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Comentário Bíblico Broadman Volume 8 Artigos Gerais Mateus-Marcos TRADUÇÃO DE ADIEL ALMEIDA DE OLIVEIRA 3.® Edição


Todos os direitos reservados. Copyright @ 1969 da Broadman Press. Copyright (^1 9 8 7 da JUERP.para a língua portuguesa, com permissão da Broadman Press. O texto bíblico, nesta publicação, é da Versão da Imprensa Bíblica Brasileira, baseada na tradução em português de João Ferreira de Almeida, de acordo com os melhores textos em hebraico e grego.

220.7 All-Com

Allen, Clifton., ed. ger. Comentário Bíblico Broadman: Novo Testam ento. E ditor geral: Clifton J. Allen. T radução de Adiei Almeida de Oliveira. 3 .“ edição. Rio de Janeiro, Junta de Educação Religiosa e Publicações, 1986. Vol. 8 Título original: The Broadman Bible Commentary 1. Bíblia — Novo Testam ento — Comentários. 2. Novo Testam ento — Comentários. I. Título.

3.000/1988 Código para Pedido: 21.636 Junta de Educação Religiosa e Publicações da Convenção Batista Brasileira Caixa Postal 320 — CEP: 20001 Rua Silva Vale, 781 — CEP: 21370 Rio de Janeiro, RJ, Brasil Impresso em gráficas próprias


COMENTÁRIO BlBLICO BROADMAN Volume 8 lunta Editorial EDITOR GERAL Clifton J. Allen, Ex-Secretário Editorial da Junta de Escolas Dominicais da Convenção Batista do Sul, Nashville, Tennessee, Estados Unidos. Editores Consultores do Velho Testamento John I. Durham, Professor Associado de Interpretação do Velho Testatnento e Administrador Adjunto do Presidente do Seminário Batista do Sudoes­ te, Wake Forest, North Carolina, Estados Unidos. Roy L. Honeycutt Jr., Professor de Velho Testamento e Hebraico, Seminá­ rio Batista do Centro-Oeste, Kansas City, Missouri, Estados Unidos. Editores Consultores do Novo Testamento J. W. MacGorman, Professor de Novo Testamento, Seminário Batista do Sudoeste, Forth Worth, Texas, Estados Unidos. Frank Stagg, Professor de Novo Testamento da James Buchanan Harrison, Seminário Batista do Sul, Louisville, Kentucky, Estados Unidos. CONSULTORES EDITORIAIS Howard P. Colson, Secretário Editorial, Junta de Escolas Dominicais da Convenção Batista do Sul, Nashville, Tennessee, Estados Unidos. William J. Fallis, Editor Chefe de I^ublicações Gerais da Broadman Press, Nashville, Tennessee, Estados Unidos. Joseph F. Green, Editor de Livros de Estudo Bíblico da Broadman Press, Nashville, Tennessee, Estados Unidos.



APRESENTAÇÃO O COMENTÁRIO BÍBLICO BROADMAN tem a missão de “ajudar os homens a conhecer a verdade de Deus da forma como ela é revelada na sua Palavra, para que possam sentir o âmago da sua mensagem nas suas vidas, no mundo moderno” . Com este objetivo sempre em mente, o Comentário foi escrito, compilado e editado com todas as preocupações e convicções que podem ser esperadas para caracterizar a maior aventura editorial na história da Broadman Press. Ele é baseado na convicção de que a Bíblia é uma revelação incomumente inspirada de Deus, para guiar a fé e a prática cristãs. Usufruindo dos recursos da pesquisa histórica e contemporânea e da erudição bíblica, ele é marcado por uma forte ênfase na mensagem redentora das Escrituras e na relevância do ensino bíblico em relação aos assuntos e problemas do mundo atual. Ao imprimir o texto todo da Imprensa Bíblica Brasileira, ele esboça cada livro da Bíblia, e um a interpretação e exposição, parágrafo por parágrafo, do texto, é desenvolvida dentro desse arcabouço. Há também material introdutório para cada livro da Bíblia, tratando de questões pertinentes ao objetivo, data, autoria e localização do livro. Os artigos gerais, no Volume 8, resumem material interpreta­ tivo acerca do Novo Testamento e de seus temas principais. Um equilíbrio proposital é mantido entre a exegese e a exposição, obtido pela percepção disciplinada dos escritores e editores, e pelo seu hábil manuseio de material. Evitando intencionalmente extremos teológicos, o Comentário caracteriza-se por uma fé centralizada em Cristo, e pela realidade da redenção pessoal, tanto quanto pela exigência de uma autêntica expressão de fé em termos de uma vida cristocêntrica. Os volumes, encadernados em belas e resistentes capas, oferecem muitos anos de uso e utilidade. A Junta de Conselheiros Editoriais foi organizada com base na liderança da Igreja Batista do Sul dos Estados Unidos, nos campos teológico, denominacional e pastoraU Os escritores desta obra foram selecionados, tendo como base a sua maturidade na fé e as suas qualificações quanto à erudição. Todos são homens reconhecidos como eruditos bíblicos e lideres de confiança na comunidade cristã. Dirigindo a Junta Editorial como Editor Chefe, está Clifton J. Allen, que se aposentou do cargo que exerceu por muito tempo como Secretário Editorial da Junta de Escolas Dominicais da Convenção Batista do Sul dos Estados Unidos, para dedicar tempo integral a este projeto desafiador. Ele é escritor experiente de exposições bíblicas e líder internacionalmente conhecido nos círculos de educação cristã.



L. D. Johnson, Capelão da Universidade Furman

Junta de Consultores Oifton J. Allen, Ex-Secretário Editorial da Junta de Escolas Dominicais Batis­ tas J. P. Allen, Pastor da Igreja Batista Broadway, Fort Worth John E. Bames, Jr., Pastor da Igreja Ba­ tista da Main Street, Hattiesburg OllnT. Binkley, Presidente do Seminário Teológico Batista do Sudeste WlUiam J. Brown, Gerente do Departa­ mento Leste de Livrarias Batistas da Junta Batista de Escolas Dominicais John R. Claypool, Pastor da Igreja Batista de Crescent Hill, Louisville Howard P. Colson, Secretário Editorial da Junta Batista de Escolas Domini­ cais Chauncey R. Daley, Jr., Editor do Wes­ tern Recorder, Middletown, Kentucky Joseph R. Estes, Secretário do Departa­ mento da Obra Relacionada com os Não Evangélicos da Junta Batista de Missões Nacionais WiUiam J. Fallis, Editor-Chefe de Pu­ blicações Gerais da Broadman Press Allen W. Graves, Deão da Escola de Educação Religiosa do Seminário Teo­ lógico Batista do Sul Joseph F. Green, Editor de Livros de Estudo Bíblico da Broadman Press Ralph A. Herring, Ex-Diretor do Depar­ tamento de Extensão Teológica da Convenção Batista do Sul Herschel H. Hobbs, Pastor da Primeira Igreja Batista, Oldahoma City Warren C. Hultgren, Pastor da Primeira Igreja Batista em Tulsa Lamar Jackson, Pastor da Igreja Batista Southside, Birmingham

J. Hardee Kennedy, Professor de Velho Testamento e Hebraico no Seminário Teológico Batista de New Orleans Herman L. King, Diretor da Divisão de Publicações da Junta Batista de Esco­ las Dominicais William W. Lancaster, Pastor da Primei­ ra Igreja Batista, Decatur, Georgia Randall Lolley, Pastor da Primeira Igreja Batista, Winston-Salem C. DeWitt Mattews, Professor de Prega­ ção, Seminário Teológico Batista do Centro-Oeste John P. Newport, Professor de Filosofia da Religião do Seminário Teológico Batista do Sudoeste Lucius M. Polhill, Ex-Secretário Executi­ vo da Associação Geral Batista da Virgínia Porter Routh, Secretário-Tesoureiro Exe­ cutivo do Comitê Executivo da Con­ venção Batista do Sul John L. Slaughter, Ex-Pastor da Primei­ ra Igreja Batista, Spartanburg R. Houston Smith, Pastor da Primeira Igreja Batista, Pineville, Louisiana lames L. Sullivan, Secretário Executivo da Junta Batista de Escolas Domini­ cais Ray Summers, Diretor do Departamento de Religião da Universidade Baylor Charles A. Trentham, Pastor da Primei­ ra Igreja Batista, Knoxville Keith von Hagen, Diretor da Divisão de Livrarias da Junta Batista de Escolas Dominicais J. R. White, Pastor da Primeira Igreja Batista, Montgomery Conrad Willard, Pastor da Igreja Batista Central, Miami Kyle M. Yates, Jr., Professor de Reli­ gião na Universidade Estadual de Oklahoma


Colaboradores

Oiffton J. Allen, Junta Batista de Esco­ las Dominicais (aposentado): Artigo Geral Morris Ashcraft, Seminário Teológico Batista do Centro-Oeste: Apocalipse G.R. Beasley-Murray, Universidade Spurgeon, Londres: 7/Connííos Robert G. Bratcher, Sociedade Bíblica Americana: Gera/ ames A. Brooks, Seminário Teológico Batista de New Orleans: Artigo Geral Raymond Bryan Brown, Seminário Teo­ lógico Batista do Sudeste: ICoríntios Joseph A. Callaway, Seminário Teológico Batista do Sul, Artigo Geral E. Luther Copeland, Seminário Teológi­ co Batista do Sudeste: Artigo Geral William L. Hendricks, Seminário Teoló­ gico Batista do Sudoeste: Artigo Geral E. Glenn Hinson, Seminário Teológico Batista do Sul: I e II Timóteo; Tito; Artigo Geral Hershel H. Hobbs, Primeira Igreja Batis­ ta, Oklahoma City: I e I I Tessaloni­ censes William E. Hull, Seminário- Teológico Batista do Sul: João John William MacGorman, Seminário Teológico Batista do Sudoeste: Gálatas Edward A. McDowell, Seminário Teoló­ gico Batista do Sudeste (aposentado): I, II e III João Ralph P. Martin, Seminário Teológico Fuller: Efésios

Dale Moody, Seminário Teológico Batis­ ta do Sul: Romanos John P. Newport, Seminário Teológico Batista do Sudoeste: Artigo Geral William M. Pinson, Jr., Seminário Teo­ lógico Batista do Sudoeste: Artigo Ge­ ral Ray F. Robbins, Seminário Teológico Batista de New Orleans: Filemom Eric C. Rust, Seminário Teológico Ba­ tista do Sul: Artigo Geral Burlan A. Sizemore, Jr., Seminário Teo­ lógico Batista do Centro-Oeste: Artigo Geral T. C. Smith, Universidade Furman: Atos: Artigo Geral Harold S. Songer, Seminário Teológico Batista do Sul: Tiago Frank Stagg, Seminário Teológico Batis­ ta do Sul: Mateus Ray Summers, Universidade Baylor: I e II Pedro; Judas; Artigo Geral Malcolm O. Tolbert, Seminário Teológi­ co Batista de New Orleans: Lucas Charles A. Trentham, Primeira Igreja Batista de Knoxville: Hebreus; Artigo Geral Henry E. Turlington, Igreja Batista da Universidade, Chapei Hill, Carolina do Norte: Marcos W. Curtis Vaughan, Seminário Teológi­ co Batista do Sudoeste: Filipenses R. E. O. White, Universidade Teológica Batista, Glasgow: Colossenses


Prefácio o COMENTÁRIO BÍBLICO BROADMAN apresenta um estudo bíblico atualizado, dentro do contexto de uma fé robusta na autoridade, adequação e confiabilidade da Bíblia como a Palavra de Deus. Ele procura oferecer ajuda e orientação para o crente que está disposto a empreender o estudo da Bíblia como um alvo sério e compensador. Desta forma, os seus editores definiram o escopo e propósito do COMENTÁRIO, para produzir uma obra adequada às necessidades do estudo bíblico tanto de ministros como de leigos. As descobertas da erudição bíblica são apresentadas de forma que os leitores sem instrução teológica formal possam usá-las em seu estudo da Bíblia. As notas de rodapé e palavras são limitadas às informações essenciais. Os escritores foram cuidadosamente selecionados, tomando-se em consideração sua reverente fé cristã e seu conhecimento da verdade bíblica. Tendo em mente as necessidades de leitores em geral, os escritores apresentam informações especiais acerca da linguagem e da história onde elas possam ajudar a esclarecer o significado do texto. Eles enfrentam os problemas bíblicos — não apenas quanto à linguagem, mas quanto à doutrina e à ética — porém evitam sutilezas que tenham pouco a ver com o que devemos entender e aplicar da Bíblia. Eles expressam os seus pontos de vista e convicções pessoais. Ao mesmo tempo, apresentam opiniões alternativas, quando estas sâo esposadas por outros sérios e bem-informados estudantes da Bíblia. Os pontos de vista apresentados, contudo, não podem ser considerados como a posição oficial do editor. O COMENTÁRIO é resultado de muitos anos de planejamento e preparação. A Broadman Press começou em 1958 a explorar as necessidades e possibilidades deste trabalho. Naquele ano, e de novo em 1959, líderes cristãos — especialmente pastores e professores de seminários — se reuniram, para considerar se um novo comentário era necessário e que forma deveria ter. Como resultado dessas deliberações, em 1961, a junta de consultores que dirige a Editora autorizou a publicação de um comentário em vários volumes. Maiores planejamentos levaram, em 1966, à escolha de um editor geral e de uma Junta Consultiva. Esta junta de pastores, professores e líderes denominacionais reuniu-se em setembro de 1966, revendo os planos preliminares e fazendo definidas recomendações, que foram cumpridas à medida que o COMENTÁRIO se foi desenvolvendo. ~No começo de 1967, quatro editores consultores foram escolhidos, dois para o Velho Testamento e dois para o Novo Testamento. Sob a direção do editor geral, esses homens trabalharam com a Broadman Press e seu pessoal, a fim de planejar o COMENTÁRIO detalhadamente. Participaram plenamente na escolha dos


escritores e na avaliação dos manuscritos. Deram generosamente do seu tempo e esforços, fazendo por merecer a mais alta estima e gratidão da parte dos funcionários da Editora que trabalharam com eles. A escolha da Versão da Imprensa Bíblica Brasileira “ de acordo com os melhores textos em hebraico e grego” como a Bíblia-texto para o COMENTÁRIO foi feita obviamente. Surgiu da consideração cuidadosa de possíveis alternativas, que foram plenamente discutidas pelos responsáveis pelo Departamento de Publica­ ções Gerais da Junta de Educação Religiosa e Publicações. Dada a fidelidade do texto aos originais bem assim à tradução de Almeida, amplamente difundida e amada entre os evangélicos, a escolha justifica-se plenamente. Quando a clareza assim o exigiu, foram mantidas as traduções alternativas sugeridas pelos próprios autores dos comentários. Através de todo o COMENTÁRIO, o tratamento do texto bíblico procura estabelecer uma combinação equilibrada de exegese e exposição, reconhecendo abertamente que a natureza dos vários livros e o espaço destinado a cada um deles modificará adequadamente a aplicação desta abordagem. Os artigos gerais que aparecem neste Volume, têm o objetivo de prover material subsidiário, para enriquecer o entendimento do leitor acerca da natureza da Bíblia. Focalizam-se nas implicações do ensino bíblico com as áreas de adoração, dever ético e missões mundiais da igreja. O COMENTÁRIO evita padrões teológicos contemporâneos e teorias mutáveis. Preocupa-se com as profundas realidades dos atos de Deus na vida dos ho­ mens, a sua revelação em Cristo, o seu evangelho eterno e o seu propósito para a redenção do mundo. Procura relacionar a palavra de Deus na Escritura e na Palavra viva com as profundas necessidades de pessoas ^e da humanidade, no mundo de Deus. Mediante fiel interpretação da mensagem de Deus nas Escrituras, portanto, o COMENTÁRIO procura refletir a inseparável relação da verdade com a vida, do significado com a experiência. O seu objetivo é respirar a atmosfera de relação com a vida. Procura expressar a relação dinâmica entre a verdade redentora e pessoas vivas. Possa ele servir como forma pela qual os filhos de Deus ouvirão com maior clareza o que Deus Pai está-lhes dizendo.


Sumário Artigos Gerais Os Antecedentes Religiosos e Culturais do Novo Testamento

T. C. S m ith ....................

17

Texto e Cânon do Novo Testamento

James A. Brooks............

33

História da Cristandade Primitiva

E. Glenn Hinson............

42

A Teologia do Novo Testamento

WiUiam L. Hendricks . .

54

Abordagens Contemporâneas no Estudo do Novo Testamento

Ray Su m m ers................

73

Introdução.........................................................................................................

89

Comentário Sobre o T e x to ..............................................................................

111

Mateus

Marcos

Frank Stagg

Henry E. Turlington

Introdução........................................................................................................

313

Comentário Sobre o T e x to ............................................................................ .. 326



Artigos Gerais



Os Antecedentes Religiosos e Culturais do Novo Testamento ^

Ê impossível entender a origem e cres­ cimento do movimento cristão fora do contexto cultural e religioso do Novo Testamento. Quer a pessoa creia que Deus preparou os eventos da história ou criou a necessidade favorável à dissemi­ nação do evangelho, não podemos enca­ rar o cristianismo isolado do contato com esse meio ambiente. Ê com esta verdade em mente que exploraremos os elementos políticos, religiosos e culturais dos mun­ dos judaico e greco-romano, a fim de mostrar como ambos influenciaram o cristianismo primitivo.

I. História Política do Mundo Greco-Romano A história política do mundo greco-romano começa com Filipe II, rei da Macedônia e pai de Alexandre, o Grande. Ele fundou a Grécia, famosa por sua arte, literatura e arquitetura, atingida por lutas e dissensões entre as cidadesestado. Através de suborno, assumindo o papel de árbitro e defensor do deus da cidade de Delfos, tornou-se senhor da Grécia em 338 a.C. e formou a Liga Helênica. Filipe sonhava com uma Gré­ cia unida, que pudesse dominar o mun­ do. Embora a Liga estivesse pouco dis­ posta a aceitá-lo, ele foi escolhido como comandante das forças gregas unidas para atacar a Pérsia. Antes que pudesse realizar o seu sonho, Filipe foi assassina­ do em 336. O seu filho Alexandre, com dezenove anos, tornou-se o herdeiro da sua ambição. Alexandre levou dois anos para provar aos gregos a sua capacidade de líder mi­ litar. Depois que a Liga Helênica o esco-

T. c.

Smith

lheu como comandante, em 334 a.C., ele cruzou o Helesponto, para travar batalha com os persas. Alexandre arrasou a es­ quadra persa em Granico e Isso, e avan­ çou para o sul, em direção ap Egito, onde foi aclamado como libertador dos egíp­ cios. Em 331 ele avançou para leste, e selou a queda de Dario III e dos persas, na batalha de Gaugamela. As suas proe­ zas não terminaram com uma vitória decisiva sobre os persas, mas levaram-no mais longe, em direção ao leste, até o rio Indo. Quando morreu, de febre, em 323, o seu reino se estendia da Grécia ao norte da Índia. Esse fantástico estrategista mi­ litar conseguiu tudo isto em apenas 13 anos. A história não dá a medida da gran­ deza de Alexandre em termos da vastidão de território que ele conquistou. A sua maior conquista foi reunir o Leste e o Oeste, através da propagação da cultura grega. O espírito helênico de liberdade individual, emancipação da tirania do costume e da tradição, o exercício livre da pesquisa científica e da crítica, o amor ao belo, na arte e na literatura, e o desenvolvimento da mente e do corpo, estenderam-se por todas as partes do mundo, com a sua política de helenização. Da babel dos dialetos gregos, surgiu um idioma grego inteligível para todos os gregos e utilizável para todos os povos conquistados. Alexandre derrubou barreiras raciais e nacionais, encorajando os seus soldados a se casarem com mulheres asiáticas. O seu objetivo era estabelecer um poderoso império, que desprezasse a diferença en­ tre gregos e bárbaros, libertando o ho­ mem para as relações internacionais. A 17


medida que o seu exército avançava, ele estabelecia colônias gregas, que se torna­ ram centros de cultura helênica. A mis­ tura de raças iniciou um espírito cosmo­ polita, um sincretismo de religiões e um interesse no indivíduo. 1. Dominação Helênica, 323-167 a.C. Por ocasião da morte de Alexandre, o vasto Império foi dividido entre os seus generais. Ptolomeu lançou mão do Egito, e mais tarde reclamou a posse da Pales­ tina. O fato de ele ter lançado mão deste território suscitou a ira de Seleuco, outro general de Alexandre, que se tornou go­ vernador da Síria depois da Batalha de Ipso, em 301 a.C. Por mais de um século os selêucidas, da Síria, e os ptolomeus, do Egito, lutaram pela posse da Palesti­ na. Os judeus que habitavam essa terra desta forma foram lançados no meio do conflito. Com a divisão do Império de Alexan­ dre, a própria Grécia deixou de manter a sua velha posição de liderança; mas a sua cultura espalhou-se e desenvolveu-se pe­ las cidades dos novos reinos. Embora os helenistas tenham influenciado os povos conquistados com a sua cultura, foram, por seu tumo, em-iquecidos por culturas estrangeiras, inclusive pelo judaísmo. Sob o governo dos Ptolomeus, algo de tremenda importância ocorreu, que ar­ rastou os judeus para o centro da corren­ teza do progresso humano. Durante o reinado de Ptolomeu Filadelfo (285-247 a.C.), o Velho Testamento foi traduzido, pelo menos em parte, para a língua grega. Duvida-se que uma tradução de todos os escritos veterotestanientários te­ nha sido feita nessa ocasião. Possivel­ mente, nada mais do que a tradução do Pentateuco foi tentada nessa ocasião. De qualquer forma, através desse feito, os escritos religiosos dos judeus agora esta­ vam à disposição do mundo não-judaico, em uma língua que todo o mundo conhe­ cido podia entender. As crenças religio­ sas do judaísmo, que anteriormente ha­ 18

viam sido, em grande parte, confinadas aos limites da comunidade judaica, ago­ ra se abriam, para merecer a considera­ ção do mundo todo. Antíoco, o Grande, rei selêucida, de­ pois de três tentativas para tomar posse da Palestina, subtraindo-a dos ptolo­ meus, derrotou o exército egípcio na ba­ talha de Panium, em 198 a.C., e arran­ cou a terra das mãos de Ptolomeu V. O reinado de Antíoco foi significativo para a história judaica, não apenas por­ que a Palestina cessou de estar sob a dominação dos ptolomeus, mas também porque o seu reinado testemunhou a entrada dos romanos na política asiáticai Por causa da oposição armada fracas­ sada de Antíoco à extensão da domina­ ção romana, Roma impôs pesadas inde­ nizações de guerra a Antíoco e seu terri­ tório político. Em adição aos tributos, os romanos compeliram-no a fornecer re­ féns como pagamento das indenizações. A atitude dos judeus para com Antío­ co, o Grande, a princípio foi favorável. Os judeus ficaram contentes de poder mudar a sua lealdade dos ptolomeus para os selêucidas. Antíoco favoreceu os judeus da Palestina, aliviando o peso dos impostos que os oprimia. Ele foi além: chegou a isentar os funcionários do Templo do pagamento de impostos. To­ davia, quando o rei selêucida se defron­ tou com a necessidade de pagar as in­ denizações de guerra, fez pesadas exigên­ cias monetárias, e os judeus acharam que haviam sido traídos. Antíoco, o Grande, foi morto na Ba­ talha de Elam, em 187, e o seu filho, Seleuco IV (187-175) ascendeu ao trono. Como rei, ele seguiu uma política desaconselhável quanto ao tratamento que dispensou aos judeus. Seleuco enviou o seu general Heliodoro a Jerusalém, para tomar posse do tesouro do Templo. Um relato completo deste incidente ocorre no livro apócrifo de II Macabeus. Helio­ doro não teve sucesso no seu empreendi-


mento. Em 175 a.C. Seleuco IV foi mor­ to. Antíoco, filho de Antíoco, o Grande, e irmão de Seleuco IV, usurpou o trono de Demétrio, filho de Seleuco IV e seu sucessor natural, e reinou de 175 a 163. Antíoco concebeu a idéia de fazer reviver os deuses do Olimpo, da Grécia, e usouos como instrumentos de unidade para o Império. Para manter a unificação do Império, era essencial que houvesse ape­ nas uma religião. Desta forma, ele deci­ diu tornar Zeus supremo outra vez. Na verdade, as estátuas de Zeus que ele erigiu têm uma semelhança marcante com Antíoco. Ele se tornou conhecido como Theos Epiphanes (Deus Manifes­ to), e exigiu que fosse contado entre os deuses. Halos encontrados em suas moe­ das confirmam essa exigência de deificação. Desde o tempo de Alexandre, o Gran­ de, até a ascenção de Antíoco Epifânio, as influências helenistas haviam penetra­ do gradualmente na Palestina. A exis­ tência de adoração helênica e festivais gregos de atletismo, moedas ostentando inscrições em grego, e emblemas de di­ vindades gregas, e mais a evidência de cidades com nomes gregos, tudo testifica desse fato. Se Antíoco IV não tivesse recorrido a métodos violentos para a helenização dos judeus palestinos, é bem provável que eles gradualmente se sub­ metessem ao helenismo de maneira pací­ fica, até os limites da possibilidade de sua aceitação. O rei sírio era um homem de impulsos violentos. Quando encontrava oposição, podia tornar-se violento e cruel. Os seus sonhos de vencer os romanos e libertar os sírios das enormes indenizações de guer­ ra herdadas do seu pai, tornaram-se-Ihe obsessão. Ele cria que a única ação que lhe cabia era forçar o povo, em todo o território sob seu domínio, a aceitar a cultura grega. Sob a direção de Jáson, que, através da influência de Epifânio, conseguiu que o seu irmão Onias III

fosse declarado sumo sacerdote, os ju ­ deus mais influentes, a princípio, enca­ raram com razoável simpatia a heleniza­ ção. A alegre aceitação de Antíoco, pelos li­ berais, começou a se desvanecer quando Jáson foi deposto e Menelau o substituiu. Durante uma expedição de Antíoco Epi­ fânio contra o Egito, Jáson liderou um ataque contra Menelau, e capturou a cidade de Jerusalém. Tendo já sido im­ pedido pelos romanos, na sua tentativa de invadir o Egito, e irado pelo em­ baraço de precisar submeter-se á autori­ dade romana, Antíoco voltou, para ter ^ sua raiva aumentada pela revolta de Já­ son. Antíoco não estava em condições psíquicas de tolerar qualquer dissenção em seu Império. Se ele tivesse alguma esperança de derrotar os romanos, preci­ sava ter absoluta unidade. Ele via que o verdadeiro problema dos judeus eram as suas crenças religiosas. Portanto, con­ cluiu que precisava engajar-se em uma política forçada de helenização, que seria completa em todos os detalhes. Antíoco decretou que os sacrifícios diá­ rios no templo deveriam cessar. Um altar a Zeus Olimpo foi erigido sobre o altar usado pelos judeus para as ofertas quei­ madas. Suínos foram oferecidos como sacrifícios no Templo, e cópias da Lei foram destruídas. A pena por possuir uma cópia da Lei ou por praticar o rito da circuncisão era a morte. Antíoco também declarou que a observância do sábado era ilegal. A maioria desses de­ cretos foi emitida no mês de Kislev (de­ zembro), de 168 a.C. A princípio houve apenas resistência passiva da parte dos judeus que se recusaram a submeter-se. Depois que a perseguição de Epifânio se tomou mais severa e muitos judeus fo­ ram condenados à morte, uma resistên­ cia ativa tornou-se inevitável. 2. A Revolta Hasmoneana, 167-142 a.C. A liderança da organização de résistência ativa surgiu na cidade de Modim, 19


perto de Lida. Ali, um idoso sacerdote, chamado Matatias, que era da linhagem de um certo Hasmom, recusou-se a rea­ lizar sacrifícios aos deuses pagãos. M ata­ tias matou um judeu apóstata e o comis­ sário do rei. Ele percebeu que era hora de agir, e convocou todos os judeus que eram zelosos pela Lei para segui-lo e aos seus cinco filhos, em uma guerrilha con­ tra os sírios. Esta revolta ocorreu em 167 a.C.. Quando Matatias morreu, a lide­ rança do movimento coube ao seu filho Judas. Depois de várias escaramuças contra as forças sírias, obtendo sucesso, Judas tomou posse de Jerusalém, com a exceção de uma guarnição chamada Akra. No vi­ gésimo quinto dia de dezembro (Kislev) de 165 ou 164, ele entrou no Templo e destruiu o altar que havia sido dedicado a Zeus. Também renovou os sacrifícios a Yahweh. Desde então, esse dia foi obser­ vado como festival anual, e continua a ser observado nos dias de hoje, pelos judeus, como o Festival de Hanukkah (Dia da Purificação). Restaurada mais uma vez a liberdade religiosa em Jerusalém, muitos dos hasi­ dim, piedosos seguidores de Judas M a­ cabeu, decidiram que aquela vitória era suficiente. Contudo, Judas não estava disposto a se acomodar com algo menos do que a independência política. E ficou ainda mais convencido disto quando os judeus de Gileade e da Galiléia apelaram a ele, pedindo ajuda. Os seus irmãos, Simão e Jônatas, responderam ao apelo desses seus compatriotas judeus, e leva­ ram-nos de volta à Judéia. Com essa adição às suas forças. Judas começou a sonhar com o poderio político. Os seus seguidores piedosos, os hasidim, opuse­ ram-se aos ambiciosos planos de Judas, e o abandonaram. A fim de manter uma força guerreira. Judas teve que recorrer à contratação de mercenários. Continuou as suas escaramuças contra o governo central, até que, finalmente, em 160, restando apenas oitocentos homens em 20

seu exército, a sua carreira chegou ao fim, na Batalha de Elasa. Jônatas, irmão de Judas, tomou-se lí­ der dos judeus depois da morte de Judas. Este foi um período em que vários rivais contenderam pelo trono selêucida, e Jô­ natas ganhou alguma vantagem política para os judeus, durante a confusão con­ seqüente. 3. Reinado dos Hasmoneanos, 142-63 a.C. Depois da morte de Jônatas, Simão, seu irmão, tornou-se o líder reconhecido dos judeus. Simão conseguiu o que era equivalente à independência política por apoiar Demétrio II, em suas pretensões ao trono selêucida. Do ano 142 ao 63, quando Roma invadiu a Palestina, a Jüdéia permaneceu como estado inde­ pendente. Depois de sete anos de rela­ tiva paz na Judéia, enquanto servia como sumo sacerdote, Simão foi assassinado, e o seu filho, João Hircano, o sucedeu. Embora Josefo, o historiador judeu, afirme que Aristóbulo, filho de João Hir­ cano, foi o primeiro rei dos judeus na linhagem hasmoneana, é claro que João se considerava como o detentor desse titulo, ao lado do ofício de sumo sacer­ dote. Durante o reinado de João Hirca­ no, um período de, aproximadamente, trinta anos (135-105), o exército judeu venceu os samaritanos e destruiu o seu templo no Monte Gerezim, em 127 a.C. Hircano forçou os idumeus a se subme­ terem à circuncisão e se tomarem judeus. Pelas suas conquistas, parece que João Hircano pretendia estender os limites da Judéia ao ponto de incluir o território ou­ trora conquistado por Davi e Salomão. Ele teve tanto sucesso, em suas campa­ nhas, que muitos dos judeus tinham a esperança de que fosse o ansiado Mes­ sias. A primeira vez que ouvimos falar de fariseus e saduceus é na época de João Hircano. Eles aparecem como partidos religiosos plenamente desenvolvidos, com opiniões conflitantes. João Hircano


apoiou os fariseus até eles expressarem oposição ao fato de ele ocupar o ofício de sumo sacerdote, e ao mesmo tempo absorver-se com a política mundana. Ele mostrou o seu ressentimento para com a autoridade deles, abolindo certos regula­ mentos religiosos que os fariseus haviam impôsto ao povo. Este foi apenas o início das hostilidades e da amargura entre os hasmoneanos e os fariseus. O clímax dessa divisão aconteceu durante o gover­ no de Alexandre Janeu. O sucessor de João Hircano foi Aris­ tóbulo, que foi rei e sumo sacerdote durante pouco mais de um ano. A sua única realização foi derrotar os galileus, a quem ele forçou a se submeterem à circuncisão e à Lei judaica. Quando ele morreu, Salomé, sua esposa, libertou os irmãos de Aristóbulo da prisão, e casouse com o mais velho, Jônatas. Este assu­ miu o nome grego de Alexandre, e foi conhecido como Alexandre Janeu. Ele foi um governante ambicioso e guerreiro, que se determinou a possuir a Palestina, de Dã até Berseba. Os fariseus se opuseram a Alexandre deste o início, porque se casara com Ale­ xandra Salomé, esposa de seu irmão. De acordo com o levirato judaico, era legal um homem casar-se com a esposa de seu irmão falecido, mas essa lei não se apli­ cava aos sacerdotes. Requeria-se que eles se casassem com virgens. Os judeus de­ monstraram abertamente a sua hostili­ dade contra Alexandre, atirando-lhe ci­ dras, enquanto ele estava oficiando, por ocasião da Festa dos Tabernáculos. Num ímpeto de ira, ele ordenou que os seus soldados atacassem o povo, e seis mil foram massacrados. Ele aumentou os seus crimes contra os judeus, crucifican­ do oitocentos fariseus, ao estes levanta­ rem uma rebelião contra ele. O único conselho sábio que Alexandre deu em sua vida, foi à sua esposa, pouco antes de morrer: aconselhou-a a fazer amizade com os fariseus. Quando Alexandra Salomé tornou-se rainha dos judeus, indicou Hircano H,

seu filho mais velho, para a posição de sumo sacerdote. Aristóbulo II, o filho mais moço, apoiou a causa dos saduceus, e esperou o tempo oportuno para lançar mão do ofício sacerdotal e do trono. Depois da morte de sua mãe, ele voltouse contra Hircano II, que voluntariamen­ te se submeteu, visto que não tinha dis­ posição favorável para o reino nem para o sacerdócio. Antípater, governador da Iduméia e conselheiro de Hircano II, não queria que ele desistisse tão facilmente, e solicitou a ajuda de Aretas II, rei dos nabateus, para empreender guerra con­ tra Aristóbulo II. A solução desse caso, coisa que eles lamentaram muito, mais tarde, aconteceu mediante a intervenção dos romanos. Desde os dias de Antíoco, o Grande, o poderio de Roma era respeitado em todo o Oriente, embora não houvesse tentati­ vas para consolidar a vitória conseguida em Magnésia, mediante conquistas. A política romana mudou no primeiro sé­ culo a.C., quando Mitridates, rei de Pon­ to, empreendeu três guerras contra Ro­ ma. Na terceira guerra, Pompeu, que previamente havia grangeado reputação, ao destruir os piratas do Mediterrâneo e ao fazer da Cilícia uma província ro­ mana, comandou as forças romanas e in­ vadiu Ponto. Completamente vitorioso, Pompeu avançou contra a Síria e, sem dificuldades, anexou-a como província romana. Quando chegou a Damasco, ele ouviu falar da luta entre Hircano e Aris­ tóbulo. Em 63 a.C. Pompeu entrou em Jerusalém e resolveu a disputa a favor de Hircano, porque ele cria que Hircano era mais fraco, e poderia ser usado para os seus objetivos. A incapacidade dos judeus de resolve­ rem as suas disputas custou caro. A inde­ pendência que eles haviam gozado desde o tempo de Siinão acabou-se com a do­ minação romana. Todos os territórios, além da Judéia, que haviam sido ga­ nhos por conquista pelos hasmoneanos, com excessão da Iduméia, foram-lhes tirados. 21


4. Governo Romano, 63 a.C. — 70 A.D. Hircano II permaneceu como o gover­ nante eclesiástico dos judeus, mas os negócios políticos do país passaram a ser dirigidos por Antípater.Foi bom, para os judeus, que tivessem um homem como Antípater para guiá-los durante os atri­ bulados anos das guerras civis romanas. Eles odiavam-no, a despeito do fato de que ele lhes havia assegurado muitos privilégios, pelo fato de agir com cautela em política, e sempre sair-se do lado dos vencedores. Desprezavam-no porque ele representava um poder estrangeiro em sua política administrativa, e também porque era idumeu. Através das guerras civis, que começaram com Júlio César e Pompeu, e terminaram com a guerra entre Otaviano e Antônio, na Batalha de Accio, em 31 a.C., Antípater e, depois da sua morte, o seu filho Herodes, foram sempre leais ao general romano que do­ minasse o Oriente. Em 42 a.C., depois da Batalha de Fi­ lipos, Herodes, que sucedeu, o seu pai como governador da Judéia, encontrouse em uma posição assaz embaraçosa. Ele havia apoiado Cássio, e — agora que Cássio e Bruto haviam sofrido derrota em batalha — precisava conseguir o apoio de Antônio e Otaviano. Isto ele foi capaz de fazer. Em 40 a.C., Herodes foi a Roma para encontrar-se com Otaviano, e obter ve o reinado da Palestina, mas não conse­ guiu estabelecer-se no trono senão no ano 37. Reinou sobre a Palestina até a sua morte, em 4 a.C.. Foi durante o seu reinado que Jesus nasceu em Belém. Herodes, o Grande, era por natureza ambicioso, explosivo, sensual e cruel; todavia, a despeito destas falhas, ele foi um rei enérgico e capaz, embora inescrupuloso. Os judeus não gostavam dele, parcialmente porque ele era idumeu, e parcialmente por causa dos impostos ex­ cessivos. Ele ficara devendo a Roma de­ vido à sua posição como soberano, e não estava disposto a permitir que os sadu­ ceus gozassem poderio secular, ao lado 22

do seu poder eclesiástico. Ocasionalmen­ te, Herodes favorecia os fariseus, porque estes eram mais inclinados a se restrin­ girem aos negócios religiosos e deixar a política para outrem. Os judeus, sob a liderança dos fariseus, desagradaram-se quando Herodes construiu um teatro em Jerusalém e encorajou adoração pagã no seu reino. No seu programa de constru­ ções, que foi extenso, ele tomou provi­ dências para a reconstrução do Templo. Os judeus receberam isto como um ato nobre. Se eles estivessem dispostos a aceitá-lo como seu rei, Herodes teria sido menos violento em suas irrupções de temperamento contra eles. Em seguida à morte de Herodes, o Grande, o seu território foi dividido entre três de seus filhos. Arquelau recebeu a Judéia, Samária e Iduméia, e ostentou o título de etnarca. Em 6 A.D. ele foi deposto. Desde esse tempo, com a exces­ são de um período de quase quatro anos (41-44), quando Herodes Agripa I foi rei, essa área da Palestina foi governada por procuradores romanos. Herodes Antipas tomou-se o tetrarca da Galiléia e Peréia. Foi responsável pela morte de João Batis­ ta, e foi durante o seu reinado que Jesus começou e continuou o seu ministério na Galiléia. Quando o imperador romano Caio Calígula indicou Agripa I, o irmão da esposa de Antipas, Herodias, como sucessor de Herodes Filipe, ele lhe deu o título de rei. A promoção levou Herodias a persuadir Antipas a- buscar a mesma honra para si próprio. Agripa não gosta­ va de Antipas, e acusou-o de negociações traiçoeiras com os partos. Calígula depôs Antipas e baniu-o para a Gália em 39 A.D. O imperador então deu como prê­ mio a região da Peréia e da Galiléia a Agripa I. A parte de Filipe, no testa­ mento de Herodes, o Grande, incluiu a Ituréia, Traconites, Gaulanites, Auranites e Panias. Ele governou sobre essas regiões até a sua morte, em 34 A.D. Quando Jesus se retirou da Galiléia e se aproximou da Cesaréia de Filipe, estava na tetrarquia de Herodes Filipe.


De 6 a 66 d.C. nada menos do que 44 procuradores foram enviados pelos impe­ radores romanos para governar a provin­ d a da Judéia. A maioria desses homens exerceu uma administração de baixa qualidade, e foi, muitas vezes, cruel no desempenho de suas funções. Admite-se que o oficio de procurador não era para se invejar, por causa da, lealdade dos ju­ deus à sua fé religiosa e à sua resistência teimosa a qualquer controle estrangeiro. Alguns dos procuradores que se nos apre­ sentam em o Novo Testamento são Pôn­ cio Pilatos (26-36), diante de quem Jesus foi julgado; Félix (51-60), que julgou a causa de Paulo; e Pórcio Festo (60-62), procurador diante de quem Paulo fez apelo a Roma. Os grupos reacionários cresceram em número a tal ponto, e os procuradores se tomaram tão mdes em sua politica, que revolta aberta contra Roma irrompeu em 66 A.D. Este levante resultou na destmição de Jemsalém e do Templo, em 70 A.D., sob o comando do general romano Tito.

II. Desenvolvimento Religioso na Palestina Durante a Era He­ lénica Sob a influência da cultura grega, e do subseqüente poderio político romano, o judaísmo, na Palestina, aos poucos, de­ senvolveu novos ensinamentos, institui­ ções e partidos religiosos. Essas novas formas de fé traziam em si a marca do contato com persas, gregos e romanos. A crença judaica em demônios e anjos, a doutrina da ressurreição dos mortos, a elaboração de escatologia apocalíptica e a adaptação da Lei à vida diária, resul­ tando em rabinismo, emergiram durante este período da história judaica. O ex­ clusivismo dos judeus não os impediu de tomarem emprestado dos gentios tudo o que podia enriquecer as suas crenças religiosas e a sua vida intelectual. Em­ bora possa ter assimilado muito das cul­ turas vizinhas, o judaísmo possuía uma

vitalidade e força que o ajudou a manter a sua essência, o seu núcleo, e o impediu de sacrificar a sua identidade. 1. Doutrinas ReUgiosas Um dos desenvolvimentos doutrinários mais importantes, no judaísmo dessa época, foi a crença na ressurreição dos mortos. Anteriormente a esse tempo, a religião de Israel fazia provisões para uma existência que continuava depois da morte, de alguma forma, mas que era uma sobrevivência que não tinha atrati­ vos para os judeus. Quando uma pessoa morria, ia para o Sheol, uma habitação subterrânea semelhante ao Hades entre os gregos. Ali ela permanecia confinada, e o seu retorno à terra era impossível. A estrada para o Sheol era uma via de mão única, um lugar de silêncio, terra de onde não se voltava. Das calorosas reali­ dades da vida aqui na terra, o homem se mudava para algo parecido com um frio e fantasmagórico tipo de existência no mundo dos mortos. Visto que esta espe­ rança de vida pós-morte carecia de vita­ lidade, a religião de Israel enfatizava a doutrina da sobrevivência através da fa­ mília. O homem continuava vivendo em seus filhos, mesmo depois de morto; por­ tanto, em verdade, a vida deles era a sua própria vida. Por isso é que era tão essencial para o judeu ter muitos filhos. Quando os judeus começaram a reco­ nhecer a importância do indivíduo fora do seu relacionamento coletivo com Is­ rael, e quando observaram que a sua justiça retribuitiva não se manifestava nesta vida, a sua fé dinâmica em um Deus justo levou-os a crer na ressurreição dos mortos. Há apenas duas afirmações explícitas deste ensino em o Velho Testa­ mento. Uma ocorre em Isaías 26:19, entranhada na última seção — de acordo com a opinião de muitos emditos — do livro de Isaías que contém os capítulos 24 a 27, mencionados como o Apocalipse de Isaías.A data desta seção de Isaías é em cerca do terceiro século a.C. A outra referência é Daniel 12:2 — que, acredita23


se, ser obra de um homem de fé na revolta dos Macabeus. Alguns eruditos dekam de lado a pas­ sagem de Isaías, porque dizem que ela fala de restauração nacional, e não de ressurreição individual. Se aceitarmos esta interpretação e desprezarmos este versículo como referência à ressurreição do indivíduo, a única passagem clara e não questionada no Velho Testamento é Daniel 12:2. O autor de Daniel enfrentou os sofrimentos dos judeus debabco da mão perseguidora de Antíoco Epifânio, e cria que aqueles que eram leais a Deus viveriam de novo. Aqueles que haviam sofrido martírio se levantariam de novo, para uma vida de felicidade na terra, enquanto os judeus e sírios apóstatas que os haviam assassinado ressuscitariam pa­ ra receber punição. Quando a doutrina da ressurreição emergiu no judaísmo, os apocalípticos foram os seus originadores, elaboradores e propagadores. Mais tarde considerare­ mos a literatura apocalíptica, mas é sufi­ ciente dizer que o livro de Daniel repre­ senta este tipo de pensamento no Velho Testamento. Especulações acerca do tipo de corpo que ressuscitaria (se físico ou espiritual), divisões da habitação tem­ porária no Sheol, e a morada final dos retos e dos ímpios, ocupou o interesse dos apocalípticos desde o período dos Maca^ beus até o segundo século d.C. A res-, surreição dos mortos se tornou um dog­ ma central dos fariseus, mas os seus ad­ versários, os saduceus, recusavam-se a aceitar a doutrina e promoveram o ceti­ cismo demonstrado em Eclesiastes. Outro ensinamento que entrou no ju ­ daísmo pela instrumentalidade dos apo­ calípticos, durante esse período, foi o papel ativo dos anjos e demônios nos negócios dos homens. Os hebreus tinham conhecimento dos anjos muito antes do Exílio, mas só quando voltaram do cati­ veiro babilónico foi que os anjos se tor­ naram realidades significativamente in­ fluentes em sua vida religiosa diária. A concepção da transcendência divina e da 24

distância em que Deus se conservava do mundo e da vida humana, notavelmente no período persa, desenvolveu-se ao pon­ to de se tornar um problema para os judeus na era helênica. Eles foram força­ dos a fazer uso dos anjos para construir uma ponte sobre o abismo criado entre eles e Deus. Os anjos, que nos dias pré-exílio eram nada mais do que mani­ festações da majestade de Deus, torna­ ram-se os canais pelos quais Deus se comunicava com o seu povo. A nova ênfase na atividade angélica na religião de Israel deve ter surgido por influência persa. Os anjos ministravam ao povo de várias maneiras. Eram guar­ diães de indivíduos e de nações, inter­ cessores em favor de homens, diante de Deus, comunicadores da mensagem de Deus a indivíduos, e participantes essen­ ciais no grande drama escatològico. Da literatura apocalíptica aprendemos que arcanjos como Uriel, Rafael, Raguel, Miguel, Gabriel, Remiel e Saraquel fun­ cionavam com atribuições específicas. Dois destes, Miguel e Gabriel, são men­ cionados em o Novo Testamento. Comparado com o Velho Testamento, a característica marcante do Novo Testa­ mento é o aparecimento de demônios e de pessoas possessas de demônios. Que valor damos aos demônios? Quando é que eles se tomaram realidades com as quais o homem precisa lutar? Encontra­ mos resposta na literatura apócrifa do período intertestamentário, especialmen­ te nas obras que são por natureza mais apocalípticas. Antes do exílio, os judeus críam que Deus era responsável por tudo o que acontecia, fosse bom ou mau. Não pensa­ vam em termos de segundas causas. Só quando aceitavam uma teoría dualista, eles entendiam que o mundo estàva nas garras do demônio. Isto lhes dava grande alívio à mente. Já não esposavam a opi­ nião de que toda opressão provinha de um Deus vingativo. O domínio temporá­ rio do mal, devido ao governo dos pode­ res demoníacos, trazia a grande maioria


dos sofrimentos e infortúnios ao povo de Deus, mas o mal nâo podia prevalecèr diante do poder de Deus. Um mito, baseado em Gênesis 6:1-4, foi usado em I Enoque e em Jubileus para explicar a origem dos demônios. Os espíritos celestiais desceram à terra e cederam à sedução das mulheres. Dessa relação antinatural, veio à existência uma raça de gigantes. Esses gigantes deram à luz espíritos malignos. A maio­ ria dos maus espíritos foi amarrada pelos anjos de Deus, mas o resto, sob o co­ mando de Mastema (Satanás) desviava os homens e Ds levava a cometer toda sorte de pecados e mal. Por fim os demô­ nios e Satanás, seu líder, serâô condena­ dos no juízo final; mas nesse ínterim é-Uies permitido continuar com as suas atividades contra os homens. Até aqui temos considerado os ensina­ mentos que foram introduzidos no ju ­ daísmo nessa época, mas agora nos vol­ taremos para uma doutrina que já estava estabelecida. É a doutrina do Messias. Com a divisão do Reino Unido, durante o governo de Roboão, pareceu que a obra de Davi e Salomão havia sido em vão. Todavia, desde aquela época, os profe­ tas do Reino do Norte e do Reino do Sul previram uma reunificação da monar­ quia, sob o comando de um descendente de Davi. Dessa esperança levantou-se um ensino a respeito do Messias. Messias significa “ungido” . A palavra havia sido usada na história de Israel para indicar a autoridade e relação ínti­ ma do profeta, do sacerdote e do rei a Yahweh. Na segunda metade do primeiro século a.C., Messias havia-se tomado um termo técnico, relacionado com um des­ cendente de Davi. Na época helênica, alguns dos judeus centralizaram as suas esperanças em um Messias davídico, enquanto outros se preocupavam mais com uma Idade de Ouro no futuro, e nâo enfatizavam a importância de um líder para realizar esses ideais. Eles ansiavam por um pe-

riodo de independência e poder, paz e prosperidade, retidão e piedade, justiça e amor fratemal entre os homens. Muitos dos apocalípticos que criam que Yahweh interviria na história e aliviaria o povo da opressão nâo estavam interessados em um messias, de forma alguma. Alguns poucos dos apocalípticos esperavam uina espécie de figura super-humana, que tra­ ria julgamento sobre o mundo, junta­ mente com Deus, como é evidenciado por IV Esdras, I Enoque e II Bamque. Os judeus que esperavam um messias nâo tinham nenhuma idéia de que o Messias iria sofrer. Ninguém que não fosse um homem de extraordinário po­ derio militar poderia cumprir as suas esperanças e aspirações de restauração nacional. Além do mais, nâo há evidên­ cia de que eles esperassem nada nem ninguém mais do que um homem, como messias. É bem verdade que havia idéias vagas de uma figura super-humana, como já notamos, mas as esperanças ju ­ daicas comuns se focalizavam em um ho­ mem. Nâo é preciso dizer-se que Jesus não preenchia as suas noções preconcebi­ das do Messias, visto que o padrão de avaliação que possuíam era errado. Os escritos apocalípticos continham e enfatizavam os ensinos que examinamos até agora. O pensamento expresso pelos autores dessas obras formava um ele­ mento definido no judaísmo, contudo, não é claro o quanto a sua influência era disseminada. Algumas das idéias religio­ sas eram aceitas pelos fariseus, e imiscuíram-se na literatura rabínica. Talvez os escritos eram mais populares entre o povo da terra do que entre os líderes religiosos. A literatura apocalíptica sur­ giu de uma preocupação pelas profecias que restavam sem cumprimento, do Ve­ lho Testamento. Fez-se uma tentativa para racionalizar e sistematizar o lado preditivo da profecia. Por outro lado, os escribas e seus sucessores, os rabis, en­ fatizaram a importância dos mandamen­ tos de Deus encontrados na Lei e nos Profetas. 25


A literatura apocalíptica era tão varia­ da, que é impossível apresentar carac­ terísticas que se apliquem a todos os escritos. Os eruditos que são especialistas nesta área têm estabelecido algumas ca­ racterísticas, que consideraremos. A maioria dessas obras era pseudônima. Os autores assumiram o nome de um perso­ nagem importante do passado, para dar autenticidade à sua mensagem. A ati­ vidade profética cessou quando os escri­ bas reivindicaram sucessão profética através da interpretação da Lei. Portan­ to, se um homem dotado de percepção espiritual sentisse o chamado para pro­ clamar uma mensagem, da parte de Deus, ele era restringido pela autoridade dos escribas. Tornou-se necessário, para os apocalípticos, nessas circunstâncias, apresentar o que haviam escrito como sendo da lavra de Moisés, Esdras, Eno­ que, ou outros. Além de serem pseudônimas, essas obras apresentavam uma visão determi­ nada, dualista e pessimista da história. O verdadeiro conflito entre o bem e o mal teve como palco os céus, nas alturas. As forças de Deus enfrentavam as forças de Satanás, em batalha. Deus era vitorioso nos céus, e isso determinava o resultado da luta entre o homem e as forças demo­ níacas, na terra. O mundo presente era tão mau que não tinha emenda. O ho­ mem, mesmo tendo o poder de Deus do seu lado, era incapaz de efetuar quais­ quer mudanças para melhor na socieda­ de de que fazia parte. Toda vida estava podre, e se tornaria progressivamente pior. Todavia, com esse pessimismo, os apocalípticos tinham um otimismo. Criam que Deus por fim intçrviria nos negócios dos homens e limparia o mun­ do. Um elemento ulterior dos antecedentes religiosos, embora não seja estritamente uma doutrina, merece consideração. A lei oral, que se desenvolveu desde a época de Esdras até a sua codificação, sob o comando de Judas ha-Nasi, no fim do segundo século d.C., teve um papel im­ 26

portante no judaísmo. Esdras e uma classe de copistas profissionais e mestres da lei que o seguiram eram responsáveis por este corpo de tradições. A princípio esses escribas eram sacerdotes, porém mais tarde levantou-se um grupo leigo que estudava a lei e se tornou seu intér­ prete oficial. Eles transformaram a Lei de um documento escrito que estava per­ dendo a influência, em uma revelação contínua, que acertava o passo com as mudanças da sociedade. Esses escribas se impuseram a tarefa de expor a Lei, a fim de descobrir a vontade de Deus. A princípio, esta classe de expositores deduzia, da exegese das Escrituras, as regras que se aplicavam aos casos para os quais nenhuma provisão doutrinária ha­ via sido feita. Posteriormente, as regras e regulamentos foram feitos sem nenhuma base escriturística. Se o povo se tornava obediente à Lei precisava saber a ma­ neira exata de cumpri-la. Os escribas procuravam essa maneira exata. A lei oral estava em constante estado de de­ senvolvimento. Ela era adaptada, modi­ ficada e expandida de época em época, para satisfazer as necessidades práticas do povo. A tradição não escrita passou à forma escrita e foi conhecida como Mish’ nah. O Mishnah, por sua vez, era inter­ pretado e resultou nos Talmudes palesti­ no e Babilónico. Repetidamente, nos Evangelhos, notamos que Jesus entrou em choque com a “tradição dos an­ ciãos.” Isto significa que ele se opôs à autoridade dada à lei oràl pelos fariseus. 2. Instituições Religiosas Antes de os selêucidas começarem a reinar sobre a Palestina, não há indica­ ção clara de que os judeus tivessem algu­ ma instituição religiosa além do Templo. Depois dessa época, duas instituições vie­ ram à existência, e ambas fizeram contri­ buições significativas para o estabeleci­ mento do judaísmo rabínico. Uma dessas instituições foi a sinagoga. De acordo com Josefo e Philo, a sinagoga originou-se com Moisés. Não há nenhu­


ma autoridade verdadeira para determi­ nar a antiguidade da sinagoga. Os argu­ mentos para a sua origem variam do tempo de Josias ao primeiro século a.C. Existiam sinagogas, no tempo do Novo Testamento, por toda a Palestina, e onde quer que houvesse comunidades judai­ cas. Desta forma, estamog certos de que elas surgiram antes da era cristã. Parece que um início mais provável seria pouco antes da revolta hasmoneana. A sinagoga era um lugar de adoração e estudo. Tomou-se um elo vital entre os fariseus e o povo. Ali os expositores da Lei podiam instrair o povo nos regula­ mentos que governavam a sua conduta em todas as facetas da vida. Para fazêlo, eles não apenas expunham a Lei es­ crita, mas também transmitiam regras (halakoth) da lei oral. Alguns peritos e estudiosos crêem que os fariseus usavam a sinagoga como veículo para desacostu­ mar os judeus de adorar no Templo. Isto é bem possível, visto que o judaísmo, sob a direção farisaica, continuou a florir sem o templo, depois de 70 A.D. A gerência da sinagoga era exercida por um corpo de anciãos. Um governante era indicado, e a sua função era manter a disciplina. Ele também escolhia o orador para o culto do sábado. Um atendente (hazzan) encarregava-se de cuidar do edifício e das cópias das Escrituras. Pa­ rece que, além disso, ele tinha a respon­ sabilidade de ensinar na sinagoga. Uma segunda instituição que conside­ raremos era o Sinédrio. Embora fosse um sistema judiciário dos judeus, era uma organização religiosa. Os judeus não dis­ tinguiam entre vida civil e religiosa. T oda a vida era religiosa. Muita dúvida ainda resta quanto à origem, método de seleção de membros, número de membros e fun­ ções do Sinédrio. Os rabis costumavam jactar-se da sua antiguidade, e diziam que ele foi uma continuação do conselho dos 70, em Números 16:16. Provavel­ mente, surgiu no período de Antíoco, o Grande, e era conhecido naquela época como gerousia.

Os relatos rabínicos não concordam com Josefo e com o Novo Testamento em relação aos membros que compunham essa corporação. De Josefo e do Novo Testamento recebemos a noção de que os principais dos sacerdotes, escribas e an­ ciãos eram os administradores da justiça, e o sumo sacerdote era quem convocava as sessões. No Mishnah descobrimos que os cabeças da Grande Corte (Beth Din ha-Gadúl) eram fariseus, e que todos os membros pertenciam àquele partido. Se­ rá que os relatos rabínicos refletem o Beth Din em Jabne depois de 70 A.D., ou será que eles dão um relato exato da composição dessa corporação judicial nos dias anteriores à destmição do Tem­ plo? A decisão é difícil de fazer. Havia cinco tipos diferentes de cortes, no sistema do Sinédrio. A tradição sus­ tenta que a Corte Suprema se assentava no Pátio da Pedra Lavrada, no Templo. Essa corte tinha jurisdição sobre os negó­ cios tribais, os falsos profetas, e sacer­ dotes. Tinha autoridade de sentenciar à morte, com um quorum de 23 membros. E também, da tradição rabínica, parece que essa corporação tinha o poder de legislar acerca de regras de conduta para todos os judeus. 3. Partidos Religiosos De acordo com Josefo, havia quatro seitas no judaísmo do primeiro século d.C. Havia os saduceus, fariseus, essê­ nios e zelotes. Todos estes, com a exces­ são dós essênios, são mencionados no Novo Testamento. Os saduceus ganha­ vam em número, mas os fariseus tinham a maior influência sobre o povo. A ori­ gem desses partidos permanece na obs­ curidade. Contudo, já observamos que os fariseus e saduceus eram partidos religiopolíticos poderosos e fortemente estabe­ lecidos iw tempo de João Hircano. Os ^tariseu^ eram, provavelmente, os sucessorès dos hasidim, judeus da revolta hasmoneana que preferiram morrer a violar a Lei e a tradição dos anciãos. A 27


palavra “fariseus” em hebraico e aramai­ co significa “ separados” . Todavia, a questão que enfrentamos é: de que ou de quem eram eles separados? Várias opi­ niões têm sido expressas quanto a este assunto. A melhor sugestão é que o nome lhes fora dado pelos seus inimigos, os saduceus, porque eles se separavam do controle sacerdotal, e procuravam obter o seu próprio poderio. Isto parece prová­ vel, visto qire há bem poucas referências aos fariseus na literatura tanaitica. Os fariseus se consideravam sucessores dos profetas. A sua luta com os saduceus era a antiga luta entre profeta e sacer­ dote. Na aparência religiosa, eles eram mais liberais e mais progressistas do que os seus rivais. Os fariseus tentaram as­ sumir o controle do culto e remover dele todas as abjetas superstições que se ha­ viam acumulado durante os séculos. Sen­ tiam que eram responsáveis, como lí­ deres leigos, por transmitir a tradição oral, iniciada pelos escribas, e por fim tornaram esse corpo de tradições equi­ valentes em valor à Lei escrita. Quanto às crenças, esse partido se apegava à ressur­ reição dos mortos, à existência de anjos e espíritos, à divina Providência nos negó­ cios dos homens e do mundo, e à ex­ tensão da autoridade escrita para incluir os Profetas, Escritos e a tradição oral, em adição ao Pentateuco. Os saduceus se ocupavam com a busca do poderio político, a administração do Templo e a preservação do ritual. Con­ corda-se, geralmente, que o seu nome derivou de Zadoque, que fora sumo sa­ cerdote durante o reinado de Salomão. Os saduceus davam pouca importância a qualquer outra parte do Velho Testa­ mento, a não ser a Lei. Desta forma, não tinham disposição para compartilhar das expectativas messiânicas encontradas nos Profetas e nos Escritos, bem como da ressurreição dos mortos, baseada no livro de Daniel. Além do mais, em oposição aos fariseus, não criam na existência de anjos e espíritos. Como os saduceus con­ ciliavam tal descrença com as repetidas 28

alusões a anjos no Pentateuco? Pode ser que eles contrapusessem uma elevada­ mente desenvolvida angeologia e demonologia. Contrariamente aos fariseus, este partido advogava o livre arbítrio, ao invés da Providência. Um terceiro grupo sectário no judaís­ mo do primeiro século d.C. disseminouse na Galiléia, de um pugilo de revolu­ cionários. Eram conhecidos como os ze­ lotes. O fundador do movimento. Judas Galileu, era filho de Ezequias, a quem Herodes executara em 47 a.C. Judas comandou uma rebeUâo contra Roma, quando Quirino, legado da Síria, tentou fazer um recenseamento da Palestina em 6 a.C. Mais tarde, os zelotes se tornaram seguidores de João de Giscala. João foi um dos líderes da revolta contra Roma em 66 d.C., que terminou na destruição de Jerusalém. O intenso espírito nacionalista dos partidários dessa seita não lhes permitia o reconhecimento de qualquer governan­ te sobre eles, a não ser Deus e o seu Messias. Os zelotes lutavam por um rei­ no puramente judeu, com o Messias co­ mo o cabeça da nação. Esses chamados patriotas advogavam guerra até o último alento contra qualquer poderio estran­ geiro sobre a terra da Palestina. É in­ teressante notar que Simão, o zelote, foi um dos discípulos de Jesus. A última seita do judaísmo — conhe­ cida dos escritos de Josefo, Filo e Plínio, o Velho, e mais recentemente dos rolos do Mar Morto e das escavações da co­ munidade de Qumram — algumas vezes tem sido chamada “ os hasidim segre­ gados” . Este partido sectário era o dos essênios. Eles viviam em irmandades co­ munais disciplinadas e requeriam que os seus membros passassem por períodos de preparação durante três anos, antes de serem finalmente admitidos às refeições comunais. Os essênios não participavam dos rituais sacrificiais do Templo, mas observavam escrupulosamente o sábado. Tinham elevada estima pela Lei, e, se­ gundo Josefo e as descobertas perto de


Qumram, sabemos que eles aceitavam os livros do Velho Testamento, menos o Pentateuco, além de escritos apócrifos. O seu ensino da imortalidade da alma indica uma afinidade com o pensamento grego. Um grupo da seita se opunha ao casamento, enquanto outro o favorecia, ã fim de ter filhos como recrutas para a comunidade. Um dos líderes da comunidade era conhecido como o Mestre da Justiça. Ele sofreu às mãos de um sacerdote e go­ vernante ímpio. O título de sacerdote e governante ímpio pode referir-se a Ale­ xandre Janeus. Dos rolos do M ar Morto depreende-se què a comunidade esperava um messias que representaria a dinastia sacerdotal e real em um contexto escatológico.

III. Os Judeus da Diáspora A grande maioria dos judeus vivia fora da terra da Palestina. De, aproximada­ mente, cinco milhões de judeus que ha­ bitavam o mundo no primeiro século d.C., quatro milhões deles eram conheci­ dos como a Diáspora. Antes do período helênico, os judeus viviam na Babilônia, Pérsia e Egito. Representavam os des­ cendentes daqueles que não desejaram voltar para a Palestina quando se lhes foi dada oportunidade. Depois da conquista de Alexandre, o Grande, ju ­ deus emigraram para todas as partes do mundo civilizado. A maioria deles se mu­ dou para o Ocidente e se estabeleceu em centros de civilização grega, principal­ mente por causa da maior liberdade que lhes foi outorgada. Alexandria, no Egito, se tornou o cen­ tro mais importante do judaísmo helenis­ ta. Quando Alexandre fundou a cidade, permitiu que os judeus tivessem direitos iguais aos dos gregos, mas é improvável que, em qualquer período, eles tenham gozado plenos direitos como cidadãos. Alexandria era dividida em cinco distri­ tos, e dois desses distritos eram conhe­ cidos como bairros judaicos, visto que os seus habitantes eram principalmente ju ­

deus. As Escrituras Hebraicas foram tra duzidas para o grego nesta cidade, du rante o governo de Ptolomeu Filadelfo Essa tradução foi valiosa para os judeus visto que a sua língua agora era o grego mas tornou-se mais importante como meio de comunicar a fé de Israel aos seus vizinhos pagãos. De acordo com Filo, havia sinagogas em todas as partes da cidade. Filo, contemporâneo de Jesus, viveu em Alexandria, e a sua influência na cidade era tremenda. Através das suas obras apologéticas e sua interpretação alegórica das Escrituras, ele foi capaz de apresentar o judaísmo de forma que não era tão sujeito a objeções para o mundo pagão. Os judeus helenistas permaneceram leais a Jerusalém. Pagavam o seu impos­ to do Templo, e, quando possível, iam às festas. A sinagoga era a base da sua religião. Continuavam a adorar no sába­ do, e praticavam o ritual da circuncisão. A maioria deles observava fielmente os requisitos da Lei e os costumes de sua religião. Visto que os judeus helenistas estavam separados da vida religiosa da Palestina, não contavam com a vantagem da interpretação jurística da Lei, para mostrar-lhes como adaptar a Lei às con­ dições transitórias da vida. Era-lhes es­ sencial entrar em contato com o mundo pagão. Adotaram a língua gentia, assis­ tiam aos seus festivais públicos, freqüen­ tavam seus locais de diversões, uniam-se aos seus sindicatos, participavam de ne­ gócios com eles, e aprenderam algo da filosofia grega e da lei romana. Quando os judeus helenistas iam à terra natal, os seus compatriotas judeus da Palestina questionavam a sua pureza. O contato com o mundo gentio significava, para estes, uma transigência quanto à sua fé religiosa. A religião dos judeus tinha fortes atra­ tivos para os pagãos, que se sentiam atraídos para o judaísmo por causa do seu estrito monoteísmo, sua antiquíssima literatura, a salvação mediante a obser­ vância da Lei, a adoração democrática, o 29


universalismo, a adoração no sábado, e ideais éticos elevados. O zelo missionário dos judeus, em vários países, agregou muitos gentios ao aprisco do judaísmo. Para tornar-se judeu, o gentio precisava submeter-se a um banho purificador do prosélito, ser circuncidado e fazer um sa­ crifício no Templo. Mais tarde, quando o apóstolo Paulo fez as suas viagens às cidades do Império Romano e pregou aos gentios, foi capaz de edificar sobre o fun­ damento que já havia sido lançado pelos judeus helenistas.

IV. Características Gerais Mundo Greco-romano

do

Gilbert Murray caracterizou esse pe­ ríodo da história como “o fracasso do vigor” . Não obstante, esse fracasso do vigor, que permeou toda a vida, foi o instrumento para produzir uma reação positiva às boas-novas anunciadas pelos cristãos nos dois primeiros séculos da nossa era. Durante esse período, o homem médio foi vencido pelo rápido avanço da his­ tória, Velhos sistemas, tradições e lealdades foram varridos da cena, O povo se rebelou contra a tirania do patriotismo. Os gregos foram libertados da sua lealda­ de à cidade-estado, e os cidadãos das terras do Oriente cortaram a sua conexão com o despotismo. Em Roma, líderes ambiciosos reuniram um grupo de segui­ dores, e começaram a lutar entre si, pelo poder, Isso levou a guerras civis. O Es­ tado, que outrora explorava o indivíduo, agora era objeto de exploração, O patrio­ tismo nacional deu lugar ao cosmopoli­ tismo, Os homens se tornaram cida­ dãos do mundo, O povo perdeu a fé nos seus deuses ancestrais, O individualismo afirmou-se através da arte, da literatura, da política, da sociedade, da morahdade e da religião, Foi uma época de mudança e de sublevação. As mudanças trouxeram consigo um sentimento de insegurança para as massas. Tornou-se cada vez mais difícil, para elas, ajustarem-se a essa nova ordem de vida. 30

A expansão do Império Romano levou ao aumento do número de escravos. Este aumento produziu significativos efeitos econômicos e morais sobre a sociedade. O trabalho forçado, sendo muito mais barato, reduziu a demanda de homens livres, e também baixou o coeficiente de pagamentos. O desemprego cresceu de maneira irrestrita nas cidades, e a con­ seqüente ociosidade ocasionou uma vida de crimes e imoralidade. Os escravos, muitos dos quais no passado haviam go­ zado de liberdade, vingaram-se dos seus senhores, corrompendo a sua moral. As duas escolas de filosofia popular que influenciaram a vida dessa época foram os epicuristas e os estóicos, Estas duas filosofias eram práticas em seus alvos, Para algumas pessoas, elas ofere­ ceram horizontes de esperança, num mundo mergulhado em desordem. Para os epicuristas, o maior bem da vida era o prazer. A sua definição de prazer não era equivalente à noção dos hedonistas em relação à satisfação posi­ tiva, mas, pelo contrário, um prazer pro­ vindo da ausência de dor, de paixões perturbadoras e de temores supersticio­ sos. Visto que o medo era a causa da dor, especialmente o medo dos deuses e o medo de punição depois da morte, eles rejeitaram a imortalidade, e ensinaram que os deuses não se preocupavam com os negócios dos homens. O dever do homem, de acordo com os estóicos, era harmonizar a sua vontade com a vontade universal, chamada razão ou alma do mundo. Pessoa virtuosa era a que compreendia o que a razão requeria dela, e moldava a sua vida de acordo com o padrão. Os estóicos também ensinavam que todos os homens eram iguais, pelo fato de possuírem uma centelha divina, Quando um homem morria, essa cpnteIha divina voltava para a alma do mun­ do. Uma segunda perspectiva de esperan­ ça vinha dos cultos de mistério grecoromanos. Contatos crescentes entre o Oriente e o Ocidente acarretaram um


sincretismo de religiões. Os velhos mis­ térios gregos se misturaram com as seitas orientais, e apresentaram algo novo, que atraiu pessoas de todas as camadas so­ ciais. Essas seitas apresentavam uma mensagem satisfatória acerca do sofri­ mento, respondiam ao anelo pela imorta­ lidade, prometiam comunhão com o deus da seita, ofereciam um caminho de sal­ vação e apresentavam uma religião pes­ soal. Como os anteriores mistérios eleusinianos e orféicos, tinham os seus ritos secretos, doutrinas esotéricas e rituais de iniciação. Da Ãsia Menor veio a adoração da Magna Mater e do deus consorte, Ãtis. Introduzida em Roma já em 204 a.C., esta religião se tornou firmemente esta­ belecida ao tempo de Augusto. A religião dos mistérios de Isis e de Osiris teve origem no Egito. Durante o reinado de Ptolomeu I, a seita foi assimilada com o velho mistério eleusiniano. A estátua de Pluto foi removida de Sinope, em Ponto, e levada para Alexandria, onde recebeu o novo nome de Serápis. Desde esse tempo, a religião foi conhecida como a de ísis e Serápis. Isis, com o seu deus consorte, Serápis, foi introduzida na Itália no se­ gundo século a.C., porém, mais tarde, tanto Augusto como Tibério resistiram a essa forma de adoração. A reUgião de^ mistério que se tornou a maior rival do cristianismo foi o mitraísmo. Ela surgiu na Pérsia e se espalhou em direção ao Ocidente, depois da queda do Império Persa. Plutarco diz que o mitraísmo foi levado à Itália por soldados romanos que haviam sido iniciados nessa religião pelos piratas cilicianos, em 63 a.C. Uma terceira perspectiva de esperança foi encontrada no astralismo. Com a rápida ascenção e queda de governantes e reinos, os homens começaram a engen­ drar a noção de que o acaso ou o destino controlava os seus negócios ou o seu des­ tino. A religião astral tem sido classifi­ cada como uma “ teologia científica do paganismo em decadência” , que se de­ senvolveu como “superstição erudita” .

Os que seguiam essa religião criam que as estrelas determinavam o curso dos eventos humanos. Isto criava uma sensa­ ção de incapacidade, e ninguém podia planejar o seu futuro. Portanto, manei­ ras de aplacar as forças das regiões pla­ netárias eram procuradas. A princípio o astralismo foi aceito apenas pela classe dominante, mas não muito tempo depois tornou-se uma opção livre para as mas­ sas. Idéias astrais imiscuíram-se no estoi­ cismo, no hermeticismo e no gnosti­ cismo. Duas outras religiões que se dissemi­ naram no mundo greco-romano mere­ cem a nossa atenção. Uma foi o gnosti­ cismo, uma religião filosófica eclética, tirada ou derivada do zoroastrismo, da religião babilónica, da filosofia e religião gregas, do cristianismo e da astrologia. Todos os gnósticos não tinham a mesma crença, mas todos declaravam que um dualismo radical governava as relações de Deus com o mundo da matéria. A natureza espiritual do homem derivava de um ser divino. Esta natureza espiri­ tual havia decaído do mundo da luz para as trevas. O espírito humano, aprisiona­ do na matéria, podia ser liberado e res­ taurado ao ser divino tão-somente com a aquiescência voluntária de um ser que era igual ou superior ao homem. A sal­ vação era operada pelo conhecimento, não pela compreensão intelectual, mas por um dom sobrenatural de iluminação da mente humana. Através desse conhe­ cimento, uma pessoa podia encontrar o seu caminho de volta a Deus. A outra religião era a adoração presta­ da ao imperador. Os imperadores roma­ nos, desde a época de Augusto, reinvindicavam a divindade, seguindo o exemplo de Alexandre, o Grande, e Antíoco Epi­ fânio. Caio Calígula foi o primeiro gover­ nante do Império Romano a exigir hon­ ras próprias de divindade, da parte dos seus súditos, mas morreu antes de poder forçar o povo a se submeter. A reinvidicação aberta do fato de ser um deus, e 31


a exigência de adoração à sua pessoa, surgiu com Domiciano. As muitas religiões dessa era refletem algo da inquietação espiritual e da gran­ de confusão das mentes humanas. Eles estavam procurando alguma nova espe­ rança, e uma razão para viver em um mundo vazio de significado e de esperan­ ça. Dentro do pensamento filosófico e religioso da época, havia certas tendên­ cias que estavam preparando o mundo para receber a revelação de Deus em Cristo.

V. Conclusão Deste breve estudo dos antecedentes religiosos e culturais do Novo Testamen­ to, podemos facilmente ver que o povo estava preparado pelas condições da épo­ ca para escutar a proclamação da fé cris­ tã. Numa época quando os homens es­ tavam procurando unidade através de um só império, uma só linguagem, uma só civilização, um só salvador, o cristia­ nismo veio à existência e deu uma espe­ rança que era desesperadamente neces­ sária para todos os homens. O nosso interesse nas religiões dessa época existe não tanto porque eram sin­ tomáticas de emoções espirituais às quais o cristianismo podia apelar. Pelo con­ trário, o nosso interesse são as semelhan­ ças notáveis, tais como o novo nascimen­ to, a união do adorador com a divin­ dade adorada, batismos, e uma comu­ nhão com a divindade. Não obstante, em meio a essas semelhanças entre o cris­ tianismo e as religiões da época, havia uma diferença notável: as religiões de ministério, fundamentadas em figuras nebulosas e místicas, não tinham base histórica. O movimentei cristão estava firmemente alicerçado em uma pessoa

32

histórica, Jesus Cristo, cuja vida e ensi­ nos eram suficientemente bem conheci­ dos através das tradições dignas de con­ fiança transmitidas por testemunhas também dignas de confiança. O cristianismo deu o que o mundo mais necessitava: um Deus que se preo­ cupava com o homem a tal ponto que se dispôs a sofrer por amor a ele; um Deus capaz de vencer o mal e a morte; um Deus que é Pai e Redentor; um Deus que é perfeita verdade e perfeito amor. A afi­ nidade humana com a vida histórica e a morte de Cristo sobrepujou grandemente a afinidade humana com as seitas orien­ tais.

Leitura Suplementar BRANDON, S.G.F. Jesus and the Zea­ lots. Manchester University Press, 1967. BULTMANN, Rudolf. Primitive Christianisty. Traduzido por R. H. FUL­ LER. New York: Meridian Books, 1957. GRANT, FREDERICK C. Roman Hel­ lenism and the New Testament. New York: Charles Scribner’s Sons, 1962. DANA, H.E. O Mundo do Novo Testa­ mento. 3® edição. Rio de Janeiro, JUERP, 1981. HERFORD, R. T. The Pharisees. Lon­ dres: George Allen & Unwin, 1924. PFEIFFER, ROBERT H. History of New Testament Times. New York: Harper & Bros., 1949. ROWLEY, H.H. Relevance of Apoca­ lyptic. Edição nova e revisada. New York: Association Press, 1963.


Texto e Cânon do Novo Testamento James A. Brooks A maioria dos leitores não leva em conta nem o fraseado nem o conteúdo do Novo Testamento. Arraigados profunda­ mente na história cristã, entretanto, es­ tão os problemas críticos de texto e de cânon. Estes problemas foram mais agu­ dos durante os primeiros séculos do que hoje, mas até hoje a certeza de que o texto e o cânon corretos foram determi­ nados precisa preceder o próprio estudo do Novo Testamento. O problema do texto surge porque nenhum dos manuscritos ou autógrafos originais sobreviveu, e por causa da exis­ tência de cópias que diferem umas das outras. Dos mais de cinco mil manuscri­ tos gregos que têm sido estudados, não há dois que sejam exatamente iguais! Portanto, não é coisa simples traduzir do grego para o português ou para qualquer outra língua raoderna. Primeiramente, precisa ser feita uma tentativa de se res­ taurar o texto original do Novo Testa­ mento. A ciência literária que tenta fazer isto é conhecida como crítica textual. O problema do cânon emerge do fato de que os vinte e sete livros que agora constituem o Novo Testamento não fo­ ram os únicos livros de tipo bíblico que foram escritos pelos primitivos cristãos. Durante o segundo, terceiro e quarto séculos, dezenas de evangelhos, atos, qjístolas e apocalipses competiam, bus­ cando reconhecimento. Pelo menos meia dúzia de livros, que por fim acabaram nào fazendo parte do Novo Testamento, foram reconhecidos em uma época ou em outra como canônicos, por alguns cris­ tãos, mesmo em círculos ortodoxos. Da mesma forma, a canonicidade de seme­ lhante número de livros, que agora fazem

parte do Novo Testamento, foi seriamen­ te questionada em dada época, por certos cristãos. Portanto, não era evidente por si mesmo que livros. J[ariam parte do cânon, ou mesmo se iria haver um cânon do Novo Testamento. Mais tarde a igreja foi forçada a escolher que livros ela iria aceitar como tendo autoridade.

O Texto A história do texto começa com a es­ crita de cada livro do Novo Testamento e continua até o tempo presente.

I. Era do Texto Manuscrito (Anterior a 1514) 1. Período da Divergência de Manuscritos (Séculos II e III) A maior parte dos livros do Novo Tes­ tamento começou a ser copiada pouco depois de ter sido escrita. O processo de copiá-los depressa resultou em inúmeras variações do texto. Cada novo manuscri­ to apresentava variações adicionais, de forma que durante esse período os ma­ nuscritos divergiram cada vez mais do original, e um dos outros. É bem reve­ lador que a maior parte das formas va­ riantes conhecidas hoje em dia pareça existir desde o ano de 300 d.C. Vários fatores funcionaram para pro­ duzir variações. Através do periodo, o Novo Testamento geralmente era copia­ do por escribas amadores, ao invés de profissionais, e essas pessoas eram es­ pecialmente susceptíveis a cometer erros. Portanto, muitos erros eram acidentais. Outras leituras variantes foram delibera­ damente introduzidas por escribas que pensavam que estavam corrigindo um 33


erro anterior, ou que pensavam que es­ tavam sendo dirigidos por Deus para expressar a mensagem de outra maneira. Escribas ortodoxos tanto quanto heréti­ cos foram culpados de tais práticas. Ou­ tro fator que produziu variantes foi a perseguição. A destruição de manuscri­ tos, feita por atacado, impediu o estabe­ lecimento de uma tradição textual está­ vel. É também provável que a elaboração de traduções, que começaram por volta do ano 200, e a prática comum dos es­ critores da cristandade primitiva, de ci­ tar livremente de memória, produziram leituras variantes adicionais. Só um pequeno número de manuscri­ tos sobreviveu do período anterior ao ano 300. Comparativamente poucos foram produzidos, e muitos desses foram des­ truídos durante as perseguições. Outro fator é que os manuscritos desse período foram escritos em papiro, material de escrita semelhante ao papel, e altamente perecível, que era manufaturado de uma espécie de junco que cresce no delta do Nilo, no Egito. 2. Período de Convergência de Manus­ critos (Séculos IV e Vni) Durante este período, a tendência an­ terior de divergência foi revertida, e uma quantidade maior de concordância tex­ tual começou a ser atingida. De longe, a razão mais importante para a mudança foi a ausência de perseguição. As novas condições do cristianismo resultaram em aumento do nível econômico, crescimen­ to da cultura e aumento da autoridade eclesiástica. Estas coisas levaram indire­ tamente a uma preocupação maior por um texto exato. A convergência de manuscritos é discernível devido ao surgimento de famílias-textuais, isto é, grandes grupos de manuscritos que tinham muito em co­ mum. A origem das famílias-textuais dede, provavelmente, ter acontecido com os textos locais que começaram a aparecer por volta do ano 200. Era normal que tais manuscritos, circulando em uma dada 34

região, tivessem mais em comum uns com os outros do que com os manus­ critos que circulavam em outras regiões. Quatro famílias-textuais foram identi­ ficadas. A mais antiga é a do texto Oci­ dental, que, a despeito do nome, não se confinava a nenhuma região geográfica em particular. Contudo, mais e mais os críticos textuais contemporâneos ques­ tionam se o que foi chamado de texto Ocidental merece o “status” de famíHatextual. Os seus representantes são com­ parativamente poucos em número e care­ cem de homogeneidade. Parece que o chamado texto Ocidental é realmente o texto popular, descontrolado, dos séculos II e III. Por esta razão, os críticos tex­ tuais contemporâneos não têm muita consideração pelo texto Ocidental, a des­ peito da sua grande antiguidade. Bem diferente é o caso da família-textual representada pelo texto alexandrino. Ele é, aproximadamente, tão antigo quanto o texto Ocidental, e parece ser o resultado de uma tentativa editorial de­ finida, que durou vários séculos, para restaurar o texto original. O texto ale­ xandrino é geralmente considerado a me­ lhor famíHa-textual. Todavia, precisa ser observado que, embora o texto alexan­ drino represente uma tentativa erudita para restaurar o texto original, ele não é o texto original, e não é correto em todos os casos. Por esta razão, os críticos tex­ tuais contemporâneos recusam-se a limi­ tar-se a uma dada família-textual, mas empregam o que é conhecido como mé­ todo eclético. A família-textual representada pelo texto Cesariano tem sido identificada apenas com os Evangelhos. Por esta ra­ zão, e porque os seus representantes, de alguma forma, carecem de homogenei­ dade, é duvidoso se ele pode adequada­ mente ser considerado como uma família-textual. O texto Bizantino é, inquestionavel­ mente, o menos antigo e o pior dos qua­ tro tipos. Ele aparece pela primeira vez na versão gótica (século IV), nos ensinos


de João Crisóstomo (morto em 407) e no Códice Alexandrino (século V). Só o fato de ser menos antigo, entretanto, não prova a sua inferioridade. Prova conclu­ siva de que o texto Bizantino não repre­ senta o original é vista no seu costume de combinar leituras variantes anteriores. Embora o papiro continuasse a ser usado por vários séculps, a maior parte dos manuscritos produzidos durante esse período e o seguinte foi escrita sobre pergaminhos ou velos, material de escrita mais durável, feito de peles de animais. 3. Período do Texto Estandardizado (séculos IX a XVI) Durante a primeira metade do período anterior, o texto Bizantino era nada mais do que uma dentre muitas famílias-textuais. Durante a segunda metade daque­ le período, ele se tornou cada vez mais o texto dominante, e por volta do século IX, havia desalojado completamente os outros textos. Como foi que esse texto menos antigo e inferior prevaleceu sobre os outros? A resposta é simples. Ele ven­ ceu por omissão. O uso da língua grega nos círculos cristãos da parte ocidental do Império Romano já havia começado a dar lugar ao latim, antes dessa região passar a ser possuída pelos bárbaros, no século V. Durante o século VII e os seguintes, exércitos maometanos devas­ taram grande parte do mundo civilizado e destruíram o cristianismo nessas re­ giões. No entanto, Constantinopla foi capaz de sobreviver até 1453. Embora fosse o único centro importante de cultu­ ra grega, durante a maior parte da Idade Média, o que era originalmente o seu texto local tornou-se o tipo dominante de texto. A vasta maioria dos manuscritos sobreviventes é desse tipo. Durante o século IX, uma mudança de grande porte teve lugar na maneira pela qual os manuscritos eram escritos. Antes desse século, só o uso da escrita uncial era considerado próprio em obras literá­ rias. A escrita uncial pode ser comparada à impressão apenas com letras maiús­

culas. Durante o século IX, porém, o tipo cursivo de escrita, que era usado desde tempos antigos, para documentos nãoliterários, foi modificado e começou a ser usado até em obras literárias. Esta forma modificada de escrita cursiva é geral­ mente mencionada como escrita minús­ cula. Todos os manuscritos produzidos depois do século IX empregam a escrita minúscula.

II. Era do Texto Impresso (Desde 1514) O primeiro Novo Testamento grego a ser impresso foi o Poliglota Complutensiano, em 1514. No entanto, ele, na verdade, não foi publicado até 1522, e causou pequeno efeito sobre a história posterior do texto. 1. O Textus Receptus (1516-1880) O primeiro Testamento grego a real­ mente ser publicado foi o de Erasmo de Rotterdam, em 1516, que incidental­ mente foi o ano anterior ao começo da Reforma Protestante. O texto de Erasmo era baseado em cerca de meia dúzia de manuscritos que continham várias por­ ções do Novo Testamento. Destes, ele usou nada mais do que uns dois ou três para qualquer parte de sua edição. Para o Apocalipse, ele tinha apenas um manus­ crito, ao qual faltavam os últimos seis versículos do livro. Erasmo resolveu esse problema, traduzindo da Vulgata Latina para o grego. Ao fazer isto, ele produziu leituras variantes, que nenhum exame de manuscritos jamais havia encontrado. Por toda parte Erasmo fez interpolações da Vulgata. Provavelmente, o exemplo mais notó­ rio de interpolação da Vulgata é o da passagem da “ testemunha celestial” , em I João 5:7,8. A passagem não aparecia na primeira ou na segunda edição da obra de Erasmo, por cuja omissão ele foi se­ 35


veramente criticado. Embora duvidando da sua validade, ele mais tarde a inseriu. Apenas três outros manuscritos gregos foram encontrados, e que contém essa passagem, mas nenhum deles é anterior ao Século XII. Erasmo fez pouco mais do que estabi­ lizar em forma impressa o tipo de texto que se encontrava em manuscritos exis­ tentes na época. Estes eram, claro, do tipo bizantino de texto. As várias edições do Novo Testamento que foram publica­ das durante o século que se seguiu a Erasmo, empregaram um texto muito semelhante ao da terceira edição feita por Erasmo. O resultado foi a popula­ rização dessa edição, e desse texto, que veio a ser conhecido como “o Texto Recebido” . Ele se tornou tão firmemente entrincheirado que reinou supremo até o século XIX, a despeito da sua qualidade inferior. 2. Período do Texto Critico (Desde 1881) Durante os séculos XVII e XVIII, mais e mais manuscritos foram descobertos, muitos dos quais, verificou-se, diferiam substancialmente do “Texto Recebido” . Esses manuscritos propiciaram a maté­ ria-prima, da qual um texto crítico pode ser construído. A primeira pessoa a rom­ per completamente com o “Texto Rece­ bido” e a produzir um texto completa­ mente novo, aplicando os princípios da crítica textual, foi Karl Lachmann, em 1831. Contudo, Lachmann não reivmdíca a honra de ter recuperado o texto original do Novo Testamento, mas apenas o que era comum durante o século IV. Durante as quatro décadas seguintes, textos crí­ ticos foram também produzidos por Constantino von Tischendorf e S. P. Tregelles. De longe, o trabalho mais importante, não apenas no século XIX, mas pro­ vavelmente em toda a história da crí­ tica textual, é o de B.F. Westcott e F.J.A. Hort, intitulado The New Testa­ ment in the Original Greek, 1881-1882. 36

O seu texto segue de perto o tipo ale­ xandrino de texto, ao qual eles mesmos se referiram como texto neutro. Westcott e Hort fizeram mais do que editar um texto. Também escreveram um alentado volume, em que explicaram a sua teoria textual. Provaram conclusivamente que o texto Bizantino era um tipo de texto posterior e inferior. Ê nesse ponto que o verdadeiro significado de Westcott e Hort deve ser encontrado: eles expuseram a inadequação do “Texto Recebido” . É verdade que o “Texto Recebido” conti­ nuou a ter uns poucos defensores até o presente, mas o mais significativo é que desde 1881 ele não foi usado em novas edições do Novo Testamento Grego ou como base de novas traduções. A referência a traduções sugere uma forma pela qual a crítica textual é de importância prática para o leitor da Bí­ blia. Por exemplo, em inglês, a popular versão do rei Tiago (King James) é ba­ seada no “Texto Recebido” , e agora sabe-se que ela carece de confiança em muitos pontos. Portanto, praticamente todas as traduções modernas do Novo Testamento, inclusive a Versão Padrão Revisada (Revised Standard Version), são superiores à do rei Tiago, do ponto de vista do texto grego em que são ba­ seadas. Sabe-se, por exemplo, que a ver­ são Almeida antiga, contém interpola­ ções baseadas na Vulgata. Assim, a crí­ tica textual ajuda o leitor da Bíblia a encotitrar o texto mais fiel possível re­ construído a partir de fontes textuais primitivas.

O Cânon Ao procurar as origens da história do cânon, quatro coisas precisam ser distin­ guidas: o mero uso dos escritos apostó­ licos, a coleção de livros correlatos em grupos, a atribuição de autoridade bí­ blica a livros individuais ou a grupos de livros, e o surgimento de um conceito de livros específicos compreendendo um câ­ non do Novo Testamento. A história do cânon pode ser dividida em três periodos.


I. o Período de Coleções Iniciais e do Uso de Livros do Novo Testamento (c. 90-180) Um dos primeiros passos discerníveis, no longo processo da canonização, é a coleção das cartas de Paulo. Este colecionamento parece ter acontecido mesmo antes de os últimos livros do Novo Tes­ tamento terem sido escritos. Provavel­ mente, a primeira referência a uma cole­ ção, pelo menos parcial, encontra-se em II Pedro 3:15,16, que também atribui autoridade escriturística a essas cartas. Evidência maior de que tal colecionamento havia sido feito antes do começo do século II é que os escritores cristãos do fim do século I e começo do século II pareciam estar familiarizados com a maior parte das cartas. A tradição tex­ tual uniforme das cartas também indica que uma coleção havia sido feita em data bem antiga. É mais difícil determinar quando os quatro Evangelhos foram coligidos. Os Evangelhos parecem ter circulado sepa­ radamente, a princípio. Eles não apre­ sentam uma tradição textual uniforme, como nenhum dos escritores cristãos pri­ mitivos revela conhecer ao mesmo tempo <K quatro. Papias (c. 130) descreveu a composição de Mateus e Marcos, mas silenciou a respeito de Lucas e João (Eu­ sébio, História Eclesiástica, 111:39). Jus­ tino M ártir (c. 155) inquestionavelmente conhecia evangelhos escritos, pois se re­ feriu a eles por esse nome, e pelo termo “Memórias dos Apóstolos” (Apologia, 1:66). Todavia, ele não indicou os seus nomes ou número, e, portanto, não pode ser citado como evidência para a existên­ cia de uma coleção definida. E certo que a reunião deles foi feita anteriormente a 170 d.C., quando Tatiano compôs o seu Diatessaron, entretecendo os quatro Evangelhos em um só relato da vida de Jesus. A questão crucial é se o herético Mardão (c. 145), que aceitava apenas o Evangelho de Lucas, reduziu um Evan­

gelho quádruplo a um único Evangelho, ou se o Evangelho quádruplo foi formado em reação ao Evangelho único de M ar­ cião. Embora falte a prova científica definida, a última hipótese parece ser a mais provável. Portanto, a coleção dos quatro Evangelhos provavelmente teve lugar por volta de 150-160. Marcião foi, aparentemente, o primei­ ro a produzir um cânon, uma lista dos livros do Novo Testamento. Ele rejeitava completamente o Velho Testamento, e aceitava versões de Lucas somente se fos­ sem expurgadas, e dez das cartas de Paulo. Quer tenha-se originado com Marcião ou não, o conceito de um cânon de livros cristãos nos círculos ortodoxos foi certamente motivado pela reação ao seu cânon herético. Existem provas de que, durante o pe­ ríodo que estamos considerando, todos os livros do Novo Testamento existiam e foram usados, com a exceção de Atos, Tiago, II Pedro, II e III João e Judas. Não obstante, as citações são comparati­ vamente poucas e inexatas, e raramente apresentadas da forma costumeira usada agora para citar as Escrituras. Durante a primeira metade deste período, há pou­ cas indicações de que os escritos cristãos estavam sendo usados como Escrituras, isto é, como tendo autoridade igual à do Velho Testamento. Já vimos como Marcião exaltou onze escritos cristãos acima do Velho Testa­ mento. Embora os cristãos ortodoxos não estivessem dispostos a seguir Marcião, nessa rejeição do Velho Testamento, pouco depois da sua época, eles come­ çaram a atribuir autoridade escriturística aos escritos apostólicos. Por exemplo, o chamado II Clemente (c. 150) cita espe­ cificamente um texto de Evangelho como Escritura (2:4) e coloca os escritos apos­ tólicos no mesmo nível do Velho Testa­ mento (14:2). Justino indica que os Evan­ gelhos eram lidos e comentados em ado­ ração pública, da mesma forma como o Velho Testamento (Apologia, 1:67). 37


Por volta do ano 180, portanto, a maioria dos livros do Novo Testamento era conhecida e estava sendo usada, cole­ ções separadas dos Evangelhos e das Epístolas de Paulo haviam sido feitas, autoridade escriturística estava come­ çando a ser atribuída a esses livros e o conceito de um cânon estava começando a surgir.

II. Período do Surgimento de um Cânon do Novo Testamento (c. 180-220) Bem no começo deste período, um conceito claro de um cânon do Novo Testamento aparece dentro do contexto do cristianismo ortodoxo. Este conceito é visto no Cânon Muratoriano, lista de livros usados como Escritura pela igreja em Roma, em cerca de 180. O manus­ crito é fragmentário, mas a lista original continha pelo menos o seguinte: os qua­ tro Evangelhos, Atos, treze epístolas de Paulo, pelo menos duas e talvez três epís­ tolas de João, Judas e o Apocalipse. O Cânon Muratoriano deixa entrever os princípios da canonicidade. Um deles é o de autoria apostólica. Outro, é a ortodoxia. As Epístolas aos Laodicenses e aos Alexandrinos foram rejeitadas, por­ que foram foijadas em nome de Paulo, a fim de sustentar a heresia de Marcião. Outro critério é a antiguidade. O Pastor de Hermas podia ser lido particularmen­ te, mas não na adoração pública, por causa da sua origem recente. O conceito de um cânon do Novo Testamento aparece também claramente nos três grandes escritores deste período. O primeiro é Irineu, de Lião, na Gália (morreu c. 190). Ele foi inflexível na afirmação de um Evangelho quádruplo (Against Heresies, 111:11). Cita como Es­ crituras todos os livros do Novo Testa­ mento, exceto Filemom, Tiago, II Pedro, III João e Judas. A omissão de vários destes, entretanto, pode ter sido aciden­ tal, devido à sua brevidade. Irineu tam ­ bém conhecia Hebreus, mas deu-lhe um 38

lugar subcanônico. Hermas, entretanto, foi aceito como Escritura. Clemente de Alexandria (morreu c. 215) distinguia claramente entre os qua­ tro Evangelhos e alguns Evangelhos apó­ crifos (Stromata, 111:93). Ele também citou os outros livros do Novo Testamen­ to, exceto Tiago, II Pedro e III João. Eusébio, todavia, declarou que Clemente escreveu um comentário acerca de todas as Epístolas Gerais (Hist., VI:14). Cle­ mente também considerou como inspira­ dos I Clemente, o Didaquê, a Epístola de Bamabé, Hermas, o Apocalipse de Pedro e a Pregação de Pedro. Tertuliano, de Cartago (morreu c. 220), foi o primeiro dos escritores cristãos a empregar o latim. Ele referiu-se a oa citou todos os livros do Novo Testamen­ to, exceto Tiago, II Pedro e II e III João. Atribuiu Hebreus a Bamabé e, quando muito, tratou-o como semicanónico. Ter­ tuliano foi, aparentemente, o primeiro a usar o termo Novo Testamento no senti­ do de uma coleção de livros (Against Praxeas, XV). A importância do Cânon Muratoriano, de Irineu, Clemente e Tertuliano para a história do cânon nâo pode ser menos­ prezada. O seu testemunho representa a maior parte do mundo cristão dos seus dias. Eles atestam a existência e o uso de todos os livros do Novo Testamento, ex­ ceto Tiago, II Pedro e, provavelmente, III João. Contudo, se a declaração de Eusébio, acerca do comentário de Cle­ mente a respeito de todas as Epístolas Gerais, puder ser aceita na sua verdadei­ ra acepção, até estas três deverão ser atestadas como canónicas. As duas por­ ções mais importantes do cânon, os qua­ tro Evangelhos e as treze epístolas de Paulo, foram firmemente estabelecidas. Atos, I Pedro e I João tinham lygares igualmente assegurados. Embora nessa época o Apocalipse não fosse questiona­ do, mais tarde ele foi alvo de fogo pesado no Oriente. Hebreus, Tiago, II Pedro, II e III João e Judas ainda eram questio­ nados. Outros livros estavam conten­


dendo fortemente por um lugar no Câ­ non. Irineu, Clemente e Tertuliano fre­ qüentemente faziam citações da maioria dos livros do Novo Testamento, de ma­ neira a indicar claramente que conside­ ravam estes livros como Escritura. Por volta do começo do século III, portanto, o conceito de um cânon do Novo Testa­ mento havia surgido claramente. Faltava apenas definir os seus limites exatos.

