a minha cela. De repente, achei que não estava preparada para enfrentar o mundo. Chegámos ao apartamento da Mónica; um luxuoso apartamento com vista para o Sena. François, seu marido, aguardava-nos. O senhor António e a senhora Laura chegaram mais tarde. Senti-me pouco à vontade, era perfeitamente normal; com o tempo as coisas ficarão mais fáceis. – Pensei – tentando, em vão, descontrair-me.

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Mónica ajudou-me a tirar o casaco, sussurrando-me ao ouvido: - Não estejas nervosa, anda ver a Catherine. Segui-a através dum amplo corredor, decorado com requintado gosto. Também donde eu vinha, qualquer humilde apartamento era um palácio. Catherine dormia como um anjo, num quarto de princesa. - Oh, c` est trés jolie – disse baixinho, para não perturbar o seu sono. Mónica estava tão feliz! Via-se nos olhos, no rosto, nos gestos… como ela merecia toda aquela felicidade! Levou-me a conhecer o resto da casa. Entrámos num quarto que identifiquei imediatamente como sendo o quarto do meu filho. Senti-me tão emocionada; eu não queria que tivesse sido assim; eu não o ajudei a escolher os móveis, eu nunca lhe mudei a roupa da cama, não aspirei, não limpei o pó, não o ajudei a vestir o pijama, não lhe contei uma história antes de adormecer, não acompanhei o seu crescimento… nada. Mónica alisou a colcha da cama e guardou no roupeiro, um casaco abandonado em cima duma cadeira. Observei-a com um misto de inveja e gratidão. - Obrigada por tudo o que tens feito por ele – disse-lhe num voz dorida – eu não teria feito melhor, certamente. - Não me agradeças, Jean Pierre foi uma dádiva de Deus na minha vida. Fui até à janela; as lágrimas começaram a escorrer pela cara abaixo, incontroláveis. Apoiei os braços no parapeito, sentindo o ar fresco no rosto molhado. Ela juntou-se a mim, enxuguei as lágrimas com a manga do casaco. Observando a cidade num demorado silêncio; homens e mulheres caminhavam apressados dum lado para o outro e o ruído do trânsito subia até nós como

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uma trovoada. Ao longe, a torre Eiffel ergue-se gigantesca acima da cidade. Senti-me apavorada, perante a sua grandiosidade. Jean pierre, veio sorrateiro, juntar-se a nós. Acendeu um cigarro. Sentime tentada a pedir-lhe que não o fizesse, para seu próprio bem. Não fui capaz. Era tão grande o abismo que nos separava um do outro. Numa tremenda luta interior tentei descontrair-me um pouco; não queria que se apercebessem da minha inquietação. Mónica foi ajudar a mãe a preparar o almoço, deixando-nos sós. - Amanhã gostaria de visitar uma amiga no hospital – disse com voz trémula – mas não me sinto com coragem… - Está assim tão mal, a sua amiga? – Perguntou, deitando uma baforada de fumo para o ar. - Está com cancro, já não lhe resta muito tempo de vida. – Eu não queria que ele suspeitasse que a minha falta de coragem não era a ida ao hospital, mas o percurso que teria de fazer para chegar lá. A cidade amedrontava-me. -Pardon? Qu`est-ce que vous dites? – Perguntou com uma expressão de cepticismo. - Oui, c`est vrai; a minha amiga está a morrer e eu sinto que um pedaço de mim está a morrer com ela. – Que grande amizade! Senti-me corar por dentro. Sentei-me na primeira cadeira que encontrei e disse a primeira coisa decente que me veio à cabeça. - Tens um quarto muito acolhedor, muito bem decorado. - Gosta? Está um pouco desarrumado… sabe como é… - Sim eu sei, os quartos dos jovens são todos mais ou menos assim – é normalíssimo. – Rimo-nos.

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Colocou-se de cócoras à minha frente, colocando as suas mãos nas minhas; senti-me estremecer; aquele toque valeu por mil palavras. Orgulhosamente olhei para o meu filho; era encantador. O seu rosto moreno, de feições suaves, olhos negros e cabelo ondulado…senti uma profunda ternura por ele. Vi no seu rosto expressões de Pierre. Levantei a mão para lhe afagar os cabelos; sustive o meu gesto. Jean pierre já não era propriamente uma criança a quem se passa a mão pela cabeça. Estava a ser tão difícil para mim quebrar o gelo que se avolumara entre nós. Levantou-se. Caminhou pelo quarto com as mãos metidas nos bolsos das calças. Um silêncio incómodo, pairou sobre nós. Dei graças a Deus por nos terem chamado para o almoço; não por ter fome, mas pelo desconforto, pela falta de assunto…era incrível, ansiei tanto este momento, tinha mil e uma coisa para dizer e outras tantas para saber e, no entanto… sentia-me tão retraída, tão distante. Levei anos a imaginar este dia; transpor aquele portão, rir, dançar, saltar de alegria, conhecer pessoas e gritar aos quatro cantos do mundo: Estou livre! Um prazer adiado; tanto tempo adiado. Porém, esse dia chegou e eu sinto-me invadida por uma estranha tristeza; com a moral tão em baixo. Ninguém foi trabalhar, o meu filho não foi à escola; cobriram-me de atenções, fizeram tudo para eu me sentir bem. Evitaram embaraçar-me com lembranças dolorosas e tiveram a gentileza de não me massacrarem com perguntas. A felicidade desta família era bem visível; uma felicidade que me feria a alma com uma força esmagadora. Senti que estava a mais, apesar de todos me quererem fazer sentir o contrário. Após o almoço a Mónica disponibilizou-se para me levar até ao hospital e voltaria mais tarde para me ir buscar.

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Quase lhe supliquei, que não me deixasse só. Apavorava-me a ideia de ser abandonada no meio da cidade; senti-me como criança indefesa, que começa a dar os primeiros passos. Uma sensação angustiante e inexplicável. Aquele primeiro dia de liberdade estava a revelar-se uma autêntica tortura. Porquê? Era um momento tão importante da minha vida e eu queria vivê-lo plenamente e, no entanto…senti-me perdida, confusa, como um ser vindo doutro planeta. - Não desesperes Rosarinho – disse-me ela, no seu jeito terno de falar, de ajudar – é completamente natural; é como um passarinho que viveu durante anos dentro duma gaiola, quando é posto em liberdade não sabe voar. Obviamente que vai ser necessário bastante tempo para que voltes a reaprender a viver. É tão reconfortante termos alguém que goste de nós, que nos saiba compreender; é como a pomadinha milagrosa que ajuda a cicatrizar as nossas feridas. O trânsito estava demasiado congestionado nas imediações do hospital, arranjar um lugar para estacionar o carro não era tarefa fácil. Felizmente a Mónica era uma exímia condutora, admirei a sua destreza; conduzir numa cidade como aquela não era para qualquer um. Atravessamos um jardim bem cuidado, impecavelmente limpo. Crianças brincavam alegres, em grande algazarra. Um grupo de jovens de aspecto descuidado, cruzou-se connosco… À medida que nos aproximamos do hospital a ansiedade apertava-me o estômago como um colete-de-forças. Chegamos demasiado cedo. Dirigimo-nos aos serviços administrativos procurando informações acerca da Claire e onde encontra-la. As enfermarias estavam cheias. Gente que carregava dentro de si males sem remédio, numa permanente luta entre a vida e a morte.

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Fiquei apavorada diante daquela parada de dor. Era-me de todo impossível ficar alheia a tanto sofrimento. E eu que vivi durante todos estes anos em

contacto com a miséria humana, vidas irremediavelmente

fracassadas, almas submersas em sofrimento… aqui a realidade era outra; gente que geme de dor, doenças incuráveis, - mais morte que vida. Acredito que os médicos fazem tudo o que está ao seu alcance, no sentido de minorar os males daqueles que sofrem, e ficam impotentes diante de casos para os quais desconhecem a cura. Deve ser frustrante! Tentei desesperadamente recompor-me, controlar as minhas emoções; não podia chegar junto da Claire tão destroçada.

Encontramos com facilidade o quarto onde Claire estava. Procurei-a com os olhos, ansiosa. A sua cama estava junto à janela. Aproximei-me. Santo Deus, não podia ser… a doença transformara-a numa velhinha mirrada; precocemente envelhecida. O seu aspecto era já cadavérico; as suas feições transformaram-se. Debrucei-me sobre ela, colocando-me na sua frente. - Bonjour, mademoisel – sussurrei, – afagando-lhe o rosto ternamente. Ao ver-me, o seu rosto iluminou-se. – Obrigada por teres vindo. – Disse com voz débil. Quis dizer-lhe qualquer coisa que a animasse, não encontrei palavras. Fixou o seu olhar no meu. Como eram humanos os seus olhos! A debilidade física em que se encontrava deixou-me em estado de choque; nunca me passou pela cabeça que a doença a tivesse deteriorado tão rapidamente. As suas palavras flutuavam no silêncio do quarto. – Tive tanto medo de nunca mais te voltar a ver; pensei que a morte... - Chiu! – Balbuciei, cruzando o dedo sobre os seus lábios secos. 161


A minha estrutura emocional estava prestes a ruir. A Mónica pegou-me num braço e fez-me sinal para sair-mos. Foi com o peito inflamado de dor que a deixei entregue ao seu próprio sofrimento, com a promessa de voltar. Quando saímos, eu quase não conseguia andar, as pernas tremiam; chegar ao carro, revelou-se uma extenuante caminhada. Precisava chorar durante horas para libertar toda a tensão acumulada dentro do peito. Quis voltar para a tranquilidade da minha cela. Estava a ser tudo tão difícil para mim. Na casa da Mónica sentia-me uma estranha, uma intrusa. Vim perturbar o sossego desta família com os meus problemas; não estava certo. Deixei-me cair no sofá, como um trapo. Mónica aproximou-se de mim, colocou as suas mãos nos meus ombros e fez-me uma massagem suave. Conversámos um pouco, senti necessidade de confiar nela; talvez me fizesse bem. Ficou boquiaberta a olhar para mim. Sentou-se a meu lado, recostou-se no sofá e respirou fundo. – Valha-me Deus, que raio é que te deu? - Tu nunca irás entender. - Não. Nunca irei entender. – Havia rancor por detrás das suas palavras e o seu olhar luzia de indignação. - Nunca irás perceber a necessidade de carinho, de afecto; a carência dum contacto físico… não vais compreender nunca. - Queres um conselho? Não deixes que mais ninguém venha a saber disto; há coisas que nem às paredes se confessam. Nunca ouvistes dizer? Limitei-me a ficar calada sob o peso, de tamanha vergonha. Que estúpida eu sou! Ajeitei os cabelos nervosamente, enquanto a Mónica

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abandonava a sala discretamente. Jean-Pierre entrou, ligou a televisão e veio sentar-se a meu lado. Colocou o braço por cima dos meus ombros, e disse: - Ainda não lhe dei os parabéns, gostei muito do seu livro. - Fico muito feliz que tivesses gostado. – Aquele elogio chegou na hora certa. – Não imaginas como é importante para mim a tua opinião. Foi por ti que o escrevi. E por mim também, claro. E o que eu mais quero é que tenhas orgulho da tua mãe. - Claro que tenho. Sabe, os meus colegas também a viram na televisão. Todos ficaram a saber que a minha mãe é uma grande escritora. - Então, se eles me viram na televisão, também ficaram a saber muito mais coisas a meu respeito. – - Que a mãe esteve presa? E depois? Estão lá tantas mães; mas a minha é que é escritora! – Respondeu, - bastante seguro de si. - Eu também tenho muito orgulho de ti meu filho; pressinto que vamos ser grandes amigos, verdade? - Grandes amigos, está combinado! – Em jeito de brincadeira, selamos esse pacto com um enorme aperto de mão. Começou a falar de si, nas dificuldades que tinha na matemática e na física. Combinamos procurar um bom explicador. Vivi apavorada todos estes anos com receio de que o meu filho não me aceitasse. Vejo agora que me martirizei em vão. Sofri por antecipação. - Tenho a tarde livre, que tal se fossemos ao cinema? – Perguntou, como se já o tivéssemos feito mais vezes. - Pode ser. – Respondi um pouco apreensiva. - Parece que não está com muita vontade. - Não, não é isso…queria visitar a minha amiga no hospital.

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- Dá perfeitamente, passamos por lá antes. Eu sou uma pessoa com muita sorte! - Pensei para comigo própria. Que mais posso querer da vida!? Claire estava muito hirta, sentada na cadeira, as mãos descansando sobre o colo, como uma estátua. Os olhos fixos na porta esperavam-me impacientes.

Sorriu

tristemente.

Um

sorriso

que

eu

desconhecia

completamente. Parecia outra, como a doença pode transformar uma pessoa! Pediu que a ajudasse a deitar. Apoiada no meu braço, ergueu-se com dificuldade. Peguei nela como quem pega numa criança e estendi-a sobre a cama. Começou a tossir incontrolavelmente e eu fiquei ali parada, impotente, sem saber o que fazer para ajudar. Quando a tosse passou, ficou de braços abertos sobre a cama, e com a respiração ofegante. - Queres que chame um médico, ou um enfermeiro? Disse que não, agitando o dedo indicador no ar. Coloquei a mão sobre o seu peito; o coração batia descompassado. Grossas lágrimas deslizavam pelo rosto. Deixou a cabeça pender para o outro lado, tentando oculta-las de mim. Nunca a tinha visto chorar. Porque chora agora? Ela sabe que vai morrer. A ideia de um dia nos separarmos aterrorizava-me. Cheguei mesmo a pensar levá-la comigo para Portugal; ficarmos juntas até ao fim das nossas vidas. Nunca supus que o destino nos separasse desta forma. Queria dizer alguma coisa, mas o quê? Segurei na sua mão, aproximei-a dos meus lábios. Olhámo-nos demoradamente; Claire estava a despedir-se, não somente de mim, mas também da vida. Jean – Pirre esperava-me lá fora, na mão tinha os bilhetes para o cinema. Não quis ser desmancha-prazeres mas, sinceramente, o que eu queria mesmo era refugiar-me o resto do dia numa igreja.

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- Vamos? – Disse-lhe enfiando o meu braço no dele. - Estives-te a chorar? - Não, é impressão tua. - Pois, pois. Eu percebo. Claire não pode morrer! Claire não pode morrer! Involuntariamente, as lágrimas deslizavam pela cara abaixo; à minha frente formava-se um manto que me impedia de ver o caminho. Caminhei quase aos tropeções, amparada no braço do meu filho. - Desculpa. – Consegui dizer, numa voz afectada pela comoção. - Não tem que se desculpar. Eu compreendo. – Colocou o braço por cima dos meus ombros, puxou-me para si. – É melhor irmos beber qualquer coisa e deixar-mos o cinema para outro dia, o que acha? Abanei a cabeça, num gesto de concordância. O meu filho, revelava-se a todo o momento, um rapaz muito sensato. A Claire não pode morrer; este pensamento martelava na minha cabeça, ao ritmo dos meus passos. Sentámo-nos numa esplanada, na única mesa livre que havia. Senti-me demasiado exposta, não queria exibir a minha tristeza para toda aquela gente. Na mesa ao lado um grupo de jovens conversavam animadamente; um idoso lia o jornal; o empregado distribuía sumos, cafés e águas pelas mesas. Aproximou-se de nós. Estremeci, um baque surdo no peito. Fitou os seus enormes olhos nos meus; depois, desviou-os para o Jean – Pierre. - São dois cafés e uma água, s`il vous plais. Precisava urgentemente de me recompor; não queria, de forma nenhuma que o meu filho se envergonhasse de mim se me quisesse

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apresentar a algum amigo que, eventualmente, pudesse aparecer. Lavar a cara com água fria seria uma excelente solução, mas saber onde ficavam os lavabos, e chegar até eles…nem pensar. Aquela angustiante sensação de medo! Mas medo de quê!? A vida cá fora pareceu-me uma coisa irreal, como um sonho.

-Rosarinho, vou deixar esta comida no frigorífico; amanhã, só tens de a meter no microondas para aquecer. – Informou a Mónica, depois do jantar. – Chega aqui para eu te explicar como isto funciona. Fiquei completamente apavorada. Sozinha, entregue a mim própria? Como é que eu vou ao hospital, visitar a Claire? Mais cedo, ou mais tarde, tinha de acontecer; eu não podia viver o resto da vida dependente dos outros como uma criança; precisava de readquirir a minha própria autonomia. A noite foi uma lástima; sempre que fechava os olhos era a Claire que eu via, mirrada naquela cama de hospital. A ideia, de ter de enfrentar a cidade, atormentava-me, como um prurido na alma. Já todos saíram; cada um foi à sua vida. Estava tão nervosa, inquieta. Tomei um duche, arrumei o quarto e aprontei-me para sair. Fui até ao telefone. Com os dedos trémulos, marquei o número para chamar um táxi. Do outro lado da linha, ouvi uns estalidos e depois, a voz duma mulher. Fiquei lívida, com o telefone na mão, sem saber o que dizer. Cobardemente, pousei o auscultador. Voltei a marcar o número; tinha de ser não havia outra forma… - Quero pedir um táxi, -consegui dizer. - Le adreese, sìl vous plaît? - Perguntou, profissionalmente. 166


- Adresse… adresse ...je n`cest pás. - Como não sabe!? – Riu-se. - Excusez – moi, madame. As lágrimas começaram a correr-me pela cara abaixo. Desliguei, envergonhada. “A fome e o frio, metem a lebre ao caminho”, diz-se na minha terra. Estava decidido. Saí para a rua, guiada pelos meus próprios passos. Caminhei como um duende, numa interminável peregrinação pela cidade. Cabisbaixa, prossegui, evitando a todo o custo olhares indiscretos. Infelizmente, a esperança que ainda alimentava de que a Claire iria sobreviver à doença, começava a desaparecer. Que doença perversa! Como o destino pode ser tão implacável!? Andei durante horas, dando voltas e mais voltas, passando várias vezes no mesmo lugar. Vencida pelo cansaço, entrei num bar. Um bar discreto, solitário, acolhedor. - Traga-me um sumo de laranja, s`il vous plaît. – Pedi. A

rapariga

baixou-se,

desaparecendo

por

detrás

do

balcão,

reaparecendo segundos depois com a garrafa de sumo na mão e um sorriso traquina, no rosto redondo. Os olhos, demasiado pequenos, esgueiravam-se para trás do sorriso. Um cheiro agradável a cebola aloirada, misturava-se no ar. Foi esse cheiro que fez despertar a minha consciência para o facto de ainda não ter almoçado. Senti então um ratinho a roer no estômago. - Tem sopa? – Perguntei. - Ouí madame. – Respondeu, – quer que lhe sirva uma? Desapareceu para os fundos voltando pouco depois com um fumegante prato de sopa de espinafres com grão. 167


- Está uma delícia! – Garantiu ela. – Acabei agora mesmo de me bater com dois pratos dela. Achei graça à sua maneira de falar. Uma expressão bem portuguesa Entretanto, os clientes foram chegando, cumprimentando-a num tom familiar; Manuela para aqui, Nelinha para acolá, Nela… – Exactamente; é portuguesa, não me enganei. - Espere lá… – disse com os olhos pequenos, quase a saltarem das órbitas. - Eu estou a conhecê-la… foi num programa de televisão… Ou estarei enganada? - Não, não está, sou eu mesma. – Confirmei. - Pois, eu não me costumo enganar… é aquela escritora que estava na prisão… Pois a minha memória nunca me falhou. Tive de engolir em seco; era um rótulo que me acompanharia para sempre, como um estigma. Um rapaz levantou-se, dirigiu-se a mim e pediu um autógrafo. Depois, uma senhora que trazia consigo o meu livro, - acabadinho de comprar, dizia ela. - Veja como são as coisas, até parece que adivinhei que ia encontrá-la; Jesus, longe de mim tal pensamento. - Não imagina como estou feliz, é uma honra estar aqui consigo… até estou emocionada, acredite. Ela estava emocionada e eu estava extremamente nervosa; fui apanhada de surpresa; de facto, não estava mesmo nada à espera duma manifestação de carinho tão espontânea. – Quem sou eu afinal? Não me revejo nesta pessoa que acabam de me fazer crer que eu seja. Pedi a conta, despedi-me gentilmente e saí para a rua movimentada. De qualquer forma, é bom sabermos que gostam de nós, seja porque motivo for. O vento frio esbofeteia-me o rosto com agressividade.

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Como estará a Claire? À medida que me aproximava do hospital, ia apossando-se de mim um mal-estar, um medo de encontrar a sua cama vazia. Não. Claire não pode morrer! Tentei afastar de mim estes pensamentos. Entrei no átrio principal, um local agradável, cheio de plantas. Um homenzarrão enorme prostrou-se diante de mim, como um edifício de cimento armado. Ergui os olhos para ele, tive a noção da nossa diferença de altura. - Excusez-moi madame, mas não é hora de visita. – Informou. - Pardon, monsieur. – Eu não queria acreditar; tinha deixado passar a hora. - Faltam só trinta minutos – esclareceu. Suspirei de alívio. – Mercí-beaucoup. Amavelmente, levou-me para uma sala contígua à enfermaria onde a Claire estava: faça o favor de aguardar, aqui está mais confortável. – Muito gosto em conhecê-la. Fez uma pequena vénia e retirou-se. cerimoniosamente. Enquanto esperava observei uma enfermeira super atarefada, andando de cá para lá. Depois mais duas enfermeiras, um médico. O meu cérebro começava a fervilhar de ansiedade; será a Claire… Havia um evidente nervosismo. Pouco depois vi entrar uma maca. Levantei-me e aproximei-me, apreensiva. Precisamente no instante em que eu ia a entrar na enfermaria, saía a maca transportando um corpo, coberto com um lençol branco. - Quem é a senhora? O que faz aqui? - Ainda é cedo para a visita. Não respondi; o que eu queria era poder espreitar para ver a cama da Claire. - Excusez.moi madame, mas não é permitida a presença de pessoas estranhas ao serviço; retire-se por favor.

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Instintivamente, levantei a ponta do lençol deixando a descoberto um rosto já sem vida. Claro, era o da Claire; esse pressentimento acompanhava-me desde que saí de casa. Ela estava morta, já não fazia nada aqui. Saí sem pronunciar uma única palavra e calma como nunca. Cheguei à rua, apanhei um táxi. Recostei-me no assento de trás, fechei os olhos e desejei que aquela viagem não terminasse nunca. - Para onde deseja ir, madame? – Perguntou o taxista, reclinando a cabeça para trás. - Leve-me para o fim do mundo. - A Madame está a sentir-se bem!? - Quero apenas que me deixe em paz, leve-me Sentia-me exausta de corpo e alma. Na manhã seguinte, eu estava literalmente destroçada; não preguei olho durante toda a noite. Levantei-me, tomei um banho, bebi um café e voltei ao hospital. A Mónica fez questão de me acompanhar. - A família já tomou todas as diligências. São da família? - O enterro é hoje às três horas da tarde. – Continuou sem dar tempo de resposta. - Família!? Acho que não estamos a falar do mesmo defunto. - Com toda a certeza, é o único cadáver que temos. Senti a cabeça zonza. - Mercí – beaucoup, monsieur. – Agradeci. - Afinal ela tinha família. - Os nossos passos entoavam no corredor. A Mónica vinha atrás de mim, acompanhava-me com alguma dificuldade. – Afinal tinha família – repetiu. Tenho de comprar flores. – Disse-lhe.

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Enquanto esperava que a florista terminasse uma grinalda em forma de coração veio-me à ideia as palavras da Claire, há tantos anos pronunciadas, e tão vivas na minha memória – “Todas as mulheres gostam de receber flores”, disse eu. “É pena que algumas só as recebem no dia do funeral”, respondeu ela. - Não vou poder acompanhar-te, lamento imenso, mas… - Não te preocupes Mónica – interrompi. - Eu apanho um táxi. Saí a seguir ao almoço. Caminhei um pouco. Passei junto dum bar, entrei; sentei-me, pedi um café, pousei as flores na cadeira a meu lado e fiquei a olhar para elas; como são lindas! Pensei na Claire morta, estendida dentro do caixão. Mentalmente ouvi a sineta do cemitério a anunciar a entrada da carrinha funerária - que transportava o seu corpo. “Algumas só recebem flores no dia do funeral”; estas palavras de Claire ainda remexiam no meu peito. Morta! Não consigo acreditar! Meu Deus como eu amava aquela mulher! Um táxi acabou de chegar; um homem esguio, de cabelo grisalho, saiu; contornou o carro e abriu a porta de trás cerimoniosamente deixando sair uma senhora já idosa. Vem mesmo a calhar – pensei. - Está livre? – Perguntei. - Oui madame. Conduzia como um louco, no meio dum trânsito infernal. Repentinamente parou em frente da capela mortuária. Retive-me um pouco à entrada, recuperando forças ou, talvez, tentando adiar um pouco mais o que me esperava lá dentro. Senti necessidade de ter alguém a meu lado, dum apoio moral. Senti-me só neste mundo tão cruel. Uma solidão que dói, um desalento. 171


Fiquei paralisada, como se os sapatos estivessem colados ao chão. Observo as pessoas que entram e as que saem…Automóveis de luxo vão chegando e do seu interior saem pessoas vestidas a rigor para a cerimónia fúnebre que, certamente, não é a da Claire. E se eu fugir daqui, ninguém dará pela minha falta. – Ocorreu-me. Não, eu tenho de ver o seu rosto pela última vez. Caminhei hesitante. Entrei. Um silêncio constrangedor, uma escuridão quase total não fosse o bruxulear das velas. Rompi através da multidão e eis que a tinha diante dos meus olhos: sem alegria, sem sofrimento; sem vida, sem nada. Nada. O que é a morte a não ser um nada nesta vida terrena? Dos meus olhos correram duas lágrimas grossas, sentidas; ninguém mais chorou. Uma mão poisou de mansinho em cima do meu ombro. Virei a cabeça lentamente. - Marie!? Não pode ser. Talvez uma irmã gémea, uma sósia…Marie, a própria, não! Estava deslumbrante, num casaco de pele de visom. Fazia-se acompanhar por um homem relativamente mais velho, bem parecido mas visivelmente consternado. - O meu pai. – Disse, com um gesto na sua direcção. - Muito gosto, em conhecê-la. – Cumprimentou, com um leve aceno de cabeça. A mãe não a vi, nem ouvi falar dela; nem sequer sei se existe. - Eras a última pessoa deste mundo que esperava encontrar aqui, confesso que estou estupefacta. - Disse-lhe. Relanceou o olhar pela sala e respirou fundo antes de responder. - Depois falamos, sobre isso. – Ajeitou o cabelo para trás da orelha com um nervosismo dissimulado. – Eu e a Claire éramos irmãs. – Adiantou. Não

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consigo explicar o que senti naquele momento. O meu estômago deu uma volta sobre si mesmo. Nada fazia sentido; esta mostra de riqueza exterior contrasta demasiado com a pobreza em que a Claire viveu. Precisava urgentemente duma explicação. O meu espírito ficou num desassossego…travei uma tremenda luta interior para me manter calma. - Estás acompanhada? – Perguntou mais tarde. - Não. Estou só. Aceitei o convite para a acompanhar ao cemitério. Aliás, esse convite veio mesmo a calhar. O chauffer esperava-nos, mãos atrás das costas e peito inchado. Abriu a porta dum Mercedes preto, um topo de gama reluzente. Entrámos. Sentamo-nos no banco de trás, sem uma palavra. Luxuosamente acomodada, pensei na Claire; senti-me uma traidora. Se ela pudesse ver, daria saltos dentro do caixão. Depois de depositados os restos mortais da Claire, no jazigo de família, Marie convidou-me a passar o resto da tarde com ela. Aceitei de imediato, não suportava mais tanta ansiedade. Nunca tinha estado num lugar tão sumptuoso. A mansão, os jardins, a piscina… eu estava deslumbrada, e aparvalhada; cada vez entendia menos. Um enorme bul-dog ladrou na nossa direcção; aproximou-se com a baba a escorrer-lhe da boca, abanou a cauda; a dona fez-lhe uma festa na enorme cabeçorra. Uma criada vestida a rigor abriu-nos a porta. Era a primeira vez que entrava numa casa assim; tanto luxo, senhor! Senti-me como uma mendiga a entrar num palácio. No chão maravilhosos tapetes coloridos; nas paredes quadros lindíssimos; móveis de

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boa qualidade, poltronas de veludo, reposteiros, objectos de arte valiosíssimos, suponho. - Bebes alguma coisa? - Perguntou a Marie, enquanto pendurava o casaco no cabide. Eu imitei-lhe o gesto. - Non mercí beaucoup – respondi distraidamente. - Um café, um chá? – Insistiu. - Sim, pode ser um chá. A criada poisou a bandeja em cima da mesa, perguntou se desejávamos mais alguma coisa, e retirou-se. Marie passeou na sala, num passo ritmado. Aproximou-se da janela e afastou as cortinas. Constatei que não era apenas uma soma de vaidades, de atitudes estudadas, de querer parecer aquilo que na realidade não é. Não. Tudo nela é espontâneo, igual a si própria. - Muito me surpreende que não soubesses que nós éramos irmãs, – disse – como é possível que ela não te tenha dito? - Parece-me ser possível muita coisa, no entanto… sinto-me despeitada, chocada. – Confessei. - Não pelo facto de não me ter contado a verdade, mas pela mentira. O que ela me contou é que tinha sido criada pela avó materna, na maior miséria que se pode imaginar. - E é verdade. - É verdade!? Desculpa, agora eu é que não estou a perceber nada. É tudo tão contraditório. Marie não se poupou a esforços para me contar toda a verdade, quase roçando o exagero. Eu não precisava saber tanto, apenas o suficiente para compreender o motivo de tanta mentira, tanto ódio.

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O nosso pai passou a vida inteira a mortificar-se por sua causa. Ela foi sempre muito orgulhosa; viveu com a avó materna na maior promiscuidade. Quando o meu pai casou com a minha mãe… – interrompeu-se – Ah! Espera, eu ainda não disse que ela é só meia-irmã; um caso que o meu pai teve com uma rameira vulgar, sabes como é… – como eu ia a dizer, quando o meu pai casou, quis que a menina viesse viver com ele; esse pedido foi-lhe sempre negado; todas as ajudas eram bem-vindas desde que fossem em dinheiro, só dinheiro. O dinheiro só por si não educa. Claire foi sempre um caso perdido; cresceu ao deus – dará. Por momentos fiquei dividida entre os meus pensamentos e as suas palavras. À medida que ela ia falando eu ia recordando coisas que a Claire me havia contado e dado como verdadeiras. Passava uns dias connosco, – continuou – depois fugia; a disciplina não lhe agradava. Transformou-se numa desordeira, toxicodependente, e sei lá mais o quê; passou a maior parte da sua vida em prisões. Chegou uma altura em que pai desistiu de a ajudar. Foi sempre de sua vontade manter-se à distância; não fomos nós que a hostilizámos; ela sim, fez-nos passar vergonhas. - Acho que foi feliz; à sua maneira… claro. – Assegurei-lhe. Sentou-se na poltrona junto à lareira, pegou na chávena, bebeu um gole de chá e voltou a pousá-la em cima da mesa. Se não fosse um leve tremor nas mãos, e a voz um pouco alterada, poderia pensar que estava calma. - Não sabes o que foi a minha vida por sua causa; porque ela foi a nódoa, eu tinha de ser imaculada, um modelo de bom comportamento. – Fez uma curta pausa, estava emocionada – constatei. A minha mãe destruiu a minha vida, literalmente. Nunca me foi permitido vestir uns jeans desfiados, uma t-shirt desbotada…não me diverti como as outras raparigas da minha idade…O curso tinha de ser medicina, para dar

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continuidade à tradição familiar. Pensas que alguém me perguntou se era essa a minha vocação? Isso interessava a alguém? A minha mãe pousava a cabeça na almofada e adormecia de seguida, certa de que estava a fazer o melhor. Durante todos esses anos, enquanto tirei o curso e já depois de formada, deambulei pelos corredores dos hospitais como uma condenada. Fiz sempre o meu melhor; curei, salvei vidas porque jurei fazê-lo e fi-lo por dever, por solidariedade com aqueles que padeciam; mas não era essa a vida que eu queria para mim. Marie falava com uma calma dissimulada, e acompanha as palavras com gestos expressivos das mãos. Sentia-me como um animal domesticado; aparentemente dócil, porém, espumava de raiva interiormente, como um animal selvagem. Porque motivo eu me permitia tamanha falta de orgulho, e de dignidade? Nunca soube porquê. - E a tua mãe, onde está? – Perguntei, inadvertidamente. Recostou-se na poltrona, cruzou as pernas, e respondeu com ressentimento. - Estão ambas no lugar certo, lado a lado; uma já não envergonha, a outra já não domina, nem oprime. Notei um lampejo de ódio nos seus olhos, algo de sinistro. Pronto, estava satisfeita a minha curiosidade; o motivo que a levara à prisão. Pobre Claire, que a sua alma descanse em paz – pensei – a família que ela renunciou em vida tem que a suportar depois de morta; não era justo. O meu telemóvel tocou dentro da minha mala, era a Mónica; queria saber de mim, estava preocupada. - Pedi que me chamasse um táxi. 176


- Nem penses, o meu motorista vai levar-te. Já sentada no assento de traz do Mercedes, pensei em Marie. Com um prestígio social admirável e uma riqueza invejável e, no entanto, não era feliz. Eu estava mortalmente cansada; tinha sido um dia de emoções fortes. Jantei com os pensamentos ausentes, enquanto eles discutiam animadamente sobre os últimos acontecimentos do dia. Atirei-me para cima da cama tal como estava e adormeci em segundos; só acordei de manhã bem cedo. Fui até à janela e fiquei a observar o despertar da cidade. Um rio de gente corria pela rua. Não vislumbrei vestígios de liberdade nesta forma de viver, bem pelo contrário; senti pena de toda aquela gente. Andavam pela vida como almas penadas, carregadas de preocupações, tristes, impacientes, nostálgicas. Os dias sempre iguais, os sapatos já cansados de bater sola no mesmo chão. Entravam aos magotes nos autocarros e deixavam-se levar como uma mercadoria. Aos poucos, fui-me readaptando à vida bem mais depressa do que aquilo que eu estava à espera. Apesar da minha insegurança, passeie pelas ruas de Paris e, aos poucos, fui redescobrindo o mundo. Algumas pessoas reconheciam-me e abordavam-me; pediam autógrafos e eu gostava daquela manifestação de carinho. Por vezes não sabia o que dizer, ficava estupidamente embaraçada. Sentia-me lisonjeada e o elogio é, sem dúvida, a maior recompensa para o nosso trabalho. Passei por uma loja, vi a montra e, levada por um impulso, entrei; precisava renovar o meu guarda - roupa. Estava eu semi-despida no gabinete de provas a experimentar umas blusas, quando Marie me telefonou. – -

Comment vá tu, ma chérie? – perguntou.

-

Trés bien, mercí. Ando às compras.

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-

É para te dizer que está tudo pronto; já tenho agendado a

apresentação do teu livro para terça – feira, ás vinte e uma horas. Prepara um discurso três jolie e compra uma roupa bem catita; depois volto a contactar-te para acertar-mos os últimos detalhes. Tive um sonho impressionante a noite anterior: Claire estava sentada numa nuvem e subia leve como uma pena, sorrindo para mim. Eu queria seguila, num esforço sobrenatural, mas uma força misteriosa prendia-me ao chão. Subitamente, sob um céu azul, várias nuvens brancas como algodão vieram juntar-se àquela formando uma enorme flor; o centro era um enorme sol de cabelos louros e olhos azuis. Lentamente, a flor foi-se fechando e ficando apenas uma única nuvem donde caíram pétalas de rosas brancas.

Mostrei vontade de voltar para Portugal e o meu filho mostrou vontade de continuar os seus estudos em França; compreendi e aceitei, mas com uma pontinha de mágoa. Não existia intimidade entre nós, Mónica era sua mãe de verdade, eu apenas era a sua mãe biológica. Não o quis forçar a nada, não tinha esse direito. Irá a Portugal nas férias se for de sua vontade. Donde me vinha esta calma? Estava tão concentrada, tão segura de mim… um auto domínio que eu julgava impossível de conseguir. Fiz um discurso “cinco estrelas”. Com o passar do tempo comecei a ficar vaidosa e orgulhosa de mim. A minha auto-estima tinha crescido e isso dáva-me mais força para enfrentar a vida. Escrever era algo que poderia ser considerado impensável ou até mesmo pretensioso antes de conhecer a Marie. Dou graças a Deus por tê-la posto no meu caminho. Às vezes eu penso que nada na vida acontece por acaso.

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Cap. 17 Chegamos a Évora já era noite, de maneira que decidimos pernoitar na cidade e na manhã seguinte partiríamos então. Pouco ou nada dormi. O cansaço era grande porém, a ansiedade era superior. O facto de saber que estava no meu país, perto de casa, deixou-me inquieta. Levantei-me ainda a aurora não havia rompido. Acordei Jean – Pierre e descemos. O sol ergueu-se grande e amarelo por detrás da cidade; para mim era como um presente precioso, uma saudação. Tomamos

o

pequeno-almoço,

demos

uma

volta

pela

cidade,

espiolhando todos os lugares que eu tão bem conhecera. A satisfação era bem visível no rosto do meu filho. - É linda esta cidade, não é? – Perguntei. Um sorriso amplo pôs mais ênfase na resposta. – É linda! - É uma região de grandes herdades. Montes com casas típicas onde vivem uma ou mais famílias. Vive-se da agricultura, exclusivamente, longe das cidades e das aldeias; incondicionalmente entregues à natureza. O silêncio, a paz, o azul do céu e o verde dos prados, faz desta região um lugar paradisíaco. - Foi aqui que eu cresci e é aqui que quero viver até ao final dos meus dias. Chamei um táxi. O taxista mostrou-se um pouco reticente; - Não me agrada nada andar por esses caminhos, – disse. - O que ganho não dá para o estrago do carro. Insisti com uma impaciência quase infantil. Acedeu. Entrámos numa estrada de terra batida, cheia de buracos, com um rasto de poeira atrás de nós. Percorremos uns três quilómetros, saindo para um caminho que nos conduziria até ao monte. Deparamo-nos com um acampamento de ciganos. Lembro-me que acampavam aqui muitas vezes; era impressionante como, depois de todos estes anos de ausência, continuava tudo igual. A roupa estendida na vedação de arame farpado, os cavalos pastavam e as carroças esperavam a hora de partir para outro lugar.

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Um cigano corpulento e barbudo, rodeado de crianças, veio espreitar. O táxi lá foi aos saltos, caminho fora, e o rosto do chauffer contorcia-se a cada solavanco. - Não, não é por aí. Siga em frente. – Disse-lhe esticando o corpo para a frente, por entre os dois bancos dianteiros. - A senhora não vê que o caminho termina aqui. – Disse com agressividade. De facto tinha razão, o caminho deixara de existir; a erva e o mato haviam tomado posse de tudo e era bem visível que há muito deixara de ser trilhado. Há muito deixara de ter notícias; no entanto, ainda existia uma réstia de esperança de encontrar os meus avós com vida, mas, depois do que acabo de ver…? - Pode-nos deixar mesmo aqui. – Disse-lhe com determinação. Abri a porta e sai para fora do carro. O mato dava-me pelos joelhos. Tirámos as malas do porta-bagagem. Olhei para Jean – Pierre; estava desconsolado. - Desculpa filho, mas não há outro jeito. - Não se incomode comigo. – Respondeu com um ar pouco animador. Caminhamos durante meia hora, abrindo caminho por entre estevas e carqueja, parando de vez enquanto para descansar. Acompanhava-nos um silêncio puríssimo; nem o canto dum pássaro, nem uma aragem, nem o rastejar dum réptil… silêncio, só silêncio, e um céu azul, sem nuvens. Olhei o relógio, eram já onze horas e o calor adensava-se à nossa volta. Passamos por uma lagoa cheia de caniços, donde voaram galinhas d’água e alguns patos - bravos. - Estamos perto, não desanimes. - Ufa! Estou mais morto que vivo. – Respondeu ele quase sem fôlego. - Vamos sentar-nos um pouco; eu também estou estafada. 180


Estávamos ambos lavados em suor. Um coelho assustado saltou debaixo duma moita de mato e pôs-se em fuga. Mais à frente uma perdiz levantou voo, mesmo debaixo dos nossos pés. Subimos por um atalho íngreme e rochoso, eu estava tão feliz! Pisar de novo aquele chão que tão bem conhecia os meus passos, os campos onde eu me rebolei, corri e cresci. Ó Meus Deus, tantas recordações! O meu coração parecia querer rebentar de tanta alegria. E lá estava a casa dos meus avós. Vi tudo como se fosse a primeira vez. Os meus olhos viram, mas a minha alma viu muito mais. À medida que me aproximava vinham-me à memória episódios soltos dos meus tempos de menina. A casa outrora tão branca, adquirira agora um aspecto desolador, lúgubre. Havia fendas enormes nas paredes donde brotavam ervas já secas que serviam de abrigo a toda a espécie de bicheza. Larguei as malas e corri como se alguém me esperasse de braços abertos para me abraçar. Senti o sangue a latejar nas fontes, a minha cabeça quase explodia de tanta emoção. De repente, encontrei um desnível no terreno em forma de círculo; fiquei petrificada, não podia acreditar no que os meus olhos acabavam de ver; o Fred… meu grande amigo, meu fiel companheiro… morreu de fome e de sede. Porque não lhe tiraram a corrente para que pudesse procurar comida noutro lugar? Como foram capazes de o abandonar? O que se passou aqui!? – Gritei para o céu. Deixei-me cair de joelhos junto do seu esqueleto; ainda havia pedaços de pele já curtida pelo sol. Que morte tão indigna para um cão como tu… mas isto foi há demasiado tempo! Uma cobra enorme deslizou por entre pedras, escondendo-se debaixo do antigo tanque de lavar roupa. - Acho que viemos invadir o seu espaço. – Disse Jean-Pierre.

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Levantei-me tremendamente abalada. As lagartixas passeavam-se em redor da casa. Duas osgas enormes, coladas à parede, apanhavam sol impávidas e serenas, ignorando por completo a nossa presença. Aproximei-me da porta carcomida pelo tempo; empurrei-a com as pontas dos dedos; as minhas mãos tremiam como folhas de papel ao vento. Os caixilhos soltaram um gemido sinistro. Encaminhei-me para o interior da casa. As teias de aranha haviam tomado todo o espaço. Algumas telhas tinham desaparecido, deixando entrar os raios do sol para o interior da casa; tudo isto dava ao ambiente um aspecto fantasmagórico. Dirigi-me para o quarto que outrora fora dos meus avós, abrindo caminho entre as teias de aranha com as mãos. Senti um arrepio; tudo me parecia tão assustador! Consegui chegar até à janela, puxei-a para a abrir mas em vez de abrir, caiu no chão com um enorme estrondo. O meu filho correu para ver o que se tinha passado. O que nos foi dado ver era pior que todos os filmes de terror, tudo o que nunca se poderia imaginar. Eu queria fugir dali contudo, eu continuava imóvel, em estado de choque. Que achado tão macabro! Dois tufos de cabelo e duas caveiras lado a lado tapadas com um cobertor coberto de pó e teias de aranha. Meu Deus, eu voltei e eles esperaram por mim, tal como combinamos! Jean-Pierre amparou-me; abracei-o e chorei nos seus braços. - Por favor dizme que isto não me está a acontecer, diz-me que tudo não passa dum terrível pesadelo. Só nesse momento me dei conta que tinha cometido um enorme erro; eu nunca deveria ter vindo assim. - Perdoa-me meu filho, eu não tinha o direito de te sujeitar a tudo isto. Jean-Pierre encaminhou-se para a porta, regressou vagarosamente e em silêncio com as mãos nos bolsos e os olhos posto no chão. Estava demasiado transtornado. Senti dó dele. - E agora o que pensa fazer? – Perguntou com a voz ansiosa. - Não sei. Acho que antes de mais nada tenho de chamar a polícia.

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-Sim também acho. E como? Esgueirei-me para as traseiras da casa; lá estavam as alfaias agrícolas, cobertas de ferrugem e o tractor já tão velhinho! Perscrutei o horizonte; a casa da Madalena era a mais próxima, talvez um quilómetro daqui. E será que tinha telefone? - Mãe há ali uma casa… olhe ali! – Apontou na sua direcção. - Vamos até lá. – Disse curiosa – aquela casa não existia ali. Caminhei aos tropeções, com o corpo a tremer e as pernas bambas. Descemos por uma vereda e ficamos parados junto às sebes. Ouvia-se uma cantoria agradável. Afastei algumas folhas e espreitei; algumas pessoas estavam sentadas à volta duma mesa, batendo palmas, acompanhando o ritmo da música; outros estavam deitados em espreguiçadeiras à volta da piscina. Duas crianças corriam e rebolavam-se na relva, alegres e barulhentas. Um modelo de família feliz. Tive um certo acanhamento de interromper, mas não havia outra alternativa. Continuámos até encontrar a entrada. Um enorme pastor alemão correu para o portão a ladrar violentamente; chamando a atenção; todos pararam de cantar. Apareceu-nos um indivíduo alto, com belo aspecto; tinha o cabelo aloirado, a pele bronzeada, aparentando uns cinquenta e poucos anos. Admirei o seu aspecto saudável. - O senhor é daqui? – Perguntei. - Não. Estou aqui há cinco anos. - E a senhora quem é? – Quis ele saber. - Maria do Rosário, e este é o meu filho Jean-Pierre. Chegámos hoje, vivemos em Paris. Vínhamos visitar os meus avós… o senhor nem vai acreditar… Depois de lhe ter contado o que encontrámos pedi que nos ajudasse, telefonando para a polícia. Pôs-se ao nosso inteiro dispor para tudo o que fosse preciso.

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Convidou-nos a entrar. - Tenham a bondade de entrar; por favor, fiquem à vontade. - Desculpe, nós não queremos incomodar. - Teria sido crime? – Perguntou visivelmente perturbado. - Isso cabe à polícia descobrir, nós não podemos saber. Só sabemos que foi há bastante tempo; a avaliar pelos restos mortais. O caminho que dava acesso à casa era todo em calçada portuguesa. Uma arcada de buganvílias em flor por cima das nossas cabeças formava um túnel escuro e fresco. Os jardins e os relvados estavam impecavelmente tratados e ao fundo uma grande piscina. A casa era pequena. No primeiro andar havia uma varanda a todo o comprimento, donde pendiam sardinheiras de várias cores. Que lugar lindo! – Pensei – isto é o verdadeiro protótipo do paraíso. Dois casais bastante jovens, aguardavam-nos com alguma curiosidade. - Boa tarde. – Dissemos quase em uníssono. - Boa tarde. O senhor Pedro encarregou-se de fazer as apresentações: o filho Miguel e a respectiva mulher, Margarida; a filha Inês e o marido, Hélder. Depois com todo a delicadeza, explicou-lhes o que se estava a passar. - Sentem-se. Depois olhou o relógio – já é um pouco tarde, não acha melhor tratar disso amanhã? - Sim talvez tenha razão, de qualquer forma temos de ir para Évora. A casa não está habitável… nunca me passou pela cabeça que iria encontrar tudo num estado tão lastimoso. Que irresponsabilidade a minha! Agi como uma criança de cinco anos. – Disse eu, com se falasse comigo própria. - Vá, não se torture mais. - Disse o Miguel – Estão desde já convidados para jantar connosco. O que acha pai? 184


- Claro. E podem dormir também, temos um quarto livre. - Não. Agradeço imenso mas não queremos incomodar. Respondi com a voz estrangulada de emoção. - A Inês colocou a sua mão sobre a minha e disse num tom amigável. Aceite. Deixe-nos ajudá-la, não se sinta apoquentada por isso; é com todo o prazer, acredite. Senti-me bem no seio daquela família. Porque não aceitar? Eu faria o mesmo, sem sombra de dúvida. Eu estava exausta e o meu filho devia estar de rastos,, não era justo que exigisse mais dele; o dia foi tão grande e tão cheio de emoções… Graças a Deus que o tenho a meu lado. Se não o tivesse estava completamente só neste mundo. O Miguel e o jean-Pierre foram buscar as nossas malas. - Vão enquanto é dia, não sei exactamente onde as larguei; procurem, estão perto de casa, de certeza. - Não se preocupe mãe, eu sei onde estão. Subiram para a “Pickup” e arrancaram, como dois velhos amigos. - Tenho estado a olhar para vocês duas, são tão parecidas fisicamente, que até parecem irmãs. – Disse o senhor Pedro. – Não achas Margarida? - Reparei nisso desde o primeiro instante; bastante parecidas, mesmo. A Inês olhou para mim e sorriu – também acho que sim. As crianças nadavam alegremente, fazendo uma algazarra dos diabos. - Vá lá, João e Patrícia, vamos sair, já chega! - São horas de jantar. Da cozinha, chegou um cheirinho a algo delicioso, que eu não consegui identificar. Ofereci-me para ajudar. - Então vamos pôr a mesa. – Disse a Margarida, expedita.

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Atravessámos o jardim, eu fiquei um pouco para trás, enquanto admirava a sua beleza; cabelos loiros com madeixas, um corpo quase escultural, pele bronzeada. Vestia calções brancos de algodão e uma mini T-shirt azul. Caminhava com graciosidade; pé descalço e no tornozelo direito usava um fiozinho de missangas de várias cores. Entramos numa cozinha bastante espaçosa, onde havia uma grande mesa de madeira no centro, cadeiras e uma lareira fora de uso, por estarmos no verão. Impressionante, – pensei – cheguei aqui há pouco mais de uma hora e até parece que já sou da casa. O povo português é mesmo assim; hospitaleiro. Eles voltaram com as malas. - Podem levá-las para cima. – Disse a Margarida, enquanto tirava o tabuleiro do forno. – Suba com eles! Miguel, mostra o quarto à senhora. Fiquem à vontade! Era um quarto pequeno de duas camas; simples, mas muito acolhedor. - Ali é a casa de banho – disse o Miguel, indicando a porta com um dedo espetado. – Se quiserem tomar um duche antes de jantar… - Estamos ávidos dum belo duche! Agradeço imenso. Descemos para jantar. Borrego assado no forno com batatinhas e salada. Jantámos calmamente e ficámos a conversar até altas horas. Senti-me tão bem; uma verdadeira empatia com esta família. Acordei. Olhei para o relógio; eram oito horas. Da cozinha vinha um cheiro a café e ovos mexidos. Jean – Pierre já tinha descido. Levantei-me. Aproximei-me da janela e espreitei. Estava com o Miguel, o Hélder e as crianças junto da piscina. Pareceu-me perfeitamente calmo. O que seria de nós se não tivéssemos encontrado estas pessoas, tão simpáticas, tão prestáveis?

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Tomei um duche rápido e desci. Enquanto descia ouvi passos no corredor e um rumor de vozes. - Bom dia! – Disse a Margarida quando ouviu os meus passos nas escadas -dormiu bem? - Bom dia. – Respondi – muito bem. Eu estava cansadíssima, não admira. A mesa já estava posta. Um autêntico banquete. Um jarro com leite, outro com sumo de laranja, café, bolachas, compotas, queijo, pão e uma cesta com fruta. - Ora bom-dia! Já se come alguma coisa nesta casa? – Disse o Miguel, sentando-se à mesa, como um faminto. – Tenho uma fome, que nem vejo! - Cuidado não tropeces na tábua dos queijos ou no frasco da compota. – Gracejou a irmã. Rimo-nos. Num minuto estávamos todos à volta da mesa. - A mãe dormiu bem? – Perguntou Jean-Pierre. - Dormi! Já é a segunda pessoa que me faz a mesma pergunta. - Não me parece que tenha dormido tão bem assim. - Porque dizes isso? – Perguntei intrigada. Seguiu-se um breve silêncio. - Acordas-te a casa inteira, aos gritos. - A sério!? Que vergonha! Levantei a cabeça, todos me olhavam. Senti-me intimidada. – Peço imensa desculpa. Que maçada! Foi um sonho. - Um pesadelo queres dizer. - Acrescentou o Miguel.