III. Período de Fixação do Cânon do Novo Testamento (c. 220-400) Orígenes (morreu em 254) viajou mui­ to, e residiu primeiramente em Alexan­ dria e depois em Cesaréia. Foi o primeiro a manifestar consciência do problema dos limites do cânon e a discutir o as­ sunto de maneira científica, classificando livros como aceitos, disputados e rejeita­ dos. Foi também o primeiro a revelar certo conhecimento de todos os livros que agora estão no Novo Testamento, inclu­ sive Tiago, II Pedro e III João. O proprio Orígenes aparentemente aceitava como canônicos todos os vinte e sete, mais o Didaquê, Barnabé e Hermas. Entretanto, sabia que estes escritos pa­ trísticos, Hebreus, Tiago, II Pedro, II e III João, e Judas, eram alvo de dúvidas. Dionísio de Alexandria (morreu em 264) negou que o apóstolo João tivesse escrito o Apocalipse (Eusébio, Hist., VII: 25). Embora o próprio Dionísio não negasse a canonicidade do Apocalipse, o seu ponto de vista a respeito .da autoria do mesmo provocou uma longa discussão acerca de sua aceitação. Eusébio de Cesaréia completou a sua História Eclesiástica em cerca de 325. Nela, ele apresentou um estudo com­ preensivo das opimões que prevaleciam na época a respeito do cânon (111:25). Edificando sobre a terminologia usada pela primeira vez por Orígenes, ele clas­ sificou os escritos cristãos como segue. Na categoria de livros universalmente aceitos, colocou os quatro Evangelhos,

Atos, catorze epístolas de Paulo, (inclu­ sive Hebreus, embora soubesse que a igreja em Roma não aceitava o livro como carta de Paulo), I João, I Pedro, e talvez o Apocalipse. Eusébio dividiu a categoria de livros disputados de Oríge­ nes nos que eram reconhecidos pela maioria, e os que eram espúrios. Na pri­ meira colocou Tiago, II Pedro, II e III João, e Judas; na segunda, o Didaquê, Barnabé, Hermas, o Evangelho Segundo os Hebreus, os Atos de Paulo, o Apoca­ lipse de Pedro, e provavelmente o Apo­ calipse de João. A ambigüidade a res­ peito do Apocalipse de João devia-se ao fato de que o próprio Eusébio teria re­ jeitado o livro, mas a tradição em seu favor era forte demais para permitir-lhe tal tratamento. Eusébio também mencionou uma ter­ ceira categoria, a de livros universalmen­ te rejeitados, na qual colocou várias ou­ tras obras apócrifas. É importante notar que a categoria de livros universalmente aceitos, mais a de livros disputados, e geralmente aceitos, corresponde exata­ mente aos vinte e sete livros do cânon hoje aceito. O problema do cânon es­ tava no limiar de ser definido. Tanto Cirilo de Jerusalém (348) como Gregório de Nazianzo (que morreu em 390) atestaram um cânon de vinte e seis livros, faltando apenas o Apocalipse na lista, e sem incluir qualquer outro livro. O primeiro cânon a corresponder exata­ mente aos vinte e sete livros que agora estão no Novo Testamento foi a lista feita por Atanásio de Alexandria, em sua Car­ ta da Páscoa de 367. O Concilio de Hipona (393), o Concího de Cartago (397), Jerônimo (que morreu em 420) e Agostinho (que morreu em 430) também estabeleceram esse mesmo cânon. Dúvidas continuaram a ser expressas a respeito do Apocalipse durante vários séculos, e vários escritos patrísticos con­ tinuaram a subsistir no limiar do cânon durante um pouco mais de tempo. Tam­ bém é verdade que nenhuma das igrejas sírias aceitou um cânon de vinte e sete 39


livros antes do século VI. De fato, algu­ mas dessas igrejas aceitam apenas vinte e dois livros até o dia de hoje. Além do mais, alguns dos reformadores reviveram a questão de livros em disputa, e uns poucos críticos modernos tem questiona­ do se deveria haver algo chamado cânon. Para a grande maioria dos cristãos, toda­ via, o cânon foi irrevogavelmente fixado desde cerca do ano 400. Conclusão A fé e a prática cristãs baseiam-se grandemente no Novo Testamento. Por­ tanto, é da maior importância procurar determinar se a igreja primitiva tomou as decisões corretas a respeito do conteúdo do cânon, e se os eruditos modernos foram capazes de restaurar o texto origi­ nal dos livros que constituem propria­ mente o cânon. A crítica textual não é uma ciência exata. Certeza matemática não é possí­ vel. Em alguns casos as evidências estão até divididas, e a fraseologia original tem de permanecer em dúvida. É por esta razão que não existem duas edições do Novo Testamento Grego nem duas tra­ duções que concordem sobre a escolha da versão variante em todos os casos. Não obstante, a porção do texto acerca da qual há interrogações sérias é bem pe­ quena, e pode ser confiantemente afir­ mado que, para todos os propósitos prá­ ticos, o texto original foi recuperado. A teoria textual continuará, sem dúvida, a ser refinada, à medida que novas des­ cobertas vierem à luz, e à medida que todas as evidências ulteriores forem ava­ liadas. Contudo, parece improvável que quaisquer mudanças de monta venham a ser efetuadas. Uma medida ainda maior de confiança é possível a respeito do conteúdo do cânon. Tal confiança é criada por duas coisas. Uma é o fato de que o cânon que foi estabelecido no quarto século não apenas sobreviveu, mas raramente foi seriamente desafiado, durante mais de quinze séculos. A outra relaciona-se com 40

a maneira como os livros foram escolhi­ dos, em particular. Ê do maior signifi­ cado que pronunciamentos feitos poi concílios da igreja e por dignitários ecle­ siásticos tiveram um papel secundário no processo de canonização. Tais pronun­ ciamentos não fizeram nada mais do que ratificar as decisões que já haviam sido tomadas de forma algo inconsciente, ba­ seando-se no uso comum e aceitação geral. Os livros que finalmente foram aceitos como canônicos foram os que haviam provado ter valor espiritual na vida da igreja, por um período de vários séculos. A evidência, que é derivada de mais de mil e oitocentos anos de história cristã, é tão forte que a maioria dos cristãos pro­ fessam crer na obra da divina Providên­ cia, não apenas no ato de escrever os livros do Novo Testamento, mas também na sua escolha.

Leitura Suplementar ALAND, KURT. The Problem of the New Testament Canon. London: A. R. Mowbray & Co. Ltda., 1962. GREENLEE, J. HAROLD. Introduction to the New Testament Textual Cri­ ticism. Grand Rapids: William B. Eerdmans Publishing Co., 1964. GRANT, ROBERT M. The Formation of the New Testament. New York: Harper & Row, 1965. FILSON, FLOYD V. Which Books Be­ long in the Bible? Philadelphia: West­ minster Press, 1957. KENYON, FREDERIC G. The Text of ' the Greek Bible. 2® ed. London: Ge­ rald Duckworth & Co. Ltd., 1949. METZGER, BRUCE M. The Text of the New Testament: Its Transmission,


Corruption, and Restoration. New York e London: Oxford University Press, 1964.

TAYLOR, VINCENT. The Text of the New Testament: A Short Introduction. London: The Macmillan Co., 1961.

SOUTER, ALEXANDER, The Text and Canon of the New Testament. Rev. C.S.C. Williams. London: Gerald Duckworth & Co. Ltd., 1954.

WESTCOTT, BROOKE FOSS. A Gene足 ral Survey of the Canon of the New Testament. 7速 ed. Cambridge e Lon足 don: The Macmillan Co., 1896.

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História da Cristandade Primitiva E. Glenn Hinson Como o grão de mostarda da parábola de Jesus, o cristianismo brotou no solo da Palestina e tornou-se uma árvore, cujos ramos se estenderam por todo o mundo conhecido e civilizado. Pequeno e pas­ sando quase despercebido em seu início, dentro de um século, ou dois, ele atin­ giu as ilhas britânicas no ocidente até o vale do Tigre e do Eufrates no oriente, e do mar Negro ao norte até o NUo superior ao sul. Considerando os seus inícios discretos, esta história é notável. O cristianismo era filho do judaísmo, nascido em um can­ tinho do vasto Império Romano. O seu fundador foi um obscuro galileu, a quem o governador romano, Pôncio Pilatos, condenou à crucificação, mais com o objetivo de impedir outro tumulto entre os rebeldes judeus, do que por causa das atividades de Jesus o estarem aborrecen­ do. No que concernia a esse oficial, a crucificação de Jesus terminou uma ta­ refa enfadonha, mas necessária. Para muitos judeus, indubitavelmente, Jesus era importante, mas por razões diferentes. Os líderes religiosos, sadu­ ceus e fariseus, viam nele uma ameaça para a ordem estabelecida. O Seu ensino tinha a tendência de minar os alicerces gêmeos do judaísmo do primeiro século: o Templo e a Lei. E o que era ainda mais perigoso, ele falava e agia com um a auto­ ridade que eles ousavam atribuir somen­ te a Deus. Por fim, eles o acusaram de blasfêmia, e o entregaram aos roma­ nos, como um a ameaça à paz da Judéia. Muitos outros, começando com João Ba­ tista, talvez, viram nele a esperança do cumprimento das expectações judaicas do Messias. Ele, algumas vezes, fez o que 42

eles esperavam que o rei ideal vindouro haveria de fazer, mas por fim os desapon­ tou. Ao invés de reunir um exército guer­ reiro, que, com a ajuda de Deus, poderia repelir os romanos e restaurar o reino de Davi, ele acabou em uma cruz. Porém, além da cruz, algo aconteceu. Alguém, naquela heterogênea turba de seguidores, durante a sua carreira terre­ na, percebeu que o seu Mestre, embora crucificado e sepultado, ressuscitara den­ tre os mortos. A sua experiência os trans­ formou em um exército de testemunhas daquele acontecimento dramático. “A esse mesmo Jesus, a quem vós crucificas­ tes” , testificavam eles aos judeus, “Deus o fez Senhor e Cristo” (At. 2:36).

I. A todo O Mundo 1. As Coisas de César Embora nascida do judaísmo, a igreja cresceu nos vastos domínios de Roma. Começando com a conquista final de Cartago, em cerca de 200 a.C.. este colosso havia estendido a sua influência a toda a região que rodeava o Mediterrâ­ neo, antes do nascimento de Jesus. De­ pois de um século de relativa indepen­ dência, sob a influência dos gregos, os judeus caíram sob o domínio romano, em 63 a.C. Como um todo, Roma dominava as suas dependências de modo benigno e eficiente. Os romanos possuíam tino administrativo. Estruturaram o Império de maneira hierárquica, em inúmeras províncias, e ligaram estas_a Roma, atra­ vés dos seus administradores. Construí­ ram um sistema de esplêndidas estradas


de rodagem, que demandavam a capital e propiciavam fácil acesso a todas as partes do Império. Elaboraram um siste­ ma postal rápido, que podia conservar as linhas de comunicação abertas para e de Roma. Jactavam-se de um exército sem par quanto à disciplina, à perícia e ao equipamento. Social e economicamente, Roma mani­ festava enormes contrastes. As classes governantes viviam em grande luxo, ser­ vidos, em seus menores desejos, pelos seus numerosos escravos, que eram os despojos das suas numerosas conquistas. As massas viviam com dificuldades, so­ brevivendo com as mínimas condições de vida. Não thiham escravos para fazer o seu trabalho, e os avanços tecnológicos, que os inventores romanos descobriam, dificilmente se filtravam até eles. Proble­ mas de família, criação de filhos e a segurança do pão de cada dia^ geravam uma sensação de futilidade. Os seus pa­ drões morais se eacontravam em um nível bem haixo. Roubo, adultério, in­ fanticídio, e toda sorte de imoralidade eram comuns. Não obstante, do lado mais brilhante, muitos estavam procurando algo melhor. Os cidadãos de mais cultura encontra­ vam alguma satisfação nas filosofias, co­ mo o platonismo, o estoicismo, o pitagorismo e aristotelismo. Oferecendo sistemas integrados do mundo, do ho­ mem e de Deus, estas filosofias satis­ faziam até os anseios religiosos de al­ gumas pessoas. A ênfase do platonismo na unidade, e a sua promessa de união com a divindade, apelavam especialmen­ te aos que sofriam devido à confusão de um mundo sempre em conflito. Os pa­ drões éticos do estoicismo capturavam a fantasia dos que lamentavam a deterio­ ração moral da sociedade romana. Muitos eram atraídos também p^ra uma espécie de mosdmenlo xeligioso-filor, sófico, hoje conhecido como gnosticismo. O gnosticismo era uma mistura de idéias orientais e greco-romanas. No seu centro estava o dualismo metafísico, uma cren­

ça de que a matéria é má e o espírito é bom. A salvação, no pensamento gnósti­ co, significava ser livre do mundo mate­ rial e visível, e voltar para o mundo do espírito ou da mente. A obtenção dessa liberdade reqúeria gnosis, isto é, conhe­ cimento, palavra da qual deriva o nome do movimento. Essa gnosis era não tanto intelectual como mística, o conhecimento de fórmulas secretas pelas quais uma pessoa podia ultrapassar os poderes de­ moníacos, que, se cria, guardavam as esferas planetárias entre os céus e a terra, e retornar ao mundo do espírito puro. Alguns gnósticos criam que um redentor descia das alturas, para ensinar gnosis. Todo o conjunto de idéias forma­ va parte do mundo de pensamento cris­ tão, e pode ter influenciado a maneira como Paulo e os outros expressaram o evangelho aos gentios. Por volta do sé­ culo II, alguns gnósticos haviam entrado na igreja, e tentavam desenvolver o gnos­ ticismo dentro do cristianismo. As massas deseducadas, contudo, en­ contravam satisfação nas religiões orien­ tais, que a essa altura haviam se esta­ belecido fortemente no Ocidente. As ve­ lhas seitas nacionais existentes só exis­ tiam de nome. O povo ainda executava os rituais como era requerido pela lei anti­ ga, mas isso não impedia os mais devotos de procurar outros remédios para as suas necessidades espirituais. Conquanto eles nâo se recusassem a cumprir os deveres públicos, os oficiais não se importavam. Só os cristãos e os judeus^ devido à sua exclusividade religiosa, causavam algu­ ma ansiedade. O que era atraente em relação às reli­ giões orientais era a sua promessa de salvação, sustentada por um sacramentalismo impressionante. Com a ajuda do batismo, refeições sacramentais, dramas redentores, fórmulas mágicas e vários estímulos físicos, essas religiões garanti­ ram uma participação na vida eterna. O “banho em sangue de touro” (taurobolium) da seita de Mitra dava uma garantia tangível e especial, pois o prin­ 43


cípio da vida do animal, assim pensa­ vam, fluía para o devoto, e, desta forma, o revitalizava. A sua masculinidade fez de M itra um favorito no exército ro­ mano, capacitando-o a competir forte­ mente com o cristianismo na obtenção da lealdade das massas.

A vida dos primitivos cristãos, no mundo, exigia um combate algo seme­ lhante ao de Cristo. Embora Cristo tives­ se dado no Diabo um golpe mortal, não o havia destruído. Satanás e os demônios, admitiam os cristãos, ainda tinham al­ guma influência sobre o mundo. Ne­ nhum deles é büm. Não obstante, ne­ nhum cristão precisa se submeter docil­ 2. Cristo e o Príncipe dos Demônios mente às suas intimidações, como o ro­ Para competir com essas seitas orien­ mano médio cria. Embora vivendo no tais, o cristianismo primitivo precisava mundo, isto é, no reino de Satanás, a encontrar o cidadão romano em seu pró­ pessoa precisa demonstrar a sua lealda­ prio campo. Especificamente, ele preci­ de a Cristo, no seu modo de vida, con­ sava falar e apelar ao seu medo exces­ fiante que o Espírito de Cristo lhe pro­ sivo de poderes demoníacos, que ele cria piciará forças e o conservará em paz. dominavam o mundo. Os demônios, que A crença de que o mundo é o reino de até as pessoas mais sofisticadas aceita­ Satanás, levantou naturalmente alguns vam sem tergiversação, ocasionavam os problemas referentes à cultura pagã e ao acontecimentos tanto bons como maus. Estado. Alguns cristãos chegaram ao Ninguém podia escapar à sua influência ponto de exigir isolamento da sociedade sobre a sua vida. O segredo da felicidade greco-romana. Todavia, em sua grande era saber como aplacar os maus, e como maioria, eles adotaram a atitude paulina colocar os bons do seu lado. Os infor- da discriminação. Cristo, argumentava túmos pessoais, calamidades, desastres Paulo, domina sobre todas as coisas, naturais, doenças — tudo isto era sinal embora não o vejamos. Assim, para o de que alguém havia caído nas mãos cristão, “todas as coisas são lícitas” (cf. erradas. Os antídotos contra essas coisas I Cor. 10:23). Contudo, nem todas as incluíam encantamentos mágicos, fór­ coisas são boas, pois podem não servir a mulas secretas, divindades familiares, e Cristo. Muitas coisas ainda pertencem ao uma multidão de hábitos supersticiosos. reino satânico, e, por isso, os cristãos O cristianismo dava a resposta para os não devem transigir a respeito delas. Não temores típicos dos romanos com uma foi por acidente que, devido a isso, mui­ mensagem do triunfo de Cristo sobre o tas vezes os cristãos pareceram ser “es­ príncipe dos demônios, cabeça de todo o nobes sociais” . reino demoníaco, Satanás. Durante a sua O próprio Império Romano ocupava também uma posição ambígua. Em úl­ vida, diziam os missionários, Jesus havia enfrentado o diabo em combate, e o tima análise, os primeiros cristãos assim havia derrotado. Jesus havia expulsado criam, o governo tem origem divina e demônios e libertado os indefesos das existe para cumprir um propósito divina­ suas garras terríveis. Mas o seu triunfo mente ordenado: preservar a paz e a mais esplendoroso ele regjstxou na cruz. ordem entre os homens. Contribui, com Submetendo-se voluntariamente à mor­ muitas coisas, para a preparação do te, ele pagou o preço requerido para li­ evangelho. Pelo fato de servir aos pro­ bertar os homens da sua escravidão aos pósitos de Deus, ele merece a lealdade e poderes demoníacos é ao pecado (cf. a dedicação de todos os cidadãos. Mas Rom. 5-8). Deus o ressuscitou dentre os quando ele se coloca definidamente con­ tra o propósito divino, serve a Satanás. mortos, sinal triunfante de que o último inimigo do homem, a Morte, havia caídó Por esta razão, João, o vidente, adverte (cf. I Cor. 15:55). contra a ira vindoura de Deus contra a 44


“meretriz” Babilônia. Ela, que havia be­ bido o sangue dos mártires, haveria de cair juntamente com Satanás e suas hos­ tes, quando Deus pronunciasse o seu juízo (Apoc. 14:8). Nos casos em que Roma permanecia dentro da vontade de Deus, os cristãos se submetiam; quando ela se colocava contra a divina vontade, eles resistiam passivamente. 3. O Mundo Subvertido O clamor de certos judeus de Tessalô­ nica, enquanto arrastavam Paulo e seus companheiros para junto dos magistra­ dos, representa com exatidão o que acon­ teceu no primeiro século da vida do cris­ tianismo. Esses missionários primiüvos sonhavam com wn mundo em que^todo joelho iria se dobrar e toda Ungua iria confessar que Jesus Cristo é Senhor. Eles haviam tomado a sua visão em­ prestada das esperanças apocalípticas dos judeus, como as expressadas no rolo do Mar Morto, A Guerra dos Filhos da Luz e dos Filhos das Trevas. Os essênios de Qumran concebiam-se como um exér­ cito santo, sendo equipado e treinado para a última grande batalha, quando o Messias de Deus haveria de coman­ dá-los para derrotar a Satanás e suas hostes de uma vez por todas. Todavia a esperança cristã diferia da dos essênios de maneira essencial. Enquanto os essê­ nios ansiavam por esse dia e esperavam no deserto, expectantemente, os primiti­ vos crentes realmente se empenhavam em uma batalha começada por Jesus. O Messias da esperança judaica já havia vindo e lhes dera uma ordem para m ar­ char. A missão não se processava desimpedidamente. Parece que a comunidade de Jerusalém se dividira em duas facções, em relação à questão da missão que jevia exercer quanto aos gentios. Alguns cris­ tãos, conservadoramente orientados em direção à sua fé ancestral, insistiam que os gentios tinham que se tornar judeus antes de poderem tornar-se cristãos. Ou­ tros, a quem Lucas chama de helenistas,

seguiam a orientação de Estêvão em insistir que os gentios podiam ser cristãos e ainda permanecer gentios, conquanto se dedicassem a Jesus como Messias e Senhor. Visto que a oficialidade judaica estava preocupada em preservar a in­ tegridade do Templo e da Lei, a perse­ guição atingiu os helenistas. Estêvão se tornou o primeiro mártir cristão (At. 7). O apedrejamento de Estêvão, a despei­ to da tragédia que representou, trans­ formou-se na mola propulsora da missão aos gentios. O dirigente desse aconteci­ mento, Saulo de Tarso, mais tarde cha­ mado Paulõ, subseqüentemente tornouse um convertido à igreja e líder da própria missão que tentara fazer abortar. Formando uma equipe com outro judeu helenista, Barnabé, ele plantou a semen­ te do evangelho por toda parte. Sob os auspícios da igreja em Antioquia, eles espalharam a semente nas principais ci­ dades da Asia Menor. O próprio Paulo depois continuou a fazer o mesmo na península grega, com a assistência de jovens convertidos, como Timóteo e Tito. Os velhos críticos da missão aos gen­ tios, contudo, nunca se cansaram. Per­ turbavam Paulo por onde quer que ele fosse. Até o chamado Concílio de Jeru­ salém, em 49 d.C., não resolveu o caso, se o julgarmos pelo livro de Atos e pelas epístolas de Paulo. Embora as “três colu­ nas” (Pedro, João e Tiago, meio-irmão de Jesus) e outros líderes da igreja em Jerusalém se recusassem a impor o regi­ me judaico completo aos convertidos gentios, cristãos judeus conservadores se recusavam a desistir. Eles exigiam a cir­ cuncisão e a observância dos rituais, bem como da lei moral. Quando Paulo e seus colegas missionários não capitularam, eles atacaram o seu apostolado, bem como a missão que ele desempenhava, e continuaram agitando essa desagradável questão. Não obstante, Paulo perseverou. De­ pois de plantar congregações em Antio­ quia da Pisídia, Icônio, Listra e Derbe, e 45


nismo teve um impacto de certa profun­ te a noite. i Naquele breve reinado de didade sobre os seus convertidos. Ele não terror, de acordo com uma primitiva tolerava a adesãjQ_ a_ Cristo como um tradição cristã, (pjdi^^foi crucificado e dentre muitos deuses. Exigia costumes rP á u loJ decapitado! Centenas de outros diferentes. Os cristãos viviam segregados tnorreram com eles. dos seus vizinhos. Eles nem podiam acei­ No período de perseguição que se detar convites para visitar os lares de vizi­ sencadeou duráníg^ última parte do rei­ nhos pagãos, sem escrúpulos de cons’ nado delDoinícianoi t . 91 d.C., as crí­ ciencia, quando esses vizinhos insistiam ticas atingirãnr; ã ^ ^ n lé ^ e n te . mais ~em prestar homenagem às divindades fortemente os cristãos da Ásia Meiiõn familiares. Eles tinham um Rei e uma lei "Õnde â semente lançada por Pauío havia que transcendiam os dos romanos. O seu brotado e produzido uma sadia seara de Rei os havia enviado para guerrear con­ devotos cristãos. Os iudeus ou iudaizantra os principados e potestades que es­ tes. conta-nos o Hclêr aojaiudaram , tavam por detrás dos fetiches e rituais 'de novo, a instigar a perseguição. O impagãos. peraaor e seus oficiais provavelmente in­ terferiram bem pouco no seu direciona­ 4. Prova de Fogo mento. Entre os mártires proeminentes A perseguição dos primeiros converti­ contam-sê Õ^rimo~g5 Impjerado^l^viÕ' dos partiu dos judeus e dos judaizantes.. Clemenfe^suá“esposaT^omitila. p um exEles (e o seu relacionamento é algo mis- * consul, clmm^ ^ A cíüoCjlátinQjpessoas terioso) causaram dano especialmente < cuja morte atesta alnfluéncia do cristia­ por suscitar o ódio dos romanos, de< nismo na classe-alta. nessa épocaT FalanC acordo com fontes cristãs primitivas. Istc dò genericamente, todavia, os cristãos ‘ pode ter algo a ver com os breves ata­ sofreram mais com os tumultos populaques empreendidos por Nero em Roma e res, que destruíram propriedades, feri­ Domiciano na Ásia Menor, contra os ram pessoas e algumas vezes as ma­ cristãos. taram. A perseguição empreendida por Nero Uma terceira onda de perseguiç parece ter sido principalaconteceu durante o reinado deQ"rajano, mèni:e uma capa para os caprichos do imperador d q 9 8 a ^ lX,^j£.^ novamente miperador semidemente. O rumor foi, de^ na Asia M e n o ^ e o ^ r a ^ a na forma^He acoráõ com historiadores romanos con­ ressentimento popular, principalmente. temporâneos, que tomado por um delí­ Os oficiais provinciais tomaram alguma rio, o próprio Nero pôs fogo na velha ci^ iniciativa. Mas o imperador os instruiu a dade, e grandes partes dela foram des­ não receberem acusações anônimas elpatruídas pelas chamas. A fim de frustrar o ^^m yrem j^nas aquêl5rque‘prOTÍ3arumor acerca de si próprio, ele colocou oS piente fQSsey~criIta ó F gfjg:ia|[oi^ cristãos como bodes expiatórios. A impoquer pessoa que rejelTasse^^a^Ma 14,'elê pulárldade generahzaaa quê eles so­ OTdénou que fõ ss^ ÍÍl|e fS 3 ^ ”A ^am osa friam, tanto por parte dos judeus como carta dê Plínio, governador da Bitínia, dos pagãos, permitiu-lhe fazer deles o escrita a Trajano, em cerca de 112 d.C., que quis. Ele os usou especialmente para reflete a genuína confusão de conscientes saciar a bestialidade das m assas/tá c ito oficiais públicos acerca da nova religião. Tilatou que alguns cristãos foranicÕsHrr Deviam os cristãos ser_punidos apenas rados na pele de animais selváticos, para por ostentarem e s s e jio m e f ^ perguntaserem rasgados até a morte por cães. ^ra^leT'Oir^penSslieYido a um crime Outros crucificados, e ainda outros co­ ^cometido sob_esse_nome? ElêTíãF"con^ bertos de piche e usados como tochas humanas, para iluminar a arena, duran1 Anais, XV:44. 47


razão, apartando-se dos costumes ances­ seguia encontrar nada nas suas práticas trais. que merecesse a primeira hipótese. O Estando a religião relacionada tão in- ^ que o ofendia mais era a Q timamente com a saúde e o bem-estar do S deles. A carta de Plínio fornece um indício ^ corpo político, não é de se admirar que se S valioso do ressentimento generalizado do Ç ouvissem acusações de t r a i ç ã o ( ^ t ^ ^ ^ y preparou o caminho para tais acusações, povo romano. Os pagãos faziam toda fazendo com que o senado atribuísse hon­ sorte_de_ acusaçfes^contra ^ü~cn^aõs: ras divinas a Júlio César, e ele mesmo foi Incesto e cánTbaiismo, “ôdíô^^pelã raça elevado à condição divina nas províncias, humana, esnobismo social e ateísmo, se não em Roma. Calígula, Nero e outros eram as mais freqüentes. A acusação de incesto e canibalismo, sem dúvida, sur­ cultivaram essa adulação ainda mais, em uma tentativa para aumentar o seu po­ gia um mal-entendido acerca de derio. Embora o imperador oficialmente " _ ‘ autras _ três _ observâncias cristãs. não recebesse o título de Dominus (Se­ brota m de im a s £ ^ jó n te ^ o ^ _ e ^ ^ nhor) até o reinado de Diocleciano (303- > ^^^^^a^mo’cnstâoTTîérâlfiÎénïë'orTùd^ 311 d.C.,) para todos os intentos e pro­ Vmm-conS^mSo escapar à ira de seus pósitos, já no primeiro século, ele havia vizinhos, em virtude de uma posição começado a encabeçar o panteão roma- ^ legal privilegiada, embora os judeus ale­ no. Isto fez_dg-juramento de lealdade aos xandrinos houvessem sofrido uma perse­ deuses um juramento " ^ ^IfãtdadeinSs guição popular durante o breve reinado EMado. e~vicS^vêrsaV E. quando os cris- , de Calígula (37-41 d.C.). Mas os cristãos tãos se recusaram ã dizer: “ César é Segozavam dessa proteção legal somente se nr_ traldores do ‘péfníaneces^sem identificados_,çom^^U: Império. daísmo. Quando eles tornaram bem claAs perseguições regionais espasmódi­ ro que Cristo os libertara, nada pôde, cas e a importunação do primeiro século i^ e d i r ^ anti^átiiTpes^soal. e começo do segundo não conseguiram A acusação de ateísmo possuía espeparar a missão cristã. A crueldade de ciálTmporfancia,;““P'êra sintom ïficâ'^io’ Nero simplesmente evocõü"sinípãtrá'’p ? “ ínãior mõHvo dê queixa dos romanos. pulãrT ^1i^"T ãm iraçaorT ^ão obstante Os cristãos se i^ u sa ra m a adorar œ 'unf^ãdÇlpipimèhtò de suás fileiras por ‘^ eù sêsi:|üë liaviam tornjBo ^ m a ^ g r a n - , morte ou defecção^ igreja cresceu. Em / ^ cE ^'âîT sêm p re'q u e^^rÎâm cerca de 197 d.C .rT ertuhanõjde Carta­ ^ d e s'— derrota em batalha, terremoto,^ go, chegou a se já c tã rn f^ s a n g u é ' inundação, foine^ fo^g - levantava-se o mártires e ã semente d^Igreja.” clamor.-^^s cristãos aos leoes!” jD evido II. Um Reino de Sácerdotes e a sua recusa d e ^ ^ o ra r ás divindades ancestrais, raciocinavam os romanos, os uma Nação Santa cristãos haviam enfurecido os deuses, e A igreja primitiva tinha uma resposta acarretaram a sua ira sobre todo o Im­ p ã ^ a sériã ácúsa^o de novidldK Com pério. Para com os judeus essa acusaçãí o íempõTSãTSsênvolveu uma extensiva não era tão séria. Eles, pelo menos, ^j^gdogéfca para a sua antiguidade^Qs^ permaneciam fiéis à sua divindade an­ ' cristãos insistiam que de form a Alguma cestral. Mas os cristãos, ex-romanos e ex- ^ iia v £ m ^ ^ '|p â x t0 o ^ ? a ^ a n t i g a Ç e l o ^ judeus, haviam traído todos os deuses, contrário, póssuíanLá fé iííaiX"anfíga em benefício desse chamado Jesus. Para tó3ásT a^ dê^bráão é Mojsés. Eram, a mente romana, eles desafiavam toda tato, o povo a quem Deus havia eleito desde o princípio, para cumprir a Sua 2 Tertuliano, Apol., 40. missão no mundo e ao mundo. 48


indicou fc.H. D o d ^ em The Apostolic No sentido mais estrito, os prirneiros Preaching and Its Develooments. _ps pricristãos se v i a m ^ m o ^ ^ j r e ^ a ^ f r ^ l ^ mitiv-OS arautos do evangelho proclama■^iSÍj^^rêpudÍandScom vigor as ópiniões contrárias, como a de Marcião. Junta- _^jamJ A era dõ*^uhiprimento nasceu”\ através do ministério, morte e ressurrei­ mente com os judeus do primeiro sécuTõ, 'que se~èncontrayam po rlõ d a parte, elê~s ção de Jesus. Em virtude da sua ressur­ compartilhavam uma crença em um_ reição, ele foi éxaltado à direita de Deus, como o cabeça messiânico do novo Israel. DêiS~queTiavia feito uma aliança com O Espírito Santo, na Igreja, é um sinal Israel, em suas exigências de santidade e da sua glória e poder atuais. Bem logo ele retidão, e na vinda de um Messias-Rei, voltará, e consumará a era messiânica. de acordo com as antigas promessas. Diferiam deles p r i n c i p a l m e n t e n a s u a Arrependei-vos e crede nas boas-novas, e recebereis a salvação pela participação forte conviccão acerca da esperança mes­ na comunidade messiânica.” siânica. Neste assunto, eles ficavam mais perto de João Batista e dos essênios, que procuravam preparar o caminho para a quer pessoa que não tivesse experimenta­ do uma longa associação com o judaísmo, vinda do Messias. Mas enquanto até João taLmensagem soava um tanto estranha, e os-^ess-ênios olhavam para o tuturo',"*^ ^ m s s io n á ri^ ris fâ portanto, precisac r i s e s criam que essa esperança havia começado a vir à exis^îïcia ërtîTêsusïr VcT, e m ^ rín e í^ íu g à íi eiisínar-lhe acerca do ú n i^ L)eus"e cíe coma_jeüS£_D.eus Eles próprios eratp a ^havia-se revelado em acontecimentos histoncos, que culminaram em Jesus. Para Esta autocompreensão estabelecia o ele, “c o n v e rs ^ ’ significava uma mu­ padrão para o impulso dinâmico da cris­ dança rãSical em sua maneira de pensar tandade primitiva no mundo civilizado e agir. Acarretava uma mudança com -’ da época. Como Israel, sob a direção de pleta de lealdade — de muitos senhores e'^ Moisés e Josué, eles haviam fugido da obrigação de servir a demônios e ídolos« ^deuses para um só Senhor e Deus — que, mudos, e haviam marchado triunfante- .mais freqüentemente do que raramente,' I mente, entrando na terra prometida. 'trazia ridículo e embaraço, mesmo no^; Eles estavam-se treinando em santidade, - 'seio da própria famíHa. A fim de assistir a conversão dos pa­ )para cumprir essa missão. Eles eram, gãos, a igreja depressa desenvolveu um para empregar a frase do Novo Testa­ sistema apologético e educacional como o mento, “o sacerdócio real, a nacão san­ empregado pelos judeus. Já nos dias de ta” (I Ped'l^iT^y.'Ennâiïïtos aspectos, isto Paulo, um grupo especial de mestres se "íêz deles uigal^ígíÇeira^rag^, como os concentrava na instrução dos novos con­ apelidaram" algun^^íagãos do segundo vertidos e interessados, provavelmente século, à guisa d ef c E i I ^ pois eles pos­ antes do batismo. Por volta de 200 d.C., suíam uma forma de vida diferente e os­ a experiência havia ensinado a igreja a tentavam com^ o rã ilho o nome de çrisestender esse periodo a três anos. Alguns tãos. Certamente, em sua fidelidade ao convertidos obviamente precisavam de "unico Deus, revelado em Jesus Cristo, muita nutrição, antes de estarem prepa­ eles se colocavam à parte tanto de gre­ rados para romper com Satanás e se tor­ gos como de bárbaros. narem completamente submissos a Cris­ 1. Chamados das Trevas to. De fato, para Ubertá-los completa­ Contra esse pano de fundo, a “conver­ mente das garras dos poderes demonía­ são” do judaísmo era considerad^om o cos, algo mais do que instrução era ne­ umTeeSíméciméiii:o do messianismo e do cessário; requeria-se exorcismo. Da mes­ senhorIôTë” Hsïïs7“Nëssa liiíhar como ma forma como Jesus havia expulsado 49


demônios, a igreja o fez. Pelo menos no segundo século, a conversão ao cristianis­ mo acarretava certos rituais especiais, mediante os quais o domínio demoníaco sobre a pessoa podia ser quebrado. A pessoa que recebesse o Espírito Santo não poderia ser cheia de espíritos malig­ nos que se opunham a Deus. 2. Revestindo-se de Toda a Armadura de Deus O clímax da conversão do paganismo para o cristianismo era a iniciação à comunidade messiânica. Quando um convertido dava esse passo, entregava-se irrevogavelmente a Cristo, e se colocava em oposição aos seus senhores anterio­ res. Como membro do exército de Cristo, ele precisava'estar preparado para um ataque daqueles senhores anteriores. A sua única proteção suficiente era o arma­ mento divino, única coisa que o capaci­ taria a suportar as intrigas do Diabo (cf. Ef. 6:10-20). O armamento do cristão era a obra do Espírito Santo. O Espírito, de acordo com Atos, tinha uma conexão especial com o batismo, porque naquele momen­ to o homem declara que coloca de lado o seu velho “eu” , e se reveste do novo, ato simbolizado pelo despir uma roupa velha e vestir uma nova. O velho “eu” morre com Cristo, por assim dizer, e ressuscita de forma revivificada, para viver de ma­ neira nova. A força tirânica do pecado foi quebrada, disse Paulo. Ninguém mais precisa desculpar-se por agir imoralmen­ te, pois, participando da morte de Cristo, nós nos tornamos livres (Rom. 6:1-8). Em termos práticos, o compromisso expresso no batismo tinha tremenda im­ portância para o novo convertido. Ante­ riormente, ele costumava culpar os de­ mônios ou o destino pelo seu mau pro­ cedimento. O batismo minava essa des­ culpa. “Cristo vos libertou” , lembrava Paulo aos cristãos que resvalavam de novo para os velhos caminhos. “Não usem mal a sua liberdade. Vocês fizeram 50

um compromisso com Cristo, através do batismo; de agora em diante, precisam conduzir as suas vidas de acordo com o Espírito, para que não se tomem de novo escravos de Satanás!” (cf. Gál. 5). 3. Levantando Mãos Santas Tendo começado a fazer parte da co­ munidade cristã mediante o batismo o novo crente precisava dar atenção cons­ tante e fiel ao seu desenvolvimento es­ piritual. Ajudavam-no nisso a adoração particular e pública. Em particular, os cristãos seguiam um programa de orações algo semelhante ao dos judeus. Três vezes por dia — às 9h, 12h e 15h — eles recitavam a Oração Dominical (em lugar do Shema judaico). Também oravam antes de se levantarem, pela manhã, e antes de irem para a cama, à noite. De acordo com a Dida­ quê, provavelmente composta já em 100 d.C., os cristãos sírios jejuavam nas quartas e sextas-feiras (ao invés de fazêlo nos dias de jejum dos judeus, nas terças e quintas-feiras). As igrejas, no que tange aos edifícios existentes, fica­ vam abertas para devoções diárias. As festas de “agape” eram realizadas regularmente. Contudo, mais tarde, o abuso desse costume evidentemente le­ vou à separação deles da refeição da Ceia do Senhor (cf. I Cor. 11; II Ped. 2:13; Jud. 12). A Ceia propiciava, aos cristãos mais bem aquinhoados com bens mate­ riais, uma oportunidade, para ajudar os mais pobres. Os cristãos geralmente se reuniam à noite, para que os escravos e trabalhadores que pertenciam à igreja pudessem assistir às reuniões. A principal ocasião de adoração públi­ ca era o primeiro dia da semana, o do­ mingo romano (dia do sol), que qs cris­ tãos logo passaram a chamar de “dia do Senhor” , em comemoração da ressurrei­ ção de Jesus (cf. I Cor. 11:20; I Cor. 16:1,2; Ap. 1:10; Did. 14:1; Justino, I Apol., 67). Nesse dia, que logo começou a suplantar o sábado (Sabbath) judaico


durante o primeiro século, eles se congre­ gavam em um lugar indicado para louvar a Deus e buscar direção para as suas vi­ das. Lendo a Apologia de Justino Mártir, escrita no meio do segundo século, podese verificar o esboço básico da adoração na sinagoga judaica ainda influenciando a liturgia cristã. O caráter distintivamente cristão desse culto era a Ceia do Senhor ou Eucaristia. Aparentemente, desde os primeiros tem­ pos, os membros do novo Israel observa­ vam-na todas as vezes que se reuniam. Ela possuía significado especial para eles, porque, na sua observância, “esta­ reis anunciando a morte do Senhor, até que ele venha” (I Cor. 11:26). Neste sentido, a Ceia do Senhor era a Páscoa Cristã, como muitas referências primiti­ vas nos informam. Enquanto para os judeus a Páscoa fazia lembrar o mais poderoso ato de Deus em seu favor, isto é, o êxodo do Egito, a Eucaristia fazia os cristãos lembrarem um ato ainda mais poderoso em seu favor, a saber, a sua redenção da escravidão do pecado e de Satanás, mediante a morte e ressurreição de Cristo. Ao usar a palavra grega anam­ nesis em referência à Ceia, Paulo falava em mais do que um memorial, da mesma forma como a Páscoa era mais do que isso. O Mishnah, ou seja, a tradição oral codificada do judaísmo, depois de deter­ minar a maneira pela qual a Páscoa devia ser observada, ordenava: “Em ca­ da geração um homem deve conside­ rar-se como tendo saído pessoalmente do Egito.” ^ A bem dizer, portanto, os primeiros cristãos pensavam na participação do pão e do vinho como uma participação um pouco mais do que simbólica na morte e ressurreição de Jesus, e qualquer outra coisa que esse acontecimento desse a entender. A refeição simbolizava a sua participação da comunidade messiânica, através do Espírito, a sua participação na 3 Mishnah, 10:5, tradução para o inglês de Her­ bert Danby (London; Oxford, 1933), p. 151.

vitória de Cristo sobre os principados e potestades, a sua união com Cristo e uns com os outros (cf. I Cor. 10:1-22; 11:1834). Para Joâo e alguns escritores do segundo século, ela denotava a realidade da natureza humana de Jesus (cf. Joâo 6:1-14, 26-71; Inácio, Ef. 20:2; Phiia. 4:1; Smyrn. 7:1). Ela também prometia que o que Deus havia começado, ao ressuscitar Jesus dentre os mortos, iria completar. 4. Falando a Verdade em Amor Cor a sua promessa de salvação para todos os homens sem considerações quanto à situação da sua vida pregressa, a igreja se impusera uma tarefa difícil. Os seus convertidos, alguns quiçá atraí­ dos pela sua beneficência, em muitos casos haviam vindo da própria escória da sociedade. Paulo lembrou os coríntios, por exemplo, que alguns deles haviam sido fornicários, idólatras, adúlteros, efe­ minados, sodomitas, ladrões, avarentos, beberrões, caluniadores (I Cor. 6:9-11). O não convertido punha em perigo a vida da própria igreja. Por isso, instruções e disciplina “no Senhor” se tornaram uma característica regular da vida da comuni­ dade cristã primitiva. Além do treinamento pré-batismal, os cristãos recebiam ulteriores instruções, através do sermão e em sessões diárias da igreja. Por volta do meado do segundo século, havia também escolas, em que, os que tivessem tempo e o desejassem, pu­ dessem obter um nível mais elevado de compreensão teológica. Mas a maior par­ te da instrução era ministrada no lar. As crianças recebiam quase todo o seu treinamento cristão no recesso do lar, pois a cristandade não levantou escolas especiais para elas antes da Idade Média. Os pais e mães ensinavam os seus filhos e filhas a orar, liam as Escrituras para eles e inculcavam neles “o temor do Senhor” . Embora as crianças cristãs tivessem que freqüentar escolas pagãs, para recebe­ rem educação liberal, a responsabilidade 51


de corrigir os erros pagãos a respeito dos deuses, etc., cabia aos seus pais. Como uma comunidade de amor for­ temente unida, a igreja primitiva tam­ bém expressava preocupação pelos seus membros através da disciplina, “seguin­ do a verdade em amor” (Ef. 4:15). O objetivo aqui não era a vingança, mas a redenção. Algumas pessoas haviam deixado de cortar os laços com Satanás, ou haviam caído de novo sob a sua influência. Mediante palavras de encora­ jamento ou admoestação, elas podiam reafirmar a sua lealdade a Cristo e manifestá-la em suas vidas. Não é de estranhar-se, portanto, que se encontre, fre­ qüentemente, nos escritos cristãos primi­ tivos, injunções para encorajar, admoes­ tar, repreender, exortar e instruir. Lamentavelmente, alguns casos mais rebeldes requereram ações severas. Os que não reagiam aos conselhos minis­ trados com amor, a igreja “entregava a Satanás” , cortando-os da “koinonia” cristã. Esperava-se que a exclusão iria levar tanto à restauração do ofensor co­ mo à preservação de pelo menos o padrão mínimo de santidade no corpo de Cristo. Duas ofensas mereciam essa espécie de disciplina: imoralidade crassa e facção ou divisão. As duas se situavam em antí­ tese à natureza da igreja, como comuni­ dade do Espírito, e refletiam um retorno do domínio demoníaco sobre o indivíduo. Em sua ação, a igreja tentava aplicar as medidas que iriam restaurar e revitaüzar a pessoa que havia caído. Ela era pronta em pronunciar o perdão de Deus. 5. Deus Estabeleceu Como qualquer outro movimento de monta, o sucesso do cristianismo depen­ deu, em grande parte, dos seus líderes. Logo de início, indubitavelmente, a co­ munidade de Jerusalém podia confiar em líderes apostólicos, testemunhas oculares e participantes do ministério de Cristo. Mas, à medida que o movimento se 4 Cf. Tertuliano, On Idolatry, p. 10.

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espalhou pelas partes mais longínquas da terra, líderes como Paulo, Barnabé, João Marcos, Timóteo, Tito, e centenas que não haviam visto Cristo na carne, tive­ ram que assumir a liderança. Durante muito tempo a comunidade de Jerusalém ainda consistiu em fiel da balança para as outras igrejas, como a de Antioquia, por exemplo. Porém, à medida que os horizontes do cristianismo se expandi­ ram, a influência de Jerusalém se des­ vaneceu, e outras igrejas de fundamento apostólico propiciaram também os pon­ tos de referências para todo o movi­ mento. Durante esta fase inicial, centenas ser­ viram por indicação espiritual, junta­ mente com os apóstolos, cumprindo o ministério da igreja no mundo. Em suas primeiras cartas, Paulo enumerou mui­ tas funções, que nunca se solidificaram, tomando-se ofícios: profetas, mestres, governos, dons de curar, socorros, admi­ nistradores, oradores em línguas (I Cor. 12:28). Posteriormente, entretanto, as funções que essas pessoas exerciam fo­ ram resumidas para se encaixarem nos ofícios de bispo, presbítero e diácono. O ofício de presbítero (ancião) prova­ velmente fora emprestado da sinagoga. A medida que o cristianismo traçou uma linha de separação do judaísmo, instalou os seus próprios presbíteros. No mundo grego, esses presbíteros recebiam o título mais descritivo de episkopoi, ou bispos, que significa “supervisores” . Os presbí­ teros, ou bispos, em certõ local, ou certa região, funcionavam como junta, servin­ do um dos seus membros como “presi­ dente” ou “presbítero que presidia” . Posteriormente, embora não com a mes­ ma velocidade em toda parte, o título de bispo foi sendo reservado para o presbí­ tero que presidia. As igrejas na Síria e na Asia Menor parece terem estabelecido o padrão para esta estmtura, chamada de episcopado monárquico. Inácio, Bispo de Antioquia, martirizado em cerca de 110-117 d.C., recomendou a sua imple­ mentação com fervor profético, mas o


seu tom sugere que o que ele buscava não era um padrão genérico. Roma aparente­ mente apegou-se à estrutura antiga até o fim do segundo século. Sobre os presbíteros-bispos, e, mais tarde, somente sobre o bispo, repousava a responsabilidade principal de dirigir e coordenar todo o ministério da igreja. Eles pregavam, administravam o batis­ mo e a Ceia do Senhor, supervisionavam a distribuição de fundos para ajudar os pobres e necessitados, ensinavam os no­ vos convertidos e exercitavam um cuida­ do pastoral genérico sobre o rebanho. Os diáconos, por outro lado, desincumbiamse de numerosas funções relacionadas com o ministério da igreja. Exerciam o seu ministério múltiplo sob a direção dos presbíteros ou do bispo. Conclusão O crescimento do cristianismo, naque­ les primeiros séculos, foi notável, e o seu impacto ainda mais extraordinário. A igreja da era do Novo Testamento lançou os alicerces, de forma que, com o passar do tempo, o novo Israel alcançou uma vitória que facilmente fez sombra às con­ quistas do velho Israel. Rompendo os laços de uma só cultura, eles univer­ salizaram as boas-novas de Deus, trazi­ das em Jesus Cristo. Fizeram notáveis modificações na vida política, social, econômica, intelectual e religiosa de Roma. No processo, eles correram os riscos nele inerentes. Algumas vezes, tal­ vez, foram longe demais. Mas a sua cora­ gem inventiva, nascida da confiança de que o evangelho é boas-novas para todos os homens, em toda parte, deu-lhes um triunfo merecido sobre dúzias de compe­ tidores. Cristo, o seu soberano, provou ser mais forte do que todos os outros juntos.

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Leitura Suplementar DAVIES, J.G., The Early Christian Church (Série “History of Religion” ,

ed. E.O. JAMES). New York, Chicago e São Francisco: Holt, Rinehart & Winston, 1965. DODDS, E.R., Pagan and Clu-istian in the Age of Anxiety, Cambridge: The University Press, 1965. FREND, W. H. C., The Early Church (Série “ Knowing Christianity” , ed. WILLIAM NEILL). Philadelphia e New York: J. B. Lippincott Co, 1966. _, Martyrdom and Persecution in the Early Church. Garden City, New York: Doubleday & Co., Inc., 1967. GLOVER, T. R., The Conflit of Reli­ gions in the Early Roman Empire. Boston: Beacon Press, 1909, 1960. HARNACK, ADOLF, The Mission and Expansion of Christianity in the First Three Centuries. Traduzido e editado por JAMES MOFFATT. New York: Harper & Bros., 1908, 1962. LATOURETTE, KENNETH SCOTT, The First Five Centuries (“A History of the Expansion of Christianity” , Vol. I). New York, Evanston and Lon­ don: Harper & Row, 1939. LIETZMANN, HANS, The Beginnings of the Christian Church. Traduzido por BERTRAM LEE WOOLF. Lon­ don: Lutterworth Press, 1939. NOCK, ARTHUR DARBY, Early Gen­ tile Christianity and Its Hellenistic Ba­ ckground. New York, Evanston and London; Harper & Row, 1964 (re­ impressão). SCHLATTER, ADOLF, The Church in the New Testament Period. Traduzido por PAUL P. LEVERTOFF. London: S.P.C.K., 1955. WEISS, JOHANNES, Earliest Christia­ nity: A History of the Period A.D. 30-150. 2 vols. New York; Harper & Bros., 1959 (reimpressão). 53


A Teologia do Novo Testamento William L. Hendricks A teologia do Novo Testamento é o estudo que enfatiza e explica detalhada­ mente o conteúdo do Novo Testamento do ponto de vista teológico. Como tal, ela está intimamente relacionada com outros estudos teológicos, e, muitas vezes, é difícil distinguir entre eles e a teologia do Novo Testamento. A teologia do Novo Testamento difere da exegese do Novo Testamento pelo fato de se concentrar nos temas e implicações mais importantes dos materiais do Novo Testamento. Contudo, a teologia do No­ vo Testamento precisa pressupor tanto o trabalho do exegeta, para fornecer os de­ talhes de interpretação, quanto os vários significados de uma dada passagem. A teologia do Novo Testamento tam­ bém difere da teologia sistemática. A teo­ logia sistemática trata mais sistematica­ mente e compreensivamente de doutrinas como Deus, o homem, o pecado e a sal­ vação. A teologia sistemática tem como fontes os materiais bíblicos; e também usa a perspectiva histórica de maneira intencional, para mostrar a influência da cultura e da interpretação bíblica na for­ mação e moldagem da doutrina. Da mes­ ma forma, a teologia sistemática se preo­ cupa em relacionar materiais bíblicos e históricos com o contexto atual. A teolo­ gia do Novo Testamento difere no ar­ ranjo do material e na consciente exclu­ são das preocupações da teologia liistórica clássica. Isto significa que a teologia do Novo Testamento se preocupa em per­ mitir que os materiais bíblicos falem, em primeiro lugar, em seu próprio contexto, e depois no contexto contemporâneo. A teologia do Novo Testamento difere da teologia histórica e da história da 54

igreja. Em certo sentido, ela é o prólogo e primeiro capítulo desses estudos. Em outro sentido, ela deve propiciar as nor­ mas pelas quais se avalia a teologia histó­ rica e a história da igreja. Um teólogo protestante do Novo Testamento pressu­ põe a prioridade do Novo Testamento, devido ao seu ponto de vista da autori­ dade e significado dos materiais bíblicos. Visto que a teologia do Novo Testa­ mento trata da mensagem do Novo Tes­ tamento em seu próprio contexto e em suas dimensões teológicas, a organização dos materiais é importante. Os livros do Novo Testamento são diferentes em pro­ pósito e em conteúdo. A sua mensagem é normativa e prática em sua expressão. As percepções teológicas do Novo Testa­ mento não são principalmente sistemáti­ cas em sua estrutura. Por exemplo, os Evangelhos foram escritos para contar a iiistória de Jesus Cristo e dar direção e autoridade para o testemunho cristão. Paulo fez um pequeno resumo da fé cris­ ta em Romanos, mas falou mais fre­ qüentemente de problemas específicos em Gálatas e em I e II Coríntios. Seria melhor falar de teologias do Novo Testa­ mento, pois há diferenças de ênfase e percepção nos vários livros do Novo Tes­ tamento. Ã guisa de introdução ulterior, note­ mos algumas ênfases principais np estu­ do atual da teologia do Novo Testamen­ to. Entender os antecedentes históricos é importante. A teologia do Novo Testa­ mento expressa a percepção teológica do Novo Testamento. A Bíblia não apareceu em um vácuo. Se o homem moderno lê o Novo Testamento apenas à luz das suas


experiências, é provável que ele perca de vista valiosas percepções bíblicas e dis­ torça o significado original dos materiais bíblicos. A ênfase nos antecedentes his­ tóricos é uma das tendências mais pro­ nunciadas no estudo da teologia bíblica, nos dias de hoje. No entanto, o Novo Testamento é mais do que um documento histórico. Ele é história interpretada pela fé. Tem havido uma forte reação à ênfase que se tem dado aos estudos do Novo Testamento como história da religião. Esta reação afirmou que a história nunca pode esta­ belecer os fatos da fé. Jâ em 1892, M ar­ tin Kahler enfatizou esta posição. i Uma questão importante é o debate entre a fé e a história. A questão é dupla: (1) Qual é a relação entre os acontecimentos his­ tóricos e a crença? (2) Dado o fato de que a crença não se prova por eventos da história, pode alguém dedicar-se a afir­ mações de fé sem nenhuma preocupação pela sua base histórica? Um dos alunos mais ilustres de Kahler é Rudolph Bultmann, que esposou o ponto de vista do seu mestre, de que a história não pode provar a fé. No en­ tanto, Bultmann foi muito além de Kah­ ler, e negou que os aspectos históricos da vida de Jesus sejam importantes para a fé. O que sabemos acerca de Jesus nos foi entregue pela fé da igreja primitiva. Uma pessoa é salva pela fé, e não por fatos históricos. Esta clivagem entre história e fé desencadeou um dos debates teoló­ gicos mais acesos do século XX. Bult­ mann e sua escola têm sido a influência predominante nos estudos do Novo Tes­ tamento durante os últimos vinte anos. ^ A derrota da história, esposada por Bultmann, nesse debate, não ficou sem sofrer desafios na Alemanha e no mundo 1 The So-Called Historical }esus and the Historical Bibli­ cal Christ, trad. C arl B raaten (Philadelphia: Fortress, 1964). 2 Veja Theoiogj o f the New Testament, 3-62; James Smart, The Divided Mind of Modern Theoiogj (P hila­ delphia; W estm inster, 1967); e Kerjgma and Myth, ed por A .W . B artsch (New York: H arp er Torchbooks, 1961).

de fala inglesa. Os oponentes de Bult­ mann têm argumentado que uma fé discriminadora precisa perguntar quais são as bases históricas para a sua crença. Perguntar apenas acerca da fé da igreja primitiva e acerca da percepção de si mesmo que tem o homem contemporâ­ neo tom a Cristo um fator sem impor­ tância, e o ser humano a coisa mais importante. Assim argumenta a oposi­ ção.^ ■ Não existe nada que possa ser chama­ do de história pura. Todos os relatos,, escritos e edições são predispostos em alguma direção. É óbvio que temos, em o Novo Testamento, relatos acerca de Jesus e da igreja primitiva que foram grande­ mente influenciados pela fé e pela ex­ periência dos autores. De fato, sem a ressurreição, nenhum relato de fé teria sido escrito acerca de Jesus de Nazaré. Pelo contrário, se Jesus não tivesse res­ suscitado, não haveria nenhuma base para a nossa fé. O Novo Testamento inclui tanto a história como a fé. A his­ tória do Novo Testamento não foi regis­ trada pelo amor à história. Foi registrada para a promoção da fé. A fé do Novo Testamento não se manifesta sem a ocor­ rência da história, que suscitou corações cheios de fé e registros formados pela fé. Outra ârea digna de consideração é a hermenêutica. Os estudantes do Novo Testamento há muito tempo sabem que a maneira como uma pessoa interpreta a Bíblia determina a sua declaração do que ela considera ser o ensino da Bíblia. A hermenêutica é a ciência de interpretar registros escritos. Qualquer pessoa que leia a Bíblia e a relacione com a vida usa certos princípios de hermenêutica, de interpretação. Muitos usam um foco ex­ perimental, que relaciona todos os mate­ riais bíblicos com a vida do indi\íduo em 3 Cf. espedalm ente J. M oltm ann. Theology of Hope, trad, p o r Jam es Leitch (New York: H arper, 1967), p. 182-90; Paul A lthaus, Fact and Faith in the Kerygma of Today, tra d , por D avid C airns (Philadelphia: M uh­ lenberg, 1959); Alan Richardson, An Introduction to the Theology of the New Testament (New York: H arper, 1958).

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termos da sua experiência pessoal. Ou­ tros enfatizam uma abordagem histórica, indicando o que a Bíblia quer dizer. A primeira abordagem carece de profun­ didade, e a segunda, de aplicação. O propósito deste artigo é destacar as idéias teológicas básicas do Novo Testa­ mento. Procuramos responder à pergun­ ta: Qual é a mensagem essencial do Novo Testamento? A resposta pode ser encon­ trada enquanto considerarmos as afirma­ ções feitas no esboço deste artigo.

Gênesis 1 é identificado mais minuciosa­ mente como Aquele que estava com o Verbo que se fez carne. A auto-revelação de Deus é completa. O Deus que pelo Verbo fez todas as coisas (João 1:3) e deu a Lei a Moisés (João 1:17) revelou-se plenamente aos homens em Cristo, o Verbo encarnado (v. 14). Em Cristo, Deus agiu para a redenção do homem (Rom. 3:24; Col. 1:14,20; I Ped. 1:18,19). Deus enviou Cristo ao mundo (João 3:16; Luc. 4:18). Visto que Cristo efetua a nossa redenção, e Cristo I. Deus Tem Interesse e Cui­ vem de Deus, nenhuma outra conclusão dado Pela Sua Criação pode ser tirada, a não ser que o Deus que Os primeiros cristãos eram judeus. nos redime em Cristo é o que criou o Eles sabiam que Jeová Deus havia criado mundo. o mundo e que o governava com poder e O amor é também uma característica amor. Era de suprema importância que o de Deus. O amor de Deus é visto no que Deus de Israel, criador do céu e da terra, ele fez. Ele deu Cristo em favor do mun­ fosse também o Redentor. O foco pri­ do (João 3:16). Ele dá coragem, esperan­ mordial do Novo Testamento é que Deus ça e graça ao seu povo, como evidência redimiu o homem em Cristo. A obra do seu amor (II Tess. 2:16). Ele castiga redentora de Deus era o ponto de parti­ os seus filhos como evidência do seu da. O pensamento do Novo Testamento amor (Heb. 12:6). O amor de Deus avança da redençãó e retorna à criação. é especialmente derramado sobre o seu O ensino de Jesus reforça o ponto de Filho (João 3:35). A natureza essen­ vista de que o seu Pai é o Criador e cial de Deus é amor (I João 4:8). O amor Sustentador do mundo. Deus se preo­ é a marca registrada de Deus, e é exigido cupa com as flores do campo e os pás­ do povo de Deus como sua marca identi­ saros dos ares (Mat. 6:28; 10:29-31). ficadora (I João 4:11). O amor a Deus e Paulo aceita o ensino do Velho Testa­ ao próximo é o maior mandamento de mento de que Criador e criatura são as Deus (Mat. 22:37-39). duas ordens de existência. Os homens O amor é sempre uma recordáção da erraram em adorar “ à criatura antes que, possibilidade da ira de Deus. Amor e ira ao Criador” (Rom. 1:25). O que Deus são dois lados da mesma moeda. Deus criou é basicamente bom. Foi o homem não é contraditório. A sua ira origina-se quem corrompeu as coisas (I Tim. 4:3,4). do seu amor. Ira é amor rejeitado. A ira Tiago reconhece que Deus é o originador de Deus habita naqueles que se recusam de todas as coisas, especialmente do bem a crer em Jesus (João 3:36). Quando os que o homem recebe (1:17,18). Pedro homens retêm a verdade de Deus em encoraja os seguidores de Cristo a se en­ falsas formas, a sua ira permanece neles tregarem e os seus sofrimentos a Deus, (Rom. 1:18). A desobediência desenca­ que é “fiel Criador” (I Ped. 4:19). deia a ira de Deus (Col. 3:6). Os homens O primeiro capitulo do Evangelho de que andam nas concupiscências carnais João une, na sua mensagem, a noção de do mundo estão, por natureza, debaixo que Deus, o Criador, também é o Reden­ da ira de Deus (Ef. 2:3). Mas esta não é a tor. João começa com as mesmas pala­ maneira final de ele tratar os seus filhos; vras do Gênesis. O paralelo é intencio­ pelo contrário, eles são destinados à sal­ nal. O Deus da criação mencionado em vação (I Tess. 5:9). 56


Deus é chamado de Pai por Jesus Cristo (Mat. 11:27; João 17:1). Os cris­ tãos afirmam ter um relacionamento es­ pecial na expressão de Jesus dizendo que Deus é seu Pai. Este é o uso primordial da palavra “pai” em o Novo Testamento; é a paternidade de Deus em relação a Cristo, o Filho. Um uso secundário, des­ se derivado, vê-se quando Jesus ensina os seus discípulos a chamar Deus de Pai (Mat. 5-7). Os cristãos primitivos chama­ vam Deus de Pai porque se relacionavam com ele através de Jesus Cristo, o Filho. O Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo se tornou uma frase quase técnica, para identificar o Deus dos cristãos (II Cor. 11:31). As bênçãos e saudações dos cristãos são expressas em nome do Pai (Rom. 1:7; II Cor. 1:2; Filem. 1:3). A co­ munhão dos remidos é com o Pai (I João 1:3), e eles levam o nome do Pai (Apoc. 14:1).

II. Jesus Cristo, em Sua Vida, Morte e Ressurreição, é a Palavra de Deus O foco central do Novo Testamento é Jesus Cristo. O que é novo em o Novo Testamento não é o seu retrato de Deus ou a sua promessa de libertação para o homem. O que é novo é a afirmação de que em Jesus de Nazaré Deus é clara­ mente visto e a salvação do homem é plenamente realizada. 1. O Desenvolvimento da Cristologia Uma das mais antigas confissões cris­ tãs foi que Jesus é o Cristo (Mat. 16:16). Outras antigas confissões de fé são: “Vem, Senhor Jesus” (I Cor. 16:22); “Jesus Cristo é Senhor” Fil. 2:11). Esses foram clamores nascidos da fé. Os ho­ mens do Novo Testamento foram sacudi­ dos pelo impacto de Cristo em suas vidas. Começaram a reconhecer o que Cristo significava em termos do Deus de Israel e da esperança para todos os homens. A Cristologia do Novo Testamento bem po­ de ter-se desenvolvido de acordo com os

seguintes passos; (1) uma profunda per­ cepção de que o Cristo crucificado e ressuscitado era de fato o Messias de Deus; (2) uma continuação de comunhão com o Cristo ressuscitado através do Es­ pirito Santo; (3) a expectativa da volta de Cristo; (4) uma avaliação da vida e dos ensinos de Jesus; e (5) uma afirmação da sua preexistência com Deus, desde o princípio.“* Os vários autores do Novo Testamento abordam a figura de Jesus de diferentes perspectivas. O Novo Testamento apre­ senta um quadro multifacetado de Jesus Cristo. Sempre ele é o centro da mensa­ gem. Todavia, a fim de perceber a sua plenitude, é melhor examinar esses qua­ dros separadamente. 2. A Cristologia Sinóptica A morte e ressurreição de Cristo é o ponto inicial adequado para discutir co­ mo a igreja primitiva enxergava Jesus. Os Evangelhos não são biografias, con­ forme a acepção tradicional desse termo. Mais espaço é dedicado à semana final e à morte de Cristo do que a qualquer outro aspecto de sua vida (Mat. 21-27; Mar. 11-15; Luc. 19-23). Na morte de Cristo a vida do povo de Deus começou de novo. Ligada com a morte de Cristo em humildade, está o triunfo da sua res­ surreição. Os crentes primitivos ficaram extasiados com o fato de Deus ter ressus­ citado Cristo. A morte e ressurreição de Cristo deu forma à compreensão sub­ seqüente de quem era Jesus e como de­ veria ser encarada a sua missão. Sua Obra — Em fé bíbhca, o homem é conhecido primeiramente pelo que faz, ao invés de sê-lo pelo que é. Sendo assim, a obra de Jesus propiciou o foco do qual a sua pessoa e os seus ensinamentos de­ viam ser vistos. A morte e ressurreição foram a ênfase primordial dos Evange­ lhos. As suas obras poderosas (duna4 P ara as várias perspectivas, veja R. H. Fuller, The Foundations of New Testament Christology (New York: Scribner’s, 1965) e John Knox, The Humanity and D i­ vinity of Christi (Cam bridge: University Press, 1967).

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meis) eram vistas como atos significati­ vos do Messias. Da mesma forma como os Evangelhos Sinópticos dedicam muito espaço à morte e ressurreição, dedicam também muito espaço às obras poderosas ou milagres de Jesus. Quase um terço de Marcos (209 dentre 661 v.) fala de coisas miraculosas. As obras poderosas são par­ tes integrais, e não acidentais, para a formação dos Evangelhos. Estas obras de Cristo não sâo primei­ ramente sinais para provar as suas cre­ denciais. Jesus afirmou que a sua gera­ ção não teria sinal, a não ser ressurreição e julgamento (Mar. 8:11,12; Mat. 12:3845; 16:1-4). Por ocasião do seu julgamen­ to, Jesus não realizou nenhum milagre para satisfazer a curiosidade de Herodes (Luc. 23:8). 5 Os milagres de Cristo foram basica­ mente de quatro tipos: cura, expulsão de demônios, ressurreição de mortos e o uso da natureza para satisfazer as necessida­ des do seu ministério redentor. Todos os seus milagres estavam intimamente rela­ cionados com o reino de Deus. Recomenda-se aos seguidores do Ba­ tista para considerar as obras milagrosas de Jesus como evidência de que ele é o Messias (Luc. 7:22; Mat. 11:4 e ss.) “Mas se é pelo dedo de Deus que eu expulso os demônios, logo é chegado a vós o reino de Deus” (Luc. 11:20; Mat. 12:28; cf. Mar. 3:23-30). A pergunta do primeiro século não era: “Os milagres são possíveis?” mas “Por que autoridade você está fazendo estas coisas, e quem lhe deu tal autoridade?” (Mat. 21:23; cf. Mar. 1:27; 11:28; Luc. 20:2). Jesus esquivou-se de expressar diretamente a sua autoridade aos líderes judaicos. Nâo obs­ tante, os seus seguidores já liaviam re­ conhecido, em suas obras poderosas, a autoridade de Deus e a alvorada do reino. Os milagres eram mais do que obras de compaixão ou demonstrações de for­ 5 Veja A .M . H unter, The Work and Words of Jesus (Philadelphia: W estm inster, 1950), p. 54-59.

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ça. Eram também promessas do que Deus fará, por fim, em favor do seu povo, quando o seu reino vier plenamen­ te. Ele vai remover a dor, a morte, o mal, e as limitações da presente existência do homem (Cf. Apoc. 21:4). No quarto Evangelho, os milagres de Jesus sâo chamados obras e sinais. As obras e sinais poderosos eram fatores vitais na formação do quadro que o Novo Testamento pinta acerca da vida e do ministério de Jesus. Os eventos da vida de Jesus são apre­ sentados nos Sinópticos como feitos de cumprimento messiânico. O seu nasci­ mento virginal é encarado como cumpri­ mento de profecia (Mat. 1:23; cf. Is. 7:14; e referências veterotestamentárias em pronunciamentos e “cânticos” rela­ cionados com o nascimento de Jesus em Luc. 1 e 2). O seu batismo está ligado com a idéia da restauração da profecia e da atividade do Espírito nos últimos dias (Luc. 3:16-22). ^ Tanto a descida da pomba como a voz do céu, por ocasião do batismo de Jesus, devem ser interpreta­ das messianicamente. Isto é, os últimos dias despontaram. O Messias chegou. O Espírito repousa sobre ele. Ele é vali­ dado e confirmado por uma voz celestial. A fórmula da voz vinda do céu é uma combinação de duas passagens do Velho Testamento: “Tu és meu filho” (Sal. 2:7) e “em quem se compraz a minha alma” (Is. 42:1). Nesta combinação, de Filho de Deus exaltado e Servo de Deus Sofredor, estão as diretrizes para a tarefa messiâ­ nica de Jesus. Ser Messias mediante sofrimento foi o peso da tentação de Jesus (Mat. 4:1-11). O tempo da tentação de Jesus também tinha um caráter simbólico. Os quarenta anos do vaguear desobediente de Israel são revividos e vencidos nos quarenta 6 Os rabis haviam ensinado que a profecia e o Espírito de D eus haviam abandonado Israel depois do último dos profetas, e haveriam de voltar só com a vinda do M essias. Nesse ínterim . D eus interveio diretam ente, em Israel, m ediante um a voz celestial. Veja W . D. D a­ vies, Paul and Rabbinic Judaism (London: S. P. C. K., 1958), p. 208-215.


dias de obediência (cf. Ex. 16:35; Rom. 5:19). Semelhantemente, o primeiro le­ gislador, Moisés, esteve no Monte Sinai quarenta dias e quarenta noites (Êx. 24:18). Assim, também, o doador da nova lei, maior do que Moisés, experi­ mentou um período de tentação e reve­ lação. O clímax da tentação de Jesus foi fazer a vontade de Deus à moda do Diabo: ser um messias-pão, um messias espetacular, um messias transigente. A pressão dessa prova de falsas formas de messianismo continuou durante o minis­ tério de Jesus. A fé na ressurreição, que os escritores dos Evangelhos manifestaram, serviu co­ mo trampolim por onde a Sua vida e o Seu trabalho eram encarados, com a per­ cepção total de que ele era o Messias de Deus. O começo de sua vida, o seu batismo, a sua tentação e as suas obras poderosas eram vistos com a visão retros­ pectiva da ressurreição. Seus Ensinos — Os Evangelhos Sinóp­ ticos apresentam os ensinos de Jesus de um ponto de vista messiânico. A ênfase não era o seu método de ensino. Da mesma forma, ele também não é apre­ sentado como um gênio religioso. Jesus é o proclamador do reino de Deus. A sua mensagem diz como é que os homens que entram nesse reino devem viver, e como o cumprimento do reino está nas mãos de Deus. Os ensinamentos de Jesus eram dire­ tos, intensamente práticos e tinham au­ toridade. Ele exige obediência radical da parte dos homens, porque o reino de Deus os confronta. O fato de ele usar parábolas era método comum no judaís­ mo. O hermetismo das parábolas propi­ cia a oportunidade para o Mestre (rabban) desenvolver a fé dos discípulos. Os ensinos de Jesus nasceram dos rela­ cionamentos da sua vida. Havia os discí­ pulos escolhidos que Jesus reunira em 7 Cristo, como a Nova T orah (lei) e o Novo Moisés, é um tem a favorito de M ateus. Veja Alan Richardson, An Introduction to the Theologj of the New Testament, p. 166-69.

torno de si. Eram esses que recebiam e eram responsáveis por transmitir os ensi­ nos de Jesus (Mat. 4:18-22; Luc.'6:12-16; Mat. 28:19,20).« \ Aos que desejavam seguir a Jesus, apresentava-se a exigência de deixar tudo e segui-lo, a despeito das contingências da vida e dos estritos requisitos do reino (Mat. 8:19-22; Luc. 9:57-62). Esperavase que os discípulos servissem em um clima de oposição (Mat. 9:37,38; 10:16; Luc. 10:2.3). e com um senso de urgência e de juízo iminente (Luc. 10:8-12; Mat. 10:15). As recompensas do discipulado eram, em grande parte, intangíveis, mas de valor transcendental. O discipulado propicia um conhecimento de Deus que não se consegue de outra forma (Mat. 11:25-27; Luc. 10:21 e ss.). Seja o que for que o discípulo necessite, lhe será dado, Conquanto que ele busque o reino de Deus em primeiro lugar (Mat. 6:33; 7:711; Luc. 11:9-13). Nem todos os homens se relacionavam com Jesus mediante o discipulado; mui­ tos se relacionavam com ele através de hostilidade e rejeição. A esses, ele res­ pondia com palavras sábias e medidas (Mat. 12:25-37; Luc. 11:17-23). Jesus re­ conhecia que as reivindicações de Deus eram supremas, e fazer a vontade de Deus era o padrão pelo qual Deus se agradava (Luc. 11:21-28). A rejeição em face da confrontação de Deus nos ensinos de Jesus acarretava maior responsabili­ dade e juízo mais pesado (Mat. 12:41. 42; Luc. 11:31-32). A medida que os escribas e fariseus intensificavam a sua rejeição de Jesus, e assumiam uma atitu­ de de perseguidores e censores, Ele os desmascarava e demolia os seus argu­ mentos (Mat. 23; Mar. 12; Luc. 11). O relacionamento de Jesus com Deus determinava todos os outros relaciona­ mentos. Jesus realizou a sua obra pela autoridade (exousia) de Deus (Mat. 9:8; 28:18). Ele abriu o caminho para o en8 Veja W illiam Barclay. The Master’s Men (New York: Abingdon, 1959).

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tendimento de Deus (Mat. 11:27). É importante não se ofender com o Cristo (Mat. 11:6), confessá-lo perante os ho­ mens (Luc. 12:8) e não se envergonhar do Filho do Homem (Mar. 8:38). O Deus de Jesus Cristo se preocupa ativamente com os homens. O seu cui­ dado providencial se estende a tudo o que tem vida (Mat. 10:28-31; Luc. 12:22-30). O mundo e seus processos, em última análise, estão em suas mãos, “porque ele faz nascer o seu sol sobre maus e bons, e faz chover sobre justos e injustos” (Mat. 5:45). Deus é especialmente o Pai dos pacificadores (Mat. 5:9), e os discípulos de Jesus clamam a ele como “Pai nosso que estás nos céus” (Mat. 6:9). Jesus selou com aprovação e respeito a Lei de Deus. Ela permanece e tem cum­ primento nele (Mat. 5:17,18). Ele perce­ bia o espírito da Lei além do seu labirinto de requerimentos específicos. A essência da Lei é amor a Deus e ao próximo (Mat. 22:36-40). Jesus reverenciou o Templo e o sábado, mas não hesitou em desafiar o seu mau pso, ou apresentar a intenção mais profunda de Deus, contra as inter­ pretações e distorções dos homens (Mat. 21:13; Mar. 2:23,24; Luc. 6:2-9). Os ensinos de Jesus em relação ao Velho Testamento e às tradições de Israel são melhor resumidos com o “ouvistes o que foi dito... eu, porém, vos digo” (Mat. 5:21-48). No que ele ensinou e era e fez, as primeiras testemunhas perce­ biam que Alguém maior do que Moisés estava no meio delas. Seus Títulos — Nos dias neotestamen­ tários, dava-se, aos homens, títulos de acordo com os seus feitos. Um homem era o que fazia, da maneira como agia, o que realizava. Os nomes que o Evangelho dá a Jesus são reflexos das ésperanças messiânicas de Israel, cumpridas em Je­ sus de Nazaré. ^ O termo p r rf e ^ é usado pelas multi­ dões para designar Jesus (Luc. 7:16; 9 Veja O scar C ullm ann, The Christology of the New Testament, trad , de G uthrie an d Hail (Philadelphia: W estm inster, 1959).

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Mar. 6:15). Na Palestina do primeiro século, isto significava que um porta-voz de Deus havia se levantado. Para algu­ mas pessoas, significava a alvorada da era messiânica. Os próprios escritores dos Evangelhos não chamam Jesus de profeta, pessoalmente. Jesus deu a enten­ der que era profeta (Mar. 6:4; Luc. 13:33-35). Crescendo o cristianismo além da Palestina, essa designação de Jesus começou a perder o seu significado ori­ ginal. <€ n s t^ é uma designação de Jesus favo­ rita no Novo Testamento. Esse termo significa ungido, e é usado por Mateus e Lucas, especialmente em conexão com o nascimento e a morte de Jesus. O uso mais memorável do termo Cristo é a confissão de Pedro de que Jesus é o Cristo (Mat. 16:16 e ss.), seguida pela aprova­ ção de Jesus para essa confissão. O te rm o \S e n ^ ^ (kurios) era ampla­ mente usado no mundo antigo. Era tão comum como hoje, como pronome de tratamento, e, em alguns casos, era nada mais do que isso mesmo. Em outros usos, era uma palavra sagrada, empregada em lugar do nome sagrado de Deus. Esse termo é usado extensivamente nos Evan­ gelhos, referindo-se a Deus (Mat. 1:22; 9:38; 11:25) e a Cristo (Mat. 12:8; 15:22; Luc. 24:34). Visto que o termo era am­ plamente usado, tanto no mundo judeu como no gentio, o seu exato significado precisa ser determinado pelo contexto em cada caso. O termo mais estranho aplicado a Je­ sus foi{ríÍhodÕ H Õ m ê^^io Ele usou-o como títüÍo'”ãS"réfSfír^se a si próprio. “O Filho do Homem não tem onde recli­ nar a cabeça” (Mat. 8:20). Ê usado para referir-se a uma f i^ r a exárfada> Ü o d o sobrê^as nu^^ens (Mat. 24:27-30). É tam­ bém usado acerca do Filho do Homem 10 B ultm ann nega que Jesus ten h a usado esse term o a respeito de si mesmo; acha que a igreja aplicou esse termo a Jesus depois da sua m orte. Veja H. Todt, The Son of Man in the Synoptic Tradition, trad, de D .M . Barton (Philadelphia: W estm inster, 1965); R. Fuller, The Mission and Aclilevement of Jesus (C hica­ go: Alec Allenson, 1956).


sofredor (Mar. 8:31; 9:12; 14:21). Esse termo tem antecedentes ricos no Velho Testamento e na literatura inter-testamental. Nos Evangelhos, ele se refere a Jesus comn Aqiiplfi q n e vpín para se iden­ tificar com o homem; para sofrer Por ele: e como 0 futuro Redentor, que vai voltar no “último dia” . 3. Opinião de João Acerca de Jesus Cristo, o Filho de Deus O Evangelho de João enfatiza especial­ mente a filiação do Cristo. O Filho é “Filho unigénito” — único por si mes­ mo, na categoria (1:14,18; 3:16,18). Ele vê oFilho como o Verbo de Deus (1:1). O Verbo participa da natureza divina, mas assim mesmo se torna carne (1:1,14). O Filho encarnado é plenamente huma­ no. Ficou cansado junto ao poço de Jacó (4:6); demonstrou preocupação por sua mãe (19:26); e demonstrou a sua obe­ diência e dependência do Pai (5:19; 6:38). O íntimo relacionamento entre Pai e Filho é enfatizado pelo fato de que o Pai dá testemunho do Filho (5:17,37). A autoridade e poder do próprio Deus residem em Jesus. O Filho é eterno; ele era desde o princípio (1:1; 8:58; 17:5) e vai para o Pai depois da sua morte (16:17). O Filho veio do Pai e volta para ele (João 8; 14:1-3). O Filho sai do mundo ao ser levantado na cruz. O termo “levantado” significa tanto a crucificação como a glorificação. Para João, é na crucificação que Jesus é glorificado (3:14; 8:28). Todos os sinais no Evangelho de João são dados para demonstrar que Cristo, pelo poder de Deus, satisfaz as necessidades dos ho­ mens. 4. A Cristologia de Paulo Paulo contribui muito para o retrato que o Novo Testamento apresenta a res­ peito de Cristo. Paulo fala a partir do seu relacionamento com Cristo, o Senhor res­ suscitado. Todavia, ele sabe que Jesus era um homem “nascido de mulher” (Gál. 4:4). Jesus era judeu, da semente

de Davi (Rom. 1:3). Jesus era manso e suave (II Cor. 10:1). Ele demonstrou constância (II Tess. 3:5) e obediência (Rom. 5:19). Paulo designa Jesus, mais freqüentemente pelo título de Senhor. A confissão de Jesus como Senhor é ne­ cessária para a salvação (Rom. 10:9,10). Só se pode reconhecer Jesus como Senhor pelo poder do Espírito (I Cor. 12:3). Por causa de Jesus Cristo, o Senhor, a graça efetua a vida eterna para o homem (Rom. 5:21). Embora os pagãos falassem de muitos deuses e muitos senhores (I Cor. 8:5), sò existe um Senhor (Ef. 4:5). Cristo, o Senhor, foi o agente de Deus para a criação, e o seu instrumento para a redenção (Col. 1:13-17). Cristo, o Senhor, esvaziou-se para tornar-se o Servo-Salvador dos homens (Fil. 2:1-8). É em Jesus, o Senhor, que Deus irá expressar o próprio senhorio de Deus sobre toda a criação e receber o louvor de todos os homens (Ef. 1:10; Fil. 2:10). 5. Outros Escritos do Novo Testamento O retrato de Cristo apresenta magni­ ficente variedade em outros escritos do Novo Testamento. O autor de Hebreus enfatiza que Cristo é a imagem de Deus (1:3). Cristo formou os mundos e é a melhor e última — perfeita em todos os aspectos — das manifestações de Deus ao homem (Heb. 1:1-3). Cristo é o sumo sacerdote, que se preocupa com o bem de todos os homens (Heb. 8:1). Cristo é o mediador da nova aliança de Deus com os homens, e a sela com a sua morte (Heb. 7:15-26). Pedro fala de Cristo como a principal pedra angular do tem­ plo de Deus (I Ped. 2:6,25); como o pastor e bispo de nossas almas; como o cordeiro sem pecado (I Ped, 1:19), que leva os homens à salvação, como fora anunciado pelos profetas (I Ped. 1:1012).

Em Tiago, Jesus Cristo é visto como o Senhor da glória (2:1), que ostenta o nome honorável (2:7) e vem para julgar os homens (5:9). O Apocalipse apresenta uma expressão multifacetada do triunfo 61


de Cristo. O Senhor ressuscitado, o Cris­ antiga maldição de Deus registrada em Deuteronômio. Ela se torna o símbolo do to, não é outro senão Jesus (1:9), o sacrifício de Cristo, o mais elevado sinal Messias de Deus (11:15). Ele é o Cordei­ ro de Deus, que dá fiel testemunho em do amor redentor de Deus pelos homens, e a palavra a ser proclamada pela igreja favor do povo de Deus (1:5); e ele é o cristã. soberano Senhor das igrejas (1:17-20). Ele é o Alfa e o Ômega, o princípio e o Ligada com a humilhação da morte de Cristo está a exaltação da sua ressurrei­ fim (1:8). Os títulos de Jesus enfatizam quem ele ção. Cada um dos Evangelhos se demora era e o que fizera. Ele era um homem que ternamente nos seus detalhes. A tumba andara por toda parte fazendo o bem está vazia (Mat. 28:6). O mensageiro celestial proclama a ressurreição (Mar. (At. 10:38), mas também era ungido pelo 16:6). O próprio Jesus aparece aos seus Espírito de Deus. Esse Jesus era, em ver­ dade, o Senhor de todos (At. 10:36). Nele discípulos, inclusive dois seguidores de­ sanimados, na estrada para Emaús (Luc. habitava corporalmente a plenitude da divindade (Col. 2:9). Os títulos que o 24). Uma cena às margens do mar da Novo Testamento dá a Jesus e as suas ob­ Galiléia propicia encorajamento e instru­ servações a respeito dele levam-nos inevi­ ções para um grupo especial (João 21). tavelmente às duas afirmações de que^^í Sem a ressurreição de Cristo a nossa fé"^ Jesus é Deus e é homem. / seria em vão, e a certeza da ressurreição ) do homem seria invalidada (I Cor. 15). ^ 6. A Centralidade da Morte e Da mesma forma como a sua morte, a s Ressurreição de Cristo C sua ressurreição também está relacion^ / O acontecimento decisivo que foLp clí- C, da com a salvação do h o m em .Q P a^ ^ \ maxMTevêIãçIÕ~3êlDeusem C risto M ^ enfatiza a centralidade da morte e res­ surreição de Cristo, quando afirma que da cruz^TessuggjglÍÊ. 'cruz,"a víàa de J e s u s 'ié iía s i3 o n íc o ^ Cristo “foi entrepig por causa das nossas pleta^e os seus ensinos ocupariam tãotransgressões, g^ ^ su sçM 3 õ°pãrã^ nos^justificação” (Rom. 4:fe). somente o primeiro lugar em uma longa lista de filosofias morais. S e m ^ ^ i dade da ressurreição, os discípulos teriam perIII. O Espírito de Deus Dá 'ínaliecitíoTSamdecisão do desespero. Testemunho da Sua Palavra Dedica-se amplo espaço à morte de e Atrai os Homens a Deus Cristo nos quatro Evangelhos. Paulo sa­ O termo “palavra de Deus” tem pro­ bia só Cristo, e ele crucificado (í Cor. fundas raízes no pensamento do Velho 2:2). Pedro recorda aos cristãos persegui­ Testamento. Quando Deus falou, acon­ dos que a morte de Cristo é um exemplo teceu (Gên. 1). O termo grego logos para eles e um sacrifício — ele levou os (palavra) também tem ricos e variegados nossos pecados no madeiro (I Ped. 2:2124). Hebreus enfatiza o ministério sacer­ significados no solo grego. Talvez po­ der-se-ia dizer melhor que “g a l a ^ | ^ ^ dotal e o sacrifício de Cristo pelos ho­ iS ü s ” significa o ln s l^m erifo que reaJi^ mens feito uma vez por todas (8-10). za o seu propósito e vontade. Sob esta A sua morte foi um assassinato brutal, luz, fesu sC ri^o é a primeira e última mas além da traição dos homens está o Pala^TS?lüleus.~ ~ plano predeterminado por Deus para a salvação do homem (At. 2:23). Geral- ^ As palavras e mensagens acerca de mente a morte de Cristo é interpretada j Jesus se tomaram a palavra de Deus que através da terminologia sacrificial do Ve- S é anunciada aos homens. Quando esta mensagem acerca de Jesus, o Verbo, (a lho Testamento. A cruz, um instrumento Palavra), foi colocada em forma escrita. da crueldade romana, é colocada sob a

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\ ela tornou-se, para os cristãos, a palavra 16:14). O^Cristojçgasuscitadq assopra^ o C de Deus, porque efetivamente conta e Espírito sobre os apóstolos (20:22).”' ^ X expressa os intentos de Deus em Jesus, o \V e r b o (a Palavra). E útil verificar um, 2. O Espírito na Vida da Igreja tó j^ ic ^ u s o ^ ^ a la v ^ . JesuTê*ã Palavra Dando Poder ao Povo de Deus no v iv aT ?]^ ^ ^ffiy ^ T cg ?cã* 5 e Jesus é a Pentecoste — O - livro de Atos fala da Palavra lalada; e os registros do Novò vinda do Espírito por ocasião do Pen^Testamento são a Palavra escrita. Nos Esta era uma festividade histórica dias do Novo Testamento, o Espírito de dõ judaísmo, associada,com os primeiros Deus estava j g f ^ ^ n g gÕTêhi-Erimeiro e grãos da-colheita, e. desde os dias rabímais importante lugar, com Jesus, e de| \ pois com áyroclam ação da Palavra. Está “nicos, com a outorga da lei a Moisés. O Espírito veio sobre os seguidores de p 1íein aos fiomens hoje também em forma Jesus quando eles_s_e_reuniram em Jerusa^ escrita, e a igreja contemporânea sente lém _ ^A t^ Elesreceberam jiod^ que o Espírito dá testemunho desta pabolizad” elos ventos veementes) e jo ram bvra escrita. purifigados p a ra p^erviço (simbolizado 1. O Espírito na Vida de Cristo pela^^ngu^,^ de fogo), e proclamaram Em o Novo Testam ento,_^^sg^to_de^ ccm ^egríà _o eyangelho aTõdoT’os'1í3^ mens, representando todas as regiões da Deus dá um testemunho essencial de terra (simbolizado pelas línguas e pela Verbo de Deus. O seu n^diggn_ s e “3a mediante a vinda d o E s ^ rito 'lista de todas as nações). A mensagem'“? acerca de Jesus (kerygma) foi proclama- / sobre Maria (Luc. 1:35). O seu katismo da no poder do Espírito Santo, e a pala- ) é confirmado pelo Espírito, simbolizado >vra foi abençoada com a adição de novos ^ pela pomba (Mat. 3:16). O Espírito o ^ impulsiona para o deserto, a fim de ser , discípulos (2:14-39; 3:12-26). fentado (Mar. 1:12). CT“>eu ministério Moldando a Comunidade da Fé — púMco é iniciado com uma cit^ão^^Ho" Cumprindo a promessa de Cristo, o EspívèD í^estam ento, reivindicando direção nto veio sobre os seus seguidores, para pelo Espírito de Deus (Luc. 4:18). As dar-lhes consolo (Joãõ Í4:16). O Espírito niasobraspoderosas são realizadas pelo é o Espírito da verdade (João 14:17), que iÊspíriito7Maíri5?28) e ele fala do dom vai guiar o povo de Deus. O Espírito, do Espírito Santo, que Deus iria dar ao como Consolador (Parácleto) está pre­ Seu povo (Luc. 11:13). — — sente para continuar a comunhão de ( O Evangelho de Joãó? escrito tendo em Cristo (João 15:26) e proclamar o julga­ ¥Ísta o adicionamento de percepção teo­ mento sobre o mundo (João 16:8-11). lógica aos detalhes primeiros, fala freO Espírito testifica aos homens de Deus que Jesus foi verdadeiramente homem com Cristo. Este batizará com o Espírito (1 João 4:2). O Espírito de Deus é um n^32;33). 'Ní&d3«nra'''e'Tníoi™ dom de graçaTcharisma)^ para ajudar os Cristo que precisajiascer^,^dpEsgírijto, CrisSos a discernirem o cahiinKo‘aêTíêus para entrar no reiriode'O eusU oao 3). C T ^ J õ â ^ á p T ): e propio^ar lhes certeza jrf sgnça ágXrijSÍP deve ser estendida ^ t o m íF ln afcrg O ajOTHr ^3:24). p Espírito conduz o videhte“Bo H umâ,jQnle_de_ á g u a jiv ^ (7:38,39). Apocalipse através dos mistérios e sím­ íesus enviar^ o^Espírito^Santo (15:26) bolos do conflito cósmico e da vitória [elevará íestemuriíio é"o glorificará final (1:10; 4:2). O Espírito junta-se à (16:14). Q ^ sp írito cQmplein§nta,^o míj- igreja para proclamar o convite para que jlistério de Cristo, rememorando aos todos venham — “e quem quiser, receba apóstolos as palavras de Cristo (14:26; de graça a água da vida” (Apoc. 22:17). 63


o Espírito de Deus testifica de Cristo,| e, âo fazê-lo, atrai os homens a DeusJ O Espírito de Deus mergulha nas profun­ dezas do ser divino, da mesma forma como o espírito do homem interpreta os seus desejos íntimos (I Cor. 2 :1 1 )._ ^ u m ag ^ s^a n ^ tem_o Espírito de ^ s t o , t!3o?"aeirtRÕínrB1^7lSS'o‘E 5 in ío p c5ãcÍtS F ''^ '1 ío S ^ i” a confessar Cristo (I Cor. 12:3). O Espírito faz do povo de Deus uma carta viva do testemunho (II Cor. 3:3), e a palavra que eles falam é acerca dessa Palavra viva de Deus, poiso Espírito e Cristo são um em objetivos (irCoi7"3TÍ7). Õs cristãos devem conduizir as suas vidas de forma que pelo Espírito possam produzir resultados que sejam reconhecíveis como “fruto do Espi-^ rito” (Gál. 5:22-25). O Espírito dá dons ao poyo^de ^ e u s . Esses dons vênr'5ãraTSdívrduòsr^1 devem ser usados para o bem do corpo (I Cor. 12-14). Os dons servem a p ro p ó -^ sitos especiais (I Cor. 12:4-12; Ef. 4:412), e são dados a diferentes indivíduos. Çada homem não possui todos os dons do Espírito. Contudo, todo o povo de Deus deve ser caracterizado pelos três grandes ê"niêrhores dons doEsp^írito: fé, esperan­ ça e amor (I Cor. 13).

das outras religiões o cristianismo e o Novo Testamento do Velho. “ O cÕncéiío*cristão da Trindade tem sido freqüentemente interpretado erra­ damente, para significar que os cristãos adoram três deuses. Taltriteísm oé estra­ nho ao Novo Testamento!""À uni d a d e de Deus é uma unidade de gfôpositos e acão comum. A ^mm9ã3ê~Hi Deus é a sua mãneíra'3 8 ^ e r ^ ê í? ^ * 3 ^ s g ^ ^ ^ im Blstónã7'd’^ v o Testamento não recO' S e c e ^ T rin d a d e dó ponto de vista da filosofia ou da matemática. Pelo contrá­ rio. em o Novo TestametiicL-ã-tau.iiidade de Deus era um fato primário de expe­ riência. Foi excesso em bênçãos eldoxolfl^a^^]L T C z de sê4o, emj ^m u las sisiticas (Rom. 15:33; II Cor. 13:13;

rV. Deus Escolheu uma Co­ munidade Redimida pa-^^e \ o, ra Testificar Dele a » " '

-------------- ^ C 'Deus se revela aos homens como Pai. Filho e Espírito. Cada expressão do tripiice movimento'de Deus aos homens é* proposital. O propósito de Deus é de sua própria escolha (eleição) e inclui a reden;ão do homem. Ao realizar este propósiçã( fe: ueus escolhe um POVO (escolhido ou 3. Espírito, Filho e Pai eleito) para cumprir o seu propósito e O Novo Testamento reflete o dram á-i para manifestá-lo a todo o mundo. A co­ ticõlnõvimên^ de D e u s ~ ^ direção°R)' munidade veterotestamentária estava bem cônscia de ser escolhida por Deus HõniemTWDeusl ~ para cumprir o seu propósito e para mente e finalmente em Cristo (Heb. 1:1implementar a sua revelação aos ho­ mens. A Bíblia crista contém um Velho 'Õ conceito crisfâo^í eus necesgaria- Testamento e um Novo Testamento — duas alianças. Estas alianças propiciam^ m iîïîêT n cIîu asû â ige natureza. O tCTmõ Mri^de~nâo aparec^^t^ T N o v o ^ expressões preliminares e finais do proTëstamënto.'"Ë uma e x p r^ ^ o que ^pa- / pósito de Deus. A característica constan-, rèce mais tarde na história. Mas a noção ( te de ambos os Testamentos é a aliança \ ] 5que está por detrás da doutrina da Trin-/ de Deus e o seu propósito redentor. dade é uma característica neotestamen-J tária primordial. _gs|aLÍri]^dd|^eesge-'' 1. O Propósito Contínuo de Deus cífica de Deus (PaiTrulio. Espírito) surJesus se colocou conscientemente den­ ^ i ^ S * 2LqSla época da história em par­ tro dos propósitos históricos de Deus. ticular (Palestina do primeiro século), O começo do seu ministério aconteceu distingue da maneira mais sigmfigativa devido à sua consciência^^a tarefa pro­ 64


fética que lhe cabia (Luc. 4:18; cf. Is. provocado à inveja pelos gentios, que 61:1). A sua relação com a Lei de Deus foram nele enxertados (Rom. 11:17-24). era de promessa e cumprimento (Mat. Uma coisa é certa: o propósito de Deus 5:17). Tanto o legislador como o profeta em salvar se estende à Sua comunidade aparecem na Transfiguração, o que pre­ de aliança original; mas pode ser efetua­ vê a morte de Cristo, evento decisivo no da apenas por Cristo. plano de redenção planejado por Deus A relação entre a lei e o evangelho é (Mat. 17:2ess.; Mar. 9:2ess.). uma das preocupações de Paulo. A lei é i^jggg^^adosjdoze^póstolos por Jesus uma palavra com diversos usos. Há uma e a insistência da igreia pr^ t i v a em man­ lei de consciência para os gentios (Rom. ter "^sé numero mostra uni esforç(7deíi2:14). Lei pode referir-se a todo o Velho berado e consciente para representar o Testamento (Rom. 3:10-19), ou apenas ; novo Israel (Mat. 10:1 e ss.; Mar. 3:14;< aos elementos mosaicos (Gál. 3:10-13). Luc. 6:13; At. 1:15-26). Q _grandejnai^ A lei mosaica e as tradições judaicas são damejito.para o povo de Deus e o mesmo personificadas em um sistema legal que em o Velho Testamento (Deut. 6:5) e em compete com o evangelho, nas afeições o Novo (Mat. 22:37). As dimensões do dos gálatas. A lei não pode salvar (Gál. Deus de Israel tomaram precisão históri­ 2:6), mas a lei, em si mesma, era Deus ca e cresceram com a vinda de Cristo (Rom. 7:14). Ela revela ao homem o que (João 1:17). A intenção de Jesus de ajun­ é pecado (Rom. 7:9). A lei é boa. Os tar o nove Israel foi desempenhada na homens é que não o são (Rom. 9:12-25). vocação dos discípulos e expressa em O resumo do assunto é que o propósito Cesaréia de Filipe (Mat. 16:16-20). de Deus para redimir é constante, e que a O derramamento de poder sobre o povo lei serve a esse propósito como serva, ou de Deus no Pentecoste é interpretado co­ aia, para conduzir o homem ao mestre, mo cumprimento profético (At. 2:14-21). que é Cristo (Gál. 3:24). Os autores do Novo Testamento interpre^^ taram a vinda de Cristo e a sua vida em^^ ^[2. O Corpo de Cristo termos de cumprimento profético. O novo Israel é uma frase que signi­ Uma breve história e filosofia do propó­ ficou muito no contexto do judaísmo do sito de Deus se encontra em Romanos primeiro século. A medida que a comu­ 9 — 11. Nestes capítulos, Paulo introduz nidade de Deus se espalhou pelo mundo, temas que têm exercitado a fé cristã em levando o sal e a luz do seu testemunho, todas as épocas. Esses temas são: a cons­ outros terínos se tornaram necessários tância do propósito de Deus; a relação para expressar a sua existência. O corpo entre Israel e a Igreja; as intenções finais de Cristo foi usado freqüentemente, por de Deus para Israel; e o propósito eletivo Paiüo. com o fim de propiciar uma ana^ e os caminhos de Deus. lõga viya_e orgânica, para d^crever o Paulo interpreta os propósitos de Deus para Israel e para os gentios (Rom. 9 — Os muitos crentes individualmente 11). Ele está certo de que o propósito da constituem um sò corpo em Cristo (Rom. redenção por parte de Deus é constante n i3)T D F ^n^slaõ'~ 5ãtizãdos flo corpo (Rom. 9:4). O que muda é o homem. de Cristo e nutridos pelo seu Espintõ Isto é ilustrado pela recusa do povo de (ICor. 12:13). Cada crisJão_é^relaçíqnado Deus em fazer a Sua vontade e aceitar o com Cristo coníò as várias partes de um Seu Cristo (Rom. 9:31-33). Israel não cõípõ"cõmVcabeça desse organismo vivo acompanhou a ampliação dramática do (I Cor. 12; Col. 1:18). Os crentes devem propósito de Deus, em Cristo. No dia do cumprimento, o povo é salvo por clamar 11 Cf. J. A. T. Robinson, T h e Body (London: SCM, 1952). a Cristo (Rom. 10:9-13). Israel vai ser 65


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estar relacionados a Cristo como os mem­ bros de um dado corpo se relacionam com o todo, ou como a esposa ao marido, pois eles se tornam um só corpo (Ef. 4-5). A igreja (ekklesia) é um termo laream^ e usaao para o povo d e P e u s . Elè lRrr~rS 7.es em palavras ~üsiH ^ ^ assemWeia^ israelitas. E usado em Mateus por Cristo (16:18^; 18:17). “ Igreia’' ordinariamente se refere à congregaçao local específica de crentes. A f o m a ^ u rahiCTeia^refere-se a congregaçao dè unia c iy a região (I Cor. 1:2; Gál. 1:2). I^ Ía te m b é m ^ Ê _ J ||g Ê _ à mais ampla 'â s s S ib îe ïâ 'ïïr T o ^ ^ ^ r e n te s , e, nessas ocorrências, é sinônimo da expressão “o corpo de Cristo” (Ef. 1:22,23). Muitas outras express^^ são usadas em o Novo Testamento para falar do continuo i3ropósito de Deus çorporjfiçja: A igreia deve servir a Deus.^Sem ^ especiais (ministros) na igreja são chamados pastores, diâconos, presbíteros ou a n c iã o srm ^ re sT “B i ^ s e evangSfis^ 0 E ír ííll- l3 f T T iir 3 :^ 2 r i 31). Várias qualificações são requeridas daqueles que^ p e n isionam e ministram. ãÕ sT ^éB SíhordeK ur(rT m r‘3 r T l t ^ ^ As fmiçõesjpr ^ ic ^ d o ministério_ de.diácõnó na igreja em Jerusalém são registra^f^p ecificam en te(A t. 6). o povo de Deus é chamado p ^ nE^m êciso~qu^ cada um m SvSuamiente ouça e s s e P ^ ' ra se tornar seu _goro (João 1:12,13). Dentro desta acepcao mais ampla de vocacão. há a separação especial, peíõ Espíntõ, g ^ p e ^ o a s chamadas para a reaEaçãõ de tarefas redentoras especí­ ficas (At. 13:2,3). Esta vocação especial é reconhecida e honrada pelas congrega­ ções que expressãm reáfflhedm gaíaJgr~ Ú às pessoas que 12 Cf. I. R. Neison, The Realm of Redemption (G reen­

wich, Conn.: Seabury, 1951.) 13 Cf. “ Igreja” , Interpreter’s Dictionary of the Bible, I, 508-26. Os m em bros d a igreja s5o escravos de D eus (Rom. 1:1; II Ped. 1:1; Tiago 1:1). A igreja é o Israel de D eus (G ál. 6:16); o rebanho (Luc. 12:32; I Ped. 5:2, 3); um a nação santa; um povo peculiar (I Ped. 2:9).

são chamadas específico. Esse reconhecimento íõinõu a forma de imposição de mãos sobre os cha­ mados (At. 13:3r"í Tim^ 4:14). A^^ diferenças de ministério aconteciam gnção, enãóTêm grau. ( _ S £ K V / ^ ONovÕTestamem^é insistente quan­ to à responsabilidade de todos os homens perante Deus, bem como quanto à culpa de todos os homens perante o Senhor (At. 17:26-31; Rom. 1-3). Em Jesus Cris­ to as barreiras construídas pelos homens e éxistentes'êhtre eles, são derrubadas (Gál.. 3:28). Todos os crentgsjlevein,jgr_saçgi; dotes dé~Deus êm~1ãvM-~Hêum jnundo perdido. Ochamado-^especial para o ministenÕcóRca a pessôa debaixo de séria obrigação e propicia graça incomum para o serviço. Isto não marca o vocacionado como diferente ou melhor do que os outros filhos de Deus. to^s^QS cpntes é um corolário da nossa ffllação de Deus em Cristo. da proclamação, obpoir ^ s t o , que dão testemurihõ simtjQlico íic o odo o seu. evento redentor. Èsses n M ^ s s ^ o batismo^eTCeia. Õ tismo é ordenado pelo Senhor ressusci 3b (Mat. 28:20). Ele retrata a experiência de morrer e ressus­ citar com Cristo (Rom. 6:1-4). j m seu batismo, Cristo se_identificou cbíii o p fíomem, to i^ u -se um com a humanida- S dè^pècadorX^ElFcm zoua linha da nossa -i imperfeição, para permanecer conosco. No batismo_cristão. o crente em Cristo conscientemente se id e ^ ifica com (^isto. t l e “ còhfêsSá" publicamente o nome de Cristo (Rom. 10:9,10) e “ se reveste” de Cristo pela imersão (Rom. 6:3; Gál. 3:27). ' 'è. A Ceia foi estabelecida por Cristo, e é toiftsffi“ elos seus seguidores para recor­ dar o seu sacrifício em favor deles, e para refletir sõbre a sua^idnda iminente, para comungar com eles (Luc. 22:19-30; M a t.|| 26:26-29; Mar. 14:22-25; I Cor. ll:23-~ 26). O cálice e o Pão da mesa do Senhor propiciam comunhão c_om. ele (I Cor.^„ 10:16,17). Ambos levam o crente a lem-«*

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brar-se da necessidade de separação de ' vida e pureza de conduta (I Cor. 10:21). Em o Novo Testamento, a Ceia do Se­ nhor pressupunha rigoroso exame de consciência e uma sondagem minuciosa do homem interior (I Cor. 11:28-33).