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Estranhei o facto de me tratar por tu; não que me desagrade a ideia, somos todos mais ou menos das mesmas idades. Podíamos até ser irmãos. - Como queiras… – os nossos olhares cruzaram-se. Reflecti um pouco se devia contar ou não. – Os meus avós morreram ambos de morte natural; não houve crime nenhum. Todas as cabeças se levantaram na minha direcção; pararam de comer e ficaram de olhos esbugalhados, incrédulos. Acho que pensaram: esta passou-se! - Continuei inexorável – O meu avô tinha acabado de se deitar, já não se estava a sentir muito bem. Pouco depois a minha a avó ouviu um grito atroz. Correu, mas já era tarde; encontrou-o já sem vida; os olhos fixos no tecto e a boca aberta pela agonia da morte. – Todos me olhavam horrorizados, como se estivessem na presença dum fantasma. Ignorei, e continuei – Foi então que a minha avó tomou consciência de que estava só, tragicamente só. Fechou a boca e os olhos ao defunto, aconchegou-lhe a roupa e disse: dorme meu homem, descansa em paz. Arrastou os pés até à porta e saiu para a rua. Perscrutou o horizonte, não viu vivalma. Chorou em silêncio. Estava só, como nunca. Voltou a entrar. Procurou alguns trapos pretos de lutos anteriores, e vestiu-os. Tinha uma talha de azeite, uma saca de batatas, feijão, café, açúcar… calculou quanto tempo poderia sobreviver. E os meses sucederam-se uns aos outros, até lhe perder o conto. Restava-lhe o consolo de se sentir acompanhada, o seu homem estava ali, sentia a sua presença. Bebeu o último gole de chá num domingo à noite, ela própria o percebeu. Um silêncio espesso enchia a cozinha até à porta. - E até que me provem o contrário; foi assim que tudo se passou. – Disse com ar convincente. Depois calei-me. Acrescentar mais alguma coisa, era explicar algo que nem eu própria compreendia.

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- Desculpe – disse o senhor Pedro. – Acho que nenhum de nós está em condições de se pronunciar sobre o que acabámos de ouvir. Eu estou todo arrepiado, caramba! - A Senhora é vidente? – Perguntou a Inês, pálida, como a parede. - É escritora! Informou Jean-Pierre com vivacidade. Subitamente todos os olhares estavam de novo concentrados em mim. Virei-me para o meu filho e disse com alguma veemência – Jean-Pierre, achas que eu iria brincar com um assunto tão delicado? - Desculpe mãe. – Baixou a cabeça, constrangido. Durante todo o dia, um corrupio de gente compareceu ao local; polícias, G.N.R., jornalistas, carros das diversas estações de televisão, populares curiosos… e, de facto,não era caso para menos. Depois que todos partiram; nós ficámos. O meu filho não me abandonou um segundo sequer. Estava sentado num velho degrau, ergueu a cabeça e fixou o seu olhar no meu rosto. - Mãe desculpe aquilo, hoje de manhã…disse sem pensar. - Já nem me lembrava mais disso. Esquece. - Falou duma forma tão convincente. – Disse com ar tristonho. - Desde quando é que um sonho, pode ser considerado uma fonte tão fidedigna? - Por favor, não faças mais perguntas. Agora não quero falar mais sobre isso. Quando vierem os resultados das autópsias… talvez acreditem. Uma sensação de torpor escorreu pelo meu corpo. Sentei-me ao lado dele, e sussurrei: - Vai dar uma volta por aí. Preciso de ficar sozinha, importas – te? Acenou que sim com a cabeça e deambulou por ali. 189


Fechei os olhos; senti uma tontura momentânea. Este fo,i sem dúvida, o momento mais marcante de toda a minha vida. Estava a sangrar por dentro. Levantei-me e entrei na velha cozinha; a tosca mesa de madeira e as cadeiras com assento de palha estavam cobertas de pó e caliça. Tantas recordações! – Vejo-me sentada naquela cadeira, os cotovelos assentes em cima da mesa e a cabeça entre as mãos, a chorar. “A avó bateu-me”. Queixava-me eu ao avô, mal ele entrava em casa. Ele limpava-me as lágrimas e dizia: - “Ela não é má, é um bocadinho rabugenta, não ligues. Ela é assim mas gosta muito de ti.” Eu nunca cheguei a perceber muito bem essa forma de gostar. “ Manhosa! Não queres fazer nada! – repetia ela vezes sem conta. - O teu avô estraga-te com mimos.” A imagem que guardava dela era duma pessoa triste e amarga. Não suportava a indolência dos seus queixumes, do seu negativismo em relação à vida e as pessoas que a rodeavam. Detestava-a, sobretudo quando ela dizia infâmias, acerca da tia Amélia. “ - Não é uma mulher como as outras, tem a barriga oca como a de uma abóbora” – dizia, por ela não poder ter filhos. E eu respondia-lhe com desdém: “Por ser assim, Deus até a castigou; deu-lhe dois filhos e voltou a tirá-los. O seu desgosto foi muito superior ao dela. Sabe porquê? Porque você é má.” Por falar na tia Amélia, onde estará? Tinha de arranjar forma de a encontrar. A minha vida transformou-se num autêntico torvelinho. Os meus avós morreram; mas continuavam presentes em tudo; via-os em toda a parte, onde só o olhar da memória pode penetrar. O rosto do meu avô, tão nítido…o da minha avó, tinha de fazer um esforço; lembrava-me dela por arrastamento de pequenos episódios, que povoavam o meu imaginário.

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Continuei a abrir caminho por entre teias de aranha, até chegar ao meu quarto. Era desolador! Carradas de lixo; Pedaços de telhas partidas, madeira, pássaros mortos… a caixa de papelão, onde eu guardava os enfeites da árvore de

Natal

e

as

peças

do

presépio,

tentei

adivinhar.

Levantei

a

tampa…exactamente, não me enganei. Tentei abrir as portas do roupeiro. Estavam lacradas pelo tempo. Puxei com mais força, a madeira já ressequida cedeu e uma das portas saltou das dobradiças. Jean-Pierre chegou tão silencioso que nem dei pela sua presença. - Aqui era o meu quarto. – Disse emocionada. – Está tudo exactamente como deixei… os meus vestidos de menina…mais uma caixa de papelão, não me recordo do seu conteúdo. Oh! Os cadernos e os livros, onde eu aprendi a ler e a escrever! O meu caderninho de orações! Como eu amava este caderninho! Aqui eu escrevia todas as conversas que eu tinha com Deus…Olha esta… Pai do céu. O meu avô, diz para eu ser boazinha, para que Tu gostes de mim, e se eu fizer maldades, Tu ficas zangado comigo. O avô diz que Tu sabes tudo, que estás em todo lado, sempre a olhar para nós. Tu vês mesmo senhor? A sério? Agora neste momento Tu está a ouvirme? Sabes senhor, eu também gostava muito de te ver, não podes aparecer um dia, como a nossa senhora apareceu aos três pastorinhos? Quando eu ando a pastar as ovelhas olho muitas vezes para o céu, na esperança, de um dia Te poder ver. O avô diz também que nós não Te devemos pedir nada, porque Tu sabes sempre do que nós precisamos e apenas devemos agradecer as coisas boas que nos dás. Mas… eu queria fazer-Te um pedido: um dia, quando puderes, vem para eu Te conhecer e trás contigo a minha mãe, que está aí no céu, ao pé de Ti. Quando ela foi para o céu eu era ainda muito pequenina, não me lembro da cara dela. Prometo que me vou portar bem. Fico à Tua espera. Ámen.

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- Que idade tinhas quando escreveste isso? - Uns seis… ou sete anos. Olha esta complementa a outra, escuta: Pai do céu Hoje estou muito triste. O avô e a avó estão zangados comigo, porque eu deixei as ovelhas comerem as couves da horta. Eu sei que quando alguém está zangado connosco, deixa de gostar de nós. Se os meus avós deixarem de gostar de mim, eu não tenho mais ninguém e, sem amor, a vida não vale a pena … – Lê o resto – disse num fio de voz; a emoção tinha tomado conta de mim. Fechei os olhos e deixei as lágrimas saírem livremente. - Tu também estás zangado comigo? Sabes Senhor, é que eu passo o tempo todo a olhar para o céu, só penso em Ti; espero que um dia, Tu venhas visitar-me, e não Te esqueças de trazer a minha mãe. Se eu estiver a olhar para as ovelhas, faz um barulho qualquer para chamares a minha atenção. Obrigada senhor. Ámen. - Não há nada mais belo do que a inocência duma criança. À medida que vamos crescendo, perde-se a inocência e tudo muda; olha-se para a vida com outros olhos e as desilusões somam-se umas às outras. Um carro buzinou lá fora. Dei um salto como se tivesse acordado dum sonho. Espreitei através da janela. - É o Miguel, voltou para nos vir buscar, – informei jean-Pierre – trás as crianças com ele. Vamos!? Miguel, era o tipo de pessoa que reagia por impulso, sem raciocinar, era um doidivanas; mas não deixava de ser um tipo fixe. Subimos para a pickup e sem que ninguém lhe tivesse pedido levou-nos a dar um passeio por montes e vales, num sobe e desce de arrepiar. Fiquei

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totalmente fascinada por aquele carro o que me levou, seriamente, a pensar comprar um para mim. - Um todo o terreno é o ideal, nunca nos deixa ficar mal. – Disse ele em jeito de brincadeira, como se tivesse ouvido os meus pensamentos. Aquele passeio foi como um duche tomado por dentro. Senti-me limpa, leve e feliz. Percorrer aqueles lugares que eu tão bem conhecia e dos quais eu já nem me recordava, poder respirar fundo de novo... era o autêntico conceito de liberdade. Regressamos com o corpo todo partido devido aos trambolhões que dera dentro da pickup – grande maluco me saiu este Miguel! – Sussurrei ao ouvido do meu filho. - Com um carro destes nas mãos, até eu era! – Respondeu com olhos cintilantes. A Inês e a Margarida estavam ambas a fazer compota de pêssego. - Está pronto? – Perguntou o Miguel mal entrou em casa. - Caramba, só pensas em comer! – Disse a Inês, com ar zangado. - Está tudo pronto, só estávamos à vossa espera. – Disse, olhando para mim com um sorriso matreiro. Depois chamou as crianças que brincavam lá fora. - Meninos vão lavar as mãozinhas, o jantar está na mesa. A Inês era alta, magra, os cabelos castanho dourado, com caracóis miudinhos, presos com uma mola. Um “bikini” e um “pareo” constituiam a sua indumentária. Fazia tudo com uma calma… até parecia, que pedia licença a uma mão para mexer a outra. “ Depressa e bem, não há quem.”- Respondia sempre que a tentavam chatear. Era uma doçura de pessoa. O marido… era esquisito; parecia sempre nas nuvens, usava óculos redondos, cabelo rapado e uma argolinha de ouro na orelha esquerda. Era o género de pessoa que olha mas não vê; escuta, mas não ouve. - Um intelectual; vive noutro mundo.

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Depois do ensopado de borrego, que estava uma delícia, fomos todos para o jardim gozar o fresco da noite. - E que tal, se trouxesses um cafezinho? – Sugeriu o pai. Retirou-se para regressar pouco depois com o tabuleiro cheio de chávenas, o açucareiro e as colheres. O café, colocou-o na mesa para que cada um se servisse. A noite estava calma e suave. Ficámos a conversar até tarde. Disse-lhes que era minha intenção ir viver para Évora; talvez num hotel ou numa pensão; até resolver os meus assuntos. - Mas porque não ficam aqui até arranjar a sua casa? - Interveio o senhor Pedro. – Que necessidade tem de ir viver para um hotel? É tão impessoal. - Mas nem daqui a um ano a casa está habitável! Desculpe, agradeço imenso mas não quero incomodar mais. - Ora deixe-se disso, não incomoda nada; pelo contrário, os meus filhos estão quase a terminar as férias, e para aqui fico eu… como um Franciscano no convento. Rimo-nos. - Olhe que se vai arrepender! Um hóspede mais que três dias farta. – Gracejei. E depois tenho outro problema, não tenho carro…e - Mas isso não é problema. – Disse o Miguel – vendo-te a minha Pickup. - Só podes estar a brincar! - Disse a Margarida apreensiva. - Aposto que já tens outra debaixo de olho!? – Arriscou a Inês. - Bruxa! – Respondeu efusivo, esfregando as mãos, uma na outra. – Depois virou-se para mim e acrescentou: Garanto-te que não encontras

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melhor. Esta já está ensinada, conhece todos os lugares, até os mais recônditos. No dia seguinte fomos todos para Évora; decorriam as festas de S. João. Estalavam os foguetes, deixando no ar um cheiro a pólvora queimada. Como eu tinha saudades, de tudo isto! Já lá vão tantos anos, e tudo continuava igual. Um grupo de cantares alentejanos estava a actuar. Parámos para ver. Os braços enganchados uns nos outros, balanceando os corpos ao ritmo da cantoria. Cheirava a frango assado, entremeada e coiratos. Mais à frente as farturas, os churros, o algodão doce e as pipocas. Os cheiros misturavam-se no ar com o som da música e o altifalante da propaganda. Vendedores de bugigangas, e a zona do artesanato. Perante tanta maravilha, era impossível resistir. Voltámos já tarde. Com os faróis da pickup a rasgar a escuridão da noite. Jean-Pierre tinha de voltar; o novo ano escolar estava a iniciar e, por muito que me custasse, tinha de aceitar o seu regresso a sua vida era lá. Despedimo-nos na estação, onde apanhou o expresso para Lisboa. - Vou tranquilo, sei que estás bem entregue. – Disse-me. Abraçou-me mais uma vez, e partiu. - Faz-me tanta falta! – Quase gritei. Olhou para trás, acenou com a mão – eu volto. - Depois entrou no autocarro, e não mais o vi.

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Cap.18 Passei meses numa roda-viva, embrenhada em papéis; do tribunal, para as finanças, das finanças para o advogado, do advogado para o notário. Aproveitando a minha estada na cidade fui ao cabeleireiro; lavei e cortei um pouco o cabelo e dei-me ao luxo de marcar uma limpeza de pele para o dia seguinte. Não podia de forma nenhuma, descuidar a minha aparência. Um dia resolvi visitar a Madalena. Talvez já nem viva aqui, era o mais provável. Irei de qualquer forma, sentia necessidade de o fazer. Os seus pais, será que estão vivos? Aproveitei o sol fraco da manhã e lá fui, inventando caminho. Grandes áreas de terrenos cultiváveis, tudo ao abandono. Quem conheceu isto… eram cearas de milho, trigo, girassol… À medida que caminhava ia-se instalando em mim uma inquietação crescente. Grande tristeza! Ao que isto chegou! Caminhei por um trilho pedregoso, junto às silvas. Madalena continuava a ser um elo muito forte que me ligava à minha infância. Andámos juntas na escola, brincámos, fomos amigas e confidentes. Tudo o resto prefiro esquecer. Avistei a casa ao longe. Senti uma mistura de emoção e alegria. Será que vive ali alguém? Parei para descansar. Sentei-me numa pedra; abracei os joelhos com as mãos. Os campos estendiam-se diante de mim, solitários. Oiço o sussurro das folhas ressequidas, está tudo tão seco; esta terra tem fome de água. O sol estava a aquecer. Cruzei-me com meia dúzia de vacas, pachorrentas, magras e com as costelas à vista; mortas de fome. Abocanhavam montes de feno do chão e mastigavam lentamente. Uma enxotava as moscas com o rabo, de olhar lânguido, parecia nem dar pela minha passagem.

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À medida que me aproximava, ia ficando mais convicta de que a casa era

habitada;

por

quem?

Estava

quase

a

saber.

Um

cão

ladrou

insistentemente. Vi crianças a espreitar. Pareciam assustadas. Cheguei junto delas só um ficou à minha espera. Tinha os olhos muito abertos, amedrontados. - Procuro uma senhora chamada Madalena, por acaso é tua mãe? - Meneou a cabeça num gesto afirmativo. À porta assomou-se um pequeno vulto de mulher. Reconhecia-a imediatamente. - Olha a tia Almerinda! Então como está? Lembra-se de mim? - Não. Não estou a conhecê-la, não senhora – disse saindo para a rua – os meus olhos não me ajudam nada, sabe. -Sou a Rosarinho. - Pois, não a fazia por aqui… Era uma fraca figura - Lembro-me como era levada da breca! Tinha ditos muito engraçados. - Ora, tristezas nunca pagaram dívidas, não é certo? - É assim mesmo tia Almerinda; as pessoas alegres, até duram mais tempo. Sabia? Riu-se, mostrando as gengivas desdentadas. Subitamente, ficou melancólica. - A minha Lena anda na horta; coitada, farta-se de trabalhar. Fomos ambas ter com ela. Ao vê-la tive um baque; Já não existiam vestígios da rapariga magra e divertida que fora outrora. Engordara imenso. Aproximamo-nos.

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Tanta coisa para dizer; contudo, ambas ficámos em silêncio, especadas, a olhar uma para a outra. Estava a sachar couves. Tinha a cara afogueada pelo calor e o suor escorria-lhe pela testa e ao longo do nariz. Limpou-se à manga da camisa e depois beijou-me. Esperava uma recepção mais calorosa da sua parte. Como envelhecera! Tinha a pele seca e engelhada, os cabelos com as pontas espigadas, ásperos e maltratados. Os dentes da frente demasiado podres. Tinha um ar sujo e desmazelado. Os filhos colocam-se à volta dela; são três, de idades muito próximas. Dois rapazes e uma menina. A minha presença intimidou-os; escondem-se atrás uns dos outros e da mãe; riem-se tapando o rosto com as mãos. Percebi que não estavam habituados a receber pessoas em casa. - Larguem-me, – disse para os filhos – quero acabar isto. Já está um calor dos diabos! – Vão lavar essa cara! Olhem para essa roupa toda suja! Olhou para mim, intimidada. – Parece que foram vestidos de lavado hoje de manhã? Depois voltou ao seu trabalho. Com a enxada mexia a terra à volta da couve, retirava as ervas, passava à seguinte e assim sucessivamente. Era bonito de se ver como se entendem bem, ela e a enxada; a destreza com que a utilizava… eram muitos anos! – Pensei. Levantou -se. Tinha dificuldade em endireitar-se, estava derreada de cansaço. Tive pena dela. Tirou o relógio que trazia na algibeira do avental preso com um alfinete; relanceou um olhar rápido. – São quase horas de fazer o almoço. Abandonou a enxada e caminhou à nossa frente; os pés descalços, e os calcanhares gretados. Passou por um monte de lenha, pegou num braçado e levou-o para dentro. Convidou-me a entrar. Um cheiro a fumo bateu-me no rosto. Pouco ou nada mudou por aqui, e se mudou foi para pior. – Pensei. Ajeitou a lenha na velha lareira e deitou-lhe fogo. As labaredas dançavam no seu rosto. A miséria sentia-se no ar que se respirava e o sol 198


entrava pelas fendas das telhas sem fazer cerimónia. As paredes tinham adquirido um tom amarelado. Não havia brio nem limpeza; o desmazelo imperava por aqui. Puxou um banquito de madeira, sentou-se nele, partindo pedacinhos de lenha para não deixar morrer o lume. Limpou as mãos à camisa larga e deformada. A lenha estalava e as chamas iam lambendo a panela enegrecida pelo fumo. Madalena estava inquieta, agitada; sentiu-se intimidada pelas condições em que vivia. - O teu pai faleceu? - Perguntei curiosa. - Não, graças a Deus. Ainda está aí para lavar e durar. Deve de estar a chegar, foi comprar comida para a criação. As crianças sentaram-se à mesa; falavam em segredo, escondendo a boca com a mão e abafando risinhos tímidos. De vez em quando lançavam um olhar interrogador pelo canto do olho. - E os teus avós estão bons? Perguntou mostrando pouco interesse, foi mais por parecer bem; uma questão de etiqueta. Contei-lhe tudo; o choque emocional que havia sofrido quando regressei a casa. Ficou boquiaberta. – Ó mãe, venha ouvir, o que a Rosarinho me acaba de contar. - Ai minha nossa senhora! Credo! – Benzeu-se a tia Almerinda. - E agente aqui tão perto! - As autópsias revelaram que ambos morreram de morte natural; o meu avô morreu há sete anos com um enfarte do miocárdio, e a minha avó morreu um ano mais tarde, de pneumonia. Estavam ambas extremamente chocadas.

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Tirou a comida da panela e colocou um prato à frente de cada filho. Cruzou os braços sobre os seios descaídos livremente sobre o volumoso ventre. Uma mosca varejeira zunia freneticamente dum lado para o outro da cozinha. Madalena pegou num pano e enxotou-a para a rua. - Até estou arrepiada! – Ergueu o braço e mostrou os pêlos eriçados; a pele parecia de galinha. - Mãe, ela deu-me um pontapé nas canelas! – Choramingou o rapaz mais novo. - Ele disse que eu era bicho-do-mato. Não sou, pois não mãe? – Lamentou-se a rapariga, com voz mimada. - Chiu! Bico fechado! Ralhou a mãe. - Vieste para ficar? – Perguntou, fazendo um esforço enorme para se abstrair dos filhos. - Claro! Voltei para o lugar donde nunca devia ter saído; aqui é que é o meu lugar! Baixou a cabeça, evitando olhar-me nos olhos; entendi o porquê da sua atitude. - Mãe, ela roubou-me um bocado de bacalhau! - Não roubei nada, ele é mentiroso. Mãe, essa mulher vai almoçar cá? - Não é essa mulher, é essa senhora, vê se aprendes. – Repreendeu a mãe. Baixou a cabeça timidamente, escondendo um sorriso matreiro. - Estou à espera que a licença de reconstrução e o projecto sejam aprovados para começar as obras na casa. – Disse-lhe – vou reconstruir tudo, fazer praticamente tudo novo; o que lá está, nada se aproveita. - Mãe olha ela… 200


- Cala-te já! - Gritou o irmão mais velho, com interjeição, tentando manter a ordem. – Não vês que a mãe está a falar com a senhora!? Bla. - Estendeu a língua cheia de comida para fora da boca. - Levas uma galheta, que ficas de pernas para o ar. – Ameaçou o irmão, deveras irritado. - O avô já aí vem. Esperem que ele já vos ensina. Só têm algum respeito ao avô. - É melhor voltar noutra altura. – Sugeri. – Vai almoçar para eles sossegarem. - Sossegarem!? Qual quê!? É isto todo o dia. – Queixou-se. Levantaram-se da mesa, os dois mais novos, passando por nós como um furacão, esgueirando-se para a rua. - Eu volto noutro dia. – Prometi. - Volta sim, eu preciso de falar contigo. As crianças estavam escondidas atrás dum arbusto silvestre, nem deram por mim. Ouvi a pequenita perguntar ao irmão. “ Porque é que aquela mulher é uma senhora? “ ora sei lá. Se calhar porque está vestida com roupa finas”. “ Ela é toda finória não é? Achas que ela gostou da gente?” “ Pouco me importo” – respondeu ele. - Olha o meu pai vem a chegar, – gritou a Madalena assomando-se à janela que dava para as traseiras. - Espera um pouco, ele vai gostar de te ver. Voltei para trás, também eu tinha saudades de o ver. Chegou, envolto numa nuvem de poeira. Desceu da carroça, prendeu o cavalo numa argola de ferro presa à parede e atou as rédeas ao travão.

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Caminhou para nós devagarinho com o corpo inclinado para a frente, coxeando levemente da perna direita; o rosto inexpressivo, o olhar sombrio, pensativo. Como está velhinho o tio António. – Pensei. – Os anos não perdoam. – Então pai, já não se lembra da Rosarinho? O velho levantou a cabeça e olhou-me, franzindo o sobrolho. - Ora que pergunta mais tola, então não me havia de lembrar da Rosarinho!? Estendeu a mão para me cumprimentar. – Como estás rapariga? - Estou bem, e o tio António como tem passado? - Cheio de caruncho, já não presto para nada. Sentou-se num pequeno banco e logo a netinha se aconchegou entre as suas pernas. Ele beliscou-lhe a face, num gesto de ternura. - Estou tão decepcionada tio António! Não esperava encontrar o nosso Alentejo tão abandonado. Terras tão boas... ao que isto chegou! É um dó de alma! Porque não cultivam estas terras!? - Perguntas bem… estamos entregues aos bichos, é o que é! – Disse, com ar preocupado e olhar fixo num ponto longínquo. - Ninguém faz nada por isto; já lá vai o tempo em que nosso País vivia quase exclusivamente da agricultura; agora, vem tudo de fora. A gente, por aqui vai ficando… e é daqui destas terras que ainda tiramos o nosso sustento; também não sabemos fazer mais nada. O tio António usava chapéu preto, como sempre usou. Tinha os cabelos branquinhos como o algodão, a pele escura e enrugada… eram muitos anos de exposição ao sol. A camisa de mangas arregaçadas e um colete quase tão velho como ele. Continuava a ser a pessoa modesta que eu deixei, há tantos anos atrás. Tinha pouco mais de setenta anos, e mantinha-se activo e lúcido; era um velhote com quem se podia conversar, e aprender.

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Ao longe, ouviu-se o motor duma motorizada. As crianças puseram-se alerta. -É o pai, disseram em coro, correndo ao seu encontro numa enorme algazarra. Encostou a motorizada à parede, e ficou com o olhar cravado em mim;um olhar inquiridor. A Madalena apressou-se a apresentar-nos: é o Duarte, e esta é uma amiga de infância que veio visitar-me. Era um homem baixo e gordo, com cara de poucos amigos. Apertou-me a mão sem se dignar olhar para mim. Pareceu-me tímido e pouco sociável. - Tenho de ir pôr o almoço na mesa. – Disse a Madalena, quase correndo atrás dele como um cordeirinho. - Volta outro dia… à hora da sesta é boa hora. Antes de entrar em casa, virou-se para trás e acenou com a mão A Madalena, rodeada de filhos; uma vida recalcada de miséria. Não me pareceu feliz, tive essa sensação; mas não posso assegurá-lo. Estava um calor abrasador e eu tinha uma fome…e as meias cheias de praganas. E aquelas crianças, será que se lhes pode exigir mais? Depois de almoço, fiz uma bela soneca. A casa estava agradavelmente fresca e eu já tinha apanhado calor demais, por hoje. Já todos partiram, ficámos nós dois; o Sr. Pedro, e eu. Aqui tudo era maravilhoso; um ambiente tão cordial…existia entre nós, uma enorme afinidade. Era tão bom ter alguém com quem poder falar; dividir os nossos problemas, desabafar os nossos segredos, abrir o nosso coração. Conversamos como dois grandes e velhos amigos. Falamos da vida, de nós, dos nossos filhos, dos nossos anseios. Pareceu-me um homem com um carácter excepcional. O rosto tranquilo, os olhos calmos e inocentes como os de uma criança.

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Uma

aragem fresca

acariciou-me

o

rosto.

Estava

uma noite

espectacular. A luz mortiça da lanterna reflectia na água da piscina e a lua, bisbilhoteira, observava-nos com olho grande. Deixamo-nos ficar em silêncio a ouvir os sons da noite: o latido dum cão, o coaxar das rãs, os grilos, as cigarras…como tinha saudades de tudo isto! - Sabe Sr. Pedro… - Não vejo razão para nos tratarmos dum modo tão formal – interrompeu-me – esqueça o Sr. e trate-me apenas por Pedro. - Como queira. – Concordei. - Como eu ia a dizer… hoje fui visitar uma grande amiga que não via há quase vinte anos. Não imagina como fiquei desiludida. Estive ausente durante tanto tempo; julguei que já não houvesse tanta miséria no meu País. Caramba! Ou será que as pessoas se acomodam ao ponto de estagnar? - A vida não está fácil. Há muita miséria por aí – disse o Pedro com ar pensativo – …muita gente sem ambição. - Há apenas mais uma coisa que preciso fazer, para ficar em paz comigo mesma; Procurar uma tia. Não sei se é viva ou morta. Ela vivia em Setúbal. - Se lhe puder ser útil… - Não queria incomodá-lo, mas… - Partiremos amanhã mesmo, eu irei consigo. Também me faz falta respirar outros ares. - Fico desde já muito grata. Partimos de manhã cedo, ainda os campos repousavam sob uma leve neblina. - Tem alguma ideia, alguma pista? – Perguntou – Bater de porta em porta, empunhando uma fotografia da sua tia, certamente não está nos seus planos.

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- Acho que está a menosprezar a minha inteligência. – Respondi seriamente melindrada. - Não se aborreça, estava só a brincar! - Primeiro tenho de saber se está viva ou morta, não acha Sr. Sherlock holmes? Rimo-nos. Certifiquei-me de que o seu óbito não fazia parte dos ficheiros da conservatória do registo civil. O primeiro passo estava dado. Concluí então, que estava viva. E agora? – Talvez o meu detective particular, tenha alguma ideia. – Disse com ar provocador. – Para mim, é como encontrar agulha em palheiro. Depois duma via-sacra, por todos os lugares possíveis e imaginários, encontrei-a entrevada numa cadeira de rodas, num lar para idosos, em Palmela. Reconheci-a imediatamente. Não pude deixar de sentir, uma enorme ternura. Fiquei tão emocionada. Como se parece com a minha avó! Afinal eram irmãs; contudo, nunca as achei parecidas. Onde está aquela mulher linda e elegante que eu conheci? A mulher que eu tinha como modelo: “quando for grande quero ser como ela” – dizia eu. Mas hoje confesso: “quando for velhinha não quero ser como ela.” Não me reconheceu; o seu olhar estava vazio, a pele enrugada e os cabelos, há muito, deixaram de ser pintados. Senti uma tristeza tão grande. Afaguei-lhe o rosto. Olhou-me de novo sem expressão. Não consegui vislumbrar nenhum sinal; o meu rosto desapareceu completamente da sua memória visual. Sorri-lhe um sorriso suplicante, na esperança que o reconhecesse; mas talvez o meu sorriso já não seja igual. Tudo muda. O tempo transforma as pessoas… e como eu acabo de constatar essa triste realidade.

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Tomei as suas mãos nas minhas e com elas acariciei o meu próprio rosto. Deixei pender a cabeça até pousá-la no seu regaço. O cheiro a urina era insuportável. Afagou-me o cabelo. Começou a falar de coisas sem consciência, perdida no labirinto da sua loucura. Levantei a cabeça e aproximei o meu rosto do seu. Perguntei: tia Amélia, não se lembra de mim? A Rosarinho? Começou de novo numa ladainha interminável. - Gostaria tanto de a levar comigo – disse eu à auxiliar que estava connosco. - Para lhe ser franca, minha senhora, não a aconselho a fazê-lo. Uma pessoa assim dá muito trabalho, é um grande fardo para carregar…e depois, ela não lhe agradeceria; perdeu a memória completamente. Há momentos que lhe dá para cantar coisas sem nexo; depois chora, grita, despe a roupa, rasgaa, arranha-se toda… às vezes somos forçadas a amarrá-la à cadeira. Em poucos instantes estava rodeada de homens e mulheres; gente carente de amor e carinho. Rostos inexpressivos, olhos sangrentos, corações feridos, almas completamente despidas. Gente que já viveu todas as alegrias a que tinha direito. Corpos cansados, esgotados de vida, onde há muito se calara a voz da esperança. Um velhinho curvado, apoiado numa bengala, disse-me com a lágrima no olho. – Não fique triste por a sua tia ter perdido a memória; melhor para ela. Sabe menina, quando somos novos, cheios de vida, amamos e somos amados; pensamos que somos os donos do mundo, que tudo nos pertence; depois de velhos não temos nada, estamos vencidos, traídos pela própria vida. Sentimos que a vida nos escapa por entre os dedos como areia da praia, e já… já não vale a pena lutar. - Eu tenho sete filhos, – disse uma senhora vestida de negro, com muito bom aspecto, faces coradas, e toda rechonchuda – dei-lhes tudo o que era meu, para que ficassem bem de vida. Sabe qual foi o pago que me deram? Enfiaram-me aqui dentro… e galinha de campo não quer capoeira!

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Isto não se faz, tanto que eu trabalhei – disse com voz chorosa. – Desprezaram-me. Nem filhos, nem netos; ninguém quer saber de mim. – Tirou um lenço de dentro da algibeira da bata, limpou as lágrimas e assoou-se com estrondo. - Talvez apareçam no meu funeral. A porta da sala rangia sempre que alguém entrava ou saía. Uma velhinha entrou com passinhos curtos, travados. Rosto miúdo, a boca encovada, pela falta de dentes. O cabelo liso, cortado a direito ao nível do queixo. Parou junto de nós. - Então boneca, destes corda aos sapatos, foi? Não paras um bocadinho! – Gracejou a auxiliar. - Quem é? – Perguntou esticando o queixo na minha direcção. – É filha? - É sobrinha. – Gritou-lhe ao ouvido. - És surda como uma porta. Outra, dirigiu-se para uma mesa tacteando, como se procurasse alguma coisa; fez cair alguns objectos. Recuou assustada, arrastando os pés. - O que queres daqui? – Perguntou uma auxiliar com cara de delambida. – É todo o dia a mesma coisa, senta-te. A velhinha enroscou-se num velho cadeirão entre um monte de almofadas. Ajeitou a saia em cima dos joelhos; pouco depois dormitava, cabeceando. Da cozinha chega-nos o barulho dos tachos e panelas, e um cheirinho agradável espalha-se no ar. Uma mulher gigantesca entrou na sala; os seus passos entoavam, tinha um sorriso simpático. - É a directora, se quiser falar com ela… – informou a auxiliar. -Claro que quero, muito obrigada. Recebeu-me num pequeno gabinete, onde conversámos durante alguns minutos. Eu estava visivelmente transtornada. - Desculpe, foi um grande choque para mim. Não esperava encontrá-la num estado tão deplorável.

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- Compreendo. Sabe, para estes homens e mulheres, a verdadeira velhice começa no dia em que ficam viúvos. Sozinhos e tarde demais para recomeçarem uma vida nova, de repente, deparam-se com uma vida sem sentido. Perdem o controlo sobre eles próprios e o destino. A maioria não quer de forma nenhuma, ser um peso para os filhos; então, começa a ser difícil envelhecer com dignidade. Muitos entregam-se aos seus próprios desgostos, e ninguém consegue arrancar-lhes um sorriso, por mais ténue que seja. Arranjo sempre disponibilidade para ouvir e consolar quem precisa; e quando nós nos damos aos outros, sentimo-nos renovados, úteis…sem essa componente a minha função aqui não faria sentido. Voltei à sala para me despedir; estava meia adormecida; uma sonolência senil. Pobrezinha, vive numa absoluta indiferença a tudo o que a rodeia, numa espécie de amnésia em relação à vida e ao mundo em geral. Que ser misterioso é esse, que habita o seu cérebro e a impede de ser quem era? A piedade era, agora, a única forma possível de amor que eu lhe podia oferecer. Saí para a rua com a alma vazia, com a sensação de ter saído dum cemitério para vivos. Meia dúzia de velhos sonolentos estavam sentados no jardim. Sem querer dei por mim a antever a minha própria velhice. Pedro esperava-me encostado ao carro, de braços cruzados. - Desculpe fazê-lo esperar tanto tempo. - Disse-lhe com voz dorida. Ajudou-me a entrar no carro. Recostei-me no banco e as lágrimas reprimidas soltaram-se dos meus olhos. Pedro colocou a mão sobre o meu ombro, – chore, às vezes chorar pode ter o mesmo efeito dum purgante; limpa-nos por dentro. Fechei os olhos. Duas imagens saltitavam dentro da minha cabeça como bolas de pingue-pongue: a tia Amélia de outros tempos, amante do luxo, alegre, divertida; e a tia Amélia de hoje, reduzida a destroços.

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Depois dum silêncio amistoso, a tempestade já havia acalmado um pouco dentro de mim… Pedro sugeriu que fossemos beber qualquer coisa. Aceitei. Deixamos o carro no parque de estacionamento e fomos a pé à procura dum bar. Sorriu com empatia e colocou o braço sobre os meus ombros. Senti o apoio do pai que nunca tive. Debatia-me com uma amarga sensação de culpa. – Tudo seria tão diferente se eu estivesse presente. – Pensei em voz alta. Com a mão pousada firmemente no meu ombro, parou e fez-me parar, colocando-se à minha frente. Olhou-me com aqueles seus olhos azuis, encantadores, e disse: - Que idiotice! Oiça Rosário, não pode passar o resta da vida a culpabilizar-se por tudo o que aconteceu aos outros. Aprenda a aceitar as coisas com naturalidade. – Continuamos lado a lado descendo a rua. – Você é uma das mulheres mais belas que eu alguma vez tinha visto. Calou-se abruptamente, como se tivesse dito algo que não era para dizer; no entanto, uma vez que começou, achou por bem terminar – E… uma mulher linda e triste não combina. Senti-me corar até à raiz dos cabelos. Fiquei tão perturbada que nem tive palavras para agradecer o elogio. Caminhamos em silêncio. Um silêncio incomodativo… - Já reparou, que aqui as ruas são todas a descer? - Não, acho que são todas a subir. - Respondi num tom provocador. - Bem, acho que ambos temos razão. Rimo-nos como dois adolescentes.

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Gostei do seu ar descontraído, jovial. Vestia calças de sarja cremes, pólo azul claro a condizer com os olhos, sapatos cor de mel, e cinto da mesma cor; uma pessoa que prima, pelo seu bom gosto, o que o faz parecer consideravelmente mais novo do que de facto é. Entrámos num bar, com ar condicionado. O ambiente fresco contrastava com o calor horrível que se fazia sentir lá fora. - São quase seis horas! – Exclamei – ao olhar para um relógio colocado na parede. - E depois, que importância tem isso!? – Respondeu com ar despreocupado. Palmela está em festa, segundo nos informou a senhora do bar. - As festas das vindimas. Não conhecem!? – Perguntou incrédula. - Não somos de cá – justifiquei-me. - Realiza-se todos os anos no primeiro fim -de -semana de Setembro. – Continuou com habilidade de cicerone. – Hoje, terça-feira, é o último dia das festas; se puderem, fiquem para ver. O fogo-de-artifício no castelo é um espectáculo a não perder. Os nossos olhares encontraram-se perscrutadores. - O que acha? – Perguntou o Pedro. - Por mim tudo bem. - Respondi. – E as suas galinhas, quem lhes dá de comer? - Você saiu-me uma grande feminista! – Disse com o ar muito sério – por algum momento se preocupou com os meus galos? Não, apenas se preocupou com as galinhas; vocês mulheres, são todas assim! Tapei a cara com a mão e ri-me, como já há bastante tempo não o fazia.

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- Estão muito bem-dispostos – observou a senhora do bar, enquanto limpava o balcão. – Acho que resolveram ficar. - Concluiu. - Parece que sim – respondi prontamente, ainda embalada pela brincadeira – sabe porquê? Porque este senhor é um irresponsável, tem uma capoeira cheia de galinhas…e de galos, e não está minimamente preocupado que morram de fome. Rimo-nos os três. Aproveitamos o resto da tarde para saber mais sobre esta vila maravilhosa. Visitámos o castelo donde pudemos contemplar uma vista panorâmica sensacional: as serras de S. Luís, do Louro e os seus antiquíssimos moinhos, a serra de S. Francisco, todas elas integradas no maravilhoso parque natural da Arrábida. Ao longe avista-se o rio Sado, a península de Tróia, a cidade de Setúbal e a imensidão dos campos em redor, onde predominam as vinhas. Palmela é justamente célebre pelos seus vinhos de grande qualidade e renome internacional. Além da beleza natural, Palmela é rica em património histórico. O castelo tem uma pousada, um convento e, no exterior, a igreja de Santiago, um belo monumento gótico, quatrocentista. Descendo, viemos encontrar a igreja de S. Pedro; um belíssimo templo decorado a azulejos e, em frente, no mesmo largo, o belíssimo edifício dos paços do conselho. Continuámos a nossa caminhada por ruas inclinadas de casa antigas. Sentámo-nos num belo jardim para descansar um pouco, estávamos estafados. Procurámos um lugar, onde pudéssemos jantar. E por aquilo que nos foi dado a provar, também concluímos que a gastronomia de Palmela é rica e saborosa. Como entrada, comemos um delicioso queijo de ovelha, de Azeitão. Eu escolhi uma sopa de tamboril com poejos, e o Pedro preferiu

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coelho com feijão. A sobremesa foi igual para ambos: pêra cozida em vinho moscatel. Quando saímos do restaurante deparámos com uma multidão de gente e o som tão peculiar das festas e romarias. A noite estava fresca, todavia, agradável. Deixamo-nos conduzir ao sabor de toda aquela euforia. Aproximeime duma bancada de artesanato; não sei porquê, mas este tipo de coisas atraem-me como um íman. – Pedro, espere; deixe-me dar uma vista de olhos. Mostrei-me interessada por um pequeno pote pintado à mão. Perguntei o preço e pedi que o embrulhasse. Pedro aprontou-se a pagar. - Não. Nem pense. – Disse-lhe com firmeza. - Não posso oferecer-lhe uma recordação deste dia maravilhoso que passámos juntos? – Perguntou muito sério, quase ofendido. Calei-me e deixei-o pagar sem fazer alarido. Assistimos ao desfile do cortejo alusivo às vindimas e, mais tarde, ao tão esperado fogo-de-artifício. Era de facto um magnífico espectáculo. Eram quase três da madrugada quando regressámos à pousada do castelo, onde pernoitámos. Eu estava exausta. Tomei um banho e, por muito pouco, não me deixei dormir na banheira. Encontrámo-nos para tomar o pequeno-almoço já passavam das dez horas. - Se não se importa eu gostaria de passar pelo lar para me despedir da minha tia. – Pedi, na certeza de que não iria contrariar essa minha vontade. - E vão deixá-la entrar, a esta hora? - Veremos.

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Fui recebida pela mesma auxiliar que me recebeu no dia anterior. Precipitou-se para mim. Os seus olhos estavam imóveis, fixos nos meus. Uma expressão carregada, próprio de quem é portador de más noticias. - O que aconteceu? – Perguntei inquieta. - A senhora nem vai acreditar! A sua tia faleceu durante a noite. Lamento muito… é a única coisa que lhe posso dizer. - Não lastime, foi o melhor para ela – disse-lhe calmamente. Pestanejou, espantada com a minha reacção. “ Aprenda a aceitar as coisas com naturalidade” estas palavras do Pedro ditas no dia anterior ressoaram no meu espírito. Resolvi seguir o seu conselho. É preciso encarar a vida bem de frente, olhos nos olhos, e nunca nos deixarmos intimidar pelas suas adversidades. - Coitadinha! – Continuou ela condoída – a emoção foi forte demais e o coração não aguentou. - Acha então que ela me conheceu? - Acho que sim. E a prova está à vista. - Podia ter sido coincidência. Abanou a cabeça e franziu o nariz. Dias depois do funeral, fui notificada a comparecer num escritório de advogados em Setúbal. Deduzi de imediato que se trataria de algo relacionado com o falecimento da tia Amélia. Ficou provado em tribunal que eu seria única e legítima herdeira, de todos os seus bens. Madalena andava atarefada a lavar as roupas dos filhos; junto do tanque, uma enorme selha, onde ia depositando a roupa já lavada. Como eu tinha saudades daquele cheirinho a sabão. Lavar roupa no tanque sempre foi

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uma tarefa que eu fazia com prazer; esfregar a roupa até fazer espuma e depois ver a sujidade a dissolver-se na água. Fiquei a observá-la: num gesto rápido e pujante pegou na selha e levou-a para junto do estendal, pendurando peça por peça com molas de plástico, até não haver mais corda nem roupa dentro da selha. Depois, derreada de cansaço, dirigiu-se para junto do chiqueiro. - Uma porca pariu durante a noite; de vez em quando, é preciso deitar um olhinho para ver se está tudo bem. – Disse caminhando à minha frente. A porca roncava à medida que os leitões disputavam sofregamente a teta a que tinham direito. Quase me senti emocionada. – Que amorosos! – Não imaginas como é bom voltar… - Eu então queria tanto sair daqui, para onde a vida é mais fácil. Estou cansada de tudo… – interrompeu com a voz lamuriosa. Baixou a cabeça; os seus olhos tinham lágrimas, reparei. - Sempre o mesmo céu, os mesmos horizontes…como é a vida lá nesse país onde estiveste? – Perguntou. - Não te iludas Madalena, a vida lá fora é um inferno, uma correria; quantas pessoas davam tudo para estar no teu lugar. – Respondi, com o intuito de a consolar; no entanto, pareceu-me melindrada com a minha resposta. – Em toda a parte do mundo as pessoas vivem em lugares que não gostam, trabalham em coisas que não gostam, são obrigadas a conviver com pessoas de quem não gostam; queixam-se de falta de espaço, de falta de tempo, de falta de respeito… a maioria das pessoas não são felizes, nem acreditam na felicidade; muitas já não acreditam em nada…São autênticas máquinas andantes. - Não me venhas com essas conversas. O mundo mudou, eu vejo na televisão; o mundo de ontem, não é o mesmo mundo onde vivemos hoje… só aqui continua tudo igual.

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- O que é que vês na televisão? Telenovelas, aposto. Tirou os óculos e limpou as lágrimas com a ponta do avental. – Para aqui estou enterrada neste fim de mundo… deixou a frase esmorecer nos lábios, com o olhar perdido no horizonte. - Olha para os teus filhos Madalena; vê-los crescer felizes e saudáveis é o melhor que podes querer da vida. – Continuei numa tentativa de a ajudar a aceitar melhor as coisas. No velho tanque cheio de água as crianças divertiam-se, chapinhando. Os seus guinchos de satisfação chegam até nós como que a reforçar o que eu acabara de dizer. Uma rabanada de vento trouxe-nos o cheiro desagradável da pocilga e as moscas esvoaçam à nossa volta, incomodativas. Os porquinhos adormeceram e a mãe também. - Anda, vamo-nos sentar ali debaixo daquele sobreiro. – Sugeri. - Acho que estou grávida outra vez. Abanei a cabeça, e respirei fundo, palavras para quê!? – O teu marido é bom para ti? – Perguntei em nome da nossa velha amizade. - Se não quiseres dizer, não digas. - Quando não está bêbado… - E quando está!? - Quando está, não vale uma merda. - Disse com raiva. - Tem súbitos ataques de mau génio, – continuou no mesmo tom. - Pensava que chegava aqui e era dono disto tudo; mas quem põe e dispõe, por enquanto, ainda é o meu pai. – Houve um breve silêncio, depois continuou: - Chego a pensar que se embebeda propositadamente, para soltar a língua e dizer aquilo que sóbrio não seria capaz. Faz-nos a vida num inferno. Sinto-me asfixiada pelo casamento; isolada do mundo, rodeada de filhos, submissa a um marido sem

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carácter, que não respeita, nem se faz respeitar. É a primeira vez que falo da minha vida intima com alguém. – Disse, como se estivesse a cometer uma imprudência. - Sinto-me de mãos atadas, sem poder fazer nada. Fiquei comovida com a partilha de todos os seus segredos; até os mais recônditos. Apesar de todos estes anos de separação verifico, que a nossa amizade continua viva. - Talvez nunca tivesses feito nada para mudar as coisas. O casamento nem sempre é para a vida toda. Desculpa, mas admira-me como te submetes a isto. - Que hei-de eu fazer? Tenho os meus pais que precisam de mim. - Precisam de ti, disseste muito bem; não dele. Se tu própria dizes que ele vos faz a vida negra… mais uma vez peço desculpa, não devia…Podes contar sempre comigo, ajudar-te-ei no que puder. - Fome não passamos, não senhora. Tenho a horta, a capoeira cheia de galinhas; de vez em quando mata-se um porquito e cá vamos vivendo. - Não é esse tipo de ajuda a que me refiro. Olhei os seus olhos pequeninos, aumentados pelas lentes espessas como fundos de garrafa, e pensei: coitada, não tem beleza, nem esperteza. - Nunca fizeste nada para sair daqui? - Não fiz nada!? – Disse, com os olhos desmedidamente abertos. – Enganaram-me bem enganada! - O que queres dizer com isso? - Não te contaram!? Deixaram que pensasses mal de mim, durante todos estes anos, trafulhas! – Falou com tanto rancor. – Lembras-te, daquele dia do assalto? - Lembro-me, mas prefiro esquecer. – Respondi.

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- Foi tudo armado. A tua tia, é que preparou isto tudo; disse que era a única forma de te levarem daqui e, se eu colaborasse, depois levavam-me também. Trouxe aquele tipo, que eu não conhecia de lado nenhum, para fazermos aquele teatro todo. Eu fiquei paralisada – Que conversa parva é essa? - Não é conversa parva não; tenho carregado esta cruz durante todos estes anos, sem sequer me poder justificar… – o seu olhar luzia de indignação. - Ó Madalena, aquilo que me estás a dizer, é muito grave. - Vocês têm de sair daqui. – Disse-me a tua tia; parece que a estou a ouvir. – É um dó de alma duas raparigas lindas enterradas neste fim de mundo. Olha para mim e olha para a minha irmã, consegues ver a diferença? Se eu tivesse continuado aqui hoje estaria como ela: uma camponesa sem modos, nem apresentação. A cidade faz de nós outras pessoas. - Meu Deus!!! Como se atreveu a interferir no meu destino, duma forma tão abusiva!? Madalena tremia, diante de mim… – estou tão nervosa que quase não me seguro de pé; não imaginas como é doloroso, para mim, falar sobre isto tantos anos depois. – Disse, com as lágrimas a jorrarem dos seus olhos. - Compreendo. – Coloquei a minha mão sobre o seu ombro, compassiva. - Acalma-te. Tu eras como uma irmã, julgas que esqueci? Farei tudo para te ajudar, não guardo ressentimentos; o que passou, passou. Não te tortures mais, vais ver que agora ficas mais leve e, afinal, temos de compreender que a intenção era boa… “ Quem quer o que Deus não quer, há-de ser o que Deus quiser.” Não se deve contrariar a ordem natural das coisas; e eu sinto que aqui é o meu lugar, o lugar donde nunca deveria ter saído. Pensei: se nunca tivesse saído daqui, talvez estivesse como ela cheia de filhos, de miséria e cheia de vontade de sair daqui.

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As crianças correram ao nosso encontro ainda molhadas e com os lábios roxos por terem estado demasiado tempo dentro de água. Tirei do meu saco algumas guloseimas, que levava propositadamente para eles. Esticaram as mãos e os olhos curiosos. - Estes são para ti Madalena. - Obrigada, há tanto tempo que não comia bombons! – Disse, com alguma tristeza. O tio Augusto vem chegando, mancando, mancando… saudou-me tirando o chapéu e inclinando-se para a frente. - Então como vai a vida? – Perguntei, num tom familiar. - Ora, vai de mal a pior. - Respondeu.

Quando regressei, Pedro andava na horta, a colher tomates para dar às galinhas. - Então que cara é essa, parece que viu algum fantasma!? - Foi mais ou menos isso. Contornei a casa e sentei-me junto da piscina. Recostei-me na cadeira, cruzei os braços atrás da nuca e deixei-me ficar, com os olhos fechados e a brisa da tarde a beijar-me as faces afogueadas pelo calor. A minha cabeça estava cheia como uma panela de pressão. Há coisas tão difíceis de aceitar, de compreender… recordo as palavras da auxiliar: “ Coitadinha, a emoção foi forte demais e o coração não aguentou.” Afastei maquinalmente uma madeixa do cabelo que teimava em cair para os olhos. E a Madalena, grávida de novo. Toma anti depressivos como quem come tremoços e não toma a pílula porque tem de a ir buscar ao centro de saúde a Évora, e… não é fácil. – Diz ela. Como é que alguém pode entender uma coisa destas? Será mais fácil criar um filho, indesejado?