V. A Comunidade Redimida É Composta de Homens Que Compartilham das Fraquezas do Pecado e da Experiência da Salvação 1. O Homem no Pecado A oginião do Nçvo Testamentg a respeltõdò^hom em ^âo é nem pessimista nêm^^pt^stã?~? õ ^ ° 's è r ‘'d è la itã ^ reaKtaT^trKomem é criatura de Deus e apresenta a i m a g e ^ S ^ ^ d e m a n d a distorcida. “ TO^antor o homem nunca deve ser desprezado pelos seus semelhan­ tes (Tiago 5:9). De fato, o homem é a maior preocupação do Criador, e a sua vida elnãíFH liõsa do que a de qualquer outro ser criado (Mat. 10:29-31). Mesmo ^ instituições religiosas ordenad;^ nor Deui^sap pará o bem dos homens. ~ S l^ínaslpãrtês do iiomenTinuitas ve­ zes sâo responsáveis pela sua reação co­ mo um todo ou pelo seu modo de viver. O coração é o órgão do pensamento e das_ reaçSes, nõ NõvcTTe^aínênto7"oTíome^ é o que e lfp ê n s F em s e u ^ ração''^M 'ãt' Í2:34,35)70s õrgão^nteriOTes refletem compaixão ou profundas emoções (Fil. 1:7; 2:1,2; Col. 3:12). Os escritos d^^?auÍoVdedicam muito espaço às reflexões, acerca doJiomem jio p e ç a ^ O homem participa de inna^aja decaída. Da mesma forma com\) o pnm eíro^dão, todos os homens pecaram (I Cor. 15:21,22; Rom. 5:12-21). A justiça deve ser julgada segundo os padrões de Deus, e, segundo esse critério, nenhum homem está à altura (Rom. 3:21-23). O homem é carne. Isto significa que há uínprm apí3'''aíívo, no homem, que é mau e que torce a vida para a direção das 14 Cf. C. Ryder Smith, The Bible D octrine of M an lÆndon, Epw orth, 1949).

coisas demoníacas e pecaminosas (II Cor. 7:1; 10:2). O homem tern uni corno. Algumas vezes corpo e carne são smonimos (Rom. 6:6; 7:24). Basicamente, o^ cor^o é a forma do hom em rNéstãrVídáT ele é^quTmico e terreno, e j o mundo futyro ele será espiritual (I Cor. 15:3^,40). 0 ho­ mem tem um espírito, que conlíece"^ prõfund^ãr'3o’^eú''ser (I Cor. 2:11); o e s p m ^ é aquela capacidade consciente do homem que passa por experiêncías^e a¥l«laciona cõrn toda a existência do ^ n ie m CRom. 7:6; I Còr. 2:12)7lEspíritÓ” ' Ç é o oposto de came. É a capacidade do jhomem de cooperar com o Espírito de C D e ^ j orde^jrj ] j Sjirá~^ facTpTõpósito de Deus (Rom. 8:1,4; I Cor.^ ^ ‘:20; Gál. 5:16,17). OJiomem é uma alma, um ser total, um ^ in^âivM im li^âeTfflnã^ inas vezes, ser sihôíumo de espírito e corpo (I Tess. 5:23). Alm aé a designação básica para a personaBBaae ao fiõniem, o seu tõdo. o gue ele é (Rom. 12:1~). O homem, em sua existência atual, é pecador, e necessita de Deus. é descrito de muitas formas. Ele é errar o alvo (hamartia); é mal moral (poneras); é injustiça (adikos); é ilegalidade (anomos); é escuridão (skotos). Pecado é mais do que pecados. Ele é o gênero"iTiaÍs'''Hlíípít5'‘'Hõ”quarnásceram as várias espécies de pecados específicos. O pecado, genericamente, é caracteriza^ò^põrcõn^glscêngíâoü"^!^ ^ ^ ^ meigl, ejgroduz^nto morte (Tiago 1:15; !^ m , J ^ í^ ^ ^ c o ^ ^ ^ p a T ã ç â o T ê r Ç ê u I ^ (í João 5T18). Ô pécadS^produz o"^ seu“ próprio fruto (Gál. §:19); é uma lei ope­ rando dentro do homem (Kom. ò:l); e coloca o homem em escravidão (Rom. 6:17). O homem, como pecador, precisa de T rrovb Testamento^fírma que o pecado foi fator determinante para a vinda de Cristo. O própriojiome de Jesus_se_relaçiona com a^ibertação do h ^ e m , cto seu p ê c ãd S ~ (M at7 T ?2 T rO sêu lãn g u en 67


fé é viver com Deus (Rom. 1:17). A salva­ purifica do pecado (I João 1:7). Ele leva os pecados do mundo (João 1:29; Heb. ção do __________________ homem estã" na fé e, __ sua possi. 9:28). ~ " ^ 'Piirdadê~3e ter té reside em~Pêiis (Êf. O testemunho do Novo Testamento é C '2T8~i9T. ' unânime no sentido de que o homem é J “ TO^homem confrontado por Jesus Cristo menos do aue devia ser. Q homem, dei- ( é responsável pelas suas decisões. DuranxaâoXmCTcê dos seus próprios recursos, ! te a vida terrena de Jesus, um moço rico não tem nenhuma esperança de ser real­ j decidiu contra Cristo, e “retirou-se trismente diferente do que é. Contudo, a Ç te” (Mat. 19:22). O Espirito de Deus essência da mensagem do Novo Testa­ > convence os homens do pecado da incremento é que o homeni^pode ser difereiite. 1 dulidade. O fato de não crer em Cristo é . do q u e ^ a g o ra , e pode, em Cristo, por que condena o homem (Joâo 3:36; 16:| T ii^ ò r n ã r^ Öque dérê~sér. A base parãXcrença e a c a p a c id á ^ ^ r a crer sâo dons de Deus ao homem. A de­ 2. O Homem Como Redimido cisão e o exercício da fé sâo obrigações do Eleição e Resposta — A vida cristã é homem. uma vida que passa por experiências, e ^ ‘^^‘Expríessões Para a Vida Cristã — Mui­ que relaciona cada experiência a Deus, tas expressões são usadas em o Novo através de Cristo. A possibilidade da vida Testamento para indicar o aue significa cristã está em Deus e na sua provisão ser crente. A maioria dessas expressões para o homem em Cristo (II Cor. 5:19). saõ metãíoras tiradas da diversidade das Os homens vão a Deus porque são esco­ experiências da vida. As metáforas tiralhidos para fazê-lo (I Ped. 2:4,9; Ef. 1:4). das dos relacionamentos familiares enfa­ São atraídos a Cristo pela proclamação tizam o lato ae a ú F õ rc rê n E F râ ^ iffiõs do evangelho e a atração do Espírito de Deus porad o g ão (Gál. 4:6)7^Eles Santo (At. 2:14-47; Rom. 8:15; Gál. 4:6; nascèranTae'^ôvoTJoâo 3:3-7); se rege­ Apoc. 22:17). neraram (Tito 3:5); tornaram-se'novas A reação do homem a Cristo, através criaturas (II Cor. 5:17); sâo herdeiros do do Espírito, é de fé e de arrependimento. reino de Deus (Rom. 8:17). Da corte judicial vem a ^ a lo g ia d a ji^ tif fia ^ o o u Arre^endiiasnto é a exigência divina anunciada no ministério de Jesus (Mat. (3lãIõ3Fsêr5êcfôra3ojústo7e7 portanto, 4: íTTTCucT I s : 1-5). A injunção para se a(Ébé?ía3g(Rom . 4:25; 3:24,28; 8:30). arrepender emoldurava a pregação da Da a r ^ de relações pessoais, o termo igreja primitiva (At. 2:38; 3:19; 17:30). raçonclliaçâo eusTdo para (iêscrevêra O genuíno arrependimento é-. possível cessação de isolamento entre pessoas apenas por causa da fé. (Rom. 5:10 e ss.; Ef. 2:16). O crente, pertencendo a Cristo, é se­ Fé é a capacidade que Deus dá_^qs_ hb^nsTguaiíH o ^ n ^ M te gõTcõf f C n ^ parado p ira õ propõsTtolÍ^lJêus,reÍaçã^ qúé é ehfãtízácfa por"u n T g ru ^ impor­ to7^g^ff^neje.^A fê'"ãcarreta o e l í v ^ vimenfo de todas as reações de um ho­ tante de termos usadpS-^em relação à vida cristã: santo, sagrado, santificar, santifi­ mem. Ela é jn te le c t^ , em^ional^e tiva. SenTíe^!^el!níp^rvefagraà'í- a Deiis cação. ^Treîaçâ”o"vït^ entrem ^ d o ~ e S iI^ ^ r o x im a r - s e dele (Heb. 11:6). Sem fé TEÉ^TEf. 5:22-33) e da videira com os em Cristo, a pessoa está condena(Ía poT ramos (Joâo 15:1-5) ilustra a condição causa aa sua incredulidadeTioão 3:36). dos crentes que estâo em Cristo.’ Estas ^ a cCTae^nac^p é|cominada^ao mundo expressões trazem consigo a conotação pelo b ^ mto de Deus, queconvence d(T ^íi~um.„r^çio.narnento ativo, vital. Há pecaSÕT^baseando-se na incredulidade üma vitalidade e uma alegria no relaciò^ namento ao povÕ~de^~De^ com o7sëû (João 16:8,9). .No evangelho, a pessoa contra a posslbüidade de fé. ejvimLB^ Senhor. Esta a ie g m e b e m capturada no 68


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termo redenção, que expressa cíam a^ reforçam a relação entre relatar da e sc S v ? 5 ã ^ ^ pecado e dos g n m o e ^ a ( ò~evãngelho §,, dar_t£slemuntK>-.dele em í incapacidade humana (Rom. 3:24; I Cor. ^ atos ^ um *slníirnenf^^ç^^^ y ' 1:30; Col. 1:14). A liberdade de perdão é ‘ ' - ^ ^ ' uma das principais bênçãos da vida cristã ^gelism o e ética estãõ relacionados intima(Rom. 4:7-16). mente em o Novo Testamento. o

VI. A Tarefa da Comunidade Cristã É Dar Testemunho ao Mundo Esta tarefa, executada pelos crentes, resulta em missão, interesse evangelístico e uma vida de acordo com princípios éticos por parte do povo de Deus. 1. Missão

2. Evangelísmo A palavra grega traduzida como pregação” .propicia a raiz para as nossas palavras portuguesas evangelho, evange­ lizar, evangelista e evangelismo. E ^ ^ ^UsmOj^eni_^Noj^^ nao.e'um .g K tg ^ más uma Alguns são chamados para ser .evangelistas (At. 21: 8; Ef. 4:11; II Tim. 4:5). Em sentido amplo, todos os seguidores de Cristo participam da vocação de cõínpirtíífiar" c g ç n c ^ s T ^ e ^ r^ ^ Evangelismo é uriíá inodo de vida carac­ terizado por compaixão (Rom. 9:1-3; Mar. 8:2; Luc. 7:13), e expresso pelo fato de se demonstrar fé em Cristo, que é a palavra e o caminho de Deus (At. 16:17). ..^ ^ e ^ p lo de interesse pe.lo evangelism o ^ ^ ^ ^ o ^ i ^ p e u s . As p a r ^ ^ a s ^ dracma percfiBa,'(iã ovelha perdida e do filho perdido (Luc. 15) revelam a inten­ sidade do interesse de Deus. A preocup^ão,4® D e u s jj;^ homem e^sua"^saP

O povo de Deus, é chamado,sm Cristo pa^ã s e rv ir^ ^ D ^ . ~0 serviço primofawl aõ~pòvo 'de Deus é dar testemunho ao mundo do que ele fez. Quando Jesus "êstava na terra, com í^onou os seus se­ guidores para anunciar o reino de Deus, mediante a realização de sinais messiâ­ nicos. A proclam^jyãoiaio reino de Deus foi em ^ QS. tanto auantõ ~em ni^lavras (Mat. 10:1-11; Luc. 10:1-16). Á ordem do Cristo ressuscitado foi pregar o evan­ gelho e ministrar aos necessitados (Mat. 28:19-20; João 20:21). Os primeiroj^cristãos proclamaram a in e n s a g e n T ^ e ^ ma) acerca de7estflT3É?iy0if'‘qúe^l^ que v g io jm ra J^ c a r e s a l v ^ *ram ò podeFac^spírito (ÃtT2 — j(yic. 19:JiO). Tarcompàixão é contagio­ Cristo indicou que serTa^um sinal do sa. Ela é encontrada em Paulo e seu zelo jeino o fato de que o e v a í^ ê lh o ^ ria por Israel (Rom. 9:3). Ela deve caracte­ regado_DQr palavras e por atos, aos rizar todo o povo de Deus. p o ^ s (f^ E lí:^ ./l^ a u Íõ ^ n fa tiz o u 3. Vida ele próprio fora e n v m d ó ^ ra proclamar a mensagem de Cristo (I Cor. 1:17); e A ,£^unidade^^^g|j|é é caracterizada esse foi o seu maior esforço (I Cor. 1:23). por uln. es tü o ^ ^ , vida. Os cristãos são* k, mensagem (pregação) do evangjife® chamados por esse nome devido à sua é o ins^me^nt5*escolKi3crp^^ sen^llmnça^com^Cm (At. 11:26). Eles" testificar acerca salvação (I Cor. ^ d e s e m p e n n ^ as suas profissões, desini:21). A injunção expressa a Timóteo foi ,;'‘cumbem-se dos seus deveres, mas são pripregar a palavra (II Tim. 4:2). Pregar é /m ordialm ente dedicados a Deus (R om .f^ mais do que dizer palavras. Freqüente12:1). Estão sob ojnandato de amor (João mènte retere-se ao conteúdo vital da pro­ 13:34). De fato, amor e a marca indic^ clamação, a mensagem, e não aos meios dora e digna de nota da~ c ^ ^ n p ^ e (II Tim. 4:17; Tito 1 ^ I Qss.nèotestamentMa (I João 3:14). À vida O u |ro s J e r^ s , como '^^nwstfar”/eV^proqu ^ M ¥ produz resultados cristãos nâo é 69


( / termo jedengã^ que expressa a jib ^ a ^ ã o c Ía rn ^ j;e fo rçam a rely ã o entre .relator^ í 7da e s c S v íS à ^ ^ pecado e dos g ^ 'B o e s ^ :eího _e^ dar tesíemunho^jiele em . incapacidade humana (Rom. 3:24; I Cor. atos e por uin *^en!Í!ménJo^l^_ co^ 1:30; Col. 1:14). A liberdade de perdão é | xãoTBm sümaV evanuma das principais bênçãos da vida cristã gelismo e ética estãoreÍac'ionadc)s intima(Rom. 4:7-16). mente em o Novo Testamento.

VI. ’A Tarefa da Comunidade Cristã £ Dar Testemunho ao Mundo Esta tarefa, executada pelos crentes, resulta em missão, interesse evangelístico e uma vida de acordo com princípios éticos por parte do povo de Deus. 1. Missão

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2. Evangelismo A palavra grega traduzida como “pre­ gação” propicia a raiz para as nossas palavras portuguesas evangelho, evange­ lizar, evangelista e evangelismo. Evange^Usm aem ^^N o;^^ nao e um mas uma Alguns são chamados para ser evangehstãs (Af. 21: 8; Ef. 4:11; II Tim. 4:5). Em sentido amplo, todos os seguidores de Cristo participam da vocação^de^õnTpirfíIHar"^ ^ 7 bToàs"nõrIg^cll^(hiíto^ Evangelismo é uma niiõdo de vida carac­ terizado por compaixão (Rom. 9:1-3; Mar. 8:2; Luc. 7:13), e expresso pelo fato de se demonstrar fé em Cristo, que é a palavra e o caminho de Deus (At. 16:17).

OgOTo^^e_^^g.é chamado^em Cristo para"ser\'ir a Deus.T) serviço primorHml aõnpõv^íé Deus é dar testemunho ao mundo do que ele fez. Quando Jesus 'estava na terra, comissionou os seus se­ guidores para anunciar o reino de Deus, mediante a realização de sinais messiâ­ nicos. A proclamacãoi-do reino de Deus foi em aíQS. tanto auantò éth palavras mO^ , _ ...... .........^ ___________ (Mat. lO Ü -ll; Luc. 10:1-16). A ordeírT dracma p er3 íd a,^ ã ovèlha perdida e do do Cristo ressuscitado foi pregar o evan­ filho perdido (Luc. 15) revelam a inten­ gelho e ministrar aos necessitados (Mat. sidade do interesse de Deus. A preo28:19-20; Joâo 20:21). Os p rim e ir^ criscupação^e Deus^p^lo homem e j ^ a ^ F tâos proclamaram a rnensãgèniTCkeryg- yaçã^ é çoijionficg ina) acerca d ^ e s |g 3 ^ ^ ^ ^ u e j i c e B e que vfiio para buscar e salvarjos^S ^ i S m 'raní"epodef'dõ^Espírito (Át. 2"^^^7T()Í^ ^ c . 19:10). Tar^õmpàixão é contagio­ Cristo Indicou qúe~sfrTa^um sinal do sa. Ela é encontrada em Paulo e seu zelo reino o fato de que o evangelho seria por Israel (Rom. 9:3). Ela deve caracte­ pregado. jr palavras e por atos, aos rizar todo o povo de Deus. pobres J M atT1iTs).(Paulo \snfatizou q w 3. Vida ele próprio fora e n v iã d o ^ ra proclamar a mensagem de Cristo (I Cor. 1:17); e ^^co^inidade^^^^jé é caracterizada esse foi o seu maior esforço (I Cor. 1:23). por üm estilo dè n ^ ~0s c risto s lã o A mensagem (pregação) do evangdho chamados por esse nome devido à sua é 0 mstru m ^ ^escõffiídypOT^D sem dhança^^ 11:26). E les'> testificar acerca" Cor. <='oesempennam as s u ^ profissões, desin- \ l:21).~A“injunção expr^sã a Timóteo foi ?cumbem-se dos seus deveres, mas são pri- > pregar a palavra (II Tim. 4:2). Pregar é /m ordialm ente dedicados a Deus (Rom._í=^ mais do que dizer palavras. Freqüente12:1). Estão sob o mandato de amor (João mènte retere-se ao conteúdo vital da pro­ 13:34)! De fato, amor e a marca indicaclamação, a mensagem, e não aos meios dOTa e d ig n a ^ e nota da comunidade (II Tim. 4:17; Tito ^^O ^IC w . UISX. neotestamentária (I João 3:Í4). À vida O^^ros t e r ^ s , como '^^nw ^f^yeÇ proque não produz íèsulfáBos cristãos não é 69


cristã (Mat. 7:16). A^ve|dadeira j é ^ r ^ , duz uma vida reta. A corifissão de fé de um'crente e 'as xi)rê§s55 " He sua precisam çoncori ãrT riago í regras específicas mudam de acordo com as circunstâncias e a situação (I Cor. 8:1-9). Orientações genéricas de conduta propiciam as normas da vida cristã (Fil. 2:5; I Cor. 10:31; João 13:34; Tiago 1:8). A vida cristã ^ ^ t ^ l por^que está ^rai-^ gãriã"num~lólõ~mais~~amplõ^ dòIqííí^os ^objetivpsjgoísfeos(Ef. 3:17 e ss.). A vid^ ^cristã é íle S v ire progressiva^ porque os e u s ^ v o s ^ o maiores do aue uma^sitaãçlSTníêdIãla”(Für3:12-14). A vida crísíaT um ãviB ã^undante agora (João 10:10, e vida com a face voltada para o futuro (I Ped. 1:3; I João 3:3; I Cor. 15:19).

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VII. Deus Tem a Última Palavra em Relação a Toda a Sua Criação A Palavra de Deus em carne (Jesus Cristo) é a primeira e última expressão do caminho de Deus para o homem. Ele é o Alfa e o Ômega (Apoc. 1:8). Existe uma fo ra m çiry ilaT j^ ^ ^ ria d ajia maneira de Deus"ãg i r T ^ ^ c o n r a sua c n a S o ? ppT õm eca as,5uas expressões rederitoras nolíárdim do Eden (Gên. 2:8; 3:15) e as conciüi' lío j ^ ^ ^ ~ ^ ^ a r a ^ o “TA^c!^ S n ^ S T E n tre esses íoís jardms Be Deus ficam os tortuosos caminhos da história e a revelação do plano redentor de Deus para o homem. A revelação biblica é caracterizada Pgl^ abertura e por u m a lp |f ^ 5 tiv 0 ^ o futuroXcf.CTTS^I^ lieology ot Hopè — Teolõ^a da isperança). O Velho Testamento olha para além de si mesmo, para. a promessa do Messias. O Novo Testamento anuncia a chegada do Messias, e prevê a sua vinda final(Apoc. 1:7,8). Çrisíp, como o cumpri(tor do propósito de Deus, vence o malígnoT~ É m ^ Novo Testamento á ameaça do" mal é mais pronunciada do que no V e lh o .^ mal é projetado em esçda pessoa^ tanto qUan- " 70

to em e^scala cósmica. Satanás (o adverfanÕJ tenta ate o próprio Messias (Mat. 4:1-11; Mar. 1:12,13; Luc. 4:1-13). O maligno é mestre em subterfúgios,‘apare­ cendo como um anjo de luz (II Cor. 11:14). Como príncipe deste mundo, ele exerce influência e poder. Mas a sua destruição é certa, no fato de Cristo ter vencido a morte (João 12:31; 14:30; 16:11). Uma afirmação repetidamente feita no pensamento do Novo Testamento é que o adversário, por fim, não conseguirá pre­ judicar o homem (I João 5:18), pois o dragão, a antiga serpente, simbolizando a oposição a Deus, será por fim vencido e lançado no lago de fogo (Apoc. 20:2,3, 10). A vinda de Cristo foi para vencer as obras do Diabo (I João 3:8)^A ^ rrota dos poderes demoníacos çomeçou^^STa níõrte de'Cristo',^ecõSin(úa^ v i^ I^ ifff°C rõ a í2 1 lll; I jQjõ*jf^4j r ^ a será plenaihente consegui3a~lío~ultimo dia (Apoc. 20:10). O crente deve tomar cuidado com o adversário e sua força (I Ped. 5:8), mas deve temer só a Deus (Mat. 10:28). 1. O Destino Final do Homem nasce da c^^sdêngk _^^algaym ^to^^O Tse (apropriadamen'te, esta è a palavra grega para julgamen­ to) do mundo está nas mãos de Deus. Cristo é o instrumento de julgamento. Às divisõeTentre o bem e o mal, crentes e incrédulos, céu e inferno, são fixadas (Mat. 2 4 — 25; Mar. 13; Luc. 16:19-31). Mas a decisão do juízo cabe só a Deus. O homem não deve ju lg a r (Rom. 2:1; Luc. 6:37; 1 Ped. 1717)7 M zosignifiç.a decisão e separarão en­ tre oT eine o mal. U destino dos homens )eus, e é revelado em esta nas maos Cristo. Os que persistem_em^sejguir o demônio são alienados e separados de Deus para sempre. O infemo é a sua habitação. O Novo Testamento fala acer­ ca do infemo com termos emprestados do VelhoTestamento e da literatura intertestamental. Geena, ou vale do Hinom,


era lugar associado com o sacrifício hu­ mano e com a adoração de Moloque. O inferno faz a lereia lembrar-se do divisl^*

nism^ e/õ res^ ado ma5ãr3E‘'^ ,ado e 7 séiíédade da missão de proclamar o c^mmho da?édencão do pecado. Tudo isto e enfatizado pela vivida oes^crição do inferno; em termos de fogo (Mat. 5:22), tormento jM a r. 9:43-47) e trevas (Mat.. 22:13)j QJaf££110_é separação da presen­ ça de Deus quanto à comunhão (Mat. ' 25:41), mas é uma consciência da sua i presença emjuÍ7.o(Apnc. 6:16') ~Q„EOTO^g^Dm^é peregrino e nômade (H ei 11:10,16; I Ped. 2:11). Estão no mundo, mas não são dele (João 17:9-18). Esperam o fim desta era e por fim a vinda de Cristo (At. 1:11; Apoc. 1:7). O seu destino é o céu; o seiuuj^^^enlxar em perfeita comunhão com Cristo (Mat.

me debaixo do peso da alienação de Deus. Promete-se libertação no_úlj:imo dia. para tu35^~qú^lt^êW ^^^Rom. 8:22,23). Só“ KÔmens rebeldes e demônios deixarão de partilhar da plenitude alcançada na obra redentora de Cristo (Mat. 25:41-46; Apoc. 20:10). O Novo Testamento é per­ meado de esperanças para o fim dos tempos. Homens de, f ^ e nrontram_a sua p a z jm ^ a d o ra r^ ^ e u |^ 2 M 5 Í= 2 J lS B ^ e o redi^m^e. Qs seus caminhos são insondáveis (Rom. 11:33). Louvores são cantados a ele e ao Cordeiro para todo o sempre (Apoc. 5:13). Conclusão Os parágrafos acima tentaram realizar a primeira tarefa da teologia do Novo Testamento. Esta tarefa tem por fim declarar, de maneira descritiva, o que o Novo Testamento afirma. Segue-se que

Q céu é mais do que uma referência geõgrãf!^ como a ^fe"qüi'^s~tar ãcimã* da terra. E o Ju g ar de Deus. Ele está scigunda tarefa daJeoIpgia do Novo assentado “no seü ‘^no7"alÍ“tSpoc. 4:2). Testamento. i^alm ente’^TmportanteT? Foi ao céu que Jesus ascendeu, e do céu dizer o que significam hoje estesjnatgríais voltará (At. 1:10,11). A promessa para o (le^rüivos^Us cr&tes, em todas as epocrente é que ele por fim estará onde Cristo está (João 14). Q^^cpi^^.oj;eino^ ^ cas, precisam relacionar a essência da fé í "' /bíblica aos tempos em que vivem.^Esta./^ preparado^desdej. ete^rnid^e^^^ segunda tarefa inclui tradução e íflter-^ "fes que ministram ern^ ncm^ _^e _Çnsto pretação que abrangem mais do que ha(Mat. 25:34 e ss.). O céu é como uma bíUdades lingüísticas ou a capacidade de cidade grande perfeita. Os maiores te­ passar as palavras de uma língua para souros da terra descrevem-na inadequa­ outra. O padrão mental dos autores bíbli­ damente (Apoc. 21). A imaginação do cos precisa tornar-se tão familiar como homem extasia-se com o que Deus pro­ uma segunda língua, muito usada meteu para os que o amam (I Cor. por uma pessoa bilingüe. A primeira 2:9,10). linguagem de uma pessoa é o século e o 2. Redenção Cósmica ambiente em que ela vive. Cgnstruir uma A última palavra de Deus é dita, por ponte entre o g ^ s a ^ e ’^ p p ï^ en ïe!“Ç°’ Cristo, que vence a morte, o último ini­ ^assmi. á segunda grande ta l^ í|“ffileóÍ(>’ migo, e entrega o reino a Deus (I Cor. *^a^íb^icar^ significado do Novo 15:24-25). Deus leva todas as coisas à sua MTestáméSto para o tempo em que vivemos ‘ | pretendida''^"plêmffi^^eHr''^Cflsfé^ ^ é o grande desafio e o fim, em aberto, da ^ 1:10). T ^ È ;a óiSim xn^da e^âo^mtere^e Jteologia-bíblica. de Deus. O hometn é o objeto máximo da Leitura Suplementar ^reo cu p ap õ '’^ S i ! o r r B e ^ ú C l í i ã r n I o e~ O g s ü ir^ d a ^ ° p re o c u ^ ^ BULTMANN, RUDOLF. Theology of (João 3lÍ6). À ordém criadãl:ambém gethe New Testament. 2 Vois. Traduzido 71


por Kendrick Grobel. London: S.C.M. Press, 1952. CONNER, W. T. The Faith of the New Testament. Nashville: B roadm an Press, 1951. GRANT, ROBERT. Historical Intro­ duction to the New Testament. New York: Harper & Row, 1963. Interpreter’s Dictionary of the Bible. Vol 1.. Artigos sobre Teologia Bíblica. New York; Abingdon Press, 1962.

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Abordagens Contemporâneas no Estudo do Novo Testamento Ray Summers A mudança de padrões de pensamento e de vida exigem abordagens diferentes na base da verdade final. Como crentes, temos nos entregado à crença de que a verdade final deve ser encontrada em Jesus de Nazaré como o Cristo de Deus, e sempre em relação a ele. Descobrimos, portanto, que a nossa busca nos leva a novas abordagens, no estudo do Novo Testamento, livro que expressa a fé e a experiência dos que conheceram a Jesus em Sua vida terrena e é a interpretação da sua fé e experiência. Os cristãos do século XX concordam com os cristãos do primeiro século, em confessar que “Deus estava em Cristo reconciliando consigo o mundo” (II Cor. 5:19). Mas não participamos do mesmo tipo de entendimento, pensamento, lin­ guagem e dos muitos outros elementos da sua vida sócio-religiosa. Neste estudo, procuramos abordagens que tornem pos­ sível um melhor entendimento do Novo Testamento, e a aplicação dele à nossa vida complexa.

I. A Intenção da Linguagem Bí­ blica A mais importante tarefa da pessoa que estuda o Novo Testamento é deter­ minar a intenção do escritor. A interpre­ tação tem sido definida como o esforço da mente para seguir os processos do pensamento de outra mente, por meio da linguagem. O principal alvo a ser alcan­ çado é a intenção, o pensamento, o que está sendo expresso por aquele meio. O único alvo adequado é a descoberta de todo o processo mental e de significado do escritor — todo o estado de cons-

ciência que se está expressando através dessa linguagem. Segue-se, portanto, que a página impressa não é o objetivo final da interpretação. O objetivo final é o significado dessa página impressa para o escritor, para o leitor original e para leitores subseqüentes, em cada época.

II. Interpretação Histórico-critica É básico, para todas as abordagens contemporâneas competentes, no estudo do Novo Testamento, o método históricocrítico. O interesse teológico contempo­ râneo precisa ser controlado por esse mé­ todo. Ele é o único método que conserva a exegese em contínuo diálogo com o texto que ela procura entender. Voltar as costas a este método é negligenciar o intento teológico do escritor. Qualificar isto deixa o intérprete no perigo de ser inconscientemente influenciado pelos seus próprios antecedentes e pelo meio ambiente teológico, na medida em que o que ele lê dá significado, ao invés de tirar significado das Escrituras. A interpretação histórico-critica é a determinante do significado de uma pas­ sagem da Escritura à luz de todas as evidências propiciadas pelos fenômenos do texto original e pelo contexto da pas­ sagem. A palavra “crítico” ê uma transli­ teração do adjetivo grego kritikos, deri­ vado do verbo krino, que significa julgar à luz de evidências. O adjetivo em referên­ cia significa pesquisar e julgar uma ma­ téria; daí, decidir à luz de todas as evidências disponíveis. Tal interpretação começa com uma tentativa de averiguar todas as circuns­ tâncias que de qualquer forma afetam o 73


significado de uma unidade da Escritura. Isto inclui uma investigação cuidadosa de todos os detalhes do texto original: léxicos, gramáticos, sintáticos, compara­ tivos e retóricos. Tudo isto pode ser inútil, se estiver divorciado do ambiente vivo em que a passagem foi produzida. Quem é o orador ou escritor? Qual é a natureza da sua experiência religiosa? A quem está ele se dirigindo? Qual é a necessidade particular a que ele estâ falando? As Escrituras foram endereça­ das a homens de profundas necessidades e apetites espirituais. Sob a direção do Espírito, os escritores bíblicos usaram métodos e materiais da maior eficiência para assegurar o interesse e a compreen­ são dos seus leitores. Deixar de entender a experiência religiosa, as características mentais e as variegadas necessidades, tanto do escritor como dos seus leitores, é ser prejudicado grandemente no estudo da mensagem. A interpretação histórico-critica come­ ça com as Escrituras, determina a inten­ ção das Escrituras à luz de todas as evi­ dências disponíveis e avança para uma declaração dessa intenção na forma de ensinamentos ou doutrinas. Embora seja o único método válido de estudo, ele não garante que todos os intérpretes se apre­ sentem com a mesma interpretação. Sempre há o elemento subjetivo do julga­ mento de valores. Muitas matérias en­ tram na maneira como uma pessoa pesa evidências e forma conclusões. O intér­ prete sincero lutará por uma objetividade que seja livre de preconceitos; o intérpre­ te honesto confessará determinado grau de fracasso, quer em resultados positi­ vos, quer em negativos. Por meio dessa abordagem vem a com­ preensão. Mas somente por reverente cometimento de fé vem a aceitação disto como sendo de fato a Palavra de Deus ao homem. Aprender o significado pode ser um processo de grupo; aceitá-lo perma­ nece um assunto individual. E a aplica­ ção sincera do que é aprendido e aceito é o objetivo final do estudo do Novo Tes­ 74

tamento. Somente isto leva o estudante da esterilidade, à fecundidade. Chama-se atenção especial para o fato de que o assunto deste artigo, “Aborda­ gens Contemporâneas no Estudo do No­ vo Testamento” , sugere limitações autoimpostas. De longe, o maior impulso, nas abordagens contemporâneas do Novo Testamento, tem-se relacionado com o estudo dos Evangelhos, e principalmen­ te, dos Evangelhos Sinópticos. O Evan­ gelho de João participa, com os Sinópti­ cos, da disciplina da critica da forma, mas é uma participação limitada. A abordagem contemporânea de João tem sido grandemente um exame das inten­ ções teológicas. Nada suficientemente distintivo, para ser considerado como abordagem contemporânea, tem apare­ cido no estudo das Epístolas Joaninas e do Apocalipse. Estritamente definidas, as “aborda­ gens contemporâneas” oferecem pouco na área do estudo das Epístolas Paulinas. Notáveis comentários e obras teológicas têm sido produzidas, mas basicamente elas seguem as linhas de estudos ante­ riores, no padrão da interpretação histórico-crítica, exegese e resultados teoló­ gicos.

III. Crítica da Forma Ê duvidoso que qualquer abordagem contemporânea do estudo do Novo Tes­ tamento tenha tido uso mais amplo do que este instrumento de crítica literária O termo é a tradução da alemão Formgeschichte, geralmente usada, e que sig­ nifica literalmente “história da forma” . Ë um estudo da história de como os materiais dos Evangelhos vieram a ser preservados e colocados na forma em que aparecem no evangelho escrito. As li­ nhas-mestras desse método foram desen­ volvidas na Alemanha, através dos esfor­ ços de M. Dibelius (From Tradition to Gospel). R. Bultmann (Jesus and the Word) e K. L. Schmidt (Die Rahmen der Geschichte Jesus). Ao seu primeiro vo­ lume, Dibelius acrescentou The Message


of Jesus como extensão dos seus pontos de vista. Numerosas obras foram acres­ centadas por Bultmann e um a multidão de outros eruditos — europeus, britâni­ cos e americanos. Não é possível apresentar os objetivos e métodos da crítica da forma em uma declaração que se aplique igualmente bem a todos os eruditos que a empregam. Basicamente, o método da crítica da forma é duplo. Primeiro, mediante re­ construção e análise, ele procura explicar a origem dos relatos orais das palavras e atos de Jesus, penetrando no período anterior ao em que os materiais foram colocados em forma escrita. Segundo, ela procura tom ar clara a intenção e interes­ se real da mais antiga tradição a respeito de Jesus. Por tradição designamos o rela­ to oral por detrás do relato escrito. A crí­ tica da forma deseja mostrar por que as primeiras igrejas contavam histórias acerca de Jesus, por que coUgiram essas histórias e por que as escreveram como “Evangelhos” . Obviamente, então, um dos fatos im­ portantes a respeito da crítica da forma é que ela focaliza a atenção no período mais remoto de transmissão de materiais evangélicos: as três prímeiras décadas depois da morte e ressurreição de Jesus. Este é um difícil período de estudo. Nenhuns registros escritos desse período chegaram até nós, exceto, talvez, a hipo­ tética Logia ou Quelle (Q), fonte isolada pela crítica da fonte, uma geração antes da crítica da forma, como a fonte que Mateus e Lucas possuíam, mas não Marcos. Outra característica deste método é a ênfase que ele dá ao estágio de tradição oral. Ele usa os Evangelhos escritos, reco­ nhece fontes escritas por detrás deles e capitaliza sobre o valor inestimável da sua antecessora, a crítica da fonte. Mas a sua maior preocupação não é com as fontes escritas. O seu interesse reside na transmissão oral dos atos e palavras de Jesus. De acordo com a crítica da forma.

foi devido à constante repetição durante esses anos de uso oral, que o relato recebeu a “forma” que possui no relato escrito. O ponto de vista de que os materiais evangélicos emi primeiro lugar circula­ ram oralmente em unidades pequenas, independentes, de ensinos e de atos de Jesus é básico para este método. Por exemplo, remova os onze “logo” , “ime­ diatamente” e “em seguida” que unem o primeiro capítulo de Marcos. Uma nar­ rativa intimamente ligada desaparece, e ficam múltiplas narrativas independen­ tes, que podem ter sido usadas separada­ mente, quando necessárias, em diferen­ tes situações. Estas unidades são chama­ das perícopes, e podem ser classificadas em numerosas categorias, inclusive: re­ latos de milagres, declarações gnômicas, ensinamentos mais longos, ou paradig­ mas, histórias épicas acerca de alguma pessoa, diálogos didáticos e exortações. Outra característica da abordagem da crítica da forma é a busca dos antece­ dentes do relato escrito resultante na vida da igreja primitiva, o Sitz in Leben ou “ambiente de vida” ou “situação am­ biental” . A situação social em que a história ou ensinamentos em considera­ ção foi preservado, precisa ser encarado. Isto oferece uma solução para a questão de por que o material particular em nossos Evangelhos foi preservado, usado, e, por fim, colocado em forma escrita. Dependendo da questão complicada das “Páscoas” no Evangelho de João, o mi­ nistério público de Jesus é estimado va­ riavelmente como tendo sido de um pou­ co menor do que um ano, um pouco maior do que dois anos, ou cerca de três anos e meio. Em qualquer circunstância, é óbvio que Jesus disse e fez muito mais do que o que é representado nos cinqüen­ ta ou cinqüenta e um dias que podem ser isolados nos Evangelhos. Foi um mero interesse histórico ou biográfico que governou a escolha do que devia ser preservado? Parece, pelo con­ 75


trário, que a escolha foi determinada pe­ lo uso e necessidade da igreja primitiva. Quatro aspectos dessa necessidade po­ dem ser identificados. Um: Os cristãos preservavam palavras e incidentes que lhes davam orientação em matéria de fé e conduta. Qual devia ser a sua atitude em relação à Lei, ao perdão, ao pagamento de impostos, à observância do sábado e a muitas outras questões sociais? O que o relato oral da vida de Jesus e da sua obra oferecia, à guisa de solução para esses problemas, os cristãos guardavam, usavam e por fim escreveram. Dois: Os interessados e convertidos precisavam obter instruções quanto ao significado da sua fé e ao caráter de seu Senhor. Feitos e palavras aplicáveis, de Jesus e dos apóstolos, foram entesoura­ dos e usados. Três: Em épocas remotas, os cristãos perceberam que não se sentiam em casa no Templo e na sinagoga. Ao saírem dali, estabeleceram os seus próprios cul­ tos de adoração. Retendo muito do seu berço original, a sinagoga, eles também acrescentaram muito de si mesmos, nas formas de adoração. O que puderam acumular dos ensinos e práticas de Jesus, eles usaram. Este é, provavelmente, o fator motivador, por exemplo, que levou á preservação de tantos detalhes de Jesus orando, dando, e outros elementos corre-, latos de adoração. Quatro: Havia controvérsia com os ini­ migos da fé. Desde o começo os cristãos se descobriram na posição em que se tomaram necessárias tanto a polêmica como a apologética. Eles tinham que enfrentar oposição, crítica e càlúnias. O fato de apelarem para o que Jesus tinham a dizer, e aos seus atos, deu-lhes o seu melhor material. Este eles usaram, pre­ servaram e escreveram. Desta forma, os materiais que melhor serviram às suas necessidades de orientação, instmção, adoração e controvérsia foram preserva­ dos. 76

A forma do material foi afetada pelo interesse prático; o relato oral foi mol­ dado para servir aos fins imediatos. É o produto resultante que aparece em forma escrita. Uma palavra de cautela está em or­ dem. Alguns críticos da forma dizem que muitas das histórias e palavras atribuí­ das a Jesus na verdade foram criações da igreja primitiva, criações essas que visa­ vam preencher as suas necessidades. Ë neste ponto que o perigo do extremo subjetivismo polui um método de estudo, que, de outra forma, seria útil. Evitando este extremo subjetivismo, outros erudi­ tos que usam este método (Manson V. Taylor) insistem que viajamos longe e depressa demais se dissermos que a co­ munidade criou essas histórias para sa­ tisfazer às suas necessidades. Embora reconhecendo a mão da igreja no moldar a forma final do relato escrito, precisa­ mos procurar não apenas a situação da vida da igreja primitiva, mas também a situação na vida do próprio Jesus. O estudo do kerygma (a “coisa prega­ da”) da igreja primitiva é o exame da convicção da igreja primitiva acerca de Jesus. Desta forma, descobre-se uma única e coerente história acerca de Jesus, e ela apresenta um importante subprodu­ to da crítica da forma; isto é, tão remo­ tamente quanto se pode investigar Jesus (a pregação da igreja primitiva), a con­ clusão é de que ele é um Jesus sobre­ natural. A reivindicação da igreja primi­ tiva era de que, em Jesus", Deus se revelou em ação salvadora. Se Deus se revelou na história, é na história que devemos en­ contrá-lo. Se de fato Deus falou redento­ ramente através da vida, morte e ressur­ reição de Jesus, é importantíssimo co­ nhecer, tão exatamente quanto possível, que sorte de vida, morte e ressurreição constituíram o instmmento para isso. Não há escapar desta inquirição, e não há razão para se ficar descoroçoado acer­ ca das suas perspectivas. Adequadamen­ te usada, a crítica da forma é uma ferra­ menta na consecução desse alvo.


IV. Demitização Amos N. Wilder, em seu ensaio “New Testament Hermeneutic Today” (p. 3852 de Current Issues in New Testament Interpretation), nota que toda a obra da vida de R. Butmarm testifica que ele não pretende substituir a fé, ou piedade, pela razão. Em nenhum lugar isso é mais evi­ dente do que em sua abordagem do estudo do Novo Testamento, pelo fato de desmistificar a linguagem dos Evange­ lhos. A palavra “ demitização” foi in­ troduzida por Bultmann, em 1941, em um ensaio sobre o Novo Testamento e a mitologia. Em conseqüência, pratica­ mente tudo o que tem sido escrito acerca desse assunto tem sido em diálogo — tanto apoio como negação — com a sua proposta de que o Novo Testamento seja demitizado. A abordagem de Bultmann sustenta que o Novo Testamento testifica do ato escatològico de Deus na história de Jesus de Nazaré. Todavia, o seu ponto de vista é que esse ato é proclamado no Novo Testamento em termos agora obsoletos, termos derivados das mitologias apoca­ líptica judaica e gnóstica grega. Ele dis­ cute que um ponto de vista obsoleto do mundo é pressuposto no kerygma do Novo Testamento: um universo de três andares (céu, terra, inferno) e a intrusão de espíritos e demônios de outras esferas na terra e nos negócios dos homens. A mitologia do Filho do Homem dos escri­ tos apocalípticos judaicos e a mitologia gnóstica do redentor fornecem os termos usados no Novo Testamento para descre­ ver e interpretar o evento de Cristo. Estes termos, sustenta Bultmann, não são nem inteligíveis nem aceitáveis para o homem científico do século XX, de forma que o relato do Novo Testamento precisa ser purgado das idéias errôneas sugeridas por essa terminologia. Eruditos liberais do século XIX (tais como F. C. Baur e D. F. Strauss) consideravam essa lingua­ gem como mitológica, e resolveram o problema eliminando o próprio kerygma.

Bultmann insiste em reter o kerygma, mas não as idéias sugeridas pela lingua­ gem. Bultmann aceita o que entende ser a pretendida mensagem do Novo Testa­ mento, isto é, .que o evento de Cristo é o ato de Deus em que ele colocou à dispo­ sição do homem o dom de uma nova vida. Bultmann também deseja que o ho­ mem jnodemo, cientificamente orienta­ do aceite isto. Este alvo ele crê que pode ser alcançado interpretando-se a mitolo­ gia. Ele declara que o verdadeiro propó­ sito da linguagem mitológica não é apre­ sentar um quadro objetivo do mundo como ele realmente é, mas expressar a compreensão do homem acerca de si mesmo no mundo em que vive. Ë melhor interpretar a linguagem mitológica em termos da compreensão da vida humana que esta linguagem contém, e expressar essa compreensão de vida em termos não mitológicos. Por exemplo, no relato evan­ gélico em que Jesus acalma a tempes­ tade, o assunto importante não seria se Jesus no primeiro século realmente falou com os ventos e eles obedeceram à sua ordem de parar de soprar. O assunto importante é a capacidade que Jesus tem de acalmar as tempestades da vida que o homem enfrenta em seus encontros exis­ tenciais, no ambiente social de qualquer época. Para evitar os erros dos intérpretes anteriores, que, ao eliminarem a mitolo­ gia, eliminaram a proclamação do ato escatològico de Deus em Cristo, Bult­ mann argumenta que qualquer interpre­ tação correta do Novo Testamento deve ser uma interpretação existencial: que confronte o intérprete com Cristo, exi­ gindo uma resposta. Dois exemplos po­ dem ilustrar esta posição: a cruz e a ressurreição. A cruz precisa ser inter­ pretada como um acontecimento que tem lugar dentro da nossa própria existência, ao invés de sê-lo fora de nós. Para Bult­ mann, o assunto importante não é o Filho de Deus preexistente, encarnado, sem pecado, oferecendo o seu sangue 77


como sacrifício expiador, e assim ven­ cendo os poderes demoníacos. Pelo con­ trário, a coisa importante é a confron­ tação do próprio homem com o mal, e a sua morte para o mal, mediante a sua identificação com Cristo. Isto Bultmann sustenta com referências paulinas, tais como Romanos 6:3 e ss., Gálatas 5:24, 6:14 e Filipenses 3:10. A ressurreição precisa ser interpretada não em termos do retomo do corpo de Jesus à vida e experimentando tal trans­ formação que transcende a morte. A coi­ sa importante é a que aconteceu na vida dos discípulos quando eles chegaram a crer que mesmo na sua morte os poderes do mal não o haviam vencido; só neste sentido pode-se dizer que Jesus “ ressus­ citou” . Bultmann sustenta que, na rea­ lidade, tanto a cruz como a ressurreição representam a mesma coisa: fé no signi­ ficado salvador do ato escatològico de Deus em Jesus. Proclamar tanto a cmz como a ressurreição é proclamar isto. A sua opinião é de que esta abordagem faz mais justiça ao verdadeiro significado do Novo Testamento do que a que aceita a sua linguagem como ela se apresenta. Levada à sua conclusão lógica, esta abordagem leva ao ceticismo histórico. Foi a consideração a este respeito que levou alguns estudantes de Bultmann a observar que seguir a opinião de Bultmarm até o fim é a pessoa acabar desco­ brindo que lhe restou apenas um senhor mitológico.

V. A Nova Busca do Jesus Histó­ rico Visto que a demitização dos EvangeUios, esposada por Bultmann, quando Tevada à sua conclusão extrema, resulta em um divórcio da historia, em favor do encontro existencial, era inevitável que^ uma gietodotogia corretiva se levantasse. Significativamente, essa metodologia corretiva surgiu através dos esforços de alguns dos mais conhecidos estudantes de Bultmann. e da sua convicçâodeque 78

o seu mestre fora longe demais. A opi­ nião deles é de que é importante conhecer algo do “Jesus histórico” que~ está por detrás do “Cristo da té' , prõcTamadõlíõ" ^^rygm ãT e que é possível ter taLconherimentn. F.ste conhecimento eles encon­ tram disponível através dos ensinos e atos do próprio Jesus. Com ênfases diferentes e princípios de ação diferentes, e com diferentes graus de concordância, o novo questionamen­ to inclui, entre os seus muitos defensores, nomes como Bornkamm, Conzelmann, Dinkler, Ebeling, Fuchs, Kasemann e Robinson. A sua obra é uma tentativa para corngir Bultmann "tornar níãís cíãra a transição do Jesus ^ã~E ístona Ço proclamador) para o Cristo da té~(o proclam ado) e faze-io assegurãSido o cõ^ nhecimento mais profundo ~pos^eI do pnmeiro. enquanto Ele se coloca por detrás do segundo. 0 produto final será que os dois são um, visto que o seu método não separa Jesus radicalmente da mensagem dos apóstolos acerca de Jesus; eles pregaram Jesus, e não a respeito de Jesus. Esta abordagem enfatiza o Jesus histórico concreto da fé apostólica. A falta de interesse um tanto genérica do século XX, a respeito do Jesus his­ tórico, tem acontecido devido a dois prin­ cipais fatores: Primeiro, o fracasso do questionamento do século XIX a respeito da busca do Jesus histórico; segundo, ênfases como a de K. Barth, cuja teologia dialética insiste na importância do “ salto de fé” — a espécie de fé que não seria fé se lhe fosse requerido o absoluto da verificação histórica. O questionamento do século XIX, re­ sumido no monumental livro The Quest of the Historical Jesus, de A. Schweitzer, estava condenado ao fracasso desde o princípio, por causa da sua errônea abor­ dagem dos próprios Evangelhos. Seguiuse o ponto de vista padrão da época, de que os Evangelhos eram retratos biográ­ ficos de Jesus, e por isso uma compreen­ são deles devia apresentar o registro com­ pleto de Jesus — o que ele fez e disse. O


método histórico-crítico provou que essa opinião era errônea. Provou que até M ar­ cos — para nâo se falar de Mateus, Lucas e João — era querigmático por natureza. Não era uma biografia de Je­ sus; era uma proclamação de Jesus. E as­ sim também eram os outros. Uma bio­ grafia requer mais do que o conhecimen­ to de cinqüenta dias da vida do biogra­ fado, por parte do biógrafo. A ênfase teológica de Barth era inade­ quada nesta área. Até a abordagem de Bultmaim deixou o caminho aberto para uma “nova busca” . Ela insistia que o kerygma dos apóstolos era realmente ba­ seado em Jesus de Nazaré como uma figura concreta da história, embora fos­ sem poucas as verdadeiras informações históricas a seu respeito, de acordo com a opinião de Bultmann. Esta nova busca originou-se em 1953, quando E. Kasemann, aparecendo dian­ te de um grupo dos seus condiscípulos Bultmannianos, leu um ensaio intitulado “O Problema do Jesus Histórico” , Ele asseverou que podemos conhecer mais e precisamos conhecer mais, a respeito do Jesus histórico, do que Bultmann aceita. Assumindo esta posição, Kâsemann co­ meçou um dos movimentos mais vigoro­ sos do meio do século XX, quanto ao estudo do Novo Testamento. Ele expres­ sou a sua firme crença de que substan­ cial informação a respeito de Jesus está disponível, e que, mediante cuidadosa erudição, ela pode ser isolada do texto total do Novo Testamento. O mais prolifero dos eruditos ameri­ canos engajados nesse movimento é Ja­ mes M. Robinson. O incentivo da rele­ vância da história para com a fé é básico para a sua abordagem. A importância disto, no Novo Testamento, é observável na identificação do Jesus da humilhação (a cruz) com o Cristo da exaltação (a res­ surreição) na proclamação da Igreja. Em outras palavras, para aqueles que pela primeira vez proclamaram o Cristo da fé, esse Cristo não podia ser separado do Jesus da história. A mensagem que eles

proclamaram foi de boas-novas da obra de redenção escatológica de Deus na história. Eles estavam definidamente in­ teressados em um Jesus que era um homem na história, e o confessavam “nascido de mulher, nascido debaixo de lei” (Gál. 4:4). Ele era o Filho de Deus, e através dele os homens podiam tornar-se filhos de Deus. Por que processo estes eruditos che­ garam ao Jesus da história? O processo é duplo. Primeiro, eles peneiram todas as palavras e eventos sinópticos atribuídos a Jesus, a fim de peneirar todos os que eles consideram como tendo sido criados pela igreja proclamadora, ao invés de tê-lo sido por Jesus. Isto deixa apenas as pala­ vras e acontecimentos que eles, pelos seus padrões de julgamento, aceitam co­ mo sendo autenticamente de Jesus. Se­ gundo, com este corpo de palavras e acontecimentos aceitos, eles trabalham para adquirir a sua compreensão (de Jesus), ou para entender como ele com­ preendia o seu papel no propósito reden­ tor do Deus de Israel. Por que critérios esses eruditos isolam o que eles aceitam como autêntico? Pri­ meiro; os materiais que têm paralelos na literatura contemporânea judaica ou ra­ bínica são rejeitados. Segundo: todos os materiais que se relacionam com a si­ tuação “pós-Páscoa” na Igreja, ou no entendimento dela, são rejeitados, embo­ ra pareçam palavras de Jesus. Terceiro: todos os materiais que possuem o “ sa­ bor” de kerygma são rejeitados como criações da Igreja proclamadora. Isto deixa dois tipos de conhecimento a res­ peito do Jesus histórico; o que pode ser conhecido pela sua vida histórica autên­ tica e pelo que ele disse; e o que pode ser conhecido através da pregação refletiva e criativa da Igreja. Os opositores dessa abordagem estão alertas para indicar fraquezas básicas nesses critérios. Por exemplo, considereos na ordem mencionada. Primeiro, Je­ sus era um homem do judaísmo da sua época. Os seus ensinamentos eram rabí79


nicos. Subseqüentemente, será observa­ do que as parábolas, geralmente reco­ nhecidas como a coisa mais próxima das indefiníveis “ipsis literis” de Jesus, são solidamente rabinicas. Mas não parece legítimo rejeitá-las. Segundo, a Igreja “pós-Páscoa” identificou o Cristo exalta­ do com o Jesus humilhado. É disciplina mais sólida procurar a “cor” ou “mol­ dura” transmitidos aos acontecimentos pós-ressurreição, visto que a Igreja os usava para satisfazer às suas necessida­ des de proclamação e adoração, em vez de rejeitá-los totalmente como não autên­ ticos. Terceiro: se as igrejas compreende­ ram que o kerygma básico devia ser identificado com o Jesus da história, a sua proclamação necessariamente inclui­ ria o uso das palavras e atos de Jesus — embora elas transmitissem a essas pala­ vras um tom querigmático mais aplicá­ vel às situações delas do que à em que ele vivera. É na área desses critérios que os eru­ ditos deste grupo demonstram alguma discordância. No entanto, todos os do grupo se atêm ao mesmo alvo básico: descobrir se existe uma continuidade identificável entre o Jesus da história e a proclamação do Cristo da fé, exaltado, feita pela Igreja. Kasemann procura evi­ dências, através da mensagem que Jesus pregava: Quais são as semelhanças e diferenças em comparação com a mensa­ gem proclamada pela Igreja a respeito do Cristo da fé? Fuchs enfatiza a ação de Jesus como mais reveladora da identi­ dade ou continuidade, porque ele enten­ de a ação como alicerce da mensagem. Mesmo a parte mais básica da mensagem de Jesus, as parábolas, é realmente um reflexo da sua ação como redentora por natureza. As duas opiniões são comple­ mentares. Em ambas — a ação e o ensino de Jesus — está implícito um entendi­ mento de Jesus em seu significado reden­ tor. Isto se torna explícito na proclama­ ção da igreja pós-Páscoa. Conzelmann, em busca do mesmo alvo que Fuchs e Kâsemann, começa com as 80

parábolas, que são tão claramente pro­ duto de Jesus que ninguém debate a autenticidade do texto. Ele procura, co­ mo característica, uma unidade intrínse­ ca dos ensinos, em vez de procurar um tema que sirva de elo entre eles. Ele vê grande importância nos ensinos que re­ clamam uma ação decisiva agora. Ele descobre uma cristologia alicerçada na escatologia e na ética dos ensinos de Jesus. O “Jesus de Nazaré” , de Bornkamm, foi um dos primeiros e mais importantes produtos deste movimento. Da maneira como ele entende o problema, os Evange­ lhos tanto permitem como exigem uma busca do Jesus histórico. A Igreja procla­ ma Jesus como Senhor, depois da sua ressurreição, mas o Jesus proclamado é Aquele conhecido como um homem na história, antes da ressurreição. Sem isto, a proclamação seria de um mito sem âncoras na história. Tanto os atos como os ensinos de Jesus são refletidos na proclamação da Igreja, e sublinham a continuidade do Jesus da história e do Cristo da fé. Se existe um a idéia central que serve como o centro do ensino acerca do Jesus histórico e da proclamação da igreja pri­ mitiva, precisa ser o conceito do reino de Deus. Jesus entendia que, devido à sua presença no mundo, o ansiado reino de Deus havia irrompido na história. A sua obra de expulsar demônios indicava a presença do reino de Deus triunfando sobre o reino do mal. Esta era a com­ preensão da igreja primitiva, embora ela esperasse um a consumação futura da­ quele reino. Com a presença de Jesus e o governo de Deus sobre os homens, esta­ belecido pela presença de Jesus, a velha era do mal e a futura era de justiça se sobrepunham, formando um período de transição. O seu sacrifício pessoal', feito uma vez por todas, de fato marcou a “reunião das extremidades das duas eras” (Heb. 9:26, tradução do autor). Como deve ser avaliado o novo ques­ tionamento quanto ao Jesus histórico?


mo “história da salvação” .^ s te é o título Avaliações negativas e positivas estão dis­ da monografia deCÉT C K^st iacerca poníveis. Esquecendo os pontos de vista título alemão da obra d^ adversos quanto a detalhes e concentran­ Cullmann)é Heils ais Geschichte, “salva- ^ _ do-nos na unidade de alvo dos eruditos çao como história” , mas ele p re fe re ^ envolvidos, podemos ver valores positi­ tra d u ç ã o ^ [^ lv a ^ ^ a |lü g J ç ^ ^ e este é o vos. J. B. Cobb faz isso. É importante fifülò na y iç ã ó em inglês OLtermo foi que o estudo coloca Jesus solidamente na - te r esfera de “fé cristã” , em vez de na do (ióST-ÍTSZjT^n^sua^fflnação de que a judaísmo, como têm insistido Bultmann, Klausner e outros. Além disso, a mensa­ »pessoa pode e n t e ^ e ^ ^ i ^ 0S |W s t ^ ^ ^ gem de Jesus é também eficiente como dablblia soi iivmo kerygma, no fato de apresentar ao ho­ ^ ^ ^ e n ç ã o ..trazido á realidade neles, õ s "acontecimentos históricos nIo‘^ o mem a graça redentora de Deus, da mesma forma como o kerygma da igreja / simplesmente narrativas cronológicas, primitiva. Pesando todos os envolvimen­ \ mas, pelo contrário, seguem um princítos, o estudante conclui que o propósito ( pio teleológico: “O propósito redentor de Deus na história.” do kerygma era apresentar uma auto­ Em abordagem relativamente moder­ compreensão de Jesus, e que foi um na do estudo do Novo Testamento, esta assunto definidamente alicerçado na his­ tem-se tomado a idéia organizadora da tória. Por outro lado, um erudito de valor obra de eruditos na Europa, Inglaterra e como R. E. Brown descobre que o resul­ Estados Unidos, tais como Cullmann, tado final é mais negativo, devido à Rust, G. Beasley-Murray, R. H. Fuller, metodologia dos homens que fizeram a W. G. Kümmel, P. Althaus, E. Stauffer, investigação. Ele encara a exegese como A. M. Hunter e O. Piper. Eruditos sobre existencial demais, e necessitada de mais o Velho Testamento que fazem a mesma exegese objetiva ou não-existencial, se­ abordagem são: F. Cross, W. Eichrodt, gundo a ordem de O. Cullmann, J. Jere­ M. Noth, G. von Rad e G. E. Wright. mias e V. Taylor. Ele rejeita a validade A expressão “história da salvação” da eliminação dos ensinos de Jesus, da­ designa um princípio de interpretação queles que tenham o aspecto de querig­ bíblica e um tema teológico como orga­ máticos ou judaicos; a sua rejeição se nizador para a compreensão de todo o efetua pelas mesmas razões expressas alcance das Escrituras judaico-cristãs. acima, quando tratamos dos critérios Afirma que, na história. Deus fez uma usados. Felizmente, ele critica o movi­ revelação progressiva de sua natureza mento por não ter levado a sério o Evan­ como Redentor. A compreensão bíblica gelho de Joâo, que empresta um a percep­ da história é que o Deus da criação se ção positiva e frutífera à natureza da envolveu nos negócios de si’^, criação, e mensagem do Jesus histórico. Esta omis­ que, em uma cadeia específica de aconte­ são de grandes porções dos ensinamentos cimentos nos negócios terrenos, huma­ de Jesus como texto autêntico é uma das nos, Deus preparou a salvação para sua falhas sob as quais esses homens tra­ criação. Esta salvação é redenção da balham, pois esta é uma das áreas em totalidade do pecado. O próprio ceme que os que esposam a abordagem que das Escrituras é a história desse processo vamos tratar a seguir encontram a sua de salvação, passo a passo. Desta forma, maior força. como princípio interpretativo, esta é uma abordagem das Escrituras do ponto de VI. História da Salvação vista de como elas se consideram a si Heilsgeschichte é uma palavra alemã mesmas. A Bíblia apresenta o desdobra­ traduzida literalmente em português comento de passos sucessivos no plano di81


vino para a salvação do homem, do peca­ do, como parte da própria história. Deus está trabalhando nos aconteci­ mentos históricos. Gênesis 1 — 11 mos­ tra o envolvimento do homem no pecado, de forma que ele necessita de salvação. A história da provisão de Deus para está salvação começa em Gênesis 12, quando Deus chama Abraão, e continua quando ele faz ascender os descendentes de Abraão à condição de seu povo, através do Êxodo e subseqüentes acontecimen­ tos, tendo em vista o seu propósito reden­ tor. Através desse povo. Deus iria trazer o seu Redentor-Salvador ao mundo e es­ tabelecer o seu reino, o seu governo espiritual entre os homens. Em Jesus de Nazaré, esse propósito redentor é levado à sua culminação. A sua presença no mundo inaugurou o reino de Deus entre os homens. Pelo sa­ crifício de si mesmo, feito uma vez por todas, ele levou a um glorioso clímax o alcance longo e pleno dos poderosos atos redentores de Deus na história. Os Evan­ gelhos Sinópticos registram que, enquan­ to a vida se esvaía de Jesus na cruz, ele “bradou com grande voz” e entregou o seu espírito ao Pai. O místico João relata que aquele grito foi uma palavra em grego: tetelestai. Em português ela é tra­ duzida por “Está consumado” (João 19: 30). As versões latinas traduziram consununatum est. Tudo o que Deus, ao chamar Abraão, pusera em movimento, para recriar a sua criação perdida, foi trazido a um a gloriosa reaUdade no acontecimento histórico da encarnação, crucificação e ressurreição de Jesus, o Redentor, vindo de Deus. Em Romanos 8:21-23, Paulo conside­ rou este fato como tendo tão longo alcan­ ce que o efeito total do pecado, até no cosmos material, seria ofuscado em rela­ ção à esperada libertação do homem, do pecado, na ressurreição. Em Efésios e Colossenses, Paulo encara toda esta his­ tória da salvação como a administração ordenada de Deus, dirigindo a sua casa de forma a levar outra vez todos os seus 82

componentes, para sempre, a se coloca­ rem sob um só “capitão” , Jesus Crisito. Da mesma forma, como no Velho Testa mento, o acontecimento do Êxodo falou do ato redentor de Deus para o Israel velho, também, no Novo Testamento, o clímax do evento da Páscoa falou do ato redentor de Deus para o novo Israel, o seu novo povo de propósito redentor. Era mais do que simplesmente história. Foi “história da salvação” . Esta é a natureza da Bíblia, uma revelação da “história da salvação” , de Deus.

VII. Parábolas Uma recapitulação das abordagens contemporâneas, no estudo do Novo Tes­ tamento, seria incompleta sem um reco­ nhecimento da atenção que tem sido fo­ calizada especificamente em uma parte do Novo Testamento; as parábolas. Hoje reconhece-se, geralmente, que, neste tipo bem rasteiro de sabedoria oriental, es­ tamos no ponto mais próximo do êxito, na busca das algumas vezes indefiníveis “ipsissima verba” (palavras textuais) de Jesus. Esta é a compreensão expressa por escritores como Denny, Dodd, Hunter, Jeremias, Linnermann, Summers e Via. Toda esta obra é relacionada com obras mais antigas de A. Jülicher (Die Gleichnisreden Jesu, 1880-89) e P. Fiebig (Altjüdische Gleichnisse und die Gleichnisse Jesu, 1904), que libertaram as parábolas da interpretação alegórica paralizante que havia marcado o seu uso durante mil e quinhentos anos. Jülicher e Fiebig apre­ sentaram as parábolas de forma que elas puderam ser vistas em sua verdadeira natureza e propósito, e encaminharam os intérpretes na direção de exegese, expo­ sição e aplicação úteis e essenciais. Dodd limitou o seu estudo quase que completamente a um tipo característico de parábola, as “parábolas do reino” , e limitou a interpretação delas por um con­ trole demasiadamente rígido da sua opi­ nião de escatologia reaUzada. A monu­ mental obra de Jeremias, As Parábolas


de Jesus, tem sido um dos mais prolíferos estudos atuais. Ê, em um só volume, a análise mais completa que já foi escrita, da mensagem de Jesus. O ponto inicial (a grande contribuição de Fiebig) é um reconhecimento dos an­ tecedentes das parábolas de Jesus nos ensinos rabínicos. Embora esta forma es­ teja quase completamente ausente do Velho Testamento (Is. 5:1-7, Juí. 9:7-15 e II Sam. 12:1-7 sâo exemplos de “ quase parábolas” , mas nâo de verdadeiras pa­ rábolas na forma neotestamentária), abunda nos ensinamentos dos rabinos. No Talm ude,. quase todos os conceitos religiosos e éticos sâo ilustrados por pa­ rábolas idênticas na forma das parábolas do Novo Testamento. A força dessas parábolas está na comparação ou “seme­ lhança” que apresentam, e deviam espe­ cificamente clarificar ou ilustrar alguma verdade. Segue-se, portanto, que, seja qual for a solução para a difícil declara­ ção de Jesus em Marcos 4:11,12, é sim­ plesmente absurdo negar que o propósito de Jesus, ao usar as parábolas, era tor­ nar a sua mensagem clara. O próximo passo é uma análise bem minuciosa das parábolas do ponto de vista do propósito da parábola, evidente devido ao seu lugar no Novo Testamento — tanto a localização original quanto o propósito de Jesus e, subseqüentemente, a localização e o propósito do evangelis­ ta, pessoalmente — Mateus, Marcos ou Lucas. As localizações e propósitos, tan­ to originais quanto posteriores (dados pelo evangehsta), podem não ser os mes­ mos. Freqüentemente, o evangelista apresenta uma parábola de Jesus no am­ biente da igreja e aplicando-a à sua época, em lugar da época de Jesus. Isto pode refletir a coloração ou aplicação da parábola em um novo contexto ambien­ tal. Indispensável ao estudo deste tipo de parábola é a técnica relativamente nova, que veio a chamar-se Redaktionsgeschichte, que, em terminologia popular, foi chamado de “história da redação” , tam ­

bém conhecida como “crítica da reda­ ção” . Esta é uma fase da crítica textual, e é endereçada à questão da natureza do texto, como foi recebido pelo escritor (ou editor) do Evangelho, e como foi altera­ do por ele, mediante a sua interpretação pessoal do que havia recebido. Uma aná­ lise excelente da importância desta técni­ ca e suas implicações para o estudo total e compreensão do Novo Testamento é o artigo “Implications of Redaktionsgeschichte for the Textual Criticism of the New Testament” (Journal of the Ameri­ can Academy of Religion, Vol. XXXVI, NS 1, março de 1968), de Harold H. Oliver. Ele contende pela validade do método e sua importância de longo al­ cance para a compreensão do Novo Tes­ tamento. O método continua ao longo da mesma linha da crítica da forma, ao reconhecer a criatividade teológica, tanto no nível da transmissão oral como da transmissão es­ crita. Oliver aponta corretamente para a complicação do problema de desembara­ çar esses vários fios — a perspectiva teológica do erudito envolvido no proces­ so. Aqui, como na crítica da forma, o processo pode tornar-se presa de extremo subjetivismo. Este risco calculado não pode, entretanto, impedir os eruditos do uso da ferramenta valiosa. Um exemplo frutífero desta aborda­ gem relaciona-se cõm o estudo das pará­ bolas de Jesus. Esse estudo indica que essas parábolas constituíam chamados à ação, desafios à reação dos ouvintes. Isto se relaciona com a relevante aplicação das parábolas no sentido de que a pa­ rábola do primeiro século encontra a pessoa do século XX. Nesta área. Via escreve convincentemente a respeito da “interpretação existencial-teológica” das parábolas. Em cada ponto da experiên­ cia contemporânea, o homem, nas pará­ bolas, se defronta com as realidades da sua própria natureza, a natureza do seu ambiente social e a natureza de Deus. Tal confrontação é uma exigência para considerar, para decidir, para agir. 83


Quando a ação exigida é drástica, trans­ formadora de caracteres, diretora de mo­ tivações, emprestando energia à reação em relação à necessidade do homem e à preocupação de Deus, quando isto é ver­ dade, as parábolas estarão realizando, no século XX, aquilo que era o seu propósito no primeiro século.

Conclusão Como foi anteriormente sugerido, as limitações de espaço para este artigo impediram uma consideração detalhada dos materiais joaninos e paulinos. A abordagem contemporânea dos materiais joaninos tem-se ocupado principalmente com as preocupações teológicas, defini­ damente mais típicas aqui do que nos Evangelhos Sinópticos. Embora as opi­ niões variem grandemente, e sejam am­ plamente subjetivas, quanto aos caracte­ res distintivos dos estudos paulinos, a abordagem contemporânea parece ter-se focalizado na Igreja como o corpo con­ fessante e adorador de Cristo. O âmago tanto da confissão quanto da adoração, como é sugerido por Schweitzer, pode ser visto em dois credos pauHnos: Cristo morreu por nossos pecados, se­ gundo as Escrituras, ...foi sepultado, ...foi ressuscitado ao terceiro dia, se­ gundo as Escrituras. ...apareceu... I Coríntios 15:3-5 Aquele que se manifestou em carne foi justificado em espírito, visto dos anjos, pregado entre os gentios, crido no mundo, recebido acima na glória. I Timóteo 3:16 O lugar da confissão coríntia, na es­ trutura da epístola, é importante. Come­ çando com 7:1, Paulo respondeu a uma série de perguntas apresentadas a ele em uma carta procedente da igreja em Co84

rinto. Uma dessas perguntas se relacio­ nava com a resposta cristã para a sobre­ vivência da morte. Ao responder à per­ gunta, Paulo começa com uma declara­ ção compacta do evangelho que ele havia pregado e os corintios haviam aceitado. Essa declaração compacta é este hino confessional. Paulo constrói a sua defesa da ressurreição dos mortos sobre a fé cristã na ressurreição de Jesus Cristo, uma fé confessada no hino. O uso paralelo de “segundo as Escri­ turas” , nas duas linhas longas, fazem mais do que indicar um instrumento judaico para esta confissão. Ela ancora os dois “eventos salvadores” na total his­ tória da redenção sob o comando de Deus. Cristo morreu conforme às Escri­ turas, e ressuscitou conforme às Escritu­ ras. Que os cristãos primitivos criam que a morte de Jesus fora profetizada no Antigo Testamento é claro em toda parte (Evangelhos, Atos, Epístolas, Apocalip­ se). Que a sua ressurreição dentre os mortos foi profetizada no Antigo Testa­ mento é não apenas expresso amplamen­ te, mas claramente expresso no uso que Pedro faz de Salmos 16:11, em seu ser­ mão no Dia do Pentecoste. Em cada caso uma frase preposicional une o “conforme às Escrituras” ao ver­ bo: Cristo morreu por nossos pecados conforme às Escrituras. Ele ressuscitou no terceiro dia, conforme às Escrituras. “Por nossos pecados” é importante, por­ que relaciona a morte de Cristo com a obra de Deus de recriação (redenção). “No terceiro dia” deve ser iguahnente importante como parte da confissão de que esta “recriação” de Deus foi com­ pletada no primeiro dia da semana (dia de adoração cristã, ao tempo em que essa carta foi escrita), da mesma forma como a sua obra da “criação” havia sido ter­ minada no sexto dia da semana, ’dia de adoração judaica. A frase é uma apolo­ gética para o dia cristão de adoração, quando, em solene assembléia, os crentes confessam, através dos seus hinos, a sua fé em Jesus Cristo.


A essência da fé cristã em Jesus Cris­ to também foi insinuada no hino confes­ sional de I Timóteo. Os dois hinos di­ ferem em conceito e estrutura, mas concordam na centralidade de Jesus, adorado como o Cristo. No hino de Ti­ móteo não há referência específica à morte de Jesus, à ressurreição de Jesus, ao embasamento nas Escrituras, aos seus aparecimentos aos homens. Não obstante, um crente confesso não pode 1er (ou cantar) esse hino sem sentir que todas estas características da confissão coríntia fazem parte do padrão de pen­ samento do hino de Timóteo. Este é um hino da encarnação. Considerando-se sua estrutura, ele tem seis linhas, arranjadas em três grupos de dois versos: O fato da encarnação: Ele foi manifesto em carne, Foi justificado em espírito. A manifestação da encarnação: Ele foi visto dos anjos (pelos anjos), Foi pregado entre os gentios. O resultado da encarnação: Ele foi crido no mundo, Foi recebido acima na glória. A confissão começa com a invasão do mundo terreno pelo Cristo encarnado; e termina com a sua volta triunfante ao céu. O céu triunfa sobre a terra na redentora encarnação de Cristo, operada por Deus. Estas confissões, em forma de credo, se focalizam em um fato supremamente importante, urgentemente significativo

para os cristãos do século XX: desde o começo da Igreja, tem havido apenas um centro na fé do Novo Testamento. Esse centro é Jesus Cristo, em virtude da sua encarnação redentora, confessado e ado­ rado como Senhor da terra e dos céus.

Leitura Suplementar BORNKAMM, G. Jesus of Nazareth. New York: Harper & Row', 1956. BULTMANN, R. Jesus and the Word. New York: (Charles Scribner’s Sons, 1934. CULLMANN, O. Salvation in History. London: SCM Press, 1967. DIBELIUS, M. From Tradition to Gos­ pel. New York: Charles Scribner’s Sons, 1935. FUNK, R. W. Language, Hermeneutic, and Word of God. New York: Harper & Row, 1966. JEREMIAS, J. The Parables of Jesus. New York: Charles Scribner’s Sons, 1953. NEILL, STEPHEN. The Interpretation of the New Testament, 1861-1961. New York: Oxford University Press, 1966. ROBINSON, J. M. A New Quest of the Historical Jesus. Naperville, III.: A. R. Allenson, Inc. 1959. RUST, E. C. Salvation History. Rich­ mond: John Knox Press, 1962. SUMMERS, RAY. The Secret Sayings of the Living Jesus. Waco: Word Pu­ blishers, 1968.

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Escala em Milhas

A PALESTINA NO TEMPO DO NOVO TESTAMENTO


Mateus FRANK STAGG ^ue J ^ u s é^ p Cristo da|_e^ectativas veteròtestamentárias, e o criador j e u O Evangelho de Mateus é. provavel­ 'd r indestru mente, n ^ íh ^ r e n ^ d i d o cÕmS^õ-tivrò’ Esta igreja h ä b ^ '^ ^ s t a nnem como ,um ”^n O T__ ^ s ^ I ”^ m c o m o 1 verdadeiro Scrito para uma igreja iudaico-eentilica. I^ a é l^ m a T c õ m y o p ^ p ^ D e u s , consãTguiis anos depois da primeira guerra Íüdáico-rótnãnãX6b-70 d.C.). Jerusalém e tiSMS^dgludem e^gentíosTflareT?. iT0)7’ seu Templo haviam sido destruídos, e a 'Mateus considerou a des&iição de Jeru­ ruptura entre o judaísmo e o cristianismo salém como julgamento sobre Israel, por ter rejeitado Jesus como o Cristo. Ele estava quase completa. O que inicialmen­ te havia sido uma igreja totalmente ju ­ considerava Jesus como o cumprimento da Lei, tanto como seu intérprete quanto daica, agora estava-se tornando cada vez mais gentia. A igreja para que Mateus como Alguém que realmente viveu à altu­ escrevera estava séhdo ãméãcãd^TfTrriãTgr ra das intenções da Lei. A relevância de Mateus precisa apenas ^ s suas origens ju d ajçaSj j elo legalismp ^ S s a ic o, e, do seu^ lado gèrifíiico. pelo ser encontrada, e não forçada. Como antinomianismo”óu Übertin^smpj(a^_opF" pode a pessoa ficar liberta das regras e ■Blãb de qüe etiTCristo áX e fn lo ^ é mais regulamentos exteriores, e ainda ser mo­ compulsória). ralmente reta e eticamente responsável? -3 «. ^ Como pode a pessoa escapar ao legalis­ O legalismo e o antinomianismo opos­ mo, por um lado, e à licenciosidade, de tos por Mateus não precisam ser enten­ didos como os dos judaizantes e antino- ^ outro? Como pode a pessoa conhecer a salvação como a dádiva de Deus, e ao mianistas da época de Paulo, mas como os mesmo tempo conhecer as suas exigências podem emergir najeli^ãO deS^ttâl" í que / absolutas? Como pode a religião ser mo­ s quer “época, vicejando nas disposições ral e eticamente sensível sem se tornar um nõrinãifda^fiumanidade, com ou sem um sistema endurecido de faça e não faça, um grupo promocional. ^ código legal “sob o qual o coração de­ Lutando em duas frentes, Mateus in­ sobediente imagina que está tudo bem” dica um caminho que foge, por um lado, (Bornkamm, p. 25), ou uma religião ao orgulho, superficialidade e irrelevân­ indulgente, que deixa a pessoa chafurda­ cia do legalismo, e, de outro, ao colapso da em fracasso moral e ético? Mateus nos moral e irresponsabilidade ética da hceniodica não regras, mas a regra de_Deus. ça que se mascara de liberdade. i Ele revela a ju s tiç a que excedie"'à"^s Mateus desejava principalmente conescribasefariseus(5:20), sem demonstrar vencer õ^êüsneitorès òu reafirmar-lhes justiça própria. Mostra como a salvação é oferecida com misericórdia aos pecado­ res, sem desculpar o pecado. Apresenta 1 P ara variações desta opinião, veja Bacon, p. 348 et pas­ sim; Bornkam m , et al., p, 15 e s., 94 e s., 158 e s., Jesus Cristo como Senhor e Salvador, 162 e ss., et passim; Davies; Hum m el; e H ans Wincomo que oferecendo um jugo que é tanto disch. The Meaning of the Sermon on the Mount pesado como leve (11:28-30). (Leipzig, 1929).

Introdução

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I. Situação Ambiental e Propósito

sim declarou puros todos os alimentos” (Mar. 7:19; Mat. 15:17). Na década após a Primeira Guerra JuOs debates com o farisaísmo dão a daico-Romana, a igreja à qual Mateus entender um relacionamento contínuo, escreveu ficou algures entre a sua origem embora restringido. Mateus afirma a vali­ judaica e o que mais tarde se tomou uma dade contínua da Lei, tão importante igreja totalmente gentílica. Essa igreja para os fariseus. O que o aparta deles é a ainda não estava preparada para admitir sua declaração de que em Cristo se encon­ a sua separação do judaísmo, embora tra uma melhor compreensão da Lei (5 possa ser que o judaísmo a tivesse repu­ 21-48; 9:13; 12:3,5,7; 15:3-14; 16:6,11) diado. Pelo menos, a igreja de Mateus e o seu verdadeiro cumprimento, em con ainda estava interagihdo^TOTõjudaísm õ traste com o mau entendimento e uso er (cf. 17:24-27; 23:1-12; 24:9). O cristianis­ rado da Lei por parte dos fariseus (9:4 mo estava rapidamente se tornando me­ 15:12-14; 22:18; 23:2). Mateus vê Jesus nos judaico e mais gentílico. Os como cumprindo a Lei, mas descobrindo Judeus precisavam compreender o signifi­ a sua verdadeira intenção, dando a ela cado da Lei e do Templo (agora em obediência plena, expressa por fim no fu ín ã s Ip iT ã ir mesmos, tanto quanto o amor, que se dá em serviço sacrificial. seu relacionamento com os convertidos _ A Lei é usada de várias formas no gentios. Os c ri^ â ro g ^ tio s precisavam judaísmo, no Novo Testamento, e neste èrítlnaêr a nSureza dâ liberdade em Comentário. No Novo Testamento, ela respeito à lei de Deus. Ambos os grupos geralmente significa a lei de Deus, reve­ precisavam compreender a relação do lada no Velho Testamento. No Velho cristianismo com o judaísmo. Testamento, a palavra “lei” é tradução de torah, bem como de outras palavras 1. Distância e Interação hebraicas. Torah significa instrução ou O Evangelho de Mateus reflete tanto direção, e não apenas lei no sentido res­ distância quanto interação entre a sina­ trito de mandamentos ou regras. Toda a goga e a igreja. Mateus conhece as sina­ história dos tratamentos de Deus para gogas como sinagogas do judaísmo fari­ com a humanidade é realmente Torah. saico (4:23; 9:35; 10:17; 12:9; 13:54; Mas torah, traduzida nomos (lei) na 23:34). Exceto em 4:23, cada ocorrência LXX, passou a designar o Pentateuco em do termo “sinagoga deles” é redacional, é particular, embora ainda pudesse referirobra editorial de Mateus. Marcos conhe­ se a todo o Velho Testamento, ou, em um ce a expressão (1:23,39), mas Mateus sentido mais amplo, a toda a revelação de enfatiza. Onde ele não fala da “sinagoga Deus, escrita e oral. Mateus se refere à deles” , retrata-os como sinagogas de hi“lei” oito vezes, designando a lei do Velho pócratas ou famintos de posição (6:2,5; Testamento. Em 5:17 e 11:13, “a lei e os 23:6). Só o livro de Apocalipse vai mais profetas” se refere ao Velho Testamento, além, referindo-se à “sinagoga de Sata­ com menção especial às duas divisões nás” (2:9; 3:9). mais antigas, sendo designado como Lei o Embora a igreja de Mateus, provavel­ Pentateuco. mente, não adorava mais nas sinagogas, 2. A Luta com o Judaísmo ele parece evitar o que parece cortaria completamente as relações da igreja com A Guerra Judaico-Romana fora trau­ o judaísmo. Ele reconhece, pelo menos mática e de efeitos duradouros, com con­ em princípio, a autoridade dos escribas seqüências tanto para o judaísmo como (23:2), e omite a citação que Marcos faz para o cristianismo. Com o Templo des­ da “ tradição dos homens” (Mar. 7:8; truído, os seus elaborados sacrifícios cul­ Mat. 15:8-11) e a frase de Marcos: “As­ tuais e rituais cessaram. Os outrora 90


poderosos saduceus, cujos interesses, por 3. A Questão Gentílica direito, haviam estado no Templo e no Sendo juckus, os p r im e is cristãos Sinédrio, desapareceram de cena. Os es­ adoraram por algumas décadas n ãs^i^ sênios haviam perdido o seu centro em nagogas é hõ Templo. Aléih dás^evidênQumran, destruído pela Décima Legião cias èncõhtfãdãs "através do Novo Testa­ Romana em 68 d.C. Os essênios eram um mento, há a história atribuída por Eusé­ grupo sacerdotal que se havia retirado do bio (Hist., II, 23) a Hegésipo (cristão ju ­ Templo como protesto duplo: contra os deu do fim do segundo século, na Pales­ corruptos sacerdotes saduceus, e contra t i n a ^ com a finalidade de dizer que os fariseus, grupo leigo, que tomara pos­ ^'l iago^era grandemente respeitado pelos se, em grande parte, da interpretação da judeus em Jem^além, e que esfSvã^SnãP” Lei, que era anteriormente uma função inen^hõTtém pIo, Tãfé p tempo fftnimíe sacerdotal. ^01 maijirizado, martírio esse atribuído, Os zelotes, fogosos ativistas “da direi­ por H ê^sipo, aos temores dos escribas e ta” , cujo zelo era pela libertação de sua fariseus de que Tiago fosse influenciar nação do domínio romano, haviam sido todo o povo a seguir a Jesus. esmagados em guerra que haviam preci­ Tensões surgiram, não apenas porque pitado, onde encontraram total insuces­ alguns estavam seguindo a Jesus como o so. Os fariseus permaneciam os líderes Cristo enquanto outros não o faziam, mas sem rival do judaísmo. Com escolas em principalmente porque homens como Fi­ Jâmnia e BabUônia, eles determinaram lipe, Estêvão, Paulo e, até certo ponto, reconstruir a nação ao redor da Lei de Pedro contendiam pelo reconhecimento Moisés, codificando e expandindo a tra­ dos convertidos gentios, até na comunhão dição oral, chegando ao que, por volta de à mesa (cf. At; GáL 2; Ef. 2:11 - 3:13). 220 d.C. se tornou a Mishnah (segunda Não foi a cristologia como tal, que dividiu lei), baseada na Torah. a sinagoga e a igreja, pois os judeus Por volta de 85 d.C., uma maldição tinham muitos desentendimentos sobre a contra apóstatas, provavelmente cristãos sua compreensão das funções e identi­ e outros, foi adicionada — ou ampliada dade do Messias. O que levou à divisão foi de uma forma anterior — às Dezoito bênçãos, oração diária da sinagoga. A a inclusão de gentios incircuncisos na igreja, especialmente na comunhão à décima segunda bênção é, na verdade, mesa.” ^ uma maldição, possivelmente incluída A Guerra Judaico-Romana aparente­ para excluir os cristãos judeus das sina­ mente foi a crise que levou as tensões a um gogas. De acordo com uma forma desco­ ponto insuportáveL Uma guerra de li­ berta em uma Genizah do Cairo, ela diz: bertação nacional e um evangelho em que “Para os perseguidores não haja esperan­ nâo há “judeu nem grego” eram incom­ ça, e que, o domínio da arrogância, tu patíveis. O judaísmo se tomou mais na­ depressa desarraigues em nossos dias; cionalista e centralizado na Lei, com uma que os nazoreanos (cristãos?) e minim fechada (VT) e uma Mishnah Torah pereçam em um momento, que eles sejam crescente (segunda lei). A igreja cristã apagados do livro dos vivos e que não avançou mais profundamente no mundo sejam anotados juntamente com os re­ gentio. tos.” ^ Os pontos de tensão entre os cristãos e A inclusão desta bênção nas orações não-cristãos são perceptíveis dentro do das sinagogas fez com que se tomasse Novo Testamento. Muitos cristãos ques­ impossível os cristãos continuarem oran­ do nelas. 2 Tradução e texto hebraico em Davies, p. 265.

3 F rank Stagg, The Book of Acts, the Early Struggle for an Unhindered Gospel {Nashville: Broadm an, 1955), p. 1-18 et passim.

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tionavam os símbolos centrais da soli­ dariedade nacional judaica: a Torah, o Templo, a cidade santa, os rituais de purificação, as leis acerca dos alimentos, o sábado (sabbath) e a circuncisão (Hare, p. 3 e s. et passim). Nisto eles seguiram, em princípio, uma direção tomada por Jesus. Vistos da perspectiva judaica, os “limites de tolerância” haviam-se excedi­ do; e, especialmente durante e após a Guerra Judaico-Romana, eles recorreram à censura pública, ao ostracismo social e, algumas vezes, à violência física contra os judeus cristãos.

dada a Jesus “ toda a autoridade no céu e na terra” (28:18); todas as nações deve­ riam ser trazidas sob a sua disciplina (28:19); dever-lhes-ia ser ensinada obe­ diência, com a certeza de que Cristo esta­ ria com elas (Emmanuel, “Deus conos­ co!” 1:23) “ até a consumação dos sé­ culos” (28:20). Desta forma, em um rei­ nado universal e eterno, exercido em justiça, as alianças com Abraão e Davi foram cumpridas. Mateus queria que os judeus olhassem para Jesus, e não para Jâmnia, esperando o cumprimento das esperanças de Israel.

4. Cumprimento

5. Duas Frentes

Um dos principais propósitos de M a­ teus era argumentar que o verdadeiro judaísmo tinha o seu cumprimento em Cristo, e não no judaísmo farisaico cen­ tralizado em Jâmnia. Jesus Cristo é apre­ sentado como “filho de Davi, filho de Abraão” (1:1), e Mateus mostra como as alianças com Abraão e Davi se cumpri­ ram em Jesus. A genealogia e nascimento e narrativas da infância de Jesus (1 — 2) são construídas de tal forma a mostrar que Jesus é Filho de Davi, mas também Filho de Deus, em Quem as alianças com Abraão e Davi são cumpridas."* Fora prometido a Abraão que todas as nações da terra seriam abençoadas nele (Gên. 12:2es.; 18:18); e dele fora dito que Deus o conhecia “a fim de que ele ordene, a seus filhos e à sua casa depois dele, para que guardem o caminho do Senhor, para praticarem retidão e justiça” (Gên. 18: 19). Portanto, universalismo, justiça e retidão marcaram a aliança com Abraão. Mateus, consentaneamente, mostra que Jesus veio para estabelecer um reino que deve incluir todas as nações debaixo de um domínio de retidão e justiça (28:1820). A Davi fora prometido que o seu trono seria estabelecido para sempre (II Sam. 7:16). Como Filho de Davi (1:1), fora

Mateus parece ter estado a lutar em duas frentes principais, achando necessá­ rio opor-se ao legalismo farisaico em Jâm­ nia e à ameaça do libertinismo antinomiano dentro da igreja. A oposição aos fariseus está patente e constantemen­ te diante do leitor. Menos óbvia, mas suficientemente clara, é a outra frente. Entre os Evangelhos, apenas Mateus (7: 23; 13:41; 23:28; 24:12) emprega a pala­ vra iniqüidade (anomia), refletindo a sua preocupação em resistir ao libertinismo antinomiano. Consentaneamente, para a pessoa en­ trar no reino de Deus, a sua justiça precisa exceder a dos escribas e fariseus (5:20). Nem uma pequena parte da Lei ou dos Profetas ficará perdida (5:18,19). De fato, Jesus veio não para destruir, mas para cumprir a Lei e os Profetas (5:17). As demandas de Cristo são as mais elevadas possíveis, requerendo nãó apenas que a conduta exterior seja apropriada, mas que o homem interior seja limpo e puro, livre do ódio, da concupiscência ou am­ bição (5:21-42). Além disso, a pessoa precisa ser tão cheia de amor, que ame até os seus inimigos (5:43-47). O reino de Deus é tão exigente que a pessoa precisa ser perfeita como é perfeito o Pai Celestial(5:48). Uma chave para o Evangelho pode ser achada no convite que Jesus faz para os cansados se colocarem debaixo do seu

4 Helen M ilton, “ The Structured of the Prologue to St. M attew ’s G ospel” , lournal of Biblical Literature, 81:175-181 (ju n h o d e 1962).