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Cap.19 No dia seguinte levantei-me cedo e decidi fazer uma limpeza na casa, que fora dos meus avós; por muito que me custasse era uma tarefa que queria ser eu própria a fazer. As obras, estavam quase a começar, não podia adiar por muito mais tempo. Numa caixa de madeira coberta de pó que o tempo fora acumulando, encontrei o espólio de uma vida. Com as mãos trémulas, encontrei um cordão de ouro que a avó herdara de sua mãe. Embrulhada num pedaço de tecido estava uma libra em ouro, uns brincos, uma pulseira e o relógio do avô. Num envelope havia fotografias, uma escritura dum terreno, uma certidão de nascimento, o meu cartão de vacinas, o meu diploma da quarta classe, e outros papéis cheirando a mofo. No meu quarto de menina vasculhei as gavetas à procura da minha infância. Encontrei bugigangas que hoje são uma relíquia para mim, pechisbeques: anéis, pulseiras, um colar de missangas, um estojo com lápis de cor, cadernos, livros, e um envelope cheio de retratos amarelecidos pelo tempo. Numa outra gaveta um vestidinho azul; lembro-me agora tantos anos volvidos, como eu odiei este vestido! «Mirei-me ao espelho do meu quarto; eu estava linda no meu vestido de tafetá azul celeste, soquetes brancos e sapatos de verniz preto. A avó fez-me duas tranças com as pontas atadas com uma fitinha. Era um dia tão especial para mim; eu ia passar uma semana a casa da tia Amélia em Setúbal. Guardarei esta imagem na minha memória até ao final dos meus dias. Conheci rapazes e raparigas que viviam na mesma rua e no mesmo prédio onde vivia a tia Amélia. Andavam todos em bandos, como aves tontas. Lembro-me dum rapaz gordo, cheio de borbulhas, que não tirava os olhos de mim; senti-me tão envergonhada… senti que estava num mundo diferente daquele a que estava 219


habituada; todos falavam de coisas diferentes, faziam coisas diferentes e vestiam de forma diferente: calças de ganga, t-shirt e ténis. Senti-me uma reles camponesa fora de moda. Odiei o vestido e tudo o resto, incluindo a mim própria.» Guardei tudo de novo dentro da caixa de papelão.

A meio da manhã havia lá fora um monte de móveis velhos carcomidos pelo caruncho, colchões e roupas para queimar. Naquele amontoado de coisas estava um pouco de mim, da minha infância… Estava a ficar demasiado cansada; por isso resolvi deixar o resto, para fazer ao entardecer quando o dia começasse a refrescar. À medida que ia caminhando ia fazendo uma espécie de meditação sobre a vida; sentia -me triste. Queria tanto os meus avós vivos! À minha frente, a três passos de mim, um lagarto enorme ficou imóvel, com o pescoço esticado para a frente, a cabeça no ar e as patas traseiras bem fincadas no chão, em posição de arranque. - Vá lá bichinho, segue o teu caminho e deixa-me seguir o meu. Dei um passo em frente; assustado, correu para baixo dum mato. Reparei que tinha a pele toda arrepiada e o meu coração batia assustado dentro do peito; confesso que nunca morri de amores por répteis, bem pelo contrário. No entanto, não passa dum animal inofensivo, medroso e cobarde. Continuei o meu caminho matutando na vida. Sentia saudades do meu filho; fazia-me tanta falta! Remexer em todas estas coisas do passado deixou-me demasiado abalada. Jean-Pierre tem razão quando diz, que viver aqui é viver permanentemente no meio de recordações, mas elas fazem parte da vida.

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Estava imunda, coberta de pó e teias de aranha; libertei-me das roupas e tomei um banho. Pedro estava no jardim estiraçado em cima da espreguiçadeira. Senteime à beira da piscina, descalcei os ténis e mergulhei os pés na água. A diferença brusca de temperatura provocou-me uma espécie de calafrio. Tentei descontrair um pouco; a manhã tinha sido demasiado cansativa e emotiva. Pedro aproximou-se pé ante pé e veio sentar-se a meu lado. Vi a nossa imagem reflectida na água; procurei manter-me calma, com naturalidade. O meu coração voltou a pular dentro do peito, agora por motivos bem diferentes. Olhei para ele; a sua calma transmitiu-me paz e tranquilidade. - Que carinha triste é essa? – Perguntou num tom compassivo. - Nostalgia. – Respondi muito sucintamente. - Sabe Rosário, tenho andado a arranjar coragem para lhe dizer o que me vai na alma. – Disse com uma integridade genuína. - Desde que aqui chegou não consigo tirá-la do meu pensamento; acho mesmo que foi amor à primeira vista. - Fez uma pequenina pausa – Acredita no amor à primeira vista? Senti dentro do peito a excitação do primeiro amor. Eu estava tão carente de afecto. – Acredito no amor… – Por favor, fique comigo. – Continuou. - Sei que também não lhe sou indiferente; estamos os dois sós, os nossos filhos têm a vida deles, o que é natural. - Vou pensar, – respondi – sabe, eu já não sou nenhuma adolescente; não é uma decisão para tomar assim, de ânimo leve. - Claro, compreendo, de facto eu já não sou adolescente; você é. Não será isso que quer dizer? – Disse pousando a mão sobre o meu ombro. Rimo-nos.

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Ter a meu lado, um homem que me ame, que me respeite, e que me faça sentir mulher… tinha de confessar a mim própria que era, no mínimo, uma ideia sedutora. Depois do jantar, convidou-me para ir-mos a Évora; que convite agradável! - Pensei. Saímos ao entardecer, com o sol a esconder-se atrás dos montes azulados. Estava uma noite romântica, a praça do Geraldo era um lugar maravilhoso. As pessoas passeavam devagar, iludidas no seu conforto. Saem depois do jantar para tomar café e dar um passeio antes de ir para a cama. Grupos de jovens, na sua maioria estudantes de fora que a cidade acolheu de braços abertos e que eles retribuem, dando-lhe mais vida e alegria. Entrámos num bar, sentámo-nos; uma rapariga magra serviu-nos o café. Pedro levou a chávena à boca e bebeu um pequeno gole; observei o seu rosto iluminado pela luz artificial. Apercebi-me que o que eu nutria por ele era, na realidade, um sentimento sincero e eu queria provar a mim mesma que era uma mulher, com muito para dar e receber. Colocou as suas mãos sobre as minhas; olhei para os seus dedos esguios e o anel de ouro, com uma pedrinha branca, cintilou. Senti-me embaraçada, enquanto ele brincava com os meus dedos, deliberadamente. - E se eu a convidar para dançar, aceita? – Perguntou repentinamente. - Dançar!? – Gaguejei – eu já não sei dançar. Dançar, é como andar de bicicleta, nunca mais se esquece. - Partindo do principio que, eventualmente, tenha aprendido quer uma coisa quer outra.

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- Vamos ver. Segurou-me na mão, puxou-me para o meio da sala e começamos a dançar. Senti a música invadir o meu espírito e o meu corpo. Colocou o braço à volta da minha cintura e os dois girámos na sala, possuídos duma doce loucura. Senti uma vontade enorme de ser amada. Encostei a cabeça no seu ombro e fechei os olhos, sentindo uma suave sensação de embriaguês. Regressámos já de madrugada, com os corpos transpirados e a roupa colada à pele. - Quero agradecer-lhe esta noite, não imagina como me diverti. – Disselhe enquanto tirava um copo de leite do frigorífico. - Há tantos anos não dançava! - Juro-lhe que não parece. – Disse, aproximando-se de mim. Tirou-me o copo da mão, colocou-o em cima da mesa, e… Recomeçamos a dançar ao som duma música que só existia dentro de nós. Num assomo de loucura, rodopiamos através da cozinha, do corredor... Comecei a rir à gargalhada. - O que é que lhe deu? – Perguntei ofegante. Deixou-me cair no sofá, e ficou a olhar para mim com o rosto brilhante de suor. Peguei na sua mão e puxei-o para mim. De repente senti o meu corpo içado no ar e os seus braços fortes à volta de mim. Deixou-me cair sobre a cama e, num ímpeto de paixão, beijámo-nos com sofreguidão. Senti os seus lábios quentes e húmidos no meu pescoço e o toque suave das suas mãos nos meus seios; depois o seu corpo penetrou no meu e um espasmo de prazer percorreu todo o meu ser. Entreguei-me de corpo e alma; os nossos corpos estavam sedentos de amor. Saciados, adormecemos nos braços um do outro. Foi a noite mais linda de todas as noites e eu estava-lhe grata, por me ter feito tão feliz.

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Mexeu-se preguiçosamente na cama; bocejou, abriu os olhos e olhoume com um sorriso nos lábios, fez-me uma carícia no rosto e murmurou: - Amo-te tanto. Eu não sabia que um homem da minha idade pudesse apaixonar-se assim, tão loucamente; sinto-me como se tivesse vinte anos. - Eu também te amo muito. Esperei um amor assim durante toda a minha vida. - Nada na vida acontece por acaso; tenho a certeza que Deus me mandou para aqui para esperar por ti. Abraçou-me com força e os seus lábios colaram-se aos meus, ansiosos. Deixei-me ficar nos seus braços, entregando-me aos seus beijos, com a certeza de não haver no mundo inteiro ninguém mais feliz do que nós. Abri as portadas das janelas, para que a luz entrasse. - O sol já vai alto, – disse surpreendida – devem ser quase horas de almoço! - E depois, que importância tem isso, tens hora marcada com alguém? – Perguntou, no seu jeito brincalhão a que já me tinha habituado. Em cima da mesa-de-cabeceira o rádio despertador marcava onze horas. - Tenho de ir à câmara Municipal, para tratar duma papelada; burocracias! - Óptimo, aproveitamos e almoçamos por lá. – Disse com entusiasmo quase adolescente. Ambos comemos cabrito assado no forno, acompanhado dum bom vinho da região, e terminamos a refeição com um delicioso arroz-doce. O empregado trouxe uma garrafa de espumante e servi-o perante o meu ar de surpresa. Pedro pegou no seu copo e tocou no meu dizendo: Ao nosso amor. - Ao nosso amor. – Repeti antes de levar o copo à boca.

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Pousou o copo, pegou nas minhas mãos, e levou-as aos lábios. Pedro é um homem sensual e bastante atraente. Acordei acompanhada duma doce e serena alegria. Tomámos o pequeno-almoço. Da janela da cozinha avistei um dia esplêndido, cheio de sol. Senti-me feliz, em paz com o mundo e com a minha consciência; eu merecia esta felicidade… Ó Deus, como merecia! A vida estava a oferecer-me agora a recompensa por tudo aquilo que me fez sofrer. Vesti uns calções, uma blusa de alças e calcei uns ténis. Senti uma vontade louca de correr por aqueles campos, como fazia há tantos anos atrás. Senti-me de novo criança. Saí sem destino, com a aragem matinal a lamber-me o rosto. Lembrei-me de todos aqueles anos que estive privada da liberdade e de como aprendi a dar mais valor às coisas simples da vida. Jamais acharia este dia tão maravilhoso se não tivesse passado por momentos tão difíceis. Subi ao cimo do monte, onde tantas vezes assisti ao nascer do sol; dali avistava-se um imenso vale, onde pastava um enorme rebanho de ovelhas. Aquele som tão familiar trouxe-me uma nostalgia ímpar. Ouvi uma voz longínqua que chamava por mim. Olhei para trás, era o Pedro; acenei com a mão e esperei por ele. Descemos por ali abaixo. A descida não exigia grande esforço, apenas um ligeiro travão, feito pelos pés bem fincados no chão, para evitar o excesso de velocidade. O rebanho levantava uma nuvem de poeira que batia na nossa cara e entrava pela boca, pelos olhos… como eu tinha saudades de tudo isto! Regressámos a casa felizes, como Adão e Eva no paraíso.

Ouvi um carro buzinar; era a Inês no seu “dois-lugares” descapotável. Pedro estava no jardim a cuidar das plantas e foi abrir o portão.

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- Sozinha!? – Perguntou, mal ela saiu do carro. - Eles vêm mais tarde. – Informou. – O Hélder passa no colégio para ir buscar o João e a Patrícia. O Miguel e a Margarida devem estar a chegar também; quando eu sai do hospital eles estavam a sair de Lisboa. Inês é enfermeira, e o marido é bancário. Pedro já me havia falado sobre isso. A rapariga que estava à minha frente nem parecia a mesma que eu conheci quando aqui cheguei. Vestia um fato escuro duma elegância incomparável. Os seus cabelos caíam sobre os ombros como anéis de ouro e sobre o decote, uma linda bijutaria. Tirou uma mala tipo executivo do porta bagagens e caminhou à nossa frente, com passo cadenciado e seguro. Entrámos. Sentou-se, cruzou a perna, tirou um cigarro da carteira e acendeu-o. – Então, contem-me lá, como vão as coisas por aqui. – Perguntou, soprando o fumo para o ar. Os olhos do Pedro, perscrutaram os meus e eu senti-me intimidada. - Muito bem. - Respondeu o pai com um leve sorriso. - Está com óptimo aspecto! – Disse, enquanto olhava as bolas de fumo que se formavam por cima da sua cabeça. - É melhor matar uma galinha para o jantar. O que acham? – Perguntou o Pedro, desviando o rumo à conversa. No final do dia, quando todos chegaram, havia galinha corada no forno e uma canja deliciosa. De repente, a casa encheu-se de alegria e boa disposição.

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A porta estava entreaberta, ao passar no corredor não pude deixar de ouvir uma conversa entre pai e filho. Miguel dizia: - Espero que as suas intenções em relação a ela sejam as melhores. Pense bem… há uma grande diferença de idade entre vocês. - Ó rapaz, isso nem parece teu, estás a falar como um velho. - Tem razão pai, já ninguém liga a essas coisas. O amor não tem idade, não é mesmo? - É mesmo, esta mulher trouxe um novo sentido à minha vida: sinto-me como se tivesse vinte anos. Miguel deu uma gargalhada sonora, e disse: - Vá em frente meu rapaz; força, tem todo o meu apoio. Depois do jantar, quando todos estávamos na sala e as crianças já tinham ido para os seus quartos, Pedro resolveu falar sobre o nosso envolvimento. Preparou um Whisky com gelo e veio sentar-se a meu lado no sofá. Com o olhar meigo, colocou o braço sobre os meus ombros. Não o coibi de o fazer, não havia razão para esconder; estávamos tão felizes e portanto era natural que quisesse partilhar com os filhos a nossa felicidade. A forma magnânima com que todos aceitaram a nossa relação, como me aceitaram na vida do seu pai, deixou-me extremamente emocionada; senti uma enorme ternura por aquela família que agora me pertencia também. Eu própria já havia participado a Jean-Pierre, que disse ter ficado satisfeito e mais tranquilo sabendo que eu não estava só neste fim de mundo. Estávamos já a meados do mês de Outubro e apesar de fazer ainda bastante calor durante o dia, as manhãs e as noites eram frias. Adquirimos o hábito de dar um longo passeio pela manhã, para nos mantermos activos durante todo o dia. Conversávamos bastante. Pedro possuía uma grande bagagem de conhecimentos; interessava-se por tudo o que se passava no mundo, lia os jornais diários e gostava de ver televisão, especialmente

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programas informativos, documentários, debates e, para além disso, tinha um sentido

de

humor

fantástico;

divertiamo-nos

imenso.

Tornamo-nos

inseparáveis, passava-mos juntos as vinte e quatro horas do dia sem nunca nos faltar tema de conversa. Vínhamos já de regresso a casa, eu virei-me para ele e disse em tom confidencial: - Sabes, às vezes tenho medo de ser tão feliz. - Que disparate é esse? – Perguntou com a testa pregueada de rugas. – Nunca ouvi nada tão absurdo! - Não sei, às vezes sou assolada por uma tristeza inexplicável, assim como… como hei-de explicar… um mau presságio. - Ora deixa-te de parvoíces. Medo de ser feliz!? Parou, pousou as mãos nos meus ombros e encarou-me bem de frente. Olhei no fundo dos seus olhos e vi a minha própria imagem; uma em cada olho como se duas Rosarinhos estivessem a olhar para mim. Tem graça como nunca tinha reparado neste pormenor, ou então nunca tinha olhado tão fundo nos olhos de ninguém. - Pois eu tenho medo é do contrário, continuou ele – e olha que já passei por momentos bem difíceis! – Disse pensativo. – Quando a minha falecida mulher morreu num acidente de carro, pensei que nunca mais iria ser feliz de novo… e, no entanto, hoje sinto-me o homem mais feliz do mundo e é assim que quero viver até morrer. Aproximam-se os dias cinzentos e melancólicos de Outono. As folhas vão-se desprendendo das árvores formando um tapete acastanhado por cima da relva, o que faz com que o Pedro ande numa roda-viva para manter o jardim impecavelmente limpo. Entretanto, estava tudo preparado para arrancar com as obras, na minha casa. O construtor trouxe-me os catálogos para eu poder escolher

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azulejos, mosaicos, armários, portas e janelas; assim eu não precisava de me preocupar com mais nada, a não ser passar um cheque de vez em quando. Recebi uma carta da Marie que além de dona da editora, se revelou uma grande amiga; nunca esquecerei que foi ela que encorajou o meu interesse pela escrita. Escrevi o meu segundo livro ainda em Paris e desde aí, não escrevi uma única linha. O meu espírito estava demasiado ocupado, foram tantas coisas… não escrevi, mas acho que vivi o suficiente que daria para escrever mais um romance. Curiosamente comecei a sentir necessidade de acalmar e voltar a escrever de novo. Por incrível que pareça nem sequer li nada, era imperdoável! - O que não falta nesta casa são livros. – Disse o Pedro levando-me até à sua biblioteca que ficava no sótão, uma dependência da casa que eu desconhecia por completo. Fiquei estupefacta, como é que alguém pode ter tanto livro!? - Está aqui uma verdadeira fortuna! – Pensei em voz alta. - Que maravilha! Que sensação maravilhosa! – Pensei. - Como se em cada livro eu reconhecesse um amigo. - Fica à vontade enquanto eu corto a relva. Aproximei-me e observei, atentamente tudo tão bem organizado. Ali havia de tudo: enciclopédias, obras completas de vários autores portugueses e estrangeiros,

os

clássicos

policiais,

romances,

poesia,

ensaios,

históricos…estava impressionada. Será que ele já leu tudo isto? - Questioneime. Existia uma ampla vidraça virada a sul por onde o sol entrava quase o dia inteiro, inundando toda a sala de luz e transformando-a num lugar excelente para a leitura. Ao canto, um vaso de terracota com uma enorme “ficus”de folhas reluzentes. Dois cadeirões de lona, uma mesa enorme de madeira que funcionava como secretária e uma cadeira de couro, giratória. Em cima da mesa um candeeiro e algumas molduras, com fotografias dos netos e dos

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filhos. Numa outra moldura, uma senhora ainda jovem que supus ser a sua falecida esposa. Daí em diante, a biblioteca passou a ser o meu refúgio, tanto nos momentos de lazer, como para trabalhar. Afastei as cortinas, abri a janela e espreitei. O vento trás até mim o cheiro da relva acabada de cortar. Pedro nunca solicita a minha ajuda para os trabalhos do jardim; ele mesmo, gostava de os fazer à sua vontade. Usava apenas uns calções, o tronco nu e pés descalços. Observei os seus músculos fortes e a pele bronzeada. Depois do nosso passeio matinal ocupava-se dessas tarefas até à hora do almoço. Depois dormia uma pequena sesta, lia, via televisão e às vezes íamos a Évora. À sexta-feira limpavamos a casa, e preparávamos as coisas para a chegada dos filhos e dos netos. A casa adquiria então uma nova alegria, o riso das crianças espalhava-se pela casa toda, pelo jardim e pelos campos vizinhos. Nós, as mulheres, dedicávamo-nos à cozinha que se enchia de cheiros agradáveis. Cozinhávamos, fazíamos sobremesas deliciosas e acima de tudo conversávamos, imenso, enquanto os homens se ocupavam de outros afazeres lá fora. O monte funcionava como um refúgio onde vinham carregar baterias para uma semana de trabalho, na cidade. E para nós, também era muito bom, ajudavam-nos a quebrar a rotina. Pedro entrou em casa com um cesto de ovos; entregou-mo e voltou a sair. As quatro galinhas poedeiras, davam ovos com fartura para nós, e para os filhos levarem. Ovos grandes, alguns têm duas gemas; gemas dum amarelo vivo, ao contrário da maioria dos ovos que se vendem por aí sem cor, nem sabor. Coloquei o cesto na cozinha.

Cap. 20 Tomei um duche, vesti o pijama, liguei a televisão e deitei-me no sofá. No ar pairava um cheirinho agradável. Ouvi os passos tranquilos do Pedro a entrar na sala, trazia na mão um lindo ramo de rosas. - Mima-me demais. 230


- Os mimos nunca são demais. – Sentou-se a meu lado, colocou o braço à volta do meu pescoço; recostei a cabeça no seu ombro e beijamo-nos demoradamente. - Tenho uma coisa para te dizer. – Sussurrei-lhe ao ouvido. – É muito importante. - O que é? – Perguntou com ar preocupado. - Não te disse hà mais tempo porque não tinha a certeza, mas já não restam dúvidas. - Estou grávida. – Disse-lhe por fim, receosa, de que essa notícia não o deixasse tão feliz, como eu esperava. Enganei-me. Nunca o tinha visto tão feliz. Essa manifestação de alegria contribuiu ainda mais para aumentar a minha felicidade. Senti uma calma e uma tranquilidade…Cada dia que passava sentia-me verdadeiramente recompensada. O sofrimento nunca é em vão. A vida estava a dar-me uma oportunidade para ser feliz; e como eu merecia! - Disseste um dia que achavas que Deus te tinha mandado para aqui para esperares por mim, acreditas mesmo nisso? - Acredito. – Disse meneando a cabeça, pensativo. - Eu também. Ele nunca me abandonou, esteve sempre a meu lado nos bons e nos maus momentos da minha vida. Levantei-me, estava comovida. Coloquei as rosas numa jarra com água para as levar para a biblioteca. Enquanto subia as escadas veio-me à memória aquela velha frase de Pierre: “ Um homem que não oferece flores, não sabe amar verdadeiramente” um calafrio percorreu o meu corpo e diante dos meus olhos, apareceu a sua imagem, tão real… a jarra escorregou-me das mãos e caiu no degrau ficando reduzida a cacos de vidro. Pedro veio em meu socorro. Fiquei imóvel, como um bloco de gelo. Porque é que isto havia de me acontecer, justamente num momento tão significativo para mim? - Estás bem? Cortaste-te? – Insistiu.

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Eu queria responder, porém não consegui pronunciar uma única sílaba. Estava em estado de choque; eu sabia que aquela aparição,era fruto da minha imaginação, foram os meus pensamentos que a evocaram, mas fiquei profundamente impressionada. - Ficas assim só porque partiste uma jarra? Respirei fundo e fiz um esforço para me acalmar. Um dia talvez lhe conte a história da minha vida; agora não seria o momento oportuno. Apanhei as rosas, uma a uma, e coloquei-as na cozinha. Sempre que subia as escadas lembrava-me deste incidente e ficava toda arrepiada. Então rezava a Nossa senhora de Fátima, a santa da minha devoção, todas as vezes que por ali passava. Levei alguns meses para esquecer aquela visão. Levantei-me e abri as portadas; o dia amanheceu cinzento, as nuvens aproximam-se rapidamente começando a cair grossas gotas de chuva. Que saudade, que eu tinha de ver chover!? Desde sempre que as chuvas nos trazem alegria, são tão escassas aqui no Alentejo. São as primeiras chuvas que fazem brotar as pastagens para o gado, que fazem germinar as sementes, que enchem as nascentes… Sem água não existe vida. Pedro ainda dorme. Corri as cortinas, para a claridade não o incomodar. Tomei um duche, desci até à cozinha, comi um iogurte e duas bolachas integrais. Chovia copiosamente, o vento soprava forte e em poucos minutos levantou-se uma tempestade de meter respeito. Fiquei de pé junto à janela a ver as árvores vergadas sob a violência do temporal. A casa estava escura e silenciosa. Foi tudo tão repentino, ainda ontem estava um dia lindo, cheio de sol. - Pensei. O tempo manteve-se frio e chuvoso durante toda a semana. Quando finalmente a chuva acalmou e apenas uns pingos esporádicos caiam de vez em quando, o sol espreitou através das últimas nuvens. O céu ficou de novo azul, tudo parecia belo e irreal. O efeito dos raios solares nas árvores ainda pingando, é um dos espectáculos mais lindos da natureza. Um melro cantou junto à janela, levantou voo para cima dum pinheiro. Calcei uns ténis e resolvi

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dar um passeio, estava um pouco cansada de estar tanto tempo enfiada dentro de casa. Uma águia enorme sobrevoava por perto procurando comida. Os sapatos enterravam-se na terra macia deixando o sulco dos meus passos bem marcados atrás de mim. O cheiro a terra molhada! Os campos estavam inundados de sol; estava uma manhã tranquila, quase perfeita. Senti vontade de correr por ali como fazia em criança, pés descalços, cabelos esvoaçando ao vento, saltitando e cantarolando… De repente, senti-me possuída duma felicidade inexplicável, senti-me de novo criança. Ouvi chamar. Parei e olhei para trás; Pedro vinha radiante, fui ao seu encontro. Acabara de receber um telefonema dum primo de Coimbra, a convidar-nos para o casamento da filha. - Queres ir? Perguntou com os olhos cintilantes. - Sim. – Respondi vagamente. Aí a conversa resvalou para a família. Dele apenas conhecia os filhos e os netos. Então falou de tios, primos, e muitos amigos que ainda conserva lá na aldeia, no distrito de Coimbra. - Porquê o Alentejo!? – Perguntei curiosa. - O Miguel estudou em Évora e apaixonou-se por este lugar. – Fez uma breve pausa – não é difícil, a primeira vez que estive neste lugar, e já foram há bastantes anos, também eu fiquei rendido. - Caminhou com as mãos nos bolsos, e o olhar preso no chão. - Mais tarde soube que esta propriedade se encontrava à venda e então resolvi comprá-la. Se de facto o paraíso existe, é aqui neste lugar; e é aqui que quero viver até ao final dos meus dias. Estava cansado de viver na confusão da cidade, nessa altura vivia em Lisboa, trabalhava para um jornal diário e já escrevia umas coisas... que mais tarde, publiquei com sucesso. Vendi uns terrenos que os meus pais me deixaram de herança e mudei-me para aqui dedicando-me, exclusivamente, à escrita. - Escrita!? Não acredito! Porque não me tinhas dito antes?