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jugo (11:28-30). É um jugo, pois existe uma reivindicação. Não obstante, o jugo é feito suave, porque a reivindicação está baseada em amor e misericórdia. Salva­ ção não é indulgência nem legalismo. A ética radical de Jesus, resumida no Ser­ mão da Montanha, é expressa no relato dos atos misericordiosos de Deus; e a exi­ gência radical é feita aos pecadores que diariamente precisam perdoar e pedir perdão, ser misericordiosos e receber misericórdia(5:5,6,7,10; 6:12,14 e s.; 7:11). Uma delas é viver na tensão do dom e da exigência de Deus. Deus faz uma exigên­ cia absoluta e final aos seus filhos (5:48; 28:20), porém a salvação é um dom que pode tão-somente ser recebido. Ela per­ tence aos pobres de espírito, àqueles que choram, aos mansos, aos que têm fome e sede de justiça, e àqueles que buscam o perdão(5:3-7; 6:12). O legalista procura alcançar um pa­ drão que Deus precise aceitar, geralmente consistindo de observâncias externas, que podem ser demonstradas, medidas e anunciadas. O libertino antinomiano en­ fatiza a salvação como o dom da graça de Deus, e argumenta que está livre da lei. Isto pode resultar na desvalorização dos padrões morais e éticos. Mateus se opõe a ambos. Mateus fez constante apelo às Escritu­ ras Judaicas, mostrando, no Velho Testa­ mento (cf. Miq. 6:8; Prov. 14:22; Os. 6:6), que Deus requer justiça, misericórAa, fé e fidelidade (23'23). Ele mostra que a essência da Lei é o amor, dirigido para Deus e para o homem, e expresso principalmente em servir o próximo nas coisas corriqueiras da vida, como quan­ do há fome, sede, doença ou sohdão (25:31-46). ê. Dádiva e Exigência Mateus confrontou os seus leitores com nm evangelho tanto de dádiva como de demanda, p reino (governo soberano) do céu requer uma jusüça que vá além da dos escribas e fariseus (5:20). O discípulo deve ter fome e sede de justiça (5:6). Ele

deve fazer da justiça no reino do céu a sua primeira preocupação (6:33). Por sua justiça, o povo de Deus, tanto na antiga quanto na nova aliança, deve ser reco­ nhecido (10:41; 23:34 e ss.) O juízo, no fim do mundo, será devido ao fato de ter sido ou não cumprida a vontade de Deus (7:24:27; 24:37 e ss.; 42 e ss.; 25:1 e ss., 14 e ss.). A prática, e não apenas o estudo da Lei, é o requisito de Deus (23:3,5,23 e ss., 28). Embora o “cum­ prir” exteriormente possa ser superficial e hipócrita (7:21-23), Mateus não hesita em enfatizar a importância de se fazer a vontade de Deus (7:21; 23:3). A justiça é um alvo a ser cumprido (3:15; 5:18). O Evangelho se encerra dando ênfase a se “observar” ou “guardar” tudo o que Cristo havia ordenado (28:20). O padrão é nada menos do que a per­ feição que pertence ao Pai celeste (5:48). Mateus não dá nenhuma indicação de que este padrão deva ser explicado ou diluído. A exigência de Deus é absoluta e final: “ Sede perfeitos.” Ao mesmo tem­ po, é declarado que a perfeição é encon­ trada apenas em Deus (19:17). Embora perfeita justiça seja o alvo dos discípulos desde o princípio, ela se realizará apenas por ocasião da vinda do Filho do homem (13:43). A salvação também é uma dádiva. Através de Mateus, o homem é visto como pecador, que diariamente requer perdão. Misericórdia e perdão perten­ cem, necessariamente, à vida dentro da igreja (5:7; 6:12,14,15; 18:15-17, 21-35). Os filhos do reino não podem escapar a esta tensão de viverem entre a dádiva e a exigência, a salvação como dádiva gra­ tuita, que nunca pode ser merecida ou adquirida por seus próprios meios, mas somente recebida, e ao mesmo tempo a exigência absoluta de Deus, que jamais é satisfeita. Estranho ao verdadeiro filho do reino é o orgulho do legalista de que o conseguiu, também o fácil escapismo do antinomiano, no pensamento errôneo de que a misericórdia, o perdão e o amor de Deus se exercem sem exigências. 93


Porém Mateus também mostra que as exigências de Deus são expressas em amor e misericórdia. Da mesma forma como ele libertara misericordiosamente os escravos do Egito, milagre que ocorreu imediatamente antes das exigências sole­ nes feitas no Monte Sinai, assim tam ­ bém as pesadas exigências do Sermão da Montanha são precedidas das boas-noas de que Jesus é Emanuel, Deus conosco (1:23), e que ele veio “pregando o evan­ gelho do reino, e curando todas as doen­ ças e enfermidades entre o povo” (4: 23). Deus sempre dá antes de exigir, e dá o que exige. A justiça que excede a dos escribas e fariseus é verdadeira justiça, mas do começo ao fim é a própria obra criativa de Deus no homem, e não a obra do homem oferecida a Deus. Em Jesus Cristo, Deus oferece um novo “ status” para os pecadores que nunca o merece­ ram, aceitando-os antes que eles mere­ cessem aceitação; mas, em Jesus Cristo, ele também está fazendo o homem de novo. Salvação é libertação, limpeza, cura, renovação, justiça e paz. Ela é saúde, e não meramente um certificado de saúde. Hans Conzelmann,.em uma discussão acerca das exigências de Deus, observa irrefutavelmente que, nas pesadas exi­ gências para que amemos e sejamos per­ feitos, Jesus pressupõe “ que, pelo fato de tomar conhecidas as suas exigências. Deus toma possível o seu cumprimento” , pois “Aquele que ordena é ao mesmo tempo Aquele que se preocupa e o que perdoa” . Ele observa, ulteriormente, que “realização moral não leva o homem a um relacionamento com Deus, mas o relacionamento com Deus é dádiva do próprio Deus, e pela primeira vez abre a possibilidade de um procedimento de moral elevada.” ^

reduzido a uma anáhse segundo apenas um fator. Foi um livro eclesiástico, apa­ rentemente destinado a satisfazer muitas necessidades: evangeUsmo, missões, apo­ logia, ensino, disciplina e adoração. ® Os melhoramentos estilísticos em relação a Marcos — histórias e discursos autoinclusos, arranjos tópicos e outros fatores — sugerem que um especial cuidado foi dado à produção de um livro apropriado para a leitura pública. Adoração e ensino devem ter sido as duas preocupações do­ minantes. Até o Sermão da Montanha é colocado em um a situação didática, e é apropriado para adoração e instmção. Indubitavelmente, o objetivo básico de Mateus é o mesmo comum a todos os Evangelhos: retratar Jesus Cristo — quem é ele, porque veio, o que exige e o que oferece.

II. Estrutura e Plano

O Evangelho de Mateus é demasiada­ mente rico em seus materiais para ser

É mais fácil reconhecer as divisões principais do Evangelho de Mateus do que o seu deliberado plano ou desígnio. O problema é ver até que ponto as fontes deram forma ao Evangelho, e até que ponto o autor conscientemente e delibe­ radamente o moldou. Visto que um pro­ jeto deliberado reflete algo do objetivo, o fato de se detectar um projeto pretendido abriria o Evangelho para uma melhor compreensão. Todos reconhecem que há cinco dis­ cursos principais em Mateus: (1) O Ser­ mão da Montanha (5 — 7); (2) o apos­ tolado (10); (3) parábolas do reino (13); (4) disciplina eclesiástica; (18); e (5) as últimas coisas (24 e 25). Cada discurso é seguido por uma declaração sumária de fraseado quase uniforme: “Tendo Jesus concluído estas palavras...” (7:28; 11:1; 13:53; 19:1; 26:1). O projeto artístico, como na genealo­ gia, no Sermão da Montanha, e nas parábolas do capítulo 13, encoraja o leitor a i

5 G rundriss der Theologie des Neuen Testam ents (M ü n ­ chen: Kaiser, 1967), p. 137 e 141.

6 Veja tanto K ilpatrick como Stendahl, p a ra menções , acerca d a origem e objetivos.

7. Muitas Preocupações

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procurar um cuidadoso plano para todo Jesus como outorgador de uma nova lei, o livro, comparável ao tão óbvio nas uni­ pois, para ele, Jesus interpreta e cumpre dades menores. Em 1930, Bacon (p. 225- a Lei (Bornkamm, p. 35 e 64). Mateus 335, et passim), reconhecendo débito U- está interessado com a continuidade, terário a F. Godet, argumentou que Ma­ tanto quanto com o cumprimento. Jesus teus desenvolveu um esquema deliberado cumpre as alianças com Israel, bem co­ de cinco livros, um novo Pentateuco, com mo a Lei (5:17-20). Mateus apresenta narrativa e discurso em cada livro: (1) Jesus tanto respeitando como estendendo discipulado (3 — 7); (2) apostolado (8 — aLei(5:17 e ss.; 8:4; 19:17-19; 23:2 e ss.; 10); (3) o encobrimento da revelação (11 24:20; 26:18). Em Mateus, Jesus não se — 13); (4) administração eclesiástica (14 opôs à ênfase farisaica sobre a Lei, mas — 18) e (5) o juízo (19 — 25), chamando ao fracasso deles, tanto em penetrar nas os capítulos 1 e 2 de preâmbulo e os profundezas das suas intenções quanto capítulos 26 a 28 de epílogo. em praticá-la (23:3). Embora a tese de Bacon, de que M a­ Uma outra forma de encarar a estru­ teus era um neolegalista, deve ser rejei­ tura de Mateus caracterizou a geografia e tada, a sua percepção penetrante ainda . a cronologia, dividindo o ministério de não foi levada a sério. Há reconhecíveis Jesus em preparação para o ministério porções de material, e um projeto pode (ou primórdios na Judéia), ministério ga­ ■er visto dentro dessas porções, como nos lileu, afastamento da Galiléia, jornada a ■ove ou dez milagres dos capítulos 8 e 9; Jerusalém, e ministério em Jerusalém. mas o que fica sem demonstração é que Esta abordagem tem alguma validade, ■m tema ou projeto unifique cada bloco pelo fato de o arranjo cronológico e geo­ de material de narrativa e o relacione gráfico de Marcos ser em grande parte assumido por Mateus. Além do mais, os eran o discurso que se segue. Os capíEvangelhos não são biografias, apresen­ M os 1 e 2 são importantes demais para acrem designados como “Preâmbulo” , e tando a vida de Jesus em sua seqüência «E capítulos 26 a 28 de forma alguma cronológica, embora obviamente haja al­ I»dem ser reduzidos à simples condição guma aderência à seqüência (nascimen­ de “Epílogo” . Se algo deve ser consideto, infância, batismo, ministério público, n d o epílogo, não pode começar antes de morte, ressurreição, aparecimentos). 26:16, mas até isto é inadmissível (Wal­ ker, p. 146). Embora quatro discursos principais e III. Temas Principais Hocos de material de narrativa sejam ób1. A Pessoa de Jesus Cristo «os, não é indicado que Mateus pretenInquestionavelmente, Jesus é o assunto d&a criar um novo Pentateuco. Mateus se opunha ao legalismo farisaico, mas não dominante através de todo o Evangelho era um neolegalista. Ele considerava a de Mateus. Nenhum discurso, aconteci­ iptija como o verdadeiro povo de Deus, e mento ou pessoa tem interesse para M a­ Jésus como seu fundador, mas não apre­ teus, exceto se relacionado com Jesus, sentou Jesus como um “novo Moisés” , pessoa única, que dá unidade e signifi­ que tenha dado uma “nova lei” . Ele cado ao Evangelho. traçou alguns paralelos entre Moisés e A primeira preocupação de Mateus é Jesus, quer conscientemente, quer não; apresentar Jesus nos termos de suã~õrimas nunca apresenta Jesus como “filho gem, identidade, ' missão, autoridade, de Moisés” . Ele o introduz, sim, como dons, exigências, atos e ensinamentos “filho de Davi, füho de Abraão” (1:1). humanos e divinos. Títulos significativos “Nova lei” não é palavra que interesse são empregados: Filho de Davi, SenhõF a Mateus. Ele não vê, nem poderia ver. de Davi, Rei dos Judeus, Emanuel, Filho 95


de Deus, Servo de Deus, Filho do Ho­ mem, Senhor e Cristo; mas Jesus é apre­ sentado especialmente através de sua maneira de agir, seus atos, suas palavras e da reação de outras pessoas para com ele. Mateus nâo levanta questões espe­ culativas acerca da natureza de Cristo. Ele, pelo contrário, prefere apresentar Jesus em termos de sua função: cumprin­ do a Lei, revelando o Pai, salvando os homens dos seus pecados, criando a Igre­ ja, vencendo os demônios, a doença e a morte. Mateus mostra Jesus como humano e divino. Ele era um verdadeiro homem: nascido de um a VirR&m~1TTI03). füho de Abraão e de Davi (1:1): tentado (4:111; 16:23), negando saber a época da Parousia (24:36); orou (26:39); sentiu-se abandonado (27:46). Ele também foi di­ vino. Foi gerado pelo Espírito Santo (1: 18,20). O seu nome Jesus significa “Yahw^eh (Senhor) é salvação” (1:21). Ele foi também chamado Emanuel, “Deus co­ nosco” (1:23). Foi adorado como Deus (2:2,11; 28:9). Mateus conheceu Jesus como o Libertador escatològico do Fim dos tempos, a quem fora dada a autori­ dade de Deus (7:29; 8:9; 9:6; 21:23-27; 24:30; 26:64; 28:18). Mateus está interessado tanto nq J e ^ s de Nazaré, terreno, como no Senhor res^ ^ H c it^ S lZ) Jesus terreno não pode ser compreendido sem o Senhor ressuscita­ do, e, da mesma forma, o evento da Páscoa, ou o Senhor ressuscitado, não pode ser entendido sem o Jesus terreno. ^ Mateus nada sabe de um Jesus mera­ mente humano ou de um Cristo “docé­ tico” , para quem é indiferente uma ver­ dadeira existência terrena. Ele escreve de alguém cuja vida humana, terrena, foi tão real, que conheceu fome, sede, can­ saço e tentação; e escreve também da­ quele que, já nesta terrena existência, fez reivindicações para" si mesmo, fez exi­ gências para outros, e andou entre os 7 Cf. E rjist K âsem ann, Essays on New Testament The­ mes (London; SCM, 1964), p. 25.

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homens de maneira adequada apenas a | alguém que fosse divino e que d e sta ' forma entendesse a si mesmo. Os títulos não expressam com todas as cores o retrato que Mateus pinta de Jesus, mas são importantes. Jesus é cha­ mado de “Mestre” e ocasionalmente usou esse termo acerca de si mesmo (10:24 e ss.; 23:8; 26:18), mas é apre­ sentado como mestre mesmo quando o termo não é empregado. Mateus não se agrada do termo “rabi” , todavia. Os dis­ dpulos de Jesus devem evitar esse termo (23:7 e ss.), e apenas Judas o usa em relação a Jesus (26:25,49). Como profeta (10:41; 13:57; 16:14; 21:11,46) e como mestre, Jesus falou com a autoridade de Deus. Possivelmente Ma­ teus o considerava como o profeta de Deuteronômio 18:15,18. Mestre e profe­ ta não são prerrogativas que estabeleçam Jesus como divino; mas, com a autorida­ de de Deus reclamada para as suas pala­ vras de mestre e profeta, forte apoio é dado ao que algures é explícito. Na antí­ tese (eu, porém, vos digo) do Sermão da Montanha (5:22, 28, 32, 39, 44; 7:29), Jesus reclama para si uma autoridade que o coloca acima de rabi e profeta, pois essa autoridade o coloca acima de Moi­ sés. A única categoria que faz justiça a esses reclamos é a que lhe é atribuída em Mateus 16:16, “o Cristo, o füho do Deus vivo” (Kâsemann, p. 37 e ss.). Mateus considera Jesus como Cristo e Senhor, unindo e separando ao mesmo tempo, desta forma, Israel e a Igreja, o judaísmo e o cristianismo (Hummel, p. 172 e ss.). Ele é o Messias das expecta­ ções veterotestamentárias, o verdadeiro cumprimento da Lei, tanto como seu intérprete, como personificação das suas intenções, alcançando, desta forma, “a justiça que excede à dos escribas e fari­ seus” . Ele é também o Senhor ressusci­ tado da Igreja, rejeitado em grande parte por Israel, mas em sua morte e ressur­ reição exaltado como o Senhor a quem é dada “ toda a autoridade no céu e na


terra” (Mat. 28:18) e sob cuja disciplina todas as nações devem ser trazidas. Jesus é tanto filho de Davi (1:1; 9:27; 15:22; 20:30 e s.; 21:9,15) como Senhor de Davi (22:45). Ele é o rei humiíde profetizado por Zacarias (9:9) e também o Filho do Homem ressurrecto e triunfante que já reina sobre a terra (28:18). A hu­ mildade e obediência do Servo de Yaweh e a presença viva e soberania do Fi­ lho do Homem sâo ambas fortes ênfases. Mateus gosta de unir os dois temas no paradoxo da humildade e exaltação de Jesus. Em 3:17, Mateus adiciona “em quem me comprazo” à citação de Marcos, ex­ traindo essas palavras do quadro do Ser: vo em Isaías 42. Em 8:17 ele enfatiza o humilde papel de servo que Jesus de­ sempenha, baseando-se em Isaías 53:4. Em 12:15-21 ele acrescenta, à narrativa de Marcos, um a citação de Isaías 42:1-4, mostrando Jesus em uma atividade salva­ dora, em favor dos quebrantados, pro­ clamando um julgamento que é redentor, dando vitória e esperança para os gen­ tios. Devido ao seu silêncio quando sob opressão, e a sua ternura ao tratar com os quebrantados, Jesus é visto em sua humildade. Mateus 21:4 e seguintes acrescenta, ao relato feito por Marcos, da entrada de Jesus em Jerusalém, uma mistura de Isaías 62:11 e Zacarias 9:9, centralizando, desta forma, a mansidão ou ternura do “rei” . Mas, para Mateus, Jesus é o ressurrec­ to entronizado, bem como o temo ServoRei. O Evangelho termina com a figura extasiante do Cristo ressurrecto possuin­ do “toda a autoridade no céu e na terra” , comissionando os seus seguidores para levar todas as nações debaixo do seu dis­ cipulado e obrigá-las aos seus manda­ mentos (28:16-20). “Toda a autoridade no céu e na terra” (28:18) parece fazer eco a Daniel 7:14, desta forma identifi­ cando Jesus como o FiUio do Homem (G. Barth, p. 133). As palavras “estou con­ vosco” provavelmente remontam a 1:23, Emanuel ou “Deus conosco” . Em Jesus,

Deus não apenas fala e age, mas está pre­ sente. Em seu ministério terreno, Jesus foi o Servo-Rei manso, humilde, obedien­ te. O Cristo ressuscitado é o Senhor, o Fi­ lho do Homem, Deus conosco. O termo “Pai” é usado em relação a Deus 45 vezes em Mateus, excedido ape­ nas por João (107 vezes, quando compa­ rado com 4 em Marcos e 15 em Lucas). Jesus conhecia a Deus como seu Pai, e considerava a sua obra como a de minis­ trar esse conhecimento aos seus segui­ dores (5:48; 11:27). Mateus pesquisa a consciência filial de Jesus desde o seu batismo (3:17). Jesus é, para Mateus, o Filho de Deus (14:33; 16:16; 27:54; 28: 18-20). O termo Cristo aparece 13 vezes em Mateus. Jesus aceitou esse título em Ce­ saréia de Filipe (16:16), mas substituiu-o pelo título “Filho do Homem” (16:28) e interpretou ambos os títulos em termos do Servo Sofredor de Isaías, sem usar o termo explicitamente (16:21). Jesus de­ sencorajou o uso do termo Cristo (16:20), presumivelmente porque o seu uso cor­ rente estava intimamente ligado com as idéias de um libertador nacional. Em 26:63,64, Jesus nem negou nem aceitou plenamente esse título. Para a comuni­ dade de Qumram, “messias” podia sig­ nificar um tipo sacerdotal ou um tipo político de Arão. Os zelotes pugnavam por um tipo nacional, político, munda­ no. Havia muitos falsos messias deste último tipo (24:24). Com estes antece­ dentes, o título só podia ser usado com cautela. Filho do Homem é empregado 31 vezes em Mateus, referindo-se a Jesus. Este título estava mais livre de qualquer co­ notação política, e era mais abrangente quanto ao significado, apropriado para combinar os aspectos presente (8:20) e futuro (25:31) do ministério de Jesus, tanto quanto o seu papel de sofredor (17:22; 20:18) e também de exaltado Soberano e Juiz (25:31). Se 28:18-20 faz eco a Daniel 7:13,14, a própria autorida­ 97


de que o Ancião de Dias promete ao Filho do Homem foi dada a Jesus, o Senhor ressuscitado. A promessa ao Filho do Homem fora “domínio, e glória, e um reino, para que todos os povos, nações e línguas o servissem” e a certeza de que o seu domínio é um reino etemo, que não será destmído (Dan. 7:13-18). Precisa­ mente esta é a prerrogativa reivindicada para o Cristo ressurrecto em 28:18-20. O termo Filho do Homem serviu, além disso, para indicar a preocupação de Jesus em criar uma comunidade, o povo de Deus, “os santos do Altíssimo” . A referência mais direta feita por Ma­ teus a Jesus como servo de Deus é 12:18, onde Isaías 42:1 é mencionado: “Eis aqui o meu servo que escolhi, o meu amado, em quem a minha alma se compraz.” O Filho do Homem é aquele que não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate de muitos (20:28). Por ocasião do seu batismo, veio uma voz do céu, declarando que Jesus era o Filho amado de Deus (3:17). Esta declaração, provavelmente, reflete tanto Isaías 42:1 como Salmos 2:7. Refletidas são também a consciência de Jesus de que Deus é seu Pai, peculiarmente, e a consciência de si próprio como o Cristo de Deus (Sal. 2:2), e Servo de Deus (Is. 42:1). A sua função messiânica era para ser realizada me­ diante sofrimento sacrificial, dando ele a sua própria vida, e não tirando a vida dos romanos, inimigos de Israel. Para M a­ teus, Jesus é Cristo, o Filho de Deus, e o Filho do Homem sofredor aqui na terra. Estando Jemsalém em minas, e o Templo destmído, e Israel sob o tacão de Roma, e os fariseus tentando reconstmir o judaísmo ao redor da Lei, Mateus escreveu para demonstrar que em Jesus Cristo está o cumprimento da Lei, dos profetas, e do Templo. Em Jesus Cristo, as alianças feitas com Abraão e Davi são cumpridas, o “ trono de Davi” é estabele­ cido etemamente, e a sua “autoridade” é a de levar todas as nações a se sub­ meterem ao seu governo de justiça. 98

2. O Reino do Céu O termo reino (basileia) aparece cerca de cem vezes em Mateus, em 20 dos seus 28 capítulos, ^ ^ te u s prefere, o je rn jo ‘^ i n o do céu” (32 vezesl_a “reino^de Deus” (4 vezes^ Ele também fala do “reino” , “reino do seu Pai” , “reino de meu Pai” e “reino do Filho do Homem” . Ò significado é constante, nestas várias^ formulações. Presumivelmente, Mateus* prefere “reino do céu” ou para evitar uma conotação política do reino de Deus, ou devido a piedoso escrúpulo dos judeus em usar uma referência direta a Deus^ “Não existe base bíblica para se fazer di?’ tinção entre “reino de Deus” e “reino do céu” . Nos paralelos Sinópticos, os termos são usados indiferentemente. Q reino de Deus é o reinado soberano de Deus. Significãque Deus é rei. O reino de Deus não é edificado ou “tra­ zido” . Ele vem, mas não se torna. Deus é rei, indiferentemente quanto à obediên­ cia ou desobediência do homem. O que o homem é e faz influencia a sua posição no reino de Deus, mas não afeta o fato do I reino de Deus. Outros “reinos” se opõem "ào reino de Deus, mas Déus permanece rei. 0_^ Velho Testamento já conhecia a Deus como rei, e conhecia “um como o fiUio do homem” , a quem “o Ancião de Dias” prometera “um reino que não terá fim” (Dan. 7:13es.). Mateus conhece a Jesus de Nazaré como o Cristo, o unRÍdo de Deus, em quê^tTo reino de Deus já se iniciou. Isto significa, antes dé tuHo, que o homem precisa se “arrepender” , isto é, voltar-se em submissãó~á Déus (3:2; 4:17; 7:21). Deus é rei e o homem é vassalo. Somente' quando o homem aceita este relaciona­ mento, a sua rebehão ou indiferença dando lugar à obediência voluntária, é que se abrem, para ele, nova liberdade e nova existência. O reino do céu é boas-novas. Mateus podiê falar do “evanRelho do reino” (4: 23; 9:35; 24:14). Nos dias terríveis do louco rei Herodes. eram boas as novas de


-jque Deus é o verdadeiro Rei, e que ele^ Iprios; é uma herança, uma dádiva de j " ^ ^ v e io para ser “nascido rei (ios judeus’ Deus (25:34). I (2:2). Foram boas-novas quando Mateus O reino de Deus vem como juízo, tanto escreveu.,^eiKmantofJèrusaSm)fazia ení’ quanto como evangelho.. Q^juízp é apacinzas, e Roma parecia governar o mun­ rêníem êníFidiado, porém e certo e su­ do. Para os doentes e pecadores eram mário. Ele é como a separação do ioio e boas-novas, pois o fato de o reino irrom­ do trigo, na colheita (13:24,36,41,44), per no mundo, de novo, em Jesus Cristo, ou como a separação de peixes úteis e era acompanhado da cura de todas as inúteis, q u ã n H õ T ^ a F U c T pescador é doenças e enfermidades (4:23; 9:35) e da trazida para a praia (13:47). O seu jullibertação do domínio das forças do mal gamento é suave para os misericordiosos ê (12:28). perd^idores, mas duro para com os sem nusericórdia, que não sabem perdoar. Paradoxalmente, a pessoa reina com (TBT2^ ss.)TEÍe julga a pessoa mediante Cristo precisamente~qüãndo se rende a a maneira como ela se relaciona com ele, abdicando de todas as reivindicações lesus Cristo, relacionando-se com os oude soberania. A coisa^correlata ao reino tros em situações de fome, doença ^ u de Deus é a liberdade, e não a escravidão prisão (25:31-46). O tamanho no reino é dos filhos de Deus (Kâsemann, p. 47). medido em term o sd ê ”^ S S I E a n ç n s O reino pertence aos que não procuram crianças (18:1-4), motivação (20:1) e serarrebatá-lo. Pertence aos pobres de espí­ viço(20:ll,25ess.). rito (5:3), aos que sofrem perseguição O reino do céu, em^^Mateus, é tanto por amor à justiça (5:10), e aos que se presente como futuro ^M ateus) aparenteassemelham às crianças Ú 8:l,3; 19:14). mênteTTe considera comolim .escriba do Publicanos e meretrizes, que não têm re^„(13:51 e s.). As “çhaves^o reino^’ nenhuma ilusão acerca de si mesmos, são uma realidade presrateTróH^TTS^S entram no reino antes dos orgulhosos e s.). Tanto João Batista como Jesus religiosos (21:31). Desconhecidos do ori­ anunciam que ele,“ é chegado” (3:2; 4: ente e do ocidente entram no reino plíra 17; 10: 7). Ele ja pertence aos pobres de se assentarenToom Abraão, Isaque e espirito e aos perseguidos por amor à Jacó, no banquete messiânico, enquanto justiça (5:3,10). Ele iá está em conflito os orgulhosos, que pensam que o mere­ com o reino de Satanás, e os homens cem, são lançados fora (8:11 e s.). tentam entrar nele pela força (11:12; O reino do céu é ao mesmo tempo 12:28). Ele deve ser buscado agora (6: dádiva e exigência. Inclusão, ou jxclu33). O reconhecimento mais claro e mais são, délê não é um destino impoitõ~à conclusivo, em Mateus, da realidade pre­ pessoa, mas uma decisão a ser tomada. sente do reino, é visto em 12:28: “ Mas se Ele sobrevêm à pessoa com os apelos é pelo Espírito de Deus que eu expulso os para se arrepender, confiar, obed&cèfT demônios, logo é chegado a vós o reino de ElFHêm aiidalim ãjustiça que excede a Deus.” O reino.de Deus iá está vencendo o reino de Satanás^ O Cristo ressurrecto dos escribas e fariseus (5:20), a prática da vontade de Deus (7:21), a produção já tem “ toda a autoridade no céu e na de frutos (21:43). O discípulo precisa terra” (2 vender tudo o que tem, para possuir este Mas o reino é também futuro. Os po­ deres, já em açã'oem Tésüs7só^o fim do tesouro oií pérola de grande preço (13: 44,45). A con|ia^ajia^riquezasjexc^uij) mundo” alcançarão plena vitória. Devg~ seu possuidor do relnò ( Í9:23 el;.r. Custa sejrig iar, esperar e ficar preparado para tudo o que a pèYsóâlem, entrar no reino ãi^eíè dia (25:1). O gginqr ^gm cer to . do céu (6:33; 13:44,45). Não obstante, o sentido, iá veio; em üm sentido especial reino nunca é adquirido por meios"^ó(provavdmente ^ r ocasião da destruição

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de Jerusalém), ele veio para a geração à qual Jesus se dirigira (16:28); e ele ainda está por vir em sua plenitude, na Pãrourfi1i?IÍ27). De maneira contrária às expectativas dos zelotes, o reino não iria vir com o (^m a^exterior, visível, dé ^ è f f á catástrofe, como algo para o que correr, pàrãTvèr como espetáculo (24:4-14). Ele vemcomouma pequena semente de mosta j^ ^ Í3 :3 Í)~ o u cornb^uina medida de fermento em uma massa de pão (13:33).

pois aparentemente já se encontrava na W i ^ ^ u ç el^^ usou T r-T ü fin iã n n , Sy~ noptíc Tradition, Í38 e ss., p. 146). Para Mateus, o termo mais significativo usaHõ" ^arà*5rsegui'dorer~dê~ Jesus é o d e d i s c í ^ ~ p ín o lm a lh ê iE ê s )n u n ta m e rite ^ c o m o r t e r ^

Istas palavras ajudam a pmtaF^ÕquãSro, feito por Mateus, de Jesus como intérprete e cumpridor da Lei, e como Senhor da Igreja. ^A_^grejaé a sua Igreja (16:18), da mesma f^ m a ^ m o o remo tãníEém é õ reino d5~Fílho 3. A Igreja ■ ^ l i õ m ê m ^(13:41: 16:28). Mateüs conJg reja ^ rgmo se relacionam, sidera a Igreja como a comunidade escaã o ^ ^ j 3 i n w ^ r ^ ) r e m o é o governo V tológica, pertencendo a alguém que era ^sõbefaiío de Dêus, e a sua absoluta e / tanto o Rei Messias de Israel como o final declaração de posse sobre tudo o ^ Senhor das nações. Ele é o Mestre, os que existe, o seu governo soberano, que ^ seus seguidores são os discípulos; ele é se defronta com todo o mundo na pessoa ) Senhor, eles, seus escravos; ele é o dono de Jesus de Nazaré, o Cristo de Deus, a V da casa, eles, os serviçais caseiros (10: quem este ungiu para reinar. A Igreia / 2 5 ) . é essa família de pessoas subm f§ias^õ Novo Israel” dificilmente é o termo reino de Deus, na forma em que ele se para aue MateiTT faz da apresenta em Jesus C risto .^ ^ ^ e ^ é mais Igreja, embora ele reconheça os seguiamplo do que a Igreja. Ê o governo de dores^eTesús como os verdadeiros filhos Deus sobre todas as coisas, obedientese de Ábraão (3:9). Mate^ v ê cónidniiid a ^ desobedientes, Igreja e mundo. A Igreja e n tr^ lsra el e a^TgfqaT^A ^^^^raçâo 1 a parte^alcriacão oue encontra a sua* Wquc^ÍnuífBf''vmao§^do oriente e do existência na obediência voluntária ao ocidente, como o centurião de Cafar­ ^•emo de Deus. A Igreja não traz nem naum j[8;5), “ reclinar-se-ão à mesa com edifica o rèinò. O reino cria e sustenta a Abraão^ Isaque e Jacó, no reino dos Igreja. céus’’ C ^ l ) encara duas direções. A sua O termo igreja (eliklcsia) aparece ape­ prin^paTpreocupacão é incluir õs gen­ nas três vezes nos Evangelhos, todas elas tios, mas também reconhece que Abra­ em Mateus (16:18; 18:17). ^ £ o n ç e H o ^ ão, Isaque e Jacó pèrtencem ao povo de povode^D e^ expresso em vanos iermos, D e ^ E m F o rá M âtéüs veja que a nação °e anâlogiasTeTnüito mais proeminenje como um todo já está julgada em termos nõsnBvan^hos ^gõ~que^êssiFl5-es~ocõrda destruição de Jerusalém (23:37-39; rências dãTpHivra “igreja” podem d.ar_a 24:1-3), em lugar nenhum ele sugere que entender. ílm segundo lügaf em impor­ os judeus, pelo fato de sê-lo, são ex­ tância, logo depois da posição dada a cluídos do povo de Cristo. Jesus nos Evangelhos, estâ a dada aos Mateus yê a Igreja como se estivesse seus seguidores. Jesus chamou pessoas a UgaHir^õjudaísmQ^mrela si, e formou um grupo ao seu redor, seja luEoTA L ê rírõ ^ g a tó ria para ambos, e qual for o termo pelo qual esse grupo seja apresentar-se para subme­ chamado. ter-se ao mesmo M z ^ A produção de A presença doterm oJ4greia|\£m 16: frutos (7:16 e ss.;‘^ : 4 3 ) , justiça (5:20; 18 e 18:17 não p S ^ ^ ^ p e s q ú is a g o em^ 6:20) e perfeição (5:48; 19:21) são as exi­ relação ao interesse editorial de Ç gências sob as quais a Igreja deve viver. 100


como era verdade em relação a Israel. A própria Igreja exteriormente deveria submeter-se a juízo, o que separaria o verdadeiro povo de Deus dos que nâo o são (7:21 e ss.; 13:24-30, 36-43, 47-50; 22:10,14; 25:31-46). Mateus vê a Lei unindo o povo de Deus sob a velha e a nova aliança, naquilo em que ela é compulsória sobre ambas. Tan­ to de Israel como da Igreia. exiee-se jastiça. Como mostram os paralelos em Lucas, Mateus insere “justiça” três vezes em 23:29-36. Só os justos permanecem nojuízo final. Portanto, a Igreia consiste do verdadeiro pÒvó 'd e T ? e u ^ b S ^ iç ^ f a g o fa ^ ís m rã ^ exteriormente, I 'e peneirado apenas nojuízo final, do qüe" ‘^^-Pão é verdadeiro.

4. A Disputa com os Fariseus Evidências de que Mateus estava conscientemente interagindo com os fariseus I da sua época podem ser vistas no fato de ele constantemente enfatizar o papel deI fcs como oponentes de Jesus. Isto nâo í Hgnifica que ele inventou o conflito, pois este é histórico; porém, mais do que Lucas e Marcos, ele o revelou. Em 3:7; 12:24,38, ele escreve “fariseus” , enquan­ to Lucas (3:7; 11:29) diz “ multidões” . Mas em 3:7 e 12:38 Mateus insere “ fari­ seus” no material que compartilhou com Lucas. Fariseus em 12:24 é redacional de Marcos, que diz “escribas” . Especialmente nos debates, vemos o interesse de Mateus em apresentar os fariseus como oponentes de Jesus. Em 12:24,38; 21:45; 22:34,35,41, Mateus in­ troduziu o termo “fariseus” na narrativa (cf. Mar. 12:12; Luc. 20:19). A sua preo­ cupação com os fariseus é refletida na sua ênfase na justiça, que precisa exce­ der à dos escribas e fariseus (5:20), na sua ênfase sobre o juízo que cai sobre os fariseus (15:12,13 e especialmente 23:136; cf. Mar. 12:37-40; Luc. 20:45-47), no retrato que ele faz dos fariseus como q}onentes de Joâo Batista (3:7), e na citação dos fariseus como os oponentes de Jesus na narrativa da Páscoa (21:45;

22:15; 27:62). Em 22:15 ele segue M ar­ cos, mas em 21:45 e 27:62 Mateus só nomeia os fariseus (Marcos não men­ ciona os fariseus depois de 12:13). Mateus não inventou a acusação de que os fariseus tramaram a morte de Jesus, pois Marcos 3:6 conserva esta tra­ dição. Nem Marcos nem a tradição mais antiga que ele seguiu estavam interessa­ dos em enfatizar o papel desempenhado pelos fariseus. O que é novo é o interesse de Mateus na culpa dos fariseus. O fato de que a tradição fora registrada ante­ riormente sem motivação aparente argu­ menta a favor de sua historicidade (Hum­ mel, p. 12-17). Só Mateus nomeia os fariseus como pessoas que acusaram Je­ sus de ter expulsado demônios pelo prín­ cipe dos demônios (9:34). Nâo há para­ lelos a 9:34, e o versículo está faltando no texto Ocidental; mas em 12:24 Mateus muda as palavras de Marcos, “os escri­ bas” (3:22) para fariseus. Mateus freqüentemente se refere aos escribas e fariseus (5:20; 12:38; 23:2,13, 15,23,25,27,29), mas não faz distinção entre eles. Pode ser que uma fonte ante­ rior a Mateus e Lucas tenha feito distin­ ção entre os escribas e fariseus (Luc. 11:37,38,39,42,43 e 12:1 apresentam fa­ riseus; 11:45,46,52 dizem doutores; 20: 39,46 falam de escribas; e 11:53 anota escribas e fariseus). A maioria dos escri­ bas eram fariseus, mas havia alguns es­ cribas essênios e saduceus. Os escribas eram eruditos ordenados, que ficavam acima da maioria dos fariseus, porém Mateus não está interessado nessa distin­ ção (cf. 21:23 com 21:45).

IV. O Nome Mateus O grego Maththaios ou Matthaios pro­ vém da forma abreviada de uma palavra hebraica ou aramaica que significa dá­ diva de Yaweh. Mateus aparece em qua­ tro listas de apóstolos de Jesus (Mat. 10:3; Mar. 3:18; Luc. 6:15; At. 1:13). De acordo com 9:9 e 10:3, ele era um 101


coletor de impostos quando Jesus o cha­ mou. Se deve ou nâo ser identificado com Levi é mcerto. Marcos e Lucas parecem Hístijilgiinrentre LevieM ateus, porém em Mateus eles parecem ser a mesma pes­ soa. Em Marcos 2:14, um coletor de impos­ tos (telõnés) que seguia a Jesus é cha­ mado “Levi, filho de Alfeu” ; e em Lucas 5:27,29, ele é chamado Levi. Parece certo que Mateus 9:9-13, Marcos 2:13-17 e Lucas 5:27-32 são paralelos, referindo-se ao mesmo coletor de impostos. Desta forma, Mateus 9:9 se refere ao Levi de Marcos 2:14 e Lucas 5:27,29. Em cada uma das quatro listas de apóstolos (Mat. 10:2-4; Mar. 3:16-19; Luc. 6:13-16 e At. 1:13) o nome de Mateus aparece. O nome de Levi nâo. Só em Mateus (9:9; 10:3) Mateus é chaníado de “coletor de impostos” . Tanto Marcos (2:14) como Lucas (5:27,29) conhecem um coletor de impostos (telõnés) chamado Levi. Se os judeus algumas vezes usavam dois nomes é discutível. Simâo Pedro nâo é um exemplo decisivo, pois Pedro é epíteto, e não um verdadeiro nome. 8 Existe supor­ te substancial e textual anterior para “Tiago, filho de Alfeu” , em vez de “Le­ vi” , em Marcos 2:14. Isto concordaria com “Tiago, filho de Alfeu” em Marcos 3:18. Heracleon (cf. Clemente, Stromata, 4:9) e Orígenes (Contra Ceisum 1:62) fazem distinção entre Levi e Mateus. Se Mateus e I^vi. o coletor de impos­ tos, sâo a mesma pessoa, ele exercia o seü

oficíõ^ b a^ãutondãM‘gelHêroderAntP~ pas, nas vizinhanças de Cafarnaum; e a suSTunção era receber os impostos ou taxas das mercadorias transportadas pe­ la estrada Damasco-Acre e possivelmente lançar impostos sobre a pesca e outros negócios em sua região. Devido ao silên­ cio de Marcos e Lucas, a inòerteza tex­ tual de Marcos 2:14 (Levi ou Tiago?) e a incerteza patrística primitiva, o erudito hoje em dia é compelido a uma susE. P. Blair, “ M atthew ” , The Interpreter’s Dictionarj of the Bible (Nashville: Abingdon, 1962), III, p. 302.

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pensão do julgamento quanto à iden­ tidade de Levi e Mateus. Mateus é cha­ mado de coletor de impostos (9:9; 10:3), seja qual foParTèlação entre Mateus e LêvT — —— ^ -

V. Autoria A tradição sustenta que o nosso Evan­ gelho foi escrito por Mateus, um dos doze apóstolos. O próprio evangelho é por si anônimo. O título “Segundo Ma­ teus” provavelmente foi acrescentado quando os quatro Evangelhos foram reu­ nidos dentro de uma só capa. Os eruditos estão muito mais convencidos de que Marcos e Lucas escreveram os Evange­ lhos que ostentam os seus nomes, Jo que convictos que o primeiro Evangelho foi escrito por Mateus. O que está em jogo é uma tradição da Igreja, e não a au­ tenticidade ou valor do Evangelho de Mateus. A verdade parece ser que os autores dos quatro Evangelhos se conservaram deliberadamente à sombra, encobrindo as suas pisadas, por assim dizer. Os Evangelhos foram escritos para as igre­ jas, e, num sentido real, eram produtos das igrejas, embora houvesse um autor individual por detrás de cada um deles. Como o autor considerava a si mesmo pode ser visto em 13:52: um escriba que tira do seu tesouro coisas velhas e novas — as velhas, em continuidade com o ju ­ daísmo, da maneira como ele é refletido no Velho Testamento; e as novas, que são o cumprimento daquelas, como se encontra em Jesus Cristo. A tradição de que Mateus escreveu este Evangelho, e de que foi o primeiro a ser escrito, parece remontar a Papias, de Hierápolis (155 d.C.), conforme cita­ do por Eusébio (III, 39): “Mateus compi­ lou (sunetaxato) os oráculos (ta logia) na língua hebraica (dialektó), e cada um os interpretou (hermeneusen) como foi ca­ paz.” Essa passagem contém várias am­ bigüidades. O grego sunetaxato pode sig­


nificar tanto compilar como arranjar; iogia pode significar relatórios ou orá­ culos; e hermeneusen pode referir-se a tradução e/ou exposição. Desta referência surgem opiniões co­ mo as de que, falando em logia, Papias queria dizer uma vida de Cristo, o nosso Evangelho de Mateus, as palavras de Je­ sus, ou uma fonte hoje conhecida como Q. Pelo contrário, Papias pode ter queri­ do dizer que Mateus compilou em he­ braico alguns oráculos proféticos veterotestamentários, e que cada pessoa na igreja primitiva os interpretava como era capaz. 9 Pais .da igreja posteriores erra­ damente presumiram que Mateus es­ crevera o mais antigo dos Evangelhos.. Irineu (c. 180 d.C.) via o Evangelho de Mateus como o mais antigo dos quatro (Contra Heresias, III, 1; Eusébio, V, 8), da mesma forma como Clemente, de Ale­ xandria (c. 200 d.C.), de acordo com Eusébio (VI, 14), o próprio Eusébio (III, 24), Jerônimo (Proemio ao Commentary 4H1Matthew, 5 — 7), e Agostinho. Deve ter havido alguma razão subs­ tancial para atribuir o primeiro Evange­ lho a Mateus. Que o apóstolo teve al­ guma relação com ele, é provável. Bas­ tante provável é que ele fosse o compi­ lador das logia (cf. Papias), usadas ex­ tensivamente nesse Evangelho.

VI. A Ordem dos Evangelhos A ordem canônica atual tem sido vir­ tualmente uniforme desde Agostinho (sé­ culo IV). Eusébio, aparentemente, en­ tendia a referência de Papias como sendo ao Evangelho de Mateus, e daí surgiu a opinião de que o Evangelho de Mateus foi o primeiro. Agostinho aceitou esta opinião, e tomou-a virtualmente padrão, até o período crítico moderno. 9 Cf. e F . C. G ran t, “ Gospel of M atthew ” , T he In te r­ p reter’s £>ictioaai7 of th e Bible, III, p. 303. P a ra o ponto de vista de que Papias tinha em m ente o nosso Evangelho de M ateus, veja W. G . Kümmel, In tro ­ duction to the New T estam ent, trad , de A. J. M attill, Jr., em ingles (Nashville; A bingdon, 1966), p. 85.

O que não foi notado por aqueles que formaram a tradição de que Mateus fora o primeiro Evangelho, é a evidência de que Papias discutiu Marcos antes de Mateus (Eusébio, III, 39), provavelmen­ te datando Marcos anteriormente a M a­ teus. Ê interessante que Apocalipse 4:7 bem pode ser uma referência velada à ordem dos quatro Evangelhos: Marcos, Lucas, Mateus e João. Pelo menos desde o tem­ po de Irineu (III, 11), cerca de 180 d.C., as quatro criaturas viventes (leão, boi, criatura com face de homem e águia voando) (*) de Apocalipse 4:7 têm sido entendidas na exegese e na arte como os quatro evangelistas, identificados, res­ pectivamente, como Marcos, Lucas, M a­ teus e João.^° Isto não deve ser forçado, pois o simbolismo para os quatro Evan­ gelhos parece ter variado nesse período primitivo. Do lado de fora da Igreja de São Vitale, em Ravena, está o mausoléu de Galla Placídia, onde se encontra um mosaico romano (c. 440) figurando os quatro Evangelhos na seguinte ordem: Marcos, Lucas, Mateus e João. Este mo­ saico pode preservar uma tradição que antecede à que Eusébio e Agostinho deri­ varam de uma possível má compreensão de Papias. Esta ordem é também encon­ trada na Academia em Veneza, no forro da Sala delia Presentazione, numa cole­ ção de placas espanholas, que agora es­ tão no Museu Metropolitano, em New York, (M. 167), e possivelmente é encon­ trada também em outros lugares. A mais forte evidência de que Mateus é posterior a Marcos e mais ou menos con­ temporâneo de Lucas é interna, como veremos ao estudarmos as “Fontes” . No que é conhecido como o texto Ocidental, 10 Cf. F. C. G ran t, p. 302, em cuja obra esta seçâo está principalm ente baseada. (*) NOTA D O TR A D U TO R : O Simbolismo de A poca­ lipse 4:7 é mais consentâneo com a ordem em que os Evangelhos se encontram n a nossa Bíblia, apresentan­ do Jesus respectivamente como rei (leâo), Servo (boi), Filho do Homem (face do homem) e Filho de Deus (águia voando).

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outra ordem prevalecia, baseada em um princípio diferente; Mateus, João, Lucas, Marcos, colocando os dois apóstolos an­ tes dos dois não-apóstolos. Esta “ordem Ocidental” é arbitrária, e não resolve a questão de autoria ou ordem.

VII. Data e Lugar em Que Foi Escrito Não há prova conclusiva de que os Evangelhos não tenham sido escritos an­ teriormente, “ quiçá por volta de 60 d.c. Por outro lado, a probabilidade é de que Marcos tenha sido escrito pouco depois da perseguição movida por Nero contra os cristãos, em seguida ao incêndio de Roma, em 64 d.c., que Lucas e Mateus tenham sido escritos depois de Marcos, provavelmente após a queda de Jerusa­ lém, em 70 d.C., e que João tenha sido escrito um pouco mais tarde. Isto não pode ser demonstrado, mas essas datas aproximadas satisfazem melhor às evi­ dências e iluminam o estudo. O reconhecimento de fontes por Lucas (1:1-4) e o uso quase certo que Mateus fez delas indicam que estes dois Evange­ lhos pertencem aos cristãos da segunda geração. Ajdeclaração feita por^ a p ia s^de que (Mateus/ compilara os j)rá c ^ õ s"em hebraiçai e que cada pessoa os traduzira como fora capaz, indica que no começo do segundo século deveria haver várias_^ versões gregas.do que Papias mencionou, cõmo a coleção de oráculos feita por Mateus, bem como de profecias do Velho Testamento e textos de prova, possivel­ mente. Se o autor do Evangelho de M a­ teus usou esses oráculos ou versos do Velho Testamento, isto iria explicar co­ mo o nome de Mateus veio a ser associa­ do com este Evangelho. É impossível^ fixar uma^ data entre 70 d.C. e 90 d.C., pois não existe nenhum evento notável, pelo qual possamos ser guiados, nas décadas de 70 ou de 80 11 R. M. G ran t, A Historical Introduction to the New Testament(NewYork: H a rp e r& R o w , 1963), p. 107.

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algumas vezes chamados de “período do túnel” . O Jugar em ^ u e Mateus^ foi escrito é desconhecido e hngossíveljie se determi-. nar. O autor escreveu para uma comuni-1 dade que falavã"gre^, e parecia sentir-se | à vontade êm üm lugar em que se falasse | grego. A Palestina, especialmente a Gali'léia, não deve ser excluída. Visto que a testemunha certa mais antiga de M a­ teus é Inácio (Smyrna, 1:1), Antioquia, ou algum outro lugar da Síria, é o lugar mais provável de origem, embora a Fenícia (Kilpatrick) e Cesaréia (Stendahl) tenham sido adequadamente propostas. CsAv^rooí

VIII. Fontes Mateus não faz nenhuma referência explícita a fontes, mas as evidências são tão fortes de que ele as empregou, que o peso da prova cai sobre a opinião contrá­ ria. O emprego de fontes, escritas e/ou orais, não questiona à TnspTrã^õ divina. qu a corifiabUidade do Evangelho de Mateus^ Ã memória, interpretação e fé de uma comunidade sustentam os Evan­ gelhos, e não apenas quatro homens. O Espírito de Deus poderia ter operado através dessa comunidade, tanto quanto através de um escritor individual. Embora seja contestado por alguns estudiosos, parece que Mateus fez jle Marcos a sua fonte básica de narrativa. A FTuas, únka^^om ss^ de qualquer extensão de palavras de Marcos são: a cura de um endemoninhado (1:23-28), a pregação nas sinagogas da Galiléia (1:3539), a parábola da semente que cresceu sozinha (4:26-29), a cura de um surdo (7:32-37), a cura de um cego (8:22-26), um exorcismo (9:38-40) e uma viúva e suas esmolas (12:41-44) Embora M ^ teus tenha usado muito da organização de Marcos, ele transferiu livrernente o 12 W . C. Allen p. xiii. Veja ainda p. xiii-ixii, onde se acha um estudo exaustivo do uso feito por M ateus de fo n t« diversas. P ara a rejeição d a opinião de que M ateus dependeu de M arcos, veja W . R. F arm er, The Synoptic Problem (New York: M acm illan, 1964).


material de Marcos para a sua narrativa, fórmula introdutória, geralmente se­ guem a LXXj^ com algurnas exceções dá forma como este atendia aos seus objetivos, com abreviações, reformula­ seguindo o texto hebraico (11:29; 16:27 e ções, mudanças estilísticas e o entreteciss.; 27:43). As citações-fórmula ficam mais perto do hebraico, com alguma mento de novos materiais. Mateus usou tanto material estranho a ^ influência da LXX (cf. Kümmel, p. 78 e s., para detalhes). Que o autor se apro-'" / Marcos quanto material de Marcos. Cerveitou de uma coleção de citações do \ c a de cinco nonos desse material estraVelho Testamento ou enunciações profé­ ( nho a Marcos, comumente chamado Q, é ticas que eram usadas na pregação mis­ (tombém eiKontrâdo em Lucas. 0 ~ ^ fesionária é coisa bem provável. Elas _pó' rial peculiar a Mateus é geralmente de"drãm a logia mencionada por^apiasT^ ' signado como M. da mesma forma como o peculiar a Lucas é chamado L. É O Evangél^rpropriam ente dito não foT ^ escrito em hebraicp^(ou~em ararimico), altamente precário dizer-se que Q é uma em grego, como está claroT^vido ao fonte (cf. A. M. Farrer, “On Dispersing uso que ele faz de fontes gregas. Umai with Q” , Studies in the Gospels, ed. por dessas fontes podia ser uma coleção grê ^ n b . E. Nineham; Oxford, 1957; p. 55-86). ^a de passagens veterotestamentálrias, i Tudo que é realmente certo é que ele pnmeiramente escolhidas em hebraico representa um bloco de material comum (possivelmente por Mateus) e depois traa Mateus e Lucas, e nâo encontrado em duzidas para o grego por várias pessoas, i J4arcos. Por detrás dele podem estar fontes escritas e orais. O mesmo se aplica Por detrás dos quatro Evangelhos e a M e L. Extensas concordâncias entre suas fontes escritas, certamente deve ter Mateus e Lucas sugerem que Q represenhavido fontes orais. As palavras ditas por ta pelo menos algum material escrÍto, Jesus foram repetidas durante a sua vida mas não é provável que representa uma^ e depois de sua morte. Da mesma forma, fonte escrfte a p e n ^ . De toda a celeuma as coisas que ele fez devem ter sido ,"Acerca de 0 . M e L, tudo o que, na descritas pelas pessoas que as haviam . verdade, se confiece è que tanto Mateus testemunhado. É inconcebível que as como Lucas contêm quase todo o matepessoas que haviam visto e ouvido Jesus I rial de Marcos, e, além disso, têm alguns não tivessem discutido essas coisas entre materiais estranhos a Marcos em cosi e as relatado a outros. Para dizer * mum, e outros que não são comuns a pouco, Jesus era, em todos os respeitos, ; ambos (R. M. Grant, p. 117). uma pessoa incomum, altamente imagi­ *— Uma das características maisjiotáveis nativa, ousada, não-convencional, con­ do È vãn^lH õ^ o uso extensivo que ele trovertida, encantadora para alguns e faz de citações (mais de 60) do Velho uma ameaça para outros. Ele suscitavaj Testamento(yejaFrC. Grant, p. 307-11). os mais fortes sentimentos^nas pessoas,f Entre elas estão onze “citações-fórmula” , tãnfo de simpatm como de hostilidadei isto é, introduzidas com uma declaração Em sum^, ele foi crucificado por alguns é como “p ara^ue se cumprisse g que fora adorado por outros. Como poderia„hadito da parte do Senhor pelo profeta” ver, alçim a vez, u m ^ m õ ^ o ^ è sUênçio a (1:22 e s., 2:6, 15, 17 e s., 23; 4:14-16; , respeito dele?^ " 8:17; 12:17-21; 13:35; 21:4 e s.; 27:9 e ' Além áisso, os registros indicam que s-)- As citações que Mateus tem em (Jesus não apenas chamou homens para comum com Marcos e Lucas ^ o j i r a d ^ segui-lo, mas também os ensine^ e j:o-^ em grego das suas fontes,” e algumas , rifissionou a pregar e ensinar. Ter resul-<^ vezes são^sim iladas à LXX. ^tado deste fato uma tradição (II Tess. A ^ ^ ta ç õ ^ ' encohtradas tão-somente (2:15; 3:6) das palavras e atos de Jesus < em Mateus, e que não apresentam uma i.não é surpreendente. Essa tradição ter^ 105


começado aJo íM iJp n n a antes da morte de Jesus é altamente provável. Depois da sua morte e ressurreição, seria consentâ­ neo com tudo o que sabemos acerca dos seres humanos o fato de seus seguidores terem começado a compartilhar essas memórias uns com os outros. Quando os| 1novos convertidos comecaram a ser agre-; ■gados e ensinados, devem ter sido ins-! Itruídos nas coisas feitas e faladas por Jesus. Mais do que qualque_r outra coisa, a ressurreição de Jesus transformou os segindÕ resT ^ésus, e o tornou o centro sem rival das suãs palestras e do seu ? interesse. O s^ parecimentos de Jesus de­ pois da sua ressurreição excitaram as esperanças deles da sua futura volta, mas o ^ u interesse em um Senhor que volta­ ria nunca se divorciou da sua recordação ^de um Mestre terreno. A seleção e moi- > ' dagem da tradição acerca de Jesus foi 2; ’ grandemente determinada pelas necessi-^ dades da comunidade. Isto não deve excluir o fato de que algumas coisas foram lembradas e repetida^s, porque não podiam ser esquecidas ou negligenciadas (cf. At. 4:20). A memória, as impressões duradouras, as esperanças e os temores, e principalmente a perda e recuperaçãd| do seu Mestre e Senhor, tornaram c silêncio impossível. Mas, além disso, ha­ via as necessidades diárias de evaneelismo, instrução e disciplina. Ós primitivos cristãos recordavam, in­ terpretavam, usavam e, dessa forma, de­ ram forma aos materiais, que por fim se canalizaram nos quatro Evangelhos. Desse modo, os Evangelhos foram fontes para a vida da igreja primitiva, tanto quanto eram das obras e ensinos de Jesus.

Esboço do Evangelho I. O Nascimento de Jesus e Começo do Seu Ministério (1:1 — 4:25) 1. A Genealogia de Jesus Cristo (1:1-17) 106

2. O Nascimento de Jesus Cristo (1:18-25) 3. Rejeição na Terra Natal, Re­ cepção no Estrangeiro (2:1-23) 1) Os Magos do Oriente (2:112)

2) A Fuga para o Egito (2:1315) 3) As Crianças Mortas em Be­ lém (2:16-18) 4) Do Egito para Nazaré (2:1923) 4. O Ministério Inaugurado (3:1 4:25) 1) A Mensagem do Batista (3:1-12) 2) O Batismo de Jesus (3:13-17) 3) A Tentação de Jesus (4:111)

4) Retirada Para a Galiléia (4:12-17) 5) Quatro Pescadores Chama­ dos (4:18-22) 6) Um Ministério T ríplice (4:23-25) II. O Sermão da Montanha (5:1 — 7:29) 1. Introdução (5:1,2) 2. As Beatitudes (5:3-12) 3. Sal, Luz e uma Cidade Situa­ da Sobre um Monte (5:13-16) 4. Jesus e a ^ i (5:17-20) 5. As Intenções da (5:21-48) 1) A Essência do Homicídio (5:21-26) 2) Concupiscência e Adulté­ rio (5:27-30) 3) Os Danos do Divórcio (5: 31, 32) 4) Ensino Acerca de Juramen­ tos (5:33-37) 5) Vencendo o Mal com o Bem (5:38-42) 6) Amor Pelos Inimigos (5:4348) 6. Motivos na Vida Religiosa (6: 1-18)


1) Esmolas (6:1-4) 2) Oração (6:5-15) 3) Jejum (6:16-18) 7. Liberdade da Tirania das Coi­ sas Materiais (6:19-34) 8. O Julgamento dos Outros (7: 1- 6)

1) O Argueiro e a Trave (7:15) 2) Pérolas aos Porcos (7:6) 9. Pedi, Buscai, Batei (7:7-12) 10. Perigos no Caminho da Justi­ ça (7:13-27) 1) Os Dois Caminhos (7:13, 14) 2) Uma Ãn'ore Conhecida' por Seus Frutos (7:15-20) 3) Dizer sem Fazer (7:21-23) 4) Ouvir e Fazer (7:24-27) 11. Sumário (7:28,29) III. A Autoridade de Jesus em Pala­ vras e em Obras (8:1 — 9:34) 1. Um Leproso Purificado (8:1-4) 2. A Cura do Servo de um Centu­ rião (8:5-13) 3. Os Enfermos Curados (8:14-17) 4. O Custo do Discipulado (8:1822)

5. Uma Tempestade Acalmada (8:23-27) 6. Endemoninhados Loucos Cu­ rados (8:28-34) 7. Cura e Perdão (9:1-8) 8. A Chamada de Mateus (9:913) 9. Odres Novos Para Vinho Novo (9:14-17) 10. Uma Mulher Curada e uma Menina Ressuscitada (9:1826) 11. Dois Cegos Recebem a Vista (9:27-31) 12. Os Fariseus Protestam Contra uma Cura (9:32-34)

IV. A Compaixão de Jesus e a Comis­ são dos Doze (9:35 — 11:1) 1. A Compaixão de Jesus Pelas Multidões (9:35-38) 2. A Missão dos Doze (10:1-4) 3. Os Doze Comissionados (10:515) ,4. A Perseguição Vindoura: Se­ nhor e Discípulo (10:16-42) 1) Ovelhas no Meio de Lobos (10:16-25) 2) A Quem Temer (10:26-33) 3) Não Paz, Mas Espada (10:3439) 4) Recompensas (10:40-42) 5. Sumário (11:1) V. Várias Reações Para com Jesus (11:2-30) 1. Incerteza e Confusão (11:2-6) 2. Distorção e Violência (11:715) 3. Desprazer Infantil (11:16-19) 4. Rejeição Voluntária (11:2024) 5. Confiança Infantil (11:25-30) VI. Crescente Oposição a Jesus (12:150) 1. Superior ao Sábado (12:1-14) 1) Colher Grãos no Sábado ( 12 : 1 - 8 )

2. 3. 4. 5. 6. 7.

2) Curar no Sábado (12:9-14) A Esperança das Nações (12: 15-21) O Pecado sem Perdão (12:2232) O Juízo Inescapável (12:3337) O Sinal de Jonas (12:38-42) A Volta do Espírito Imundo (12:43-45) A Verdadeira Família de Jesus (12:46-50) 107


VII. Parábolas do Reino (13:1-52) 1. Semeador e Solos (13:1-23) 1) A Parábola Dada (13:1-9) 2) O Objetivo das Parábolas (13:10-17) 3) A Parábola Explicada (13: 18-23) 2. Joio no Meio do Trigo (13:2430) 3. Semente de Mostarda e Fer­ mento (13:31-33) 4 .O Uso das Parábolas (13:3435) 5. Parábola do Joio Explicada (13:36-43) 6. Tesouro Escondido e Pérola Cara (13:44-46) 7. Rede e Separação dos Peixes (13:47-50) 8. Tesouros Velho e Novo (13:51, 52) VIII. Rejeitado na Terra Natal, Mas Po­ pular com as Multidões (13:53 — 14:36) 1. Rejeição em Nazaré (13:53-58) 2. A Morte de João Batista (14:112 )

3. Os Cinco Mil Alimentados (14:13-21) 4. Pedro Resgatado da Tempes­ tade (14:22-33) 5. Multidões Procuram Ser Cu­ radas (14:34-36) IX. Conflito com Fariseus, Escribas e Saduceus (15:1 — 16:12) 1. Jesus Desafia a Tradição (15: 1- 20 )

2. A Fé de uma Mulher Cana­ néia (15:21-28) 3. Multidões Curadas e Alimen­ tadas (15:29-39) 4. Os Discípulos Advertidos Quanto ao “Fermento” dos Fariseus e Saduceus (16:1-12) 108

X. Cristo, a Sua Igreja e a Sua Cruz (16:13 - 17:27) 1. Cristo e Sua Igreja (16:13-20) 2. Jesus Prediz Sua Morte e Res­ surreição (16:21-28) 3. Jesus Transfigurado: Revela­ ção e Preparação Para a Cruz (17:1-13) 4. Fé Para Remover Montes (17: 14-21) 5. Os Discípulos Novamente Ad­ vertidos (17:22,23) 6. Imposto do Templo Pago, Di­ reitos Abdicados (17:24-27) XI. Instruções Para a Igreja (18:1-35) 1. A Grandeza do Reino (18:114) 1) Humildade Infantil (18:14) 2) O Pecado de Fazer um Pe­ quenino Tropeçar (18:5-9) 3) Preocupação Para Que Ne­ nhum Pequenino Pereça (18:10-14) 2. Disciplina Eclesiástica: Corri­ gir e Recuperar (18:15-20) 3. Só Quem Perdoa É Capaz de Receber Perdão (18:21-35) XII. Casamento, (19:1-15)

Divórcio,

Celibato

1. Introdução (19:1,2) 2. Casamento: Sagrado e Indis­ solúvel, exceto Pela Morte (19:3-9) 3. Celibato e Suas Exigências (19:10-12) 4. O Acesso das Crianças a Cris­ to (19:13-15) XIII. Repreensões ao Egoísmo (19:16 — 20:34) 1. O Perigo das Riquezas (19:1630)


2. Trabalhadores nu Vinha: Os Primeiros por Ültimo, os Últi­ mos Primeiro (20:1-16) 3. Terceiro Aviso cie Morte e Ressurreição Iminentes (20: 17-19) 4. Os Discípulos One Procuram os Seus Próprios Interesses Desafiados a Ser\iços Sacrificiais (20:20-28) 5. Jesus Cura Dois Cegos Repre­ endidos pela Multidão (20:2934) XIV. Entrada Triunfal em Jerusalém (21:1 - 23:39) 1. A Entrada Triunfal (21:1-11) 2. A Purificação do Templo (21: 12-17) 3. Lições Tiradas de uma Figuei­ ra Infrutífera (21:18-22) 4. A Questão da Autoridade de Jesus (21:23 — 22:14) 1) Autoridade Desafiada (21: 23-27) 2) Dois Filhos: Autoridade Reconhecida em Obediên­ cia, e Não em Palavras (21: 28-32) 3) Os Lavradores Maus: Es­ magados Pela Autoridade Rejeitada (21:33-44) 4) Endurecimento dos Princi­ pais Sacerdotes e Fariseus (21:45,46) 5) Hóspedes Desafiadores e a Ira do Rei (22:1-14) 5. Esforços Abortados Para Lo­ grar Jesus (22:15-40) 1) O Pagamento de Impostos a César (22:15-22) 2) A Questão da Ressurreição (22:23-33) 3) O Grande Mandamento (22:34-40) 6. A Pergunta de Jesus: Filho ou Senhor de Davi? (22:41-46)

Os Mscribas c Far iseus líxpostos e D e n u n c i ad o s (23:13í.) 1) A d\ er l ên c i a s C o n t r a o Seu l i x e mpl o (23:1-12) 2) Sete Ais e o J u l g a m e n t o V i n d o u r o (23:13-36)

8. Jesus Chora Sobre Jerusalém (23:37-39) XV. Juízo: Imediato e Final (24:1 — 26:2) 1. Predita a Destruição do Tem­ plo (24:1.2) 2. Ais Antes do Fim da Era (24: 3-14) 3. Destino da Judéia e Advertên­ cia Contra Falsos Messias e Profetas (24:15-28) 4. A Vinda do Filho do Homem (24:29-31) 5. Lições Tiradas da Figueira (24:32-35) 6. Desconhecido o Tempo da Pa­ rousia (24:36-44) 7. Acerca de Ficar Preparado (24:45 — 25:13) 1) O Servo Fiel e o Infiel (24: 45-51) 2) As Dez Virgens (25:1-13) 8. A Parábola dos Talentos: Os Que os Têm e os Que os não Têm (25:14-30) 9. O Juízo Final: Servir a Cristo em Servir aos Outros (25:3146) 10. Predições Acerca da Traição (26:1,2) XVI. Prisão, Crucificação e Ressurrei­ ção de Jesus (26:3 — 28:20) 1. Even tos A ntecedentes (26:3 — 27:26) 1) A Conspiração (26:3-5) 2) Jesus Ungido em Betânia (26:6-13) 109


3) Jucias Negocia a Traição (2(i:14-l()) 4) A 1’ásfoa com os Discípu­ los (26:17-25) 5) Instituição da Ceia do Se­ nhor (26:20-29) 6) Jesus Adverte os Discípulos Quanto à Traição, e Pedro Protesta (26:30-35) 7) O Getsêmane (26:36-46) 8) Traição e Prisão (26:475t)) 9) Audiência Diante de Cai­ fás (26:57-68) 10) Pedro Nega Jesus (26:6975) 11) Julgamento Diante de Pi­ latos (27:1-26) 2. A Crucificação (27:27-56) 1) Jesus Escarnecido Pelos ■ Soldados (27:27-31) 2) Jesus Crucificado (27:3244) 3) A Morte de Jesus (27:4556) ’ 3. O Sepultamento de Jesus (27: 57-66) 1) O Sepultamento (27:5761) 2) A Guarda do Sepulcro 27:62-66) 4. A Ressurreição e os Apareci­ mentos de Jesus (28:1-20) 1) Aparece às Mulheres (28: 1- 10)

2) Falso Relatório dos Guardas(28:ll-15) 3) C om issionam ento dos Discipulos (28:16-20)

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Comentário Sobre o Texto I. o Nascimento de Jesus e Come­ ço do Seu Ministério (1:1 — 4:25) I. A Genealogia de Jesus Cristo (1:117) 1 L ivro cia gen ealogia de J e su s Cristo, filho de D avi, filho de Abraão. 'i A Abraão n asceu Isaque; a Isaque n a s­ ceu J a có ; a J a có n a scera m Judá e seu s irm ãos; 3 a Judá n a scera m , de T am ar, F arés e Zará; a F a rés n a sceu E srom ; a E srom n asceu A rão; 4 a Arão n a sceu Aminadabe; a A m inadabe n asceu N asom ; a N asom n asceu Salm om ; 5 a S alm om n a s­ ceu, de R aabe, Booz; a Booz n a sceu , de R ute, Obede; a Obede n a sceu J e ss é ; 6 e a J e ssé nasceu o rei D avi. A D avi n asceu Salom ão, da que fora m u ­ lher de U rias; 7 a Salom ão n a sceu R oboão; a Roboão n asceu A bias; a A bias n a sceu A safe; 8 a A safe n asceu J o sa fá ; a J o sa fá nasceu Jorão; a Jorão n a sceu Ozias; 9 a Ozias n a sceu J o a tã o ; a Joatão n a sceu A c a z ; a Acaz n asceu E zequias; 10 a E zeq u ias n asceu M a n a ssé s; a M a n a ssés n a sceu A m om ; a Am om n asceu J o sia s; 11 e a Josias n a scera m J econ ia s e seu s irm ãos, no tem po d a deportação p ara B abilônia. 12 D epois d a deportação p ara Babilônia n asceu a Jecon ias S alatiel; a S alatiel naszeu Z orobabel; 13 a Zorobabel n a sceu Abiúd e ; a Abiúde n asceu E lia q u im ; a E liaquim nasceu Azor; 14 a Azor n a sceu Sadoque; a

Sadoque n a sceu A quim ; a A quim n asceu E liúde; 15 a E liú d e n a sceu E lea za r; a E leazar n a sceu M atã; a M atã n a sceu Jacó; 16 e a J a có n a sceu J o sé, m arido de M aria, da qual n a sceu JE SU S, que se ch a m a Cristo. 17 D e sorte que tod as a s g era çõ es, desde Abraão a té D a v i, são catorze g era çõ es; e desde D a v i a té a deportação p ara B abilônia, catorze g era çõ es; e desde a deportação para B ab ilôn ia a té o Cristo, catorze g e r a ­ ções.

Jesus Cristo, filho de Davi, filho de Abraão estabelece o tema de todo o Evangelho, embora o seu laço mais ínti-^ mo seja com a genealogia que se segue. O "tema de Mateus é que Jesus é o Messias davídico, em quem as alianças com Abraão (Gên. 12:2 e s.; 18:18) e Davi (II Sam. 7:16) se cumprem (cf. Robinson, p. 2). O tema do cumprimento não é explí' cito no titulo, mas é desvendado no Evangelho e levado adiante nos versícu­ los finais do livro (28:18-20). Mateus começa com a herança e as esperanças de Israel, que se cumprem em Jesus Cristo, e encerra o seii Evangelho com uma visão mundial (Filson, p. 52). Filho de Abraão pode ter como antece­ dente tanto Jásus como Davi. Não há dificuldade verdadeira, pois ambos são filhos de Abra-io. 111


Livro da genealogia traduz uma pala­ vra que literalmente significa gênese. Provavelmente, Mateus segue delibera­ damente um padrão de Gênesis (2:4; 5:1, 6:9; 10:1; 11:10,27). Visto que 1:18 tem uma introdução ulterior, o nascimento (gênesis) de Jesus Cristo foi assim, é provável que 1:1 introduza formalmente apenas a genealogia (1:1-17), mas tem implicações com o Evangelho todo. Em Mateus, a ascendência davídica de Jesus é tanto afirmada (também em At. 2:30 e ss., 13:23; Rom. 1:3; II Tim. 2:8; Apoc. 22:16) como esclarecida (22:4143). Jesus é visto como aauele em quem as promessas de Davi são cumpridas. mas ele é mais do que apenasoutro Davi. Èle é Senhor de Davi (22:41-43)7 bem como seu filho. Mateus vê Jesus como Messias, mas não em um sentido políti­ co. o toque artístico de Mateus, tão apa­ rente através de todo o Evangelho, é claramente visto na genealogia. De acor­ do com a sua declaração sumária (1:17), os nomes se agrupam em três séries de catorze gerações: de Abraão a Davi, de Davi até a deportação para Babilônia, e da deportação para Babilônia até Jesus. O fato de Mateus chamar atenção espe­ cial para este ponto indica a importância do número 14, para ele.

(verdadeiro filha—de Davi^ -JUhfiu-idÊ' Abraão. O que é ganho nele será euarda,' do “até a consumação dos séculos” (28: ^ '20),__1"^ ^ A genealogi^pode propiciar um^ri^togramCTíaraFína de um acróstico, para UavTrCatorze pode ser uma referência codificada a Jesus como “Davi” . A ^ ^ ^ matria é uma prática antiga de atribuir unTlíumero a uma pessoa (cf. Apoc. 13:18), computado somando-se o valor numérico de cada letra do nome da pes­ soa. A primeira letra do alfabeto tinha o valor numérico de um, a segunda de dois, etc. O nome Davi, em hebraico, tinha o valor numérico de catorze (DVD = 4 + 6 + 4). Pode ser que Mateus tenha pretendido desta forma escrever “Davi” através de cada seção da genealo­ gia. Tanto Mateus como Lucas pesquisam a ascendência de Jesus através de José (pai legal), e não de Maria. A opinião de que Lucas traça a genealogia através de Maria, esposada por Annius de Viterbo (c. 1490), deve ser rejeitada. A principal diferença entre Mateus e Lugas.é que Qvlãteus^trãçã~á~~isceiidlncia através da linhagem real de Davi e Salomão, enquantoÇLuca?)a traça a t r a ^ de Davi e Natã. A genealogia de(Luca^se preocupa com a relação de Jesus com toda a raca humana. QVIateus)está mais preocupado / A preocupação dominante da genealo­ com a ascendência real, e com o cumpri­ gia é traçar os sucessos do povo de Deus mento da herança e das e s p e r ã n ^ de desde as grandes expectativas em Abraão Israel. Os catorze clararnente pertencem ao até o aparente cumprimento em Davi (v. 2-6), depois o declínio de Davi até o exílio projeto literário de Mateus, e não devem ser considerados como um algarismo babilónico (v. 7-11), onde tudo parecia estar perdido, e finalmente do desespero exato para as gerações que pertencem a do exílio babilónico ao verdadeiro alvo cada período (cf. Broadus, p. 4 e ss.). Os em Jesus Cristo (v. 12-16). O que fora( nomes, na verdade, nâo somam catorze prometido a Abraão foi aparentemente gerações em cada período. Mateus apre­ cumprido em Davi, o Rei, sob a direção senta ^ e n a s viníe-e-sete^nomes depois de de quem os israelitas atingiram ^ a ú e Davi, enquanto Lucas apresenta quarenlhes parecia ser a era de ouro, mas o aue. ta e dois. Na consideração semítica, “fifoi ganho em Davi foi miseravelmente Uio de” podia designar uma linhagem de perdido no exílio. O verdadeiro cumiuá- ascendência tanto quanto parentesco mento do que fora prometido a Abraão e. próximo. Evidência ulterior de que cator­ a Davi encontra-se em Jesus Cristo, o ze não deve ser entendido literalmente é

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112


que há omissões aparentemente entre Salmom e Davi (v. 5), e claramente entre Jorão e Ozias (Acazias, Joás e Amazias não aparecem), e Jeoaquim é omitido no v. 11 (cf. II Reis 8:24; 23:34; 24:6; I Crôn. 3:11; II Crôn. 22:1,11; 24:27). Estas omissões tornam claro que pai de (e, em Lucas, “filho de”) devem ser considerados “não literalmente, mas co­ mo denotando paternidade de ascendên­ cia em geral” {Broadus, p. 6). Mateus deliberadamente procurou apresentar si­ metria no estilo literário da genealogia, e os catorze parecem ter valor simbólico. O estudioso pode seguramente seguir Broa­ dus em rejeitar várias tentativas para harmonizar as duas genealogias, e tam­ bém os esforços para fazer a credibilida­ de de Mateus depender de uma análise científica das genealogias (p. 5 e ss.). O seu objetivo é relacionar Jesus a Davi e a Abraão, e não apresentar um catálogo ^nealógico completo e literal. Notável é a inclusão de quatro mulhe­ res (Tamar, Raabe, Rute e a esposa de Urias). Costumeiramente, as genealogias judaicas mencionam apenas os nomes dos homens. Mateus não apenas passou por cima de mulheres como Sara, mas incluiu mulheres que se haviam envolvi­ do em atos vergonhosos, ou que eram estranhas ao povo de Israel. A viúva Tamar, fazendo o papel de prostituta, kvou fraudulentamente o seu sogro Judá a assumir a paternidade dos seus filhos gêmeos Farés e Zará (cf. Gên. 38:3-30). Raabe era uma meretriz de Jerieó que deu assistência aos invasores israelitas (Jos. 2:1-7; 6:22-25). Rute era uma moabita, e, portanto, não de Israel. BateSeba não é nomeada, mas citada como esposa de Urias, através da qual Davi foi pai de Salomão. Pode ser que Mateus tenha querido contrastar Maria e essas quatro mulhe­ res, mas a natureza poética das narrati­ vas da genealogia e do nascimento dão a entender não tanto uma polêmica contra os judeus que difamavam Maria, quanto a confissão de fé da Igreja, pois raramen­

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te a polêmica cria poesia (veja Davies, p. 66). Por que Mateus apresentou essas mu­ lheres desta forma? Claro que de manei­ ra nenhuma foi para que isso refletisse adversamente sobre Jesus. Deve ter side para enfatizar a graça de Deus sobre os pecadores, os maltratados e os desafortu­ nados. Provavelmente, foi para mostrar que a salvação é um ato da graça de Deus, e não depende do mérito humano. A inclusão de Raabe, uma cananéia, e Rute, uma moabita, apoia o universalis­ mo de Mateus, e o retrato que ele pinta de Jesus como alguém que veio para reu­ nir todas as nações sob o seu discipulado (cf. 15:22; 28:19). Jesus era filho de Davi, filho de Abraão, mas também se relacio­ nava com toda a humanidade, e veio para criar uma nova família da fé que transcende os laços da carne (12:50). A observação de Mateus, de que Rute esta­ va na linhagem de Davi, o rei, e de Jesus, demonstra uma disposição em direção a todos os povos, em flagrante contraste com o fato de que os sacerdotes negavam acesso na “assembléia do Senhor” a um “bastardo... amorreu ou moabita” nem até a “ décima geração” (Deut. 23:2 e s.). A escolha que Mateus faz da palavra gênesis (geração nas traduções mais anti­ gas, e genealogia nas modernas) parece ser um reflexo deliberado do livro de Gênesis. Ele obviamente está preocupa­ do, antes de tudo, em demonstrar a iiliação humana (v. 1-17) e divina (1:18-25) de Jesus. Ele também estar interessado ~em mostrar um novo comeco (gênese), que procede de Jesus Cristo, é uma idéia excitante. Jesus é apresentado ao fim de uma longa linhagem de pessoas que “ge­ raram” outras. Alguém pode perguntar: “A quem gerou Jesus?” Será que a cria­ ção parou em Jesus? Jesus não gerou ninguém segundo a carne, mas nele a criação continua em um nível novo e mais elevado. Mateus não chama 13 Fritz K unkel, Creation Continues, A Psychological Interpretation of the First Gospei (New York: Scrib­ ners, 194‘7) p. 22, et passim.

113


Jesus de “último Adão” , como o faz Paulo (I Cor. 15:45), nem descreve a salvação como uma nova criação (II Cor. 5:17) ou como um “nascimento de no­ vo” , como 0 faz João (3:3). Na genealogia há idéias embrionárias para se ver em Jesus uma nova “gênese” , mas a origem de Jesus, humana e divina, é a primeira preocupação de Mateus. Pode estar im­ plícita a idéia adicional de que uma nova era e uma nova criação começaram com Jesus. Embora Mateus apresente Jesus como filho tanto de Abraão como de Davi, ele toma cuidado em indicar que Jesus é também Senhor de Davi (22:41-46) e que os verdadeiros filhos de Abraão partici­ pam da sua fé, e não apenas da sua carne (3:9; 8:11; cf. 12:46-50). Mateus pode estar considerando que cumprem-se em Jesus Cristo (1:1; 28:18-20) as promessas das alianças feitas com Abraão, de que nele todas as nações seriam abençoadas (Gên. 12:2 e s.; 18:18), e a Davi, de que lhe seria dado um reino eterno e justo (II Sam. 7:16). Em Jesus há tanto uma continuidade quanto uma descontinuidade com Israel. Jesus é o cumprimento das esperanças davídico-messiânicas de Israel, mas tam­ bém no Jesus nascido de uma virgem há o início de uma nova criação. De acordo com o texto aceito para a genealogia, como seguimos aqui, o versí­ culo 16 apoia a história do nascimento virginal de Jesus. Contudo, um manus­ crito importante do quarto século, o Sinaítico Siríaco, diz: “José, que estava noivo da virgem Maria, gerou Jesus, chamado Cristo.” Uma redação se­ melhante é encontrada, com variações, em alguns manuscritos gregos (Theta e Família, 13), à margem do Lectionário 547, em alguns velhos manuscritos lati­ nos (a, c, d, g 1, q, e possivelmente b, k) e em Ambrosiaster. Estas diferenças nos manuscritos levantam a questão das tra­ dições que podem estar por detrás de Mateus, porém que Mateus aceita o nas­ cimento virginal de Jesus é coisa fora de 114

questão. Os temores de José (1:19) e as declarações claras em 1:18,23, colocam a posição de Mateus fora de qualquer dú­ vida. 2. O Nascimento de Jesus Cristo (1:18-25) 18 Ora, o n a scim en to de J esu s Cristo foi a ssim : E stan d o M aria, su a m ã e, desp osad a com J o sé, a n tes de se a ju n ta rem , e la se achou ter concebido do E spírito Santo. 19 E com o J o sé , seu esp oso, er a ju sto, e não a queria in fa m a r, intentou d eixá-la se c r e ta ­ m en te. 20 E , projetando e le isso , eis que em sonho lh e a p a receu u m anjo do Senhor, dizendo: J o sé, filho de D a v i, não tem a s receb er a M aria, tua m ulher, p ois o que nela se pernil é dn Tlspírito S an to; 21 ela d ará à luz u m filho, a q u e m ~ ch a m a rá s JE SU S; porque ele sa lv a rá o seu povo dos seu s p e ­ cados. 22 Ora, tudo isso acon teceu para que se cu m p risse o que fo ra dito da p a rte do Senhor pelo p ro feta : 23 E is que a v irg em con ceb erá e dará à luz umfilhõ^ o qual se r á cham ado EM AN UEL, que traduzido é : D eu s con osco. 24 E J o sé, tendo d espertado do sono, fez com o o anjo do Senhor lhe ordenara, e receb eu su a m ulher; 23 e não a conheceu enquanto e la não deu à luz um filho; e pôs-lhe o nom e de JE SU S.

A mesma palavra grega (genesis) é usada para a genealogia (1:1) e para o nascimento (1:18) de Jesus Cristo. Nos v. 1-17 apresenta-se o livro da genealogia; em 1:18-25 apresenta-se a história do nascimento, com interesse especml na origem divina de Jesus: nascido da vir­ gem Maria e gerado pelo Espírito Santo. Com esta ênfase primária na origem divi­ na, há uma segunda maior preocupação de Mateus. Tudo o que teve lugar em Jesus Cristo foi como cumprimento da profecia, como ela é encontrada nas Esc r i t u r ã ^ . 22). Jesus Cristo é Emanuel, Deus conosco (v.23); e o nome(^Jesüs~^ indica o seu propósito em vir para nos salvar de nossos pecados (v. 21). • , Mateus e Lucas (1:26-38) apresentam semelhantemente a história do nascimen­ to virginal de Jesus. Nt.nhum deles pari^ ce depender do outro, o que indica que a história é mais antiga do que o Evangelho.


Cada um deles conta a história com um interesse teológico. A preocupação de Lucas parece ser enfatizar o poder e a graça divinos. A pergunta de Maria, de como ela poderia ter um filho, visto que nâo tinha marido, a resposta foi: .llÇara Deus nada será impossívd“ (Luc. 1:37). MãnaTporsTmesma, nâòpodia produzir um filho, mas Deus podia dar-lhe um. Este é o evangelho; o homem não conse­ gue produzir a sua salvação, mas Deus ) pode realizá-la. Em Mateus, a ênfase está na origem divina de Jesus: o que nela se gerou é do Espirito Santo. Isto é duplamente enfati­ zado pelo nome Emanuel, o hebraico para Deus conosco. Da mesma forma como a genealofiia determina a origem humana de Jesus através de Maria até Davi e Abraão, a narrativa do nascimen­ to determina a síia origem divina através de Maria até o Espírito Santo. M ateus' não tenta explicar como Jesus Cristo podia ser tanto homem como Deus; ele simplesmente o afirma. Não há disposi­ ção para distinguir i^duasnaturezas” dentro de Jesus. Mateussirnplesmente o conhece como nascido de Maria (1:16) e *concebido pelo Espírito Santo (1:20). Ele"' conhece Jesus como verdadeiro homem, e hão aparente (docético). Ele também o conhece como EmanuenTJius conosco. Ô nome Emanuel não reaparece em Ma­ teus, mas o equivalente aparece no últi­ mo versículo do Evangelho: “e eis que eu estou convosco todos os dias, até a consu­ mação dos séculos” (28:20). Embora di­ versos em antecedentes e em natureza, como são o Emanuel de Mateus e o Logos de Joâo, ambos fazem as mesmas reivin­ dicações básicas, dc que o próprio Deus está de maneira, neculiar pre^senje e^m Jesus Cristo. Desta forma José é introduzido na his­ tória como que a reforçar essa reivindi­ cação de que Jesus não teve pai humano. Quando ficou sabendo da gravidez de Maria, concluiu uue ela lhe fora infiel. sabendo que o filho nâo era dele. José resolveu divorciar-se de Maria, e fazê-lo

em particular. A palavra dikaios pode significar iusto ou reto. Se o mencionado ãnteríõrmênte é a intenção, deve-se en­ tender que José queria tratar Maria de maneira justa. Provavelmente, isso signi­ fica que ele era jústo, e, no seu entendi­ mento de justiça, não podia pensar em continuaF um relacionamento com al­ guém de quem se pensava que era adúlte­ ra. A coniuncão pode ser traduzida como “e” ou “ mas” . “Sendo justo” e ou mas “nâo querendo infamá-la” provavelmen­ te se referem a duas coisas diferentes. Ele queria agir com retidão, o que para ele significava que precisava divorciar-se dela; ele não tinha nenhuLm_deseio-d£_sjLiiei^ tá-la a qualquer vergonha ou perigo des­ necessário. Uma adúltera podia ser ape­ drejada até a morte (Lev. 20:10; Deut. 22:23 e s.). Divórcio privado era uma provisão da lei judaica. „ ' ^ Q noivado era um arranjo legal, sendo os noivos chamados marido e mulher (Deut. 22:24), e podia ser dissolvido ape­ nas Por divórcio. José e Maria legalmente eram marido e mulher, mas não haviam consumado o casamento através da rela­ ção sexual. Só a certeza de que o filho de Maria fora gerado pelo Espírito Santo pre­ dispôs José a reter Maria como sua espo­ sa. José não a conheceu enquanto Maria não deu à luz um filho. ^Q gn^cer]’ é um termo bíblico freqüentemente usado para designar a relação sexual^ Mateus clara­ mente afirma que(José,e(Maria\nâo tive­ ram relações sexuais antes do nascimento dê Jesus. Não há nenhuma sugestão de que eles observaram essa abstinência de­ pois do nascimento de Jesus. P jJ o g m ^ a \jrâindade perpétua de Mari¥ T ^ósbíFfico, e não pertence à discussáo aqui. Embora Mateus apresente Jesus como tendo nascido de virgem, a ênfase é sobre o fato de qúe ele foi concebido' pelo Espírito Santo. Ele não faz a divindade de Jesus depender do fato de aue ele era filho de Maria, mas, sim, do Espírito Santo. Depois de Mateus e Lucas, a referencia seguinte pesquisável está em 115


(^ á c ic O d e Antioquia (c. 117) e a sua preocupação foi refutar as opiniões docéticas ou gnósticas, enfatizando a realida­ deJium ana e carnal db nasciínento de

po^a (Joel 1:8); mas aqui ela traduz a palavra hebraica almah, normalmente traduzida em grego por neanis (donze­ la).'^ Parthenos geralmente designa uma virgem, embora seja ocasionalmente Ó nascimento virginal não tem a pre; usada em relação à mulher nào virgem tensão dè ê ^ lic a r o fato de Jesus não ter (Gên 34:3 e s.). O fato de que o texto tido_peçado. Significativamente^é preci­ hebraico de Isaías 7:14 nào vá além de samente em (Mateus; e emJLucas'« onde designar uma mulher jovem (almah se aparece a hisforíà’ do nascimento virgi­ refere a uma mulher jovem de idade ca­ nal, que a atenção mais direta é dedicada sadoura,''qiTèrcãYada^~qüér não), nem às tentações de Jesus. Os dois versículos afirma nem exclui a idéia ulterior de que de^Tãfcos acerca das tentações de Jesiis a mulher era uma virgem, tanto quanto a no deserto (1:12,13) são consideravel­ declaração de Paulo de que Jesus era mente expandidos por Mateus (4:1-11) e “ nascido de mulher” (Gál. 4:4). A inten- \ por Lucas (4:1-13). Ambos representam"^ ção de Mateus de afirmar o nascimento t Hesus como tendo sido severamente tentavirginal de Jesus deve ser descoberta na » i do, e ambos atribuem à sua própria | história por ele narrada, e nào nas ambi­ ;decisão a sua completa vitória sobre a güidades das palavras hebraicas ou gre­ jtentação. Eles creditam a Jesus, e não a gas. Maria, a vitória sobre o pecado. É indefensável a idéia de que Isaías “—idéias posteriores, de que o pecado é ^ 7:14 é a origem da crença no nascimento transnútido pelo progenitor mãsõIM o eÇ virginal de Jesus (McNeile, p. 10). A aiÿ^és do sexo, são estranhas à intenção3> história contada por Lucas não faz refede Máteus e contradizem o ponto de vista rência a Isaías 7:14, e o Evangelho de bíblico acerca da criação, do sexo e do, Lucas é independente, se não mais antigo pecado, p pecado pertence á escolha do que o de Mateus. A história do nasci-1 pessoal, rnõrãl,'ê não à biologia._ Nernja mento virginal é mais antiga do que pecado nern a salvagão são transmitidos ambos os Evangelhos. Mateus apela para í?^°.SÍeamepte. As idéias gnósticas que j Isaías para apoiar uma história em que já interpretaramò nascimento virginalcomo ,i {cria. a maneira de Deus vencer a naturezas O nome Jesus,é significativo para Mapecaminosa, e especulações acerca da i teüsT vr 21 e 25). É o correspondente ‘limaculada concepção” (ou conceição) e i grego do hebraico Joshuae significa “ Yah“virgindade perpétua” de Maria são pro-: w d ij salvação” . Com alguma modifica­ cedente^ de‘êscrTtõr^õ segun3õ^éculo, ? ção, Mateus considera o nome como sugecomo o Protoevangelho dc Tiago, que é | rindo libertação ou salvação provinda de apócrifOj_s nào ao Novo Testamento. O YafiweTiV Jésus CrisTò'"veio para salvar os'^^ 1_J ^ M v-v ^ d^esus_tóo ter tido ujn pai humano ^ homens àos seus pecados. Pode haver a pertei^e^2a_e^-<?PÍha_ divina, e não aos id«a_corretiva à noção zelote de que o pfõFlemas gnósticos acerca de sexo. Messias Davídico iria salvar Israel do O versículo 23 segue á tradução da jugo romano. Mateus pode ter tido a LXX de Isaías 7:14. Parthenos é o termo preocupação adicional de rejeitar e resis­ grego que geralmente traduz o hebraico tiria alguma ameaça hj^ertmirou antinobethulah, que geralmente significa yirmiana dentro dã cgmunidadé~cristã, que gem, mas que pode significar jcwem es14 Hans Von Cam penhausen. The Virgin Birth in the Theology of the Ancient Church, “ Studies in Historical Theology, n® 2'* (Naperville: Allenson, 1964), p. 30.

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15 B roadus(p. 13) escreve: ” 0 substantivo hebraico signi­ fica ‘donzela’." E continua: “ Nào foi encontrado nenhum caso em que ele (almah) precisasse significar mulher casada.”


podia estar apresentando a salvação co­ mo uma dádiva sem exigências, como contrapartida. Para Mateus, a salvação tanto é dádiva como exigência. A salva­ ção é dos pecados tanto quanto Hõ pèca-' do. 3. Rejeição na Terra Natal, Recepção no Estrangeiro (2; 1-23) Vários dos interesses de Mateus são servidos neste capítulo: a prefiguração da rejeição final de Jesus na terra natal e aceitação pelos gentios, o cumprimento das expectativas veterotestamentárias, a linhagem davídica de Jesus, a identida­ de de Jesus como Rei dos Judeus, e ao mesmo tempo como pastor-rei do povo de Deus. e a perseguição que ele e seu povo haveriam de sofrer. 1) Os Magos do Oriente (2:1-12) 1 Tendo, pois, nascido J esu s em B elém da Judéia, no tem po do rei H erodes, eis que vieram do oriente a Jeru sa lém uns m agos que p ergu n tavam : 2 Onde està aquele que ^ nasfid o rei dos Judeu s?~poTs~ao~^5riinte^ vim o ^ a su a _ estreia e v ie m ^ _ a d o r á ^ . .3 O rei(H erodes^ouvindo isso , perturbòu-s^, e com ^ e todã~a J eru sa lém ; 4 e , reunindo todos os principais sacerd otes e os escrib as do povo, perguntava-llie^ onHe ha v ia de nasc^T o Crigto. 5 R estw nderam -lhe eles: È m T B e lé ^ da~' JudéiaT? pois a ssim está escrito pelo profetãl 6 E tu,(Belém ^terra de Judá, de m odo nlenhum é s a m enor entre as principais cidad es de Ju aa; ^ ' pofque de ti sairá o Giim que há de ap ascen ta r o m eu povo de Israel ___ 7 EntáoítT ero d e^ ham ou secretam en te os m agos, e d eles inquiriu com p recisão a cerca . do tem po em que a estrela ap arecera: 8 e, enviando-os a B elém , d isse-lh es: Ide, e perguntai diligentemeiTte pelo m enino; e, quando o achardes, participai-m o, para que tam bém eu vá e o adore. 9 Tendo e le s, pois, ouvido o rei, p a rtira m ; e eis que a estrela que tinham visto quando no oriente ia a d i-"* ante d eles, até que, chegando, se deteve sobre o lugar onde esta v a o m enino. 10 Ao verem e le s istõ", regozijaram -se com grande alegria. 11 E , entranto na ca sa , viram o m enino com M aria, su a m ã e, e prostrando-se, o adoraram ; e, abrindo os seus t e ­

souros, ofertaram -lhe dádivas: ouro, in ­ censo e m irra. 12 Ora, sendo por divina revelação av isa d o s em sonhos para nào voltarem a H erodes, reg ressa ra m à sua terra por outro cam inho.