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- Não calhou. – Respondeu com um encolher de ombros. - Há com cada coincidência… – murmurei. – Só pode ser obra de Deus. - Estou a sentir-me um pouco cansada, vamos voltar para casa. - Estás a sentir-te mal? – Perguntou com ar preocupado. - Está tudo bem. Não te preocupes à toa. – Colocou o braço sobre os meus ombros e regressamos. - Já disseste ao teu filho que vai ter um mano? - Não. Quero fazer-lhe uma surpresa. No natal quando ele vier vai encontrar-me com um barrigão enorme. - Não sei se será boa ideia, poderá sentir-se melindrado. - Talvez tenhas razão, telefonar-lhe-ei hoje mesmo. – Disse decidida. Descalcei os ténis cheios de terra molhada, calcei os chinelos e entrei em casa com o coração a bater num ritmo acelerado. Deixei-me cair sobre o sofá, e deixei o meu espírito divagar. Um casamento. Já nem me recordo do último casamento a que assisti…será que assisti a algum? Não faço a mínima ideia. Na televisão, nos filmes... Talvez. Eu própria desejei um casamento para mim, como qualquer rapariga deseja, entrar na igreja cheia de convidados, toda vestida de branco… O que eu perdi da vida! Vieram-me à memória tantas recordações, tantos sonhos adiados, tantas esperanças perdidas. Pedro estava de pé observando-me, nem dei pela sua chegada. - Que se passa querida!? Não te sentes bem? – Sentou-se a meu lado, e envolveu-me nos seus braços. Encostei a cabeça no seu peito, ouvi o bater do seu coração. Limpei as lágrimas – A gravidez está a deixar-me demasiado emotiva. Jamais conseguirei liberta-me destes malditos fantasmas, do passado, prosseguem-me como uma sombra.

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Se eu lhe contar? Qual será a sua reacção? Será que me arrependerei mais tarde, caso ele me recrimine? Que faço meu Deus, eu preciso tanto de desabafar!? Desabafei. Contei tudo, tudo; ele precisava saber quem era a mulher que tinha entrado na sua vida dum dia para o outro e a quem ele abriu as suas portas e o seu coração, sem questionar nada. À medida que ia falando, eu temia a sua reação. Porém, a sua expressão mantinha-se calma e serena sem pronunciar uma única palavra, uma censura…Depois de eu ter finalmente acabado, disse de sua justiça: - Águas passadas, não movem moinhos! – Disse, com o seu jeito tranquilo. - Eu bem sei que não é fácil limpar da memória um passado tão difícil. Mas tenta pensar agora no presente, no nosso amor, no nosso filho que está para nascer. – Calou-se por breves momentos, com o pensamento ausente. - Sabes, eu também nunca casei; vivi dez anos com a mãe dos meus filhos e o tempo foi correndo e o casamento foi ficando adiado até que aconteceu aquele fatídico acidente, e… Mas se isso é tão importante para ti, casaremos; faremos uma grande festa e tu serás a noiva mais linda do mundo. – Segurou o meu rosto com ambas as mãos e beijou-me apaixonadamente. Este homem não existe! Senti-me merecedora desta felicidade. Acendemos a lareira, fizemos café e ficámos a ver televisão até a lenha se transformar em cinzas. Na manhã seguinte fomos a Évora, comprar roupas novas para o casamento. Curioso, de cada vez que ia a Évora, encontrava casualmente, antigos colegas de escola; raparigas cheias de filhos e os rapazes já homens, com aparência e mentalidade de velhos. Alguns já não me reconhecem, outros vêm ao meu encontro e juntos recordamos tantas coisas… – A professora Eulália morreu, sabias? - Não, não sabia… coitada! Ensinou a ler e a escrever tantas crianças, até lhe perder o conto, – como ela dizia, e continuava paciente e dedicada 235


como se tivesse a iniciar a sua carreira. Amava a sua profissão. “ E quem ama aquilo que faz é feliz e faz feliz os que estão à sua volta” – dizia. A ela devo a minha paixão pela escrita. Que Deus a tenha em bom lugar, ela merece-o. Pedro espera-me enquanto observa uma montra de sapatos. - Desculpa fazer-te esperar; são antigos colegas de escola, é tão bom voltar a vê-los. - Olha gosto daqueles ali – apontou para uns sapatos de camurça castanha – gostas? - Acho melhor comprares o fato e depois, então, os sapatos. - Tens razão, concordou. Passamos o dia inteiro de loja em loja. Quando já nos preparávamos para regressar a casa resolvemos petiscar qualquer coisa. Passamos em frente duma das poucas tabernas que ainda existem na cidade. Tinha um aspecto limpo. Atrás do balcão uma rapariga baixa, roliça, com a cara salpicada de sardas; reconheci-a de imediato, era Fátima, a “gordinha”como todos lhe chamavam. Chamei o Pedro e entrámos. Fátima, incapaz de disfarçar o seu embaraço permaneceu do lado de dentro do balcão. Sorriu, formando duas covinhas nas faces. Contornou o balcão e veio ao meu encontro. Trazia calças à meia canela, e top de algodão às flores - Estás igual, a mesma gordinha de sempre! – Disse-lhe. – Dá cá um abraço. - E tu por onde tens andado, ó trinca espinhas, que nunca mais deste sinal de vida? – Disse, enquanto me mirava da cabeça aos pés. – Estás bonita! - Tu também. - Respondi – Estive fora do País, e tu, o que tens feito?

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Respondeu com uma expressão humilde e tristonha. - Tenho esta taberna que me deixou o meu pai; passo os dias a aturar bebedeiras, é esta a minha sina. – Concluiu. Não conheces? – Indicou-me um velhote que se preparava para sair. - Então não conheço! O tio Jaime. Já está toldado pelo álcool, não me reconheceu. Sai porta afora cambaleando. Ri, fala com voz pastosa. Pára no meio da rua, meneia as ancas, como se estivesse a dançar o samba. Desequilibra-se, diz algumas obscenidades, e lá vai rua abaixo, iludindo a vida. - Coitado, é o vinho a falar por ele. Como diria Baptista Bastos: “ vale mais um bêbado conhecido, do que um alcoólico anónimo”. - Rimo-nos. - É um pobre diabo – disse a Fátima – Não tem ninguém, vive sem eira nem beira. - A sério!? – Perguntei incrédula. – Tinha tantos filhos. - Estão todos no estrangeiro, querem lá saber do velho. Meu Deus, preferia que tivesse ocultado de mim esta última parte, foi como se uma nuvem negra obscurecesse de repente o meu coração. Mandámos fazer uma bifana para cada um de nós, bebemos um copo de vinho branco e regressámos. A tarde avançava rapidamente; os dias já eram tão pequenos, estávamos nos finais de setembro. Pena que ainda não tivessemos comprado tudo, teremos de voltar outro dia. Fazer compras, quando não se sabe exactamente aquilo que se pretende é uma tarefa difícil e cansativa. A tarde de quinta-feira passei-a no cabeleireiro, enquanto Pedro se encarregou de comprar aquelas pequenas coisas que ficam sempre para o fim. Estava ansiosa por fazer aquela viagem, poder participar num casamento, apesar de não conhecer ninguém. De repente, deu-me uma

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vontade de sair, conhecer novos lugares, novas pessoas. Recordei velhos tempos, quando eu ia para Setúbal com a tia Amélia. Eu ficava eufórica; exactamente como me sentia naquele dia. Pus o despertador para as cinco e trinta da manhã. Precisava de tempo para tomar um duche, para me vestir, fazer a maquilhagem e apanhar o cabelo; uma hora seria tempo suficiente, no entanto, às cinco horas já estava de pé e não me sobrou tempo nenhum. Mais uma olhadela ao espelho, talvez tenha abusado na sombra…

Saímos bastante cedo, era ainda noite cerrada. Estava um nevoeiro espesso, não se via um palmo à nossa frente. Felizmente, quando entrámos na auto-estrada, o nevoeiro desapareceu como por magia. Parámos na estação de serviço de Palmela para abastecer o depósito do automóvel de combustível e aproveitámos para esticar as pernas. Tomámos o pequeno-almoço e bebemos um café. Os primeiros raios de sol apareceram no horizonte, o céu estava azul e eu também me sentia azul por dentro; a vida apresenta-se de novo em tons claros para mim, os momentos negros que vivi pertenciam ao passado. Chegamos relativamente cedo. Eu estava deslumbrada; era uma aldeia isolada, quase primitiva; aqui e ali algumas vivendas construídas recentemente, outras ainda em construção. Quase todas pertenciam a emigrantes; gente que partiu para outros Países em busca daquilo que não encontrou no seu. Descansei os olhos na beleza imponente daquele lugar. Pedro Levou-me a dar uma volta pelas redondezas. “Também aqui se vive uma solidão obrigatória”. – Pensei. Mostrou-me os terrenos que haviam sido dele, a casa onde nasceu, a escola que frequentou…Vi a felicidade dançar-lhe no rosto; tinha um brilho especial nos olhos. A emoção duma vida já vivida. Como eu o compreendi!

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Chegamos. O ambiente era festivo. Pedro saiu do carro, veio abrir-me a porta e ajudar-me a sair. Todas as cabeças se viraram para nós; familiares, amigos e conhecidos do Pedro. Tivemos uma recepção com pompa e circunstância. Inês veio ter connosco. – Que deslumbramento! – Disse alto e bom som. - Formam um lindo par, estão elegantérrimos! Era, de facto, assim que eu me sentia: elegante, distinta e tão segura de mim. O meu vestido vermelho assentava-me maravilhosamente, bem como o meu casaco preto de visom, igualzinho ao que a Marie usou no funeral de Claire e que eu tanto invejei na altura. Quando o vi no expositor da loja, não resisti. Vestiu-o para ver como me ficava. - “Impecável, parece que foi feito para mim” – disse mirando-me no espelho. - “Com um casaco desses, qualquer uma parece uma senhora”. – Gracejou o Pedro. Senti-me o centro das atenções, exposta à curiosidade de todos, mas isso não me incomodou minimamente. Na sua maioria era gente simples e desacostumada das relações sociais. Um homem de estatura média, ombros descaídos, dirigiu-se para nós; era o pai da noiva e primo do Pedro. - É uma alegria voltar a ver-te; ora dá cá esses ossos, homem! – Abraçaram-se efusivamente, com palmadinhas nas costas. - Esta é a Rosário, minha mulher. – Disse Pedro fazendo as apresentações, – este é o Américo. Américo usava o cabelo quase rapado pondo a nu uma cabeça pequenina; por conseguinte, não poderá ter grande conteúdo. Pareceu-me um pouco grotesco, esforçava-se para mostrar uma imagem de si mesmo que não correspondia à realidade. Fez-me lembrar um papagaio que fala de cor sem saber o verdadeiro sentido das palavras.

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– Façam o favor de entrar – disse com ares de pessoa importante, ajeitando o nó da gravata. Voltei as costas, sentindo os olhos que me observavam. Entrámos. No centro duma sala acanhada havia uma mesa cheia de iguarias; comer e beber bem é essencial numa festa. Um silêncio repentino abafou todas as conversas. Uma senhora, que deduzi de imediato ser a mãe da noiva, veio cumprimentar-nos. Cabelo ao alto, como se usava nos anos sessenta; vestia um fato de saia e casaco cor de alfazema e aparentava um ar cansado. Custódia, era o seu nome. Estava lá a fina-flor da região; empreiteiros, imigrantes, o médico da região e o dono da farmácia. Exibiam grandes carrões, um sinal exterior de riqueza, como convém num casamento de gente pobre. Uma mulher alta, magra, vestida de preto e salpicada de brilhantes como uma árvore de natal, não tirava os olhos de nós. Pedro pegou-me pelo braço e fomos cumprimentá-la. – Olá Carminda, como está? – Perguntou com uma dignidade surpreendente. Ficou com uma expressão neutra e impassível. Depois soltou um risinho nervoso e respondeu com uma voz de falsete. – Estou bem, e tu? - Como está minha senhora? – Disse-lhe delicadamente, apertando-lhe a mão mole como um trapo. Tinha o cabelo escuro, com umas ridículas madeixas castanhas, o rosto quadrado, as sobrancelhas eram finas e arqueadas e os lábios demasiado pintados, num tom berrante. Apesar do luxo, tinha ar duma pessoa grosseira e deselegante. As crianças, nos seus vestidos de folhos e laços, andavam numa correria louca por entre as pessoas; arrastavam cadeiras, levando as mãos cheias de guloseimas que vinham buscar à mesa.

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João correu para o avô, pendurou-se no seu pescoço e cobriu-o de beijos. - Tinha saudades do avô, meu maroto!? Acenou com a cabeça – muitas. Depois virou-se para mim e disse: - Olá avó! Pedro soltou uma gargalhada sonora e inesperada. Foi uma reacção tão espontânea e tão ternurenta que quase me emocionei. Eu não estava, de todo, preparada para isto; fui completamente apanhada de surpresa. Curvei-me para o beijar, – estás muito janota! Já viste as meninas lindas que andam por aí? Vê se arranjas uma namorada. – Disse, afagando-lhe a cabeça. - Oh, já tenho uma, lá no colégio. – Afastou-se correndo – Vou ter com os outros meninos. Carminda, não tirava os olhos de mim. Pedro contou-me que ela sempre teve uma paixão por ele; uma paixão que a corrói por dentro como uma doença incurável. Ele sempre a ignorou; porém, ela nunca desistiu de o seduzir. Tantos anos depois e ainda parece ficar perturbada quando o vê. - Coitada – disse numa atitude compassiva. Pedro olhou para mim, perplexo. - Eu e meu eterno hábito de me colocar no lugar de cada um avaliando os seus sentimentos. – Justifiquei-me. - É triste gostar de quem não gosta de nós, não achas? - Ora, deixa-te de sentimentalismos! - Disse meio sério e meio a brincar.

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Vi-a levantar-se do seu lugar; passou por nós e dispensou-nos um sorriso hipócrita – Que ridículo! Tem idade para ser sua filha. – Disse entre dentes, propositadamente para nós ouvirmos. Os nossos olhares cruzaram-se, cúmplices. – Esta mulher não regula bem. Que atrevimento! – Juntámo-nos ao nosso grupo que estava no exterior da casa; o Miguel, a Patrícia, a Inês e o Hélder. Pedro afastou-se, vi-o juntar-se a um grupo de homens, não parou de cumprimentar toda aquela gente; segui-o com os olhos, estava tão orgulhosa da sua elegância! A sua personalidade destoava dos restantes. Ou será dos meus olhos apaixonados? A noiva assomou-se à porta. Antes de entrar para o carro veio cumprimentar-nos. - Beijou-me dum lado e doutro da cara, depois disse – A senhora ainda é mais linda do que eu imaginava. Senti-me lisonjeada. – Tu também és muito bonita, estás uma noiva deslumbrante. Desejo que sejas muito feliz. Ajudamo-la a entrar para o carro, ajeitamos o vestido e o véu. O fotógrafo deu os últimos retoques. Marta era, de facto, uma rapariga muito bonita, tinha um sorriso resplandecente. Alta, corpulenta, uns olhos azuis lindíssimos, a pele rosada ,os lábios carnudos e bem delineados. Gostei dela, pareceu-me uma rapariga franca, decidida e, sobretudo, muito alegre. Este meu costume de fazer juízo rápido sobre as pessoas; por vezes, engano-me; mas muito raramente. Depois do casamento, propriamente dito, na igreja da aldeia, seguimos para o restaurante onde foi servido o copo-de-água. A refeição começou a ser servida, encheram-se os copos e o ambiente começou a aquecer; são os “vivas” aos noivos e aos pais dos noivos, aos padrinhos… os talheres tilintavam

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nos copos, nos pratos, uma xinfrineira que me transportou a outros ambientes nada festivos. Mais vivas aos noivos; soltaram-se as línguas e os gestos, era dia de festa! A música enchia o salão. Uma valsa só para os noivos, disse o rapaz ao microfone. E os noivos dançaram com movimentos coordenados e graciosos revelando-se exímios dançarinos, terminando com um trejeito airoso e elegante. Uma enorme salva de palmas. A música continuou e aos poucos a pista encheu-se. Gente desejosa dum pé de dança. Custódia, a mãe da noiva, parou no meio da dança por não conseguir acertar o passo com o marido. Era falta de treino. – Dizia. Algumas cabeças já andavam toldadas e a animação continuava pela noite dentro. Os noivos já se haviam retirado para um hotel no Buçaco onde passariam a noite de núpcias; justamente no mesmo hotel onde nós iríamos pernoitar. Pedro mimou-me o dia inteiro, sempre tão gentil e apaixonado. Dançamos a tarde inteira. Tínhamos os pés doridos, aqueles malditos sapatos novos estavam a transformar-se numa verdadeira tortura. Que insensatez a minha não ter levado outros sapatos para substituir aqueles. Carminda, continuava a observar-nos, não tirava os olhos de nós. – Vou sair daqui com uma carga de mau-olhado! – Sussurrei ao ouvido do Pedro. – Que coisa impressionante, fogo! Desculpa, mas tenho de me sentar um pouco; também já não suporto as dores nos pés. - É melhor colocares o casaco pelas costas, – aconselhou a Inês – estás toda transpirada… - Onde está o meu casaco!? Juro que o coloquei aqui neste cabide. – Senti um calafrio, um mau pressentimento.

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– Alguém o guardou certamente, – disse Pedro, tentando tranquilizarme. “Eu não acredito, que me tivessem roubado o casaco” – pensei. Os que estavam por perto aperceberam-se ficou tudo em polvorosa e ninguém sossegou enquanto o casaco não apareceu. Eu não queria de forma nenhuma levantar suspeitas, criar mau ambiente…Detesto expor-me ao ridículo. - Não se incomodem – disse dissimulando a minha inquietação – Alguém lhe mudou o sítio, só pode ser. Procurámos,

em

vão,

por

todos

os

cabides

do

restaurante.

Vagarosamente, Carminda aproximou-se de mim com o casaco na mão, perante o olhar incrédulo e depreciativo de todos. - É isto que procura? – Perguntou rudemente. Reparei que tinha um ar transtornado, olhos sarapantados de pessoa louca. Como eu conheço bem este tipo de gente; nestas coisas das relações humanas eu sou quase doutorada. Retirei-o das suas mãos com um puxão brusco e fiquei a olhar para ela esperando uma explicação. - Levei-o lá para dentro – justificou-se – É uma pena um casaco destes tão caro a apanhar todo este fumo de tabaco. - Agradeço-lhe imenso. - Falei com desdém – Tantos casacos por aí, não percebo porque se havia de preocupar só com o meu! Não acredito em bruxas, mas que as há, há. – Disse impensadamente. Ainda as palavras estavam a sair da minha boca já eu me havia arrependido de as ter pronunciado; caramba esta mulher fez-me perder o meu auto-domínio! A mulher ficou lívida, pálida de morte; no entanto, não desviou o seu olhar do meu rosto. Dei meia volta e retirei-me.

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- Vá lá, não sejas supersticiosa que isso dá azar. - Gracejou o Pedro. – Não ligues, ela não bate bem da cabeça. - Não ligo uma ova! Já declinava no horizonte um sol grande e vermelho como uma bola de fogo, quando chegámos a casa. Foram dois dias fora que me pareceram duas semanas. Acendi a lareira, e fiquei a ouvir o crepitar da lenha seca. Que bom que é regressar ao aconchego do lar; sentámo-nos no sofá a ver televisão em pijama e pantufas. Acabámos por adormecer. Ardia já um lume mortiço quando fomos para a cama. Acordei na manhã seguinte, a pensar no tio Vicente, sem perceber porquê. Lembrei-me da sua pele clara e macia, dos seus cabelos e olhos cor de mel, da forma elegante como se vestia. Lembrei-me especialmente, das suas mãos grandes e macias, quase aveludadas, um pouco peludas nos dedos, as unhas quadradas, impecavelmente limpas. O seu anel de ouro, o relógio sobressaindo por debaixo do punho da camisa, um cheiro discreto a perfume. Acho que seria capaz de o identificar no meio duma centena de aromas, todos eles diferentes. Talvez eu desse ainda mais importância a tudo isso pela diferença abismal que havia entre ele e o avô. A sua pele era escura e áspera, as roupas sujas cheiravam a suor e a esterco de ovelha. Havia ainda um cheiro adocicado a leite e a queijo entranhado na roupa e na pele, que não desaparecia nem que estivesse de molho em barrela durante uma semana.

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Cap. 21 Estávamos no início de Dezembro, os dias eram excessivamente pequenos; a meio da tarde, já era noite. Os serões eram longos e intermináveis. Estava um frio de enregelar, era preciso manter a lareira acesa o dia inteiro para a casa se conservar quente durante a noite. O Natal aproximava-se e eu já sentia uma grande agitação. Jean-Pierre estava quase a chegar, estava morta de saudades. Era preciso fazer uma lista de tudo o que iríamos precisar; Graças a Deus que a tradição ainda é o que era; isso facilitava-nos imenso. Comprar as prendas para toda a família, fazer a árvore de Natal e o presépio… Na cidade as ruas já estavam enfeitadas, as montras cintilavam com mil luzinhas, bolas de várias cores, estrelas… Na praça do Geraldo havia uma árvore enorme e um presépio; a música de Natal ouvia-se pela cidade enquanto as pessoas deambulavam de loja em loja, carregadas de embrulhos. Por momentos deixei-me ficar discretamente a observar toda aquela gente; os seus rostos estavam tensos, desesperados. Mas o Natal não é só isto, pois não? Perguntei a mim mesma: o verdadeiro espírito Natalício ainda existe? Que valores estamos a passar às nossas crianças? O que é para elas o Natal, para além das prendas? Cheguei a casa completamente exausta e inquieta; uma inquietação inexplicável; obviamente que se tratava da tradicional ansiedade que precede a quadra natalícia. Senti vontade de tomar um banho de banheira cheia e muita espuma. Coloquei um CD de Bethoven, “sonata do mar,” e pus a água a correr enquanto preparei uma máscara de limpeza para o rosto: uma clara de ovo batida em castelo com umas gotinhas de sumo de limão. Entrei na água quente… oh que sensação maravilhosa, um banho relaxante como há muito tempo não tomava. Concentrei-me exclusivamente na música e deixei-me ficar até a água esfriar. Vesti o roupão e sai da casa de banho envolta num espesso nevoeiro. O meu telemóvel tocou. Vi no mostrador iluminado o nome de Jean-Pierre.

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Jean-Pierre chegou a Lisboa oito dias depois, para passar o natal connosco. Fomos buscá-lo ao aeroporto, eram seis da manhã. Àquela hora, o trânsito era quase nulo na ponte Vasco da Gama; porém, ao entrarmos em Lisboa, nas imediações do aeroporto, já se fazia sentir um aumento do tráfego, em todos os sentidos. Entramos no parque subterrâneo, estacionamos e subimos. Havia uma imensidão de gente. Os que chegavam, os que partiam, os que esperavam e os que se despediam. O meu telemóvel tocou dentro da minha mala. Jean-Pierre dizia que já tinha aterrado mas que ia demorar um pouco. Fiquei com os olhos postos na porta por donde saem todos os passageiros esperando, ansiosamente, a sua aparição. Um rapaz magro, de cabelo comprido, vestindo jeans, camisola de gola alta e casaco de cabedal, aproximou-se de nós enquanto eu continuava com os olhos na porta. - Mamã. – Disse, abraçando-me. - Oh, como não te reconheci!? Nem queria acreditar, que aquele jovem que tinha na minha frente fosse Jean-Pierre. Chovia brutalmente. - O trânsito está um caos, é preciso atenção redobrada. – Adverti. Involuntariamente, comecei a ficar tensa. A chuva fustigava os vidros do carro e o limpa brisas, na velocidade máxima, travava uma luta feroz contra a chuva. Rezei para que saíssemos dali o mais rápido possível. Pensei nas pessoas que vivem este inferno uma vida inteira; é quase uma condenação, pobres criaturas! Chegámos a Évora eram quase onze horas. Aqui não chovia, ainda que o dia estivesse bastante cinzento.

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- Oh Alentejo, como te amo! – Disse em voz alta como se tivesse a declamar um poema. – Esta monotonia, esta paz; é como sair do inferno e entrar no céu. Ambos me olharam com uma expressão divertida. Preparei o almoço e o Pedro acendeu a lareira e pôs a mesa enquanto jean-Pierre tomou um duche. Almoçamos calmamente, conversámos imenso. Havia tanta coisa para dizer. De facto não havia nada de novo a acrescentar, além daquilo que nós conversávamos pelo telefone; mas nada como uma conversa de corpo presente, olhos nos olhos. Depois do almoço ainda chuviscou; entretanto, o tempo clareou e o sol espreitou timidamente através das nuvens. - Vamos ver a nossa casa? - Convidei. Um enorme arco-íris abraçou o céu por cima das nossas cabeças. O vento sacudia o pasto, transformando-o num tapete fofo e ondulante. Caminhamos lado a lado; Jean-Pierre com o seu passo elástico e eu fazendo um esforço para o acompanhar. - Já não é a casa dos meus avós, a casa da minha infância, jamais o será. Mas o que importa é o valor sentimental que este lugar representa para mim. – Confidenciei. - Sabes Jean-Pierre, nós nunca perdemos totalmente as pessoas que amamos, elas continuam vivas na nossa memória para sempre. Falar delas, recordar os bons e os maus momentos que passamos juntos, é perpetuá-los no tempo. Às vezes venho para aqui e parece que os vejo. Vejo as hortas, as ovelhas, os cães… vozes, gestos e imagens tão reais. Algo de muito íntimo, que só eu posso sentir; sentimentos que estão muito para além das palavras, percebes? Aqui, foi o único sítio do mundo onde eu fui verdadeiramente feliz; foi essa a razão que me fez voltar e é, de facto, o único sítio do mundo, onde

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continuo a encontrar a minha felicidade. Sinto que algo de transcendente me protege e me chama para aqui, é como um lugar sagrado. Estava a ficar demasiado emocionada; Uma espécie de nó na garganta. Entrámos. Tudo cheira a novo. Orgulhosa, mostrei os três quartos já mobilados, duas casas de banho, uma sala grande com lareira e uma cozinha. - Ainda há muito por fazer, – prossegui. - Colocar os varões, os cortinados, os candeeiros…A Madalena, uma amiga minha, diz que o marido se ajeita neste tipo de trabalhos. O pior é o entulho, o resto de areia, as ervas daninhas… enfim tudo será feito a seu tempo. Falei-lhe do jardim, inclusivamente desenhei no terreno um esboço daquilo que pretendia fazer. - Não quero negligenciar nada, todos os pormenores são importantes para mim. - O que pensas fazer com esta casa, posso saber? – Perguntou. – Esta é a minha casa, a única que tenho. A vida dá muitas voltas, entendes? Esta é também a tua casa, para onde podes vir sempre que queiras. – Continuei – Um dia terás a tua própria família… Ergueu os olhos e sorriu constrangido. - Já entendi. Vamos? - Vamos. – Respondeu aconchegando a gola do blusão antes de sair. – Está um frio! Apesar do sol estava, de facto, bastante frio; uma aragem cortante. Puxei o fecho da minha parka e coloquei o capuz, enfiei as mãos nos bolsos e lá fomos andando e conversando.