A história da visita dos Magos do Oriente não pareceria estranha a leitores do primeiro século, e “ não viola nenhum cânon de probabilidade histórica” (Al­ len, p. 14). Em grande parte do mundo antigo havia a expectativa de um reden­ tor do mundo, e muitos judeus espe^vam um Messias (ou vários messias, coriTo em Qumran). Havia magos no Orien­ te, considerados de maneira variada co­ mo mágicos, astrólogos ou sábios. Ma­ teus pretendeu relatar” história, e não lenda. Isto não deve menosprezar a parte desempenhada pelo Velho Testamento, em moldar a forma da história, mas é arbitrário dizer que a história foi inven­ tada para suprir um cumprimento de textos do Velho Testamento. É mais pro­ vável que a história veio anteriormente, e que textos da Escritura foram então en­ contrados para sustentar e iluminar a história. Para Mateus, os Magos provavelmente possuíam um significado simbólico. embora histórico. O fato de eles têreni ido em busca de Jesus préfigura a vinda dè pessoas do !^lesísejio__oesj^’ (8:11), para se curvarem dîaiitê’^Ho^Rei dos Judeus. Como Paulo. Mateus crê que o Evangelho precisa ser pregado primeiro ao ludeu, e depois ao “ gre^o” (cf. 8:1012; 12:18-21; 15:24-28; 24:14; 28:19 com Rom. 1:16). Consentaneamente, o uni­ versalismo que é explícito nas últimas linhas de Mateus (28:18-20) percebe-se jpor^ferência desde o começo, quando J e s i^ é apresentado como Kei 'dos Judeus, aquele que deve apascentar (polmanei) o seu povo de Israel (v. 6), mas que recebe homenagens do Oriente. Belém da Judéia, sete quilômetros ao sul de Jerusalém, fora o lar de Rute e Davi, e lugar de sêpultarrienlo de itáT quel. Havia também uma Belém na Galiléia, sete milhas ao noroeste de Nazaré. Mateus e Lucas não demonstram de­ pendência nem conhecimento um do 117


outro. Eles seguem tradições diferentes, deus?” Herodes era rei por intriga. ma-‘\ não apresentando Mateus nada do relato nobras, indicação dos romanos e o uso de Lucas acerca de uma residência prévia constante da espada para eliminar rivais de José e Maria em Nazaré, e Lucas não Macabeus. ^ falando nada da narrativa feita por Ma­ Quando/Herode^icou perturbado, to­ teus acerca da fuga para o Egito, ou da a Jerusalem ficou. Isto é compreensí­ retirada da Judéia por causa de Arquevel. Quando o rei louco estava desassos-\ lau. Não obstante, ambos colocam Belém segado, nenhuma vida estava a salvo. como local de nascimento de Jesus. Isto Família, amigos e inimigos eram facil­ dá a entender duas tradições indepen­ mente vítimas do rei cruel e imprevisível. 1 dentes anteriores a Mateus e Lucas. Os principais sacerdotes e os escribas O rei Herodes era Herodes, o Grande, filho de Antípater, o idumeu. A ele foi pode referir-se ao Sinédrio judaico, a mais alta corte dos judeus, a uma reudado o título de “rei da Judéia” pelo niãoJofprm al de sacerdotes e escribas. Senado Romano, com o apoio de Antô_____________ nio e Otávio, em 40 a.C. Desta forma ele (^Herodes)reduziu a influência dessa corte [erode^rê____________ enquanto viveu, mas não a l^ o liu . Não é rompeu a dinastia Hasmoneana ou Maimprovável que~ÍIe a convocasse guando cabeana, que havia estado no governo /3esde cerca de 142 a.C. Quando o cãiètP lhe conviesse. Principais sacerdotes (arí dário cristão foi elaborado por Dionísio chiereis) pode ser traduzido como mos s^erdote&l!. Tradicionalmente, ha­ Exíguo, de Roma (século VI), ele errou em pelo menos qïïatro anos em relação via apenas um sumo sacerdote de cada vez, como herdeiro de Arão, e ele servia ' ao calendário romano mais antigo. O por um termo vitalício. Mas sob o domí­ , referido Herodes fez com que as crianças nio dos romanos, desde cerca de 63 a.C., de Belém, de até dois anos de idade, os sumos sacerdotes eram indicados e ; fossem mortas; este fato leva a crer que mudados à vontade. De acordo com Jose­ 5Jesus estava no seu segundo ano de idafo, houve 28 sumos sacerdotes de 40 a.C. I de, a essa altura. De acordo com esse ; cálculo, o nascimento de Jesus parece ter a 70 d.C., indicados ou pelos Herodes ou pelos romanos. Sumos sacerdotes oiT ocorrido não depois de 6 ou 5 a.C. O fato de Herodes ter matado os infan­ 'principais sacerdotes provavelmente sigmtica as poucas famílias aristocráticas tes de Belém concorda com todos os fatos das quais saíam os homens que preen^.j conhecidos de outra forma acerca desse chiam o ofício de sumo sacerdote. Os homem cruel. Ele executou a sua esposa favorita, a princesa macabeana Maria- i ^ cribas. no tempo de Jesus, eram especialmente fariseus, havendo alguns entre mneT^íT^seu cunhado sumo sacerdote; os essênios e saduceus. Os escribas fari­ vários de seus próprios filhos; e outras seus eram “leigos” , e não sacerdotes. pessoas que lhe eram próximas. Esse usurpador idumeu vivia temeroso de in-^ mas eram ordenados como intérpretes trigas ou assassinato, e desconfiavá da er reconhecidos da lei mosaica. temia principalmente a família Maca- í - As belas linhas do versículo_p a re c e m beana, com a qual se havia unjdo pelo^'".> vir de Miquéias 5:2, suplementado por II casamento. A interrogação dos Magos Sam ueí5:2. Belém era uma pequena acerca daquele que havia nascido rei dos* ' vila, mas não*sem importancIa~ern t ^ judeus seria suficiente para lançar o vemos de honra, pois era a terra natal de lho rei em outro acesso de suspeita, medo fflavi^^e, como se esperava, lugar de V e mveja. No texto de Mateus, “nascido” ongem do ^4eÍsIãs7)o Cristo. De grande'^ significado é o fato de que o prometido ÿ (ho techteis) não é um verbo, mas um particípio, tendo força de adjetivo. A Guia (hegoumenos) deveria apascentar o ^ seu povo Israel. Jesus^ja rei, mas não.,!^ pergunta feita pelos magos fora: “Onde e^á aquek que é nascido^ i d(^ ju^ segundo o padrão familiar. Ele era o rei 118


pastor (daí, apascentar, poimanei). Esse*^ suplemeiito é edição do próprio Mateus, ? e reflete o seu interesse particular em\S retratar(^OT^como o rei-pastor do povo ^ de DeusrTsrãel.^Um p^toV nâo^'^Îp^as^ ~gbvemaT'~eîë~^rotege e aBmenta. Mais tarde Mateus o pinta como o (21:5, 'citando Is. 62:11 Z,ac. Embora Mateus freqüentemente reflita a tensão entre o judaísmo farisaico e os ^ristâos, ele também preserva expressões ^ê"gfãnHe afeição por Israel^como nas palavras: “ guejiá_de_apasçentar^^ povo^&Jsiael” (v. 6). O tempo em que a estrela aparecera poderia ser traduzido “o tempo da estrela si^gente” , uma segunda maneira de ref5m -sê~r estrela do Oriente, literajmente, “a estrela no_seu levant^ ’\ ( í ^ l e r calculou que houve um a^ co n ju n çãÔ ^ ^ planetas J ú p i ^ e Çaturno^m maio, o ü ^ 'íubro e novembro 3ê”T‘a.C., e alguns eruditos |vêmluma alusão a esse fenôme­ no. Todavia, Mateus usa a palavra estre­ la (aster) e não constelação (astron). Provavelmente ele tinha em mente uma estrela peculiar, que marcou o nascimento, de Jesus. Mais importante para Mateus do que a estrela eram os magos (em inglês, “sá­ bios”) do oriente. A palavra magos é indo-eurpgéiai aparecendo a sua raiz em muitas línguas e tendo o sentido de grandiosidade. Os magos eram originalmente uma _ os medos, e — casta sacerdotal entre mais tarde recorihecidos como mestres de religião e ciência entre os medo-persas, com interesse especial em medicina e astrologia. Que eles eram gentios, é uinã dedíTçãõ^aceitável, devido à referência que fazem aos judeus. Oue eles eram ^^^,A um a dedução precária, decorrente da menção das ofertas de ouro, incenso e mirra. Três espécies de presentes podem ou não dar a idéia de três doadores. A lenda de aue eles eram reis Pode ter sido transmitida por inferência da passagem de Isaías 39:3. A arte medieval e os cânti­ cos de Natal popularizaram a noção de que eles eram reis, noção que contradiz

T

todos os quadros neotestamentários dos humildes começos de Jesus. Tem funda­ mento a observação defSSiiatterTide que todo o Evangelho teria sido diferente. fivesse ele começado com o fato de Deus mandar reis para homenagear Jesus. Nem as estruturas de poder da religião ’ nem as do mundo estavam do lado d e . Jesus. Só um rei (Herodes) é menciona­ do, e ^ le tentou matar Jesus. O s _ n o i^ ' _^__3ar')^Belqmo^ Baltazar são lehdánÕ jrQ ue^cTou^simboliza realeza, o incenso^(uma goma óciorifera) divindade?^ mirra (uma goma usada para perfume, especiaria, medicina, embalsamento) hu­ manidade, é também lendário, e não lan­ ça necessariamenteTüz sobre as intenções de Mateus. F-sses nresen|es. eram nor-""^ mais na época, especialmente para serem ^ r t | ^ a ^ i r e i ^ O fato de que os magos ; representam, para Mateus, o reconhe c i^ mento de Jesus por parte dos gentios êsfá’ ; de acordo com uma das suas maiores l preocupações. Mateus, interagindo corri" üm judaísmo que havia rejeitado Jesus, forçosamente deixa perceber que aceita

lhe tributaram contrasta com a inc^iferença e posterior h ^ ilid a ^ d o seu pró­ prio pm o. (^M ate^parece ver a estrela guiando os magos de Jerusalém a Belém, especifica­ mente ao lugar (v. 9) ou à casa (v. 11) onde Maria e o menino Jesus estavam. Justino M ártir, Origenes e Jerônimo pre­ servam a tradição de que Jesus n a s ç e ^ em uma caverna. Lucas, aludindo a noite em que J^e^s nàs’c era, especifica utna_ manjedoura (2:7.12). Mateus parece re­ ferir-se a um estágio posterior, quando Jesus era mais do que um recém-nascido, chãmãndo-o^e^eninò~(pãi3ion), pfovàvelmente com mais de um ano. Nesta breve passagem, o interesse cristológico de Mateus é enfático, quando ele apresenta Jesus como Rei dos Judeus, o 16 Adolf Schlatter, Das Evangelium nach (Stuttgart: Calwer, 1961), p. 15.

Matthäus

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Cristo, o Guia, e alguém a quem se presta homenagem (ou adoração). A ho­ menagem dos magos do Oriente aponta para Jesus, além do mais, como rei de todo o mundo, e não apenas de Israel. Embora ignorado por alguns e rejeitado ' por outros, ele é a alegria dos que, como os magos, o encontram (v. 1 0 ;^ :8 ) . ^ 2) A Fuga para o Egito (2:13-15) 13 E , havendo e le s se retirad o, e is que um anjo do Senhor a p a receu a J o sé e m sonho, dizendo: L evanta-té, tom a o m enino e su a m ã e, foge para o E g ito , e ali fic a a té que eu te fa le; porque H erodes h á de procurar o m enino, para o m a ta r. 14 L evantou-se, pois, tom ou de noite o m enino e su a m ã e , e partiu p ara o E gito, 15 e lá ficou a té a m orte de H erodes, p ara que se cu m p risse o que fora dito da p arte do Senhor pelo profeta: Do E gito ch am ei o m eu Filh o.

O Egito, no tempo de Jesus, era uma província romana, fora da autoridade de Herodes. Havia uma forte colônia judai­ ca no Egito, de cerca de um milhão de pessoas, segundo Filo; judeus egípcios falavam grego, e, por volta de 150 a.C., tinham o seu próprio templo em Leontópolis. Embora o Egito incluísse a penín­ sula sinaítica, e chegasse quase até Be­ lém, provavelmente Mateus tinha em mente o Egito do Nilo. Há indícios, fora de Mateus, da jorna­ da de Jesus ao Egito. O Rabi Eliézer ben Hircano (80-120 d.C.) sustentou que Je­ sus (Ben Stada) trouxe artes mágicas do Egito (Shabbath, 104b) e Origenes (Con­ tra Celsus, 1,38) teve que responder a uma tradição de que Jesus trabalhou no Egito como operário, ali aprendeu artes mágicas, e voltou para a Palestina, pro­ clamando ser um deus (cf. Justino, Apol., 1,30). Estas tradições, obviamen­ te prejudiciais, podem ter-se desenvolvi­ do do relato de Mateus, não tendo valor independente. Se são independentes, uma parte do objetivo de Mateus pode ter sido contraditar essas tradições adver­ sas, mostrando que Jesus era apenas uma criança pequena quando esteve no Egito, e não um homem crescido, capaz de 120

aprender mágica, e que ele fora levado para lá por motivos de proteção contra Herodes e trazido de volta sob divina proteção e orientação. Ê possível que a crença de que Jesus passou algum tempo no Egito seja mais antiga do que o emprego de Oséias 11:1 como texto de prova em apoio à história. Oséias havia se referido a Israel como “filho” de Deus, a quem ele chamou do Egito na época de Moisés. Mateus aplica isso a Jesus, Filho de Deus, em quem um novo povo estava para ser constituído (ou Israel reconstituído). O fato de o texto precisar ser, de alguma forma, forçado ou reinterpretado, a fim de se aplicar a Jesus, fortalece o ponto de vista de que a crença em uma jornada ao Egito seja mais antiga do que o emprego do texto. Um paralelo que ilustra o princípio operante da prova pode ser encontrado na aplicação rabíni­ ca posterior de Números 24:17 a Bar Cocheba, “filho da estrela” . Nenhum erudito sugere que a história de Bar Cocheba e a Segunda Guerra JudaicoRomana (132-135 d.C.) tenham sido inventadas para suprir um cumprimento para esse texto obscuro. Muitos dos “tex­ tos de prova” de Mateus parecem remo­ tos ou forçados na sua aplicação. Esse próprio fato argumenta em favor da prio­ ridade da crença no acontecimento sobre o emprego dos textos de prova. Os textos foram encontrados para explicar ou justi­ ficar crenças já existentes. Paralelos surpreendentes entre Jesus e Moisés aparecem neste parágrafo. Da mesma forma como Moisés fugira do Egito, para escapar a Faraó, e voltara quando o Faraó morreu (Êx. 4:19, Jesus foi tirado da Palestina, para escapar a Herodes, e voltou depois da morte deste. Da mesma forma como Deus havia cha­ mado a Israel do Egito, Jesus é chamado do Egito para salvar o seu povo. A des­ peito desses paralelos periféricos, não se segue que Mateus visse Jesus como um novo Moisés. Nas antíteses, as passagens “Eu, porém, vos digo” , no Sermão da


Montanha (5:21-48) e em outras passa­ gens, Mateus coloca Jesus acima de Moi­ sés, e não em seqüência, depois dele. Jesus veio não como um novo Moisés, mas como “Filho de Abraão, filho de Davi” , e também como o Filho de Deus, cujo paçel era cumprir a Lei e os Profe­ tas, e não outorgar outra lei. Novamente, aqui, os temas básicos são claros: rejeição de Jesus na terra natal, retirada forçada de entre o seu próprio povo, a direção de Deus em todos os pontos, a prefiguração da rejeição final e do sofrimento, a criação do povo de Deus, e o cumprimento, em Jesus, das expectações do Velho Testamento. Este parágrafo, como o conjunto dos capítulos 1 e 2, é programático, devido ao fato de apontar para um desenvolvimento du­ plo. Por um lado, estâo os humildes meios ambientes de Jesus, o seu nasci­ mento em uma vila pequena, a sua rejei­ ção e fuga, prefigurando a cruz. Por outro lado, está a mão de Deus, compe­ lindo homens de todas as espécies — bons e maus, amigos e hostis — a servir ao seu propósito último. 3) As Crianças Mortas em Belém (2:16-18) 16 E ntão H erodes, vendo que fora iludido pelos m a g o s, irou-se gran d em en te e m a n ­ dou m atar todos os m en in os de dois anos para baixo que h a v ia em B elém , e em todos os seus arred ores, segundo o tem po e m que com p recisão inquirira dos m a g o s. 17 C um ­ priu-se então o que fora dito p elo profeta J e r e m ia s: 18 E m R a m á se ouviu u m a voz. L am en tações e grande p ra n to : R aquel chorando os se u s filh os, E não querendo ser consolada, porque e le s já não ex istem .

O massacre de criancinhas é quase incrível, mas tem sido freqüentemente uma parte feia da vida de Herodes. Em 7 a.C., Herodes mandou m atar Alexandre e Aristóbulo, filhos que tivera com Mariamne, temendo que eles estivessem bus17 Franz Lau, Das Matthäus Evangelium (S tuttgart: O ncken, n .d .), p. 25.

cando apoderar-se do trono. Este ato atroz levou o Imperador Romano Augus­ to a dizer, fazendo um jogo de palavras em grego, que era melhor ser porco (hus) de Herodes do que filho (huios). Cinco dias antes de sua própria morte, Herodes mandou m atar o seu filho Antípater. Temendo que a sua própria morte fosse causar alegria no país, Herodes deixou a ordem (compreensivelmente, não obede­ cida) de que por ocasião de sua morte o filho mais velho de cada lar fosse assassi­ nado, esperando dessa forma fazer com que a nação chorasse, em vez de se regozijar. Mateus mudou a sua fórmula introdu­ tória nos versículos 16 e 17, empregando a conjunção “então” (tote), em vez de “Por­ que” (hina), possivelmente para evitar a implicação de que Deus desejara o massa­ cre dos infantes (cf. Plummer, p. 18). Esta narrativa, como as outras em Mateus 1-2, é contada de maneira muito simples, sem nenhum embelezamento novelístico. José é representado como ser­ vindo obedientemente às determinações divinas para o cuidado da criança e de sua mãe. O fato de que as diretivas vieram através de sonhos não é tão importante para Mateus como o fato de que elas vieram. O emprego que Mateus faz de Jeremias 31:15 é caracteristicamente livre em sua aplicação, evidência de que a história do infanticídio não foi inventada à parte desta passagem, mas que esse emprego foi feito para servir á história. Raquel, de acordo com a tradição, fora enterrada entre Jerusalém e Belém. Ramá distava cerca de doze quilômetros de Jerusalém, e a referência de Jeremias falava de Raquel chorando sobre os efraimitas que iam para o exílio babilónico. Raquel era a mãe de Benjamim e Efraim. Mateus aplica o versículo à tristeza existente em Belém, lugar próximo ao túmulo de Raquel. Teria sido necessária muita imaginação para inventar a história do infanticídio baseada em Jeremias31:15. O pensamen­ to cristão facilmente poderia ter adaptado 121


o versículo a uma crença já existente ou a um evento já conhecido (cf. Robinson p. 10). A pungente história aponta para o sofrimento inocente do Salvador e do seu povo. A ordem de Herodes para m atar todos os meninos de dois anos para baixo dá a entender que Jesus naquela época tinha mais de um ano, ou que o rei desnaturado fez a sua rede maior do que era necessá­ rio, não se importando nem um pouco com o número de crianças mortas, con­ quanto alcançasse a pretendida vítima. 4) Do Egito para Nazaré (2:19-23) 19 M as tendo m orrido H erodes, eis que um anjo do Senlior ap a receu em sonho a José no E gito, 20 dizendo: L evanta-te, tom a o m enino e sua m ã e e v a i p a ra a terra de Isra«!; porque já m orreram os que p ro­ cu ravam a m orte do m enino. 21 E ntão e le se levantou, tom ou o m enino e su a m ã e e foi para a terra de Isra el. 22 Ouvindo, porém , que A rquelau rein ava n a Ju d éia e m lu gar de seu p ai H erodes, tem eu ir p ara lá ; m a s avisado em sonho por d ivin a rev ela çã o , retirou-se para a s reg iõ e s da O aU léia, 2S e foi habitar num a cidade ch a m a d a N azaré; para que se cum p risse o que fora dito p elos p ro feta s: E le se r á cham ad o nazareno.

O propósito deste parágrafo é explicar por que Jesus, embora tendo nascido em Belém, era conhecido como Nazareno (mais adequadamente pronunciando Nazoreano). Mateus faz derivar esse nome da cidade de Nazaré. O fato de que Jesus era conhecido como Nazoreano e que residia em Nazaré está bem fundamenta­ do, mas a derivação e significado de Nazoreano (em grego) e a origem do que fora dito pelos profetas são problemáti­ cos. Jesus é chamado “o nazoreano” (Nazoraios em grego, traduzido como nazareno na versão da IBB) em Mateus (2:23; 26:71), Lucas (18:37; 24:19), Joâo (18:5, 7; 19:19) e Atos (2:22; 3:6; 4:10; 6:14; 22:8; 26:9). Os seus seguidores são cha­ mados nazoreanos em Atos 24:5. O pro­ blema se levanta pelo fato de Nazaré e nazoreano não parecerem ser palavras 122

cognatas. Como é que o “o” é derivado do “ a” em Nazaré? (Cf. Lohmeyer e Schmauch, p. 31 e s.). Alguns tentam derivar o termo nazoreano de “ nazireu” (naziraios ou nazarios), mas Jesus obviamente não era um nazireu. João Batista tinha alguma afinidade com os nazireus (cf. Luc. 1:15; Núm. 6), mas Jesus diferia de João nesse ponto (cf. 11:19). Foi feita a sugestão de que o termo nazireu pode ter sido primeiramente aplicado a João, e então a Jesus, como um dos primeiros seguidores de João. Ainda outra possibili­ dade é de que em um dialeto local (galileu-aramaico) o termo nazoreano e o nome da cidade (Nas’rath) fossem rela­ cionados. Outro problema insolúvel até agora é a intenção da citação do que fora dito pelos profetas. A frase Ele será chamado na­ zareno não se encontra no Velho Testa­ mento. Possíveis derivações são Isaías 11:1; Juizes 13:5; Jeremias 23:5 e Levítico 21:10-12. Alguns vêem uma alusão ao ramo (netzer) que brota do que parecia um tronco morto (Is. 11:1). Contra esta interpretação existe o fato de que “ramo” ou “rebento” não é conhecido em outras fontes como termo messiânico. O que emerge com clareza é que a prova enganosa do texto não fez surgir a tradi­ ção de que Jesus era de Nazaré, ou de que ele era conhecido como nazareno. O in­ teresse de Mateus era explicar o uso e a crença correntes. O fato de Jesus ter crescido na pequena aldeia de Nazaré (não mencionada no Velho Testamento, nem por Josefo, ou no Talmude), na desprezada “Galiléia dos gentios” (4:15), não é invenção cristã. Mateus atribui a mudança da família de Jesus para Nazaré á ameaça herodia­ na. Herodes, o Grande, morrera em 4 a.C., e o seu testamento designara o seu filho Arquelau como rei da Judéia, ‘Samá­ ria e Iduméia. Outro filho, Antipas, tor­ nou-se tetrarca da Galiléia e Peréia. (Para um terceiro filho, Filipe, veja Lucas 3:1). Augusto negou a Arquelau o título de rei, dizendo que, com a perspectiva de recom­


pensa por uma conduta adequada no seu cargo, ele mais tarde poderia ter o título de rei. Augusto lhe deu o título de “etnarca” , mas baniu-o em 6 d.C. Arquelau era o pior dos filhos de Herodes, sendo Anti­ pas um pouco melhor. A forma plural já morreram os que... refere-se a Herodes, o Grande, e possivelmente foi influenciada por Êxodo 4:19. 4. O Ministério Inaugurado (3:1 - 4:25) Em 3:1, Mateus alcança o ponto em que Marcos começa. Nos capítulo 1 — 2, Mateus segue fontes desconhecidas aos outros evangelistas, tendo um leve parale­ lismo em Lucas. Deste ponto em diante Mateus parece seguir Marcos como sua. principal fonte de narrativa, trabalhando outras narrativas e materiais didáticos no arcabouço de Marcos. Empregando um princípio tópico ou temático, ele quebra ou mesmo reverte a ordem de Marcos, quando isso serve ao seu propósito. Ele freqüentemente resume e ocasionalmente omite material de Marcos, presumivel­ mente para dar lugar para novo material, ou para servir aos seus próprios interesses redacionais ou teológicos. Alguma moldagem de materiais, para torná-los inteligíveis ou aplicáveis a uma dada situação, é válida e necessária. Por outro lado, nunca será demasiadamente enfatizado que Mateus está trabalhando com materiais que, na verdade, remon­ tam às obras e palavras de Jesus. Nos capítulos 3 e 4 há cinco assuntos principais: a pregação de João Batista (3:1-12), o batismo de Jesus (3:13-17), a tentação de Jesus (4:1-11), a mudança de Nazaré para Cafarnaum (4:12-17), e a vocação dos discípulos (4:18-25). Do pon­ to de vista das fontes, três categorias de material são encontradas: (1) material aparentemente de Marcos, (2) material estranho a Marcos, e comum a Mateus e Lucas, comumente designado como Q, e (3) material encontrado apenas em M a­ teus. Precisamente que fontes orais ou escritas estão por detrás do que é usado

por Mateus não é demonstrável em todos os casos. 1) A Mensagem do Batista (3:1-12) I N aq u eles dias a p a receu João, o B atista, pregando no deserto da Ju d éia, 2 dizendo: A rrependei-vos, porque é ch egad o o reino dos c éu s. 3 Forque e ste é o anunciado pelo profeta Isa ía s, que d iz : Voz do que cla m a no d ese r to : P rep arai o cam inho do Senhor, en d ireitai a s su a s v ered a s. 4 Ora, João u sa v a u m a v este de p elos de cam elo, e um cinto de couro e m torno de seu s lom b os; e a lim en ta v a -se de gafanhotos e m el silv e str e . 5 E n tão ia m ter com e le os de J eru sa lém , de toda a Ju d éia, e de toda a circunvizinhança do Jordão, 6 e era m por ele batizados no rio Jordão, confessando os seu s p ecad os. 7 M as, vendo e le m u itos dos fa riseu s e dos sad u ceu s que vin h am ao seu b atism o, disselh es: B a ç a de víb o ras, quem vos ensinou a fugir da ira vindoura? 8 Produzi, pois, frutos dignos de arrependim ento, 9 e não queirais dizer dentro de v ó s m e sm o s: T em os por pai a A braão; porque eu vos digo que m e s ­ m o d esta s p ed ras D eu s pode su scita r filhos a A braão. 10 E já e stá posto o m ach ad o à raiz d as á rv o res; toda á rvore, p ois, que não produz bom fruto, é cortad a e lan ça d a no fogo. II E u , n a v erd ad e, v o s batizo em ág u a , na b ase do arrependim ento; m a s aq u ele que v e m ap ós m im é m a is poderoso do que eu, que n em sou digno de levar-lh e a s a lp arcas; e le vos b atizará no E sp írito Santo, e em fogo. 12 A su a pá e le tem na m ão, e lim p ará b em a su a eira ; recolh erá o seu trigo ao celeiro, m a s q u eim ará a p alha e m fogo in extin gu ível.

João, o Batista, é apresentado como alguém já conhecido, evidência de que Mateus escreveu primariamente para a Igreja, fosse qual fosse a sua esperança de que o seu Evangelho seria lido por pessoas fora dela. A história é contada sem ne­ nhum interesse especial na pessoa de João. O naqueles dias de Mateus aparen­ temente se refere aos dias de Jesus, e não de João, que é importante apenas na medida que se relaciona com Jesus. Atenção é focalizada na mensagem de João, e Mateus descreve a sua roupa e sua dieta. A sua roupa era feita de pêlos de camelo (e não de pele de camelo), cingida 123


por um cinto de couro, e a sua dieta consistia de insetos, como gafanhotos e mel silveste, provavelmente depositado, por abelhas, em rochas ou árvores, asse­ melhando-o ao profeta Elias (II Reis 1:8; cf. Mal. 4:5 e s.; Luc. 1:17). É possível que 11:18 dê a entender uma motivação ascética por detrás da dieta de João, mas o versículo diante de nós pode implicar não mais de que João vivia do que o deserto permitia. Embora fosse de uma linha­ gem sacerdotal, João era um profeta (11:9). A sua pregação, comoé apresenta­ da por Mateus, era principalmente acerca do reino do céu, e de “ aquele que havia de vir” , e que estava próximo (v. 2 , 11 e s.). O reino dos céus (ou “reino de Deus” , indiferentemente) é o governo soberano de Deus (veja Introdução, p. 98 e 99), que Joâo vê já ter-se aproximado em aquele que vem. Ele considera o reino especial­ mente em termos de juízo (v. 7), explicado sob as analogias de machado, fogo e pá. O urgente clamor é para arrependimento, endereçado primeiramente a todos os judeus (v. 5, 9), inclusive os seus líderes fariseus e saduceus (v. 7). Mateus, dife­ rentemente de Marcos e Lucas, coloca a proclamação do reino anteriormente: no ministério de João Batista. O ministério de João, de acordo com Mateus, exerceu-se no deserto da Judéia, aparentemente a oeste do Mar Morto, mas chegando até pelo menos à parte inferior do rio Jordão (v. 6). Em algum lugar, ele deve ter atravessado o rio, e chegado à Peréia, ou à Galiléia; se não fosse assim, não teria caído sob a jurisdi­ ção de Herodes Antipas (cf. 14:1-12; João 1:28; 3:23; 10:40). Joâo provavelmente era conhecido co­ mo “o Batista” ou “o batizador” (14:2,8) não apenas porque empregava este ritual de iniciação, mas porque batizou judeus. Havia um batismo judaico de prosélitos no primeiro século, e probabilidade há que ele fosse praticado antes da época de João. Há tradições judaicas que possivel­ mente refletem a sua prática ante cristã, tão antigas como Hillel (Tosephta Pesa124

chim, 7:13; Jer. Pesach. 8:8 ou Eduyoth 5:2). O requisito talmúdio de batismo, circuncisão e um sacrifício (Kerithoth, 81®; Jeb, 46®) dá a entender um período anterior à destruição do Templo (70 d.C.), tempo depois do qual os sacrifícios no Templo se tornaram impossíveis. Não é provável que o judaísmo ortodoxo tives­ se adotado um rito cristão. Visto que o berço do cristianismo foi o judaísmo, nenhum problema haveria pelo fato de o batismo ter sido o desenvolvimento de uma prática judaica. O que foi revolucionário no batismo de João foi o batismo de judeus. Isto colocou os judeus no mesmo pé de igualdade com os gentios, chamando-os para o mesmo rito de iniciação a fim de pertencerem ao verdadeiro povo de Deus. João não permi­ tiu os fariseus nem os saduceus basearem as suas esperanças de inclusão no povo de Deus no fato de descenderem de Abraão segundo a carne, com um provável jogo de palavras aramaicas, dizendo destas pe­ dras (banin) Deus pode suscitar fílhos (abanim) a Abraão. João conclamou os seus ouvintes ao arrependimento (v. 2). A palavra grega, por etimologia, significa mudança de mente, mas isto quer dizer muito mais do que a acepção racional. O termo arrepen­ der-se (metanoiete) é mais adequadamen­ te traduzido como “converter-se” ou “vi­ rar” , como no hebraico shuv ou no ara­ maico thuv. Na presença do reino dos céus, o governo soberano de Deus, a pessoa deve voltar-se para Deus em sub­ missão. O relacionamento básico entre Deus e o homem é reconhecido no arre­ pendimento (conversão), quando o ho­ mem toma o seu lugar de súdito diante de Deus como rei. O termo Cristo (1:1) designa aquele que haveria de vir como ungido de Deus para reinar. O povo de Deus são aqueles que se apresentam em submissão ao reino de Deus, da forma como ele os confronta em Cristo. Mateus considera o reino como futuro em relação à sua plenitude, mas já presente em aquele que vem.


o versículo 3 não apenas apoia o tema de cumprimento de Mateus (Is. 40:3), mas indica uma pressuposição da maior importância em toda a teologia bíblica, istoé, a iniciativa de Deus para a salvação do homem. Em Isaías, Deus é retratado como vindo ao seu povo, exilado na Babilônia, para livrá-lo e guiá-lo para a terra natal. Mateus aplica a passagem a João e a Jesus — sendo João a voz do que clama no deserto, cuja missão é preparar o caminho do Senhor, sendo Jesus o Senhor que está vindo para salvar o seu povo. Na perspectiva bíblica, a iniciativa cabe a Deus, na criação, na revelação e na redenção. Deus cria; Deus se revela; e Deus vem ao homem para salvá-lo. Em muitos sistemas religiosos, o homem é visto descobrindo Deus e se estabelecendo diante de Deus, seja através de rituais, obras, bondade, asceticismo, conheci­ mento. ou outro fator. Grande número de judeus de Jerusa­ lém, de toda a Judéia, e de toda a circunvi­ zinhança do Jordão saiu para ouvir João. Toda é melhor etendido como hipérbole, sem nenhuma idéia de que todas as pessoas existentes nessas regiões ouviram João. (Em português essa palavra está oculta, pois o texto diz: “ iam ter com ele os de Jerusalém...”) O súbito apareci­ mento de um homem com a aparência e a mensagem de um profeta, depois de mui­ tas gerações sem profeta, fez sensação. A voz média do verbo ebaptizonto pode ser melhor traduzida como “Eles estavam se batizando” (cf. v. 6). Eles não eram passivos. Por outro lado, não é conclusivo que eles se imergiam a si mesmos. Os rituais de ablução de Qumran eram repe­ tidos diariamente, e eram efetuados, apa­ rentemente, por auto-imersão, mas tais rituais não formam os antecedentes ou modelos para o batismo de João. O seu batismo era uma inovação, ou uma adap­ tação do batismo judaico de prosélitos. O fato de que o batismo de João era por imersão não está sujeito a debate sério. A própria palavra indica um “mergulho” . A palavra batismo é construída da raiz baph

análogo a bath- em bathus, que significa “profundo” (Curtius, Greek Etymology). O alemão Taufe (tief significa fundo) preserva esta idéia. Toda a analogia de Paulo acerca de ser “ sepultado” com Cristo (Rom. 6:4) seria sem sentido fora do contexto da imersão. Seja o que for que a pessoa queira reter da intenção do batismo por qualquer outra forma, perde a força pictórica do sepultamento e res­ surreição, exceto por imersão. Mais im­ portante do que a forma do batismo, é a sua pressuposição de arrependimento (v. 2 , 8) e confissão de pecados (v. 6). Aqueles que João batizou no rio Jordão confessaram os seus pecados. O fato de que João não considerava que o seu ba­ tismo tinha poder salvador depreende-se do fato de que ele o negou aos fariseus e saduceus que não conseguiram produzir frutos (evidência) dignos de arrependi­ mento. Se João tivesse atribuído poder salvador ao batismo em si, não teria des­ culpas para negá-lo aos que, segundo o seu próprio pronunciamento, estavam no caminho do juízo vindouro (v. 7). João excluiu a esperança de que a descendência física de Abraão desse à pessoa aceitação diante de Deus (v. 9). O fato de ser judeu acarretava maiores privi­ légios (Rom. 2:17-3:2) e maiores respon­ sabilidades, mas não garantia aceitação por parte de Deus. A filiação na família de Deus é questão de fé, e não de carne. O versículo 9 antevê a inclusão dos gentios entre o povo de Deus. O batismo de João e o de Jesus diferiam no fato de que o batismo de João nas águas podia significar apenas exterior­ mente uma nova situação para os que se arrependiam e confessavam os seus peca­ dos, enquanto Jesus oferecia um batismo no Espírito Santo, e em fogo. Jesus é o portador do Espírito. O dom do Espírito não é uma “segunda bênção” especial, para os crentes de modelo de luxo; é aquela sem a qual não existe novidade de vida. Todo crente recebe o batismo (en­ chimento) do Espírito. Não há crentes não-carismáticos. O dom do Espírito não 125


é limitado a uns poucos selecionados entre os salvos, ou a uma ârea especial da vida no salvo. O Espírito Santo é Deus entran­ do em cada um dos seus filhos, para pro­ piciar nova direção, poder e significado para toda a vida. “Espiritualidade” é coisa que se relaciona com cada filho de Deus, e com todas as áreas da vida. O batismo com fogo aparentemente indica julgamento, a ser entendido jun­ tamente com as analogias do machado e da pá. O julgamento pertence à salvação como a cirurgia pertence à terapia. O julgamento pertence essencialmente ao evangelho. É boas-novas o fato de que Deus é contra o que é falso e errado, da mesma forma como é boas-novas o fato de que ele vem ao mundo para nos dar o direito à vitória sobre o erro. A mensagem de João parece ser pesada do lado do julgamento, e apenas em Jesus verifica-se o equilíbrio entre juízo e salvação plena­ mente atingido. Para ver as limitações de João basta reconhecer o que ele mesmo e Mateus reconheceram (3:11; 11:11). João considerava-se assim: nem sou digno de levar... as alparcas de Jesus. Fogo é interpretado como símbolo de julgamento, no versículo 12 , e não do Espírito Santo, como em Atos 2. A pá era usada para lançar palha e grão ao ar, sendo desta forma a palha leve soprada para o lado, e o grão mais pesado caindo no chão. A palha é queimada e o grão preservado. Argumentar, quanto ao versículo 12, em favor da completa aniquilação final do ímpio, baseando-se no fato de que ele será queimado (katakausei), é forçar o simbo­ lismo e a lógica além de qualquer intenção aparente de Mateus. Seria tão justo quan­ to “lógico” argumentar, quanto ao fogo inextinguível (asbesto), que os ímpios vão queimar eternamente, ou que haverá um suprimento infindável de ímpios para conservar o fogo aeeso. O interesse de Mateus não reside em tal “lógica” , mas em avisar que Jesus vem com uma salva­ ção que inclui julgamento e que aqueles que produzirem frutos dignos de arre­ 126

pendimento serão separados dos que não os produzirem. Mateus 3:7-10 é paralelo quase ipsis litteris de Lucas 3:7-9, refletindo uma fonte comum (provavelmente 0 ), diferen­ te de Marcos, mas há uma significativa diferença no versículo 7. Mateus fala de fariseus e saduceus, enquanto Lucas grafa “multidões” . Visto que Mateus não tinha preocupação especial com os sadu­ ceus, é provável que ele tenha retido o que encontrara na sua fonte: fariseus e sadu­ ceus. Lucas, com outros interesses, subs­ titui o que achara por “multidões” . Ma­ teus pesquisa o conflito com os fariseus, tão acalorado em seus dias, até o tempo de João Batista. Os fortes sentimentos antagônicos em relação aos fariseus são verificados por todo o livro, reaparecen­ do a acusação de raça de víboras em 12:34 e 23:33. 2) O Batismo de Jesus (3:13-17) 13 E ntão v eio J esu s da G aliléia ter com João, junto do Jordão, para se r batizado por e le. 14 M as João o im p ed ia, dizendo: Eu é que p reciso se r batizado por ti, e tu ven s a m im ? 15 J esu s, p orém , lhe respondeu: C onsente agora; porque a ssim nos convém cum prir toda a ju stiç a . E ntão e le co n sen ­ tiu. 16 B atizado que foi J esu s, saiu logo da água; e e is que se lh e ab riram os céu s, e viu o E spírito de D eu s d escendo com o pom ba, e vindo sobre e le ; 17 e e is que u m a voz dos céu s dizia: E ste é o m eu FUho am ad o, em quem m e com prazo.

Mateus é excedido apenas por João (1:6-8,15, 19-27,30; 3:22-30) no interesse em demonstrar o verdadeiro relaciona­ mento entre Jesus e João Batista. O diálogo entre João e Jesus sobre a conveni­ ência de Jesus ser batizado por João (v. 14 e s.) não se encontra nos paralelos dej Marcos (1:9-11) e Lucas (3:21 e s.).; Traços de um movimento centralizado ao j redor de João Batista, mas não de Jesus j são explícitos em Atos 19:1-7, e uma seitaj desses discípulos de João continuou bem] depois do período do Novo Testamento.| Mateus está mais interessado com ameaça farisaica exterior e a ameaç interior antlnomiana, do que com \mi;


seita rival de seguidores de João Batista, mas a sua preocupação com esta última aparece (v. 14 e s.) Parece que o que Lucas conhecia como movimento isolado (At. 19:1-7) era um problema mais sério para Mateus, e mais ainda quando o Evange­ lho de João foi escrito. Que João batizou Jesus está fora de dúvida. Este não é o tipo de história que os cristãos inventariam, pois ela levanta pro­ blemas para serem resolvidos. Os segui­ dores de João poderiam se jactar de que ele não apenas era anterior a Jesus, mas que também o havia batizado. Mateus^ mostra que o batismo teve lugar devido àl iniciativa e insistência de Jesus, sobrepu­ jando o protesto de João de que era indigno, e como reconhecimento de Jesus do que era apropriado e correto. / Mateus estava interessado não apenas com a questão de por que a pessoa que batizava apenas com água deveria batizar a que batizava “no Espírito Santo, e em fogo” , mas também com a questão de por que Jesus devia se submeter a um batismo de arrependimento, visto que era sem pecado. Não há registro de que João tenha entrado na Galiléia, mas a sua influência / e mensagem alcançaram essa região. JeI sus apresentou-se a João à margem dó rio Jordão, para ser batizado (v. 13). João tentou impedi-lo (diekoluen), protestan­ do que ele é que precisava ser batizado por Jesus. João era muito exigente acerca de todas as pessoas que vinham a ele para serem batizados, requerendo a confissão de pecados e a evidência de arrependi­ mento (conversão). Quando Jesus apare­ ceu diante dele, não fez tais exigências, ; porque não viu nenhum pecado em Jesus. Ele colocou tudo sob a exigência final de Deus, o reino (reinado) dos céus, sem rei■vindicar perfeição em si mesmo ou em outrem. Só em Jesus encontrou ele exce­ lência. Por detrás do protesto de João de que ele precisava ser batizado por Jesus, podia ter estado implícito mais do que o seu reconhecimento de indignidade. Podia ter

estado também implícito que ele precisa­ va do batismo do Espírito, que, dissera ele, aquele que viria, traria. Este fato não deve menosprezar a realidade de que o Espírito já estava sobre João, da mesma forma como não deve ser menosprezado o fato de que aquele sobre quem o Espírito viera como pomba fora gerado pelo Espí­ rito (1:20; 3:16). Contra o protesto de João, de que era indigno de batizar Jesus, atuou a insistên­ cia de Jesus de que era conveniente (prepon) e que era para cumprir toda a justiça. Jesus reconheceu o batismo de João como sendo de Deus (21:23-27), e que era conveniente que os judeus aten­ dessem àquele batismo. Os fatos de que Jesus não tinha pecado pára confessar, de que ordenou a João, e que João reconhe­ ceu a sua subordinação a ele, estão claros. Tomando lugar entre os que se submete­ ram ao batismo de João, Jesus endossou o batismo de_João e se identificou com aqúêtaT^essòas que atenderam ao cha^dorfeJoãõT E m bora sem pecado, Jesus se identificou com os pecadores a quem viera salvar (cf. Is. 53:12). O nos convém (v. 15) pode referir-se a João e Jesus, ou a Jesus e o povo com quem ele se associou. Ele se tomou um com as pessoas que precisavam se arrepender, embora fosse sem pecado (Heb. 2:17). Mas o batismo de Jesus foi mais do que isso; foi um compromisso aberto para com a sua mis­ são^ A declaração de que Jesus saiu logo da água pode descrever o fato de que ele foi levantado da água depois de ter sido imergido nela, mas provavelmente alude ao fato de ele ter saído andando do rio, e subindo o seu barranco. Logo não descre-' ve a rapidez da imersão, mas o fato de que Jesus não ficou no rio depois do seu batismo. Possivelmente algumas pessoas permanecessem por algum tempo, espe­ rando o batismo de outras, ou para con­ fessar os seus pecados. Quando Jesus foi batizado, o Espírito de Deus veio sobre ele como pomba, e ouviu-se uma voz dos céus, declarando 127


que ele era o Filho amado de Deus, em quem ele se comprazia. Mateus difere de Marcos ao empregar a expressão mais judaica, o Espirito de Deus (cf. 12:28), correspondente a “ o Espírito” de Marcos ( 1 : 10), e ao dar a entender que a voz foi ouvida por outras pessoas além de Jesus. O “ tu és” de Marcos é seguido por Lucas, mas Mateus diz este é. O “este é” de Mateus é assimilado ao este é comum a todos os sinópticos na narrativa da trans­ figuração (Mat. 17:5; Mar. 9:7; Luc. 9:35). Na história do batismo. Marcos e Lucas seguem o “tu és” de Salmos 2:7. Lucas é mais objetivo do que Marcos ou Mateus, ao dizer que o Espírito veio “em forma corpórea, como um a pomba” (3:22). Ê aparente a concordância essen­ cial no testemunho dos Sinópticos, bem como a independência e variação. Eles concordam que Jesus foi batizado por João devido à sua própria iniciativa, que João reconheceu a sua subordinação a Jesus, que o Espírito desceu sobre Jesus de maneira peculiar, e que Deus se com­ prazia com o seu Filho amado. A pomba é geralmente um símbolo rabínico de Israel, mas é também símbolo do Espírito, provavelmente assim enten­ dido no fato de que o Espírito, na história da criação, “pairava” (Gên. 1:2). João havia pregado em termos de um machado à raiz de certas árvores, da pá, através da qual palha e trigo seriam separados, e do batismo em julgamento de fogo. A vinda do Espírito como pomba permitiu_AJoão ter uma nova revelação, pois a pomba é entre as aves o que a ovelha é entre os animais. João estava certo em ver que o reino dos céus vem em juízo, mas em 11:11 está explícito que havia mais a ser dito acerca do reino do que João tinha o privilégio de saber. As exigências e julga­ mentos de Deus são sempre calcados em atos anteriores de misericórdia. Deus dá antes de exigir, e pòr detrás do seu juízohá misericórdia. No versículo 17, apresenta-se algo da compreensão que Jesus tinha de si mes­ mo. Hoje em dia, nenhum erudito quer 128

repetir o erro de gerações anteriores, de tentar “psico-analisar” Jesus. Não pode­ mos perscrutar o seu coração e sua mente, pesquisar o seu crescimento em autocompreensão, e descrevê-lo. Mas é igualmente inatingível o alvo de presumir que Jesus não se compreendia, ou que não temos sugestões de como ele se considerava. Presumir que Jesus não ponderava as questões da sua própria identidade e a obra que lhe cabia fazer, é presumir que ele era menos do que um homem normal, e isso é rejeitar o ensino claro do Novo Testamento. É irônico que alguns intér­ pretes “sabem” tanto acerca de Jesus, que chegam a saber o que Jesus sabia e o que ele não sabia! Dizer que Jesus não podia ter-se considerado como Messias ou Filho do Homem é reivindicar um conhecimen­ to que não temos (para exemplo de julga­ mento moderado, cf. McNeile, p. 32). Os Evangelhos apresentam Jesus em sua infância (Luc. 2:42-52), no seu batis­ mo, nas tentações do deserto, na transfi­ guração, no Getsêmane, e em outras partes, lutando com as profundas ques­ tões da sua identidade e da sua missão. Não considerando os significativos títulos atribuídos a Jesus, a própria maneira como ele andou entre os homens reflete uma compreensão de si mesmo como pessoa ao mesmo tempo identificada com os homens e separada deles, como alguém que podia fazer promessas e exigências tão-somente próprias de Deus. A voz dos céus, ouvida logo em seguida ao batismo de Jesus, parece refletir Sal­ mos 2:7 e Isaías 42:1 (e possivelmente Gên. 22:2 e Is. 44:2). Títulos e papéis significativos a desempenhar estão em vista aqui. Em Salmos 2, a referência é ao Filho de Deus, que é ungido para reinar, unindo desta forma os quadros de Filho de Deus e Messias real. Em Isaías 42:1 está o quadro do Servo de Deus Sofredor. Aparentemente, Jesus ponderava essas passagens, e via em si mesmo o seu cumprimento, começando com a súa consciência filial, considerando-se como


Filho de Deus de maneira especial (cf. 3:17; 17:5; Luc. 2:49). Jesus não apenas personificou em si os papéis de Filho divino e Messias real (Sal. 2), mas também o de servo de Deus (Is. 42:1); mas, de acordo com os Evangelhos, foi ele o primeiro que verificou que o Messias e o Servo Sofredor eram uma e a mesma pessoa. Mais tarde, Mateus apre­ senta a figura do Filho do Homem, tam­ bém cumprida em Jesus e interpretada em termos do Servo Sofredor. Ele vai mostrar que, quando Jesus estabeleceu o Messias ou Filho do Homem em termos do Servo Sofredor, ele não apenas contradisse as esperanças populares e poKticas, mas desafiou a resistência até no pequeno circulo dos seus próprios discípulos (cf. 16:21-28). Foi-lhes difícil ver que o reino de Deus não vem com os equipamentos exteriores de um exército conquistador, mas como o fermento: que ele conquista não com a espada, mas com uma cruz, não tirando a vida, mas dando-a. O que está implícito no versículo 17 será amplia­ do e explicado no desdobrar deste Evan­ gelho. 3) A Tentação de Jesus (4:1-11) 1 E ntão foi conduzido J esu s p elo E spírito ao d eserto, p ara ser tentado pelo D iabo. 2 E , tendo jejuado quarenta d ia s e quarenta noites, depois te v e fom e. 3 C hegando, en tão, o tentador, d isse-lh e: Se tu é s F ilh o de D eus m anda que esta s p edras se to m em em p ães. 4 M as J esu s lhe respondeu: E stá esc r ito : N em só de pão v iv erá o hom em , m as de toda p alavra que sa i da boca de D eus. 5 E ntão o D iabo o levou à cidade santa, colocou-o sobre o pináculo do tem p lo, 6 e disse-lhe: Se tu és F ilho de D eu s, !ança-te daqui a b a ix o ; porque está e sc r ito : Aos seu s anjos dará ordens a teu r e sp e ito ; e: e le s te susterão nas m ãos, para que nunca trop eces e m algu m a pedra. 7 R«plicou-Uie Jesu s: T am bém e stá e s ­ crito: N ão ten tarás o Senhor teu D eus. 8 N ovam ente o D iabo o levou a um m onte m uito alto; e m ostrou-lhe todos os reinos do m undo, e a glória d eles; 9 e disse-lh e: Tudo

isto de darei, se , prostrado, m e adorares. 10 E ntão ordenou-lhe J esu s: V ai-te, S a ta ­ n ás ; porque e stá e sc r ito : Ao Senhor teu D eus ad orarás, e só a e le serv irá s, 11 E ntão o D iabo o d eixou; e e is que v ie ­ ram anjos e o serv ia m .

Os três Sinópticos apresentam a tenta­ ção de Jesus no deserto imediatamente em seguida ao seu batismo. Marcos (1:12,13) apresenta o fato sem descrição. As narra­ tivas em Mateus e Lucas (4:1-13) são independentes de Marcos, e uma da ou­ tra. Mateus e Lucas não apenas têm algu­ mas diferenças verbais, mas diferem tam­ bém na ordem da segunda e terceira tentações. A ordem de Lucas pode ser mais primitiva, sendo a mudança, que Mateus faz, de natureza estilística, de forma a concluir com a tentação climáti­ ca. As concordâncias fraseológicas apon­ tam decisivamente para uma fonte co­ mum, que cada um deles usou com liber­ dade redacional, ou para duas fontes inti­ mamente relacionadas. Em Marcos, as tentações ocorreram durante os quarenta dias no deserto (1:13). Lucas verifica as tentações ocor­ rendo durante os quarenta dias (4:2), mas também deixa entender a sua reincidên­ cia “em ocasião oportuna” (4:13). Ma­ teus parece colocar as tentações no fim do jejum de quarenta dias (v. 2). A frase de Lucas dá a entender que as tentações do deserto foram típicas, e não isoladas. Mateus mostra a sua reincidência, refleti­ da na resposta de Jesus a Pedro: “Para trás de mim. Satanás!” (16:23) e na agonia do Getsêmane (26:36-46). As tentações de Jesus devem ser enten­ didas ao pé da letra. Elas não foram bata­ lhas simuladas, mas escaramuças reais. Refletem, provavelmente, não tanto in­ certeza de mente, quanto testes da vonta­ de (Schniewind, segundo Schlatter, p. 31). É significativo que os dois Evange­ lhos que falam do nascimento virginal de Jesus também enfatizam as suas tenta­ ções. Eles estão tão certo da sua verdadei­ ra humanidade quanto da sua origem di­ 129


vina. Em ponto nenhum eles expõem (23:24) e dos pagãos de Roma. Uma nação minúscula, sob o tacão de Roma, como fáceis as escolhas feitas por Jesus. tinha as mesmas reivindicações de liber­ Ele suportou a cruz; não a desejou. Não apreciou o seu cálice, mas o bebeu dade que qualquer outro povo. A tentação era para tomar atalhos para (26:39). Embora Jesus tenha sido tentado de alvos imediatos, usufruindo de benefícios todas as formas que o somos (Heb. 4:15), reais, ou empregar os meios errados para as tentações no deserto foram basicamen­ alcançar alvos que, pelo menos em parte, te messiânicas, tendo a ver com a sua representavam necessidades humanas vá­ missão. Por ocasião do seu batismo, ele se lidas. Mas Jesus, que podia oferecer ape­ havia visto como o Filho de Deus, escolhi­ nas uma porta estreita e um caminho do de Deus, considerado como o “Ungi­ apertado para os seus seguidores (7:13, 14), não podia escolher caminho fácil do” real de Salmos 2, e também como o Servo Sofredor de Isaías 42:1. Mais tarde, para si mesmo. os discípulos se rebelaram contra a su­ Levantam-se interrogações que nâo são gestão de que 0 Messias real (ou glorioso o interesse central de Mateus. O que Filho do Homem) deveria sofrer e ser significa Satanás? O que significa jejum? O estudioso pode inclinar-se para a crucificado (cf. 16:21-28). Não deve ser esquecido o fato de que foi precisamente opinião de quanto mais se vê que Satanás isto que não foi fácil para Jesus. é objetivo, mais se deve levar a sério essa idéia. Na verdade, o oposto é a verdade. O Aqueles que deveriam ter propiciado apoio a Jesus, fizeram o seu fardo ainda ponto de vista mais objetivo seria o que diz mais pesado. Ele o levou sozinho. Sozinho que Satanás apareceu física e visivel­ mente a Jesus. Alguém iria concluir que ele viu e aceitou tudo o que acarretava ser Satanás está presente apenas onde é fisi­ o Servo Sofredor. Ficou sem companhia camente visível? Ele nâo nos aparece humana durante as tentações no deserto. assim, de maneira objetiva, fisicamente, Em Cesaréia de Filipe eles se rebelaram mas precisa-se ir ainda mais longe. Quan­ diante da sua declaração de que ele to mais objetivamente interessado, mais precisava sofrer muitas coisas e ser morto (16:21-23). Como nas tentações no deser­ remoto Satanás se torna, e para mais distante de nós é deslocado o problema do to, Jesus outra vez precisou combater a pecado. A nossa culpa, quando muito, é tentação satânica de tentar ser o “Cristo” sem ser ao mesmo tempo o Servo Sofre­ admiti-lo em nossas vidas. Mesmo assim, a pessoa pode alegar: “Não eu, mas dor. No Getsêmane, quando o círculo mais restrito de discípulos dormiu, Jesus . Satanás.” Segue-se que, quanto mais seriamente lutou sozinho até a vitória sobre a tenta­ concebido, mais seriamente Satanás é ção reincidente de escapar ao seu cálice entendido, e mais plenamente o homem (26:36-46). aceita o fato do seu próprio pecado e As tentações no deserto foram fortes culpa. Este raciocínio não deve resolver a assaltos contra Jesus, não apenas porque questão do sentido em que Satanás deve desta forma ele enfrentou as exigências ser entendido. Quer dizer que não se quase insuportáveis do papel de servo, segue automaticamente que o ponto de mas porque o que ele foi tentado a fazer vista objetivo é o sério, e que o subjetivo é não estava separado do sabor de coisas o fácil. Seja qual for o significado de’Sataagradáveis. Ele estava com fome, bem nás, sem dúvida alguma, Jesus descobriu como muitas pessoas na terra. O homem que a essência da tentação está profunda­ não vive apenas de pão, mas também não mente arraigada no coração humano, e é vive sem ele. Por isso, também, o povo ali que ela precisa ser confrontada e precisava de um verdadeiro líder que o vencida. livrasse dos “ guias cegos” em Israel 130


Mateus escreve que Jesus jejuou qua­ renta dias e quarenta noites. Imediata­ mente o leitor pensa nos quarenta dias e quarenta noites de Moisés no monte Sinai (Êx. 24:18; 34:28), nos quarenta dias de jejum de Elias (I Reis 19:8), e nos quaren­ ta anos de Israel no deserto (Núm. 14:33 e s.;«Deut. 8:2). Algumas pessoas vêem quarenta como um número redondo, su­ gerido por estes padrões veterotestamentários, ou mesmo como uma recapitula­ ção dos quarenta anos de Israel, desta vez com um resultado positivo. Nada disto é explícito em Mateus. Ou Jesus deve ser considerado como tendo sido sustentado miraculosamente durante quarenta dias de abstinência total de comida e água, ou deve ser entendido que foi um jejum real, mas não total. A primeira tentação de Jesus (v. 3 e 4) foi para usar o seu poder para transfor­ mar pedras em pão. Mateus liga a tenta­ ção com a fome de Jesus (v. 2). As pedras no chão, ao seu redor, facilmente fariam uma pessoa pensar em pão (cf. 7:9). Embora a tentação se tenha levantado diretamente da sua própria fome, devia também ser considerada a fome do seu povo. Além do mais, o povo esperava que o Messias repetisse os mUagres do tempo de Moisés, especialmente o milagre do m aná(cf.Êx. 16; João6:30es.). Jesus, na verdade, queria que o povo tivesse pão. Ele alimentou cinco mil (14: 13-21) e fez da doação de pão aos famintos um teste básico para a relação de uma pessoa para com ele (25:31-46). Jesus nunca achou fácil satisfazer esta necessi­ dade humana. Ele estava profundamente preocupado em que o homem tivesse pão, sem o qual não poderia viver; mas estava ainda mais preocupado em que ele consi­ derasse e aceitasse o fato de que uma pessoa não pode viver só de pão, mas de toda palavra que sai da boca de Deus. Assim, a primeira tentação não deve ser descartada simplesmente como uma ten­ tação para empregar egoisticamente os poderes às suas ordens. A tentação fora para tomar um atalho para a satisfação de

uma necessidade imediata, fosse para si mesmo, no momento, fosse para o seu povo, mais tarde. O povo queria pão, com ou sem a palavra de Deus. Jesus percebeu que precisava dar-lhes a palavra de Deus, preferivelmente com pão, mas de qual­ quer forma a palavra. As palavras de Satanás: Se tu és Filho de Deus, não foram necessariamente cal­ culadas para lançar dúvida. Pelo contrá­ rio, o desígnio das palavras (ouvidas por ocasião do seu batismo) era predispor Jesus a confiantemente fazer certas exi­ gências de Deus. Mas a filiação não se manifesta através de exigências, mas de obediência (cf. Rom. 5:19; Fil. 2:8; Heb. 5:8). A segunda tentação de Jesus (v. 5-7) se relaciona com o clamor popular por “si­ nais e maravilhas” . Havia uma profecia de que o Messias iria aparecer dramatica­ mente no Templo (Mal. 3:1,2). Jesus poderia facilmente agregar a si uma mul­ tidão de seguidores, apresentando sinais e maravilhas, mas ele se recusou a edificar sobre esse alicerce(16:l-4). Ele empregou “sinais” e realizou milagres, mas não foi nem para ganhar seguidores nem para compelir alguém à fé. Jesus verificou que a verdadeira fé não tenta compelir Deus a agir, e a verdadeira fé não pode ser produzida “compelindose” sinais e maravilhas. O que Satanás propusera, um salto da torre do templo, não iria ser um ato de fé, mas de presun­ ção e provocação. Satanás apresentou esse salto como ato de confiança em Deus, que iria mandar os seus ai\jos para salvar Jesus. Jesus o via como tentar a Deus. Seria uma tentativa para forçar Deus a certo curso de ação. A verdadeira fé em Deus se manifesta em uma confiança na sua vontade amorosa e sábia, e não sim­ plesmente confiança em seu poder para prover. O fato de que a Escritura pode ser usada ou abusada é ilustrado nesta nar­ rativa da tentação. Satanás citou Salmos 91:11 e 12. Da resposta de Jesus, depreende-se que a Escritura é melhor com­ 131


preendida pela Escritura (Deut. 6:16; Êx. 17:1-7). Há textos climáticos, que resumem o ensino bíblico básico, e sâo capazes de ter-se de pé sozinhos (v.g., João 3:16); mas é muito precário usar textos isolados como textos de prova. Desta forma abusados, eles podem ser torcidos para servir a qualquer interesse, embora removidos da verdade e do di­ reito. Mateus considerou a terceira tentação do diabo (v. 8 - 10), de reivindicar os reinos do mundo como o ponto culmi­ nante. O povo judaico, na época de Jesus, cria que o Messias daria a Israel o domínio sobre as outras nações. Os zelo­ tes constantemente recorriam a revoltas militares contra os romanos, com a con­ fiança de que Deus lhes iria dar vitória. Duas guerras sangrentas foram travadas com os romanos (em 66-70 d.C. e 132135 d.C.) na vã expectativa de que Deus iria mandar o Messias conquistador para livrar Israel de Roma. Teudas e Judas (At. 5:36 e s.), e provavelmente Barrabás (27:16-21), foram tipos messiânicos, ou, para alguns, verdadeiros messias. Jesus foi forçado a tomar uma decisão com respeito às esperanças judaicas de libertação messiânica do jugo romano. Semjustificar o governo romano ou negar a legitimidade dos anseios judaicos de liberdade nacional, ele se recusou a inter­ pretar a função messiânica em termos políticos ou a igualar o reino de Deus com o reino de Israel. Ele reconheceu certas reivindicações de “César” sobre o povo (22:15-22) e rejeitou peremptoriamente o emprego da espada em seu próprio be­ nefício (26:52). A terceira tentação presumivelmente deve ser entendida em termos de uma visão, pois não existe nenhum monte muito alto do qual uma pessoa possa real­ mente ver todos os reinos do mundo. A oferta que o Diabo fez dos reinos do mun­ do tinha a condição de que ele fosse adora­ do. Jesus rejeitou esse atalho para a glória e o poder. Provavelmente esta tentação deva ser entendida como para 132

seguir o caminho de “edificação do reino” , como fora exemplificado por Davi, Judas Macabeu ou os zelotes. Jesus rejeitou esse caminho mundano para o poder mundano. Mateus posteriormente mostrará que “toda autoridade no céu e na terra” (28:18) havia sido dada àquele que havia se recusado a curvar-se diante de Satanás, no esforço de apode­ rar-se do domínio do mundo. Na lingua­ gem de Apocalipse 11:15, “o reino do mundo passou a ser de nosso Senhor e do seu Cristo” . Para aquele que se recusara a buscar os reinos do mundo, foi dado “o reino (governo) do mundo” . É significativo que as tentações vieram imediatamente depois do batismo de Jesus. Por ocasião do seu batismo, os céus se abriram, o Espírito veio, e uma voz foi ouvida, para declará-lo o amado Filho de Deus, em quem ele se comprazia (3:16 e s.) Um momento mais elevado de exaltação dificilmente pode ser imagi­ nado. Os assaltos contra a sua vontade logo se seguiram. Os momentos de gran­ de visão e exaltação são precisamente aqueles em que a pessoa está mais sujeita a tais assaltos. A vida, quanto mais alto estiver ligada à potencialidade para a verdade e o bem, mais aberta ficará para a tentação. Não está explícito que M a­ teus tivesse isto em mente. É indicado que Jesus, no limiar do seu ministério, foi compelido a escolher a estrada que devia trilhar, contra os seus impulsos pessoais e contra as expectativas populares, mas em obediência à vontade de Deus. 4) Retirada para a Galiléia (4:12-17) 12 Ora, tendo ouvido J esu s que João fora en tregu e, retirou-se p ara a G aliléia; 13 e, deixando N a za ré, foi habitar e m C afar­ naum , cid ad e m a rítim a , nos confins de Zabulom e N aftali; 14 para que se cu m p ris­ se o que fora dito pelo p rofeta I s a ía s : 15 A terra de Zabulom e a terra de N aftali, o cam inho do m ar, a lé m do Jordão, a G aliléia dos gentios, 16 o povo que e sta v a sentado em trev a s viu u m a grande lu z ; sim , a o s que e sta v a m sen tad os na região da som bra da m orte, a e ste s a luz raiou.


17 D esd e então com eço u J esu s a pregar, e a dizer: A rrependei-vos, porque é chegado o reino dos céu s.

Várias implicações se levantam da declaração quase casual: tendo ouvido Jesus que João fora entregue (preso), quando Mateus explica por que Jesus retirou-se para a Galiléia. A narrativa da prisão e decapitação de João Batista não é feita antes de 14:1-12, e, mesmo então, quase incidentalmente em relação à reação de Herodes a relatórios acerca de Jesus. De 11:2, o leitor fica sabendo da prisão de João, e de novo João é trazido para a narrativa de maneira que mostra tanto a sua grandeza quanto a sua limi­ tação, bem como a sua subordinação a Jesus. No versículo 12, Mateus presume que o leitor conheça quem é João, e já tenha conhecimento de sua prisão e exe­ cução. O Evangelho é escrito em pri­ meiro lugar para a Igreja, e presume-se que o leitor já saiba grande parte da história. Sem dúvida, Mateus pretende informar o leitor, mas ele deseja prin­ cipalmente interpretar a tradição que já pertence à Igreja. Ele demonstra respeito por João, mas também mostra que o papel dele era secundário em relação ao de Jesus. João nunca é discutido, a não ser na medida em que se relaciona com Jesus. A “retirada” de Jesus para a Galiléia não foi uma fuga de Herodes Antipas, pois Antipas era tetrarca da Galiléia e da Peréia. Por outro lado, o motivo da reti­ rada é proeminente em Mateus, pois ele mostra que Jesus foi repetidamente ame­ açado dentro da sua própria nação, e encontrou melhor recepção entre os gen­ tios (cf. 2:12, 13, 14, 22). Isto antevê o movimento no mundo gentílico. Mateus declara simplesmente que Jesus, deixando Nazaré, foi habitar em Cafamaum, cidade maritima, nos con­ fins de Zabulom e Naftali. Mas a sua palavra não é tanto “deixando” , como “abandonando” (katalipón). Mais tarde, ele falará da rejeição em Nazaré (13:5458). Lucas 4:16-30 tomou esta nairativa

fundamental em todo o seu Evangelho, mostrando como a admiração inicial quanto à “ sua inteligência e das suas respostas” se transformou em ira e inten­ tos assassinos, quando Jesus começou a mostrar, baseado nas histórias de Elias e Eliseu, que Deus jamais se limitara a Israel, mas sempre havia se interessado por outras nações. Os materiais de Mateus não estão em seqüência cronológica severa, e é signi­ ficativo que ele ligue o “abandono” (katalipón) de Nazaré e o estabelecimen­ to de Jesus nos confins de Zabulom e Naftali... Galiléia dos gentios, mostran­ do que isto era cumprimento das pala­ vras faladas por Isaías 9:1,2. Desta forma, ele mostra que a inclusão dos gentios, que já faziam parte da igreja conhecida de Mateus, era direção de Deus. Mateus segue Marcos, ao mostrar que Jesus trabalhou quase que exclusi­ vamente entre os judeus, sendo excep­ cional o seu ministério direto aos gentios (8:5 e ss.; 15:21-28); porém Mateus já está apontando para o alvo alcançado pelo comissionamento do Senhor ressus­ citado, de que todas as nações seriam trazidas ao seu discipulado (28:18 e ss.). Ele já sugerira esta idéia devido à inclu­ são de algumas mulheres na genealogia (1:2-17), na visita dos magos do Oriente e na fuga para o Egito (2:1,13), e na palavra de João acerca dos verdadeiros filhos de Abraão (3:9). Mateus escreveu acerca de alguém que era “filho de Abraão” e “filho de Davi” , mas também Salvador do mundo. Não era sem razão que a Galiléia era chamada “ dos gentios” . O território em questão outrora pertencera às tribos de Zabulom e Naftali. Juntamente com o Reino do Norte, de Israel, ela havia sido capturada pela Assíria em cerca de 722 a.C. Ela permaneceu basicamente gentia até o segundo século a.C., quando os Macabeus deram aos seus habitantes a chance de escolher entre a “conversão” , 18 Cf. Stagg, Studies in Luke’s Gospel (Nashville: Contion. 1957), p. 41-44.

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mediante a circuncisão, ou a morte. Muitos dos que desta forma foram for­ çados a entrar no judaísmo nunca foram nada mais do que judeus nominais. Mateus considerou Jesus trazendo luz a um mundo de trevas. Embora ele não chame Jesus explicitamente de “a luz” , como o faz João (1:4-9; 8:12), ele consi­ dera Jesus nessa capacidade. Mateus cita palavras de Jesus, dizendo aos seus discí­ pulos: “Vós sois a luz do mundo” (5:14); mas vê Jesus como aquele em quem uma grande luz vem para aqueles que estavam sentados na região da sombra da morte. A aplicação que Mateus faz de Isaías 9:1,2 à permanência de Jesus na Galiléia ilustra claramente como ele usava as Escrituras. O fato de que Jesus se esta­ beleceu na Galiléia pertence a todas as tradições primitivas (cf. Mar. 1:14; Luc. 4:14) e não depende da citação de Isaías. Mateus não inventou situações como cumprimento de textos de prova. Pelo contrário, ele se aproveitou do Velho Testamento para justificar ou iluminar o que já se cria havia acontecido. 5) Quatro Pescadores Chamados (4:18-22) 1 8 E J esu s, andando ao longo do m ar da G aliléia, viu dois irm ãos — Sim ão, cham ado P edro, e seu irm ão A ndré, o s quais la n ç a ­ v am a rede ao m a r, porque e ra m p e sc a ­ dores. 19 D isse-lh es: Vinde após m im , e eu vo s farei p esca d ores de h om en s. 20 E le s, pois, deixando im ed iata m en te a s red es, o segu iram . Z 1 E , passan do m a is ad ian te, viu. outros dois irm ãos — T iago, filho de Z eb e­ deu, e seu irm ão João, no b arco, co m seu pai Zebedeu, consertando a s red es; e os ch a ­ m ou. 32 E ste s, deixando im ed ia ta m en te o barco e seu pai, segtiiram -no.

Depois de Jesus, o interesse do Evan­ gelho de Mateus se focaliza, nos seus discípulos. Jesus chamou pessoas para si, Ele fez obras poderosas e ensinou “como tendo autoridade” (7:29), mas a sua principal preocupação era tornar Deus conhecido como Pai e levar as pessoas a Deus. Jesus deixou um grande compên­ dio de ensinamentos, mas não se con­ tentou simplesmente em ligar as pessoas 134

aos seus ensinos. Ele se ligou ao seu povo, e ligou-os a si. A primeira indi­ cação clara deste fato é vista na vocação dos quatro pescadores. Jesus chamou dois pares de irmãos: Simão e André, depois Tiago e João. O Evangelho de João indica que Pedro e André haviam sido anteriormente segui­ dores de João Batista, e que André influ­ enciou o seu irmão Simão Pedro a seguir a Jesus (João 1:35-42). Aparentemente, Mateus segue Marcos (1:16-20), no seu relato da vocação dos quatro pescadores. Não há, necessariamente, conflito com o Evangelho de João, pois o fato de Pedro e André terem seguido João antes deste passo ulterior no discipulado não pre­ cisa, propriamente, ser excluído. A essa altura, requer-se que os homens deixem as suas redes, ou tanto as redes como o pai, a fim de se tornarem pescadores de homens. O fato de Jesus ter sentido que tinha o direito de fazer exigências sem restrições aos homens, apresenta-se com força em todas as tradições. Eie exigiu a confi­ ança, o amor, a obediência e, se neces­ sário, as vidas dos seus seguidores. Indu­ bitavelmente, ele deu-se a eles da mesma maneira radical, ao ponto de entregar a sua vida no Gólgota. Ele ofereceu mais do que exemplo e ensino: ofereceu-se a si mesmo. Ele exigiu mais do que imitação e a aceitação dos seus ensinamentos. Pediu que as pessoas se dessem a ele. Nessa história fica bem patente que algumas pessoas se dispuseram a sub­ meter-se dessa forma às suas reivindica­ ções. Isto é da maior importância. De maneira radical, Jesus se obrigou ao seu povo, e obrigou-o a si — na vida e na morte. Este tema vai ocorrer repetida­ mente em Mateus. O simples fraseado do versículo 22 torna claro o abandono requerido por Cristo, quando ele «chama homens para segui-lo (cf. 9:9; 10:37; 19:27). Os quatro pescadores foram chamados para se tornarem pescadores de homens. A sua nova profissão era levar os homens


vivos a Cristo. Segundo o uso rabínico e grego, essa expressão geralmente tinha um sentido pejorativo (cf. Jer. 16:16), mas aqui tinha um bom sentido. Dos quatro discípulos citados, Pedro e João são os melhores conhecidos. Simão foi chamado Pedro, ou Cefas, respectiva­ mente, os nomes grego e aramaico tra­ duzidos por Pedra. Tiago deve ter sido uma pessoa agressiva, pois foi o primeiro dos doze a ser martirizado (At. 12:2). Tiago e Jacó são as formas, respectiva­ mente, grega e hebraica do mesmo nome. 6) Um Ministério Tríplice (4:23-25) 23 E percorria J esu s toda a G aliléia, ensinando nas sin a g o g a s, pregando o ev a n ­ gelho do reino, e curando todas a s doenças e enferm id ades en tre o povo. 24 A ssim a su a fam a correu por toda a Síria; e trouxeram lhe todos os que p a d ecia m , a com etid os de várias doenças e torm en tos, os en d em on i­ nhados, os lun áticos, e os p aralíticos; e ele os curou. 25 D e sorte que o seg u ia m grandes m ultidões da GaUléia, de D ecá p o lis, de Jeru salém , da Ju d éia, e dalém do Jordão.

O versículo 23 reúne três termos que, em grande parte, resumem o ministério de Jesus: ensinando, pregando e curando. Ele ensinava nas sinagogas. Onde quer que dez cabeças de famílias se reunis­ sem, uma sinagoga era permitida. As sinagogas (palavra grega que significa assembléia) surgiram não depois do exílio, mas possivelmente antes. Durante o exílio, quando os judeus foram impe­ didos de ir ao Templo, as sinagogas se tornaram centros de adoração, estudo e disciplina. Estavam sob o controle de leigos, e não de sacerdotes. Grande parte da atividade das sinagogas centralizavase no estudo da lei mosaica, talvez para compensar a negligência pela Lei, consi­ derada uma das razões do exílio. Depois do exílio, as sinagogas continuaram a funcionar ao lado do Templo restaurado, tão importante haviam-se tornado. Apôs 70 d.C., com o Templo destruído, as sinagogas adquiriram importância ainda maior e continuam, até hoje, a ser os

centros da vida judaica. Jesus ensinou nas sinagogas, indicando claramente que ele ainda estava dentro da estrutura do judaísmo. Mateus repetidamente se refere às sinagogas como suas sinagogas (cf. v. 23; 9:35; 10:17; 12:9; 13:54; 23:34) e em cada caso, exceto em 23:34, ele inseriu “deles” na fonte, sendo desta forma cla­ ramente expresso o seu interesse reda­ cional ou situação histórica. Quando ele escreveu, pode ser que os cristãos já tivessem sido expulso das sinagogas. Pregar o evangelho do reino foi uma segunda principal função do ministério de Jesus. Esta proclamação do reino de Deus era também um chamado ao arre­ pendimento. Jesus ensinava e pregava dentro das sinagogas e ao ar livre. Ne­ nhuma linha definida pode ser traçada entre o seu ensino e a sua pregação. Poderia haver proclamação do evangelho do reino sem instrução, mas o ensino era construído ao redor do evento procla­ mado. O que é chamado o Sermão da Montanha é apresentado, por Mateus, como ensino (5:2) e resumido como ensino (7:28 e s.), embora tenha fortes elementos querigmáticos ou oratórios em toda a sua decorrência. Curar constituiu uma parte impor­ tante do ministério de Jesus. Ele se inte­ ressava pelo homem total, incluindo corpo e mente. A compaixão entrava no seu ministério de cura, tanto quanto a fé. Por outro lado, como vai ser visto à medida que as narrativas de curas forem estudadas, nem todas as curas se se­ guiam à fé, e havia outros interesses além da compaixão. Em grande parte, os milagres de cura eram sinais de que o reino de Deus já chegara, pelo menos a princípio (cf. 12:28). Os poderes que por fim iriam triunfar plenamente já estavam em funcionamento em Jesus, vencendo a doença, as desordens mentais, o pecado e a morte. A fórmula tríplice de ensino, pregação e cura (v. 23) é repetida em 9:35, cin135


gindo, desta forma, o ministério de Jesus em palavras (5-7) e em obras (8 e 9).

II. O Sermão da Montanha (5 :1 -7 :2 9 ) 1. Introdução (5:1,2) 1 J esu s, pois, vendo a s m u ltid ões, subiu ao m onte; e, tendo e le se a ssen ta d o , aproxim aram -se os seu s d iscíp u los, 2 e ele se pôs a ensiná-los, d izen d o:

Provavelmente 4:25 deveria juntar-se a 5:1,2, para formar a introdução do Ser­ mão. A menção das “ multidões” em 4:25, 5:1 e s. e 7:28 e s. sustentam este ponto de vista, “Decápolis” é palavra grega que signi­ fica “ dez cidades” , uma liga, incluindo outras: Damasco, Gadara, Pela, Gerasa, Filadélfia (hoje Amam) e Citópolis, todas do lado leste do rio Jordão, menos a última. O plural “ multidões” alude aos vários grupos das diferentes áreas geográ­ ficas mencionadas. Não se sabe por que Samária, tão proeminente em Lucas e João, não é mencionada. A quem foi dirigido — Se o Sermão da Montanha foi dirigido aos discípulos apenas (v. 2) ou também às multidões (4:25; 5:2; 7:28), não pode ser resolvido conclusivamente. O antecedente grama­ tical a eles (ele se pôs a ensiná-los), no versículo 2 , pode referir-se tanto às mul­ tidões como aos seus discipulos, ou a ambos (v. 1). Em 5:1 pode estar implícito que Jesus se afastou das multidões, para se dirigir apenas aos seus discípulos, que se aproximaram. Contudo, até este ponto Mateus mencionara apenas quatro dis­ cípulos (4:18-22), e a instrução especial para os doze é mencionada pela primeira vez no capítulo 10. Além do rhais, 7:28 é explícito no sentido de que as multi­ dões ouviram Jesus e se maravilharam da autoridade com que ele ensinava. Pro­ vavelmente o sermão é dirigido a todos os que seguem a Jesus, aplicando-se as suas promessas e exigências a todos os cris­ tãos, e não apenas a uns poucos esco­ lhidos. 136

Sermão ou ensino? — O que é univer­ salmente chamado de Sermão da Mon­ tanha aparece sob o título de ensina­ mento: Jesus “ as ensinava como tendo autoridade” (7: 28 e s.). Se o material é oratório, Mateus o coloca em uma situa­ ção didática. A pregação (kerygma) e o ensino (didache) podem ser distinguidos, o primeiro tendo a ver fundamental­ mente com o acontecimento no centro do qual Cristo estava, e o último tendo a ver principalmente com as suas implicações e aplicações. Kerygma era uma procla­ mação para o mundo, e didache, instru­ ção para a Igreja. Contudo, a distinção entre kerygma e didache não deve ser forçada. Em todo didache, como no Sermão da Montanha, o kerygma é explícito ou implícito, pressupondo o ensino a proclamação do acontecimento. Mateus nos oferece Jesus Cristo, e nunca a pregação, ensino ou cura à parte dele. Origem e unidade — O que Mateus apresenta nos capítulos 5 — 7 encontra extensos paralelos, dispersos por seis capítulos de Lucas (caps. 6, 11, 12, 13, 14, 16). Um discurso muito mais breve, de alguma forma fazendo paralelo a Mateus, encontra-se em Lucas 6:20-49, freqüentemente chamado Sermão da Planície. Os paralelos mais extensos de Lucas ao sermão de Mateus são os se­ guintes: Luc. 6:20-23; 14:34,35; 16:18; 6:29,30; 6:27,28, 32-36; 11:2-4; 12:33, 34; 11:34-36; 16:13; 12:22-34; 6:37,38, 41,42; 11:9-13; 13:24; 6:43,44; 13:25-27; 6:47-49. É bem provável que Mateus aqui, como através de todo o Evangelho, tenha seguido o princípio de reunir material de ensino e narrativa ao redor de temas básicos. Isto não exclui a existência de um sermão básico, pré-Mateus, mas reco­ nhece a liberdade dada ao autor em arranjar os materiais de forma a apre­ sentar Jesus e a sua mensagem da ma­ neira mais significativa para os leitores. A intenção do sermão — Separada­ mente de uma exegese detalhada, surge a questão de como o sermão deve ser ou­


vido. Uma dúzia ou mais pontos de vista diferentes foram sugeridos. Alguns sentimentalistas se ufanam de que a única religião que desejam é o Sermão da Montanha. Será que eles já o leram? Outros, extasiados ou amedrontados pelas suas exigências grandiosas, de­ sistem, desesperados, concluindo que ele é irreal ou impossível. Uns poucos, na verdade, empreenderam a tarefa de segui-lo ao pé da letra, até o ponto de automutilação (5:29 e s.). Alguns deram a ele o epíteto de ética de ínterim ou provisória, pretendida por um breve pe­ ríodo, pouco antes de um esperado fim do mundo. Ainda outros sustentaram que o sermão se aplica apenas a clérigos, e não a leigos; ou apenas os relaciona­ mentos dentro da Igreja, mas não no mundo, embora Jesus nunca tenha endos­ sado padrões duplos que tais. O grande perigo é que não se esteja fazendo jus­ tiça, quer às extasiantes exigências, quer aos graciosos dons, ou a ambos. Nossa proposta é que o Sermão da Montanha é melhor entendido quando considerado em seu contexto, visto como a exigência final e absoluta de Deus, dirigida aos pecadores, a quem também é oferecida a aceitação, com base na misericórdia e no perdão. As exigên­ cias não devem ser diluídas ou descar­ tadas, nem mesmo o solene: “ Sede vós, pois, perfeitos, como é perfeito o vosso Pai celestial” (5:48). As reivindicações de Deus, isto é, as exigências do reino (reinado) de Deus da maneira como ele nos confronta em Cristo (ungido para reinar), são finais e absolutas. São finais no sentido de que definem de maneira cabal a questão. São absolutas no sentido de que Deus nâo divide a sua autoridade com ninguém mais. Entrar no reino de Deus é reconhecer o seu direito de domi­ nar plena e cabalmente. 19 Cf. Harvey K. MacArthur, Understanding the Sermon on the Mount (New York, Harper, 1960) para um sumário conciso. 20 Cf. Bornkamm, p. 15 — 164, e Davies, p. X, 14, 90 e ss., 96, 119, 219, 440 et passim).

Isto não significa que qualquer pessoa, exceto Jesus, preencheu essas exigências. Mas significa decisivamente que ser cristão é viver sob essas reivindicações, não importa quanto se fique aquém do seu cumprimento. Deus não requer obediência de 50 ou 99 por-cento. A sua vontade é que sejamos perfeitos. Por outro lado, o Sermão da Monta­ nha é endereçado a pecadores (7: 11), que dependem inteiramente da miseri­ córdia e perdão do Senhor (cf. 5:3-7; 6:12, 14 e s.). Em nenhum ponto o Sermão da Montanha presume que se­ jamos inculpáveis ou perfeitos. O Sermão é pronunciado em um contexto de mi­ sericórdia. Ele é precedido por uma de­ claração sumária do ministério de Jesus de curar, ensinar e pregar (4:23 e s.) e é seguido por dez relatos de misericor­ diosas curas e cuidado (8:1 — 9:34), com um quadro tocante da compaixão de Jesus pelas multidões negligenciadas (9:35-38). Os requisitos de Deus são sempre precedidos pelas suas dádivas. Da mesma forma como a lei mosaica surgiu do êxodo, o ato misericordioso de libertação de Israel do cativeiro egípcio, efetuado por Deus, assim também o Sermão da Montanha está calcado nos atos misericordiosos de libertação, efetua­ dos por Deus. Os elevados requisitos de Cristo (5:1 — 7:28) vêm de alguém que oferece ilimitado socorro (4:23 e s.; 8:1 — 9:34). O Sermão está engastado em um contexto, um arcabouço de cura e piedade (Davies, p. 90, 96). O Sermão da Montanha nâo nos deixa esperanças, exceto na misericórdia de Deus, e ao mesmo tempo coloca-nos sob requisitos morais, éticos, e outras exi­ gências pessoais, que são absolutos e finais. O cristão não pode fugir a esta “tensão” entre a dádiva e o requisito de Deus. Da mesma forma, a sua agudeza não deve ser abrandada. Uma justiça que exceda à dos escribas e fariseus é reque­ rida de pecadores, que diariamente devem perdoar e pedir perdão. O Sermão da Montanha leva a sério a necessidade 137


infinita, que o homem tem, de miseri­ córdia e as suas infinitas possibilidades morais e éticas. Por si mesmo o homem não consegue nada, mas Cristo pode trazer à luz uma nova espécie de exis­ tência naqueles que estão dispostos a ser aceitos mediante a misericórdia de Deus e a reconhecer o direito que Deus tem de reinar. O Sermão da Montanha exclui o orgulho, a superficialidade, o engano do legalismo, e também a irresponsabili­ dade moral e ética e o escapismo do antinomianismo. Não é a realização moral que leva o homem a um adequado relacionamento com Deus, mas a nova relação é por si mesma um dom de Deus, oferecido na base da misericórdia; e esta nova relação com Deus logo de início nos abre a pos­ sibilidade de cumprir o procedimento moral requerido (Conzelmann, p. 141). Aquele que ordena é também o que perdoa, salva e sustenta. Em certo sen­ tido, o Sermão da Montanha nos con­ fronta com a lei e o evangelho, mas pre­ cisa ser lembrado que a lei de Deus por si mesma é uma expressão de amor e mise­ ricórdia, pois o que ele requer pertence às nossas verdadeiras necessidades e natureza. A sua lei consiste não de regras arbitrárias, mas de princípios sem os quais não alcançamos a nossa verda­ deira existência. O reino de Deus nos vem em Jesus Cristo não como um monte de regras, mas como o reinado de alguém que ama o suficiente para dar e exigir. O Monte — Jesus, pois, vendo as mul­ tidões, subiu ao monte. O monte não é identificado, mas provavelmente a refe­ rência é a um lugar ao oeste do Lago da GaUléia, e na vizinhança de Cafarnaum (8:5). É possível, mas longe'de conclu­ sivo, que Mateus veja um paralelo entre o Sermão da Montanha e a outorga da lei no Monte Sinai. Ele não estabelece ana­ logias entre o fato de‘Moisés ter recebido a lei no Sinai e Jesus ter ensinado no monte. Lucas (6:12,17) chega mais perto de um paralelismo com Êxodo 19 do que Mateus, pois Lucas vê Jesus descendo da 138

montanha, para ensinar, como o fizera Moisés. Em Mateus, Jesus sobe para ensinar. Para Mateus, Jesus não é um novo Moisés, dando uma nova lei, mas o cumpridor da Lei e os Profetas. 2. As Beatitudes (5:3-12) 3 B em -aven tu rad os o s h u m ild es de e sp i­ rito, porque d eles é o reino dos céu s. 4 B em -aven tu rad os os que ch oram , por­ que e le s serão consolados. 5 B em -aven tu rad os o s m an sos, porque e le s herdarão a terra. 6 B em -aven tu rad os os que têm fom e e sed e de ju stiça , porque e le s serã o fartos. 7 B em -aven tu rad os os m isericord iosos, porque e le s alca n ça rã o m isericórd ia. 8 B em -aven tu rad os os lim p os de coração, porque e le s verão a D eu s. 9 B em -aven tu rad os os p a cifica d o res, p or­ que e le s serã o ch am ad os filhos de D eus. 10 B em -aven tu rad os os que são p e r se ­ guidos por ca u sa da ju stiç a , porque d eles é o reino dos céu s. 11 B em -aven tu rad os so is vós, quando vos injuriarem e p erseg u irem e, m entindo, d is­ sera m todo m a l con tra v ó s por m inha ca u sa . 12 A legrai-vos e ex u lta i, porque é grande o v o sso galard ão nos céu s; porque a ssim p ersegu iram aos p rofetas que foram an tes de vós.

Mateus parece apresentar nove beatitudes. É arbitrário encontrar dez, con­ tando os versículos 11 e 12 como duas beatitudes. Esses versículos são paralelos íntimos de Lucas 6:22,23; e Lucas conta esses dois versículos claramente como um só, apresentando quatro beatitudes (Luc. 6:20-23), compensadas por quatro ais (6:24-26). Há alguma discussão de que Mateus originalmente tinha apenas oito beati­ tudes, sendo 5:11,12 uma adição. As pri­ meiras oito estão todas na terceira pessoa, enquanto a nona está na segunda pessoa. E também as primeiras oito têm parale­ lismo e ritmo não encontrado na nona. Não existe evidência em nenhum’ manus­ crito da omissão da nona beatitude. A sua diferença estilística é melhor atri­ buída a diferenças de fontes empregadas. A nona beatitude de Mateus faz íntimo paralelo com a quarta de Lucas, e todas


as beatitudes de Lucas estão na segunda pessoa. Algumas pessoas consideram o ver­ sículo 5 como uma adição, visto que certos manuscritos revertem a ordem dos versículos 4 e 5 (veja abaixo). Sete, um número simbólico, seria alcançado se eliminássemos o versículo 5, ou se eli­ minássemos os versículos 11 e 12 , ou contássemos os versículos 10 a 12 como uma única beatitude. Isto é algo forçado. A palavra makarioi introduz cada uma das beatitudes. É uma declaração de bem-aventurança, uma interjeição que não requer uríi verbo. Não descreve os sentimentos de uma pessoa a respeito de si mesma, mas o seu estado de bemaventurança, da forma que é visto por Jesus. O significado pretendido pode ser expresso como “Oh! que felicidade é ...” , mas o familiar “Bem-aventurado” é ade­ quado. y Os humOdes de espirito (v. 3). O “vós, os pobres” , de Lucas, é provavelmente mais primitivo do que o “pobres (humil­ des) de espírito” de Mateus. Duas opi­ niões podem ser esposadas do antigo judaísmo: Uma considerando a riqueza como o favor de Deus, e a adversidade como sinal de juízo divino. A outra iden­ tificando a riqueza com a impiedade, e a pobreza com a piedade (cf. Tiago 2:5; 5:1). A beatitude de Lucas reflete o se­ gundo padrão, “ os pobres” possivelmen­ te sendo identificados com “o povo da terra” . O termo semítico por detrás do grego designa os piedosos em Israel, principalmente, mas não exclusivamente identificados com os materialmente po­ bres. Mateus remove a ambigüidade, acrescentando “ de espírito” , reconhe­ cendo que a pobreza material ou social por si não é marca de fé ou de piedade. As beatitudes enfatizam o agudo con­ traste entre a aparência externa e a reali­ dade interior. O reino dos céus pertence não àqueles que, segundo os padrões do mundo, são ricos e poderosos. Só os que abdicam de todas as reivindicações a riqueza e poder reinam com Deus. Nem

pobreza material nem espiritual é bemaventurada, mas o reconhecimento ho­ nesto e humilde do seu empobrecimento (cf. Is. 61:1) abre, à pessoa, a porta para receber as bênçãos de Deus. É precisa­ mente quando ò homem vê que não é nada, que Deus pode lhe dar da sua plenitude. Lohmeyer (p. 83) argumenta que pobres de espírito (nas versões mais modernàs, humildes) refere-se àqueles que voluntariamente aceitam a pobreza material ou até chegam a vender as suas possessões e dar aos pobres (19:21), en­ contrando em Mateus, desta forma, a mesma ênfase na pobreza exterior como em Lucas. Assim entendido, Mateus en­ fatiza a bem-aventurança da liberdade da tirania das coisas exteriores e de viver sob o domínio dos céus, ao invés de sob o domínio das coisas terrenas (cf. 6:19-34). Os que choram (v. 4) — Nem todo choro é abençoado, e muita tristeza não encontra consolo. Esta beatitude faz eco com Isaías 61:1; e, do contexto, pode-se fazer referência à tristeza que se segue à percepção da sua pobreza espiritual. Mas 0 significado não pode ser confinado à tristeza devido ao pecado. Provavel­ mente a referência é feita ao consolo que encontram agora e no juízo final aqueles que choram no tempo presente, seja de­ vido às feridas e dificuldades da vida, ou devido aos seus pecados e aos do mundo. Os mansos (v. 5) — Este versículo faz eco com Salmos 37:11. Os mansos não são os fracos ou covardes. São os que, sob as pressões da vida, aprenderam a curvar as suas vontades e colocar de lado as suas noções próprias, diante da gran­ deza e da graça de Deus (Lohmeyer, p. 86). São caracterizados por uma confian­ ça humilde, em vez de arrogância inde­ pendente. A terra não pertence aos autoconfiantes ou que se auto-afirmam, que procuram possuí-la, mas aos “ humildes de espírito” , que estão dispostos a perder tudo por causa do reino. Este paradoxo está incluso no ensinamento mais amplo, que considera que a pessoa vive por morrer, recebe porque dá, e é a primeira 139


precisamente quando está disposta a ser a última: Os que têm fome e sede de justiça (v. 6) — Esta beatitude não teve origem entre pessoas cujo problema era a obesi­ dade. Fala de um anelo de justiça, que é comparável à tal fome e sede físicas como se conhece apenas em países onde o povo morre à míngua de comida ou água. Benditos são os que anseiam pela vitória do direito sobre o erro, nas suas próprias vidas e no mundo. A esses é assegurado que a justiça de Deus prevalecerá. Este versículo é escatològico, procu­ rando cumprimento na futura consuma­ ção do reino; mas a justiça também é um alvo para o presente (3:15; 5:10,20; 6:1, 33; 21:32). A justiça e o reino andam juntos (6:33). Onde Deus reina, ele reina em justiça. Tanto o reino como a justiça esperam um cumprimento escatològico, mas ambos são realidades presentes. Os misericordiosos (v. 7) — Na miseri­ córdia e no perdão (6:12, 14 e s.; 18:2135), o receber está ligado ao dar. Não que alguém mereça misericórdia pelo fato de ter sido misericordioso, pois então isso seria recompensa baseada em méritos. Não que alguém receba perdão por per­ doar, pois novamente isso seria recom­ pensa por mérito. Também não é que Jesus estabeleceu requisitos arbitrários para se receber misericórdia ou perdão. Pelo contrário, na natureza da misericór^ dia e do perdão não pode haver recepção sem doação. A condição pessoal das pes­ soas não misericordiosas ou não perdoadoras é tal que elas são incapazes de receber. A condição que as torna sem misericórdia ou não perdoadoras, tam­ bém as torna incapazes de receber mise­ ricórdia ou perdão. Os limpos de coração (v. 8) — Limpos traduz katharos, termo usado para puri­ ficação; e pureza de coração contrasta com as purificações rituais de mãos e corpo. Nos vários grupos existentes no judaísmo, um a aguda distinção era feita entre o que era ritualmente puro e o que 140

era impuro. Jesus apagou essa distinção, no interesse da verdadeira pureza, a de coração (cf. 15:1-20, 23:25). O termo coração dava a entender todo o ser inte­ rior, a mente tanto quanto os sentimen­ tos. Ser limpo de coração é ser simples ou íntegro, em contraste com a duplicidade. Ê a concentração de todo o seu “eu” em Deus. Essa beatiüide aparentemente se baseia em Salmos 24:3 e s., mas também faz lembrar Salmos 51:10. Embora a ênfase aqui seja na pureza íntima ou integridade, contrastando-se com a lim­ peza externa, ritual, não há indiferença para com a vida exterior de palavras e atos. A pureza de coração e integridade andam juntas, sendo que a vida exterior reflete a pureza interior. Os pacificadores (v. 9) — Jesus é o “Príncipe da Paz” (Is. 9:6). Ele é a nossa paz(Ef. 2:13 e s.). A participação é ativa e positiva, e não passiva. Jesus mergu­ lhou no meio da vida humana para criar ordem no caos, reconciliação na separa­ ção, amor em lugar de ódio. Israel fora designado “filho de Deus” (Os. 11:1). Jesus ensinou que os filhos de Deus são aqueles que se unem a ele na sua obra de pacificação. Ser chamados é ser, pois o nome reflete a natureza. Embora a paz acarrete o fim da luta e da guerra, é mais do que isso. Ê harmonia com o homem através de harmonia com Deus. Perseguidos por causa da justiça (v. 10-12) — Embora formalmente restem duas beatitudes, elas constituem apenas uma declaração básica. Em algum está­ gio da transmissão, as beatitudes podem ter terminado com o versículo 10 , pois o ritmo poético não continua nos versículos 11 e 12; e deles é o reino dos céus, no versículo 10, remonta-se ao mesmo no versículo 3. Com o versículo 5„ o total seria oito, de alguma forma correspon­ dendo às quatro beatitudes e quatro ais de Lucas. Sem o versículo 5 (muitos manuscritos o colocam antes do versículo 4), haveria sete beatitudes, número per­ feito. Mas da maneira como está, Mateus


apresenta nove beatitudes, sendo a oitava r3. Sal, Luz, e uma Cidade Situada Sobre e a nona basicamente a mesma. - ■ ^ |um Monte (5:13-16). P ’ f» z V ? '' ■ J r Embora a oitava beatitude de Mateus (v. 10) seja estilisticamente mais parecida i^ •' t l 3 V ós so is o sa l da terra; m a s se o sa l se insípido, com que se há de restaurarcom as primeiras sete, a nona (v. 11 e 12) • tornar lhe o sabor? p ara nada m a is p resta, senão faz um íntimo paralelo com a quarta de' ^ para ser lançado fora, e ser p isado pelos Lucas (6:22 e s.). As diferenças fraseolò- - hom ens. gicas entre a nona de Mateus e a quarta- ' í 14 V ós so is a luz do m undo. N áo se pode escon d er u m a cidade situ ad a sobre um de Lucas sâo tão grandes, ao ponto de m onte ; 15 n em os que a cen d em u m a can d eia ~1 sugerirem fontes diferentes; nâo obstan­ a colocam debaixo do a lq u eire, m a s no te, os seus paralelos são tão notáveis, > velador, e a ssim ilu m in a a todos os que ' inclusive a mudança feita por Mateus da ^ estão na c a sa . 16 A ssim resp la n d eça a v o ssa . luz diante dos h om en s, p ara que v eja m as terceira para a segunda pessoa, que suge­ v ossas boas obras, e glorifiquem a vosso rem um a origem comum, contudo, bem P a i, que está nos céu s. r no começo da tradição. Os versículos 11 e 12 não podem ser considerados como A responsabilidade dos crentes para dependentes do v. 10 , como freqüente­ com o mundo é estabelecida em três mente se afirma. Os versículos 11 e 12 quadros, intimamente relacionados: sal, continuam o pensamento do versículo 10 , luz e uma cidade situada sobre um mon­ mas sâo-independentes por origem. te. O ministério não pertence opcional­ A perseguição ou abuso, como tal, nâo mente, mas essencialmente ao povo de é uma bênção, mas aqui promete-se bên­ Cristo. Uma marca dos remidos é que elçs y ção para os crentes no seu sofrimento por são remidores. Os verdadeiros cristãos/, Cristo (Fil. 1:29). A bem-aventurança é nao estão apenas salvos, mas são salva-/^ válida apenas quando a pessoa sofre no dores, não por si mesmos, mas na medida^ serviço de Cristo e da justiça, e quando as em que Cristo vive neles. acusações de maus atos são falsas. Uma Sal era um importante preservativo de pessoa pode sofrer oposição porque anda alimentos, bem como tempero. Sem C riserrada, é ímpia, ou simplesmente pertur­ to, somos corrompidos e corruptores, badora. Para os que, como os profetas, inas ém Cristo nos tornamos uni elemen­ sofrem por amor da verdade e do direito, to sãlvaH O T^m j^jnu]^^ perece. O : há um galardão nos céus. Não há certeza sal puro, como o conhecemos~hoje, não ^ de vingança ou de recompensa entre os perde o seu sabor; mas o sal tirado do Mar homens, agora. Com certeza a recom­ Morto, nos tempos de Jesus, era uma mis­ pensa pertence ao futuro, mas, mesmo tura de sal e outras matérias. Exposto ao agora, do ponto de vista dos céus, aque­ tempo, o sal podia perder suas proprieda­ les que desta forma sofrem estão em um des tornando-se algo que apenas tinha estado de bem-aventurança. A certeza aparência de sal. Assim, o sal comercial pertence aos que sofrem por aquilo que podia ser adulterado, tendo a mistura en­ por fim prevalecerá. fraquecida pouco ou nenhum sabor. Uma Em Mateus, a perseguição dos cristãos grande possibilidade é de que Jesus pre­ movida pelos judeus está ligada com a tendia pintar o absurdo de um saF“sem opinião de que Israel sempre perseguiu sabor” , fisicamente impossível. Não meos seus profetas. Este ponto de vista não noFãFsurdo do que sal j;em saBpr^é^b se originou de um preconceito cristão, cristianismo,sem sabor^ que não é um a mas é encontrado no próprio Velho Tes­ força salvadora no, mundo. N adaJjSiãis . tamento (cf. II Crôn. 24:20 e s.; 36:15 e desprezado. , s.; Jer. 2:30; 26:20-23; I Reis 18:4; 19:10, É possível que sal aqui seja um símbo­ 14). . .,.,5 lo de síibedoria,,Isto concordaria com á f

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cláusula que diz, literalmente: “Se o sal (sabedoria) se tornar loucura.” Ã parte de Cristo somos trevas; ele é a verdadeira luz (4:16). Mas Cristo decla­ rou ao seu povo para ser a luz do mundo. Jesus ensinou que os seus seguidores devem brilhar e brilhariam. Ele não disse que uma cidade situada sobre um monte não devia, mas que não podia ser escon­ dida. Ele não disse que os homens não devem, mas que eles simplesmente não acendem uma candeia e depois a colo­ cam debaixo do alqueire. Qualquer pes­ soa acende uma candeia para colocá-la no velador, e assim ilumina a todos que estão na casa. Sem Cristo, somos lâmpa­ das apagadas; mas ele acende as suas lâmpadas para que elas possam iluminar todos os homens. Há uma possível alusão à comunidade sectária (essênia?) em Qumran. Eles se chamavam a si mesmos “filhos da luz” , mas haviam-se afastado do mundo, in­ cluindo grande parte do judaísmo. Eles estavam escondendo, em retiro sectário aquilo que chamavam de sua luz. É significativo que Jesus nos ordena que deixemos as boas obras serem vistas, e também ajlverte contra orgulho ou e x ir bição mediante “shows” de esmolas, ora"çãcTTj^qü^m fô:4,6^ ^ ). Ele nâo oferece caminho fácil. O crente" receBeTHens ^ ã râ viver em bondade e serviço abertam ente''H ãntê'3Tm un3Õ ^as é advertido ^ ã ra söTaze^lo'para glôria de Deus. 4. Jesuse a Lei (5:17-20) 17 N ão p en seis que v im destruir a lei ou os p rofetas: não v im destruir, m a s cum prir. 18 P orque em verdade v o s digo que, até que o céu e a terra p a ssem , de m odo nenhum p assará da lei u m só i ou um só til, até que tudo se ja cum prido. 19 Qualquer, pois, que violar um d estes m an d am en tos, por m enor que se ja , e a ssim ensinar aos h om ens, será cham ado o m enor no reino dos c é u s ; aquele, porém , que os cum prir e ensinar se rá ch a ­ m ado grande no reino dos céu s. 20 P o is eu vos digo que, se a v o ssa ju stiç a não exced er a dos escrib a s e fa riseu s, de m odo nenhum entrareis no reino dos céu s.