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- Eu e o Pedro estamos a pensar casar, no domingo de Páscoa; um sonho adiado que eu vou finalmente concretizar. Eu bem sei que na vida há um tempo para tudo, mas como sempre ouvi dizer: “vale mais tarde do que nunca.” Sinto que a vida me está a recompensar e eu vou exigir dela tudo a que tenho direito. - Acho que faz muito bem. – Disse colocando o braço por cima dos meus ombros, num gesto de carinho. - A mãe merece ser feliz. - Queremos uma festa simples, apenas a família e alguns amigos especiais. Gostaria que a Mónica viesse com o marido, a filha e os pais. Afinal, eles são a nossa família e simultaneamente nossos amigos. Que não ousem recusar o meu convite, jamais lhes perdoaria. - Virão com toda a certeza. – Assegurou, numa atitude descontraída. Os cães ladraram à nossa chegada. Pedro estava deitado no sofá da sala, ardendo em febre. Tinha a garganta irritada e dores no corpo. - Não é caso para preocupações, – disse num tom tranquilizador, – tratase duma vulgar gripe, temos uma boa relação de amizade, visita-me todos os anos mais ou menos nesta altura. Rimo-nos. Mesmo doente não prescinde da sua boa disposição. - Que chatice, logo tinha de vir na altura do Natal. - Não te preocupes, despacho-a em dois dias. Prepara-me um chá de limão com mel e traz-me uma aspirina, se fazes o favor. – Pediu. Fiz chá e torradas para os três, trouxe o tabuleiro para a sala e coloquei mais lenha na lareira.

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Estava feliz como nunca, era o primeiro natal que passava no meu país, tantos anos depois. Na antevéspera todos foram chegando e da bagageira dos carros não parava de sair embrulhos, sacos e malas. Ao natal seguia-se o fim-de-semana; ficariam, no mínimo, seis dias. As crianças brincavam no jardim aperreadas pelo peso das roupas. A tarde avançava rapidamente e a noite chegava num instante. Gostava de ter a casa cheia; havia movimento e alegria. Os serões eram agradáveis e intermináveis. Havia uma certa camaradagem entre nós; à medida que nos íamos conhecendo melhor, íamos ficando mais íntimos. As crianças adormeciam no sofá, cansadas de tanta correria. Miguel voltou a falar-me do negócio da pickuk. Caso eu não pretendesse ficar com ela, entregava-a no stand em troca duma nova. - De facto faz-me falta. - Disse-lhe. – Talvez… Depende do dinheiro que estejas a pensar pedir, depois falaremos sobre isso. Pensei também em JeanPierre, ele adora acompanhar o Miguel nas suas caçadas; quem sabe, um dia, ele próprio também se transforme num caçador. Farei tudo o que estiver ao meu alcance para o atrair para aqui, para junto de mim, nem que seja temporariamente. Os dias sucediam-se uns aos outros a uma velocidade astronómica e estávamos, de novo, sós. A rotina instalou-se de novamente nas nossas vidas. A primavera estava a chegar, sentia-se no ar o seu perfume e na terra o colorido das suas vestes. O sol brilhava com uma luminosidade cristalina. O grande dia aproxima-se. Contratámos uma empresa de festas ao domicílio. Faltavam só três dias. Começava a contagem decrescente e eu estava a ficar ansiosa. Os homens vieram montar as mesas e as cadeiras no jardim, e

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os respectivos chapéus-de-sol. A cozinha estava a rebentar pelas costuras; era difícil arrumar tanta coisa. No dia seguinte chegavam jean-Pierre, a Mónica, o marido, a filha e os pais. A Marie e o marido chegaram no voo da tarde; incumbi ao Miguel a tarefa de os ir buscar ao aeroporto. Todos ficaram hospedados, na minha casa. Trabalhei que nem uma condenada para que tudo estivesse em ordem. Saltava da cama à primeira claridade do dia; mas valeu a pena, estava tudo exactamente como eu pretendia, regozijei-me por isso. - Senta-te um pouco. – Advertiu o Pedro – Tanto nervosismo só te prejudica. Pareces uma barata tonta, dum lado para o outro. Aproximei-me dele e beijei-o ao de leve nos lábios – Já não sabia viver sem ti, meu príncipe encantado! Colocou a mão na minha barriga – como tem crescido o nosso menino! Marie e o companheiro chegaram já o sol se escondia para lá do horizonte. Agradeci calorosamente por terem vindo num momento tão especial para mim. Christophe, o companheiro de Marie, era magro, elegante, olhos azuis e pele clara. Tinha uma voz cativante, um encanto invulgar. Pareceu-me mais novo do que ela, no entanto, faziam um lindo par. Marie continuava bela e atraente como sempre, havia um certo brilho no olhar que eu desconhecia nela; o amor faz milagres – pensei. Também ela merece ser feliz. Disse ter ficado apaixonada por Portugal e, particularmente, por este lugar onde vivíamos, manifestando vontade de voltar, caso fosse convidada. Rimonos. O convite ficou feito. – Sempre que queiras a minha casa estará ao teu dispor.

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Apesar dos cinco meses de gravidez, a minha barriga passou despercebida debaixo do vestido e da longa echarp de seda. Não que tivesse pretensões de a ocultar, bem pelo contrário. Senti que estava a viver um verdadeiro conto de fadas, com príncipes e princesas. O próprio espelho ajudou-me a acreditar nisso. As mesas estavam decoradas com um requinte… algo de magnífico, só visto no cinema. Os campos resplandeciam sob o sol da manhã. Estava uma bela manhã dourada. O almoço começou a ser servido logo que regressámos da igreja. A festa foi um sucesso, tal como tinhamos planeado. Madalena não aceitou o meu convite, por razões óbvias. De tarde resolvi levar uns bolos, rissóis e outras guloseimas para as crianças. As crianças vieram esperar-me, como se habituaram a fazer sempre que eu lá ia e até me chamam tia Rosarinho. Sempre que podia levava-lhes algumas coisas para comerem, brinquedos, roupas ou calçado. Cheguei na pickup o que causou algum espanto nas crianças. Depois aperceberam-se que era eu e então foi uma festa; quiseram entrar e até dar uma voltinha. Madalena ainda almoçava. Entrei. Fiquei de pé a vê-la comer. Calmamente, pegou num pedaço de pão, passou pelo fundo do prato arrastando um resto de gordura, levou-o à boca e repetiu a operação até o prato ficar completamente limpo. As crianças colocaram-se à volta da mesa como famintos, aguardando que eu tirasse do cesto tudo o que levava. Comeram, lambuzaram-se e encheram as mãos de rebuçados saindo, de seguida, para junto da pickup. Madalena comeu com satisfação uma enorme fatia de bolo e bebeu um copo de Coca-Cola; depois, olhou para mim; o seu olhar parou na minha barriga e a expressão do seu rosto endureceu subitamente. - Como tem crescido a tua barriga. - Disse com a voz sumida.

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- E a tua, também deve estar enorme, ora levanta-te para eu ver. - Já não tenho barriga… nem coração; não tenho nada, sinto-me vazia, oca. Fechou os olhos e deixou as lágrimas escorrerem livremente pela cara abaixo. – Sou uma assassina da pior espécie, matei o meu próprio filho. Engoliu um soluço – imagina como tive coragem. Estou desesperada, sinto me enlouquecer aos poucos Debruçou-se na mesa, deitou a cabeça sobre os braços e chorou, sacudindo o corpo convulsivamente. As crianças divertiam-se lá fora, completamente alheias ao sofrimento da mãe. E eu ali parada, calada sem saber o que dizer; nem um gesto, uma palavra de consolo… - Que Deus te perdoe, Madalena. – Foi tudo o que consegui dizer. Quis perguntar-lhe como e porque o fez, mas não tive coragem. Num gesto rápido enxugou a cara com a manga da camisola. O rapaz mais pequeno entrou em casa com o ranho a escorrer pelo nariz, ela puxou-o para si, carinhosa, limpou-o e ele voltou a sair. - Obrigada por teres vindo; desejo que sejas muito feliz, tu mereces. - Todos nós merecemos ser felizes Madalena e, quando assim não acontece, é porque algo está errado. Regressei a casa. A mulher que uma hora antes saíra dali, não era a mesma mulher que acabara de chegar; só eu sabia, mais ninguém. A tarde caminhava para a noite a passos largos e o jantar ia começar a ser servido. Depois todos partiam, cada um ao seu destino. Escrevi muito pouco nestes últimos meses. Sentava-me várias vezes em frente ao computador para começar a escrever, no entanto, nada me ocorria. Peguei num livro; os olhos galopavam por cima das palavras sem no entanto captar o seu verdadeiro sentido. Deixei a 254


minha mente vaguear livremente. Tinha crises repentinas de angústia; ficava triste, nostálgica; uma sensação de alma vazia. Velhas recordações guardadas nas gavetas da minha memória que teimavam em saltar cá para fora, de vez em quando. É como um Inverno negro e chuvoso que aparece dentro de nós quando é verão. Levantei-me com alguma dificuldade; a minha barriga estava enorme, sentia-me pesada, os meus pés incharam demasiado. Contudo, os nove meses de gravidez, decorreram optimamente ao contrário do que cheguei a recear, devido à minha idade um pouco avançada. Saí para o jardim; o dia estava lindo, estávamos no final de Maio; já cheirava a verão. Deitei-me sobre a relva e tentei não pensar em nada; olhei para as nuvens brancas que flutuavam sobre o céu azul observando as diferentes figuras, como se movimentam…o sol aparece e desaparece por detrás delas. Adormeci. Acordei, sentindo as primeiras contracções do útero; as minhas roupas estavam húmidas, chegou a hora. - Pensei. Pedro ajudou-me a levantar. Senti um alvoroço dentro do peito, uma ansiedade inerente a qualquer mulher que está esperando um filho. O grande momento aproximava-se. Tudo iria correr bem, não era o meu primeiro parto, sabia o que me esperava. Pedro levou-me para a maternidade – fica comigo, não me deixes aqui sozinha, – implorei. Agarrei o seu braço decidida a não o largar. - Calma! Vai correr tudo bem. – Tranquilizou-me. - Eu sei. Preciso da tua força, é só isso. As dores já se tornavam insuportáveis. O nosso filho tinha decidido nascer naquela linda tarde de Maio, não restavam dúvidas. Uma enfermeira chegou com uma seringa na mão, limpou o meu braço com um pedaço de algodão embebido em álcool e uma agulha enorme

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desapareceu dentro da minha veia. Um liquido qualquer entrou na minha circulação sanguínea. Senti uma indescritível sensação de tranquilidade, uma sonolência… Lembro-me de ter acordado. Um médico alto de bata branca encontravase de pé junto da minha cama. Por um instante senti-me confusa, não sabia a razão porque estava ali. Pedro aproximou-se, pegou na minha mão, inclinou-se sobre mim e beijou-me na testa. Reparei que estava pálido; no entanto os seus olhos tinham adquirido um brilho especial. - Está tudo bem. – Segredou-me ao ouvido – o nosso filho é lindo! - O nosso filho?! Uma enfermeira trouxe o meu filho e deitou-o a meu lado. Jamais esquecerei a magia desse momento. Uma vez mais elevei os meus pensamentos para Deus, numa atitude de fé e esperança. Será um grande homem; instintivamente tive essa grande certeza e o coração duma mãe nunca se engana. Deixei a clínica uma semana depois.

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Cap. 22 A luz forte da rua encandeou-me os olhos. Pedro levava o Francisquinho dentro do porta bebé, colocando-o no banco de trás. Eu entrei para junto dele. Mexeu as mãozitas, fez um trejeito com a boca e voltou a adormecer. - Que saudades eu tinha da nossa casa, das minhas coisas, da nossa intimidade. - Abraçámo-nos – Senti tanto a tua falta. – Sussurrou no meu ouvido. - Também eu. - Respondi no mesmo tom. – Prometo que nunca mais nos iremos separar. Devido à cesariana havia agora uma longa costura na minha barriga. O médico proibiu-me terminantemente de fazer esforços. Cumpri à letra todas as suas recomendações. O nosso bebé era o centro da nossa vida vinte e quatro horas por dia, sempre vigilantes: ouvi-lo chorar durante a noite, mudar-lhe a fralda e amamenta-lo. Deitava-o no berço e ficava a olhá-lo até os seus olhitos se fecharem lentamente para ter a certeza de que estava tudo bem. Pedro estava feliz, a vida tinha lhe dado este filho, justamente, numa idade em que declinava para a velhice. Até rejuvenesceu! Dedicava-lhe, todo o tempo livre. Francisquinho revelou-se uma criança calma; comia e dormia e a hora do banho era uma festa para ele e para nós; esperneava de contentamento o tempo todo. Desfrutávamos juntos o seu primeiro sorriso, ficávamos durante horas a olhar para ele, como brincava, como sorria, como chorava, as suas fúrias quando as coisas lhe corriam mal. Havia tanta coisa sobre a vida que lhe queria ensinar à medida que fosse crescendo! Mas principalmente queria ensiná-lo a ser feliz, a amar-se e respeitar-se a si próprio e aos que o rodeiam; a dar importância às pequenas coisas da vida, aquelas coisas que só se vêem com os olhos do coração.

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Pedro entrou em casa, descalçou as botas, enfiou os chinelos… Olhei o relógio da cozinha. Meio-dia e dez, ainda é cedo, mais vinte minutos e o almoço está na mesa, – pensei. - O Francisquinho, onde está? – Perguntou. - Não está contigo? Estava agora mesmo a brincar lá fora, acabei de entrar para preparar o almoço. Vai ver se o encontras. O Pedro chamou duas, três vezes…comecei a ficar inquieta. Porque não responde!? Desliguei o fogão e saí para a rua. - Francisquinho! – Gritei – onde estás meu filho? Procuramos dentro e fora de casa, no jardim, na horta, na capoeira, debaixo dos arbustos… como é possível que o meu filho tivesse desaparecido, num abrir e fechar de olhos? - Que irresponsabilidade a tua, deixares uma criança de quatro anos entregue a si próprio. - Pedro, vamos manter a calma por favor. – Supliquei. - Afastou-se um pouco mais do que devia. Quem sabe, perseguindo uma libelinha, uma borboleta, um gato ou um pássaro, sabes como ele adora os animais. Talvez tivesse adormecido, sentado nalgum lugar. Avancei pelos campos olhando para todos os lados. Parei de repente quase esbarrando contra um caçador que se atravessou no meu caminho. Ofegante, mal consegui falar. O homem ficou a olhar para mim sem perceber o motivo da minha correria. - Procuro o meu filho. – Consegui dizer. Mais à frente estava um jipe; corri como louca na sua direcção perscrutando o seu interior. Outro caçador acabara de chegar com a espingarda ao ombro e dois coelhos pendurados à cintura. Dois perdigueiros ladraram na minha direcção; fiquei estarrecida.

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- A senhora procura alguma coisa? – Perguntou o homem, depois de acalmar os cães. - O meu filho. – Respondi ofegante. - Acalme-se minha senhora, vai ver que o seu menino está por aí a brincar. - Peço desculpa, obrigada. Um rebanho de ovelhas, pasta lá em baixo no vale. Talvez o pastor o tenha visto. – Pensei. – Corri encosta abaixo como tantas vezes o fiz nos meus tempos de criança. Só que as minhas pernas já não eram as mesmas, senti-as a fraquejar e, por momentos, julguei que não iriam acompanhar a velocidade do corpo. Parei. Deixei-me cair de joelhos sobre o pasto verde e fofo com o coração a saltar pela boca. O pastor aproximou-se apoiado no cajado e coxeando duma perna. - Aconteceu alguma coisa, minha filha? – Perguntou com ar preocupado. - O meu filho desapareceu, tio Zé. Não o avistou por aí? - Não, não vi – disse pausadamente – Volta para casa, o Francisquinho está bem, esteja ele onde estiver. Vai com Deus, acalma o teu coração, porque o teu menino,está protegido pelos anjos. Afastei-me em silêncio; aquelas palavras produziram em mim um efeito tranquilizador. Voltei para casa, com essa bendita certeza. O meu filho está bem, o meu filho está bem, fui repetindo para mim mesma. Regressei, na esperança de o encontrar em casa,Infelizmente isso não aconteceu. Pedro continuava a procurá-lo por todos o lado. Meu Deus, ajuda-nos a encontrar o nosso filho, não permitas que lhe aconteça nada de mal.

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Entrei em casa como uma louca. Abri armários, espreitei debaixo das camas, dentro dos roupeiros, atrás dos reposteiros e nada. Entretanto o Pedro espreitou todos os poços, lagoas, tanques, piscina. A noite estava a chegar, mais uma hora e o sol desapareceria atrás dos montes. Como é que eu podia imaginar a noite sem ter o meu filho comigo? Isto não podia estar a acontecer, era doloroso demais! De repente, dei comigo a pensar nas mães (e não são nada poucas) que dum momento para o outro viram os seus filhos desaparecer, vivendo durante anos a angústia da espera. Afastei de mim esses pensamentos horríveis. Francisquinho vai voltar para casa, ainda antes de escurecer. Quem sabe ele tenha ido passear por aí e encontrou algo que lhe prendeu a atenção e não deu pela passagem das horas. A noite vai trazê-lo de volta. - Rosarinho faz um esforço, não ouviste nenhum carro? O cão não ladrou? Encarei-o bem de frente. O seu rosto estava tenso, preocupado. - De que estás a falar? - De rapto – respondeu num tom impaciente. - Por favor, não me queiras pôr mais apavorada do que já estou. Não comeces a pensar no pior. - Tudo é possível… por dinheiro. Duas lágrimas grossas deslizaram lentamente através do seu rosto. Os seus braços envolverem-me num abraço mudo. Senti o meu corpo a tremer contra o seu corpo firme, os seus músculos estavam duros, como aço. – Calma amor. Não podemos desanimar, temos de ter fé – consegui pronunciar. Eu queria transmitir-lhe uma esperança que eu própria estava a começar a perder. Deixei-me cair sobre o sofá. Ouvi o tique-taque do relógio da sala.

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- É quase noite. Onde estará o nosso filho? Certamente estará com fome, com frio; estará assustado? Se ele estiver ferido? Hoje é dia de caça, quem sabe um tiro… - Cala-te Pedro. Não comeces a dramatizar. – Implorei. - Desculpa, eu já não sei que pensar. - Vamos dar uma volta de carro por aí, não podemos ficar aqui em casa sem fazer nada – sugeriu. Com os faróis do carro vimos com atenção cada sombra, vulto…todos os lugares possíveis e impossíveis; uma pinha caiu ao nosso lado, um ramo agitava-se ao sabor do vento, um pássaro assustado saíu do seu esconderijo. A escuridão era total. Pedro parou o carro e ficámos em silêncio, ouvindo o ruído dos animais nocturnos. Reclinei a cabeça para trás, fechei os olhos e comecei a rezar baixinho: Senhor, mostra-nos o caminho, leva-nos até ele, não suporto mais esta agonia. Via o meu filho em todo o lado; a correr no jardim, às cavalitas do pai e eu a chamar-lhe a atenção: olha que o menino pode cair para trás, segura as mãos do menino. Recordei o último piquenique que fizemos: estendi a toalha sobre a relva, trouxe um cesto com fruta, pão, queijo, iogurtes, bolachas e sumo de laranja natural. Lanchamos os três. A nossa alegria era indescritível; vê-lo crescer, podermos apreciar cada sorriso seu e as suas traquinices. Francisquinho era uma criança adorável. - Espera, ainda não fomos a casa da Madalena! – Como é que não me tinha lembrado antes. Pedro ligou o motor, engatou uma mudança e zarpou a uma velocidade imprópria para aqueles caminhos, quase inexistentes. O monte estava envolto numa profunda escuridão. Os faróis do carro incidiram na fachada principal da casa. Os cães ladraram, defendendo com violência o seu território. Alguém veio espreitar. Era a Madalena. Os miúdos saíram pela porta à velocidade da luz colocando-se em frente da mãe como um escudo protector. Atrás da Madalena, outro rosto surgiu: o seu marido. Que lindo retrato familiar, – pensei. E o meu filho? Se estivesse aqui já estaria cá fora, certamente. As minhas

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esperanças caíram por água abaixo, como uma folha seca no final do Outono. Saímos para o exterior do carro. A noite estava fria e húmida. Avancei para eles. Os cães persistiram num ladrar estridente e irritante. - Boa noite, – dissemos em uníssono. – Andamos à procura do nosso filho, mas já me apercebi que não está aqui; era a minha ultima esperança. – Continuei. - Já procurámos por todos os lados e nada. - Como foi que isso aconteceu? – Chegaram-se para nós, incluindo as crianças. Havia no ar um prenúncio de tragédia, eu senti. Contei tudo o que podia contar, e que afinal era tão pouco. Basicamente, resumia-se em poucas palavras: O meu filho desapareceu num abrir e fechar de olhos. - E se o meu filho nunca mais aparecer? O Pedro colocou o braço em cima do meu ombro e puxou-me para si. - Tem calma amor, o nosso filho vai aparecer, nem que eu vire o mundo do avesso. – Disse para me encorajar. Convidaram-nos a entrar, o frio era cortante. Entrámos. Na lareira havia um lume mortiço; todavia, o ambiente era acolhedor. A mesa estava posta, os pratos tinham comida e os talheres tinham sido abandonados à pressa. - Por favor terminem a vossa refeição, peço desculpa - Eu sou a única culpada pelo desaparecimento do meu filho; eu não podia deixar uma criança de quatro anos sozinha no jardim; sou uma irresponsável. - Não podes ficar assim Rosarinho: - Madalena abraçou-me com força. – Tu já passastes por tanta coisa amiga, tens de arranjar coragem para enfrentares mais esta. O teu filho vai aparecer, põe isso na tua cabeça. - Diz-me Madalena, como é que eu vou para casa sem saber onde o meu filho está? Diz-me, como é que eu me posso sentar à mesa para comer? Como é que eu posso deitar a cabeça no travesseiro e dormir? Diz-me!

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Tentei controlar-me; na realidade eu precisava de ser forte mais uma vez. “É preciso enfrentar a vida com a força e a coragem com que o forcado enfrenta o touro na arena: olhos nos olhos”. Mais uma vez Deus estava a pôrme à prova.

Entrei no seu quarto onde reinava um silêncio atroz. Os brinquedos, arrumados nas prateleiras. Aproximei-me da janela e espreitei para fora. O cedro erguia-se monstruoso e negro no meio da escuridão. Pedro abriu a porta do quarto. Estremeci. Ficamos parados sem saber o que dizer. Deitei-me na pequena cama, afaguei os lençóis e deixei-me ficar abraçada à almofada. Fechei os olhos. Senti o cheiro do meu filho, ouvi a sua voz, o som dos seus passos, a sua respiração quente no meu ouvido; vi o seu sorriso lindo, o brilho do seu olhar. Senti o Pedro sentar-se a meu lado; esforcei-me para não me desconcentrar, não podia deixar fugir aquelas imagens pois eu precisava delas para me abstrair desta terrível realidade. Quando abri os olhos, na manhã seguinte, Pedro já não estava lá. Levantei-me bruscamente, aos tropeções. – Como fui capaz? Eu não podia ter adormecido, tinha de sair para procurar o meu filho. Senti-me subitamente invadida por uma frustração esmagadora e um complexo de culpa devastador. Em cima da mesa da cozinha estava um bilhete. Peguei nele com as mãos trémulas. “Rosarinho, fui a Évora participar o desaparecimento do nosso filho à polícia. Desculpa, mas não te quis acordar e também porque é conveniente que alguém esteja em casa. Velei a noite inteira o teu sono sobressaltado, mas não te culpes por isso, graças a Deus conseguiste dormir um pouco. O nosso filho vai aparecer. A polícia vai ajudar-nos. Um beijo – Pedro.”

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Uma enorme esperança invadiu o meu coração. Senti uma energia nova renascer dentro de mim; alguém levou o meu filho, mas a polícia vai encontralo e traze-lo de novo para os meus braços. Ao sair para o jardim senti-me incomodada pela ofuscante luz do sol. Semicerrei os olhos. Estava um dia lindo, embora o frio se fizesse sentir. O cão ladrou e correu para o portão. Ouvi uma voz de mulher, que me chamava. O meu coração começou a bater violentamente. Corri para ver quem era; certamente alguém que encontrou o meu filho e vem trazer-mo. Imaginei-me a abrir o portão, o meu filho a saltar para os meus braços e eu a apertá-lo contra o meu peito. No entanto, não foi isso que aconteceu. Era a Madalena, veio com os filhos para saber notícias. O Pedro, também chegou nesse preciso momento. Estava visivelmente abatido; era terrível para ele não poder fazer nada para trazer o filho de volta. - Estive a falar com um pastor que diz ter visto um Renaut clio vermelho passar perto dele ontem, por volta do meio-dia e meia hora. O carro era conduzido por um homem e no banco de trás seguia uma mulher loira de óculos escuros. - Ontem foi dia de caça, andaram por aí tantos carros. – Respondi desprezando a informação – Esse homem é um tonto. Por acaso ele mencionou ter visto alguma criança no interior do carro? Um carro da polícia chegou envolto numa nuvem de pó. Dei por mim a tremer por todos os lados. Alguma coisa dentro de mim me dizia que estava a viver um terrível pesadelo, eu estava quase a acordar e, afinal, era tudo mentira. Dois agentes saíram do carro. Eram ambos bastante jovens. Gente nova, cheia de vontade de mostrar serviço e subir na carreira. Inspiraram-me confiança. - Por favor, encontrem o meu filho. Foram as palavras que consegui pronunciar.