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Estes versículos aparecem apenas em Mateus, e trazem para a ribalta a oposi­ ção à interpretação farisaica da Lei mo­ saica, e a evasão antinomiana da Lei. Presume-se, aqui, que Jesus, na verdade, estava sendo acusado pelos fariseus de estar destruindo a Lei, e que outros erroneamente interpretavam a sua liber­ dade do legalismo como o desejo de se isentar da Lei. Os versículos 17 e 18 poderiam ser uma resposta tanto para as acusações farisaicas de que Jesus estava destruindo a lei e os profetas (as duas partes mais antigas do Velho Testamento) como fora a afirmação antinomiana de que a liber­ dade em Cristo significava a abolição da Lei. Para ambas se dirige a advertência de que a pessoa não deve começar a pensar (esta é a força do grego) que Jesus veio para abolir a Lei ou os Profetas. Ele não veio para abolir, mas para cumprir. Cumprir não significa apenas levar a efeito as predições, mas a realização da intenção da Lei e dos Profetas. Em con­ traste com os fariseus, Jesus expressou o significado verdadeiro e mais profundo da Lei, e, na verdade, correspondeu às suas intenções. Os antinomianos foram avisados de que nem um só i (letra menor do alfabeto grego) nem um só til (provavelmente um pequeno traço que formava parte de uma letra hebraica) passariam, mas que a Lei toda iria ser cumprida. O versículo 18 não deve ser interpretado de forma a contradizer a recusa do próprio Jesus em ser obrigado a uma interpretação inflexí­ vel e literal da Escritura. Este versículo pode ser melhor entendido como o seu protesto contra a disposição de colocar a Lei de lado. Tê s u s f r a õ que parece ser uma declaração extrema^ Os seus atos e ensinamentos demonstram que ele sem­ pre levou a Escritura a sério, mas nem sempre a considerou literalmente. Levar ao pé da letra pode ser tornar a Escritura trivial. Jesus não foi um neolegalista, tornando suprema a letra da Lei. A sua declaração eu vos digo mostra que ele


estava acima da Lei, e não ela acima dele. Significativamente, o seu primeiro “eu vos digo” aparece neste versículo. _ O versículo 19 é dirigido especialmente \ contra os antinomianos, advertindo-os a i não fazerem pouco caso de nenhum dos / mandamentos. A salvação é dádiva di~' Deus em misericórdia e perdão, mas os seus requisitos por isso não se relaxam. Não deve ser tolerada licenciosidade em nome de liberdade. O versículo 20 pode dirigir-se tanto contra os fariseus como contra os antino­ mianos. A justiça farisaica não satisfaz, tanto por causa de uma compreensão inadequada da Lei, como por não conse­ guir prestar verdadeira obediência ao que era compreendido. Jesus cumpriu a Lei e os Profetas, como intérprete final, tanto quanto devido à obediência total. A “justiça” farisaica é inadequada, e os antinomianos devem ter como alvo uma justiça maior, e não menor do que a encontrada entre os escribas e fariseus. Mateus parece não fazer distinção entre escribas (mestres da Lei) e o número maior de fariseus leigos. Jesus aceitou a Lei do Velho Testamen­ to em princípio e como compulsória per­ manentemente, mas ele interpretou Es­ critura com Escritura, elevando os requi­ sitos morais e éticos, e a primazia das leis pessoais sobre as leis rituais. Para ele, o que afinal de contas importava eram Deus e o homem — e não o sábado, a purificação de mãos, e coisas semelhan­ tes. O melhor comentário a este parágra­ fo é o que segue imediatamente a ele: seis ilustrações do que Jesus queria dizer quando falou em cumprimento da Lei. 5. As Intenções da Lei (5:21-48) Estas seis antíteses aparentemente co­ locam os Eu, porém, vos digo de Jesus sobre e contra a Lei. Na verdade, é a in­ terpretação da Lei feita por Jesus que se coloca sobre e contra a dos fariseus (Hu­ mmel, p. 50). Jesus não outorgou uma nova lei, mas, pelo contrário, desvendou

as intenções da antiga, e levou-a até a sua expressão mais completa. 1) A Essência do Homicídio (5:21-26) 31 O uvistes que foi dito a o s an tigos: N ão m a ta rá s; e, Quem m a ta r será reu de juízo. 22 E u, porém , vos digo que todo aquele que se en colerizar contra seu irm ão será réu de juízo; e quem d isser a seu irm ão: R aca, será réu diante do sinédrio; e quem lhe d isser: Tolo, se r á réu do fogo do inferno. 33 P ortan to, se e stiv e r e s apresentando a tua oferta no alta r, e a í te lem b rares de que teu irm ão tem a lg u m a co isa contra ti, 24 d eix a a li diante do a lta r a tua oferta, e v a i recon ciliar-te p rim eiro com teu irm ão, e depois v em ap resen ta r a tua o ferta. 25 Con­ cilia-te d ep ressa com o teu ad versário, e n ­ quanto e stá s no cam inho com e le ; para que não a co n teça que o ad versário te entregue ao ju iz, e o juiz te en tregu e ao guarda, e seja s la n ça a o n a p risão. 26 E m verd ad e te digo que de m a n eira a lg u m a sa irá s dali enquanto não p a g a res o ú ltim o ceitU.

Jesus abalançou-se até a disposição, a atitude ou intenção do pecado. O ato de homicídio propriamente dito tem suas raízes na ira, hostilidade ou desprezo por outrem. Jesus citou a ira (“ sem causa” em alguns manuscritos é possivelmente uma glosa do escriba), o fato de se insultar o irmão (raca é um termo que expressa desprezo, mas o seu significado exato é incerto), e chamar alguém de tolo (more, também um termo que expressa desprezo, mas pode referir-se a uma pes­ soa como teimosa e insubordinada) como sendo crimes pelos quais uma pessoa será levada perante a corte de justiça (corte local de 23 pessoas), o Sinédrio (junta governamental mais alta dos judeus), ou pelo qual ela esta sujeita à Geena. Ne­ nhuma corte procura condenar uma pes­ soa com base em sentimentos ou atitu­ des, mas sentimentos de ira e de desprezo são tão perigosos quanto os crimes pro­ priamente ditos, pelos quais uma pessoa é levada aos tribunais ou considerada merecedora do inferno. As palavras de Jesus não devem ser transformadas em um novo legalismo. Devem ser entendidas como protestos 143


radicais e advertências contra sentimen­ tos errados contra outrem. Isto não quer dizer que é tão errado matar quanto ter maus sentimentos ou má vontade para com outra pessoa. A vítima preferiria ser odiada a ser morta, e é melhor trazer o ódio sob controle, antes que resulte em homicídio, do que deixá-lo correr livre­ mente o seu curso. Na ocorrência repetida de teu irmão observa-se que Jesus tinha em mente a sua própria comunidade, pois esta é uma expressão usada em Mateus apenas para um irmão pertencente ao círculo cristão. Ira e desprezo não são apenas autodestruidoras, mas destroem a comunhão da igreja. O versículo 23 tem em vista não uma sinagoga, mas o Templo. É melhor inter­ romper ou abandonar o ritual do Tem­ plo, a fim de procurar reconciliação, do que tentar adorar a Deus enquanto ao mesmo tempo indisposto com o seu ir­ mão. Jesus nunca permite que a pessoa isole a sua relação com Deus da com o seu próximo. Ninguém pode compelir o seu irmão a ir com ele diante do altar de Deus para se reconciliarem, mas a pessoa não tem acesso a Deus, a nâo ser que procure aproximar-se do altar de Deus juntamente com seu irmão. Os versículos 25-26 recomendam que a reconciliação seja buscada independente­ mente dos tribunais, com a advertência de que se a pessoa escolher diferentemen­ te, precisa então deixar que os tribunais resolvam o caso. Os crentes são recomen­ dados a resolver as suas dificuldades numa relação direta uns com os outros (18:15-20; I Cor. 6:1-11). 2) Concupiscência e Adultério (5:27-30) 37 O uvistes que foi dito: N ão a d u lterarás. 28 E u, porém , vos digo que todo aquele que olhar para um a m ulher p ara a cob içar, já em seu coração com eteu adultério com ela . 29 Se o teu olho direito te faz tropeçar, arranca-o e lança-o de ti; pois te é m elhor que se perca um dos teus m em b ros do que seja todo o teu corpo lançado no inferno.

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30 E , se a tua m ão d ireita te faz tropeçar, corta-a e lança-a de t i ; pois te é m elh or que se p erca um dos teus m em b ros do que vá todo o teu corpo para o inferno.

Os Dez Mandamentos proibiam o adultério, e também a cobiça da esposa de outrem (Êx. 20:17; Deut. 5:21). Sobre este alicerce, o judaísmo edificou em duas direções. Deu crescente atenção ao olhar concupiscente como pecado contra o casamento. Por outro lado, os rabis tendiam a reduzir o conceito de adultério a um pecado contra os direitos de pro­ priedade de outro homem judeu, sendo o adultério limitado a relações sexuais ilí­ citas com a esposa ou noiva de outro judeu. De acordo com este ponto de vista, a sedução de uma mulher solteira ou de uma esposa não judia não era considerada adultério. Jesus considerou o adultério como pecado contra qualquer mulher, como algo destrutivo em relação ao ofensor, à ofendida e ao casamento, antes de tudo como uma questão de atitude ou inten­ ção. O adultério pode ocorrer sem existir o ato em si. Jesus não disse que olhar concupiscentemente é tão mau como cometer o ato propriamente dito, pois o ato sexual continua o pecado já existente no coração e extende o dano a outra pessoa. É mais destrutivo, para todas as pessoas envolvidas, ceder abertamente à concupiscência do que submetê-la a certa medida de controle. O ponto de vista esposado é que não é suficiente apenas refrear-se do ato propriamente dito. Estar libertado da concupiscência é um requisito divino. O Novo Testamento não iguala tenta­ ção e pecado. Jesus foi tentado, mas não pecou. O ensinamento é que o pecado tem seu início no consentimento, não na tentação em si, e nâo primordialmente no ato propriamente dito. Obviamente, a concupiscência não pode ser controlada meramente pelo fato de se arrancar o olho direito ou cortar a mão direita. A concupiscência pode ser implementada pelo olho ou pela mão


restante, ou mesmo na ausência de mãos ou olhos físicos. Jesus está dizendo que a concupiscência sexual não é apenas uma forma de adultério, mas que a ameaça da concupiscência é tão forte e seus perigos são tão grandes que um preço comparável à remoção de um olho ou uma mão não é grande demais, se a pessoa está pro­ curando libertar-se dela. A idéia também é que a disciplina radical é requerida para que se goze uma vida livre deste mal. “Geena” é derivada de Hinom, um vale a oeste de Jerusalém, cena de sacri­ fícios a Moloque, e, mais tarde, lugar onde era queimado o lixo de Jerusalém. O termo passou a simbolizar lugar de julga­ mento para os ímpios. A descrição pres­ supõe uma existência corpórea depois da morte. 3) Os Danos do Divórcio (5:31,32) 31 T am bém foi dito: Quem repudiar su a m ullier, dê-lhe carta de d ivórcio. 32 E u, porém , vos digo que todo aquele que repudia sua m ulher, a não ser por c a u sa de in fid eli­ dade, a faz ad últera; e , quem c a sa r com a repudiada, co m ete adultério.

A discussão desta passagem geralmen­ te se centraliza ao redor da cláusula a não ser por causa de infidelidade, e ignora o verdadeiro problema do marido que se divorcia de sua esposa. Visto que a cláusula “a não ser” não se encontra em Marcos 10:11,12 ou em Lucas 16:18, é amplamente aceita a interpretação de que Mateus acrescentou essa cláusula, para tornar o ensino mais funcional na igreja de sua época. Mas a remoção desta cláusula não anula o problema da pas­ sagem. A verdadeira questão é por que, como se entende comumente, o julga­ mento recai sobre a mulher divorciada (que pode ser uma esposa inocente, sem a cláusula “ a não ser” , e, necessaria­ mente, com ela) e o segundo marido, no caso de novo casamento da parte dela. Dizer que a passagem ensina que o divór­ cio é comparável ao adultério, tornaria supérflua qualquer referência a novo casamento.

Mais livre de dificuldades é a interpre­ tação que retém a cláusula “ a não ser” , fk a a atenção sobre o primeiro marido como pessoa sob julgamento e observa a voz passiva dos verbos empregados. As­ sim entendido, Jesus diz que o fato de um marido se divorciar de uma esposa ino­ cente é sacrificá-la e ao seu segundo marido, no caso de ela se casar de novo. É tratar uma mulher inocente da forma como se trata uma adúltera, e forçar sobre ela um estigma, bem como sobre o seu casamento subseqüente. O que Jesus disse pode ser melhor compreendido contra o pano de fundo de um mundo centralizado no homem, em que um homem podia jactar-se de que, dando à esposa rejeitada uma carta de divórcio, ele estava protegendo os seus direitos. Jesus demoliu essas alegações, mostrando que os direitos de uma mu­ lher inocente são protegidos tão-somente se ela for respeitada como esposa. Um certificado de divórcio não a isenta de dano. A cláusula “a não ser” reconhece que a esposa culpada é responsável pela sua própria ruína. O texto grego não justifica a tradução “a faz adúltera” . O infinitivo é passivo (moicheuthenai), intraduzível em portu­ guês. Algo como “atira-lhe a pecha de adúltera” ou a “a torna vítima com respeito ao adultério” aproxima-se da idéia. Pior ainda a tradução Atualizada, que diz “a expõe a tornar-se adúltera” (SBB). Nada sabemos de Jesus que nos daria o direito de interpretá-lo como dizendo que uma esposa inocente (isto se segue necessariamente se a cláusula “a não ser” for mantida, e é presumida também por aqueles que estigmatizam a cláusula!) é adúltera pelo fato de seu marido ter-se divorciado dela. Os exege­ tas geralmente presumem que ela se casa­ rá de novo, mais isto é apenas uma dedu­ ção da cláusula seguinte. A chave de ambas as passagens de Mateus acerca do divórcio (5:32 e 19:9) é verificar que elas se concentram na culpa do marido, mostrando pelo menos duas 145


circunstâncias sob as quais ele peca con­ tra o casamento e é culpado de adultério. Em 5:32 (retendo a cláusula “a não ser” ) a idéia pode ser que, se um homem repudia uma esposa inocente e ela se casa de novo, ele participa da culpa do seu segundo casamento, pois criara a situa­ ção para tal (cf. Strecker, p. 131). Em 19:9 (retendo a cláusula “a não ser”) o marido que se divorcia de uma esposa inocente é culpado de adultério, se casarse de novo. Conservando a cláusula “a não ser” , estes pontos aparecem, em Mateus, espe­ cialmente relacionados com o esposo que se divorcia de esposa inocente: ( 1 ) o marido não é culpado se divorciar-se de esposa que já cometeu fornicação; ( 2) o divórcio sem novo casamento não deve, como tal, ser considerado corresponden­ te a adultério (isto concorda com Mar. 10:12; Luc. 16:18; I Cor. 7:11); (3) o marido que se divorcia de esposa ino­ cente automaticamente a estigmatiza como adúltera (tendo-a tratado como a uma adúltera) ou, por interpretação menos provável, ele compartilha da responsabiUdade da culpa subseqüente de sua esposa (inocente) divorciada, se ela tornar a se casar (5:32); e (4) ele é culpado de adultério, se casar de novo depois de divorciar-se de esposa inocente (19:9). Entendido desta forma, Mateus reconhece apenas uma razão válida para o divórcio e novo casamento: o da parte inocente, em que a outra cometeu forni­ cação. Por outro lado, ele é ainda mais severo do que Marcos ou Lucas acerca do marido que se divorcia de esposa ino­ cente (veja ainda 19:3-9). 4) Ensino Acerca de Juramentos (5:3337) 3 O utrossim , ou vistes que foi dito aos an tigos: N ão ju rarás falso , m a s cum prirás para com o Senhor os teu s ju ram entos. 34 E u, porém , vos digo que de m an eira nenhum a ju r e is; n em pelo céu , porque é o trono de D e u s; 35 nem p ela terra , porque é o escab elo de seu s p és; n em por Jeru sa lém , porque é a cidade do grande R ei; 36 nem

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jures p ela tua ca b e ç a , porque não podes tornar u m só cab elo branco ou preto; 37 Seja, p orém , o v o sso fa la r: Sim , sim ; não, n ào; p ois o que p a ssa d ai, v e m do M aligno.

Este parágrafo è uma conclamação para a simples honestidade, que torna os juramentos desnecessários, e exclui a casuística (manipulação de um juram en­ to ou da Escritura por parte de alguém de forma tal a enganar os outros e encobrir a sua própria falta de integridade). Os escribas haviam descoberto muitas ma­ neiras de torcer um juramento, ao mes­ mo tempo que fingiam observá-lo. Fazi­ am um juramento compulsório ou não, dependendo do seu fraseado. Jurar pelo ouro do altar era considerado compul­ sório, mas jurar pelo próprio altar, dizi­ am eles, não era compulsório. A idéia deles era de que um juramento é obriga­ tório se Deus estiver envolvido. O frasea­ do do juramento envolvia Deus ou não. Mas isto faz vista grossa ao fato de que o mundo todo pertence a Deus, e ele já está envolvido. Nós não o “importamos” para os nossos negócios. Jesus protesta não tanto contra os juramentos, como contra a desonestidade que se escondia por detrás das ficções legais. É claro que ele ensinou que para a pessoa honesta, a palavra dada não necessita de juramen­ to, pois o seu sim significa sim, e o seu não significa não. Esta passagem não está falando de profanação ou de juramentos civis usados hoje em dia, mas do per­ júrio e da casuística, a desonestidade que procura esconder-se por .detrás do frasea­ do esperto de um juramento. 5) Vencendo o Mal com o Bem (5:38-42) 38 O uvistes que foi dito: Olho por olho, e dente por d en te. 39 E u , porém , v o s digo que não r esista is ao h om em m au ; m a s, a qu al­ quer que te b ater n a fa c e d ireita, ofei*ece-lhe tam b ém a outra; 40 e, ao que quiser pleitear contigo, e tirar-te a tú n ica, la rga-lh e ta m ­ bém a cap a; 41 e, se qualquer te obrigar a cam inhar m il p a sso s, v a i com e le dois m il. 4Z D á a quem te pedir, e não v o ltes a s costas ao que quiser que lh e em p restes.


A lei de olho por olho e dente por dente foi introduzida para restringir um mal maior. Da mesma forma como o certi­ ficado de divórcio era requerido para dar alguma medida de proteção para a esposa que de outra forma estaria indefesa, a lei de olho por olho a principio pretendia restringir retaliação ilimitada (cf. Ex. 21:23-25; Lev. 24:19-21; Deut. 19:21). Porém Jesus penetrou além desta lei de retaliação igual ou controlada, e repu­ diou toda idéia de vingança. “Nâo resistir com o mal” pode ser uma tradução melhor do que não resistais ao homem mau. Jesus resistiu ao mal, e este é o dever do crente. Ninguém deve r é s is ^ tir ao mal com o mal, mas vencer o mal com o bem (cf. Rom. 12:21). Poucos crentes, hoje em dia, sofrem um golpe físico na face, mas o princípio de “dar a outra face” pode ser aplicado diaria­ mente em termos de auto-exposição aos insultos, mal-entendidos, ressentimentos e outras ofensas, quando uma pessoa tenta se relacionar pacífica ou construti­ vamente com os outros. Na lei judaica, a pessoa podia proces­ sar outra por causa da túnica, vestimenta de baixo com mangas; mas não podia processar ninguém por causa da capa, veste exterior que servia aos pobres como cobertor durante a noite (Êx. 22:26 e s.). Permitia-se aos soldados e oficiais roma­ nos que forçassem os nativos a carregar os seus suprimentos ou bagagem por uma mUha (cf. 27:32, quando Simão cireneu é compelido a carregar a cruz). Jesus admoesta os seus seguidores para irem além do que podia ser tomado ou requerido por lei, dando livremente a pessoas que não mereciam, e não se esquivando dos que iriam mendigar ou tomar-lhes algo emprestado. Alguém pode protestar que muitas pessoas não merecem tratamento tão generoso. Mas o mérito não é a base para a decisão. Se alguém não “ merecer” ser ajudado, nem nós mereceremos estar em uma posição de ajudar. A pergunta cristã nunca é: “O outro merece a minha

ajuda?” mas “Como posso ajudar?” O amor algumas vezes precisa se negar, mas a reação cristã deve ser controlada pelas necessidades dos outros, não pelos seus méritos ou pelos nossos “ direitos” . Embora uma consciência iluminada precise decidir como servir aos outros, o amor já decidiu que precisamos servir. 6) Amor Pelos Inimigos (5:43-48) 43 O uvistes que foi dito; A m arás o teu próxim o, e od iarás o teu in im igo, i i E u, porém v o s digo: A m ai os v o sso s Inim igos, e orai p elos que v o s p erseg u em ; 4S p ara que vos to rn eis filh os do v o sso P a i que e stá nos ~^cSíTs; porque e le faz n a sc e r o se u sol sobre m aus e bons, e fa z ch over sobre ju sto s e injustos. 46 P o is, se a m a rd es o s que vos am am , que reco m p en sa tereis? não fa zem os pubUcanos ta m b ém o m esm o ? 47 E , se saudardes som en te o s v o sso s irm ãos, que fazeis d em a is? não fa z em os gen tios ta m ­ b ém o m e sm o 48 Sede v ó s, p ois, p erfeitos, com o é perfeito o v o sso P a i ce le stia l.

O Velho Testamento não diz explicita­ mente: odiarás o teu inimigo. Há passa­ gens que encorajam hostilidade e vingan­ ça. O Manual de Disciplina de Qumran (L 4,10) ordena amor por todos os que Deus elegeu, mas ódio a todos os que ele rejeitou, inclusive “todos os filhos das trevas” . O mandamento para amar o próximo (Lev. 19:18) seria entendido por um judeu como sendo para amar outro judeu. O fariseu possivelmente restrin­ giria “próximo” a outro fariseu (eles se chamavam a si mesmos Haberim, isto é, “próximos”). Os cristãos são considerados como filhos do vosso Pai que está nos céus, quando personificam o amor dele. O amor de Deus não discrimina, mas der­ rama-se sobre amigos e inimigos igual­ mente. Ele não é motivado pelos nossos méritos. É governado pelo seu próprio caráter, que é sempre de autonegação e autodoação. O amor de Deus procura relacionar-se com amigo ou inimigo, buscando o seu bem, sem perguntar pelo custo. A palavra grega agape, por si pró­ pria, não significa um determinado tipo 147


de amor. Os publicanos também podem amar. O que se dá a entender por amor não precisa ser derivado de uma palavra grega, mas do que vemos de Deus revela­ do em Jesus Cristo. O amor recomenda­ do é aquele que se tornou encarnado em Jesus. Alguns dos dons de Deus, como o seu sol e chuva, podem ser dados a despeito do caráter ou da atitude dos recipientes. Dons mais elevados, como o perdão e a novidade de vida, apenas podem ser ofe­ recidos; por sua natureza, eles não po­ dem ser impostos. Mas Deus nunca dá como negociante, esperando receber. A doação calculada, para ganhar de volta, não representa o amor de Deus, mas, pelo contrário, é um tipo de amor pagão. A perfeição requerida por Jesus (v. 48) não é o legalismo dos fariseus ou dos Qumranistas, mas uma compreensão mais profunda e radical das intenções da Lei. Mateus encontra perfeição sem pecado apenas em Jesus, mas não hesita em representar Jesus fazendo requisitos radicais, finais e absolutos aos seus segui­ dores. Sede vós, pois, perfeitos está gra­ maticalmente no futuro, mas a força é de imperativo. Jesus não apenas predisse perfeição futura. Ele sustentou que a perfeição de Deus é o ideal, ou o requi­ sito, agora. Interpretar perfeito (teleios) como “ amadurecido” se torna estranho, quando se continua a ler; “como Deus é amadurecido” . Bornkamm (p. 98) é exegeticamente correto, em encontrar “inteireza” como o antecedente veterotestamentário de teleios (o hebraico shalom e tamim), citando I Reis 11:4 como o exemplo mais elucidativo. Em sua velhice, o coração de Salomão não era “perfeito” para com o Senhor seu Deus, como fora o coração de Davi, seu pai. Por padrão nenhum, Davi era moralmente ou eticamente sem peca­ do. O fato é que Davi, o pecador, tinha um coração que era dedicado em “intei­ reza” a Deus, não de modo dividido, embora ele tivesse contraditado esse coração, devido a sua fraqueza e pecado. 148

Nem mesmo esta exegese deve enfra­ quecer o requisito do versículo 48. Deus requer perfeição, embora aceite as pes­ soas devido à Sua misericórdia, e não ao mérito delas. Dentro do dom da salvação existe uma exigência absoluta. O homem se rebela contra isto, preferindo o lega­ lismo, em que sente que adquiriu por seus meios a sua salvação, ou o liberti­ nismo, em que a graça é toda dons e nenhum requisito. Jesus nos chama para o caminho estreito, que escapa tanto ao legalismo quanto ao antinominianismo. A salvação é dom que nunca se adquire pelos próprios meios, e o cristão continua sendo ainda um pecador que precisa de perdão diário. A pessoa nunca está mais longe da bondade do que quando pensa que é boa. Por outro lado, o seguir a Jesus começa com a conversão ao reino (reinado) de Deus, submissão a determi­ nações que são finais e absolutas. O requisito de perfeição nunca é satisfeito, mas está aí para ser observado. 6 . Motivos na Vida Religiosa (6:1-18)

A primazia dos motivos na vida reli­ giosa é ilustrada nas áreas de esmolas, oração e jejum. Jesus prezava muito estas três manifestações, e presumia que os seus seguidores as iriam praticar. O seu ponto de vista era que os motivos por detrás das expressões religiosas dão a estas o seu significado. A religião como espetáculo, para impressionar a Deus, a outras pes­ soas ou a si mesmo, é fals.a e fútil. A proposta desenvolvida nas três ilustrações é estabelecida no versículo 1. Fazer as vossas boas obras é pensar na justiça como desempenho exterior. A fa­ lácia começa no fato de não reconhe­ cermos que os valores morais, éticos ou espirituais não são inerentes nas coisas feitas ou ditas. Os atos e palavras exte­ riores podem originar-se de motivos tan­ to pagãos quanto cristãos. Nenhum ato, ou palavra, é de si mesmo mau ou bom; é necessário que haja qualidades morais, produzidas por motivos, intenções, con-


texto e outros fatores. Utn empurrão, por exemplo, pode ser por si mesmo nem bom nem mau. Pode ser um ato rude de auto-afirmação, ou um ato heróico, como quando um a pessoa, com o risco de sua própria vida, empurra outra do ca­ minho de um carro que vem sobre ela à toda. Um beijo pode expressar amor e confiança, ou covarde traição, como quando Judas beijou Jesus. Esmolas, oração e jejum podem ser expressões significativas de religião autêntica.^Também podem ser feitos exteriores calcula­ dos, para ganhar vantagem egoística. 1) Esmolas (6:1-4) 1 G uardai-vos d e fa zer a s v o ssa s boas obras diante dos h om en s, p ara serd es v isto s por e le s ; de outra sorte nào ter e is r e co m ­ p en sa junto de v o sso P a i, que e stá nos céu s. 3 Quando, p ois, d eres esm o la , não fa ç a s tocar trom b eta d ian te de ti, com o fa zem os hipócritas, n as sin a g o g a s e n a s ru as, p ara serem glorificad os p elos h om en s. E m v e r ­ dade v o s digo que já receb era m a su a r e ­ com p en sa. 3 M as, quando tu d eres e sm o la , não saib a a tu a m ão esq u erd a o que faz a d ireita; 4 para que a tu a esm o la fique e m secreto; e teu P a i, que v ê e m secreto , te recom p en sará.

Esmola traduz o grego eleemosunen, termo usado para atos de misericórdia mais inclusivos que esmolas. Aqui a refe­ rência especial é a dádivas feitas por caridade. Quer Jesus tenha querido, quer não, dizer que algumas pessoas literal­ mente tocavam trombeta para chamar a atenção para os seus atos de caridade, o motivo oculto é revelado através desta figura. Tocava-se trombeta durante jejuns em épocas de seca. “Hipócrita” é tradução de uma palavra usada em tea­ tro para “ator” , pessoa que representava um papel. Deus não fica impressionado com atos religiosos destinados a impressioná-lo. Se uma pessoa “representa um papel” religiosamente, para ganhar o louvor dos homens, pode ter sucesso, mas esse louvor é o máximo que ela pode esperar. Já receberam a sua recompensa (v. 2, 5,16) emprega um termo comercial que se refere ao ato de passar recibo (apechein). O ato de dar esmolas, oração

ou jejum como representação pode cha­ mar atenção; mas quando a pessoa é reconhecida desta forma, pode muito bem exigir recibo, pois recebeu tudo que podia, pela sua representação. A ordem, não saiba a tua mão esquer­ da o que faz a direita, não deve ser interpretada à parte de outros ensinos de Jesus, v.g., que a nossa luz deve brilhar e nossas boas obras serem vistas pelos ho­ mens, para a glória de Deus (5:16). Cada versículo é equilibrado por outro. Tentar reduzir esses ensinamentos a um sistema rígido é perder de vista a sua intenção. Devido à presença de versículos, como 5:16 e 6:3, lado a lado, no mesmo ser­ mão, emerge o importante princípio de que a Escritura deve ser interpretada pela Escritura. A verdade toda nunca pode ser capturada em uma só declara­ ção. Em 5:16 o ensinamento é que a pes­ soa deve partilhar com os outros o que recebeu de Deus, fazendo-o para o bem do homem e para a glória de Deus. Em 6:3 está a advertência de que a busca egoística de seus interesses vicia os atos religiosos. A lâmpada deve espargir a sua luz (5:16), mas não deve ela mesma aparecer (v. 3). Recompensa é prometida para esmo­ las, oração e jejum feitos em secreto (v. 4, 6 , 18). A privacidade ordenada não deve ser irrestrita. Jesus praticou publicamen­ te atos de misericórdia, orou e jejuou. A advertência deve ser interpretada segundo o seu contexto. A privacidade é prescrita para a pessoa cuja tentação é representar teatralmente diante dos outros. A expressão religiosa pode ser aberta e sincera. “Fazer o bem” em segredo pode se tornar uma obsessão tão hipócrita e egoísta quanto exibir aberta­ mente a sua religião. A promessa de recompensa é por si mesma uma bênção e um perigo. O genuíno serviço traz consigo a sua recompensa, mas a recom­ pensa é proporcional à liberdade que a pessoa tenha de buscar a mesma recom­ pensa. Aqueles que receberam as maio­ res recompensas no juízo nem haviam 149


percebido que se haviam empenhado em serviço meritório (cf. 25:37 e s.). A pala­ vra “publicamente” encontrada após teu Pai, que vê em secreto, te recompen­ sará (v. 4, 6 , 18), provavelmente é espú­ ria, embora se encontre em alguns ma­ nuscritos antigos.

nismo (v. 7). Assim vistos, os versículos 5 e 6 perfazem uma unidade acerca da oração, intimamente relacionada com os versículos 2-4 e 16-18, três ilustrações advertindo contra o esforço para impre^ sionar os homens com a vida religiosa "da pessoa. A unidade 6:7-15 fala do perigo de 2) Oração (6:5-15) tentarmos usar a oração como meio jdê quando orar d es. não se ia ls com o os impressionar Deus ou de compeli-lo a se, !*<•'I j,í h iggcritas; p ois g o sta m de orar e m pé nas curvar diante da~nossa vontade. Maior sin agogas, e à s~ esq u in a s das ru as, para t serem visto s pelos h om en s. E m verd ad e vos evidência de que 6:7-15 foi inserido na ^ g o que já receb era m a su a recom p en sa. çt.'j; tríplice estrutura, pode ser vista na ocortu, quando o rares, e n t r a j o teu q u a r - ^ renda repetida de hipócritas, nos versíto, e , fechando a porta, ora a teu P a i que ^ ^ n ir ee stá secreto ;: ee teu teu P Pa,i. se- S Culos 2, 5 e 16, enquanto, em 6. 7-15, a s tá .eem m secreto a i, oiie que vê v ê em e m se advertência é contra ser como pagãos ereto, te recom p en sará. 7 E , orando, n â Õ lísêis de v ã s rep etiçõ es. (gentios em nossa tradução), com o os gen tios; porque p en sa m que peIo^,jj, A estrofe 6 :5,6 desenvolve, em relação seu m uito fa la r serão ouvidos. 8 N áo vos * '

assemelheis, pois, a eles; poraue vosso Pai P sabe o que vos é n ecessá rio , a n tes de vós lho p ed ird es. 9 P ortan to, orai v ó s d este modo: P ai nosso que e stá s nos céu s. ,, r.rí ^• Santificado se ja o teu n om e ; } 1 10 V enha o teu reino, Seja feita a tua vontade. A ssim n a terra com o no céu; 110 p ão n osso de ca d a dia nos dá h oje ; 1? E perdoa-nos a s n o ssa s d ívid as. A ssim com o nós ta m b ém tem o s perdoado aos nossos deved ores ; 13 E não nos d eix es en trar em ten tação : M as livra-nos do m al. fo r q u e teu é o reino, o poder, e a glória, 'fT'"'p ara sem p re. A m ém . “ .K ls . 14 P orque, se perdoard es aos h om en s as V» ^ " suas ofen sas, tam b ém v o sso P a i C elestial . vos perdoará a vós ; 15 se' porém , não perdo- “ , ardes ao s h om en s, tam pouco v o sso P a i perdoará v o ssa s ofen sas.

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Três parágrafos cuidadosamente equi­ librados, de igual extensão, e cada um t .f.71 deles terminando com a promessa de ■ ' recompensa do Pai (v. 4, 6 , 18), podem ser vistos, se por um momento se coloca de lado os versículos 7-15. Em outras ' palavras, 6:7-15 parece ter sido inserido ^ em uma estrutura anterior de três estro­ rwj fes equilibradas acerca de esmolas, pra-_ ção e jejum. A Oração Modelo (v. 9-13), desta forma, é um contexto que adverte contra o erro de fazer da oração um bal­ buciar ininteligível, como é feito no paga­ 150

oraçao, as mesmas ideias expressas com respeito a esmolas: o mau exemplo dos hipócritas, a tentação de fazer praça da piedade na sinagoga ou nas ruas, o desejo de^ger visto pelos homens, a,adver­ tência de quê~STI~motiyaç:ão nã^ nada mais d o ^ u e o louvor dos homens, pelo quaf bim pòde ser dada “plena quitação” , e a admoestação para se orar em secreto, com a certeza da recompensa do Pai. Indubitavelmente, segue-se que mera­ mente entrar no teu quarto e, fechando a porta, orar tóo elimina a po^ibilidade de hipocrisia. Elimina outros oúvmtes humanos, inas, ainda assim, a pessoa pj^ e ser oseu próprio ouvinte; e'dã'põ3ê lêntar impressionar Deus com a sua oração. A palavra acerca de oração secre­ ta deve ser levada em consideração de acordo com o contexto. Esta não é uma regra que governe toda a nossa vida de oração. Jesus orou em público, e nós também podemos fazê-lo. Esta estrofe trata apenas do perigo de orar para ser ouvido pelos homens. Outro pr^ le n m ainda é apreseaíado nn vpr»;íc u lo 7. O 3F~Entar, através da oração, compelir Deus a^fazer o que_qu.eremos. Jesus comparou esta prática com o balbucio dos pagãos. Embora esta cláusula possa servir como advertência


contra “Knguas” , como as que ocorre­ maneira de uma criança tratar o seu pai, ram em Corinto (cf. I Cor. 14), é pfová- .e não ã l orma bem mais formal, “o pai” vel que a advertência seja contra o uso da ou “nosso p ar j m as'a palavra simples e oração para controlar Deus para obter íntima, “Papai” . Jesus conhecia a Deus vantagem egoística. Jesus não proíbe a, '^como Pái,^Î véÍo° para nos capacitar a sincera repetição em oração. No Getsê­ conhecê-lo dessa forma. O Pai nosso mane ele orou três vezes pela possível de ^ a té íis jé adaptado ao uso congregaremoção do seu “ cálice” (26:39,42,44). cional, e enfatiza o fato de aue nâo pode­ Mas Deus não pode ser pressionado mos excluir os ouJtos, quando nos^achea agir devido ao nosso muito falar. A p m o s a Deus (cf. 5:23 e s.). função dajjracão não é informar Deus, O que estás nos céus de Mateus pre­ pois ele já sabe o que vos é necessário, serva p equilíbrio entre reconhecer a proantes de vós lho pedirdes. Ele não precisa ximidade e a transcendêticia f e ^Deuj . ser persuadido, pois já está interessado Com a intimidade familiar. Deus pode no nosso bem. ser tratado de Pai, mas permanece como Ei^tão, p o r_ ^ e orar? O propósito da o Deus transcendente, que deve sempre oração não é informar a Deus ou mudar ser abordado em solenidade e reverêticíã. a sua voiitade. mas, como dÍ2C^ e o rfflr O paradoxo da proximidade e da trans­ ^ a rk iiè s ij lancar mão da sua disposição. cendência nunca é perdido na revelação Não que Deus precise ser solicitado, mas bíblica. Deus está em Cristo, e nós en­ o fato ê que nós temos necessidade de contramos Cristo nas outras pessoas pedir. Oração é comunhão com Deus, (25:31-46), mas ele é um a pessoa diferen­ em que somos levados a novos relaciona­ te daquelas em quem o encontramos. mentos e novas atitudes, abrindo, desta Para o deísmo. Deus está distante e fora forma, o caminho para as bênçãos que de alcance; para o panteísmo. Deus é Deus já se propôs a dar. Uma das acep­ tudo e tudo é Deus; para o sentimenta­ ções da palavra oração é a de pedir, e lista. Deus pode ser “aquele lá em cima” . reflete a nossa infeliz tendência para Para Jesus. Deus não é nenhum desses. reduzir a oração a simples prece (pe­ Ele é Pai e é Deus, sempre próximo e T dido). A oração inclui prece, mas é muito sempre para ser tratado com reverência. V mais do que isto. EK'ëTnâiFcÔîno abrir-, A oração para que venha o teu reino"^ se para Deus em confiança e louvor, para considera tanto o triunfo final do governo / que se possa receber gratuitamente os de Deus na Parousia, quanto a submis­ seus dons, e se submeter aos seus requi­ são crescente e imediata ao seu governoy sitos. na terra. O mais simples “venha o teu A Oração Modelo (v. 9-13) — A Ora­ reino” defLucaT'preserva a ênfase escação Modelo, em Mateus, tem paralelo tológica pnm ana, o triunfo final do reino em Lucas 11:2-4. A forma da de Lucas é de Deus; mas_Q assim na terra como no mais curta, e,. no seu todo, mais primi­ céu de® Íate^J>reserva uma preocupa­ tiva, embora possa ser que Mateus esteja ção autêntica de Jesus pela submissão preservando algumas formas mais anti­ agora ao reino de Deus. O reino dos céus gas nas petições de pão e perdão. O traé tanto presente q u a n to ^ lu ^ r õ r ^ náo tamento simples de em LucasT b a liz a d o já, mas será consumado l^epresenta um a p faticaaas mais signifi­ apenas na vinda final de Cristo. cativas, nos ensinos de Jesus. O judaísmo Seja feita a tua vontade se relaciona já conhecia Deus como Pai, mas o trata­ intimamente com a oração para que o mento direto, como que infantil (Abba, reino de Deus venha. “Vontade” traduz em aramaico) representa algo novo na um substantivo grego com um sufixo de prática e ensinamentos de Jesus. Abba resultado (thelêma), enfatizando não o (cf, Rom. 8:15 e s.; Gál. 4:6) era a ato de querer tanto quanto o que é dese­ 151


jado. Ê a oração para que o que Deus^ desejou seja cumprido tanto na terraI quanto no céu. ___ I — Tanto Mateus como Lucas apresen­ tam a frase o pão nosso de cada dia. “De cada dia” tenta traduzir epiousion, mas o significado é incerto. “ O nosso pão para o dia vindouro” pode ser uma tra­ dução preferível, mas assim mesmo é ambígua, podendo significar tanto o pão para o dia corrente quanto o pão para o amanhã. Outra possibilidade é pão “ de necessidade” ou nosso pão “necessário” . Não foi encontrada nenhuma ocorrência da palavra epiousion além de na oração modelo. Dois exemplos foram aventados, mas provou-se que um foi apresentado por engano, e o outro não pode ser veri­ ficado, tendo sido citado como existente em um manuscrito agora perdido. A compreensão d e ( ^ c ^ a c e r c a da pala­ vra permite a frase; “Continua dandonos dia a dia ” F.le claramente conside­ rou esta frase como um a petição de pão literal para cada dia. A fórmula de Ma­ teus pode ser mais primitiva: Dá-nos hoje. O tempo aoristo (dos) não pode legitimamente ser usado para se argu­ mentar que esta palavra precisa referir-se a uma ação só ou a um a outorga permanente de pão, de uma vez por todas, como por exemplo, para o ban­ quete messiânico no fim do século. Isto seria compreender mal o tempo aoristo grego, que apenas trata uma ação sem descrição, mas não diz se a ação propria­ mente dita era única, iterativa, ou extendida(cf. o tempo aoristo em Lucas 19:13 — “Negociai até que eu venha” ; e em João 2:20 — “Em quarenta e seis anos foi edificado este santuário”). Que epiousion se refere ao pão para amanhã (tradução inglesa) é possível, mas não conclusivo; mas argumentar que ele se refere “ao grande Amanhã, à con­ 21 Bruce M. Metzger, “How Many Times Does ‘Epiousios’ Occur Outside the Lord's Prayer?” The Ezpodtoiy Times, LXIX, 2(nov. 1957), p. 52-54. 22 Como por J. Jeremias, The Lord’s Prayer (Philadel­ phia: Fortress, 1964), p. 13.

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sumação final” (J. Jeremias, p. 25), dando-lhe, desta forma, um significado escatològico, é edificar sobre um alicerce _muito frouxo. O hoje de Mateus e o cada“/ dia de Lucas entendem a petição como sendo de pão literal para as necessidades diárias. Ler escatologia nesta petição é altamente precário. Excluir referência ao pão material, coisa tentada já no tempo de Orígenes, é contradizer a preocupa­ ção óbvia de Jesus para que o povo tenha pão, claramente expressa no fato de ele ter alimentado cinco mil pessoas (14: 13-21) e provavelmente refletida na Oração Modelo. As nossas dívidas de Mateus (v. 12) é, provavelmente, mais primitivo do que “ ps nossos pecados” de Lucas, pois este também se refere todo aquele que ims deve” (11:4). Lucas colocou uma palavra mais familiar e interpretativa: “peca­ dos” . Esta é a única petição acerca da qual Mateus dá explicações suplementa­ res, quando cita Jesus ligando o fato de perdoarmos ao de sermos perdoados (v. 14 e 15). Como foi dito acerca da misericórdia (5:7), o mesmo se diz acerca do perdão — a pessoa precisa estar aber­ ta para dar a fim de que seja capaz de receber. Isto não deve ser d^cartado ^ r ^ medo de “üma doutrina de “obras” ou mérito. O requerimento não é arbitrário. Pertence inerente e inescapavelmente ao perdão. Não que Deus não esteja disposto a perdoar aquele que não perdoa, mas á condição da pessoa que não perdoa é tal que ela é incapaz de receber perdão. Quando uma porta se fechà, fecha-se de ambos os lados. O que bloqueia o fluxo de misericórdia ou perdão de nós, bloqueia o seu fluxo para nós (cf. 18:21-35). A petição: não nos deixes entrar em tentação (não nos induzas à tentação na IBB antiga) não dá a entender que Deus nos tenta (cf. Tiago 1:13-15). Esta pode ser a forma poética de dar forca a uma declaração positiva.^Jivra--nos do ms cÓIõcaiídõ^ em contradição à negativa. U m ^ a rd e lp seria: "Dá-nòs nãÕ trevas, -------------■ u z petição ? ^ -----masí ^ T Esta pode ser um


contraste deliberado à orgulhosa oração do homem cheio de justiça própria, que convidava Deus a testá-lo e ver a sua bondade. Se é assim, Jesus não estava afirmando para se repetir esta oração, mas a dizer: “ Senhor, não me testes; pelo contrário, livra-me das tentações que iá estão sobre mim.” Uma teoria sustenta que peirasmos (tentação ou prova) se refere à “grande prova final” , e, desta forma, é uma oração pedindo libertação da apostasia, quando o anticristo faz o seu assalto final. Esta opinião é forçada, e deve ser rejeitada (cf. J. Jeremias, p. 30). Peirasmos pode indicar a prova de fogo que introduz o fim do mundo (cf. II Ped. 2:9; Apc. 3:10), mas o termo pode referir-se a provas e tentações que nos sobrevêm a qualquer tempo (cf. Tiago 1:2). Mal traduz uma palavra grega que pode ser tanto masculina como neutra — tanto o maligno„&omo o mal. A bela e queridajioxologia (v. 13), por todas as indicações, não e_Qriginal de Mateus. Não aparece em Lucas. Aparece já no Didaquê (começo do segundo sécu­ lo) em forma abreviada: “Pois teu é o poder e a glória para sempre.” Também aparece em vários manuscritos em outras formas abreviadas, e, finalmente, emer­ giu na forma extensa largamente conhe­ cida hoje (aparentemente modelada se­ gundo I Crônicas 29:11 e s.).

ção. Os fariseus jejuavam duas vezes por semana (Luc. 18:12) e faziam disso um teste de piedade. Jesus se recusava a ser guiado por um calendário. Ele jejuava como prática normal, em tempos de crise (cf. 4:2), achando-o significativo quando espontâneo, em situações de tristeza ou de crise (cf. 9:14-17). Abstinência pode ser um meio individual de libertar a pessoa de certas preocupações (v. g. co­ mida, sono, diversão ou trabalho), em favor da concentração em algo que, pelo menos na ocasião, representa uma ativi­ dade mais importante (cf. I Cor. 7:5). Unção era uma figura de alegria, proibi­ da no Dia da Expiação ou em outras ocasiões de jejum ou tristeza; mas Jesus propôs que a pessoa uiya a sua cabeça quando estiver jejuando, desta forma evi­ tando qualquer exibição de “humilda­ de” . 7. Liberdade da Tirania das Coisas Ma­ teriais (6:19-34)

19 N ão aju n teis p ara v ó s tesou ros n a te r ­ ra, onde a tr a ça e a ferru g em o s con som em , e onde os la d rõ es m in a m e roubam ; 20 m a s ajuntai p ara v ó s tesou ros no céu , onde nem a tra ça n em a ferru g em os con som em , e onde os lad rões n ão m in a m n em roubam . 21 porque onde e stiv e r o teu tesou ro, a í e sta rá tam b ém o teu coração. A can d eia do corpo são os olhos; de sorte que, se os teu s olh os forem bons, todo o teu corpo te rá luz; 23 se , p orém , o s teu s olhos forem m a u s, o teu corpo se r á te n e ­ 3) Jejum (6:16-18) broso. S e, portanto, a lu z que e m tl h á são 16 Quando jeju a rd es, não v o s m o streis trev a s, quão gran d es sã o ta is trev a s! contristados, com o os h ip ócritas; porque 24 N in gu ém pode se r v ir a d ois sen h ores; e le s d esfigu ram os se u s rostos, p a ra que os porque ou há de odiar a u m e a m a r o outro, hom ens v eja m que estã o jejuando. E m ou h á de d ed icar-se a u m e d esp rezar o verd ade v o s digo que já r eceb era m a su a outro. N ão p od eis serv ir a D eu s e à s riq u e­ recom pen sa. 17 Tu, p orém , quando jeju a res, zas (M am om ). unge a tu a ca b eça , e la v a o teu rosto, 18 para 25 P o r isso v o s d igo: N ã« e ste ja is a n sio ­ não m ostrar ao s h om en s que e s tá s jejuando, sos quanto à v o ssa v id a , pelo que h a v eis de m as a teu P a i, que e stá em secreto ; e teu com er ou p elo que h a v e is de beb er; n em , P ai, que v ê em secreto , t^ reco m p en sa rá . quanto ao v o sso corpo, p elo que h a v eis de v estir. N ão é a vid a m a is do que o alim en to, Jesus algumas vezes jejuou, e esperava e o corpo m a is do que o v estu ário? 36 Olhai para a s a v e s do céu, que não se m e ia m , n em que os seus seguidores o fizessem. O que ceifa m , n em aju n tam e m c ele iro s; e vosso ele rejeitou foi o jejum como exibição. A P a i c e le stia l a s a lim en ta . N ão v a ie is vós lei mosaica não requeria especificamente m uito m a is do que ela s? 27 Ora, qual de vós, o jejum, mas entendia-se que Levítico por m a is an sio so que e ste ja , pode a c r e s­ 16:31 o requeria para o Dia da Expiacen tar um côvado à su a estatu ra? 28 £ pelo

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que h a v eis de v estir, por que an d ais a n sio ­ sos? Oihai para os lírio s do cam p o, com o crescem ; não trab alh a m n em fia m ; 29 contudo, v o s digo que n em m esm o Salom ão em toda a su a glória s e v e stiu com o um d eles. 30 P o is, se D eu s a s s im v e ste a erv a do cam po, que boje e x is te e a m a n h ã é lan ça d a no forno, quanto m a is a v ó s, b om en s de pouca fé? 31 P ortan to, não v o s in q u ieteis, dizendo: Que h a v em o s de com er? ou: Que h avem os de beber? ou: Com que nos h a v e ­ m os d e v estir? 32 (P o is a tod as e sta s co isa s os gen tios p rou ram .) P orque v o sso P a i c e le stia l sa b e que p r e c isa is de tudo isso . 33 M as b u sca i p rim eiro o seu reino e a su a ju stiça , e tod as e s ta s c o isa s v o s serão a crescen ta d a s. 34 N ão v o s in q u ieteis, p ois, p elo dia de am anhã; porque o d ia de am a n h ã cu id a rá de si m esm o . B a sta a c a d a d ia o seu m al.

Esta secção parece ser governada pelo tema de liberdade da tirania das coisas materiais. A alternativa é o reino de Deus (v. 33). A escolha está entre encontrar os seus valores finais nos tesouros que pere­ cem, ou nos que permanecem (v. 19-21), entre a mesquinhez, que deixa a pessoa nas trevas, ou a generosidade, que propi­ cia luz (v. 22 e 23), entre a adoração de Mamom ou Deus (v. 25-34). Te&ouro no céu (v. 19-21) — A adver­ tência é dupla: (1) os tesouros na terra são perecíveis e (2) a pessoa compartilha do destino daquilo em que coloca o cora­ ção. Não existe segurança permanente nas coisas materiais. Traça, ferrugem e ladrões ilustram algumas das ameaças a essa “segurança” . O aviso contra a confi­ ança nas coisas materiais não é feito apenas para os ricos. A casa que os ladrões minam e roubam pode ser a casa de adobe do homem pobre. A palavra traduzida como ferrugem (brósis) provavelmente deveria ser tradu­ zida como “comida” , com possível refe­ rência à destruição de roupas, ou alimen­ tos estocados, por ratos ou outros ani­ mais daninhos. Ninguém entende os ensinos de Jesus, a não ser que veja que ele estava profun­ damente interessado em que as pessoas tivessem o essencial para a vida, e tam­ bém, por outro lado, que ficassem livres 154

da tirania das coisas materiais. Jesus não era um asceta nem requeria uma absten­ ção de uma vida física. Ele curou os doentes, alimentou os famintos e chamou a nossa atenção para as necessidades materiais de outras pessoas, fazendo dis­ so o teste do nosso relacionamento com ele (25:31-46). Ao mesmo tempo, adver­ tiu contra o erro de fazer das coisas materiais o objeto de nossa confiança ou afeição. Jesus deu pão aos famintos, mas avisou que o homem não vive sò de pão. O coração da pessoa está onde estiver o seu tesouro, e ela compartilha do destino daquilo a que se dedica — seja a coisas perecíveis, seja a imperecíveis. A candeia do corpo (v. 22 e 23) — Esta parábola é edificada sobre a analogia do olho bom, que pode focalizar bem os objetos, e o mau, que não pode. O olho serve de lâmpada, ou candeia, para o corpo, dando-lhe luz, deixando-o em tre­ vas. Aplicada ao problema de possessões materiais, esta lição pode ser que, se a pessoa divide a sua atenção entre Deus e as coisas materiais, pode ser que não esteja se focalizando bem em nenhum dos dois. Bons (haplous) tem significado singular, e é empregado, algumas vezes, em relação à generosidade (cf. Tiago 1:5, onde se diz que Deus dá generosamente, haplõs; cf. também Rom. 12:8; II Cor. 8:2; 9:11-13). “Maus” traduz a palavra poneros, algumas vezes usada para a disposição mesquinha, rancorosa (cf. 20: 15: “Ou é mau — poneros — o teu olho porque eu sou bom?” cf. também Deut. 15:9; Prov. 23:6). Assim entendida, a parábola ensina que a pessoa generosa (olhos bons) anda na luz, mas a pessoa mesquinha (olhos maus) anda nas trevas. Outra abordagem é ver os olhos bons representando abertura ou receptividade para Deus, e os olhos maus representan­ do a desconfiança, que exclui a pessoa do mundo de luz onde Deus está. Assim entendida, esta parábola concorda com a do semeador (veja 13:1-9, 18-23), ao ensinar que a pessoa sem abertura para Deus é cega.


Deus e Mamom (v. 24) — Esta pará­ bola pode ser entendida apenas em rela­ ção à escravidão, quando um senhor possuía direitos legais sobre um escravo, e tinha completa autoridade sobre ele, e quando experiências de dupla proprieda­ de de um escravo causavam dificuldades, pois o escravo não podia dedicar-se intei­ ramente a dois possuidores. Alguém não pode pertencer a Deus e a Mamom ao mesmo tempo. Mamom tem derivação incerta. Pode designar algo escondido ou armazenado, ou algo confiado. Aqui, representa dinheiro ou possessões mate­ riais. Na parábola do fazendeiro rico (Luc.’ 12:13-21), Jesus advertiu que a pessoa pode ser possuída pelas coisas que pensa possuir. Portanto, aqui Jesus ad­ verte contra a tirania das coisas. O único"! Y^scape contra o domínio das coisas mate­ riais é a submissão ao governo de Deus ^ 33). Odiar e amar são melhor entendidos aqui jom.o “rejeitar” e “aceitar” . A lição é que Deus precisa ser exclusivo em seus direitos sobre nós. É significativo que Jesus faz do dinheiro, e não de Satanás, o rival das revindicações de Deus sobre nós (Schniewind, p. 92). Jesus estava preocu­ pado com o que fazemos do dinheiro (cf. 25:31-46), mas a sua primeira preocupa­ ção era o que ele faz de nós. Ele pode cegar (olho mau), escravizar (Mamom), e, desta forma, nos destruir. O dinheiro não é mau, pois pode ser usado para servir a Deus e aos homens; mas o amor ao dinheiro é a raiz de toda sorte de males (I Tim. 6:10). Ansiedade acerca de coisas materiais (v. 25—34) — Não estejais ansiosos é" uma boa tradução para me merimnate, mas “rião fiqueis digtraídQS^ pode chegar ainda mais perto da intenção do texto. Jesus não prescreveu indiferença, pelas coisas matermis nem encorajou o ócio ( c í .l l Tuh. 3 :Í-l2 )T ^ ^ ç i|^ n ã o é nem para os cristãos nem plírã^^pássaros. Os gáss^os^exgmplifi^m^^não o ^ j o j gnas^^ e ^ ^ ^ ^ ^ J a ^ ! ^ ^ ^ d ^ e . L onge^e ser indolente, Jesus teve uma vida cheia e

ativa. Em João 4:6, ele é descrito à beira de um poço em Sicar, exausto de uma jornada. Algumas vezes ele se envolvia tanto com as necessidades dos homens, que passava sem dormir ou sem comer. A”7 "sua advertência contra distração ou an­ siedade acerca de coisas materiais não diz respeito aos problemas legítimos è jiecessidades verdadeiras. A palavra gré-' ga merimnate é construída de uma pala­ vra que significa “uma parte” , e poderia ser traduzida como “Não se reparta” ou “Não se distraia” . A n ^ e d b ^ ja c e rc a jd e ^ ^ a s _ m a te ri^ como cõmida e roupa, é desnecéssamT inútil e maligna. Se Deus cuida das aves do céu, pode-se’ confiar que ele cuidará de nós. Se ele dá vida, pode sustentá-la. A „ansiedade é. inútil, pois por ela a pessoa não consegue sequer acrescentar um côvado à sua estatura. Embora o ç ô ra ^ s e ja uma medida linear (cerca de meio metro), o termo gpde referir-se à duração da vida. É mais provável qúe "a ansiedade encurte a vida do que a pro­ longue. A mawr acusação centra a ansiedade acerca de comida e roupa hão ë que ela sqa desnecessária e inútil, mas qu^j^ Homens dê”pouca te! llutàr•pel pelas coisas imateriais tradução melhor do que ^ ^ jre in é d io p a ra ^ m ie d a ^ a c e rc a de coisas materiais em dar o primeiro lugar ao reino de Deus justiça. A ênfã^soB re o reino (reinado) de Deus e sobre a justiça é característica de todo o Evangelho de Mateus. A certe­ za de que, para aqueles que buscam primeiro o seu reino e a sua justiça serão acrescentadas todas estas coisas, deve ser equilibrada pela advertência de que sa­ crifício, privação e ate a cruz pertencem ao discipulado (10:34-39). Considerando tanto a pranessa^v. 33) como a adverténçk^Jü?34^39^ode-se entender que a parte do discípulo é, submissão incondicional ao governo de Cristo, com a certezã de^que õ que se requer do discípulo para cumprir .a sua vocação será provi155


determina a sua medida, Da maior im­ portância, neste ensinamento, é a adver­ tência de que, quando presumimos estar julgando os outros, de fato estamos tra­ zendo sobre nós mesmos o juízo de Deus. Além disso, quando nos envolvemos em julgamento sem misericórdia, negamos a nós mesmos a misericórdia de Deus. Deus não é arbitrário nisto (cf. 5:7; 6:12, 14 e s.), mas quando negamos misericór­ dia a outrem, negamo-la a nós mesmos. Ou tomamos posição conforme à miseri­ córdia de Deus, ou não o fazemos. Não podemos agir duplicemente, isto é, querermos misericórdia para nós, mas nao "Para os outros. E também verdadê~QÍÍIF' somos julgados pelo próprio ato de jul­ gar. Em cada julgamento, revelamos os nossos próprios padrões e valores. A hipocrisia de condenar nos outros o que toleramos em nós mesmos é estabe­ lecida na analogia do argueiro e da trave. Jesus deliberadamente desenhou o 8. O Julgamento dos Outros quadro burlesco de um homem com uma 1 N ão ju lgu eis, p ara que não se ja ís ju l­ trave no seu olho, tentando remover um gados. 2 Porque com o ju ízo com que ju lg a is, cisco áo olho de outro! Grande partê~do sereis ju lgad os; e com a m ed id a com que m ed is v o s m edirão a v ó s. 3 E por que v ê s o nosso juízo acerca dos outros é, dessa argueiro no olho do teu irm ão, e não rep aras forma, absurdo. Se a pessoa é sincera.*^ na trave que e stá no teu olho? 4 Ou, com o dirás a teu irm ão; D eixa -m e tirar o argueiro ^vai primeiramente submeter-se a juízo, ‘ do teu olho, quando ten s a tr a v e no teu? 5 ^removendo a trave do seu olho. H ipócrita! tira prim eiro a tra v e do teu olho; Jesus não está dizendo que precisamos e então v erá s b em p a ra tirar o argueiro do ignorar o argueiro no olho do nosso olho do teu irm ão. irmão. É da nossa obrigação tentar liber­ 6 N ão d eis a o s cã e s o que é santo, nem tar um irmão do cisco que atrapalha a lan ceis a o s porcos a s v o ssa s p érolas, p ara não acon tecer que a s ca lq u em a o s p é s, e, sua visão. Mas estaremos em condições voltando-se, v o s d esp ed a cem . de exercer esse ministério só depois que a Juízo é o tema dominante de todo o trave estiver fora do nosso olho. A ques­ tão não é trave ou argueiro. Ambos preci­ capítulo 7, embora a sua coesão seja sam ser removidos, mas primeiro a trave.^ menos aparente do que nos capítulo 5 ou 6. Os laços lógicos não são sempre visí­ 'Só depois que a pessoa conhece a vergo­ nha ou agonia de colocar-se sob julga­ veis, quando se faz transição de um mento, e de ter a trave removida do seu assunto para outro. olho, pode ela entender a necessidade e 1) O Argueiro e a Trave (v. 7:1-5) os sentimentos do seu irmão. Só então Fazer julgamentos é uma função ines­ pode ela ver bem para tirar o argiieiro do_ capável da mente, mas o expressá-los .^Iho do seu irmão. está sujeito a controle. A pessoa não Mesmo assim, só Deus tem o conheci­ escapa de ser julgada pelo fato de assu­ mento e a integridade para exercer juízo mir o papel de juiz, pelo contrário, torna final; e, felizmente, o juízo final cabe a certo o fato do seu próprio julgamento e ele, e não a nós (I Cor. 4:3-5). Embora as

denciado. De fato, o discípulo pode expe- | r rimentar “abundância” ou “falta” , mas I em Cristo ele encontrará a sua suficiência I (Fil. 4:11-13). ^ I 0 versículo34 corrobora a advertência contra 'trazeV os problemas de amanhã para ho|erTesuriiSõ'3r5íBê~a~‘p r e v i^ ^ m ãsa^vèrte contra o sobrecarregar o / dia de hoje com ansiedade a respeito dos í problemas desconhecidos do futuro. Ar* pessoa não deve se destruir por ansied^e^^ ãCercã^Hè um"7úturo que não pode con­ trolar. Juntamente com uma previsão „ jegítima (que hão discutiremos aqui), precisa Eaver a confiança em Deus, pois sò eie conhece '"o^íuturo.' PoHelíiotar-se que Jesus não baseou a palàvra acerca da libertação da ansiedade no fato de que o tempo era curto antes do fim do mundo. Esta não é uma ética de interim ou provisória’’’."7 *

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mentes sejam feitas de tal forma que não escapem à função de julgar, podemos pelo menos lembrar que não fomos apon­ tados para o ofício de juizes; e podemos lembrar a nossa falibilidade, predisposta pelos nossos próprios pecados, e por isso nunca possuímos toda a verdade acerca daquilo que devemos julgar, estando sempre sujeitos a parcialidade ou precon­ ceito.

dará u m a pedra? 10 Ou, se lh e pedir p eix e, lhe dará u m a serp en te? 11 Se v ó s, pois sendo m aus, sa b e is dar boas dád ivas a v o sso s filIhos, quanto m a is v o sso P a i, que è stá nos céu s, d ará b o a s c o isa s a o s que lh a s p ed i­ rem ? 12 P ortan to, tudo o que vó s quereis que os h om ens vos fa ça m , fazei-Uio ta m b ém vós a e les; porque esta é a lei e o s p rofetas.

O que podem fazer os cristãos em face da responsabilidade de remover o cisco do olho do irmão, e compartilhar o que é 2) Pérolas aos porcos (7:6) santo e as suas pérolas, sabendo da sua Cães e porcos eram animais despreza­ inadequação pessoal para ambos os mi­ dos pelos judeus, e ambos eram conside-_^ nistérios? Precisam procurar uma sabe­ rados imundos. Jesus não está fazendo doria de cunho mais elevado, e recursos alusão aos gentios, mas a qualquer pes­ mais amplos do que os seus. Eles preci­ soa que seja incapaz ou não esteja dispos­ sam pedir, buscar e bater. Certamente, ta a distinguir entre o que é santo e o que esta advertência vai além das necessida­ não é, ou entre pérolas e objetos sem des que se levantam neste ministério de valor. Estas palavras soam duramenteT” julgamento e compartilhamento, mas is­ mas precisam ser ouvidas. Jesus não ex­ to está incluso. cluiu ninguém arbitrariamente, mas re­ Pedi, buscai, batei significa primaria­ conheceu que havia ocasiões em que não mente uma predisposição para Deus, pa­ havia nas pessoas nenhuma predisposi­ ra sua instrução, orientação ou dádivas. ção para o evangelho ou para o seu Isto não quer dizer que a pessoa obtém o ministério (cf. 26:63). que deseja simplesmente orando por ela. Embora seja da obrigação do cristão Jesus orou três vezes pela possibilidade compartilhar o que é santo ou as suas da remoção do cálice que o esperava pérolas com qualquer pessoa que as qui­ (26:39-44). Ele não exigiu a sua remoção, ser receber, há horas em que ele deve e ele não foi removido. Ele, isso sim, re­ apenas ficar em silêncio, ou procurar cebeu forças para bebê-lo. Pode ser que a criar um clima melhor para um compar­ pessoa não receba o que pede, não en­ tilhamento futuro. O que é santo e péro­ contre o que busca, e a porta a que está las aqui podem referir-se ao discernimen­ batendo pode não ser a que se abrirá; to, ao julgamento ou à mensagem de mas a certeza é qüe, onde houver pedidos, uma pessoa. Três perigos ameaçam o haverá resposta, onde houver busca, ha­ testemunho ou o ministro cristão que não verá encontro, e onde houver batidas discerne quando deve falar e quando insistentes. Deus abrirá uma porta. deve guardar silêncio: pode prejudicar Pode-se confiar em Deus não apenas ainda mais a pessoa que procura ajudar; para dar, mas para dar boas coisas aos pode tentar forçar a sua própria pessoa,, que lhas pedirem. Um pai não dará uma ou os seus valores, sobre outrem; e pode, pedra ao filho que pede pão, ou uma desnecessariamente, colocar em perigo a serpente ao filho que lhe pede peixe. si mesmo e a outrem. Deus não nos dará pedras ou serpentes quando pedimos pão ou peixe, e não nos 9. Pedi, Buscai, Batei (7:7-12) dará pedras ou serpentes nem mesmo 7 P e d i, e dar-se-vos-á; b u sca i, e a ch a reis; quando estivermos tão confusos e desa­ b atei, e abrir-se-vos-á. 8 P o is todo o que jeitados que não soubermos pedir coisa pede, receb e; e quem b u sca , a ch a ; e ao que melhor! A necessidade de oração persis­ bate, abrir-se-lhe-á. 9 Ou qual dentre v ó s é o tente não existe porque Deus é relutante hom em que, se se u filho lh e p ed ir pão, Uie 157


em dar, mas porque precisamos ser con­ dicionados a receber. Se até os homens maus dão boas dádi­ vas aos seus filhos (v. 11), certamente pode-se confiar que vosso Pai, que está nos céus, dará boas coisas aos que lhas pedirem. Mateus não indica que coisas boas são essas. O paralelo em Lucas (11:13) diz que Deus dá o Espírito Santo. Uma velha oração, de forma muito feliz, diz o seguinte: “ Senhor, não nos dês o objeto de nosso desejo, mas a substância do que pedimos.” A Regra Ãurea (v. 12) — De forma negativa, este provérbio era grandemente conhecido entre os judeus (Tobias 4:15; Filo; Hilel) e os gentios. Jesus deu-lhe forma positiva, e deu-lhe o epíteto de essência da Lei e dos Profetas. A Regra Ãurea pressupõe discipulado, submissão ao governo de Deus. Não é uma regra suficiente para todo mundo. Em uma vida pagã, a “regra” iria ser experimentada em termos de valores pagãos, pois dese­ jos pagãos originam-se em corações pa-^ gãos. A intenção da Regra Ãurea pres-‘ supondo discipulado é que a pessoa deve preocupar-se com o bem dos outros, tan­ to quanto com o seu próprio bem (cf. 22:39 e s.). 10. Perigos no Caminho da Justiça (7: 13-27) É difícil seguir o movimento do pensa­ mento, ou encontrar o princípio de coe­ são desta grande porção de material. O perigo de um esboço nítido é que ele força ao material um sistema que lhe é estranho. Alguma continuidade pode ser vista na advertência contra o caminho fácil (v. 13 e 14), os falsos profetas (v. 15-20), confissão sem obediência (v. 2123), e edificar sobre alicerces errados (v. 24-27). Há também o lado positivo, enfa­ tizando o caminho que conduz à vida, a árvore boa que produz fruto bom, e o alicerce na rocha, que não se abalará; mas as advertências pesadas nos versícu­ los 13, 15, 21 e 26 são tão importantes que nunca as enfatizaremos demais. M a­ 158

teus parece ter em mente ameaças anti­ nomianas quando reúne esses ensinos de Jesus. 1) Os Dois Caminhos (7:13,14) 13 E n trai p ela porta estreita ; porque larga é a porta, e esp a ço so o cam in h o que conduz à perd ição, e m u itos são os que e n ­ tram por ela ; 14 e porque e str e ita é a porta, e apertado o cam inho que conduz à vid a , e poucos sáto os que a en con tram .

O Pai que está nos céus dá boas dádi­ vas aos homens que, no que têm de melhor, ainda são maus (v. 11), e oferece 0 reino aos pobres de espírito, aos man­ sos e aos misericordiosos; mas intrínsecos na dádiva da salvação há também requi­ sitos. Mateus não conhece salvação atra­ vés de méritos humanos, mas também não conhece salvação que liberte o ho­ mem dos requisitos de Deus. O caminho que conduz á vida está por detrás de uma porta estreita, e o caminho propriamente dito é apertado, isto é, de aflição, an­ gústia e tormento. Ê um caminho de de­ cisão, entrega e obediência a Deus. Em um mundo iníquo, é uma estrada deser­ ta, palmilhada por poucos companhei­ ros. “Apertado” é tradução de tethlimmene, normalmente vertido como “aflito” . Pode estar fazendo referência à cruz, pois mestre e discípulo (16:21,24), perseguição (5:10 e ss.), tentação (6:13; 26:41), autonegação (16:24), são todas características do discipulado. Embora não seja feita refêrencia ex­ plícita nem a legalismo nem a antinomia­ nismo, não é forçoso pensar no caminho apertado, estreito, como correndo entre os dois, evitando os dois. A religião pode facilmente tornar-se um sistema rígido, legalista, enfatizando alvos inatingíveis, estabelecendo regras impossíveis, sejam rituais, doutrinárias, ascéticas, ou ou­ tras. Da mesma forma, facilmente se toma um caminho de licenciosidade, em nome da liberdade ou da graça, moral e eticamente irresponsável. Jesus nos cha­ ma para o caminho estreito, difícil, que não é legalista nem libertino.


que faz a von tad e de m eu P a i, que e stá nos céu s. 22 M uiios m e dirão naquele dia: S e­ nhor, Senhor, não p rofetizam os nós e m teu 15 G uardai-vos dos fa lso s p rofetas, que nom e? e em teu nom e n ão ex p u lsa m o s d e ­ vêm a vós disfarçad os em o v elh a s, m as m ônios? e e m teu nom e não fizem o s m u itos interiorm ente são lobos d evorad ores. 16 P e ­ m ila g res? 23 E n tão lh e s d irei cla ra m en te: los seu s frutos os co n h ecereis. C olhem -se, N unca v o s con h eci; ap artai-vos de m im , vós porventura, u vas dos esp in h eiros, ou figos que p ra tica is a iniqüidade. dos abrolhos? 17 A ssim , toda árvore boa Pode parecer que este parágrafo ofere­ produz bons frutos; porém a árvore m á ce uma escolha simples entre dizer e produz frutos m a u s. 18 U m a á r v o r e b oa nã« pode d ar m au s frutos; n em u m a árvore m á fazer, mas não é este o caso. Os que dar frutos bons. 19 T oda árvore que não foram rejeitados no juízo foram os que produz bom fruto é cortad a e la n ça d a no tanto falavam como faziam! Eles disse­ fogo. 20 P ortanto, p elo s seu s frutos o s c o ­ ram: “ Senhor, Senhor!” e faziam muitas n h ecereis.

2) Uma Árvore Conhecida por Seus Frutos(7:15-20)

Os falsos profetas, que vêm disfarça­ dos em ovelhas,'mas que interiormente são lobos devoradores, não são os fari­ seus ou saduceus, pois nenhum deles dizia profetizar. São pessoas, dentro da comunidade cristã, que se fingem de profetas, mas que são falsos. No parágra­ fo seguinte (v. 23), intimamente relacio­ nado com este, pode ser encontrada uma idéia do emprego da palavra iniqüidade. Esses podem ser os antinomianos, que enfatizam a graça, o Espírito e a pro­ fecia, mas verifica-se serem falsos. Fin­ gindo-se ovelhas, na verdade, são lobos devoradores, que dividem e destroem. Fruto é um tema importante em o Novo Testamento, nunca equiparado com obras exteriores (veja 3:8; João 15:1-10; Gál. 5:22). No versículo 17 e ss., árvore má é uma tradução melhor do que “ árvo­ re corruçta ou podre” . Sapron não quer dizer árvore estragada, e, sim, qualidade errada de árvore. Esta palavra é usada na parábola da rede (13:48). Os peixes maus não são doentes, mas da qualidade erra­ da, não comestíveis. Os falsos profetas produzem frutos maus, da qualidade er­ rada. Que fruto é esse, não é especificado aqui; mas, em Gálatas 5:22, “o fruto do Espírito é: o amor, o gozo, a paz, a longanimidade, a benignidade, a bonda­ de, a fidelidade, a mansidão, o domínio próprio” . 3) Dizer sem Fazer (7:21-23) 21 N em todo o que m e diz: Senhor, S e­ nhor! en trará no reino do céu s, m a s aquelf*

obras religiosas: profetizavam, expulsa­ vam demônios, e realizavam milagres ou feitos poderosos. Os atos requeridos são o fazer a vontade de Deus, e não realizar meramente atos religiosos, por impres­ sionantes que sejam. Para muitos que dizem: Senhor, Se­ nhor!” e fazem coisas sensacionais (pro­ fecia, exorcismo, milagres) o veredicto, no juízo final (naquele dia, v. 22), será: Nunca vos conheci. Não que um a vez eles tivessem sido conhecidos depois esqueci­ dos, mas eles nunca haviam entrado em um relacionamento salvador com Cristo. O “fazer” , que é requerido além de “dizer” , claramente não é igualado com ortodoxia, profecia, exorcismo ou mila­ gres. A entrada no reino dos céus é prometida apenas para os que fazem a vontade do Pai celestial (cf. 6:10). O Evangelho de Mateus termina com esta nota: “ensinando-os a observar todas as coisas que eu vos tenho ordenado” (28: 20). A palavra iniqüidade (anomian), no v. 23, é a chave das pessoas descritas. Pare­ cem sèr os libertinos antinomianos, que diziam que, agora que Cristo veio, a Lei não tem mais efeito (cf. 5:17 e ss., 24:11 e ss.) Parece que eles substituem as obras pelo que provavelmente chamariam de dons carismáticos de profecia, exorcismo de demônios e milagres (Barth, p. 15964). O paralelo, em Lucas (13:27), grafa outra palavra grega (adildos), também traduzida como iniqüidade, enquanto Mateus usa a palavra anomia (v. 23), 159


possivelmente refletindo a preocupação de Mateus com a ameaça antionomiana. 4) Ouvir e Fazer (7:24-27) M Todo aq u ele, p ois, que ouve e sta s m i­ nhas p a la v ra s e a s põe e m p rá tica , será com parado a u m h om em prudente, que e d i­ ficou a su a c a sa sobre a rocha. 23 £ d esceu a chuva, correram a s torren tes, sop raram os ventos, e b ateram com ím peto contra aq u e­ la c a sa ; contudo, não caiu , porque e sta v a fundada sobre a roch a. 26 M as todo aq u ele que ouve e sta s m in h as p a la v ra s, e n ão a s põe e m p rática, será c o m p a r t o a u m h o ­ m em in sen sato, que edificou a su a c a sa sobre a areia . 27 E d esceu a ch u va, co rre­ ram a s torren tes, sop raram o s ven tos, e b ateram com ím peto contra aq u ela c a sa , e e la caiu ; e grande foi á su a queda.

Da mesma forma como dizer e fazer foram discutidos no parágrafo anterior, ouvir e fazer são considerados aqui. A 'péssõã que ouve as palavras de Jesus e as põe em prática é comparada com um homem prudente, que edificou a sua casa sobre a rocha. Aquele que ouve, mas não as põe em prática, é como um homem insensato, que edificou a sua casa sobre a areia. Um alicerce suporta, _enquantoj) outro se desmoronai^" * Tanto o sermão de Mateus como o de Lucas terminam com a parábola dos dois fundamentos. A parábola e a sua incor­ poração no sermão, de alguma forma, são anteriores a ambos os Evangelhos. Para o Evangelho de Mateus, ela repre­ senta uma preocupação de monta, enfa­ tizando a obediência indispensável ao discipulado. Ela também reflete o senso que Jesus tinha do direito de fazer reivin­ dicações supremas dos homens, e o fato de que o destino deles está ligado á sua obediência a ele. 11. Sumário(7:28,29) 28 Ao concluir J esu s e ste d iscu rso, a s m ultid ões se m a ra v ilh a v a m da su a doutri­ na; 29 porque a s en sin a v a com o tendo a u to­ ridade, o não com o os e sc rib a s.

A declaração do sumário aparece aqui quase nas mesmas palavras em que é 160

feita no fim de cada um dos principais cinco discursos de Mateus (7:28; 11;1; 13:53; 19:1; 26:1). Não é provável que Mateus tivesse em mente um novo Penta­ teuco (veja Introdução, p. 22-26), mas é claro que os cinco discursos representam uma característica marcante do seu Evangelho. As multidões ficaram impressionadas com a autoridade com que Jesus ensina­ va. Ele fazia requerimentos supremos, baseado no seu “Eu, porém, vos digo” . Em contrário, os escribas sempre apela­ vam a rabis anteriores. Mas a autoridade que havia nos ensinos de Jesus é vista também na profundidade, verdade e fi­ nalidade do que ele disse.

III. A Autoridade de Jesus em Palavras e em Obras 8:1 — 9:34) Esta é uma unidade bem definida, consistindo grandemente de narrativas (dez milagres) precedidas pelo primeiro de cinco discursos de Mateus: O Sermão da Montanha (caps. 5 - 7), e seguidas pelo seu segundo grande discurso, acerca do apostolado (cap. 10). Evidência suple­ mentar de uma transição de importância é encontrada na concordância quase pa­ lavra por palavra de 4:23 e 9:35, cada um desses versículos resumindo o ministério de Jesus em termos de ensino, pregação e cura, e ambos marcando uma transição de uma seção para outra. Esta seção de “narrativas” também contém importan­ tes materiais de discurso (8:18-22; 9:1017). A autoridade de Jesus é um tema básico nesta seção. Da mesma forma como Jesus “as ensinava como tendo autoridade” (7:29), a sua autoridade é reconhecida sobre a doença, os demô­ nios, a morte, a natureza, o perdão de pecados, a vocação de discípulos e o ato de sobrepujar os costumes judaicos. A palavra autoridade é explícita em 8:9; 9:6, 8, e implícita em toda a seção, especialmente em 9:28. Além e junta­


mente com o tema da autoridade de Jesus, há ênfase sobre “fé” (8:10,26; 9:2,22, 29) e entrega radical a Jesus como Senhor (8:18-22). O monte de 8:1 remonta a 5:1, e gran­ des multidões, a 4:25 e 5:1. Desta forma, Mateus mostra que as multidões que ouviram o Sermão da Montanha são as mesmas- que testificaram acerca das obras poderosas. Isto não apenas liga a autoridade em palavras à autoridade em obras, mas, além disso, mostra que as pesadas exigências de Jesus estão firma­ das em atos de misericórdia, acessíveis através da fé. • O número dez, para os milagres reu­ nidos nesta seção, pode ser de propósito artístico ou teológico. Dez é número re­ dondo, completo, e pode corresponder aos dez milagres do Egito, dez no Mar Vermelho, e aos dez no Templo, como alegado pela tradição judaica (Pirke Âboth, 5:4,5). Os milagres dos capítulos 8 e 9 são, algumas vezes, subdivididos em três grupos de três cada um, 9:18-26 contan­ do como uma as histórias da filha de Jairo e da mulher hemorrágica. As três unidades de curas seriam desta forma entremeadas de material de discursos, 8:18-22 e 9:9-17. Os dez milagres se clas­ sificam em três categorias: exorcismos, cura de enfermidades, e milagres na na­ tureza. Mais significativo é, nos dez mi­ lagres, a premonição da declaração do sumário em 11:5 e s., caracterizando o ministério de Jesus como sendo aos ce­ gos, coxos, leprosos, surdos, mortos (al­ guns manuscritos omitem isto) e pobres (cf. Is. 29:18; 35:5; 42:7). A possibilidade de milagres não foi questionada pelos seguidores ou inimigos de Jesus. A era do racionalismo, culmi­ nando no século XIX, foi muito cética acerca de “milagres” . Tanto a ciência como a fé, hoje em dia, estão menos dispostas a estabelecer limites para o homem ou para Deus. Os fariseus não questionaram o fato dos milagres de Je­

sus; só a fonte do seu poder e o seu direito de fazê-lo (9:34; 12:24). Jesus se inclinava a fazer milagres de misericórdia para satisfazer às necessida­ des humanas, e, no entanto, se eximiu de fazer o papel de “milagreiro” e afastou-se de seguidores cuja “fé” dependia de mila­ gres. Para Jesus, os milagres eram atos de misericórdia, bem como sinais escatológicos -de que o reino de Deus havia vindo, e os seus poderes já estavam der­ rotando o reino de Satanás, ao vencer o pecado, a doença, os demônios e a morte (cf. 12:28 e s.). “Milagre” significa maravilha, e é tra­ dução de teras. Este termo nunca é usado sozinho em o Novo Testamento grego. Coube ao Evangelho de João desenvolver a idéia de que um “milagre” é um sinal (sêmeion), tendo valor didático e eviden­ ciai para a fé. Nos Sinópticos, a fé é geralmente, mas não sempre (cf. 8:1417), uma pré-condição para os milagres de cura. A fé não era pré-condição para a expulsão de demônios ou para milagres na natureza. 1. Um Leproso Purificado (8:1-4) 1 Quando J e su s d esceu do m on te, gran d es m ultidões o seg u ira m . 2 £ e is que v eio um leproso, e o a d o ra v a , dizendo: Senhor, se q u iseres, p od es to m a r-m e lim po. 3 J esu s, pois, esten d en d o a m ã o , tocou-o, dizendo: Quero, sê lim p o. No m e sm o in stan te ficou purificado da su a lep ra . 4 D isse-lh e então Jesu s: Olha, não con tes isto a nin gu ém ; m a s va i, m ostra-te a o sa cerd o te, e ap resen ta a oferta que M oisés d eterm inou, p ara lh es servir de testem unho.

A lepra na Bíblia abrangia várias do­ enças da pele, mas, em o Novo Testa­ mento, não era a lepra agora conhecida como Mal de Hansen. A lepra podia tornar impuras uma pessoa, roupas ou uma casa. Havia testes elaborados para detectá-la, providências para isolar o do­ ente e procedimentos rituais para aqueles que saravam, sempre sob a autoridade dos sacerdotes (cf. Lev. 13 e 14). Depois de um cadáver, a lepra era considerada 161


como a coisa mais ritualmente poluidora. Exigia-se que o leproso vestisse roupas rasgadas, deixasse o cabelo cair solto dà cabeça, cobrisse o lábio superior, e gri­ tasse: “ Imundo! Imundo!” quando se aproximasse de alguém (Lev. 13:45). Aliás, não devia aproximar-se de outra pessoa. Mais significativo do que o fato do leproso ter-se aproximado de Jesus, o que era uma violação da lei, é o fato de que Jesus, estendendo a mão, tocou-o. Jesus tocou o intocável! Ele o fez como ato de vontade deliberado. A ordem para que ele não o contasse a ninguém fora, prova­ velmente, para que se evitasse que os milagres de cura se tomassem a base para o povo o seguir. Mostra-te ao sacer­ dote reflete o requisito legal de que a cura da lepra fosse certificada por um sacerdote; de outra forma, a pessoa não podia ter contatos sociais. O fato de Jesus ter-lhe dito para apresentar a oferta que Moisés determinou (Lev. 14:1-7) prova­ velmente reflete o respeito de Jesus pela lei judaica (5:17). Para lhes servir de testemunho (ao povo) seria literalmente “como testemu­ nho a eles” . A forma plural “a eles” pode referir-se ao povo, em vez de ao sacerdo­ te. Mais provavelmente, a referência é aos sacerdotes e escribas, prova a eles de que Jesus não estava destruindo a Lei ou abandonando os judeus. 2. A cura do Servo de um Centurião (8:5-13) 5 Xendo J esu s entrado e m C afa m a u m , chegou-se a e le u m centu rião, que lhe ro g a ­ va, dizendo: 6 Senhor, o m eu criado ja z em c a sa p aralítico, e h orrivelm en te atorm en ­ tado. 7 R «spondeu-lhe J esu s: E u irei, e o curarei. 8 O centu rião, p orém , replicou-lhe: Senhor, não sou digno de que en tres debaixo do m eu telhad o; m a s so m en te dize u m a p alavra, e o m eu criado h á d e sa ra r. 9 P o is tam b ém eu sou h om em su jeito à autoridade, e tenho soldados à s m in h a s ord en s; e d igo a este: V ai, e e le v a i; e a outro: V em , e e le v em ; e ao m eu servo: F a ze isto , e e le o faz. 10 J esu s, ouvindo isso , ad m irou -se, e d isse aos que o seg u ia m : E m verd ad e vos digo

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que a nin gu ém en con trei e m Isra el com tam an h a fé . 11 T am b ém v o s digo que m u itos virão do oriente e do ocid en te, e recUnar-seão à m e s a co m A braão, Isaq u e e J a có , no reino dos c é u s; IZ m a s o s filh os do reino serão la n ça d o s n a s tr e v a s ex terio res; ali h averá choro e ran ger de d en tes. 13 E ntão d isse J e su s ao cen tu rião: V ai-te, e te se ja feito a ss im com o cr e ste . E n aq u ela m esm a hora o se u criado sarou .

O centurião era um oficial romano que comandava cem homens. Que ele não era judeu, é explícito nas palavras de Jesus: a ninguém encontrei em Israel com tama­ nha fé. É provavelmente de propósito que Mateus coloca esta história imedia­ tamente após a do leproso purificado. Lucas não as coloca juntas (5:12-16; 7:110). O respeito de Jesus pela lei judaica e a preocupação pelos judeus é expressa na história do judeu leproso. A história do centurião expressa a sua atitude para com os gentios, e prevê a sua missão a eles. O termo grego pais, usado por Ma­ teus, pode ser vertido como servo ou “filho” . No paralelo, Lucas usou servo (doulos); portanto, servo provavelmente é o termo correto aqui. Ê difícil o portu­ guês preservar a força da resposta de Jesus: Eu (ego) irei, e o curarei. O prono­ me é enfático. Jesus indica disposição para ir pessoalmente à casa de um gen­ tio, considerada impura, segundo a lei judaica. A sugestão de que o versículo 7 deva ser lido como interrogação, em vez de afirmação, é gramaticalmente possí­ vel, mas não provável (cf. Luc. 7:6). Se a pergunta era o pretendido, “Devo ir?” , será melhor compreendida como testan­ do a fé do centurião. O fato de Jesus não ter ido, mas ter curado à distância, não expressa má vontade de entrar na casa de um gentio, mas, pelo contrário, indica o fato da sua autoridade, uma das princi­ pais ênfases da história. Pode também ser uma referência velada à missão aos gentios, em que Jesus não entrou pessoal­ mente, mas ordenou, posteriormente. Como militar, o centurião vivia pela lei da autoridade, tendo homens sobre ele


tanto quanto sob ele. Ele reconheceu a autoridade de Jesus, confiou nela e con­ fessou-a. Foi essa fé que Jesus louvou, e isto ocasionou sua declaração de longo alcance, de que muitos virão do oriente e do ocidente (isto é, gentios) e reclinar-seão à mesa com Abraão, Isaque e Jacó no reino dos céus! Jesus havia tocado um leproso, um judeu “imundo” , e havia-se oferecido para entrar na casa de um “imundo” gentio. Deveriam cair as li­ nhas superficiais entre limpo e imundo, e entre judeu e gentio, e os gentios iriam sentar-se à mesa do “banquete messiâni­ co” com Abraão, Isaque e Jacó. Fé como a manifestada pelo centurião não foi encontrada nem mesmo em Is­ rael; e muitos filhos do reino (israelitas) seriam excluídos da presença de Abraão, Isaque e Jacó, possivelmente porque lhes faltasse fé. A advertência é dirigida prin­ cipalmente àqueles que presumem que têtn uma posição de privilégio, e firmam as suas esperanças no que chamam de seus direitos. As palavras do centurião; Senhor, não sou digno de que entres debaixo do meu telhado, mostram que a sua fé está na bondade e poder de Jesus, e não nos seus próprios méritos ou direi­ tos. Trevas exteriores, onde há choro e ranger de dentes, são expressões que aparecem seis vezes em Mateus (13:42, 50; 22:13; 24:51; 25:30). Eram descri­ ções primitivas judaicas do Sheol (um abismo), mas haviam passado a caracte­ rizar a Geena. Obviamente, a lógica acha difícil a figura de uma Geena como lugar de fogo (3:12) e trevas, o que é uma advertência contra a redução de toda a linguagem bíblica a seu significado apa­ rente. A linguagem simbólica e poética tem a sua própria lógica, e a sua verdade não é menos verdadeira ou séria, porque emprega tais imagens. Reclinar-se-ão à mesa é também uma imagem para a alegria da era futura, como a de um banquete (cf. 22:1-14; 26:29; Apoc. 19: 9).

3. Os Enfermos Curados (8:14-17) 14 Ora, tendo J e su s entrado n a c a sa de Pedro, viu a so g ra d e ste de ca m a , e com febre. 15 E tocou-lhe a m ão, e a feb re a deixou; en tão e la se levan tou , e o serv ia . 16 Caída a tard e, trouxeram -lhe m u ito s en d e­ m oninhados; e eie com a su a p a la v ra ex p u l­ sou os esp írito s, e curou todos os en ferm os; 17 p ara que se cu m p risse o que fo ra dito pelo profeta Is a ía s : E le tom ou sobre si a s n o ssa s en ferm id ad es, e levou a s n o ssa s doenças.

Mateus indica que o próprio Jesus, ao entrar na casa, notou a sogra de Pedro, dando, possivelmente, a idéia da casa de um só comodo de um pescador. Pode-se dar especial atenção à observação de que a mulher curada o servia. É a lição de que a cura e a salvação têm em vista serviço? Jesus capacita a pessoa para cumprir o seu papel na vida. Mateus passa por cima da anotação de Marcos de que curas gerais tiveram lugar ao pôr-do-sol (Mar. 1:32), hora em que o sábado havia passado (Mar. 1:21). Dife­ rentemente de Marcos, Mateus não havia apresentado a referência ao sábado, e por isso não tinha razões para observar que ele tinha terminado. Ele estava mais interessado no tema de cumprimento, traduzindo o texto hebraico de Isaías 53:4: Verdadeiramente Ele tomou sobre si as nossas enfermidades, e carregou com as nossas dores. O texto grego torna enfático o pronome ele (autos). A expres­ são ^Sen[o_Sofredqr não é usada aqui, mas a idéia está presente. Apesar de a ênfase não estar no fato de que ele levou os pecados dos homens, mas nas curas de enfermidades deles, esta passagem pode nos lembrar qu ^ em b o ra a obra redento­ ra de Cnstç tenha_o sei^ centro na^ruz, ele j á e r a Redento^__^a doMça e do^ p e c S õ j^ ra n te p seu ministério^erreno. 4. O Custo do Discipulado (8:18-22) 18 Vendo J e su s u m a m ultidão ao redor de si, deu ordem de partir p ara o outro lado do m ar. 19 E , aproxim ando-se u m escrib a , d isse-lh e: M estre, segu ir-te-ei p ara onde quer que fores. ZO R espondeu-lhe J esu s: As rap osas têm covis, e a s a v e s do céu têm

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m ilh os; m as o F ilh o do h o m em n ão tem onde reclin ar a ca b eça. 21 E outro de seu s d is c í­ pulos lhe d isse: Senhor, p erm ite-m e ir p ri­ m eiro sepu ltar m eu p ai. 2Z J e su s, porém , respondeu-lhe: S egu e-m e, e d eix a os m ortos sepu ltar os seu s próprios m ortos.

O fato de Jesus se retirar do meio da multidão que havia se reunido ao redor de si (dele), e o da sua resposta aos dois discípulos em perspectiva, não deixam nenhuma dúvida acerca do custo do dis­ cipulado. Ele se afastou das multidões, cujo interesse, aparentemente, estava apenas nos benefícios físicos derivados dos milagres. A preocupação maior de Jesus era alistar seguidores e dar-lhes nova vida, mas ele não estava disposto a acei­ tar que as pessoas o seguissem sob qual­ quer pretexto. Ele fugia da popularidade superficial, e compelia as pessoas que desejavam segui-lo a considerar os custos e as conseqüências dessa decisão. Sem dúvida, algures ele advertiu os indiferen­ tes, os tímidos, e os rebeldes, do terrível preço de não segui-lo. O escriba que se ofereceu para seguir a Jesus podia já ser discípulo, visto o se­ gundo voluntário ser apresentado como outro de seus discipulos. Se for assim, esse homem era um escriba cristão. O escriba que disse: Seguir-te-ei para onde quer que fores não sabia que Jesus estava a caminho da cruz (mais claro em Lucas 9:22, 51-62). Provavelmente, Jesus não quis dizer que não tinha cama em que dormir, literalmente. Ele vivia em Cafarnaum (4:13), e acabara de entrar na casa de Pedro. Os Evangelhos indi­ cam que lhe fora oferecida hospitalidade em Betânia, e até em casas de fariseus. Possivelmente, Jesus queria dizer o que está explícito em João 1:11: “V.eio para o que era seu, e os seus não o receberam.” As raposas têm covis como refúgio, e as aves do céu têm ninhos (na verdade, “poleiros” para passar a noite, e não ninhos), mas ele não tinha lugar para onde escapar de um mundo hostil. A palavra de Jesus, de que ele não tinha onde reclinar a cabeça (ten kepha164

lên klinê), pode ter eco em João 19:30, onde na cruz Jesus “inclinou a cabeça” (klinas tên kephalên). Robinson observa: “O único travesseiro em que ele diz ter descansado é a cruz” (p. 73). O Filho do Homem é apresentado aqui, e vai tornar-se um termo cada vez mais importante em Mateus (veja Intro­ dução). Este termo é empregado cerca de 80 vezes nos Evangelhos, 31 vezes em Mateus. No Novo Testamento é sempre uma autodesignação, usada por Jesus. O mesmo termo aparece em Ezequiel mais de 90 vezes, referindo-se ao profeta como homem. Em Daniel 7:13 e ss., designa um homem celestial, que recebe do “An­ cião de Dias” um reino universal e eter­ no, e, em 7:22, 27, este filho do homem parece ser identificado com “os santos do Altíssimo” , que recebem um reino eter­ no. De acordo com os Evangelhos, Filho do Homem torna-se a autodesignação favorita de Jesus. Era expressão mais livre de associações políticas do que o termo Messias e também mais inclusiva, adequada para enfatizar o triunfo e a glória futuros de Jesus, bem como o seu ministério presente de humilde serviço, sofrimento e morte. Foi Jesus quem ligou à expressão “Filho do homem” a figura do Servo Sofredor de Isaías. Em 8:20, ouvimos as primeiras sugestões de Ma­ teus a este respeito. O Filho do homem celestial, destinado a receber um reino universal e eterno, e a julgar as nações, está na terra sem ter onde reclinar a cabeça! Indubitavelmente, ao unir as duas figuras, as adaptações necessárias foram feitas. O segundo voluntário ofereceu-se para seguir a Jesus, mas primeiro queria se­ pultar o seu pai. Pode ser observado que o sepultamento tinha lugar no dia da morte; se o pai desse discípulo já'tivesse morrido, o filho estaria lá, a assisti-lo. Mas a história não discute este ponto. Enterrar o pai era uma responsabilidade sagrada entre os judeus, tendo precedên­ cia sobre todos os outros deveres estabe­


lecidos pela Lei. Jesus exigiu uma lealda­ de que tem precedência até sobre este significativo dever familiar. Ele já havia desistido do seu lar em Nazaré (4:13) e logo iria dar a sua vida pelo seu povo. Ele deu tudo e exigiu tudo. Jesus ensinou claramente que um filho deve ser leal ao seu pai (15:3-6), mas essa é uma outra história. Os mortos a quem cabe sepultar os seus próprios mortos são os espiritual­ mente mortos.

por a q u ele cam inho. 29 E e is que gritaram , dizendo: Que tem o s nós contigo. F ilh o de D eus? V ieste aqui atorm entar-nos a n tes do tem po? 30 Ora, a a lg u m a d istâ n cia d eles, an d ava pastando u m a grande m an ad a de porcos. 31 E os d em ôn ios rogavam -U ie, dizendo: Se nos e x p u lsa s, manda.-nos entrar n aq u ela m an ad á de p orcos. 82 D isse-lh es J esu s: Id e. E ntão sa íra m , e en traram nos p orcos; e e is que toda a m a n a d a se p r e c i­ pitou pelo d espenhadeiro no m a r, perecendo n as á g u a s. 33 Os p a sto res fu g ira m e, c h e ­ gando à cid ad e, d iv u lga ra m tod as e sta s co isa s, e o que a co n tecera a o s en d em o n i­ nhados. 34 E e is que tod a a cid ad e sa iu ao 5. Uma Tempestade Acalmada (8:23-27) encontro de J esu s; e , vendo-o, rogaram -lhe 23 E , entrando e le no b arco, se u s d is c i­ que se retira sse dos se u s term os. pulos o segu iram . 24 E e is que se levan tou no m ar tão grande tem p esta d e, que o barco era O outro lado presumivelmente é o lado coberto p ela s ondas; e le , p orém , e sta v a leste do lago da Galiléia. Gadarenos é em dorm indo. 25 Os discip u lo s, p o is, a p roxi­ Mateus a melhor versão, atestada pelos m ando-se, o d esp ertaram , dizendo; Salvanos, Senhor, que e sta m o s p erecen d o. 26 E le manuscritos, sendo também plausíveis Uies respondeu: F o r que te m e is, hom ens de “gergesenos” e “gerasenos” . Gergesenos pouca fé? E n tão, levantan d o-se rep reendeu pode ter sido a forma original em Lucas e os ven tos e o m a r, e seg u iu -se grande Marcos. Possivelmente, a cidade deve ser bonança. 27 E aq u eles h om en s se m a r a v i­ identificada como Kersa ou Gersa, cujas lharam , dizendo: Que h o m em é e ste , que até os ven tos e o m a r Die ob ed ecem ? ruínas estão na margem oriental do lago

A história de Mateus é um resumo da narrativa de Marcos, bem mais detalha­ da (4:35-41). A autoridade de Jesus sobre a natureza é estabelecida conclusivamen­ te na pergunta final acerca de que ho­ mem é este, que até os ventos e o mar lhe obedecem? Todavia, o ponto a ser ensi­ nado relaciona-se com a fé. A calma de Jesus em dormir enquanto o bote estava sendo coberto pelas ondas estabelece agudo contraste com o medo e a pouca fé dos discípulos. O objetivo da narrativa é mais sublinhado em Marcos: “Por que sois assim tímidos? Ainda não tendes fé?” (4:40). Através dos séculos, os cris­ tãos têm aplicado legitimamente esta his­ tória aos perigos e crises da vida, obtendo dela a certeza de que Cristo pode nos livrar das “tempestades” da vida. 6. Endemoninhados (8:28-34)

Loucos

Curados

28 Tendo ele ch egado ao outro lado, à terra dos gad arenos, sairam -lh e ao encontro dois endem oninhados, vindo dos sep u lcros; tão ferozes erãm que nin gu ém podia p a ssa r

da Galiléia. A presença de suínos, proibi­ da a judeus, dá a entender que aquela era uma região gentílica. Entende-se que os dois endemoninha­ dos fossem homens sujeitos ao poder de demônios. A ciência moderna descreve­ ria esses homens como loucos, hostis e suicidas. No mundo antigo o homem vivia com o temor diário de maus espíri­ tos ou demônios. Embora o mundo oci­ dental hoje em dia esteja dividido entre os que substituíram “possessão demo­ níaca” por uma análise psicológica e aqueles que retêm a idéia doutrinariamente, poucos cristãos, hoje em dia, e possivelmente nenhum, vivem com o te­ mor diário de um ataque de demônios. Seja o que for que esteja sendo enten­ dido por demônios, Jesus libertou o mun­ do, ou grande parte dele, desse medo. A pergunta dos demônios: Que temos nós contigo? é realmente “O que é que temos a ver uns com os outros?” Quando Jesus vem, os demônios precisam ir embora. Apesar de Jesus não ter negado a rea­ lidade da existência de demônios, fez 165


voltar os homens para uma fé que é liberdade do medo, inclusive medo de demônios. Ele também desviou a atenção dos maus pensamentos, sentimentos e intenções profundamente arraigadas no coração humano, e propiciou vitória so­ bre esta fortaleza do mal. O leitor moderno fica preocupado com o destino da manada de porcos, seja pela questão científica de como é que demô­ nios puderam afetar porcos, seja pela questão moral da destruição de proprie­ dade alheia. Nenhuma das duas questões preocupou Mateus. Ele se regozija com a libertação de dois homens, coisa mais importante do que uma manada de suí­ nos. Não se depreende, necessariamente, que os moradores da cidade pediram a Jesus para se retirar por causa da perda dos seus porcos. Pode ser porque esta­ vam com medo do misterioso poder que estava se manifestando em Jesus. 0 que os demônios temiam era serem atormentados antes do tempo, isto é, antes do juízo final. Jesus venceu os demônios no decorrer da história, não esperando o fim da história, para fazê-lo. Em Mateus e Marcos há duas versões, aparentemente independentes, de uma história que fora pela primeira vez conta­ da em um território gentílico da Galiléia. Se, por um lado, o interesse de Marcos está em um homem liberto e restaurado, o interesse de Mateus, por outro lado, está na vitória sobre os demônios e no fato de os homens daquela cidade não terem aceitado uma salvação, que che­ gou tão perto, preferindo viver sob a tirania do medo, a viver na liberdade da fé. 7. Cura e Perdão (9:1-8) 1 E entrando J e su s n um b arco, passou para o outro lado, e chegou à su a própria cidade. 3 E e is que lhe trou xeram um p a ra ­ lítico deitado num leito.. J esu s, pois, vendolh es a fé, d isse ao para lítico : T em ânim o, filho; perdoados são os teu s p eca d o s. 3 E alguns dos escrib a s d issera m c o n sig o : E ste h om em b la sfem a . 4 M as J e su s, conhecendolh es os p ensam entos, d is s e : P or que p en sa is

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o m a l e m v o sso s cora çõ es? 5 P o is qual é m a is fácil? dizer: P erd oad os são os teus p ecad os, ou dizer: L evan ta-te e anda? 6 Ora, para que sa ib a is que o F ilho do h om em tem sobre a terra autoridade para perdoar p e­ cados (d isse en tão a o p a ra lítico }: L evantate, tom a o teu leito , e v a i p ara tua ca sa . 7 E este , levan tan d o-se, foi p ara su a c a sa . 8 E a s m u ltid ões, vendo isso , tem era m , e g lo ­ rificaram a D eu s, que d era ta l autoridade a o s hom ens.

A autoridade de Jesus para perdoar pe­ cados é a questão nesta história. Os escri­ bas puseram em dúvida o direito de Jesus de perdoar pecados, dizendo que era direito exclusivo de Deus (Mar. 2:7). O conflito entre Jesus e os escribas já estava tomando forma, com outras questões a serem ainda adicionadas a esta. A sua própria cidade (de Jesus) agora é Cafarnaum. O paralítico foi trazido no seu próprio leito, provavelmente uma padiola. Nem todos os milagres de Jesus foram realizados em resposta à fé, mas neste caso Jesus reagiu à fé das pessoas que haviam trazido o paralítico. O fato de Jesus ter começado a tratar do proble­ ma do pecado do homem não significa que ele tenha traçado uma conexão dire­ ta causal entre cada caso de enfermidade e o pecado (Luc. 13:1-5 e João 9:1-3 refutam isto). Por outro lado, Jesus via o pecado, em última análise, por detrás de toda doença humana, e algumas vezes uma conexão causal direta podia ser tra­ çada. O perdão é geralmente considerado mais fácil do que a cura. Pelo menos esta última é mais difícil, pelo fato de ser mais susceptível às provas. Entendendo assim, Jesus ofereceu provas de que po­ dia curar, e desta forma sustentou o fato de ser capaz também de perdoar peca­ dos. Para nós, perdoar é mais difícil, pois fizemos mais progressos em curar doen­ ças do que em perdoar uns aos outros. As multidões ficaram admiradas pelo fato de autoridade ser dada aos homens para perdoar pecados. Esta autoridade pertence, em última instância, a Deus (Is. 43:25), mas aqui ela é requerida por


Jesus como Filho do homem. No ensina­ mento de Jesus, o perdão é também responsabilidade do homem (6:12, 14, 15). Nesta história pode existir uma abordagem para unir as idéias do Filho do homem como uma pessoa individual (v. 6) e como uma comunidade (v. 8), em consonância com o quadro de Daniel 7:13 e s., 22. Esta idéia é um tanto substancial, mas também difícil e indefi­ nível. 8. A Chamada de Mateus (9:9-13) 9 P artindo J esu s dali, viu sentado coletoria um h om em cham ado M ateus, e disse-lhe: Segne-m e. E e le , levan tan d o-se, o seguiu . 10 O ra, estan d o e le à m e s a e m c a sa , eis que chegaram m uitos pub lican os e peca^ dores, e se reclin aram à m e sa ju n tam en te com J e su s e seu s d iscip u los. 11 E os fa r i­ seu s, vendo isso , p ergu n taram aos d is c í­ pulos: P or que co m e o v o sso M estre com os publicanos e p ecad ores? 12 J e su s, porém , ouvindo isso , resp on d eu ; N ão n e c essita m de ?2 m édico os sã o s, m a s, sim , os en ferm os. ^ 1 3 Ide, pois, e ap ren d ei o que sign ifica: . S M isericórdia quero, e não sa crifíc io s. Por,5 que eu não v im ch am ar ju sto s, m a s pecadores.

Embora esta narrativa tenha sido oca^ sionada pela vocação de Mateus, um coletor de impõsíõs, osei^ea^_ 5^jg ^ jjjg ^ I la s t r a r a reieicão. pór parte de Jesus,-da. posição farisaica a resoeito dos justos e dos pecadores, e o seu reconhecimento de à uma comunidade composta de publicãií5s e pecadores. A missão aos pecadores e defendida como lógica e correta, por analogia com o médico que ministra aos enfermos, e com base nas Escrituras, sendo citado Oséias 6:6, ensinando a preferência de Deus pela misericórdia aos sacrifícios rituais (outra vez em 12:7 e não fora de Mateus). Com base no aue viram àm esa de Jesus, õm to de ele estar comendo com pecadores, os fariseus de­ vem ir e aprender o que significa O séi^ h:b. mes precisam re-estudar aquela pãs^ sagem à luz do exemplo de Jesus e ver que a intenção dela é cumprida no que Jesus está fazendo. Possivelmente, Mateus deva ser identi­ ficado como o Levi de Marcos e de Lucas

(veja Introdução, p. 72). Ele era coletor de impostos, encarregado de coletar os impostos aduaneiros. Qs,coletores de impostos eram, pelo mdíretamerite', representantes do governo romano; eram considerados ritualmente impuros, por­ que lidavam com pessoas e com coisas impuras; e freqüentemente eram acusa­ dos de extorsão. Por estas razões, eles eram desprezados pelos fariseus e classi­ ficados com os pecadores. Os fariseus se consideravam retos e puros. Fariseu sig­ nifica separado — pessoas separadas de na pessoas e coisas “impuras” . .Social e reli­ giosamente, um grande abismo separava os fariseus~3õs~publtcãnõsTepecadores. rêsüi cõ n süílinrm a poiTEe'sõbre o abis" mo; ou, para mudar a figura, destruiu o muro que havia entre os dois grupos. Ele comeu com os publicanos e pecadores, bem como com os fariseus. A refeição compartilhada é universalmentê~reconhecida como sinal de aceitação. O fato de Jesus ter aceito os publica­ nos e pecadores prefigurou a aceitação dos gentios. Esse ato era legitimado~^las iiscrituras,l)ois Jesus citou misericórdia acima de sacrifícios religiosos. O que os fariseus rejeitavam como mau, Jesus aceitou como bom. Jesus fez da comunhão à mesa uma virtude e um Hêver, onde os religiosos o haviam consi~ difãdo um mal. Da mesma forma como o médico não espera até que os doentes sarem, para visitá-los, Jesus não esperou que as pessoas más se tornassem boas, para poder ministrar a elas, mesmo atra­ vés da comunhão à mesa. Ao negar qual. quer distinção básica entre fariseu e colehor de impostos, Jesus, em princípio, /derrubou todos os muros artificiais e superficiais entre os homens; e estabele­ ceu relações entre homem e homem, sob o olhar de Deus, baseadas na misericór­ dia de Deus, e não nas obras dos ho­ mens. Jesus não apenas recebeu perarlnres: Ele os procurou!-A casa em que Jesus estava à mesa podia ser a de Mateus, ou de Jesus, mas a declaração de que muitos 167


publicanos e pecadores chegaram e se reclinaram à mesa juntamente com Jesus e seus discípulos pode ter a implicação de que a casa era de Jesus. Se foi assim, ele era o hospedeiro. Estranho é que os seguidores de Jesus, como os fariseus, muifas ve^s são mais exclusivistas do que Tesus, seu Mestre. 9. Odres Novos Para Vinho Novo (9:1417) 14 £ n tã o v iera m ter com e le os d iscípulos de João, perguntando: P or que é que nós e os fa riseu s jeju am os, m a s os teu s discípulos não jeju am ? 15 R espondeu-lhes J esu s: P odem porventura fica r tristes o s con v id a ­ dos à s n úp cias, enquanto o noivo está com oles? D ia s virão, porém , e m que lh es será tirado o noivo, e então hão de jeju a r. 16 N inguém põe rem endo d e pano novo em vestid o velho; porque sem elh a n te rem endo tira p arte do vestid o, e faz-se m aior a rotura. 17 N em se d eita vinho novo e m odres velhos; do contrário, os odres se reb en tam , derram a-se o vinho, e os odres se p erdem ; m as d eita-se vinho novo e m o d res novos, e a ssim am bos se con servam .

O contraste entre a austeridade de João Batista e o profundo envolvimento de Jesus com a vida ao seu redor é exposto aqui, declarado agudamente em 11:18 e s., e apoiado por tudo o que se sabe sobre ambos. Não há nenhuma evi­ dência de choque entre João e Jesus, embora seja explícito que João estava pelo menos confuso acerca do ministério de Jesus (11:2 e s.), e por algum tempo houve pessoas que seguiram João, e não Jesus (cf. At. 19:1-7). Jesus tinha João em alta consideração, mas diferia dele. Jesus jejuava de vez em quando, e esperava que os seus seguidores o fizes­ sem, porém para ele o jejum era governadó não por costumes religiosos ou pelo calendário, mas pelas necessidades da ocasião (veja 6:16-18). Ele tornou claro este pensamento na analogia dos convi­ dados às núpcias. Eles não jejuam du­ rante o tempo alegre em que o noivo está com eles. Os participantes e convidados às núpcias estavam livres das obrigações 168

religiosas, inclusive o jejum, durante os sete dias da celebração do casamento. 23 Presumivelmente, Jesus aludiu à sua própria morte, quando se referiu aos dias em que lhes será tirado o noivo. A prisão de João (4:12) bem pode ter sido um fator para fazê-lo lembrar da sua própria mor­ te. As parábolas do remendo e do vinho novo aplicam-se não apenas ao jejum, mas a todo o relacionamento entre Jesus e o judaísmo. Ele não tinha vindo para destruir, mas para cumprir (5:17), e isto significava respeito pelo que havia antes dele, mas também liberdade para a obra criativa que lhe cabia fazer. O que ele viera fazer era dinâmico e revolucionário, e não podia ser contido em velhas fórmu­ las como jejum e sabatismo. Além do mais, Jesus se recusou a derramar o vinho novo da vida que ele oferecia, nos odres velhos da religião estabelecida, como é ilustrado pelo jejum que os discípulos de João e os fariseus tentaram impor-lhe. Derramar vinho no­ vo em odres velhos e ressequidos, seria perder a ambos, pois à medida que fer­ mentasse, o vinho estouraria os velhos odres. Embora fossem conhecidas garra­ fas de vidro (cf. 26:7), os recipientes comumente usados eram feitos de peles de animais. QJnteresse de Jesus era de que encop^ á s„semos novlTvïga~ÿms com os^ o^ so b ^ governo de Deus. Para essa espéaTdè~vidã^empre é necessário aue haia Tib^dade para dese^nvolver novas fórmu­ las, veicúlos ou expressões"de adOTa^ã ^ co ^ ^ ã õ ~ e seg^içq. Jesus não rejeitava af^^rm ulãs coíSoTãis, pelò contrário, deu a entender que elas eram necessá­ rias, da mesma forma como os odres eram necessários para o vinho, para que ele não se derramasse pelo chão. A idéia é que os odres só servem para consen^ar o vinho, e nao sãò um fim por sFlmesmos. 23 H. L. Strack e Paul BUlerbeck, Kommentar zum Neuem Testament aus Talmud und Midrash (M ün­ chen: Beck, 1922), I, 506.


Eles podem ser mudados, se necessário. A i g r a ^ precisa d ejó rm ^ mas iam-, bem de liberdade para desenvolver novas fórmulas. 10. Uma Mulher Curada e uma Menina Ressuscitada (9:18-26) 18 E nquanto aind a lh e s d izia e s s a s co isa s, eis que chegou um ch efe da sin a g o g a e o a d o­ rou, dizendo: M inha filh a a c a b a de fa lecer; m as v em , im põe-lhe a tua m ã o , e e la v iv erá . 19 L evantou-se, pois, J esu s, e o foi seguindo, ele e o s seu s d iscíp u los. 20 E e is que certa m ulher, que h a v ia doze an os p a d ecia de u m a h em orragia, chegou por d etrá s d ele e tocou-lhe a orla do m an to; 21 porque dizia consigo; Se eu tão-som en te tocar-lhe o m a n ­ to, fica r ei s ã . 22 M as J e su s, voltando-se e vendo-a, d isse: T em ânim o, filh a , a tua fé to salvou. E d esde aq u ela hora a m u lh er ficou sã. 23 Quando J e su s chegou à c a sa daquele ch efe, e viu os tocad ores de flau ta, e a m ultidão em alvoroço, 24 d is s e : R etir a i-v o s; porque a m enina não e stá m o rta , m a s dor­ m e. E riam -se d ele. 25 T endo-se feito sa ir o povo, entrou J esu s, tom ou a m en in a p ela m ão, e e la se levan tou . 26 E esp alh ou -se a noticia disso por toda aq u ela terra .

A narrativa de duas curas é unificada; a da mulher que por doze anos padecia de uma hemorragia, encaixada na da ressurreição da filha de doze anos (Mar. 5:42) de um chefe. Uma narrativa mais ampla está em Marcos. Em dois pontos, pelo menos, parece que uma fonte estra­ nha a Marcos foi compartilhada por M a­ teus e Lucas. Ambos falam de “um che­ fe” , enquanto Marcos fala de “um dos chefes da sinagoga” (5:22). Mais notável é a sua exata concordância verbal, ao dizer que a mulher chegou por detrás dele e tocou-lhe a orla do manto, en­ quanto Marcos diz que ela “veio por detrás, entre a multidão, e tocou-lhe o manto” (5:27). Uma hemorragia tornava a mulher “imunda” . A isto deve atribuir-se o fato de ela aproximar-se de Jesus secretamen­ te, tendo a esperança de não ser desco­ berta, pois estava violando uma lei judai­ ca. A orla do manto tinha um a borla, costurada, pelos judeus, como memória dos mandamentos de Deus (Núm. 15:37-

39). Mencionar isto servia aos interesses de Mateus, pois mostrava que Jesus não veio para destruir, mas para cumprir a Lei (5:17); mas, visto que a palavra está também em Lucas, pertence à sua fonte, e não ao seu trabalho editorial. A fé da mulher é o ponto culminante desta história, declarando todos os três sinópticos o clímax com palavras idênti­ cas: “Filha, a tua fé te salvou.” A sua fé simples chegava às raias da superstição, mas Jesus viu o elemento de confiança que ela continha. A fé clama por ilumi­ nação e direção, mas basicamente é con­ fiança, e não competência teológica. A cultura não leva necessariamente à fé, mas a confiança sempre pode ser instruí­ da. Te salvou, significa literalmente “te tornou inteira” e embora se referisse à cura física, expressa o uso de uma pala­ vra grega traduzida freqüentemente por “salvou” . No Novo Testamento, a salva­ ção se relaciona com toda a personalida­ de; inclusive o corpo. O termo usado por Mateus, chefe, pode designar vários tipos de oficiais, inclusive o mencionado por Marcos, ou um dos chefes da comunidade. A história de Marcos deixa algumas perguntas sem resposta, como a de se a filha estava realmente morta, ou apenas pensava-se que o estivesse (5:23, 35, 39), embora a primeira hipótese pareça ser a intenção de Marcos. Mateus (e Lucas) falam ex­ plicitamente que ela já tinha morrido. O chefe relatou a Jesus que a sua filha acabara de falecer e expressou a fé que Jesus poderia fazê-la viver. Quando Jesus disse: A menina não está morta, mas dorme, não quis dizer que a morte não é nada mais do que um sono. Ê mais do que um sono! Ele quis dizer que uma pessoa pode ser despertada da morte da mesma forma como pode acordar, quan­ do está dormindo (cf. Joâo 11:11-15). A história enfatiza a fé do pai e a autorida­ de de Jesus sobre a morte. Tocadores de flauta, em um funeral, eram normais na vida judaica. Para o sepultamento de sua esposa, até um ho­ 169


mem pobre empregaria pelo menos dois tocadores de flauta e uma mulher carpi­ deira. Carpideiras profissionais eram coisa característica nos costumes judai­ cos, e eram usados nos funerais. Isto ex­ plica a facilidade com que eles pararam o alvoroço e riram-se dele. Parece que essas carpideiras alugadas não estavam na casa, mas no terraço, fora. 11. Dois Cegos Recebem a Vista (9:2731) 27 P artindo J esu s d a li, segu iram -n o dois cegos, que cla m a v a m , dizendo: T em c o m ­ p aixão de nós. F ilh o de D a v i. 28 E , tendo e lè entrado é m c a sa , os ceg o s se a p roxim aram dele; e J esu s perguntou-lhes: Cre d e s que eu posso f a ^ r isto? R esponderam -lhé~ eTêsl Sim , Senhor. 29 É n tão lh es tocou os olhos, dizendo: Seja-vos feito segundo a v o ssa fé. 30 E o s olhos se lh es ab riram . J esu s ord e­ nou-lhes term in an tem en te, dizendo: V ede que ningu ém o saib a. 31 E le s, porém , s a í­ ram , e d ivu lgaram a su a fa m a por toda a q u e la te r i^ . _ .......... , a ’" -

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Esta passagem encontra-se apènas em / Mateus, mas é surpreendentemente seU-melhante a 20:29-34 (paralelos em M ar­ cos 10:46-52 e Lucas 18:35-43). O signifi­ cativo título Filho de Davi aparece aqui, mas sem nenhuma ênfase aparente. O termo reaparece em Mateus (cf. 1:1; 12:23; 15:22; 21:9, 15), e apóia a ênfase que Mateus dá a Jesus como Messias. O que é ressaltado na história é a fé dos dois cegos:. Credes? e segundo a vossa fé. O fato de Mateus mencionar, mas não enfatizar o título Filho de Davi pode ser entendido em termos da severa ordem de Jesus para que a cura não fosse publica­ da. É importante, para Mateus, apresen­ tar Jesus como “Filho de Davi, filho de Abraão” (cf. 1:1), mas ele também mos­ tra que Jesus era o Senhor de Davi (22:41-45). Os termos Messias e Filho de Davi representavam direitos autênticos de Jesus, mas ambos eram de limitado valor para ele devido às idéias populares de um Messias ou Filho de Davi político. Ordenou-lhes terminantemente (enebrimêthê) expressa fortes sentimentos da parte de Jesus. A sua profunda emoção 170

pode ser compreendida em vista do fato de que ele tinha compaixão para curar, mas não queria ser considerado como um simples milagreiro, tendo a segui-lo uma turba de pessoas sequiosas por milagres. Ele aceitou a aclamação como Filho de Davi, porém rejeitou o papel de um Messias político. 12. Os Fariseus Protestam Contra uma Cura (9:32-34) 32 E nquanto e s s e s se r etira v a m , e is que lhe trou xeram u m h o m em m udo e en d em o ­ ninhado. 88 E , exp u lso o dem ônio, falou o m udo, e a s m u ltid ões se a d m ira v a m , d izen ­ do: N u n ca ta l se viu e m Isra el. 34 Os fa r i­ seu s, p orém , d iziam : É p elo p rín cip e dos d e ­ m ônios que e le ex p u lsa o s dem ônios.

Mudo (kõphos) poderia ser traduzido “surdo” , o que seria fiel à palavra grega, e preferido em relação a todas as pessoas “silenciosas” . A história se contrapõe em flagrante contraste à admiração das mul­ tidões e à atitude cínica dos fariseus, que não podiam negar o milagre, mas o atribuíram ao príncipe dos demônios Importantes manuscritos em grego, la tim e siríaco omitem o versículo 34, que possivelmente uma adição de Lucas 11 15. De qualquer forma, idêntica acusa ção se faz acerca de 12:24, onde ela será discutida.

IV. A Compaixão de Jesus e Co­ missão dos Doze (9:35 — 11:1) O segundo grande discurso de Mateus, a comissão dos doze, forma grande parte desta seção, mas é melhor estudado em confronto com 9:35-38, uma passagem tocante, a respeito das necessidades do povo e da compaixão de Jesus. A inclusão de 11:1 nesta unidade deve-se ao fato de que esse versículo explicitamente se re­ monta à instrução dos doze discípulos, e é uma fórmula de conclusão das princi­ pais partes do Evangelho (cf. 7:28; 13: 53; 19:1; 26:1). Os materiais do capítulo 10 são tirados de Marcos e de Q, havendo ainda outros materiais peculiares a Mateus. Consentâ-


neo com este arranjo temático dos mate­ riais, Mateus não faz nenhuma tentativa para conservar todas as unidades em seu contexto, ou seqüência, original. O leitor que não perceber o princípio de trabalho de Mateus ficará confuso com a abrupta apresentação dos doze, a acusação de Belzebu, e outros assuntos; mas o arran­ jo de materiais feito por Mateus é bem adequado para alcançar o seu objetivo de dar, à igreja da sua época, incentivo, encorajamento, advertências e instruções para a continuação do seu ministério em palavras e em obras. 1. Á Compaixão de Jesus Pelas Multi­ dões (9:35-38) 35 E percorria J e su s tod as a s cid a d es e ald eias, ensinando n a s su a s sin a g o g a s, p r e ­ gando o evan gelh o do reino, e curando toda sorte de doenças e en ferm id a d es. 36 Vendo ele a s m ultid ões, com p ad eceu -se d ela s, p or­ que an d avam d esgarrad a s e erra n tes, com o ovelh as que não tém p astor. 37 E n tão d isse a seu s discípulos : A a verd ad e, a se a r a é g ra n ­ de, m a s os trab alh adores são pou cos. 38 R o ­ gai, pois, ao Senhor da sea ra que m ande trabalhadores p ara a su a sea ra .

O versículo 35 é uma duplicata apro­ ximada de 4:23, resumindo o tríplice ministério de Jesus de ensinar, pregar e curar. Mateus apanha Marcos 6:6b, fá-lo seguir de uma repetição do seu próprio 4:23, em seguida acrescenta um paralelo bem aproximado de Marcos 6:34, e en­ tão, aparentemente, aproveita-se de Q (cf. Luc. 10:2). Esta mistura de materiais continua através do capítulo 10. Jesus viu as multidões como ovelhas que não têm pastor (cf. I Reis 22:17), desgarradas e errantes. Rebanho é uma figura bíblica para o povo de Deus. A palavra desgarradas (eskulmenoi) origi­ nalmente significa espoliadas, mutila­ das, mas passou a significar molestadas (cf. Mar. 5:35; Luc. 7:6; 8:49). Errantes (errimmenoi) pinta o povo como sendo como ovelhas jogadas ao chão e jazendo à míngua de socorro. A seara, figura bíbli­ ca de julgamento, introduz uma nota escatológica, apontando para o juízo últi­ mo, embora a ênfase esteja no recolhi­

mento do grão que está para perder-se, por falta de colheita. Jesus conclama à oração ao Senhor da seara para que mande trabalhadores para a sua seara. “Mande” (ekbalé) literalmente significa expulsar, mas passou a significar man­ dar ou enviar (cf. 12:26). Por que é que os homens precisam rogar ao Senhor para enviar trabalhadores para a sua seara?' Provavelmente a oração não é necessária devido à má vontade de Deus em enviar, mas por causa da indisposição do homem em ir. Quando uma pessoa ora pela seara, de certa forma ela se torna uma ceifeira, e pode estar entre os que forem enviados. A característica mais notável deste pa­ rágrafo facilmente passa despercebida. A Palestina estava apinhada de líderes reli­ giosos bem na época em que Jesus viu as multidões como ovelhas sem pastor, des­ garradas e errantes, e como uma seara negligenciada. Mediante os testes exte­ riores, a religião estava robusta, com um templo apinhado, sinagogas em cada al­ deia, seis mil fariseus, vinte mil sacerdo­ tes de casta inferior, um pequeno, mas poderoso grupo de sacerdotes saduceus, um grupo considerável de essênios, e outros grupos sectários. Mas com milha­ res de sacerdotes e leigos que faziam da religião a sua ocupação principal, o povo estava sendo negligenciado, ou o que era ainda pior, lançado por terra e à míngua de socorro. Embora “pastores” e “ceifeiros” fos­ sem necessários, a verdadeira necessida­ de era mais qualitativa. Ter meramente mais líderes religiosos do tipo pelo qual as multidões já estavam sendo espoliadas não resolveria nada. A necessidade era de pessoas que não se preocupassem tanto com o sábado, jejuns, rituais de purificação e coisas semelhantes, mas com o povo. 2. A Missão dos Doze (10:1-4) 1 E , cham ando a si os se u s doze discípulos, deu-lhes poder sobre os esp íritos im undos, para os ex p u lsa rem , e p a ra cu rarem toda

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Mateus não inclui o dado revelado por Marcos, de que Jesus enviou os doze “dois a dois” (6:7), mas este arranjo é refletido no fato de que ele relaciona os doze em pares, mudando a ordem de Marcos (3:16-19), de forma a colocar os irmãos juntos. O fato de colocar os discí­ pulos em pares pode expressar o princí­ Os doze discípulos são introduzidos na narrativa como se o leitor já tivesse co­ pio de que duas testemunhas eram re­ queridas para estabelecer um assunto nhecimento deles (cf. 11:1; 20:17; 26:14, 20, 47). Que havia discípulos conhecidos (Deut. 19:15). Só em 10:2 Mateus usa o termo apóstolos; em todas as outras pas­ como os doze, é além de qualquer dúvida, razoável. Paulo é o primeiro escritor a sagens, ele se refere a eles como discípu­ mencionar os doze (I Cor. 15:5), e ele se los ou simplesmente os doze. A palavra referiu aos que eram apóstolos antes dele grega traduzida como “apóstolo” signifi­ ca enviado, e isto se adapta ao contexto (Gál. 1:17). Paulo havia sido comparado e m q u e M a te u s usa essa palavra pela desfavoravelmente com esses apóstolos, por algumas pessoas, e foi forçado a única vez. Por detrás da palavra do Novo defender a sua autoridade como apósto­ Testamento, está o veterotestamentário lo. Se houvesse alguma dúvida quanto à shãliah, significando embaixador ou pes­ soa comissionada. A outorga de autori­ existência dos doze, ele não teria ocasião, ou razão, para defender o seu apostola­ dade é a mais próxima reflexão desta idéia no parágrafo anterior. O termo do. Que Jesus deu algum valor simbólico apóstolo é estendido no Novo Testamento ao número doze é claro, como se vê na para incluir Paulo e Barnabé (Gál. 1:1; sua palavra acerca de eles se sentarem At. 14:14); Matias (At. 1:26); os irmãos em “doze tronos, para julgar as doze de Jesus (I Cor. 9:5; Gál. 1:19); e AndrÔtribos de Israel” (19:28). Os doze simbo­ nico e Júnias (Rom. 16:7). Embora a existência dos doze seja lizavam dramaticamente o verdadeiro Is­ rael (doze tribos) de Deus (cf. 3:9). Apa­ clara, e alguns deles sejam bem conheci­ rentemente, Mateus não viu os seguido­ dos, a maioria aparece apenas de nome no Novo Testamento. Mesmo o nome de res de Cristo tanto como um novo Israel, quanto como um Israel renovado, man­ alguns não é claro, como pode ser visto, se compararmos esta lista com as outras tendo uma continuidade com Abraão, três (Mar. 3:16-19; Luc. 6:14-16; At. Isaque e Jacó (8:11), bem como abrindo 1:13). Nomes duplos, ou até alguma flu­ o caminho para uma comunidade que tuação nos doze, é possível, mas não há por fim incluiria os gentios (28:19), assim explicações certas. O fato de a maioria como os pecadores em Israel (9:13). O ponto principal deste parágrafo é a ser desconhecida pode ser lançado na autoridade transmitida aos doze discípu­ conta de eles terem falhado em avança­ los. A autoridade de Jesus, verificada em rem na missão mais ampla às nações (cf. Stagg, The Book of Acts, Introdução, et palavras e em obras, aparentemente não passim). Em cada uma das quatro listas, se estendeu aos doze, através de quem há três grupos de quatro, estando-Pedro Jesus continuou e alargou a sua obra. O sempre à frente do primeiro grupo, e trabalho dos discípulos seria o do seu sendo Judas o último do terceiro grupo. Mestre: curar (v. 1) e pregar (10:7). Exceto essas duas posições fixas, há va­ Ensinar não é explícito aqui, mas pode ser subentendido, pelo fato de esses discí­ riações dentro de cada um dos três gru­ pulos (mathêtês significa aprendiz) tam ­ pos, tanto na ordem como nos nomes em si. bém terem ensinado (cf. 28:20).

sorte de d oen ças e en ferm id a d es. 2 Ora, os iTomes dos doze ap óstolos são e s t e s : p rim ei­ ro, Sim ão, cham ado P ed ro, e A ndré, seu irm ão; T iago, filho de Zebedeu, e João, seu ir m ã o ; 3 F ilip e e B a rto lo m eu ; T om é e M a­ teus, o publicano; T iago, filho de A lfeu, e Tadeu; 4 S im ão C ananeu, e J u d a s Isc a r io ­ tes, aq u ele que o traiu.

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Pedro significa-rocha. o equivalente grego do aramaico K ^ h a s (Cefas). Pe­ dro é o apelido de Simão (grego) ou Simeão (hebraico). PrmeirQ, je m dúvi­ da, significa, o mais importante. apenas o primeiro da lista. A liderança de Pedro entre os doze é geralmente reconhecida no Novo Testamento. André é nome grego gue significa viril. Ele ê mais proeminente no Evangelho de João (1:40-42). Pode ser surpreendente o fato de Tiago ser mencionado antes de João, mas ele deve ter sido o mais agressir TO dos dois, sendo, como que se sabe. o _ p^rimejrp_ dosjdoze a ser martirizado (At. 12:2). Filho de Ãífea faz a distinção entre ele e outros com o mesmo nome. Filipe é um norne ^ e g o g u e significa “gmante dé cavalo^\ Bartolomeu é ^miti(^.~e significa filho (bSTIie Tolmai ou Toíomai. Tomé significii^êmeQ (João 11:16), possívelmenígJoim a helgnizada de uma pa­ lavra aramaica. Para a discussão de Mateus e Tiago, filho de Alfeu, veja a Introdução. Tadeu é encontrado como “ Lebeu” em alguns manuscritos, e é desconhecidcL_.exceta por nonã^ ^ a n a n e u pode ser a forma aramaica de zelote, e ele anteriormente pode ter pertencido à seita dos zelotes, hipemacionalistas, que procuravam libertar o seu pais do dommio romano (cf. Luc? 6:l?r^tr~ ÍT Í3 )rT scario tes é de derivação incerta, mas possivelmente sig­ nifica “homem de Queriote” , uma aldeia da Judéia (Dalman, Words of Jesus, p. 51 e s.). Possivelments_=todQs^os,,doze, menosJ.u.das,^am daJoaUléia^ 3. Os Doze Comissionados (10:5-15) 5 A e ste s doze en viou J esu s, e ordenoulh es, dizendo: N ão ireis aos gen tios, n em en trareis em cid ad e de sa m a rita n o s; 6 m a s ide an tes à s o velh as p erd id as d a c a sa de Israel; 7 e indo, p regai, dizendo: É chegado o reino dos céu s. 8 C urai os en ferm os, r e s ­ su scitai os m ortos, lim p a i os lep rosos, e x ­ pulsai o s dem ônios; de g r a ç a re c e b e ste s, de graça dai. 9 N ão vo s prov ereis de ouro, n em de prata, n em de cobre, em v o sso s c in to s; 10 nem de alforje para o cam in h o, n em de duas túnicas, n em de a lp a rca s, n em de bordão;

porque digno é o trabalhador do seu a lim e n ­ to. 11 E m qualquer cid ad e ou aldeia, e m que en trard es, procurai sa b er quem n ela é d ig ­ no, e h osp ed ai-vos a í a té que v o s retireis. 12 E , ao en trard es na c a sa , sa u d a i-a; 13 se a c a sa for digna, d e sç a sobre e la a v o ssa paz; m a s, se não for d ign a, to m e p a ra v ó s a v o ssa paz. 14 E , se n in gu ém v o s receb er, n em ouvir a s v o ssa s p a la v ra s, saindo d aq u e­ la c a sa ou d aq u ela cid a d e, sa cu d i o pó dos v ossos p és. 15 E m v erd ad e vos digo que, no dia do juizo, h a v erá m en o s rigor p ara a terra d e Sodom a e G om orra do que p ara aq u ela cid ad e.

A restrição de que os doze deveriam ir não aos gentios nem entrar em cidade de samaritanos é um dos mais difíceis pro­ blemas em Mateus, pois isto parece con­ tradizer o comissionamento final para “fazer discípulos de todas as nações” (28:19). O fato de Mateus ter escrito para uma igreja então já fortemente gentílica, torna esse ponto de vista, gue pelo menos na superfície parece ser nacionalista ou exclusivista, ainda mais estranho. A su­ gestão de que a opinião do próprio Ma­ teus é a universalista, que prevalece, e que a opinião nacionalista pertence me­ ramente a uma das suas fontes, não satis­ faz. Mateus não apenas não omitiu essa aparente contradição, mas dá-lhe o que parece ser uma proeminência deliberada (cf. 15:24). É melhor tentar entender ambas as comissões: uma restrita a Israel e a outra abrangente, incluindo as na­ ções ambas pertencentes às intenções de Mateus. Provavelmente, para Mateus não havia problema. Hummel (p. 136-39) sugere que M a­ teus inclui 10:5 e s. e 15:24 por interesses cristológicos, e não missionários, para mostrar que Jesus era o “Filho de Davi” , o Messias de Israel, e que apenas o Cristo ressuscitado, depois de ter sido rejeitado por Israel, comissiona os seus discípulos para irem a todas as nações. Provavelmente, o problema é melhor entendido nos termos da revelação de Paulo: “primeiro do judeu, e também do grego” (Rom. 1:16). Na verdade, Jesus se ofereceu primeiramente a Israel. A alian­ ça com Abraão tinha em vista as nações. 173


mas também levava em conta que Deus catológicos de que o reino dos céus estava _ iria alcançar as nações através de Israel irrdmpSI3Õ*^Ffe’oTnün3õ. ^ (Gên. 12:2 e s.; 18:18). Isaías é explícito "*T^~^ãç5^TO^SVflm‘éhT:e'ê uma tradu­ no esperar a conversão das nações, mas ção correta de dõrean, algumas vezes ele viu a conversão de Israel acontecendo vertido como “livremente” . Possivelmen­ antes (2:2-4; 49:6 e s.). O que Jesus fez. te, a referência imediata é à autõridadE po^^xjB^f^ curar. ples-'nãó"ligvtgitíi ao oferecer-se prim eiran^me^’a T s i^ l, e depois às nações, e coererítè' com ás p ^ o nada por a.quete poder, e. não de^ '’^ am ~cio b r a F ^ r ele. Provavelmente, a 'êxpwfativas d o ^ iB ió Testamento. "^SêTHüs tivesse' ido primeiramente aos referência é ao*ministério total, em palagenSõTou samaritanos, os judeus teiianí v f S ^ em^ obras, ^ õ~"qüãT' e lé s n lõ 'ti^ó”mais desculpas para reieitá-ío-Jesus HeviiTim receber jiin h u m pagamento. não apenas se dirigiu^ diretamente aos K ra l^ fo rç a r este rèquSito, elSTõrãm ’ ^ d e iís, csmo,tambéin atacou osjDrpble- ’ instruídos a não se proverem de dinheiro em seus cintos. “Procurai” (ktêsSstlie) é más de discriminação ou jxclusivismOj a tradução exàta. Cintos é tradução de lo^qu^e õs encontrou, jíentro dq judaísmò. Áo rejeitar a distinção superficial zõnas, aqui referindo-se às bolsas carre­ enfrêlfariseus e “pecadores” , Jesus abriu gadas em cintos. Um alforge (pSran) era o caminho para a rejeição' final de qual­ usado para carregar comida ou outros quer distinção verdadeira entre judeus e bens. A túnica (chitõn) era um blusão vestido sobre a camisa (sindõn) e sob a gregos. Lucas, em Atos, traça o curso do evan­ capa (himation). Nem de alparcas dá a gelho de judeu a samaritano, a gentios entender que eles deveriam ir descalços (mas veja Marcos 6:9). Bordão (rabdon) tementes a Deus, e finalmente a pagãos, como o carcereiro de Filipos (At. 16:27- refere-se a um porrete, possivelmente para defesa. O fato de que os discípula 34). João (cap. 4) descreve uma ministração de Jesus aos samaritanos, e Mateus 4eyiam viajar desta forma aliviados de também mostra os primórdios do que pesc^ pode ter sido pãrã~ permitir-lhes mais tarde se tornou uma missão plena ándír mais rápido^m as p r o v ^ d l ^ ^ éraTãntõ para sàlyl^ardá-los do desejo aos gentios (8:5-13; 15:21-28). De qualquer forma, não há absoluta- dè coisaj; materiais, ou confiança nelas. ' ^ a Fconfiãnçaem mente nenhum f ã v õ n ^ S õ ja r a com ^ ___ _ como para ençprajar Tael^ pois a missão é de misericórdia, e ~Peus^ daí, de juízo. Aqui Israel é considerado^^*^Éste não é um conjunto de regras que WTÍ, pomJoecesSítado de^misericòrdia. e i \ deva ser universalmente ordenado. Lucas não ji^ jjo y o Juslp.,. merecendo-jecom- j apresenta as mesmas restidções B a ^ pensã^ — são as ovelhas perdidas da casa ; em 10:4, mas mostra que m ais tarde j[ê~Erael. Antes que um evangelho de | J ^ sjeyerteu as ordens p2:35-38), pro~grãça“e~*misencordia seja oferecido aos_ ! vãrolmente dando a princípio uma lição pagãos, ele é primeiramente oferecido aos } de confiança, e jnais tarde umâ licâcude jü3euir^quF“slÕ igualmente pecadores, r3i3ícaçãõ de fôdos qs recursos ao traba-, ■Sêm^qüSa^SpéÍM^ ScKlatter, p. ; lRõ dò"feffrê. Paulo se.jeçusou a.aceita^^r^ T 54e s.). s 'pagamento pefo^g u trabalho, mas_de- . Outra vez aqui é demonstrado que o p fendèu°o" seu direito a isso (I Cor. 9:4, ministériq dos^disgipulos deve ser _q_jío j IS-íST* Na sua"maior parte, as igrejas seu Mèstre. Com a sua autoridade (10:1), têm verificado que„um pastor pago tem eles devem realizar a sua obra de preear 'mais possijjilidade de se tom ar melhor e curar. Os milagres de cura, ressurrei- “prem rado para a obra e de se dedicar çã^õ^lnortõsTpurificação de leprosos e ~n^ r^ é n a m e n te „ a _ d a ^ O preco deste expulsão de demônios, seriam sinais es- sistema, porém, é o perigo do mercena174


i rismo. isto é. de o homem de Deus ; “âSapteîCâsluas mën ^ e n s ~ ^ ^ ^ m a a agradar àqueles que. o sustentam, ou^ aqu5i^ que q fazeiri e^igir que ele o faça^ I 'Xis discipulos nâo estavam servindo a _ I i g ï ^ s e s ta b e le c i^ empenhados / em trabalhó missionário novo. A integra^ ção najddajdji cqmunidade e á liçâo de dar e receber foram algumas das vanta-, gens ^ jp l a n o de ação que Jesus lhes_

dos acerca do possível ^rompimento dos lâços familiares e assegurados quanío ás recompensas que esperam qs fiéis. l)(q ^ lh as no Meio de L o b ^ 10:16-25)

16 E is que v o s en vio com o o v elh a s ao m eio d e lobos; portanto, siede pru d en tes co'm o a s serp en tes e sim p le s com o a s p o m ­ b as. 17 A cau telai-vos d os h om en s; porque e le v o s en treg a rã o a o s sin éd rios, e v o s a ç o i­ tarão n a s su a s sin a g o g a s; 18 e por m inha ca u sa se r e is lev a d o s à p resen ça dos g o v er ­ ' ^ Os discípulos deviam aceitar hospitali-_ nadores e d os r e is, p a ra lh e s serv ir de te s te ­ m unho, a e le s e a o s g en tio s. 19 M as, quando dade. p o r q ^ iJimo é o t r a b a lh a d o r ^ v o s en treg a rem , n ão cu id eis d e com õ, ou o~ seu alimento. Deviam procurar uma casa que h a v eis ae falair; porque n aq u ela hora "âg ia, alguém aberto para o evangelho, e v os se r á dado o qüe h a v e is de dizer. 20 P o r­ ficar ali até saírem daquela comunidade. que não so is v âs que fa la is, m a s o E sp írito d e v o sso P a i é qu e fa la e m v ó s. 21 U m irm ão Não deviam mudax.de.lugar. procurando en treg a rá à m o rte a seu irm ã o , e u m p a i a melhores acomqdac5es_ou sustento. Conseu filh o; e fUhos se lev a n ta rã o contra os siMfava-se sua, paz como algo m a i s ^ p ais e o s m ata rã o . E se r e is odiados de que uma saudação: algo nmis substan­ todos por c a u sa do m éu n o m e, ínãsTljiiHelé cial, palavra revestida de poder, ^ J b ^ e p er se v e r a r a té o fim , e ss e sé r à sa lv o . ZS põãiá" desêer sobre uH a ~casa oiii/^QuandõTporerii, y o s p erseg u irem nn m a c i­ dade, fu gi pa r a outra; porque e m verd ad e tom u para os discípulos. Sacudir o pó v o s digo que nã« a ca b a r eis de percorrer a s 3 o í pés era um costume judaico, quando cid ad es de Isr a e l a n tes que ven h a o F ilh o do um judeu deixava solo gentio, considera­ hom em . do por aquele como “impuro” . Os iudeus. 24 N ão é o d iscípulo m a is do que_p„seu m estr e, n e m o s è i^ õ m a is do _que o j e í que rejeitassem o evangelho, desta forsenhor. 25 B a sta a o discípiílo se r com o seii m a7sèn5nlao'^*unpuros” quanto, aquem estre, e ao serv o com o séii senHorT.Se íês (^e eles assim classificavam. Sodoma ch a m a ra m B e lz ^ u ao dono da c a sa , quanto e ^ õ m o rra eram cidades notòriar'pe]5 ^ i j í ã õ s se u s d o m e sá c o s? ' " " —

sTO iniqüidade, mas eíãs^ iríam receber Juízo mais leve do que aqueles que rejei­ tassem o evangelho. Quanto maior a oportunidade. ou.J3rivilegÍQrmaior a resP õ 5 s^^^

Mateus apresentou os doze contra um pano de fundo que pinta o povo como ovelhas sem pastor, que haviam sido lançadas por terra e deixadas à míngua de socorro (9:36). Os próprios discípulos 4. Pjerscguiçao^ Vindoura; Senhor e são enviados como ovelhas_ao.. meio dfe Discípulo (10:16-42) Tobos?~PrOTã^ que os. lobos são as auto-^ O restante do capítulo 10 é endereçado ridades civis e religiosas. Sinédrios (sunedria) eram tribunais locais judaicos, aos discípulos, pretendendo colocâ-los compostos de 23 homens. Na Palestina, em uma disposição mental correta para a eles eram distintos das sinagogas, mas na tarefa que deveriam realizar. Eles são avisados das perseguições que os espeDiáspora, geralmente eles se relaciona­ vam intimamente com as sinagogas ram, lembrados que respondem, em últi­ (Sanhedrim 1:6). Não havia distinção ma instância, a Deus, e a ninguém mais. ivisados das sérias implicações de con­ entre Igreja e Estado, no governo local; por isso, os julgamentos podiam ter lugar fessar Cristo ou não sob coação, advertinas sinagogas, onde os condenados po­ 24 Suzanne de Dietrich, The Goipel Accordlns to M at­ diam ser açoitados. Açoitar era dar, em thew (Richmond: John Knox Press, 1961), p. 62 e s. uma pessoa, 39 chibatadas (a lei judaica 175


permitia 40, mas eles paravam em 39, para que não ultrapassassem o permitido por lei, devido a um erro de contagem.) O flapelamento romano era muito mais severo do que o açoitamento judaico (II Cor. 11:24 e s.). Governadores provavel­ mente se refere aos lyocuradores roma­ nos da Judéia, como Pilatos. Reis podia referir-se aos príncipes herodianos, como Antipas ou Agripa I. A referência aos gentios pode estar prevendo uma missão ]ue iria além de Israel. Os discípulos são avisados claramente j da rejeição, perseguição e possível martíI rio que provavelmente encontrariam, ' mas de forma alguma são encorajados a procurar o martírio. Pelo contrário, são" iíü sto íd ^ l)ara evitar uma oposição desnecessária, que excitasse os ânimos, e, conforme a ocasião,- para se afastarem da, hostilidade. Eles devem ter cuidado com os homens, e devem ser prudentes como as serpentes e simples como as pombas. Prudentes (phronimos) refere-se à ser cauteloso, e simples (akeraios) à sinceri­ dade, isto é, puros ou sem mistura. Este era provavelmente um provérbio. Os dis­ cípulos devem usar o bom senso, que evita conflitos desnecessários, e manter integridade de motivos e métodos, em seu trabalho missionário. Em certas oca­ siões será melhor — para todas as pes­ soas envolvidas, eles e seus inimigos — fugir de uma cidade para a seguinte. Isto èstá de acòrdo com a Advertência para evitar controvérsia desnecessária e inútil (7:6) e com o próprio costume de Jesus, de fugir dos inimigos até oue ele pudesse realizar a sua tarefa líá^ica (4:12; Luc. 4:29 e s.). A despeito de todas as precauções, haveria prisões e julgamentos. A responsabilidade do discípulo seria realizar o seu trabalho com diligêncTa, sabedoriãTe integridade, mas não ficar ansioso ante­ cipadamente acerca de como iria se de"fender, se levado a tribunal. O que deve­ ria dizer lhe seria dado naquela hora. Esta não é uma promessa de sermões pré-fabricados para cultos na igreja, ou 176

um texto de prova contra um pregador culto. Isto se relaciona com julgamentos em tribunais, e não com a pregação em púlpitos. O discípulo saberá o que dizer quando chegar a hora. O Espírito de vosso Pai aqui significa o Espírito Santo, nome este que nunca a p re c e em Mateus. O Espirito é o próprio Deus próxi­ mo ao homem. 0 teste mais severo para o discípulo pode acontecer dentro de sua família, onde os mais fortes lã^_da,carne~3lQ cortados, e a pessoa pode ser odiada e até entregue pelos seus próprios parentes às autoridades, para ser julgada. Isto se refere particularmente ao elevado preço pago por muitos judeus seguidores de Cristo. O próprio Jesus perdeu a sua família por algum tempo, e recuperou-a apenas depois de sua morte (| 12:46-50). R ^ w g ^ ra r (hupomene) é um termo neo' testamentário básico, denotando firmeza ou constância. Até o fim (eis telos) pode referir-se ao fim do século, mas provavel; mente significa perseverança até em face do martírio (cf. Apoc. 2:10). Istojiâojignifica que apenas os mártires,^erão_ salY ^ m ^ T T e T iã R g o ra lü g o rta rá até q ■martíno. E ã cõiístâriciã que expressa a I s S v ã ç ^ ^ a pessoa, e não o suportar que *kanha a salvação. ‘ versículo 23 é muito difícil. A tradu­ ção mais simples parece ser que Jesus esperava que o Filho do Homem apare­ cesse antes que os doze tivessem viajado por todas as cidades de Israel. Se a refe­ rência é à Parousia, ^ vinda do Füho do Homem nas nuvens, no fim dos séculos, é estranho que Mateus o registrasse uma geração mais tarde. A interpretação mais difícil e mais provável é presumir que, ao falar de Filho do Homem, Jesus estava se referindo a si próprio, e que, de alguma forma, ele viria na época dos discipulos. Num sentido real, o Filho do Homem veio e vem em juízo, em cada situação de crise, quando o homem é compelido a escolher o seu destino, seja no Gólgota, na destruição de Jerusalém ou em outra época.


Pode-se observar que a prometida vin­ da do Filho do Homem aqui está relacio­ nada com a perseguição dos discípulos. O papel do Filho do Homem era julgar e reinar. Possivelmente, o assunto é que, os discípulos ao serem expulsos de cidade em cidade, julgados e rejeitados pelos seus conterrâneos, o Filho do Homem estaria ali, julgando os que condenassem os seus. A vitória pertence ao Filho do Homem e seus discípulos perseguidos, e não àqueles que os perseguem de cidade em cidade (cf. Schlatter, pp. 161 e s.). O discípulo não podia esperar recep­ ção melhor do que a dispensada ao seu mestre. Jesus procurou seguidores, mas nunca permitiu que eles se esquecessem o quanto custaria segui-lo. Belzebu é apre­ sentado aqui como se o leitor já tivesse conhecimento da acusação feita contra Jesus (veja a discussão de 12:24).

visto pela perspectiva do dualismo grego, que o considera como uma alma aprisio­ nada em um corpo. Deus fez o homem" em sua existência corporal, e a salvação é completada apenas por ocasião da res­ surreição do corpo. Este parágrafo sinP” plesmente se refere à distinção entre a vida física, que pode ser tirada, e o “eu ” , que está alem do alcance da morte físicaT Alma muitas vezes é usada para designar o “eu” . O versículo 26 consiste de um parale­ lismo semítico, pois declara que o que está encoberto será descoberto, e o que está oculto será conhecido. O versículo 27 também contém um paralelismo, e significa claramente que o que Jesus ensi­ nou aos discípulos deve ser abertamente proclamado a todos os que quiserem ouvir. Jesus não tinha segredo ou ensina­ mento esotérico como os essênios e rabis. O que o versículo 27 diz claramente pode 2) A Quem Temer (10:26-33) ser a intenção do, mais obscuro, versículo 26 P ortanto, não o s te m a is ; porque n ad a 26, ambos ensinando que o evangelho deve ser abertamente proclamado. Con­ há encoberto, que não h a ja de se r d esco b er­ to, n em oculto, que não h a ja d e s e r co n h eci­ tudo, o versículo 26 pode referir-se aos do. 27 O que v o s digo à s e sc u ra s, dlzei-o à s sofrimentos dos discípulos. O ódio, insul­ claras; e o que esc u ta is a o ouvido, dos eiratos, flagelamento, e outras coisas sofri­ dos pregai-o. 28 E não te m a is o s que m a ta m o corpo, e não pod em m a te r a a lm a ; te m e i das por eles podem acontecer secreta­ mente, à noite, ou em algum lugar remo­ ím tes a,jguéléj[ue jpc^e"fazer p erecer no Ç fem o ^ t o ~ a alm a. com o o co iço ^ 2 9 N ão se to, mas por fim tudo será conhecido; ven d em dois passarin h os por u m a sse ? e imediatamente por Deus, e futuramente nenhum d eles ca ir á em terra se m a vontade por todo mundo. Assim entendido, o de vosso P a i. 30 E a te m e sm o os ca b elo s da versículo 26 é um encorajamento a um v o ssa ca b eça e stã o todos con tad os. 31 N m tem a is, pois; m a is v a ieis v ó s do que m iíítos ministério sacrificial, e o versículo 27 é passarinhos. 32 P ortan to, todo a q u ele que*^ uma ordem para ensinar e pregar aberta­ f m e con fessar d ian te dos h om en s, tom b ém mente, sejam quais forem os perigos que eu o con fessa rei diante de m eu P a i, que e stá isso acarretar. nos céu s. 33 M as qualquer que m e n eg a r í O encorajamento é reforçado pela cer­ diante dos h om ens, ta m b ém eu o n eg a rei / diaote de m eu P a i, que e stá nos céu s. ' teza de que Deus, que observa até a morte de um pardal, e conhece o número O Novo Testamento nunca ensina que dos cabelos da cabeça de uma pessoa, se deve temer a Satanás, mas que se deve certamente cuidará dos seus. O valor resistir a ele (Ef. 6:11). Temei aquele se infinito do homem é enfatizado, ^ con­ refere a Deus, diante de quem, por fim, a traste com o preço de passarinhos. Asse pessoa permanece de pé ou cai, é absolvi­ (assarion) era um-dezesseis avos de um da ou condenada. Não se deve procurar o”l denário, sendo este o salário de um dia ^ a r tír io , mas, por outro lado, não se ' de trabalho do operário (20:2). Sugerir o j deve temer os que podem matar o corpo, equivalente em dinheiro nos dias de hoje ‘ mas não a alma. O homem aqui não é é enganoso, pois muda diariamente. 177


Promessa e advertência estâo combinaãõs riõsversículos 3 T é33. A referência' é aos crenïès qüè esíao seiído julgados, ou confessando a Cristo com o perigo de suas próprias vidas, ou negando-o, p a r ^ l^ c a p a r a castigos. Este era um assunto oásico para a igre|a pnmitiva. estando a sua própria existência ligada com a dis^ pM çao de morrer por Cristo. A referênciá nao é a confissão de jJn sto diante de crentes, mas à declaração de sua fé em Cristo'qÏÏândo em prisão ou julgamento. O fato de Jesus reconhecer õü descòtóecer aqueles que o confessarenT^u negarem não é arbitrário. Cristo não pode deixar de declarar qual é o verda­ deiro relacionamento de uma pessoa com ele. Ele não pode declarar ser seu alguém que não o é. Equilibrando a sóbria adver­ tência desta passagem, existe o fato de Jesus ter ficado ao lado de Pedro, a dëspëitô'dë ele ter vêfgonhosamente nèg ã ^ ^ s e u Mestrê'(26:69-75; Mar. 14: 68-71). Possivelmente, -existe diferença entre negação proposital e fraqueza humana, que nao preenche os requisitos de uma situaçaô^ë'cnsë’.'T) propósito óbvio de j ^ t e u l) e ~ãBvéftif~ a Igreja da sua época ^ n t r a o perigo de negar a Cristo em momêhtos~3e'pressão; desta forma, ëlF H tr^ 'rd v ertên d â,' más não inclui a menção que Marcos faz da palavra espe­ cial de Jesus para Pedro (cf. 28:10 com Mar. 16:7). 3) Não Paz, Mas Espada (10:34-39) 34 N ão p en seis que v im tra zer p az ã te r­ ra; não v im trazer paz, m a s esp a d a . 35 P o r ­ que eu v im pôr em d lssen sã o o h om em contra seu pai, a filh a contra su a m ã e , e a nora contra sua sogra ; 36 e a ss im os in im i­ gos do hom em serã o os da su a própria c a ­ sa . 37 Q uem a m a o p a i ou a m ã e m a is do que a m im não é digno de m im ; e q u em a m a o filho ou a] filha m a is do que a m im n ão é digno de m im . 38 E quem n ão tom a a su a cruz, e não seg u e após m im , não é digno de m im . 39 Q uem a ch a r a su a vid a , perdê-la-á, e quem perder a su a v id á p o r a m o r de m im , achá-la-á.

Ou objetivo ou resultado pode ser o pretendido pela gramática dos versículos 34 e s. Sem dúvida, Jesus veio para trazer 178

e efetuar a paz da reconciliação entre homem e homem, bem como entre o Homem e Deus. Esta é a sua intenção. O verdadeiro resultado é muitas vezes a espada da divisão. Em tempos de perse­ guição, os inimigos do homem, os que o entregam às autoridades, podem perten­ cer à sua própria família. Através de todo este Evangelho, o parentesco básico é apresentado como um a questão de fé, e não de came (cf. 3:9; 12:46-50). O princípio mais profundo corporificado no ensino e na vida de Jesus é o dos versículos 38 e s. A cruz era um cruel meio de execução, que os romanos ha­ viam tomado emprestado dos cartagine­ ses, e empregado para a humilhante e torturante execução de criminosos, sendo os cidadãos romanos isentos dessa espé­ cie de execução. Exigia-se do condenado que carregasse a barra transversal da cruz, que, no lugar da execução, iria ser afixada à peça vertical. Jesus fez da cruz um símbolo de vitória. O seu grande paradoxo é que a pessoa acha a sua vida pela disposição em perdê-la, da mesma forma como inevitavelmente perde-a ten­ tando salvá-la. A cruz é a completa auto­ negação e autodoação, primeiramente no próprio Jesus, e depois como um princí­ pio transformador naqueles que nele confiam. Neste contexto, há uma referência es­ pecial ao martírio. Aquele que, estando sob julgamento, aparentemente salva a sua vida, renunciando a Cristo, na verda­ de, perde-a. Aquele que sofre o martírio como o preço de confessar Cristo, parece perder, mas, na verdade, encontra a sua vida. Para Jesus, e mais tarde para a igreja de Mateus, o teste era o da morte física, mas, em princípio, cada pessoa aceita ou rejeita a sua cruz. Cada crente encontra sua vida submetendo-a a Cristo, ou perde-a por causa de confiança pró­ pria, amor próprio e auto-afirmação. 4) Recompensas (10:40-42) 40 Q uem vo s receb e, a m im m e re ceb e: e q uem m e receb e a m im , receb e aq u ele que


m e enviou. 41 Q uem receb e um profeta na qualidade de p rofeta, receb erá a recom p en ­ sa de profeta; e quem receb e u m justo na qualidade de ju sto , receb erá a recom p en sa de justo. 42 E aq u ele que der a té m esm o um copo de águ a fr e sc a a u m d e ste s pequeninos, na qualidade de discípu lo, em verd ad e vos digo que de m odo a lg u m perd erá a su a recom pensa.

Outro princípio básico do Novo Tes­ tamento aparece neste parágrafo. O rela­ cionamento verdadeiro de uma pessoa com Deus é expresso no seu relaciona­ mento com Jesus, è o seu verdadeiro relacionamento com Jesus é expresso no seu relacionámento com o seu povo (cf. 25:31-46). Não que dar um copo de água fresca a outrem faz da pessoa um filho de Deus, mas em um simples ato como este podem revelar-se a verdadeira natureza e o verdadeiro relacionamento de uma pes­ soa. Existe aqui a dimensão adicional de que a pessoa revela o seu verdadeiro relacionamento com Deus quando recebe ou serve a um profeta, um justo, ou um discípulo, como tal, e não por qualquer motivo ulterior. Especial atenção pode ser dada ao interesse de Jesus pelos pequeninos. Es­ tes não eram meras crianças, mas as pessoas comuns, que tão facilmente são desprezadas ou passadas despercebidas. Para Jesus não havia pessoas sem impor­ tância, fosse qual fosse a sua idade, sexo ou posição. A recompensa é certa, mas não especificada. Possivelmente o pen­ samento é que pelo fato de receber a pessoa a recompensa é recebida. 5) Sumário (11:1) 1 Tendo acab ad o J esu s de d ar instruções aos se u s doze d iscíp u lo s, partiu d ali, a e n si­ nar e a pregar nas cid ad es d a região.

Stephan Langton, em 1228, ao fazer a nossa moderna divisão em capítulos, bem podia ter incluído este versículo no capítulo 10, pois ele pertence à seção das cinco fórmulas de Mateus, indicando uma divisão principal da sua obra (cf. 7:28; 13:53; 19:1; 26:1).

V. Várias Reações Para com Jesus ( 11 :2 - 30 ) Sem forçar o material, o leitor facil­ mente vê, nesta seção, pelo menos cinco reações para com Jesus: a cautelosa apro­ ximação de João (v. 2-11), os esforços para fazer o reino de Deus servir aos alvos humanos (v. 12-15), o desagrado infantil com todas as opções (v. 16-19), o flagrante desinteresse ou rejeição do evangelho (v. 20-24) e a confiança de cunho infantil (v. 25-30). 1. Incerteza e Confusão (11:2-6) 2 O ra, quando João no cá rcere ouviu falar das obras do C risto, m andou, p elos seu s discípulos, perguntar-lhe: 3 É s tu aquele que h a v ia de v ir, ou h a v em o s de esp era r outro? 4 R espondeu-lhes J e s u s : Ide contar a João a s c o isa s que ou vis e v e d es: 5 os ceg o s v êem , e os coxos a n d a m ; os lep rosos sã o p u ­ rificad os, e os surdos o u v em ; os m ortos são ressu scita d o s, e a o s p ob res é anunciado o evan gelh o. 6 E bem -aventurado é aq u ele que não se esca n d a liza r de m im .

A prisão de João foi mencionada em 4:12, e aqui o fato de ele estar preso é apresentado como algo já familiar ao leitor. Não antes de 14:1-12 Mateus des­ creve, a prisão em si, em termos de fatores causais e resultados. De Josefo (Antiguidades, XVIII, 5, 2) vem a infor­ mação de que foi em Maqueros, a leste do Mar Morto, que João foi preso. A gramática não resolve a questão, se o problema da identidade de Jesus era de João pessoalmente, ou (posição sustenta­ da já por Orígenes) dos seus discípulos. Este parágrafo parece dar a entender que a pergunta veio do próprio João. Não há nada que anule esta possibilidade, e é improvável que Mateus tivesse deixado campo para esta interpretação, se não fosse esse o seu objetivo. Parece melhor presumir que a pergunta partira de João. Se assim é, ela expressa tanto uma certa medida de dúvida quanto certa medida de confiança. Ele apresentou a interro­ gação diretamente a Jesus — uma indi­ cação de confiança, embora confusa. 179


Uma outra ambigüidade permanece quanto à pergunta de João. Será que ela expressa dúvida crescente, ou esperança novamente desperta? Este parágrafo pa­ rece favorecer a primeira hipótese, e os registros dos outros Evangelhos apoiam o ponto de vista de que este não é o começo da fé em João, de que Jesus é o Cristo, mas, pelo contrário, um período de in­ certeza (cf. 3:14; João 1:29, 35 e s.). O que João ouvira na prisão falar das obras do Cristo levou-o a enviar alguns dos seus discípulos para perguntar a Jesus se ele era de fato aquele que havia de vir. A incerteza de João acerca de Jesus germinou devido à espécie de ministério que Jesus estava realizando. João havia proclamado a vinda do reino dos céus, e havia visto a sua vinda em termos de juízo, simbolizado por machado, pá e fogo (3:2, 10-12). Ele aparentemente es­ perava que o Cristo agisse dramatica­ mente, destruindo os ímpios e vingando os justos. Exteriormente, os sinais de tal vitória não eram aparentes, pois ele esta­ va na prisão, enquanto Herodes Antipas e Herodias estavam vivendo em luxo e poder (14:1-12). João queria saber se Jesus era aquele que havia de vir ou se deviam esperar outro. Outro (heteron) pode designar um de outra espécie, mas isto não pode ser considerado apenas gramaticalmente. Todavia, o contexto apoia essa idéia. Que tipo de Messias devia ser esperado? “O que havia de vir” não é uma expres­ são muito bem estabelecida, mas parece ser messiânica (cf. 3:11; Dan. 7:13; Heb. 10:37; Apoc. 1:4). Os zelotes claramente esperavam um messias de tipo militar, e João parece ter esperado pelo menos um homem mais militante do que os atos dê Jesus pareciam expressar. Aparentemen­ te, ele esperava que o Messias se envol­ vesse mais direta e exteriormente com o mundo ao seu redor. Pode ter-lhe pareci­ do que Jesus estava assumindo um papel humilde demais. Foi exatamente neste ponto que Pedro e outros tropeçaram (cf. 16:21-23; João 13:8). 180

Faz parte da força do Novo Testamen­ to o fato de ele revelar as limitações dos seus heróis. Só Jesus não tem defeitos. É significativo, também, que Jesus não re­ jeitou nem menosprezou João, embora a honesta dúvida ou incerteza de João fosse acerca do ponto mais crucial: a identida­ de de Jesus. Em resposta, Jesus indicou que João devia encontrar a sua resposta exatamen­ te onde encontrara a sua pergunta: nas obras do Cristo. Jesus citou as suas obras: visão para os cegos, forças para os coxos, purificação para os leprosos, audi­ ção para os surdos, vida para os mortos e o evangelho para os pobres (cf. Luc. 4:18 e s. para uma descrição similar do seu ministério). A vinda de Jesus era um julgamento inevitável; não obstante, a sua intenção era curar, purificar, restau­ rar, libertar e dar poder a todos os que recebessem a salvação que ele oferecia. É interessante que Jesus fez da pregação do evangelho aos pobres, e não dos mila­ gres, a sua obra culminante. O versículo 6 é decisivo. Esta é uma outra “beatitude” , e a bem-aventurança pertence aos que não se escandalizam com Jesus devido à natureza do seu mi­ nistério. Escandalizar traduz uma forma verbal edificada sobre a palavra grega skandalon, usada, em primeiro lugar, para designar a isca de uma armadilha, e, posteriormente, como metáfora para tudo o que faz uma pessoa tropeçar ou errar e cair. Jesus declara bem-aventura­ dos os que não tropeçam sobre o fato de o seu ministério ser o de servo, em vez do de um “conquistador” material. Paulo chamou isto de “escândalo (pedra de tropeço) da cruz” (I Cor. 1:22-25). Até os apóstolos tropeçaram acerca do papel que Jesus declarou que viera executar (16:21-23). 2. Distorção e Violência (11:7-15) 7 Ao p artirem e le s, com eçou J e su s a dizer à s m u ltid ões a resp eito de João: Que sa iste s a v er no d eserto? um can iço agitad o pelo vento? 8 M as que sa is te s a ver? um h om em trajado de v e ste s lu xu osas? Elis que a q u eles


que trajam v e ste s luxu osas estã o n a s c a sa s dos reis. 9 M as por que sa iste s? p ara v er uin profeta? Sini, v o s digo, e m u ito m a is do que profeta. 10 E ste é aquele de quem e stá e s c r i­ to: E is a í envio eu ante a tua fa c e o m eu m e n ­ sageiro, que h á de preparar ad ian te de ti o teu cam inho. 11 E m verdade v o s d igo que, en tre os n a sc i­ dos de m ulher, n ão surgiu outro m aior do que João, o B a tista ; m a s a^iuele que é o m enor no reino dos céu s é m aior do que e le. 12 E d esd e os dias de João, o B a tista , até agora, o reino dos céu s é tom ado a fo rça , e os violentos o tom am de a ssa lto . 13 P o is todos os p rofetas e a le i profetizaram a té João. 14 E , se.q u ereis dar créd ito, é e ste o E lia s que h a v ia de vir. 15 Q uem tem o u v i­ dos, ouça.

João louvado (v. 7-11) — Jesus expôs as limitações de João, mas também lhe pagou grandes tributos. João representa­ va uma linha divisória entre uma era que se encerrava, e outra, nova, que começa­ va. João era um profeta, e mais do que profeta. Ele era o mensageiro anunciado por Malaquias (3:1; 4:5). A sua função era preparar o caminho do Senhor, de Jesus Cristo. João se situava no fim de uma longa linhagem de profetas; não obstante, pertencia a uma era de promes­ sa, e não de cumprimento. A nova era, que Jesus trazia, situava-se acima da era que estava passando com João. “A sua base ficava mais alta do que a cumeeira da outra” (Robinson, p. 101). A gramática (ti pode significar o quê? ou por quê?) e a ausência de pontuação nos manuscritos primitivos, torna possí­ vel a tradução da IBB ou outra. Poderia ser traduzido: “Por que saistes ao deser­ to? para ver um caniço agitado pelo vento?” Em qualquer das duas tradu­ ções, a intenção é clara. Jesus está defen­ dendo João contra qualquer suspeita de que ele é fraco ou vacilante. João pode estar confuso ou incerto, mas não há questão quanto à sua coragem, dedica­ ção ou sinceridade. Apesar de toda a grandeza de João, aquele que é o menor no reino dos céus é maior do que ele. Alguns consideram “o menor” como sendo o próprio Jesus; isto

é, aquele que “veio depois” (Jesus) na verdade “posiciona-se antes” daquele que viera antes (João), como é explanado em João 1:15. Mais provavelmente, a referência é aos seguidores de Jesus. Jesus não lançou dúvidas sobre a sal­ vação de João, mas declarou que João não estava em posição de ver a verdadei­ ra natureza e manifestação do reino. Ele estava já irrompendo na história, mas o seu maior triunfo, na morte e ressurrei­ ção de Jesus, estava além da duração da vida e da experiência de João. Machado, pá e fogo simbolizam, corretamente, o juízo pertencente essencialmente ao rei­ no, mas a cruz em sua suprema vitória é tanto juízo como redenção. Os violentos (v. 12-15) — Há várias interpretações possíveis da declaração de que o reino dos céus é tomado à força, e que os violentos o tomam de assalto (M-Neile, p. 155). O reino pode ser con­ siderado em termos dos da perseguição sofrida pelos seus membros. Isto é im­ provável, pois o reino geralmente se refe­ re ao governo de Deus, mais do que às pessoas sob esse governo. O reino pode ser visto violentamente atacado por pes­ soas ansiosas por entrar nele, mas isso não tem apoio em nenhuma outra passa­ gem de Mateus. A nossa tradução dá o significado mais provável. Os violentos tentam tomar o reino de assalto, e fazê-lo servir aos seus propósitos. A declaração dos versículos 12 e s. irre­ futavelmente se remonta a Jesus, e nela ele proclama que o reino já raiou nele, mas está sendo obstruído por homens violentos. A grandeza de João é vista no fato de ele se levantar no entroncamento das eras (aeons), contudo, o próprio Jesus está acima de João. O reino vem em Jesus, e é zombado por alguns, enquanto outros tentam distorcê-lo, precisamente porque “ele aparece na forma indefesa de evangelho” (Kasemann, p. 42 e s.). Tomado à força (biazetai) descreve o reino como sendo assaltado. Tomam de assalto (harpazousin) pode ser o que gra­ maticalmente é conhecido como “cona181


tivo” . Se assim é, ele descreve esforço ou intenção, mas não necessariamente rea­ lização. A força conativa de um verbo não é determinada por sua forma, mas sugerida pelo contexto. Os violentos se­ riam os zelotes e todos os ativistas que pensavam no reino de Deus em termos políticos, e no papel do Messias realizan­ do inclusive a derrota do domínio roma­ no, mediante a força militar. Os extre­ mistas, através de revolta armada, pro­ curavam precipitar a vinda messiânica e estabelecer o reino de Deus. Os mode­ rados se contentavam em esperar que Deus tomasse a iniciativa. Ambos os grupos esperavam um reino que tomaria forma dentro de uma estrutura política. Jesus rejeitou positiva e repetidamente assumir este papel. Betz 25 argumentou irrefutavelmente que o versículo 12 pode ser melhor en­ tendido à luz dos paralelos de Qumran. Ele considera biazetai como uma forma verbal média, em vez de passiva, e desta forma traduz a passagem: “Desde os dias de João Batista até agora o Reino do Céu está irrompendo por força, mas homens violentos o atacam e saqueiam.” Inter­ pretada desta forma, a passagem, vê-se dois movimentos: a vitoriosa erupção do reino do céu na pessoa de Jesus, e o contra-ataque de homens violentos, exemplificados por aqueles que tentaram afastar as pessoas de Jesus, dizendo que a sua obra era de Satanás. Betz vê 12:29 sob esta luz, onde Jesus é o guerreiro, que entra na casa de Satanás, para sa­ quear os seus bens. Embora a força “conativa” do verbo seja possível, como vimos acima, o qua­ dro pode, na verdade, ser o de dois reinos em tal conflito que, embora a vitória seja assegurada para o reino de Deus, há também baixas, que lhe são infligidas ao longo do processo, pelo reino do mal. ^6 25 O tto Betz, “ The Eschatological Interpretation of the Sinai-Tradition in Q u m ran an d in the New T esta­ m ent” , (Revue de Qumran, V I, 21 (Février, 1967), p. 89-107. 26 N orm an Perrin, Rediscovering the Teaching of Jesu§ (New Y ork; H arp er & Row, 1967), p. 77.

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Jesus baseou a sua identificação de João como Elias em duas declarações importantes: (1) se quereis dar crédito e (2) quem tem ouvidos, ouça. A primeira reconhece a dificuldade para os judeus do tempo de Jesus identificarem Elias com um homem que estava na prisão. Isto não correspondia às suas grandes esperanças de liberdade e reconstrução nacional. A segunda declaração enfatiza a importância da disposição para ouvir uma reivindicação que contradiz as espe­ ranças populares e nacionalistas; e ambas as declarações podem dar a en­ tender que a identificação de João com Elias deva ser levada em conta seriamen­ te, mas não literalmente. João Batista e Elias são dois homens diferentes (cf. 17:3), mas João Batista cumpriu o papel associado com o nome de Elias (cf. 17:12; Mal. 4:5). O fato de João ter negado que era Elias (João 1:21) não contradiz a intenção da declaração de Jesus (11:14). A negação de João concorda com o fato de ele ter recusado tornar-se importante, e a decla­ ração de Jesus deve ser compreendida dentro do seu contexto, como indicamos acima. A passagem reconhece claramen­ te que João Batista levantou-se na linha exata de divisão entre duas eras, uma dando lugar à outra. Foi uma época quando o poder do reino de Deus estava irrompendo no mundo, e sendo enfren­ tado pelos violentos esforços de alguns para se oporem a ele e derrotá-lo, e por outros fazendo grandes esforços para usá-lo ou explorá-lo. Os profetas e a lei é a maneira judaica de se referir ao que conhecemos como o Velho Testamento, agora encontrando cumprimento nos fatos e na pessoa proclamados por João. Ainda outra interpretação de desde os dias de João é a que entende que Jesus disse que o reino já havia raiado em João, sendo este o iniciador da nova era (aeon), o que significa que Jesus estava atraindo João para o seu lado, embora reclamasse para si mesmo uma missão mais elevada do que a de João (Kasemann, p. 43).


Desta maneira, o reino podé ser visto como tendo ao mesmo tempo sido inau­ gurado e obstruído por homens violentos. O problema não é esta última declara­ ção, mas a relação de João com o reino. Em todas as outras menções do Novo Testamento, o reino vem e se inicia em Jesus. Se a interpretação de Kâsemann é válida, aqui Jesus dá a João uma posição que só é sobrepujada por ele mesmo. 3. Desprazer Infantil (11:16-19) 16 M as, a quem com p ararei e sta g er a ­ ção? É sem elh an te a o s m en in os que, se n ta ­ dos nas p ra ça s, cla m a m aos se u s co m p a ­ nheiros: 17 T ocam o-vos flau ta, e não d an ­ ça stes; can tam os la m en ta çõ es, e não pran- ' tea stes. 18 P orquanto v eio João, não co m en ­ do n em bebendo, e d izem : T em dem ônio. 19 V eio o Filh o do hom em , com endo e b eb en ­ do, e dizem : E is a í u m co m ilã o e bebedor de vinho, am igo de publicanos e p ecad ores. E ntretanto, a sab ed oria é ju stifica d a p ela s su as obras.

Jesus comparou a sua geração a cri­ anças desagradáveis, que sempre acham defeitos nos outros. Geralmente esta ana­ logia é compreendida como referindo-se a crianças que acham ruim qualquer brincadeira proposta. Não querem brin­ car nem de casamento nem de funeral. Não querem nem dançar nem lamentar. Outra reconstrução é possível. As crianças desagradáveis podem ser as que ficam sentadas, esperando que as outras façam a parte mais cansativa das brin­ cadeiras. Elas meramente tocaram as suas flautas, mas esperavam que as ou­ tras crianças dançassem, ou cantaram lamentações, mas deixaram o choro (ba­ tendo os punhos no peito) por conta de outras crianças. Quando as outras se recusaram a dançar ou chorar, as que tocavam flauta ou lamentações culpa­ ram-nas de estragar o brinquedo. João foi criticado por ser severo e ascético demais. Não comendo nem be27 E. F. F. Bishop, Jesus of Palestine (London: L utter­ worth, 1955), p. 104.

bendo é, indubitavelmente, um exagero, pois a verdade é que ele tinha uma dieta simples. A acusação de que ele tinha demônio pode ser que tivesse sido feita literalmente, embora possa ter sido uma expressão semelhante à acusação po­ pular: “ele é louco” (cf. João 10:20). Jesus foi acusado por razão oposta: porque veio comendo e bebendo. A acusação, como a feita contra João, era exagerada, pois Jesus não era comilão e bebedor de vinho. Por outro lado, é claro que Jesus mergulhou profundamente na vida, ofendendo, muitas vezes, os líderes religiosos pela liberdade e alegria com que se movia entre pessoas de todas as espécies, e por se recusar a permitir que regras superficiais ou costumes assumis­ sem prioridade sobre as pessoas. Provavelmente nós tendemos a subes­ timar a extensão em que Jesus entrou na participação alegre de comunhão à mesa, com pessoas que anteriormente só ti­ nham conhecido exclusão, mas agora conheciam as alegrias do perdão e da aceitação. Estes foram os antecedentes da koinõnia, prática tão importante para a igreja primitiva. Isso prefigurava a Ceia do Senhor, e o “banquete messiânico” final (cf. At. 2:42; Apoc. 3:20). A comu­ nhão à mesa com tais pessoas, provavel­ mente, mais do que qualquer outra coisa, suscitou a ira dos fariseus. O provérbio de que a sabedoria é justi­ ficada pelas suas obras provavelmente significa que a maneira de ser de Jesus é justificada pelos seus resultados. Jesus estava disposto a suportar as críticas, a perseguição e a morte, enquanto trilhava um caminho que por fim prevaleceria e seria justificado. Há um a possível refe­ rência a João, tanto quanto a Jesus. O provérbio pode estar dizendo que a sabe­ doria e a vontade de Deus trabalharam tanto através da severidade de João quanto da liberdade de Jesus. Esta geração não se refere a todos os judeus de uma dada época. Geração (genea) é sempre usado por Jesus em repreensão (exceto em 24:34 e paralelos e 183


(8:5); e com Betsaida, na margem norte, cerca de dois quilômetros do Jordão, estão ligados os nomes de Filipe, André e Pedro (João 1:44). Estas cidades reagi­ ram em certa medida ao ministério de Jesus, mas não em medida comparável ao privilégio que haviam obtido. Tiro e 4. Rejeição Voluntária (11:20-24) Sidom eram cidades gentílicas, freqüen­ 30 E n tão com eçou ele a la n ça r e m rosto temente denunciadas pelos profetas pela à s cid ad es onde se operara a m aior parte sua riqueza e iniqüidade (cf. Amós 1:9 dos seu s m ila g res, o não se h a v e r em a r r e ­ s.; Is. 23:1 e ss; Jer. 25:22; et al.) Em pendido, dizendo: 21 A i de ti, Corazim I a i de cilício e em cinza eram símbolos de tris­ ti, B etsa id a ! porque, se e m Tiro e em Sidom teza e arrependimento. Sodoma era uma se tiv e sse m operado os m ila g res que e m vós se op eraram , há m uito e la s se teria m a r r e ­ cidade do Mar Morto, destruída pelos pendido em cilicio e em cin za. 22 Contudo, seus pecados, e proverbial por sua ini­ eu vos digo que p ara Tiro e Sidom h a v erá qüidade. Dela vem o termo sodomia. m enos rigor, no d ia do juízo, do que p ara O versículo 23, condenando Cafar­ vós. 23 E tu, C afarnaum , porventura será s elev a d a até o céu? até o h ad es d escerá s; naum, é adotado da acusação original­ porque, se e m Sodom a se tiv e sse m operado mente feita contra Babilônia (Is. 14:13os m ila g res que em ti se o p eraram , teria e la 15). A primeira parte é em forma de p erm an ecido a té hoje. 24 Contudo, eu vos pergunta, introduzida por uma partícula digo que no dia do juízo h averá m en os rigor para a terra de Sodom a do que p a ra ti. (mê), que espera resposta negativa. A segunda parte provavelmente deva ser A principal lição desta unidade é que a desta forma traduzida: “Ao hades desce­ rás” , como na tradução que usamos. Os severidade do juízo é determinada pela extensão do privilégio concedido. Quanto manuscritos variam entre as vozes ativa e maior o privilégio, maior a responsabi­ passiva do verbo, mas a ativa (katabêsêi) lidade. Não é um simples jogo de pala­ tem mais fortes fundamentos. Não que a vras dizer que a responsabilidade é me­ orgulhosa Cafarnaum, aspirando ao céu, dida pela capacidade de reagir. A pessoa será mandada ou levada ao hades, mas ou cidade é responsabilizada por nem ela “ mergulhará” ou “descerá” . O fato mais nem menos do que o que está . mais sério acerca do pecado é que ele é dentro da sua oportunidade e compe­ como um a doença; ele traz consigo os tência. As cidades em que tantos dos germes da própria destruição. É clara­ seus milagres haviam sido operados mente ensinado que Deus julga o peca­ foram condenadas por não se haverem dor, mas a Escritura também ensina que arrependido (quanto a arrependimento, o pecado, por si mesmo, acarreta ruína. veja 3:2). A seriedade do pecado, como uma do­ Corazim possivelmente deva ser iden­ ença maligna, não é devida ao fato de ser tificada com a ruina de Keraze, pouco descoberta, mas ao fato de estar ali. mais de três quilômetros a noroeste de Hades, como Sheol, no Velho Testa­ Tel Hum, provavelmente Cafarnaum. mento, refere-se ao sepulcro ou lugar dos Ela tem a infeliz distinção de ser lem­ mortos. Parece que pouco a pouco foi brada apenas por não ter reagido favo­ assumindo o significado de Geena ou ravelmente a Jesus. O fato de Jesus ter inferno, embora originalmente simples­ feito muitos milagres ali, torna explícito mente se referisse à esfera dos mortos (o que conhecemos apenas uma pequena termo grego significa “ não vistos” ). parte do que ele fez e disse (cf. João Pode ser observado que a reação moral 20:30;21:25). Cafarnaum parece ter sido do arrependimento, não meramente a por algum tempo a residência de Jesus curiosidade ou busca de ganhos tempo­ Lucas 16:8). Nunca se refere a toda a raça judaica, mas especificamente àque­ les a quem Jesus se dirigia na época, como representantes dela (cf. 12:39, 41 es.; 16:4; 17:17; 23:36).

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rais, é a reação apropriada aos milagres de Jesus. ^8 5. Confiança Infantil (11:25-30) 35 N aqu ele tem p o falou J e su s, dizendo: G raças te dou, ó P a i, Senhor do céu e da te r ­ ra, porque o cu lta ste e s ta s c o isa s a o s sáb ios e en ien d id os, e a s r e v e la ste s a o s p eq u e­ ninos. 26 Sim , ó P a i, porque a ssim foi do teu agrado. 37 T odas a s co isa s m e fo ra m e n tre­ gu es por m eu P a i; e n in g u ém con h ece p le ­ nam en te o F ilh o sen ão o P a i; e ninguém conh ece p len am en te o P a i, sen ã o o F ilh o, e aqu ele a q uem o FUho o q u iser rev ela r. 38 Vinde a m im , todos os que e sta is can sad os e oprim idos, e eu vo s a liv ia r ei. 39 T om ai sobre vós o m eu ju go, e apren d ei de m im , que sou m an so e hum ilde de co ra çã o ; e a ch a reis d escan so p ara a s v o ss a s a lm a s. 30 Porq u e o ■ m eu ju go é su ave, e o m eu fardo é lev e .

Os versículos 25-27 são conhecidos como a passagem joanina em Mateus, porque, tanto em pensamento como em estno, ela tem uma semelhança muito grande com o Evangelho de João. A sua presença aqui bem pode servir como uma conclamação para se reavaliar a origem da tradição preservada no Evangelho de João. 29 Esta passagem é melhor enten­ dida como tradução grega de um ditado aramaico que se remonta a Jesus. Este parágrafo é insuperável em res­ peito à natureza e significado da revela­ ção. O conhecimento de Deus não é realização dos sábios e entendidos. É o presente de Deus aos pequeninos. Fa­ lando de sábios e entendidos, provavel­ mente Jesus estava se referindo primeira­ mente aos escribas, que estavam tão certos do seu conhecimento. O julgamen­ to iria se aplicar a qualquer pessoa que “se fecha em sua própria sabedoria” (Dietrich, p. 72). Os pequeninos são os humildes e receptivos. O homem não descobre Deus, mas é Deus que se revela aos que nele confiam. Paulo, de forma similar, escreveu que, segundo a sabe28 George E. P. Cox, The Gospei According to Saint M at­ thew (New York: M acm illan, 1952), p. 87. 29 Cf. C. H . D odd, Historical TradJtion in the Fourth Gospel, (C am bridge: University Press, 1963).

doria de Deus, não é através da sabedo­ ria, mas através da fé que conhecemos a Deus, desvendada especialmente pela cruz(I Cor. 1:21). A revelação se preocupa com fatos, pois a suprema revelação de Deus teve lugar em um a pessoa, em um evento concreto da história. Daí, a revelação trata destas coisas, isto é, as que dizem respeito à vinda do reino dos céus em Jesus Cristo. Não obstante, a sua essên­ cia não está em proposições, mas no que é pessoal. Deus vem a nós não como uma proposição, para ser debatida, mas como uma pessoa em quem confiar, a quem amar, servir e conhecer. Salvação é co­ nhecer o Pai através do Filho (João 17:3). Jesus veio para nos capacitar a conhecer a Deus como Pai. “Conhecer” da forma como é usado aqui, não é ter conheci­ mento intelectual. Se fosse este o caso, os eruditos teriam vantagens. “ Conhecer” Deus é encontrá-lo em confiança e amor. É conhecê-lo como um a pessoa é conhe­ cida. A singularidade e a solidão de Jesus no mundo são refletidas na declaração de que apenas o Pai conhece plenamente o Filho. Nem mesmo João o conhecia ade­ quadamente. Jesus repetidamente era mal entendido pelos que o rodeavam. Só o Pai verdadeiramente o conhece. O próprio Pai é conhecido no Filho. Deus não apenas falou e agiu em Jesus, mas estava peculiarmente presente em Jesus. Deus se autodesvenda em tudo o que fez, mas é supremamente revelado só em Jesus Cristo (cf. Joâo 1:1,14; Rom. l:1 9 e s.;H e b . 1:1-3). O conhecimento do Pai é possível para aqueles a quem o Filho o quiser revelar. Isto pode parecer arbitrário, como se Jesus tivesse escolhido alguns para a sal­ vação, e a tivesse recusado a outros. O parágrafo precedente impede tal inter­ pretação. As cidades que haviam tido privilégios são condenadas porque rejei­ taram a luz que lhes fora oferecida. A responsabilidade humana e a determina­ ção divina não podem ser harmonizadas. 185


pois a nossa passagem não nos pede para fazê-lo. A doutrina bíblica da eleição diz que Deus toma a iniciativa na revelação e na redenção. Deus vem ao homem; o homem não abre caminho para Deus. Deus se revela ao homem; o homem não descobre Deus. Jesus não apenas revela o Pai para nós, mas ele quer revelar. Conhecer Deus como Pai é o alvo final da revelação e da redenção. O versiculo 28 torna claro que nin­ guém é excluído arbitrariamente da sal­ vação. O gracioso convite de Jesus é feito para todos os que estais cansados e opri­ midos. Provavelmente é feita uma refe­ rência especial aos que se esfalfam para cumprir a Lei a carregar os seus fardos, como era ensinado pelos escribas (cf. 23:4; At. 15:10). O descanso que Jesus ofereceu não é uma escapatória do tra­ balho ou de outras exigências da vida. “Eu vos refrigerarei” é outra forma de traduzir a sua promessa. O próprio Jesus não escapou à labuta, à dor, aos conflitos e a tudo o que torna a vida dura. Em tudo isso, ele tinha a capacidade de viver abundante, alegre e triunfantemente. Ele encontrou descanso no meio de uma vida assim, e oferece esse descanso a qualquer pessoa que for a ele. Para nós, o descanso é mais do que forças estóicas em face da adversidade. É a vitória sobre o medo, a ansiedade, a incerteza e a falta de sentido da vida, vitória esta encontrada na alegria e paz de Deus, na presença de Jesus Cristo. É a certeza de alguém que conhe­ ce o perdão de pecados e a aceitação na família de Deus. Jesus oferece um jugo tanto quanto um descanso. Os rabis falavam da lei judaica como um jugo, e embora falassem dela como uma alegria, tinham feito dela um fardo pesado para o povo. Jesus oferece um jugo que é suave, e um fardo que é leve. Isto demonstra o profundo para­ doxo que permeia o Evangelho de M a­ teus. A salvação é dádiva e exigência. É evangelho e lei. Deus dá tudo e exige tudo. Jesus pode ser conhecido como Senhor altíssimo e como o juiz, que 186

separa “as ovelhas” dos “bodes” (25: 31 e s.), e pode ser conhecido como o Mestre manso e humilde. Ele coloca o seu jugo sobre nós, o que não se faz sem requisitos pesados (cf. 5:20; 10:38; 16:24), mas é também suave e leve. Suave (chrêstos) significa amável e bom. Ele é bem ajustado, e não escoria o pescoço. Leve (elaphron) significa que o seu fardo não é pesado (cf. I João 5:3). Um jugo é feito para dois, e nunca para um só. Jesus nunca impõe aos seus discí­ pulos um jugo que ele também não car­ regue.

VI. Crescente Oposição a Jesus (12:1-50) Mateus mostra um novo estágio na oposição a Jesus. Os fariseus começaram a fazer planos para destruir Jesus, quan­ do sentiram que o sistema deles e os seus valores estavam sendo ameaçados. Duas abordagens radicalmente diferentes em relação à religião são verificadas aqui. O interesse de Jesus era sempre estrita­ mente pessoal. Nenhuma lei, nenhuma prática reUgiosa, nada interessava, a não ser se se relacionasse com Deus e com o homem. Os fariseus, pelo contrário, faziam do sábado, dos rituais de purifi­ cação, e coisas que tais, fins em si mes­ mos. Este capítulo vai descrever o abismo crescente entre Jesus e os fariseus, e até entre ele e sua própria mãe e irmãos. Vai indicar uma nova família da fé e obedi­ ência à vontade de Deus, família em que os gentios podem ser incluídos. 1. Superior ao Sábado (12:1-14) O sábado era quase um emblema nacional de Israel, ao lado do seu rito de iniciação da circuncisão. Jesus abalou aos alicerces da religião farisaica, quan­ do, por palavras e por atos, afirhiou a sua autoridade sobre o sábado, colocou o homem acima dele, e lembrou aos ho­ mens que Deus prezava a misericórdia mais do que todo o sistema judaico de cultos.


o sábado é uma divisão religiosa de tempo, e não uma divisão natural, como um ano, as estações, o mês lunar, dias e noites. Deus dera o sábado como dia de descanso. O legalismo judaico se tomara quase idólatra pelo fato de elevar o sába­ do acima do homem. Por outro lado, era com fortes convicções que os judeus guardavam o sábado, como é evidencia­ do pela disposição de serem dizimados de preferência a guerrearem no sábado (cf. I Macabeus 2:31-38). Jesus ofereceu um verdadeiro descanso, sendo ele mes­ mo o cumprimento do que era prefigura­ do no sábado semanal (cf. 11:28; Heb. 4:9 e s.). Ele é o nosso “sábado” da mes­ ma forma como é o nosso “templo” . 1) Colher Grãos no Sábado (12:1-8) 1 N aquele tem p o p asso u J esu s p ela s s e a ­ ras num d ia de sá b a d o ; e os se u s discípulos, sentindo fo m e, co m eça ra m a colh er e sp i­ g a s, e a com er. 2 Os fa riseu s, vendo isso , d isseram -lh e: E is que o s te u s discípulos estão fazendo o que não é lic ito fazer no sábado. 3 E le , p orém , lh es d isse : A caso não le s te s o que fez D a v i, quando te v e fo m e, ele e se u s com panheiros? 4 Gomo entrou na c a sa d e D eu s, e com o e le s co m era m os p ã es d a proposiçáui, que não lh e era lícito com er, n em a seu s com p an h eiros, m a s som ente a o s sa cerd o tes? 5 Ou n ã o le sto s n a na le i que, aos sáb ad os, o s sa cerd o tes no tem plo violam o sábado e fic a m se m cu l­ pa? 6 D igo-vos, porém , que aq u i e stá o qne é m aior do que o tem p lo. 7 M as, se v ó s so u b és­ se is o que sig n ifica : M isericórd ia quero, e não sa crifício s, n ão con d en aríeis os in o cen ­ tes. 8 Porque o F ilh o do h o m em a té do sábado é Senhor.