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- Estamos aqui para isso minha senhora – respondeu um deles, apelando à nossa calma – acreditem em nós e ajudem-nos, colaborando no que for necessário. Entrámos. A sala estava mergulhada na obscuridade. Corri os cortinados. - Sentem-se por favor. - Disse indicando-lhes o sofá junto da janela. - Fale-nos um pouco acerca do seu filho, senhora… desculpe. - Maria do Rosário. - Falar sobre o meu filho? Como assim!? - Descreva-nos o seu filho, como é que ele é, que roupa vestia na altura do desaparecimento, se costumava afastar-se de casa, se tinha amigos com quem brincava habitualmente etc. Senti-me estranhamente tranquila, uma voz interior me dizia, que o meu filho iria aparecer nas próximas horas. Incapaz de se sentar tranquilamente a conversar, Pedro andava dum lado para o outro, nervosíssimo. – Um pastor disse ter visto passar um carro vermelho, mais ou menos à mesma hora que o nosso filho desapareceu. Estava envolto numa aura de tristeza e desolação. Tive pena dele. O sofrimento estava a corroê-lo por dentro, como um ácido. Mais uma vez vemme à memória a velha frase: «duas pessoas olham pela mesma janela, uma vez as estrelas e outra vê a lama». Era preciso pensar positivo; pensamentos negativos atraem para nós coisas ruins como um íman. O nosso filho está bem, só precisamos de o encontrar; repetia incansavelmente, para mim própria. - Suspeitam de alguém? – Perguntou o agente Ricardo. Estremeci por dentro. - Não suspeitamos de ninguém. - Continuou o Pedro com voz débil. Provavelmente foi raptado… violado, assassinado. Cenários de crime passam teimosamente diante dos meus olhos, já não suporto mais.

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Pedro chorava como uma criança. Abracei-o com força; era horrível ouvi-lo falar assim e eu já não sabia o que pensar. – Pedro, este lugar é tranquilo, seguro, longe do vandalismo das grandes cidades. - Já não existem lugares seguros, Rosarinho, até parece que não ouves as noticias. Lá fora o cão deu sinal de que chegara um carro. Um jipe da G. N. R. Uma equipa de busca, com a ajuda de cães bem treinados, foi distribuída por todo o lado. Os cães farejaram cada pé de mato, lagoas, silvados, canaviais. Dezenas de polícias, prosseguiram as buscas durante toda a manhã. Os esforços, no entanto, revelaram-se infrutíferos. Contudo, eu queria continuar a acreditar que o meu filho estava vivo. Não sei onde, mas o meu coração dizia-me que ele estava bem, e que aquela equipa, iria descobrir exactamente o que lhe aconteceu; que Deus os ilumine! O Miguel e a Inês chegaram a seguir ao almoço. Com o braço direito à volta do meu pescoço, Inês aconchegou-me num abraço reconfortante. - Viemos para ajudar, querida. – Não vamos pensar no pior; não tarda nada, ele vai regressar para junto de nós. - Claro. – Respondi – nem por instantes, pensei o contrário. Sei que não era, de todo, a resposta que ela esperava ouvir. A forma aparentemente pacífica com que estava a lidar com a situação surpreendeu-a significativamente. - O meu pai onde está? – Perguntou o Miguel. Tinha os olhos brilhantes, num esforço enorme para reter as lágrimas. Virou-se, preparando-se para sair mas no mesmo instante o pai surgiu à porta da sala e ficaram frente a frente. Miguel puxou o pai para si, abraçando-o com força, acariciando-lhe as costas. – Força meu velho, o Francisquinho vai aparecer, Deus é grande. O pai acenou com a cabeça de encontro ao seu peito e começou a chorar. – Calma, é preciso ter esperança.

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Um jipe da GNR acabara de chegar. Não encontraram nada. Nenhuma pista, nada que os pudesse levar até ao Francisquinho. Inês sugeriu fazer uns cartazes com a fotografia dele e espalhá-lo por toda a cidade e arredores. Todos concordaram, - temos de fazer tudo o que estiver ao nosso alcance, não pudemos cruzar os braços.

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Cap. 23 Esperei que o sono chegasse e apagasse os meus pensamentos até ao dia seguinte. Pela porta do meu quarto acaba de entrar uma criança. Sorriu para mim e estendeu os braços como um anjo. - Oh meu filho, onde estiveste? Pestanejei e, quando voltei a olhar, não havia criança nenhuma. Tinha a certeza que o tinha visto. A sua falta, as saudades e a preocupação estavam a enlouquecer-me aos poucos. Saí para a rua, ainda convencida que ele estava a brincar lá fora. – Francisquinho, onde estás meu filho? – Gritei. - Responde por favor, vem á mamã, vem. Apenas uma lua enorme iluminava o meu caminho. A sua presença incutiu em mim uma grande segurança, era como se todas as forças do universo estivessem ali. Senti algo de superior, uma fé inabalável; o meu filho está bem, ninguém lhe fará mal algum, resta-me esperar. Regressei para casa, a noite estava fria. A imagem do meu filho sempre diante dos meus olhos como se na realidade ele caminhasse uns metros à minha frente. De repente ouvi um ruído; talvez um pássaro assustado a bater as asas no interior duma árvore. Estremeci. Era o Pedro. - Vem para dentro, a noite está fria ainda te constipas. Abracei-o com força contra o meu peito: - Temos de saber encontrar em nós mesmos a força de que precisamos para suportar esta angústia. Temos de confiar; temos de acreditar! - Eu quero acreditar – respondeu com um soluço embargando-lhe a voz. - Tu não queres, tu estás a acreditar! Vamos combinar uma coisa: Nós estamos a acreditar religiosamente que o nosso filho está a chegar a qualquer momento e é essa mensagem que vamos passar para todos e, todos juntos, vamos criar uma enorme onda de energia positiva à nossa volta que vai atrair para nós o nosso filho; chama-se a isto a lei da atracção. - Colocou o braço à volta do meu pescoço – vamos para casa.

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-Por favor Pedro, não julgues que estou louca; isto está provado, é uma lei da natureza e é tão antiga como o universo: pensamentos bons atraem coisas boas e pensamentos negativos atraem para a nossa vida coisa ruins. - Está bem, eu acredito, agora vamos para dentro. – Disse duma forma pouco convincente.

Já passaram quinze dias depois do desaparecimento do meu filho. Depois de todos os esforços da polícia judiciária, gente anónima e amigos, tudo continuava como no primeiro dia – nem uma pista. A casa estava constantemente cheia de gente: familiares, vizinhos amigos e repórteres. Privados da nossa intimidade vinte e quatro horas por dia; uma verdadeira tortura. No entanto, agradeço do fundo do meu coração a todos os que nos apoiaram. Afinal, era bom saber que não estávamos sós no pesadelo em que se havia transformado as nossas vidas. Estava deitada em cima cama, toda vestida. O quarto era o meu único refúgio. Pedro entrou em bicos de pés. Estava cada vez mais magro, o seu estado era lamentoso. Veio sentar-se na beira da cama; afagou-me o cabelo, debruçou-se sobre mim, tinha os olhos húmidos. Falou em surdina como se estivesse com medo de me acordar. Tanta ternura da sua parte desencadeou em mim uma forte reacção emocional. Retive as lágrimas num esforço descomunal; ele precisava da minha força, não das minhas lágrimas. O telefone tocou. Aliás, tocava várias vezes ao longo do dia. Sempre que isso acontecia o meu coração disparava dentro do peito – Meu Deus, não permitas que me tragam más notícias. Pedia eu em pensamentos. As minhas esperanças começam a vacilar; afinal, onde estava o meu pensamento positivo? Quem pensa positivo nunca espera más noticias. Será que estava a ser coerente?

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A Madalena e o marido revelaram-se incansáveis. Todos os dias vinham trazer-nos o seu conforto; e que mais poderiam trazer? Foi à cozinha buscar um prato de sopa e fruta. - Não me apetece comer Madalena, não consigo. No entanto, ela insistia com uma voz cheia de afecto e ternura e eu obedecia como uma criança. À medida que o tempo ia passando, eu sentia que me estava a deixar ir abaixo. O meu corpo estava possuído por um torpor, uma falta de energia! Levantei -me com alguma dificuldade, para ir à casa de banho. Olhei para o espelho e a imagem que ele me devolveu deixou-me estupefacta; não me reconheci: magra, umas olheiras de todo o tamanho, a pele macilenta como envelheci! Se o meu filho nunca mais aparecer? Fechei os olhos e abanei a cabeça, afastando esses pensamentos para longe de mim. Meu Deus, Tu que estivestes sempre a meu lado, não me abandones agora! Por favor, dá-me forças, fortalece a minha fé, trás o meu menino para junto de mim! Depois chorei, chorei até não poder mais, necessitava de libertar toda aquela dor acumulada A Inês ajudou-me a voltar para o quarto; - Não seria melhor ires lá fora apanhar um pouco de ar puro? – Sugeriu. - Não, prefiro permanecer aqui, obrigada; eu estou bem, não te preocupes. - Eu sei que não estás bem. – Meteu a mão no bolso das calças e disse: - Toma este comprimido; espera, vou buscar um copo com água. - Eu não vou tomar nada, escusas de ir buscar água. - Respondi determinada. - Rosarinho, tu estás a ficar muito deprimida, precisas de tomar alguma coisa que te ajude a superar esta dor. Tens de reagir! Eu bem sei que sempre que a vida nos apresenta situações extraordinárias Deus dá-nos forças, igualmente extraordinárias, para enfrentá-las e vence-las; no entanto, a fé nem sempre é suficiente; por vezes é necessário recorrer a produtos químicos, caso contrário não eram precisos médicos, não achas?

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- Tens razão. – Balbuciei. - Tens de ficar bem, não queres que o teu filho te encontre neste estado quando regressar, pois não? Segurei o comprimido com os dedos trémulos, engolindo-o de seguida. – Obrigada. Dormi durante horas, completamente drogada. Um dia acordei com a voz do Pierre. - Oh meu filho… as palavras ficaram presas na garganta, a vista turva e o meu cérebro completamente anestesiado; estava cheia de anti-depressivos e tranquilizantes. Havia momentos que perdia completamente o contacto com a realidade, tudo me parecia tão irreal; depois, lembrava-me do meu filho desaparecido e era como uma picada de vespa no meu coração. Pedro entrou no quarto, cabisbaixo, a barba grande – estava um farrapo. Quis sentar-me na cama, mas a minha cabeça parecia pesar toneladas. - Fica quieta, descansa, tudo vai acabar bem, vais ver. Ajoelhou-se junto da cama, acariciou-me o cabelo e beijou-me o rosto. Demorei algum tempo a recompor-me. Eu tinha de sair daquele torpor o mais rápido possível; tinha de ajudar a procurar o meu filho. Perdi completamente a noção do tempo. Pedi que me acompanhasse à casa de banho; sentia-me tão fraca que as pernas mal suportavam o peso do corpo. A judiciária tem dito alguma coisa? – perguntei. - O Miguel tem um amigo na judiciária que está a trabalhar no caso do desaparecimento do nosso filho. Telefonou agora mesmo; o tal Renout clio vermelho que o pastor disse ter visto no dia do desaparecimento acabou de chegar a Évora, conduzido por um homem e uma mulher loira de óculos de sol no banco traseiro.

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- Vamos imediatamente para lá. - Tu não estas em condições de sair daqui, desculpa Rosarinho. – Advertiu. -Eu vou, com o Miguel e o Pierre. Fingi não ter ouvido; Chamei a mim todas as forças, dirigi-me ao roupeiro, escolhi uma roupa, vesti-me e desci. _ Não percamos mais tempo! – Disse-lhes, caminhando para o carro, cambaleando como uma bêbeda. - Por favor querida... -Chio. Por favor digo eu, respeita a minha vontade, se ficar aqui enlouqueço. Jean-Pierre ajudou-me a subir. Pedro tinha na expressão, um misto de desespero e esperança. A angústia que temos vivido nestes vinte e oito dias, estava para além do suportável. O telemóvel do Miguel toca – sim Filipe, alguma coisa de novo? Sim…sim estamos quase a chegar. Podes contar com a nossa descrição. Sim; sim, tudo bem, fica descansado. - O Filipe pede para nos mantermos o mais possível afastados... E muito importante, ninguém conhece ninguém! Passávamos pela cidade e, por coincidência, vimos o tal carro e seguimos as operações. Afinal, as coincidências existem, ou não!? Entenderam bem? Lá estava o carro. Um homem saiu do interior dum restaurante, colocou os óculos escuros, as mãos nas algibeiras, andando dum lado para o outro como se esperasse alguém. De repente, foi ao encontro duma mulher que caminhava do outro lado da praça. Ambos se dirigiram para o carro; ele sentouse ao volante e ela entrou para o banco traseiro. Arrancaram. Numa manobra ágil, o carro da polícia judiciária pôs-se no seu encalço. Esperámos que se afastasse um pouco, seguindo-o à distância.

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Já fora das grandes muralhas, apanhou a estrada para Arraiolos. Quatro ou cinco quilómetros depois, o carro saiu da estrada e entrou num caminho particular. Não preciso dizer como me sentia, todas as palavras são poucas para descrever o meu estado de ansiedade. Paramos à entrada do dito caminho por onde, momentos antes, tinha entrado o renout clio. Entramos com cuidado. Os dois carros estavam parados em frente duma pequena casa isolada, no meio dum prado verdejante. Um caminho em forma de serpente levou-nos até lá. Mais uma vez elevei os meus pensamentos para Deus e rezei com toda a força da minha alma. Em frente à casa, dois agentes da judiciária falavam com o condutor do clio e uma mulher corpulenta, loira, segurava a mão duma criança. O meu filho! Ali, a dois passos de mim. Ninguém sabe avaliar, o que se sente num momento como este; apenas e só quem já passou pelo mesmo pesadelo. Não saber onde, com quem está o nosso filho, se está morto ou vivo é, sem sombra de dúvida, a pior de todas as torturas; uma angústia corrosiva que nos mina as entranhas. Para grande surpresa minha, o meu filho puxou-a pelo braço obrigandoa a baixar-se; deu-lhe um beijo de despedida e correu para nós. Fiquei mais tranquila, isto revelava que não fora mal tratado, caso contrário, ele não teria este gesto de ternura para com ela. Saí do carro, ajoelhei-me no chão e abri os braços; Meu Deus, como esperei este momento! Obrigada Senhor, eu sabia que podia contar Contigo! Apertei o meu filho contra o meu peito – nunca mais vou deixar que te levem, meu amor. O pesadelo terminou. – Pensei – como eu estava enganada! - Porque estás a chorar, mamã!? A avó deu-me chocolates… e tenho um cãozinho assim pequenino! – Disse – esticando as duas mãos para tentar mostrar o tamanho do cão. – Vem ver, mamã. -Depois, agora não. – Segurei-lhe a mão. - Espera, – Olha quem está ali. Saltou imediatamente para os braços do pai, envolvendo os bracitos à volta do seu pescoço. - Papá. Tens as barbas grandes, pica muito! Pedro estava visivelmente transtornado, soluçava como uma criança. 273


- Não chores papá, depois cortas a barba e ficas mais bonito. - Francisquinho, diz à mamã fizeram-te mal? Olhou para mim com os olhitos muito abertos. – Não! Não me fizeram mal, a avó e o avô são amigos! Entretanto a polícia preparava-se para os conduzir para o interior do carro, percebi que iam ser detidos. - Esperem! – Disse a mulher – antes eu preciso falar com os pais da criança. Aproximamo-nos. Eu nem queria acreditar no que os meus olhos viam: Madame Rose!? - Mãe do Pierre. Veio à procura de vingança. Esta mulher só pode estar louca! Por momentos fiquei paralisada. Porque é que nestes anos todos nunca se aproximou do seu verdadeiro neto, nem sequer teve curiosidade em conhecê-lo e agora aparece para raptar o meu filho? Esta mulher nunca me perdeu de vista! O que pretenderá ela!? Trazer-me sofrimento? Conseguiu. Estava imóvel com os olhos cravados em mim. Dei um passo em frente na sua direcção, nem sei bem com que intenção. O polícia quis colocar-lhe as algemas. - Os senhores importam-se de me deixar falar com a minha filha, e com o pai dela? Estas palavras causaram pasmo entre todos os presentes. Nesse momento não me restava nenhuma dúvida: enlouqueceu. Deixeime invadir por um estranho sentimento de culpa. - Há muitos anos atrás – começou, como se tivesse ensaiado um discurso – saí desta terra, abandonei tudo, para ir viver para Lisboa. Procurava uma vida melhor. Vivi numa pensão onde vivia também um determinado rapaz,

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estudante de engelharia, cujo nome era Pedro. Os seus olhos faiscavam ódio e uma espuma branca ia-se formando nos cantos da boca. Cada vez mais confusa, não percebia onde queria chegar. Que nos interessa a história da sua vida? Olhei para o Pedro, estava pálido, havia terror na sua expressão. - Estás bem? - Perguntei – Pedro não respondeu. Procurou um lugar onde se pudesse sentar. Madame Rose prosseguiu indiferente – Entre nós nasceu uma grande paixão e dessa paixão nasceu uma criança a quem pus o nome de Maria do Rosário. Estas palavras inundaram a minha mente, com a força duma tempestade. Pedro pôs-se de pé, levou as mãos à cabeça numa atitude de grande sofrimento. - Esse cobarde fugiu da noite para o dia, deixando-me de barriga cheia. Nem um sinal, nem uma justificação para tão repentino desaparecimento. Olhou para ele com um olhar penetrante e frio. Falava num tom cada vez mais exaltado, carregado de ódio -Tu feriste o meu orgulho, por tua causa rompi com a minha família e depois abandonaste-me. - Calma aí! - Disse o Pedro, levantando a mão no ar. Por minha causa!? Continuou, como que embriagada pelas próprias palavras. – Passei dias, semanas, meses, anos, numa espera desesperada e como isso nunca se veio a concretizar eu, simplesmente, tinha de sair daquele lugar cheio de más recordações; sem ti, nada fazia sentido. - Terminou!? – Perguntou um polícia – temos mais que fazer. -Espere mais um pouco, ainda não acabei. – Simulei um incêndio numa barraca frequentada por toxicodependentes de que nós também fazíamos parte. Fiz crer a todos que eu própria tinha morrido carbonizada nesse

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incêndio. Antes, abandonei a minha filha; com ela, estavam alguns documentos e a minha antiga morada. Eu sabia que a entregariam aos meus pais. O mundo inteiro acabara de desabar em cima da minha cabeça. Algumas destas confissões fizeram-me lembrar passagens do seu diário que eu continuava a guardar até hoje. - Como foi capaz!? Abandonar a própria filha, deixar que os pais sofressem o desgosto da sua morte, reaparecendo quarenta e cinco anos depois. -Odeio-a! - Também eu te odeio! Foste fruto dum sonho que se transformou num enorme pesadelo e, principalmente porque matastes o filho que realmente eu amei na vida – o meu menino – teu irmão. A sua voz era fria e cortante; o seu rosto estava desfigurado. Depois virou-se para o Pedro – A menina não te contou que passou quase vinte anos na prisão por homicídio? Pedro, incrédulo, olhou-me com ar angustiado, estava pálido – imaginei como ele se estava a sentir. – Fostes um cobarde, um canalha, uma mentira. Odeio – te igualmente. - Meu Deus, diz-me que esta mulher é uma louca, uma intrujona! A minha mãe está morta, eu quero continuar a acreditar que ela está morta. Todos estavam pregados ao chão. O meu filho Pierre chorava desesperadamente abraçado a mim. Tudo isto era cruel demais! A atmosfera à nossa volta estava carregada de sofrimento. As nossas emoções estavam ao rubro. Miguel levou o pai para o carro. - Ao entrar para o banco traseiro do carro policial, onde já se encontrava o seu cúmplice, aquele monstro em forma de ser humano ainda meteu a cabeça de fora e disse: foi pena não ter conseguido concretizar este rapto até ao fim, esta era a minha vingança.

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Já o carro ia em andamento quando, num rasgo de lucidez... – Espere aí. – Gritei para o condutor. Desculpe. Deixe-me só fazer uma pergunta a essa mulher, que diz ser minha mãe. – Se você sabia que eu era irmã de Pierre, porque não nos contou a verdade nessa altura impedindo, desse modo, que as coisas evoluíssem até tomarem estas proporções? - Eu só soube no dia do julgamento – respondeu calmamente, com uma voz apagada. - Como um vampiro que acaba de saciar a sua fome e desiste da sua presa, deixando-a sem pinga de sangue. - Maldita seja! Maldita. – Gritei com toda a força do meu pulmão. Completamente descontrolada sentei-me, dei murros no chão, puxei os meus próprios cabelos. Apavorados saíram do carro, para me segurarem - Calma Rosarinho. Mamã, não fique assim, por favor mamã! -Deixem-me. Saiam daqui. – Amaldiçoada, porque não morreu naquele incêndio!? Estiquei os braços para o céu – Oh Meu Deus, porque permites que estas coisas aconteçam? Tu que escreves direito por linhas tortas, neste caso escreveste torto por linhas direitas. Diz-me, como vou conseguir viver com este pesadelo? Amei o meu irmão, tive um filho dele; matei-o. Amo um homem que acabo de saber ser meu pai, tenho um filho dele. Como posso acreditar na justiça divina? – Gritei como uma histérica, completamente fora de mim. Deiteime no chão sem forças e sem voz para continuar; sentia-me no limiar do desespero, prestes a enlouquecer. Apanhei os cacos que restavam de mim, levantei-me com a ajuda do meu filho Pierre; Miguel abriu a porta do carro e sentou-me no banco de trás. Eu estava um trapo acabado de sair de dentro duma máquina de lavar roupa. Seguimos em silêncio. Acho que ninguém estava em condições de dizer fosse o que fosse.

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Senti-me tremendamente envergonhada, despeitada. E o Francisquinho, o que entende ele de tudo o que se passou, nestes últimos dias, e nestes últimos momentos? – era a minha grande preocupação . Queria acreditar que, de certa forma, estava protegido pela sua própria inocência. Era demasiado pequeno para poder avaliar a enormidade da situação. O dia tinha sido um horror! Queria tanto desfrutar da presença do meu filho para o poder compensar de todos estes dias que tivemos separadose no entanto, sentia-me sem forças, completamente exausta. Tentei dormir um pouco. Pedro entrou devagar, ficou de pé, a olhar para mim. Ficamos em silêncio por algum tempo - Desculpa Pedro, tenho de te fazer esta pergunta: - Porque fugiste? - Eu não fugi. Os meus pais vieram buscar-me; alguém lhes disse que eu andava com más companhias, frequentava lugares que podiam pôr tudo a perder – droga, – estás a ver? Eu juro que não sabia da gravidez. Eu não queria que tivesse sido assim. Começou a chorar e o seu corpo começou a agitar-se até irromper num choro convulsivo. Senti pena dele; num ímpeto de ternura abracei-o e choramos juntos. - Não te preocupes comigo, farei… o que tem de ser feito. - Não entendo!? - Não precisas entender, só peço que me perdoes. E de novo as lágrimas inundam os seus olhos. Limpei-lhe o rosto, pousei a minha mão na dele; estava gelada e trémula. – Agora que sei toda a verdade não te culpo. – E tu levanta esse rosto, enfrente a realidade; não te culpes

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Ouvi um estrondo, o que me pareceu ser um disparo de pistola. Corri para a biblioteca, abri a porta e entrei … Pedro! Pedro, porque fizeste isto? – Gritei. Caí de joelhos sentindo uma agonia asfixiante. Agora entendo, tarde demais, o que ele me tentou dizer, nunca me passou pela cabeça que ele tivesse coragem…Num gesto rápido fechei - lhe as pálpebras; ainda me pergunto como tive coragem de fechar para sempre aqueles olhos para a morte quando eu os queria bem abertos para a vida. Mais uma vez, senti que Deus me estava a pôr à prova; mais uma vez a vida estava a pedir-me que a encarasse bem de frente – olhos nos olhos. Diz-me Senhor, como posso voltar a erguer a cabeça? Á minha volta, um aglomerado de polícias, guardas prisionais, algemas; muitas algemas tilintavam no ar provocando um som infernal. Todos começaram a dançar uma dança cadenciada: “ Viemos-te buscar/ para a prisão vais voltar/ viemos-te buscar/ para a prisão vais voltar.” - Não! Eu não matei. Eu não matei. - Que foi Rosarinho, estás bem? – Senti uma mão acariciar-me o rosto. Sentei-me na cama, fixei o rosto do Pedro, abracei-o com força, incapaz de controlar os soluços. - Eu não posso viver sem ti, por favor Pedro não faças isso, não me dês esse desgosto, eu não iria suportar! – Não sei do que estás a falar. Vá lá, tenta acalmar-te; tiveste um pesadelo, foi só isso. _ Sabes Rosarinho, pensei muito durante toda a noite e normalmente a almofada é boa conselheira.: vou fazer de conta que não aconteceu nada… - Não aconteceu nada!? – Perguntei perplexa – como podes falar assim? 279


- Porque havia eu, de dar crédito às palavras duma mulher louca, que resolveu aparecer só agora, quarenta e cinco anos depois? Porque não me procurou na altura? – Talvez ela não saiba quem é o teu pai e… Nem podia acreditar no que os meus ouvidos estavam a ouvir – Há uma forma de esclarecer tudo: um teste de ADN. - Nem penses que me vou sujeitar a isso. – Esquece. -O nosso filho voltou são e salvo e isso é tudo o que nos importa; vamos viver a nossa vida, felizes, como vivemos até aqui. Entendi: “o pior cego, é aquele que não quer ver.” Procurei o diário e li-o de fio a pavio; não duvidei duma só palavra. Na manhã seguinte, ainda antes do sol nascer, sai pela porta de trás, fui à arrecadação, peguei numa enxada, abri um buraco bem fundo e enterrei-o. “Aqui jaz a verdade” – pensei – como dizia o meu avô, “homem morto não fala e enterrado não se vê”. Hoje olho este homem maravilhoso, que eu amei e me amou numa fase da minha vida em que mais precisava de amor e carinho. Meu companheiro, meu amigo e meu amante. Ele tem razão, vamos continuar a viver a nossa vida, felizes. O meu pai!? Não sei quem é. FIM

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