A lei permitia que uma pessoa colhesse grãos à mão, mas não com foice, quan­ do passasse pelo campo de um vizinho (Deut. 23:25). A tradição judaica rela­ cionava 39 espécies principais dè traba­ lhos que eram proibidos no sábado, in-' clusive a colheita e beneficiamento de grãos. Jesus defendeu os seus discipulos baseado no principio de que as necessi­ dades e o conforto humano são mais importantes do que a observância do sábado. Ele citou o exemplo de Davi, que comera “o pão da proposição” quando

fugia de Saul (I Sam. 21:1-6). Esse pão especial era colocado sobre a mesa no tabernáculo no sábado, e era conservado ali até ser substituído no sábado seguin­ te; o pão substituído era então comido, mas apenas pelos sacerdotes (Êx. 25:30; Lev. 24:5-9). Até aos sacerdotes era per­ mitido passarem por cima de leis sabá­ ticas, a fim de executarem os sacrifícios rituais (Núm. 28:9,10). Aos argumentos de haver precedentes (Davi e os sacerdotes), e da necessidade humana, Jesus adicionou a sua própria autoridade sobre o sábado, e o desejo de Deus de receber misericórdia acima de sacrifícios. Jesus não repudiou o Templo ou os sacrifícios, mas contendeu pela prioridade de outras coisas necessárias. O que é maior traduz adequadamente a forma neutra de meizon, no versículo 6. A referência específica é ao reino dos céus, que estava vindo em Jesus, ou simplesmente à autoridade de Jesus. O interesse de Deus pela misericórdia (Os. 6:6) era uma ênfase constante de Jesus (cf. 5:7; 9:13). Esta é uma expressão do “jugo suave” (11:30). Filho do Homem é aqui interpretado em termos de soberania: Senhor do Sábado; e também na forma do Servo Sofredor, cuja identificação é com a humanidade necessitada. Marcos pode ver “Filho do Homem” referindo-se tan­ to a Jesus como ao seu povo (2:27 e s.), mas a idéia de comunidade em “Filho do Homem” é ilusória. O que está claro é que Jesus declarou ter autoridade sobre o sábado e sobre o Templo. 2) Curar no Sábado (12:9-14) 9 P artindo d a li, entrou J e su s na sin agoga d eles. 10 E e is que e sta v a a li u m h om em que tinha u m a d a s m ã o s atrofiad a; e e le s, para poderem a c u sa r a J e su s, o in terrogaram , d izen d o: É lícito curar nos sáb ad os? 1 1 E e le lh es d isse : Qual dentre vós se r á o h om em que, tendo u m a só o v elh a , se num sáb ad o ela ca ir n u m a c o v a , não h á de lan çar m ã o d ela, e tirá-la? 12 O ra, quanto m a is v a le u m h o ­ m em do que u m a o v e lh a ! P ortanto, é lícito fazer b em nos sáb ad os. 13 E ntão d isse àq u e­ le h om em : E sten d e a tua m ã o . E e le a

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esten d eu , e lhe foi restitu íd a sã com o a outra. 14 Os fa riseu s, p orém , sain d o d ali, tom aram con selho contra e le , p a ra o m a ta ­ rem .

Os fariseus estavam vendo toda a sua teologia e autoridade sendo ameaçadas, e começaram a conspirar contra Jesus. Na sinagoga eles o testaram a respeito de curar no sábado um homem que tinha uma das mãos atrofiada. Os fariseus diziam que apenas casos de emergência deviam ser atendidos no sábado. Jesus favorecia qualquer ministério às necessi­ dades humanas, sem considerar o dia. Jesus fez os fariseus lembrarem a sua lei, que permitia-lhes libertar um animal no sábado ou dia de festa. Pelo fato de uma ovelha ter valor para eles, eles iriam pôr de lado as restrições sabáticas, normais, para salvá-la. Jesus não poderia ter colo­ cado o seu sistema em jogo de maneira mais aguda do que dizer-lhes que um homem vale mais do que uma ovelha. Antes de condenarmos injustamente os fariseus, podemos perguntar que coisas nós mesmos temos a tendência de colocar acima do valor da personalidade huma­ na. A fúria dos fariseus, quando conspi­ raram para o matarem, devia-se ao fato do seu próprio reconhecimento, não intencional, da completa vitória moral de Jesus sobre eles (Cox, op. cit., p. 89). Ele contendia pelo valor de um homem e pela legalidade de fazer o bem (kalõs) signi­ fica o que é apropriado) em qualquer tempo, enquanto eles contendiam pela observância de um dia. Com efeito, Jesus colocou o mandamento do amor acima do sábado. Incapazes de fazer-lhe frente, mesmo no seu próprio campo, eles recor­ reram à força bruta: a involuntária con­ fissão de derrota dos perseguidores. Marcos nos informa que eles até pediram ajuda dos herodianos (3:6). 2. A Esperança das Nações (12:15-21) 15 J esu s, p ercebend o isso , retirou -se dali. A com panharam -no m u ito s; e e le curou a todos, 16 e advertiu-lhes que não o d e sse m a

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con h ecer; 17 p a ra que se ciu n p risse o que foi dito p elo p rofeta I s a ía s : 18 E is aqui o m eu serv o que esco lh i, o m eu am a d o , e m quem a m in h a a lm a se com p raz; porei sobre e le o m eu esp írito, e e le an u n ciará a o s gen tios o juizo. 19 N ão con ten d erá, n em cla m a rá , n em se ou virá p e la s ru as a su a voz. 20 N ão esm a g a r á a ca n a quebrada, e n ão a p a g a rá o m orrão que fu m eg a , até que fa ç a triunfar o ju íz o ; 21 e no seu n om e os g en tio s esp erarão.

Este parágrafo contrasta o suave mi­ nistério de Jesus com a fúria farisaica, bem como com as expectativas messiâ­ nicas da época, e contrasta a rejeição de Jesus pelo seu próprio povo com a sua aceitação final pelos gentios. Mateus continua a desenvolver os temas da reti­ rada forçada de Jesus de Israel e do cum­ primento da profecia do Velho Testa­ mento. Mateus reconhece que, devido à cons­ pirata farisaica, Jesus retirou-se. Ainda não havia chegado a hora de um a con­ frontação final com os líderes da nação. Jesus retirou-se não apenas da hostilida­ de farisaica, mas também da publici­ dade baseada em milagres, mandando aos curados que não o dessem a conhe­ cer. O maior interesse de Mateus aqui, todavia, é na natureza calma do minis­ tério de Jesus, vendo-o em termos do Servo Sofredor de Isaías (42:1-4). Esta é a mais longa citação do Velho Testamen­ to em Mateus, e não segue plenamente nem o texto hebraico nem o da LXX que conhecemos. A figura do servo em Isaías foi pri­ meiramente entendida pelos judeus como se referindo a Israel, mas passou a ser entendida messianicamente. Para Jesus e a igreja primitiva, ela era uma fonte mes­ siânica básica. O termo grego pais pode significar servo ou “filho” . Com a adição de amado, ele se aproxima da idéia de filho. Na passagem, contudo, a função básica de servo é predominante. O servo é Servo de Deus, escolhido e amado. Ele é o portador do Espirito de Deus, e o seu


ministério deve ser estendido quieta­ mente até os gentios. Justiça (krisis) traduz um a palavra geralmente vertida como “julgamento” ou “juízo” . Provavelmente, a idéia bási­ ca de julgamento deve ser considerada aqui. Jesus realiza a sua obra de maneira suavé, mas isto não exclui julgamento. De fato, o julgamento pertence necessa­ riamente à redenção. O alvo do julga­ mento não é negativo, mas positivo, não simplesmente para condenar, mas para corrigir e salvar. Jesus leva o “juízo” ou a justiça à vitória, pois o juízo leva ao arrependimento, uma volta para Deus em fé submissa. Provavelmente, o interesse de Mateus na longa citação de Isaías se exerce igual­ mente no modo de ser calmo de Jesus, contrastado pela exibição exterior espe­ rada pelo povo, e a inclusão dos gentios. Embora Jesus venha em “Juízo” ; ele cuida gentilmente de cana quebrada e cada morrão que fumega. Ao invés de esmagar as pessoas, ele procura curar os moralmente feridos, e atiçar cada fagu­ lha de fé, fazendo-a tornar-se uma chama. 3. O Pecado sem Perdão (12:22-32) 23 T rouxeram -lhe en tã o u m en d em on i­ nhado ceg o e m udo; e e le o curou, de m odo que o m udo fa la v a e v ia . 23 E tod a a m u lti­ dão, m aravilh ad a, d izia: É e ste , p orven ­ tura, o F ilh o de D avi? 24 M as os fa riseu s, ouvindo isso , d is s e r a m : E ste não ex p u lsa os dem ônios sen ão por B elzeb u , p rm cipe dos dem ônios. 25 J esu s, p orém , conhecendo-lhes os p en sam en tos, d isse-lh es: Todo reino dividido contra si m e sm o é d ev a sta d o ; e toda cid ad e, ou c a sa , dividida con tra si m e s ­ m a não su b sistirá. 26 Ora, se S atan ás ex p u l­ sa a S atan ás, e stá dividido contra si m e s m o ; com o su b sistirá, p ois, o seu reino? 27 E , se eu expu lso os dem ônios por B elzeb u , por quem o s ex p u lsa m os v o sso s filhos? P or isso, e le s m esm o s serã o os v o sso s ju izes. 28 M as, se é p elo E sp irito de D eu s que eu expulso os d em ônios, logo é ch egad o a vós o reino de D eu s. 29 Ou, com o pode a lg u ém entrar n a c a sa do v a len te, e roubar-lhe os bens, se p rim eiro não am a rra r o v a len te? e então lhe sa q u eará a c a sa . 30 Q uem não é com igo é contra m im ; e quem com igo não

ajunta, esp a lh a . 31 P ortantp, v o s digo: Todo p ecado e b la sfê m ia se p erd oará a o s h o ­ m en s; m a s a b la sfêm ia contra o E sp írito não se r á perdoada. 32 Se a lg u é m d isser a lg u m a p a la v ra contra o FiUio do h om em , isso lh e se r á p erd o a d o ; m a s se a lg u ém falar contra o E sp írito Santo, não lh e se r á p er ­ doado, n em n este m undo, n em no vindouro.

Quando Jesus restaurou a vista e a fala a um endemoninhado, as multidões perguntaram se isso não podia indicar que ele era o Filho de Davi, mas os fariseus acusaram Jesus de estar expul­ sando demônios apenas por Belzebu, príncipe dos demônios. Enquanto Jesus ministrava no meio deles, um cego viu e os líderes religiosos ficaram “cegos” . É nesse contexto que o “pecado sem per­ dão” deve ser compreendido. O pecado descrito é o de blasfêmia deliberada e arrogante, chamando de obra do diabo aquilo que inequivocamente é obra de Deus. Belzebu (Beelzeboul) é a forma correta para o termo empregado aqui. Ela en­ trou para as traduções em português da Vulgata Latina, influenciada por “BaalZebube” de II Reis 1:2. Belzebu pode significar “o exaltado” , seja exaltado no templo, seja no céu (McNeile, p. 143 e s.). O que é importante para o seu uso aqui não é a derivação do termo, mas o seu emprego como o príncipe dos demô­ nios (v. 24), e presumivelmente também como Satanás (v. 26). Em suma, Jesus é acusado de receber o seu poder de Sata­ nás. Como resposta, Jesus primeiramente mostrou o absurdo da acusação. O exor­ cismo de demônios não pode ser uma obra de Satanás, pois ele não seria tão tolo ao ponto de destruir o seu próprio reino. O que Jesus está fazendo represen­ ta Deus contra Satanás, e não Satanás, contra Satanás. O segundo ponto era que os fariseus condenaram os seus próprios fílhos, isto é, os seus discí­ pulos, ao condenar Jesus, pois eles tam ­ bém expulsavam demônios. Inciden­ talmente, isto dá a entender que, no 189


pensamento judaico daquela época, o uso indiferente dos termos Espírito de exorcismo de demônios não estava limi­ Deus, Espírito, e Espírito Santo nos tado ao Messias, ou como um necessário V. 28, 31 e 32). Isto precisa ser compre­ sinal dele. endido no contexto. Jesus havia restaura­ O versículo 28 é digno de notgt, um dos do a visão e a audição de um endemoni­ mais importantes deste Evangelho. Jesus nhado. Incapazes de negar o fato, líderes afirma não somente que o seu poder se religiosos de confiança atribuíram a sua exerce através do Espirito de Deus, mas fonte a Belzebu. Observaram uma obra que os fatos acontecidos eram evidência óbvia de Deus, e chamaram-na de obra de que é chegado a vós o reino de Deus. dêSatanás. ü problema deles não era dê Esta é, em Mateus, a declaração mais cãbeça, mas de coração. Isto é cegueira explícita de que o reino de Deus já havia voluntária, para a qual não há desculpas. chegado, em Jesus. O verbo grego tra­ Os ignorantes podem ser informados, e duzido como é chegado (ephthasen) indi­ os fracos podem ser fortalecidos, mas, ca não apenas proximidade, mas presen­ mediante a rejeição voluntária do Espí­ ça. Sem dúvida, o assunto é que a expul­ rito de Deus, a pessoa nega a si mesma são de demônios significa que o reino de a sua única possibilidade de arrependi­ Deus agora está vencendo o reino de mento e fé. Satanás. A consumação do reino é futu­ Esta passagem parece dura, mas deve ra, mas ele já está se realizando em Jesus. ser considerada com toda a seriedade. O valente já está sendo amarrado, e os • “T esus não está dizendo aue Deus esteiá~7 homens já estão sendo libertos do poder alguma vez indisposto a perdoar, mas do mal. que õ liô tném pode~se tornar imperdõa^ O costumeiro “ reino dos céus” de vél. Isto se relaciona com a co n d ição '^ Mateus (32 vezes) aparece aqui e três _homem. Um paralelo a isto é encontradcT^ outras vezes (19:24; 21:31, 43) como ~em João 9:1-41, onde é demonstrado que reino de Deus. Isto pode ser devido à sua o preço de se rejeitar a luz de Deus é a fonte, mas também concorda bem com a cegueira. Fechar os olhosjde altniém não expressão o Espírito de Deus. O Espírito é apa,gar a luz, mas apagar a sua visão. de Deus é o Espírito Santo, isto é, a Èste é o princípio que está pòr detrás do própria presença de Deus. Lucas contém “pecado sem perdão” ; “o dedo de Deus” (11:20), uma expres­ Falar contra o Filho do Homem é são veterotestamentária para a obra de perdoável, mas falar contra o Espírito Deus na criação (Sal. 8:3), ao libertar Santo não é. Possivelmente Jesus quis os israelitas do Egito (Êx. 8:19) e ao dar a dizer que o problema não está no Filho Lei (Deut. 9:10), isto é. Deus como cria­ do Homem, ele mesmo; pois está sempre dor, revelador e redentor. O Espírito dê" pronto a perdoar (cf. Broadus, p. 271 e eus não é outro Deus ou apenas uma j s .) . Mas falar contra o Espírito Santo,' parte de Deus. O Espírito de D-&us_é. o como os fariseus haviam feito de maneira próprio Deus, aqui apresentado peculiar­ voluntária, como um ato de descrença e mente em Jesus Cristo. desobediência, é negar a si mesmo a Diante de Jesus, o homem é chamado única esperança. Ê cortar qualquer co­ municação com a única pessoa que pode a uma decisão. Não se pode permanecer ___ ] neutro. A pessoa que não está positiva­ levá-lo ao arrependimento. mente com Jesus é contra ele. Quem não 4. O Juízo Inescapável (12:33-37) ^ u n ta o rebanho (possível referência à ceifa, como em 9:37), o espalha. 33 Ou fa zei a árvore boa, e o seu fruto A severa advertência atribuída a Jesus bom ; ou fa z ei a árvore m á , e o seu fruto aparece nos versículos 31 e s. Blasfêmia m au ; porque p elo fruto se con h ece a árvore. 34 R a ça d e v íb oras! com o p od eis vós falar contra o Espírito não é perdoada (veja o 190


coisas boas, sen do m au s? p ois do que b á em abundância no coração, d isso fa la a boca. 35 O hom em bom , do seu b om tesouro tira coisas boas, e, o h om em m au , do m au t e ­ souro tira co isa s m á s. 36 D igo-vos, pois, que de toda p alavra fútil que os h om en s d is­ serem , hão de dar con ta no d ia do juízo. 37 Forque p ela s tu as p a la v ra s se r á s ju stifi­ cado, e p ela s tu as p a la v r a s se r á s con d e­ nado.

E&te parágrafo apresenta explicita­ mente o que fora declarado acima impli­ citamente: que Jesus colocava o centro do mal no coração humano, e não nas forças fora dele. Mesmo as palavras de blasfê­ mia não seriam, afinal, sérias, se fossem apenas sons da boca, ou garganta, para foi a. Mas as palavras são sérias, pois vêm do coração, expressando o que a pessoa é, tanto quanto o que fala. Me­ diante as analogias de fruto e tesouro, Jesus torna claro que é na medida em que as palavras e atos expressam o caráter, o que a pessoa é, que elas são importantes. Uma árvore pode produzir frutos ape­ nas segundo a sua espécie ou qualidade. Bom e mau (cf. 7:16-20) referem-se não a estados de saúde, mas a quahdade de fruto, comestíveis ou não. Uma pessoa pode tirar do seu tesouro só o que tem, seja bom ou mau. Jesus faz uma clara distinção entre um homem bom (agathos) e um homem mau (ponêros), usan­ do termos morais. A pessoa é julgada até por toda palavra fútil. Fútil é tradução da palavra argon (contração de a-ergon), isto é, o que é “ocioso” , sem propósito. As palavras duras a respeito de uma raça de víboras são dirigidas àqueles que, devido à cegueira expontânea, dizem que a obra de Deus é obra de Satanás. As suas palavras não são acidentais. Refle­ tem a natureza da fonte de que proce­ dem. Sem dúvida, as palavras nem ex­ pressam o que a pessoa é, como no caso dos hipócritas (cf. 7:21-23); mas as pala­ vras acompanhadas de atos, na verdade, podem revelar o que uma pessoa é, espe­ cialmente palavras costumeiras e não premeditadas, que refletem padrões, pe­ las quais a pessoa inconscientemente des­

venda os seus pensamentos, sentimentos e valores. Jesus não está dizendo que o bem e o mal são inerentes, por si mes­ mos, nas palavras, mas que o bem e o mal estão no coração, de onde vêm as palavras. A ignominiosa acusação feita pelos fariseus contra Jesus só podia pro­ vir de corações ignominiosos. No próprio ato presunçoso de julgar Jesus, eles esta­ vam se julgando. 5. O Sinal de Jonas (12:38-42) 38 E ntão algim s dos escr ib a s e dos fa r i­ seu s, tom ando a p a la v ra , d is se r a m : M estre, q u erem os v er da tua p arte a lg u m sin al. 3 9 M as ele lh es respondeu: u m a g era çã o m á e ad ú ltera pede um sin a l; e nenhum sin a l se lhe dará, sen ão o do profeta Jon as; 40 pois, com o J on as e ste v e tr ê s d ia s e três noites no ven tre do grande p eix e, a ssim esta r á o F ilho do h om em tr ê s d ias e tr ê s n oites no seio da terra. 41 Os n in iv ita s se lev a n ta rã o no juízo com e sta gera çã o , e a condenarão; porque se a rrep en d eram com a p reg a çã o de Jon as. E e is aq u i q u em é m a io r do que Jon as. 42 A rainha do su l se lev a n ta rá no ju ízo com e sta g era çã o , e a con d en ará; porque v eio dos confins d a terra p ara ouvir a sab ed oria de Salom ão. E e is aqui quem é m aior do que Salom ão.

O pedido de um sinal é o pedido de algo dramático e sensacional. A verda­ deira fé não é suscitada desta forma. Mais do que isto, aqueles que pediram esse sinal não estavam sinceramente abertos para as evidências que já estavam diante dos seus olhos. O problema deles era principalmente de coração, e não de cabeça, pois precisavam de uma disposi­ ção para crer, e não de mais evidências para a fé. Este é o escopo da história que estamos para comentar. O interesse especial de Mateus na oposição dos fariseus pode ser verificado ao compararmos esta seção com os seus paralelos em Lucas 11:29-32. Lucas não menciona os escribas e fariseus. O fato de chamar aquela geração de adúltera apresenta um paralelismo com o Velho Testamento, que usa esse termo para definir infidelidade contra Deus, como na analogia de Israel como noiva de 191


Deus, que foi infiel (cf. Jer. 2:1-5, 32; Os. 2:16-23; Ez. 16:1-63). Jesus ofereceu àquele povo insincero apenas o sinal do profeta Jonas. Os nini­ vitas se haviam arrependido, embora tivessem como seu evangelista apenas um profeta relutante, que realmente não queria que eles fossem poupados. Quem é maior do que Jonas refere-se ao reino do céu que veio em Jesus. Aquela geração estava na presença de Jesus, em quem já estavam operando os poderes do reino, mas eles ainda pediam mais! A rainha do sul é a rainha de Sabá, ou Arábia do sul (I Reis 10:1-13). Ela não crera nas notícias acerca de Salomão, quando as ouviu; mas em benefício dela deve ser dito que ela, quando o viu e ouviu, reconheceu o seu erro, e a sabe­ doria dele. Como os ninivitas, ela aceitou as evidências, quando as confrontou. A geração de Jesus foi condenada porque, na presença de alguém maior do que Jonas ou Salomão, pediu mais. Não pre­ cisava de mais luz, porém de mais visão; não de algo para ver, mas de olhos dis­ postos a ver. O versículo 40 desenvolve outra idéia. Ela não está no paralelo em Lucas. Em Mateus a analogia de Jonas serve ao pro­ pósito ulterior de apontar para a ressur­ reição de Jesus. Três dias e três noites não devem ser tomados em sentido lite­ ral, como sendo aplicados à ressurreição de Jesus. Na contagem judaica, uma parte de um dia era contado como dia completo; e a expressão aqui é como um número redondo, e não científico. Sem dúvida, a ressurreição de Jesus é o “ si­ nal” colocado como clímax; não obstan­ te nem ele convenceu a muitos. 6. A Volta do Espírito Imundo (12:43-45) 43 Ora, havendo o esp írito im undo saído do hom em , anda por lu g a res áridos, b u s­ cando repouso, e não o en con tra. 44 E ntão diz: V oltarei p ara m in h à c a sa , donde sa í. E , chegando, ach a-a desocu p ad a, varrid a e adornada. 4S E ntão v a i e le v a con sigo outros sete esp íritos, p iores do que e le , e , entrando, h abitam a l i ; e o ú ltim o esta d o d e ss e hom em

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v em a ser pior do que o p rim eiro. A ssim há de a co n tecer ta m b ém a e sta g e ra çã o p er­ v ersa .

A referência imediata a esta advertên­ cia pode ser contra o interesse indevido em exorcismo, cura e outros benefícios. Não é suficiente apenas expeUr os demô­ nios ou remover enfermidades físicas, como a cegueira. Deus precisa habitar na pessoa, fazendo dela o templo de Deus. Não é suficiente receber os dons exterio­ res de Deus; é necessário recebê-lo. Aphcado mais largamente, o juízo cai sobre Israel devido à sua grande atenção a “reformas” , em que exteriormente a sua casa estava varrida e adornada, mas desocupada (vazia). Desde a época de Esdras, Israel havia dado atenção à Lei, elaborando um intrincado sistema, para governar todas as situações da vida. Nada fora deixado ao acaso. Havia uma regra para tudo: lar, negócios, adoração, vestimentas, dieta, etc. Mas com toda a atenção às coisas da religião e da vida, a maior negligência era em termos pessoais: Deus e o ho­ mem. Os deuses velhos haviam sido bani­ dos, e não havia mais idolatria exterior, como antes do exílio. Baal, Astarote, Moloque, e outros deuses que tais, não mais eram uma ameaça para Israel. Mas novos “ deuses” haviam entrado em cena — piores do que os antigos: mamom, orgulho, provincialismo, sábado, jejum, rituais de purificação, e coisas semelhan­ tes. Esses “deuses” são mais sutis e mais perigosos do que os deuses grotescos e estranhos do paganismo. 7. A Verdadeira Família de Jesus (12: 46-50) 46 E nquanto e le ain d a fa la v a à s m u lti­ dões, e sta v a m do lado de fora su a m ã e e seu s irm ã o s, procurando falar-lh e. 47 D isselh e a lg u ém : E is que e stã o a li fo ra tua m ã e e teu s irm ã o s, e p rocuram fa la r contigo. 48 E le , porém , respondeu ao que lh e fa la v a : Quem é m inha m ã e? e quem sã o m eu s ir­ m ãos? 49 E , esten d en d o a m ã o p a ra os seu s d iscípulos, d isse : E is aqui m inha m ã e e m eu s irm ã o s. 50 P o is qualquer que fizer a


vontade de m eu P a i que e stá n os céu s, e ss e é m eu irm ão, irm ã e m ã e.

III. Parábolas do Reino (13:1-52)

Neste ponto Mateus retoma à ordem de narrativa de Marcos (Mar. 3:31-35). Este apresenta, em seqüência, três gru­ pos e suas reações em relação a Jesus: os “seus amigos” , que diziam: “Ele está fora de si” (3:21); os escribas, que disse ram que ele estava “possesso de Belze bu” (3:22); e a mãe e os irmãos de Jesus que “ficando da parte de fora, mandaram chamá-lo” , presumivelmente para remo vê-lo de cena, escohdendo-o (3:31). Ma teus nâo tem paralelo a Marcos 3:21 mas indica as reações dos fariseus e da família de Jesus. Nem Marcos nem Mateus declaram explicitamente qual a atitude da mãe e dos irmãos de Jesus, mas a resposta de Jesus dá a entender que eles não simpa­ tizavam com o que ele estava fazendo. O melhor que poderia ser dito a favor deles é que eles temiam que ele pudesse sofrer algo por parte das pessoas que lhe eram hostis. Parece, contudo, que o relacio­ namento entre eles era mais tenso, e que não foi senão depois da ressurreição que a família de Jesus começou a entendê-lo e apoiá-lo. Jesus teve que perder sua mãe e seus irmãos antes de recuperá-los em bases novas e mais significativas (cf. João 2:4es.; 7:5; IC or. 9:5). Jesus não deixou campo para dúvidas de que a fé, e nâo a carne, era a base para o verdadeiro parentesco. Mais pre­ cisamente, qualquer que Szer a vontade do Pai de Jesus, que está nos céus, é seu irmão, irmã ou mãe. Isto enfatiza nâo apenas a verdadeira base para o paren­ tesco, mas também a importância de fazer-se a vontade de Deus. Pode ser observado que, embora Jesus chamasse outras pessoas de mãe, irmão e irmã, chama apenas Deus de seu Pai. O versículo 47 é fortemente sustentado pela família textual Ocidental mas nâo é sustentado pelos melhores manuscritos da família textual alexandrina. Ele pro­ vavelmente nâo é original em relação a este contexto.

A parábola era um método importante de didática para Jesus, mas não era novo. O Velho Testamento tem muitas parábo­ las, e elas eram largamente usadas fora do judaísmo. Na LXX, parabole traduz o termo hebraico mãshal cerca de 45 vezes. Parábola significa literalmente algo “lançado ao lado de” , como ilustração ou analogia, mas a etimologia nâo vai longe em indicar-o seu significado ou uso. O mâshal do Velho Testamento podia ser um oráculo, enigma ou “dito obs­ curo” , inteligível para os iniciados, mas ininteligível para os estranhos. Salmos 78:2 fala de “uma parábola” e de “enig­ mas da antiguidade” , de segredos nacio­ nais passados de família para família. Mas geralmente a parábola deve ser en­ tendida por todos a quem é dirigida, não apenas para esclarecer, mas também para julgar e evocar uma reação moral. Isto é bem ilustrado na parábola de Natã, acerca da “única ovelhinha” , tira­ da do pobre pelo rico (II Sam. 12:1-14). Esta parábola é tirada da vida real; ensina por analogia ou ilustração; instrui ou esclarece; julga e demanda uma rea­ ção moral. As parábolas são muitas e variadas em o Novo Testamento. Pela compreensão mais restrita do que constitui uma pará­ bola, há dúzias delas no Novo Testamen­ to. O número cresce quando as parábolas sâo entendidas em sentido mais amplo e flexível. Por exemplo, “médico, cura-te a ti mesmo” é explicitamente citado como parábola em Lucas 4:23 (as traduções modernas grafam “provérbio” , mas em grego é parabole. Tanto no Velho como no Novo Testa­ mento as mãshal ou parábolas são mais bem entendidas como tendo vários tipos e formas: símile, máxima, ou ditos ex­ pressivos (cf. I Sam. 10:12), provérbio, metáfora, estórias da vida real e imaginá­ rias, e mesmo uma ocasional alegoria, ou semi-alegoria. Um símile assemelha uma 193


cousa à outra. A metáfora é mais direta, dando a uma coisa o nome de outra, como “vós sois o sal da terra” (5:13). A alegoria pode personificar coisas abs­ tratas. Algumas das parábolas do Novo Testamento abordam a alegoria, como acontece na parábola do semeador e os diferentes tipos de solo (13:3-23). Con­ tudo, segue-se que a comparação é “ a marca registrada de uma parábola” , en­ quanto a identidade oculta é a “marca registrada da alegoria” , pois esta requer uma chave para ser entendida (Perrin, p. 84 e 86). A parábola costumeiramente possui um alvo principal, e só um, mas isto não é sempre verdade. Dois extremos devem ser evitados: a abordagem alegórica, que parece fazer cada palavra ou frase dizer algo, bem como a restrição de todas as parábolas a um único significado. O pri­ meiro padrão foi seguido por intérpretes primitivos como Orígenes e Agostinho, que podiam deixar a imaginação correr solta, ao ler alegoricamente tudo a que queriam dar um segundo significado, em uma parábola. Esta falácia foi inteiramente exposta e refutada por Adolf Jülicher. ^ Infeliz­ mente, Jülicher errou por outro lado, entendendo a natureza da parábola em termos de algum uso grego pagão, ao invés de um uso veterotestamentário, limitando, desta forma, cada parábola a um único uso. Um equilíbrio mais feliz logo foi recobrado, expresso em obras como as de Paul Fiebig e McNeile (p. 185 e s.). Entendidas assim, as pará­ bolas do Novo Testamento são vistas em termos da sua mais ampla variedade de tipos e formas, tendo geralmente apenas um significado, mas às vezes apresentan­ do significados secundários, abordando até a alegoria. 30 Die Gleichntsreden Jesu (2^ ed; Tübingen: M ohr, 1899). 31 Die Gleiehnisredeii lesu Im Lichte der labbinisehen Gleichnisse des neutestamentlichen Zeitalters (Tübin­ gen: M ohf, 1912).

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Um passo de grande importância para a compreensão das parábolas do Novo Testamento foi dado no período moder­ no, quando atenção mais detida foi dada ao contexto das parábolas. Houve, indu­ bitavelmente, o contexto original, em que Jesus ensinou em parábolas. Sempre que possível, este contexto deve ser re­ construído, a fim de vermos a força original da parábola. Mas pode existir o contexto ulterior, da Igreja, em que a parábola foi preservada, ou do evange­ lista, que a repetia. Era váüdo e necessá­ rio adaptar as parábolas às novas situa­ ções que surgiam na vida da Igreja. Dois erros podem ser evitados mui bem: não distinguir entre o contexto original e o da Igreja, e também o exage­ ro da mudança do contexto original para o posterior, da Igreja. Ê tão indefensável dizer que o contexto sempre muda, como dizer que ele nunca muda. Mateus, por exemplo, compreensível e apropriada­ mente relatou as parábolas de Jesus de forma a dar-lhes a máxima relevância para a igreja de sua época. Isto não significa que ele era indiferente quanto à sua intenção original. O mesmo princípio é válido para o emprego das parábolas hoje em dia. Precisamos adaptá-las e aplicá-las aos nossos problemas e neces­ sidades, mas isto não justifica a violação da sua intenção original. É apropriado perguntar o que uma parábola pode nos dizer hoje, mas ela nunca pode ser levada ao ponto de contradizer o que original­ mente tinha a intenção de dizer. A questão mais difícil em relação às parábolas de Jesus relaciona-se com o seu objetivo. O versículo 13 parece dizer que as parábolas tinham o objetivo de ocultar a verdade a alguns, ao invés de revelá-la. Por outro lado, o versículo 34 e s. apre­ sentam as parábolas como desven­ dando “as coisas ocultas” desde’o prin­ cípio do mundo. O versículo 13 será estu­ dado dentro do seu contexto, e o seu escopo precisa ser levado a sério; mas é claro que o objetivo dominante de Jesus era dar luz, e não negá-la, revelar, e não


ocultar. Ele veio como o “Verbo” que “se fez came” (João 1:14), para ser a Palavra de Deus bem entendida. As sete parábolas do capítulo 13 cons­ tituem o terceiro maior “discurso” , en­ cerrado com a fórmula repetida em 13:53 (cf. 7:28; 11:1; 19:1; 26:1). Duas das parábolas são de Marcos (do semeador e da mostarda); estas duas e a do fermento são compartilhadas com Lucas; além disso, Mateus acrescenta quatro pará­ bolas não encontradas em nenhum outro lugar (do joio, do tesouro escondido, da pérola de grande preço e da rede). Isto pode refletir a existência de três fontes (Marcos, Q e M); tudo o que isso neces­ sariamente significa é que Mateus con­ tém duas das sete em comum com M ar­ cos, três em comum com Lucas e quatro peculiares a si mesmo. Embora as parábolas se relacionem com diferentes temas, estas sete se rela­ cionam com o reino dos céus. Ensinam a sua presença nas palavras e nas obras de Jesus, o seu juízo, o seu chamado ao arrependimento, a sua natureza, e o seu triunfo final e seu significado, em fla­ grante contraste com a sua aparente pequenez e fraqueza, quando aparece na pessoa e métodos de Jesus. \ 1

Jesus tirou a maioria das suas parábolas da vida cotidiana, e as contou de" maneira tão simples que a verdade p r^ tendida era transDarent& oara a pessoa comum. “As parábolas não têm o obje­ tivo de serem decifradas por meio do estudo; elas têm o propósito de serem entendidas, ouvidas e postas em prá­ tica.” 32 ( ^ fazendeiros semeavam sobre o solo ru3e, e depTJis ò aravam, misturando a semente com a terra (cf. uma prática semelhante hoje em dia nos Estados Unidos, expressa na frase “plow in oats” , que significa arar as sementes de aveia, misturando-as com a terra). O fato de algumas sementes caírem em solo improdutivo e se perderem era um risco cal“^ la d o . Ò fazendeiro semeava n á expec-' tatívadè uma colheita que lhe desse lucro em relação à semente plantada. Ã beira do caminho era a trilha batida que atra­ vessava ou margeava u m ^ ã m ^ . Lugares pedregosos refere-se a solo pouco espesso sobre um estrato rochoso, e não a pedras misturadas com solo. O solo pouco espes­ so depressa seria aquecido pelo sol, e uma rápida germinação da semente seria o resultado. Todavia, carecendo de pro­ fundidade, o solo não teria a humidade • para sustentar o crescimento. Os espi­ 1. Semeador e Solos ( 13:1-23) rM : nhos cresciam nos promontórios e luga­ res remotos do campo. Eles abafariam as 1) A Parábola Dada (13:1-9) 5 !^ plantinhas novas. A boa terra produzia 1 N o m esm o d ia, tendo J e su s saído de várias quantidades: um a cem, outro a ca sa , se n to u -^ à ^ e l r a dp m a r; 2 e reu n i­ sessenta e outro a trinta por um. Uma ram -se a e le gran d es m u ltid ões, de m odo multiplicação de vinte e cinco vezes a que entrou numTSffico; êrsé^ en ío ü ; e todo o semente plantada era boa. O nível de povo e sta v a em pé na p ra ia . 3 E falou-lhes cem por uma era fenomenal. No plantio m u ltas co isa s por p ará b o la s, dizenda; E is de arroz, por exemplo, um grão pode que o sem ead or sa iu a se m ea r . 4 E quando se m e a v a , u m a p arte d a se m e n te ca iu à produzb: duzentos grãos; nâo obstante, b e ira ^ g _ ca m in h p , e v ie ra m a s a v e s e a qualquer fazendeiro ficará satisfeito com com eram . 5 E outra p arte ca iu e m |u g a r es quarenta quilos colhidos de cada quilo pedregosos^ onde náu> h a v ia m u ita terra : e semeado. logo n a sceu , porque n ã o tin h a terra p ro ­ O versículo 9 aponta para a função, funda ; 6 m a s, sain do o so l, q ueim ou-se e, por não ter raiz, secou -se. 7 E outra caiu entre adequada dos ouvidos. Eles se,rvem para espinh os; e o s esp in h os c re sc e ra m e a sufoca ram . 8 M as outra ca iu e m b o a terra, e d ava fruto, um a c e m , outro ã sessen ta' e outro a trinta por u m . 9 Q uem te m ouvidos ouça.

32 H arold S. Songer, “Jesus” U se of Parables: M atthew 13’, Review and Expositor, LIX (outubro, 1962). p. 495.

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de desvendamento, e não uma descoberta humana; dom da graça de Deus, e não resultado dò trabalho do homem (cf. 11:25-27). Isto não acarreta necessaria­ mente a idéia de que Deus arbitrariamente se revela a alguns e nega a revela2) O Objetivo das Parábolas (13:10-17) ção a outros. Se assim fosse, o homem 10 E ch egand o-se a e le os discípulos, perseria reduzido a um ser passivo, anor­ gu n tara m -lh e: P or que lh e s fa la s por p a rá ­ mal, sem virtude nem culpa. O determibolas? 11 R espondeu-lhes J e su s: Porque a nismo exclui a responsabilidade de to­ vós é dado con h ecer os m isté r io s do reino dos, exceto daquele que exerce a deter­ dos céu s, m a s a e le s não lh es é dado; IZ pois ao que tem , d ar-se-lh e-á, e te r á e m ab u n ­ minação. Jesus não diz que Deus nega os dân cia: m a s ao que não tem , a té aquilo que seus mistérios a algumas pessoas, mas tem lh e será tirado. 13 P or isso lh e s falo por que o homem pode ouvir apenas porque parábolas; porque e le s , vendo, n ão v êe m ; e Deus falou. ouvindo, não ou vem n em en ten d em . 14 E n eles se cum pre a p rofecia de Isa ía s, que Algumas vezes Mateus parece abordar diz: uma doutrina de determinismo divino. Ouvindo, ou vireis, e de m a n eira a lgu m a mas se afasta dela, fazendo o homem en ten d ereis; responsável por sua própria culpa (Hare, e, vendo, v ereis, e de m an eira algu m a p. 150). Mateiís vê um homem dado ao p erceb ereis. 13 Porque o coração d este povo se en d u ­ “voluntarismo” , pelo qual ele pode en­ receu , trar no reino de Deus (19:17) ou recusare com os ouvidos oiw ira m tard iam en te, se a fazê-lo (23:37). e fecharãnT os blliòs, Jesus distingue entre aqueles a quem é para que não v e ja m com os olhos, dado conhecer e aqueles a quem não lhes n em ou çam com os ouvidos, n em en ten d am co m o coração, é dado, expresso em outros termos: ao n em se con vertam , e eu os c iv e . que tem e ao que não tem. Àquele que 16 M as b en i j,v en tu r a d o s os y o ss tem, mais pode ser dado, e daquele que porque v ê e m , e o s v o sso s ouvido s, porque não tem é tomado até o que ele tem. É ou vem . 17 P o is e m verd ad e v o s digo que m uitos p rofetas e ju sto s d eseja r a m v e r o claro que isto não pode ser considerado que v e d e s, e não o v ira m ; e ou vir o que literalmente, pois é impossível tomar ou vis, e n ão o ou viram . algo que a pessoa não tem. 0 princípio Inserida, entre a narrativa da parábola jnsinado é que Dei^s pode Jransm itir ps ' e a sua explicação, está uma di^ussaa ^eíTsliíèlhòfés dons apenas àqueles que acerca do prc^ósito das parábolas. Desta estão abertos para receber. Aqueles que ■forma, a parábola do semeador serve não tem è s ^ di^ôsição mergulham fun­ como introdução a todas as parábolas, do em sua cegueira e surdez. São como o solo endurecido, à margem do caminho, em adição à sua aplicação imediata. Mateus torna mais enfático o que onde a semente não pode penetrar e dar consta em Marcos 4:10-12, isto é, o fato fruto. Em Unguagem popular, alguns de que os discípula compreendem, mas_ “têm” e alguns não têm. Deus é que está os estranhos riaó.~Em Marcos a questão fia n d o , mas nem todos estão ouvindo. O 'girãTiimpleTmehte em torno das parábo­ CT^o_de se re ^ s ã r a ouvir é que a pessoa las, mas em Mateus a questão é por que ^ toima surda, da mesma forma como o Jesus fala em parábolas “ a eles” , presu­ prgço_da recusarem ver é a cegueira (cf. mivelmente não-discípulos (v. 10). Jesus Toão 9:39-41). responde que a compreensão dos misté­ No versículo 13, Mateus, de alguma rios do reino é algo dado, e não alcança­ forma, atenuou Marcos 4:12, empregan­ do. Isto é consentâneo com o ensino de do a conjunção porque (hoti), em vez do que a revelação é semprejim^^to divino. “para que” (hina) de Marcos. Ele tam­ ouvir. A pessoa que tem ouvidos tem a responsabilidade de ouvir. jDs ouyidQs_ são uma dádiva de Deus aos homens, mas ouvir se torna a responsabilidade do. homem. ,

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bém omitiu a frase “para que não se convertam e sejam perdoados” de Mar­ cos 4:12. A diferença pode não ser tão grande como parece, pois tanto hina como hoti podem denotar resultado ou propósito (18:16). Embora M ateus omita Marcos 4:12c, o equivalente aparece na longa citação de Isaías em 13:14 e s. Marcos faz eco com Isaías 6:9 e s., e Mateus o cita, seguindo a versão da LXX. A citação de Isaías e o seu tratamento, éxêcutãdõ esp^iUm ente por Marcos, e, em menor extensão, por Mateus, é aber­ ta para o^ignificado de que Deus deliberadamente fechail)s’õíividõs e olhos de alguns, de fqr^ma que eles sejam^ncapazes dejjuvir e v^er.,E sta posição ^ d 'e ser oposta à p rin c ip a lIn fS ê ' bíbGca, que retrata Deüs^orerécênaò luz ã"Tõdos os que desejarem recebê-la. Um ponto de vista determinista livraria o homem de toda a responsabilidade, virtude ou cul­ pa; mas este ponto de vista não é apoiado pela ênfase dominante em Marcos ou Mateus. Esta passagem difícil é melhor enten­ dida se a interpretamos dizendo que ela enfatiza a iniciativa _e a_ soberania__deDeus aq tratar com o homem. Se Deus íiâo abrir o caminho para o hôniêm ouvir e ver, o homem não pode fazê-lo. Deus se revela ao homem; não é o homem que descobre Deus. Mas a passagem vai um passo mais longe, em sua compreensão da cegueira humana em termos de provi­ dência divina, que tem o objetivo não de desculpar o homem, mas declarar a soberania de Deus. A lógica requer a conclusão de que, quando uma pessoa determina a condi­ ção de outra, toda a responsabilidade repouse sobre aquela que determina (su­ jeito), e não sobre a que é determinada (objeto). A lógica não pode escapar a isto. Mas Isaías 6:9 e s. e o seu emprego feito por Mateus devem ser entendidos em termos de intenção, sem forçar a lógica da declaração. Á parábola não pretende desculpar o Tiomem por ser

surdo ou cego, pois o chama à responsa-; bilidade jjor ouvir e ver. Á citação de Isaías fica pouco aquém de explicar a surdez e a cegueira como devidas à vontade de Deus. Ela descreve pessoas que ouvem palavras, mas não entendem, e que vêem, mas não perce­ bem. Corações que se endureceram e ouvidos que ouviram tardiamente descre­ vem a falta de receptividade, da parte do homem, à revelação de Deus. Não se diz gue Deus fechou os olhos de, certas pes-, soas, mas que elas fecharam os seu^ próprios olhos^ Esta é a rejeição da luz de Déiís, exercida pelo homem, e não uma predestinação divina, que fixa o destino do homem. ^ Os versículos 16 e 17 enfatizam o grande privilégio dos discípulos, pois eles agora vêem o cumprimento de tudo o que os profetas e justos desejaram ver. Vossos (humõn) é enfático no texto grego. A preocupação de Mateus pela retidão e expressa ü a sua escolha da palavra jus­ tos, enquanto Lucas 10:'24 grafa “reis” . Por detrás de Mateus 13:10-15 está Marcos 4:10-12, e possivelmentejo estudo mais bem feito desta passagem é o de joachim Jereriiias^^ Éle vê Marcos ^klT "e s. preservando um a antiga paráfrase palestina de Isaías 6:9 e s., semelhante ao Targum (tradução oral de textos he­ braicos para o aramaico). Aos discípulos _é confiado o segredo^mustérionl^do reino 'dos^eus7 uma dádiva da pura graça de Deus. Para os de fora tudo é apresentado em parábolas, isto é, em mistérios (musterion). Aqui “parábola” é usada no sentido de enigma, um dõs empregos da palavra hebraica mashal (cf. a antítese entre paroimia, dito marginal, e parresia, abertura ou abertamente, em João 16:25). Por enquanto, tudo está em enig­ mas, ou parábolas, para os de fora. O hina de Marcos (v. 12), “para que” , pode ser entendido como uma abreviatura de

33 The Parables of Jesus (ed. rev.; New Y ork; Scribners, 1963), p . 12-18.

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“a fim de que se cumpra” , referindo-se a Isaías 6:9 e s. Isto pode significar “ tendo em vista” ou “ resultando em” que a profecia de Isaías 6:9 e s. se cumpra. O mépote de Marcos (v. 12), geralmente vertido como “para que não” pode ser traduzido, de acordo com a exegese rabí­ nica de Isaías 6:10 (cf. Strack e Biller­ beck, I, 662 e s.): “para que seja que” eles se convertam, e Deus os perdoe. exegese rabínica entendia Isaías 6:10jiãd como uma ameaça dc estupor final, jn a s como uma promessa de conversão e per^ dão apoteóticos. Desta forma entendido, Marcos 4:12b é considerado como enten­ dendo Isaías 6:10b como promessa, e não ameaça. Mateus, atenuando e esclare­ cendo, edifica sobre Marcos 4:10-12. 3) A Parábola Explicada (13:18-23) 18 Ouvi, pois, v ó s a p aráb ola do se m e a ­ dor. 19 A todo o que ou ve a p a la v ra do reino e não a enten d e, v e m o M aligno e a rreb ata o que lhe foi sem ead o no c o r a ç ã o ; e s te é o que foi sem ea d o à b eira do cam in h o. 20 E o que foi sem ea d o nos lu g a res p ed regosos, e ste é o que ouve a p a la v ra , e logo a receb e com a leg ria ; 21 m a s não te m raiz e m si m esm o , a n tes, é de pouca duração; e , sobrevindo a an gú stia e a p erseg u içã o por c a u sa da p a la ­ vra, logo se esca n d a liza . 22 E o que foi sem ea d o entre os esp in h os, e s te é o que ouve a p a lav ra: m a s o s cu idad os d este m undo e a sed u ção das riq u ezas su fo ca m a p a la v ra , e e la fic a Infrutífera. 23 M as o que fo i s e m e ­ ado e m boa terra , e ste é o que ouve a p a lavra, e a en ten d e; e dá fruto, e um produz cem , outro se sse n ta , e outro trinta.

^Duas interpretações basicamente difere^^T^desS^pllavra são possíveisf Ela "pode ser vista como a parábola do semea­ dor, conforme aqui, ou como a parábola dos solos. A primeira interpretação enfa'fizá^ã^cõlEêita bem-sucedida, a despeito de todos os azares e oposições. Muitos eruditos entendem que inicialmente a parábola teve esta ênfase. Se a entende­ mos assim, Jesus nos dá a certeza de que o reino do céu prevalecerá sobre toda a oposição. A despeito de solo duro, pás­ saros, solo rochoso e espinhos, haverá uma colheita abundante. 198

Da forma como a parábola está, ela parece colocar a ^ênfase nas dijferentes espécies de solo, embora seja ainda co­ nhecida como a “parábola do semea­ dor” . Desta forma, a ênfase é dada à responsabilidade gue o homem tem de puyir. Os ouvidos foram feitos para ouvir' (13:9). Os que “não têm” , isto é, aqueles que não estão abertos para a palavra de Deus, perdem a sua capacidade de ouvir. Os “ que têm” , isto é, aqueles que são como a boa terra, abrem-se para a pala­ vra de Deus, e crescem em sua capaci­ dade para receber. Nesta segunda forma de vê-la, que é desenvolvida por todos os Sinópticos, quatro tipos de ouvintes são retratados. H T ^ ^ ^ d u re c i^ s , impenetráveis. Men­ tes, ouvídore^õiiiÕs estão fechados para as palavras e obras de Deus. Um segundo grupo é assemelhado aos lugares pedre­ gosos. São os que seguem a Jesus de maneira suçeríicialj^atraídos facilmente por benefícios exteriores, mas basica­ mente não dedicados ao Servo de Deus, cujo travesseiro é uma cruz. O terceiro grupo é como a semente entre os espi­ nhos. Eles têm um interesse sincero, mas também os cuidados deste mundo. Desta forma d iv id id ^ e distraídos, eles não se entregam basicamente a Jesus como seu Senhor. A boa terra tipifica aqueles que manifestam uma reação g e jn Ú M ^ p a l^ yra de De^us. Até”a ^ i ha diferenças, sendo aíguhs mais produtivos do que outros. O interesse de Mateus, em retratar os discípulos como pessoas que “entendem” , é expresso na introdução que ele faz deste termo em 13:19,23,51. Isto é especialmente claro em 13:23, onde M a­ teus usa as palavras o que ouve a palavra, e a entende, substituindo a expressão usada por Marcos: os que a “recebem” (4:20). Um dos objetivos de Mateus é enfatizar a compreensão que o discípulo tem da palavra dé Déus, enL contraste com a incompreensão farisaica. embora esta última não seja mencionada aqui.


2. Joio no Meio do Trigo (13:24-30) 34 P ropôs-lhes ou tra p aráb ola, dizendo: O reino d os c éu s é sem elh a n te a o h o m em que sem eou boa sem en te no seu c a m p o ; 25 m a s, enquanto o s h o m en s d orm iam , v elo o in i­ m igo d ele, sem eou joio no m eio do trigo, e retirou-se. 26 Quando, p orém , a e r v a c r e s ­ ceu e com eçou a e sp ig a r , en tã o a p a receu tamíbém o joio. 27 C h egaram , p o is, o s se rv o s do proprietário, e d isseram -]h e: Senhor, não se m e a ste no teu cam p o boa sem en te? D o n ­ de, p ois, v e m o joio? 28 R espondeu-lhes: A lgum in im igo é q u em fe z is so . £ o s se r v o s lhe d issera m : Q ueres, p o is, que v a m o s a r ­ rancá-lo? 29 M e , p orém , d isse : N ã o ; p ara que, ao colh er o joio, não arran q u eis com e le tam b ém o trigo. 30 D e ix a i c r e sc e r am b os juntos a té a c e ifa ; e , por o c a siã o d a ceifa , d irei a o s c e ife ir o s: A juntai p rim eiro o joio, e atai-o e m m olhos p a ra o q u eim ar; o trigo« porém , recolhei-o no m eu cele iro .

Esta parábola é peculiar a Mateus, aparecendo no lugar da parábola da se­ mente que cresceu por si mesma, conta­ da por Marcos (4:26-29). Pode-se obser­ var a cuidadosa fraseologia de forma que o reino dos céus seja semelhante a, e não que ele realmente seja como um homem semeando um campo (cf. 11:16; 18:23; 22:2; 25:1). O reino não é como um homem, um campo, etc., mas algo acer­ ca dessas coisas pode ser comparado com a experiência do fazendeiro com o trigo e ojoio (mas veja 13:31,33,44,45,47; 20:1). Joio (zizania) era um a das várias espé­ cies de ervilhaca ou cizirão (lolium temulentum) que cresciam na Palestina. Cres­ ciam juntamente com o trigo, e se pare­ ciam muito com ele. Eram mais facil­ mente distinguíveis quando “embone­ cavam", isto é, quando o grão aparecia no tempo da colheita. Mas a principal razão por que se deixava que o joio crescesse juntamente com o trigo é que deSãrraigar um seria arrancar o outro. Antigamente, bem como agora, os fazen­ deiros carpiam as suas roças; mas, nesta parábola, o fazendeiro excluiu esta pos­ sibilidade provavelmente porque era grande o número de pés de joio semeado deliberadamente por um inimigo. O homem que semeou o campo e o proprietário são a mesma pessoa. O apa­

recimento de joio (ervilhaca ou cizirão) em meio à boa semente é uma ameaça perene, mas sabotagem deliberada é coisa incomum. Visto que o proprietário havia semeado boa semente, isto é, limpa ou livre de joio, concluiu-se que um inimigo havia semeado a m á semente. Por ocasião da colheita, o joio deveria ser queimado, para que nâo lançasse semen­ tes ou “envenenasse” a terra para a pró­ xima colheita. Os servos não são culpa­ dos pelo fato de terem dormido; o ponto é que o inimigo se aproveitou dessa hora para a sua obra maligna. A interpretação da parábola se segue nos versículos 36-43. 3. Semente de Mostarda e Fermento (13:31-33) 31 P rop ôs-lh es outra p aráb ola, dizendo: O reino dos céu s é sem elh a n te a u m grão de m ostard a que u m h o m em tom ou, e sem eo u no se u cam p o ; 32 o qu al é r ea lm en te a m enor d e to d a s a s s e m e n te s ; m a s, d ep ois de ter crescid o , é a m a io r d as h o rta liça s, e faz-se árv o re, de sorte que v ê m a s a v e s do céu, e se an in h am n os se u s ram os. 33 Outra paráb ola lh e s d is s e : O reino dos céu s é sem elh a n te a o ferm en to que u m a m ulh er tom ou e m istu rou co m tr ê s m ed id a s de farin h a, a té fic a r tudo leved ad o.

Estas parábolas parecem formar um par, contrastando a magnitude e poder do reino dos céus com o seu aparente­ mente pequeno começo em Jesus, e que nada promete. De acordo com as expectações judai­ cas, o reino de Deus viria com poder tremendo e resultados catastróficos, der­ rubando os ímpios e vingando os justos. O fato de ele ter vindo na pessoa de um bebezinho, e ter-se manifestado em uma pessoa que rejeitou todos os métodos militaristas e que se considerava como o Servo Sofredor de Deus, era contrário às idéias extravagantes de muitas pessoas. Mas foi assim que o reino dos céus veio! Ele veio em um homem que se dedicou a coletores de impostos e a pecadores, e que começou a sua missão com uma mancheia de homens comuns. As pará­ bolas refletem a alegria e a confiança de Jesus na obra que ele está fazendo. 199


As duas parábolas aparentemente se juntaram em Q, fonte comum a Mateus e Lucas. Marcos contém apenas a pará­ bola da semente de mostarda, e não a do fermento. Concordâncias verbais entre Mateus e Lucas, no que eles diferem de Marcos, indicam que eles conheciam a parábola da semente de mostarda em Q, tanto quanto em Marcos. O contraste entre a pequenez da se­ mente de mostarda e o tamanho da plan­ ta que ela produziu era proverbial. Não é necessário forçar o texto para reconhecer o tamanho de ambas. Se deve ou não ser descoberto algum simboUsmo nos detalhes da parábola da semente de mostarda, ramos e pássaros, é coisa incerta. Possivelmente eles servem apenas para tornar mais vivido o quadro de uma grande planta derivada de mi­ núscula semente. Por outro lado, alguns eruditos cuidadosos descobrem o ponto principal exatamente aqui, observando que no judaísmo o fato de pássaros faze­ rem ninhos em árvores simbolizava a vinda dos gentios às bênçãos do reino (Ez. 17:3; 31:6; Dan. 4:12). Da mesma forma como os pássaros convergem para a sombra da árvore, procurando abrigo, assim também as bênçãos do reino de Deus são pintadas como disponíveis agora a todos os homens. Se isto é válido, o ponto principal ainda é válido. A parábola é de contrastes, do começo pequeno, com um pequeno grupo de pessoas comuns, para uma comunidade universal. A parábola do fermento também ensi­ na uma lição por contraste, embora a quantidade de fermento não tenha sido especificada, Ttês medidas de farinha seria cerca de cento e sessenta quilos de pão. Todavia, a maior ênfase é provavel­ mente a maneira íntima e transforma­ dora pela qual o fermento penetra na massa e a transforma. O reino não vem 34 C. H . D odd, The Parables of the Kingdom (ed. rev.; New Y ork, Scribners, 1936), p. 190 e s. Cf. T . W . M anson, Teaching of Jesus (C am bridge, 1935), p. 133, N « l.

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como um espetáculo sensacional, ou com poderes mundanos. Vem com força revo­ lucionária, sim, mas transformando de dentro para fora. Ambas as parábolas, a do grão de mostarda e do fermento, enfa­ tizam o poder miraculoso do reino de Deus, a maravilha do poder criativo de Deus, a partir dos começos menos pro­ metedores, produzindo resultados tão grandes (J. Jeremias, Parables, p. 148). No Velho Testamento e em outras partes do Novo, o fermento é um símbolo do m al(cf. 16:6,11 e s.), mas essa inter­ pretação parece impossível aqui. Nesta parábola, o fermento conquista toda a massa de farinha, e Jesus não estava ensinando o triunfo do mal. É o reino dos céus, e não o mal, que trabalha como fer­ mento. 4. O Uso das Parábolas (13.34,35) 34 T odas e sta s c o isa s falou J e su s à s m u l­ tid ões por p ará b o la s, e se m p aráb olas nada lh e s fa la v a ; 35 p ara qu e s e cu m p risse o que foi dito pelo p r o fe ta : A brirei e m p ará b o la s a m inha, b o c a ; p u b licarei c o isa s o cu lta s d esd e a fundad ação do m undo.

A fórmula de conclusão indica que, em certo estágio, uma coleção de parábo­ las terminava aqui, sendo o versículo 51 uma segunda fórmula para marcar a conclusão de coleção mais ampla, feita por Mateus. O fato de terem existido coleções anteriores, das palavras tanto quanto das obras de Jesus, é explícito em Lucas 1:1-4 e expresso em passagens como esta. Não houve nenhum período de silêncio entre a época de Jesus e a em que os Evangelhos foram completados. Pelo contrário, houve uma tradição não interrompida — oral, e depois escrita — em que os materiais eram recordados, recebiam melhor forma e foram preser­ vados. A declaração de que Jesus sem pará­ bolas nada lhes falava deve aplicar-se apenas a uma dada situação, como aqui, e não a todo o seu ministério didático, pois freqüentemente ele ensinava sem usar parábolas. Embora parábola possa


representar “um dito obscuro” , isto é, algo compreensível apenas para o inicia­ do, (cf. 13:11-13; João 16:25, embora aqui a palavra seja paroimia, e não parabolé), no versículo 34 e s. dá-se a enten­ der que ela é algo compreensível. As coisas que outrora estavam escondidas agora são proclamadas, e não ocultas. Isto sustentaria as evidências encontra­ das algures de que Jesus ensinou recor­ rendo a parábolas, para ser melhor en­ tendido, e não para velar os seus ensinos. O profeta pode referir-se ao salmista, pois o versículo 35 é citação de Salmos 78:2. O título de Salmos 78 é “Maskil de Asafe” , e, em I Crônicas 25:1, os filhos de Asafe foram separados para “profeti­ zarem com harpas, com alaúdes, e com címbalos” . Jerônimo parece ter conheci­ do manuscritos que tinham o nome de “Asafe” , mas nenhum desses manuscri­ tos foi preservado. Muitos manuscritos antigos e dignos de confiança grafam “por Isaías” , persuadindo Hort acerca da originalidade dessa variante textual. O profeta, referindo-se ao salmista, é provavelmente a tradução correta, mas o assunto não está encerrado. 5. Parábola do Joio Explicada (13:36-43) 36 E ntão J esu s, d eixan d o a s m u ltid ões, entrou e m c a sa . E ch eg a ra m -se a e le os se u s discípulos, dizendo: E xp lica -n o s a p arábola do joio no cam p o. 37 £ e le , respondendo, d is s e : O que se m e ia a boa se m e n te é o FUlio do h om em ; 38 o cam p o é o m undo; a boa sem en te sã o os fUhos do rein o; o joio sã o os filhos do m a lig n o ; 39 o in im igo que o sem eou é o D iab o; a c eifa é o fim do m undo; e os ceifeiro s sã o os an jos. 40 P o is a s s im com o o joio é colhido e queim ado no fogo, a ssim será no fim do m undo. 41 M andará o F ilho do h om em os se u s anjos, e e le s a juntarão do seu rein o todos o s que se r v e m de trop eço, e os que p raticam a iniqüidade, i 2 e lançá-losão n a fornalha de fogo; a li h a v er á choro e ranger d e d en tes. 43 E n tão os ju sto s r e s ­ pland ecerão com o o so l, no reino d e seu F a i. Quem tem ouvidos, ouça.

Esta parábola é interpretada e aplica­ da, ponto por ponto, de maneira alegó­ rica. O estilo do texto é tipicamente de

Mateus. O principal ensinamento é que a separação entre os que praticam a iniqüidade e os justos vai acontecer no fim do mundo (fim ou consumação do século), e não antes. Desta forma parece que o juízo é adiado, mas certo. Este é um lembrete, para os discípulos impa­ cientes, de que Deus tem a sua maneira peculiar de julgar os ímpios e vingar os justos, e não vai aceitar nenhuma pressão para adotar qualquer outro método ou cronograma, nem para uma nem para outra coisa. O contraste entre os que praticam a iniqüidade, na verdade, “fora da lei” (anomia, cf. também 7:23; 23:28; 24:12) e os justos, apoia a grande preocupação de Mateus de mostrar que Jesus rejeitou não apenas o legalismo farisaico, mas também o antinomianismo ou ilegalida­ de. As exigências morais não são sacrifi­ cadas por um evangelho de salvação pre­ gado como dádiva da misericórdia de Deus. Pode ser observado, ainda mais, que, para Mateus, o mundo é o campo de trabalho missionário, e não apenas a nação de Israel (cf. 28:19, bem como 10:5; 15:24). O fim do mundo (cf. 28:20) é a consumação do século, quando a história for levada ao seu alvo final. Tanto o julgamento como a salvação são realidades presentes, mas a completação de cada uma delas pertence à con­ sumação do século. É possível que.esta parábola servisse para alertar a Igreja contra a exclusão apressada de membros que causassem problemas na comunidade. Jesus não expulsou Judas de entre os doze, embora soubesse da sua traição antes de Judas agir para traí-lo. Mais provavelmente, contudo, a preocupação da parábola é a impaciência dos que desejavam que Deus agisse imediatamente em juízo externo e final dos maus, e recompensa dos justos. Duas razões-são apresentadas para adiar 35 Cf. Jerem ias, Parables (p. 81-85), p a ra verificar estilo e significado.

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a “capina” até a colheita: (1) para que o bom não fosse arrancado com o mau, e (2) porque Deus marcou um fim dos tempos para tal separação. Quando o homem tenta assumir a função de Deus como juiz, ele tanto desobedece a Deus como arrisca-se a confundir o bom com o mau. 6. Tesouro Escondido e Pérola Cara (13:44-46) 44 O reino dos céu s é sem ellia n te a um tesouro escondido no cam p o, que u m liom em , ao descobri-lo, esco n d e; entáu>, m o v i­ do de gozo, v a i, ven d e tudo quanto tem , e com pra aq u ele cam po. 45 O utrossim , o reino dos c é u s é sem elliante a um n egocian te que b u sc a v a b oas p érolas; 46 e, encontrando u m a pérola de grande vaior, foi, ven d eu tudo quanto tiniia, e a com prou.

Estas parábolas gêmeas apresentam o mesmo ensino básico: a alegria ocasiona­ da pelo irromper do reino de Deus (J. Jeremias, Parables, p. 201). Juntamente com a alegria há lições correlatas intima­ mente. O privilégio de viver sob o gover­ no de Deus, o reino dos céus, é uma alegria, um gozo que vale a entrega de tudo o mais. Esse jubiloso privilégio não apenas vale tudo, mas também custa tudo. Paradoxalmente, a salvação é grá­ tis, mas custa tudo (cf. 10:37-39). A pessoa precisa vender tudo o que tem para possuir o tesouro ou a pérola de grande valor. As parábolas são uma con­ clamação à decisão. O reino veio em Jesus, e é o maior bem, a coisa de maior valor. A pessoa terá esta alegria se estiver disposta a deixar tudo e seguir a Jesus. Possivelmente há um ensinamento ulterior, se focalizarmos a diferença en­ tre o encontro acidental do tesouro es­ condido e a descoberta da pérola valiosa apenas ao fim de longa procura. Isto pode sugerir que algumas pessoas encon­ tram o reino sem procürá-lo, enquanto outros primeiramente o procuram. Se as parábolas devem ser levadas a este ponto de interpretação, não pode ser determi­ nado. Preço incalculável, a alegria da 202

posse, a disposição para abrir mão de tudo o mais em favor do reino, e uma conclamação à decisão, parecem ser as lições destas parábolas. A parábola do tesouro escondido não trata da ética do homem que comprou o campo sem infor­ mar o antigo possuidor acerca do tesouro ali escondido. Jülicher (II, p. 581-85) há muito tempo já mostrou o perigo de tentar tirar lições morais dos detalhes de cada parábola. 7. Rede e Separação dos Peixes (13: 47-50) 47 Ig u a lm en te, o rein o dos céu s é sem eiiiante a u m a red e la n ça d a ao m ar, e que apaniiou toda e sp é c ie d e p eix e s. 4g E , quan­ do clieia, p u xaram -n a p a ra a p ra ia ; e , sen ­ tando-se, p u sera m ós bons e m cesto s; os ruins, p orém , la n ça ra m fora. 49 A ssim se rá no fim do m u n d o : sa irã o os anjos, e se p a r a ­ rão os m a u s dentre os ju sto s, 50 e lançá-losão n a forn alh a de fogo; a li iia v erá choro e ranger de den tes.

Esta parábola pode ser emparelhada com a do joio em meio ao trigo, cada uma delas ensinando que o juízo é adiado exteriormente, mas certo. A rede (sagènê) é uma rede de arrasto ou aTrastão. Ela é puxada entre dois barcos, ou levada por um sò barco, e puxada para a mar­ gem com cordas. Nesse tipo de pesca, todas as espécies de peixes são pescadas juntas, tendo lugar a separação de espé­ cies só depois que a rede é arrastada para a praia. Bons (kala) e ruins (sapra) refe­ re-se a peixes comestíveis e não-comestíveis, como era determinado pelo gosto ou pela lei judaica. Os judeus eram proi­ bidos de comer animais marinhos, a não ser que tivessem barbatanas e escamas (Lev. 11:9-12). Na aplicação, deve ser verificado que o reino não separa exteriormente o que é bom e o que é ruim, nesta vida. _Deus manda indiferentemente o sol e a chuva sobre ambos (5:45), e as circunstâncias materiais e físicas deles podem não ex­ pressar a sua verdadeira condição para com Deus. Somente no fim do mundo será feita a separação visível. Nesse tem­


po, tanto o juízo como a redenção serão completados. A aplicação imediata pode ter sido feita para a Igreja da época de Mateus. A comunidade de Qumran havia conside­ rado a si mesma como santuário vivo, uma esfera de santidade em agudo con­ traste com o resto do mundo, que os essênios pensavam estar corrompido (Betz, p. 98). Jesus clamou por pureza e retidão, muito mais do que Qumran, todavia, não forçou Judas a sair do cír­ culo dos doze. Dodd acha que o objetivo da história é que, da mesma forma como, ao pescar com rede, üma pessoa não pode escolher o seu peixe, mas precisa esperar um resultado misto, também os “pescadores de homens” precisam estar preparados para lançar as suas redes largamente sobre o campo da sociedade humana, acarretando a missão de Jesus um apelo indiscriminado a homens de todas as classes e todos os tipos (Parables, p. 188). 8. Tesouros Novos e Velhos (13:51,52) 51 K n ten destes tod as e sta s co isa s? D isseram -llie e le s : E n ten d em os. 52 E dissellie s í P or isso , todo escrib a que s e fez d is c í­ pulo do reino dos céu s é sem ellia n te a um liom em , proprietário, que tira do seu te ­ souro co isa s n ovas e v ellia s.

Este pequeno parágrafo capta muito da ênfase de Mateus. O discípulo é con­ siderado como escriba cristão (cf. 8:19; 23:34). Da mesma forma como Jesus não veio para abolir a Lei e os Profetas, mas para cumpri-los (5:17), os seus discípulos devem conservar os tesouros encontrados nos ensinamentos de Jesus. Já foi suge­ rido que Mateus pode estar expressando, aqui, a compreensão que tinha acerca do seu papel pessoal (Bacon, p. 131). Na analogia, o proprietário é visto como alguém que está preparado para cuidar de sua família ou de seus hóspe­ des, lançando mão de bens tanto velhos como novos. Espera-se que o escriba cristão seja capaz de satisfazer às neces­ sidades dos seus ouvintes com verdades tiradas da herança de Israel e de Jesus.

VIII. Rejeitado na Terra Natal, Mas Popular com as Multi­ dões (13:53 — 14:36) 1. Rejeição em Nazaré (13:53-58) 53 E J e su s, tendo concluído e sta s p a rá ­ b olas, se retirou d ali. 54 E , ch egan d o à su a terra, e n sin a v a o p ovo n a sin a g o g a , d e m odo que e ste se m a r a v ilh a v a , e d izia: D onde lhe v e m e sta sab ed oria, e e s te s pod eres m ila ­ grosos? 55 N ão é e ste o filho do carpinteiro? e não se c h a m a su a m ã e M aria e se u s ir ­ m ã o s T iago, J o sé , S im ão e Ju d as? 56 E não estã o en tre nós tod as a s su a s irm ã s? Donde Uie v e m , p ois, tudo isto ? 57 E escan d alizav a m -se d e le . J e su s, p orém , lh es d isse: U m p rofeta n ão fic a se m honra sen ã o n a su a terra e n a su a própria c a sa . 58 E não fez ali m uitos m ila g r es, por c a u sa da in cred u li­ dade d ele s.

No versículo 53 aparece pela terceira vez a fórmula sumária que Mateus usa cinco vezes, cada uma delas marcando o fim de um discurso principal (cf. 7:28; 11:1; 19:1; 26:1). Nesta altura, Mateus volta à ordem de Marcos, e segue-a até o fim de Marcos. Na sua terra (patris) provavelmente se refere a Nazaré, embora isto não esteja explícito aqui, nem no paralelo em M ar­ cos 6:1-6. Lucas (4:16-30) identifica o lugar como sendo Nazaré, e faz desta a narrativa básica, contra a qual estabelece a natureza do ministério de Jesus e as bases para o seu conflito com o seu próprio povo. Em todos os três Sinópti­ cos, a experiência da rejeição nas sina­ gogas de Nazaré prefigura a rejeição final e crucificação de Jesus (17:12). Qualquer homem judeu podia ser con­ vidado a ensinar em uma sinagoga. Ensi­ nava (edidasken) é tradução de um tem­ po imperfeito grego, e pode dar a enten­ der que Jesus ensinou em mais de uma ocasião nessa sinagoga. Este ponto de gramática não precisa ser enfatizado, pois poderia descrever nada mais do que o processo de ensinar em uma só reunião. Os habitantes da cidade não estavam preparados para tanta sabedoria em uma pessoa que havia crescido entre eles. Os 203


poderes milagrosos podiam ser os exer­ de Marcos, deixando aberta a questão se cidos em outro lugar (cf. caps. 8 e 9) e Jesus fora incapaz ou não quisera fazer coisas de que eles tivessem apenas ouvido obras milagrosas em face da increduli­ falar (Luc. 4:23), pois em Nazaré ele não dade. Se não quis, foi porque ele não fez muitos milagres (v. 58). fazia milagres a fim de compelir as pes­ Os aldeões ponderavam acerca da fon­ soas à fé ou para satisfazer à curiosidade. te de sabedoria e do poder de Jesus, “Ele não fez com que o poder de Deus pensando nele apenas como o filho do servisse à incredulidade do homem nem carpinteiro, cuja humilde família vivia procurou vencê-la pela força” (Schlatter, entre eles. “Carpinteiro” é tradução de op. cit., p. 226). tektõn, um termo que se refere a alguém 2. A Morte de João Batista (14:1-12) que trabalha com madeira ou pedra. Em Marcos (6:3), Jesus é chamado “o car­ 1 N aq u ele tem p o H erodes, o tetra rca , pinteiro, filho de M aria” . Mateus regis­ ouviu a fa m a de J esu s, 2 e d isse a o s seu s tra os aldeões chamando-o de o filho do co rtesã os: E ste é João, o B a tista ; e le r e s ­ su scitou dentre os m o rto s, e por isso e ss e s carpinteiro. Tanto José como Jesus de­ poderes m ila g ro so s op eram n ele . 3 F o is viam ter sido “carpinteiros” . Ao chamar H erodes h a v ia prendido a João, e , m a n ia ­ tando-o, o gu ard ara no c á rcere, por ca u sa Jesus de filho do carpinteiro, Mateus não de H erodias, m u lh er de seu irm ão F ilip e ; 4 contradiz o seu relato, dando Jesus como porque J o ã o lh e d izia: N ão te é licito posnascido de uma virgem (1:23). Não era su i-la. 5 E qu eria m a tá -lo , m a s te m ia o costume os judeus identificar um filho, povo; porque o tinham com o profeta. 6 F esmencionando sua mãe. tejan d o-se, p orém , o d ia n ata lício de H ero­ Não há razão para entender irmãos e d es, a fUha d e H ero d ia s dançou no m eio dos con v iv a s, e agrad ou a H erod es, 7 pelo que irmãs de qualquer forma que não seja a e ste p rom eteu , co m ju ram en to, dar-lhe tudo normal. Depois do nascimento de Jesus, o que p ed isse. 8 E , in stig a d a por su a m ã e, Maria viveu com José e deu à luz filhos e d isse e la : D á-m e aqui n um prato a ca b eça de João, o Batista.. 9 E n tristeceu -se, então o filhas. A tendência teológica no segundo rei; m a s, por ca u sa do ju ram en to, e dos que século começou a inventar histórias que esta v a m á m e sa com e le , ordenou que se lhe atribuíam esses filhos a um casamento d esse, 10 e m andou d eg o la r a João no c á r ­ anterior de José, procurando, desta for­ cere; 11 e a c a b eça foi trazid a num prato, e ma, construir possibilidades para afir­ dada à jo v em , e e la a levou a su a m ã e . 12 E ntão v ier a m o s seu s d iscíp u los, lev a ra m mar a virgindade perpétua de Maria (cf. o corpo e o se p u lta r a m ; e foram anunciá-lo The Protoevangelium of James). Esses a J esu s. filhos não eram irmãos adotivos ou pseudo-irmãos, nem primos de Jesus. A morte dé João é relatada não por si Eram meio-irmãos e meio-irmãs. própria, mas por causa do seu relaciona­ A família de Jesus, bem como os al­ mento com os atos de Jesus, e como uma deões parecem não tê-lo apoiado em seu prefiguração do destino de Jesus. Até a ministério. Só depois de sua morte e liistória do martírio de João é levada a ressurreição eles começaram a entendê-lo servir ao interesse primário, do Evange­ (12:46-50; João 7:5). Os aldeões escan­ lho, em Jesus. A fama de Jesus fez com dalizavam-se dele, com aparente inveja e que Herodes Antipas, tetrarca da Gali­ ressentimento. Lucas expõe o fato de que léia e Peréia (4 a.C. a 39 d.C.), se lem­ a descrição que Jesus fez de sua missão brasse de João Batista. O paralelo aue moveu-os a até lançá-lo fora da sinagoga havia entre os dois estava na sua mensae a tentar matá-lo (4:16-30). gem profética, pois Joâo não fêãlizava Por causa de incredulidade em Naza­ milagres (João 10:41). Pode ser qué~l ré, Jesus não tez ali muitos milagres (isto ' “’Herodes realmente crera que João ressus- / preserva a ambigüidade do original gre­ citara dentre os mortos, mas provável-/ go). Mateus suaviza o “não podia fazer” mente ele queria dizer que a mensagemj 204


profética de Jesus era como ouvir João \ que o fascinou (cf. Dietrich, p. 86). outra vez. •— ^ Herodes, sob juramento, fez uma pro­ A execução de João, por Herodes An­ messa apressada à filha de Herodias. Quando o pedido veio de mãe e filha para tipas (filho de Herodes, o Grande, e sua esposa samaritana Malthace), é relatada que lhes fosse dada a cabeça de João por Josefo (Antig. XVIII:5), bem como Batista num prato (isto é, prato da me­ por Marcos (6:14-29), Lucas (9:7-9) e sa), ele verificou que havia caído numa Mateus. Em detalhes insignificantes, armadilha. Cheio de medo e suspeita, ele ninguém foi capaz de fazer a plena cor­ deplorou um juramento feito na presen­ relação destas narrativas. A principal ça dos ■seus hóspedes. Os temores de dificuldade surge em conexão com o relaHerodes eram muitos: ele temia João; cíõnamento entre Herodias e (Jlerodes temia o povo, que considerava João como profeta; temia quebrar aquele juramento Filipe^ Josefo diz apenas que Herodes ^SÊpas se casara com a esposa de seu iníquo; temia voltar atrás perante os seus irmão Herodes. Marcos e Mateus cha­ hóspedes; e temia a sua astuta esposa__ mam-no de Filipe, embora alguns ma­ ^Herodias (Filson, p. 169). O fraco rei nuscritos importantes não incluam o honrou o seu juramento, e fez com que nome Filipe em Mateus 14:3. Josefo diz João fosse decapitado, embora a lei que Salomé, filha de Herodias, casou-se judaica proibisse a execução de um ho­ com Filipe, meio-irmão de Antipas. mem sem um julgamento prévio, e não Pelo menos isto é claro, considerando- permitisse a decapitação. Herodes seguiu se todos os relatos: (^Herodês~AiitipaS') o costume romano, e não o judaico. Contudo, as recordações ck João conticasou com Herodias, esposa de um de niiargjTi a a ^ s n m h r a r n vp.lbf) rp.i. seus irmãos, e mais tarde executou João Batista (em Maqueros, perto do M ar Os problemas históricos e inconse­ qüentes, e os detalhes sanguinolentos Morto, de acordo com Josefo). A primei­ acerca de ações da família herodiana não ra esposa de Antipas era filha de Aretas, nos devem distrair das lições perenes rei de Nabatéia. Em uma visita a Roma, ele apaixonou-se por Herodias, esposa do desta passagem: a integridade profética seu irmão (Filipe, de acordo com M ar-_ de João e de Jesus debaixo das pressões cos; Boethus, nas demais fontes). Divor­ mais severas, a santidade do casamento, que nunca pode ser transigida impune­ ciou-se de sua primeira esposa e casou-se com a esposa de seu irmão, contrariando mente, e o relacionamento entre os discí­ a lei judaica (Lev. 18:16: 20:21). pulos e o Mestre, tanto na vida como na João condenou o casamento adúltero morte. do rei, e fê-lo na cara. Possivelmente, 3. Os cinco Mil Alimentados (14:13-21) Antipas havia chamado João para com­ parecer em sua presença, pensando que 13 J e su s, ouvindo isto , retirou-se dali num ele então se retrataria do que havia fala­ barco, p a ra u m lu g a r d eserto , à p a rte; e, do (o tempo do verbo, no v. 4, indica quando a s m u ltid ões o sou b eram , segu iram repetidas acusações). João não vacilou. no a p é d esd e a s cid a d es. 14 E e le , ao d e se m ­ barcar, v iu u m a grande m u ltid ão; e, com Antipas queria matá-lo. mas temia o p ad ecen d o-se d ela , curou os se u s e n fer­ povo. Josefo (XVIII, 5,2) escreveu que m os. 15 C hegada a tard e, ap roxim aram -se Antipas queria m atar João porque temia d ele os se u s d iscíp u los, dizendo: O lu g a r é que ele instigasse o povo a uma revolta. deserto, e a hora é já p a ssa d a ; desp ed e as Pode ser aue Antipas temesse deixar Joãg m u ltid ões, p a ra que v ã o à s a ld e ia s, e co m ­ p rem o que co m er. 16 J e su s, porém , lh es vivo, tanto quanto executá-lo.^ d isse : N ão p r e cisa m ir em b ora ; d al-lh es vós Por ocasião da celebração de um ani­ dé co m er. 17 E n tão e le s lh e d issera m : N ão versário seu, provavelmente depois de tem os aqui sen ão cin co p ã e s e dois p e ix es. 18 muita bebida, e assistindo a uma dança E e le d isse : T razei-m os aqui. 19 Tendo m a n ­ 205


dado à s m u ltid ões que se recU n assem sobre a relv a , tom ou os cin co p ã es e os dois p eix es, e, erguendo os olhos a o céu , o s abençoou; e, partindo os p ã e s, deu-os a o s d iscip u lo s, e os d iscip u los à s m u ltid õ es. 20 Todos c o m e ­ ram e se fa rta ra m ; e dos p ed a ço s que so b e ­ ja ra m lev a n ta ra m doze cesto s ch eios. 21 Ora, os que co m era m foram c e r c a de cin co m il h om ens, a lé m de m u lh eres e crian ça s.

Esta é a única história milagrosa que aparece em todos os quatro Evangelhos (cf. Mar. 6:35-44; Luc. 9:10-17; João 6:1-14). Marcos (8:1-9) e Mateus (15: 32-38) contêm ainda uma história semelhante, acerca da alimentação de quatro mil pessoas. O ter Jesus alimen­ tado as multidões era de suprema impor­ tância para a igreja primitiva. Isto é atestado pelo fato de estas histórias esta­ rem arraigadas tão profundamente na tradição e serem contadas com tanta fre­ qüência. Para o Evangelho de João, este é um dos principais sinais, seguido por um extenso discurso de Jesus como Pão da Vida (6:1-71). A compaixão de Jesus pelo povo fa­ minto é a preocupação mais óbvia por detrás do milagre e do seu relato. Embo­ ra Jesus se recusasse a usar poder mira­ culoso para satisfazer a sua própria fome (4:2-4), ele se preocupava ativamente com as necessidades materiais e físicas das outras pessoas. Seja o que for, além disso, que esse milagre dê a entender, esta compaixão de Jesus não pode ser obscurecida sem causarmos grave injus­ tiça à intenção da história. Os milagres na natureza são mais difí­ ceis para a mente moderna do que os de cura, porque os fatores psicológicos são excluídos. A questão básica com respeito aos milagres na natureza não se relaciona com o poder que Deus tem para operar esses milagres. A fé não pode colocar limites ao poder de Deus. A questão mais difícil relaciona-se com a encarnação. A interrogação freqüentemente feita é: “Será que esses milagres dão a entender que o Verbo realmente não se tornou carne?” Duas observações podem ser fei­ tas, como resposta. Primeiro, que o 206

ministério da encarnação está além de qualquer explicação. A fé cristã pode simplesmente afirmar, e não explicar, aquele que era plenamente homem, e, não obstante, “Deus conosco” . Segundo, o emprego de poderes feito por Jesus, além dos poderes conhecidos, de outra forma, como humanos, operava-se por amor de outras pessoas, e não para esca­ par aos limites da encarnação que ele mesmo se impôs. • O significado da alimentação dos cinco mil vai além da compaixão de Jesus, embora esta seja básica. Uma clara indi­ cação do simbolismo encontrado no milagre é descoberta em Marcos 6:52 e 8:17-21, e em Mateus 16:8-11. No Evan­ gelho de João (6:1-71), este é assunto de Jesus faz, a^esentondo-se como Pão-da. vida. Da mesma forma como .Teais dav-a pão material para o coroo, ele veiojtara transmitir o pão mais elevado, o da vida eterna. Em Mateus, como nos outros Evange­ lhos emprega-se uma linguagem expres­ siva da Ceia do Senhor. As palavras tomou, abençoou, partiu e deu, perten­ cem também à hnguagem da Ceia do Senhor. Embora possa haver alguma alusão em Mateus, e uma ainda mais forte em João, à Ceia do Senhor, e ao “banquete escatològico” além dela, esta alusão tem sido grandemente exagerada no estudo do Novo Testamento. Os Si­ nópticos não enfatizam isto, e é grande­ mente questionável o fato de que João o faça. Todas as refeições judaicas eram sagradas, e os termos tomar, abençoar, partir e dar são normais para o conviva em qualquer refeição judaica. Quando Jesus disse que a pessoa pre­ cisa “comer a carne do Filho do homem e beber o seu sangue” , os discípulos acha­ ram que aquele era um “ discurso duro” , e “muitos dos seus discípulos voltaram para trás e não andavam mais com ele” (João 6:53,60,66). Eles não voltaram atrás por causa das exigências para que comessem da Ceia do Senhor no ban­


quete messiânico! Foi da cruz que eles fugiram. A “Eucaristia” não deve ser entendida em João 6, e depois dali ser lida com este significado em Mateus 14:13-21. Doze cestos cheios enfatiza a abundân­ cia de alimentos propiciada por .Jesus ao povo. Doze provavelmente expresse o fato de a ^ u ltid ã o ter sido servida pelos doze apóstolos, cada um com uma cesta. Depois que todos haviam sido servidos, cada cesta ainda estava cheia. Outra possibilidade é que, na verdade, não tivessem sido usadas cestas, mas a quan­ tidade de pão que snhrnu daria para encher doze cestas. Os pedaços que sobe­ jaram não eram migalhas deixadas pelos ai^ haviam comido, mas os pedaços que caíram das mãos de Jesus enquanto ele quebrava os pães. 4. Pedro Resgatado da Tempestade (14:22-33) 22 Logo e m seg u id a obrigou o s se u s d is c i­ pulos a entrar no barco, e p a ssa r adiante d ele p a ra o outro lado, enquanto e le d e sp e­ dia a s m u ltid ões. 23 T endo-as despedido, subiu ao jn o n t« p ara orar à p a rte. Ao a n o ite­ cer, e sta v a a li sozinho. 24 E n trem en tes, o barco já esta v a a m u ito s está d io s da terra, açoitad o p ela s ond as; porque o vento era contrário. 25 À q uarta v ig ília d a n oite, foi J esu s ter com e le s , andando sobre o m a r. 26 Os d iscíp u los, p orém , ao vê-lo, andando sobre o m a r, a ssu sta ra m -se e d isse ra m : Éum fan tasm a! E grita ra m de m edo. 27 J esu s, p orém , im ed ia ta m en te lh e s falou, dizendo; T ende â n m o ; sou eu ; n ào tem a is. 28 R espondeu-lhe P ed ro : Senhor! se é s tu, m anda-m e ir ter contigo sobre a s á g u a s. 29 D isse-lh e e le : V em . P ed ro, d escen d o do barco, e andando sobre a s á g u a s, foi ao encontro de J esu s. 30 M as, sentindo o vento, teve m ed o; e , com eçan d o a su b m ergir, clam ou : Senhor, sa lv a -m e. 31 Im ed ia ta ­ m ente esten d eu J e su s a m ã o , segurou-o, e d isse-lh e: H om em de p ouca fé, por que duvidaste? 32 E logo que su b iram p ara o barco, o vento cesso u . 33 E n tão os que e s t a ­ vam no b arco adoraram -no, dizendo: V er­ dadeiram en te tu é s F ilho de D eu s.

SÓ João fala dos esforços abortados dos discípulos para tomar Jesus “pela força

para fazê-lo rei” (6:15), mas Mateus expressa a mesma coisa, ao dizer que Jesus obrigou os seus discípulos á entrar no barco e a precedê-lo na ida ao outro lado do lago (Galiléia), enquanto ele despedia as multidões. Aparentemente, as multidões encontraram, na alimenta­ ção miraculosa, um encorajamento para crer que Jesus iria tornar-se o seu liber­ tador nacional — Messias em sentido político. Desde que a multiplicação dos pães aconteceu quando se proximava a Páscoa (João 6:4), a celebração anual da libertação do Egito, as esperanças de uma nova libertação, agora do poderio de Roma, estavam acesas. Parece que os doze estavam encorajando as multidões para proclamar Jesus como rei. Por isso foi que ele primeiro precisou forçá-los a entrar no barco, para afastá-los das mul­ tidões, a quem ele dispersou. Não sfendo compreendido pelas multidões nem pelos discípulos, Jesus, então, subiu ao monte para orar. 36 O fato de os discípulos terem sido pegos no meio do lago em uma tempes­ tade durante a quarta vigília da noite (pelo método romano de contagem de tempo: 3h às 6h) sugere que eles não haviam feito muito progresso, não tendo se distanciado muito da cena do milagre, antes de começarem a remar através dõ^ lago. Isto pode implicar que eles estavam perturbados com a recusa de Jesus em se tornar “rei” . O lago tem cerca de doze quilômetros de largura. O medo dos discípulos e o pedido apressado de Pedro, acompanhado de medo, e a sua pouca fé, não consistem em cumprimentos aos discípulos. Este quadro da fraqueza dos discípulos, e até de Pedro, sublinha a integridade dos Evangelhos. Os apóstolos, e em parti­ cular Pedro, são considerados; não obs­ tante, os relatos não obscurecem os seus

36 Cf. W illiam Hersey Davis, Davis^ Notes on Matthew (Nashville: B roadm an; 1962), p. 59 e s.

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fracassos e falhas. Jesus foi adorado como Filho de Deus. Em Mateus este título articula a mais elevada fé dos discípulos (cf. 16:16) e é usado por Jesus acerca de si mesmo (26:63 e s.; cf. 11:27; 24:36). Embora a perfeição seja o requi­ sito feito a todos (5:48), ela é encontrada apenas em Jesus. Sou eu (egõ eimi) é a mesma expressão grega tão freqüente­ mente usada para designar a divindade (Êx. 3:14; João 6:35; 8:12,58; et al.). A intenção de Mateus é descrever um milagre ou um aglomerado de milagres: Jesus andando sobre as águas, Pedro andando sobre as águas e a tempestade sendo acalmada. Andando sobre o mar não deve ser explicado como andar na praia próxima ao mar. É verdade que a frase grega empregada no versículo 26 (epi tes thãlassês) poderia referir-se ao fato de Jesus andar perto ou à margem do mar, mas as evidências em contrário são fortes demais para permitir esta interpretação. Toda a história e os seus muitos detalhes dão a entender algo mais do que simplesmente andar na praia ou na margem. A pessoa pode crer na histó­ ria ou descrer mas um a exegese compe­ tente não pode explicá-la como se ela devesse ser entendida de maneira dife­ rente do que um milagre. Desde os tempos mais primitivos, a igreja tem tirado desta história a lição de que Cristo vem ao seu povo nas tempes­ tades da vida, para livrá-lo. Parece que Mateus tinha um a coleção de histórias a respeito de Pedro. Elas mostram a sua fraqueza e recuperação. A “Pedra” não se assemelhava à rocha; não obstante, ele era de Cristo, como são todos os que aceitam a sua direção. Mateus não tem como objetivo ensinar que o fracasso não importa, mas que Cristo não falha nem mesmo para com os que falham para com ele. Isto concorda' com a posição assumida de maneira decidida, através deste Evangelho, de que a salvação é uma dádiva tanto quanto exigência, graça e lei ao mesmo tempo. 208

5. Multidões Procuram Ser Curadas (14:34-36) 34 Ora, term in ad a a tr a v e ssia , ch eg a ra m à terra e m G en ezaré. 35 Quando os hom ens daquele lugar o reco n h ecera m , m an d aram por toda a q u ela circun vizin h an ça, e tro u x e­ ram -lhe todos o s en ferm o s; 36 e rogavam lhe que a p en a s os d e ix a sse tocar a orla do seu m an to; e todos os que a to ca ra m fic a ­ ra m curados.

Genezaré era uma planície fértil a noroeste do Lago da Galiléia, entre Ca­ farnaum e Tiberíades. Algumas vezes o lago era chamado por esse nome (Luc. 5:1). Este parágrafo mostra a grande popularidade de Jesus entre as multi­ dões. Também mostra a paciência de Jesus para com o povo comum, muito embora os interesses deste muitas vezes fossem apenas secundários, físicos e materiais, e embora a sua fé algumas vezes chegasse às raias da superstição, como ao pensar que ao tocar a orla do seu manto entrariam em contato com o seu poder. Jesus se preocupava com as necessidades físicas e materiais do povo embora ensinasse que “ nem só de pão viverá o homem (4:4). Ficaram curados (diesõthésan) poderia ser traduzido “ sal­ vos” . A mesma palavra é usada para “salvação” em ambos os níveis, físico e espiritual.

IX. Conflito com Fariseus, Escri­ bas e Saduceus (15:1 — 16:12) Se alguma coisa emerge com clareza dos Evangelhos, é que Jesus viveu no contexto do judaísmo com verdadeira piedade e, ao mesmo tempo, manteve liberdade para diferir radicalmente dos seus mais fortes lideres e expoente;s. A erudição crítica de hoje em dia está ple­ namente convencida, por nada mais do que o claro ensino do Evangelho, que Jesus se caracterizava por profunda piedade, e ao mesmo tempo era consi­ derado um liberal perigoso pelo mundo


religioso ao qual pertencia. Este foi um fator dos principais na decisão fari­ saica de matá-lo. Jesus vivia em liberda­ de e independência em relação aos cos­ tumes religiosos, pelos quais muitas pes­ soas estavam preparadas para dar a vida ou tirar a vida de outrem. 0 abismo que separava Jesus dos lei­ gos fariseus e dos sacerdotes saduceus se tornou cada vez mais visível, à medida que, por palavras, atos e forma de vida, Jesus tornou mais clara a sua intenção. Ele diferia tanto de fariseus como de saduceus, por diferentes razões. O seu conflito com os fariseus era basicamente em relação à lei ritual, que, para os fariseus, estabelecia a distinção entré judeus e não-judeus, e até entre “justos” e “pecadores” , dentro do judaísmo. Na passagem diante de nós, pode ser vista a rejeição de Jesus à base que os fariseus apresentavam para essas distinções. Os saduceus se opunham a Jesus por causa da sua posição em relação ao Templo e porque pensavam que Jesus iria pertur­ bar a sua confortável aliança com Roma. Mateus não está muito interessado em estabelecer a diferença entre fari­ seus e saduceus. Ele tende a combiná-los como líderes de Israel, os mais responsá­ veis pelo fato de Israel ter rejeitado Jesus e pela conseqüente queda da nação como taUcf. 3:7; 16:1,6,11,12; 18:6). 1. Jesus Desafia a Tradição (15:1-20) 1 E n tão ch eg a ra m a J esu s uns fa riseu s e escrib a s vindos de J eru sa lé m , e lh e pergu n ­ taram : 2 P or que tran sgrid em os teu s d is c i­ pulos a tradição dos an ciã o s? p ois não la ­ v a m a s m ãos, quando co m em . 3 E le , porém , respondendo, d isse-lh es: E v ó s, por que tran sgred is o m an d am en to de D eu s por ca u sa d a v o ssa tradição? 4 P o is D eu s o rd e­ nou: Honra a teu p ai e a tu a m ã e ; e : Quem m a ld isser a seu p ai ou a su a m ã e , c e r ta ­ m en te m orrerá. S M as v ó s d iz e is : Qualquer que d isser a seu pai ou a su a m ã e : O que poderias ap roveitar de m im é oferta ao Senhor; e ss e de m odo a lg u m ter á de honrar

37 E m st K asem ann, Der Ruf der Freiheit ÍTübingen; M ohr, 1968), p. 29, 33 e s.

a seu p ai. 6 E a ss im , por c a u sa da v o ssa trad ição, in v a lid a stes a p a la v ra de D eu s. 7 H ipócritas! b em profetizou I s a ía s a v o sso resp eito, dizendo : 8 E ste povo honra-m e co m os láb ios : o seu cora çã o , p orém , e stá lon ge de m im . 9 M as e m v ã o m e ad oram , ensinando doutrinas que sã o p receito s de hom ens. 10 E , ch am an d o a si a m ultidão, d isselh es : Ouvi, e en ten d ei : 11 N ão é o que en tra p ela b o ca que con tam in a o h om em ; m a s o que sa i d a boca, isso é o que o con tam in a. 12 E n tãe os d iscíp u los, ap roxim an d o-se d ele, p ergu n taram -lh e: S ab es que os fa riseu s, ouvindo e s s a s p a la v ra s, se esca n d a liza ­ ram ? 13 Respondeu-U ies e le : Toda p lan ta que m eu P a i c e le stia l nã« plantou se r á arran cad a. 14 D eix a i-os; são g u ia s ceg o s; ora, se u m ceg o guiar outro ceg o , am b os cairão no b arranco. 15 E P ed ro, tom ando a p a la v ra , d isse-lh e: E xp lica -n o s e s s a p a rá ­ bola. 16 R espondeu J e su s: E sta is vós ta m ­ b ém ain d a se m en tender? 17 N ão co m p re­ en d eis que tudo o que en tra p e la b oca d esce para o ven tre, e é lan çad o fora? 18 M as o que sa i da b o ca proced e do co ra çã o ; e é isso o que con tam in a o h o m em . 19 P orq u e do c o ra ­ ção p ro ced em os m a u s p en sa m en to s, h om i­ cídios, ad u ltérios, p rostitu ição, furtos, fa l­ sos testem u n h o s e b la sfêm ia s. 20 Sã« e sta s a s c o isa s que con tam in am o h o m em ; m a s o co m er se m la v a r a s m ã o s, isso n ão o co n ta ­ m ina.

A tradição dos anciãos era a tradição oral judaica, que posteriormente formou o Talmude. Essa tradição era uma com­ pilação de materiais que se foram juntan­ do durante muitas gerações, sendo trans­ mitida oralmente de uma geração para outra, cada geração adicionando algo a ela. Este material representava a inter­ pretação rabínica da Torah, a parte mais antiga do Velho Testamento, e a sua aplicação a todos os aspectos da vida. Entre 70 d.c. e cerca de 200, havia várias coleções dessa tradição, todas compi­ ladas ao redor de seis principais assun­ tos, chamados ordens. A atribuída a Judas, o Patriarca, prevaleceu. Era co­ nhecida como Mishnah, ou segunda lei. Por volta do quarto século, ela havia se estendido, na Babilônia, ao ponto de incluir a Gemara, que eram comentários à Mishnah. Juntas, a Mishnah e a Ge209


mara constituíram o Talmude. Outra Câmara foi produzida na Palestina, mas nunca, completada. Os fariseus davam, à tradição oral, um valor tão grande como o da Lei. Diziam que Moisés recebera a lei oral no Monte Sinai, e a passara aos profetas, que, em seu turno, a haviam passado aos homens da Grande Sinagoga (Pirke Aboth, 1:1). Dessa forma, atribuíram sanção mosaica às tradições, que, na verdade, estavam ainda se desenvolvendo ao tempo de Cristo. Jesus rejeitou a autoridade dessa tradição oral, e dessa forma aüenou os fariseus. O problema de lavar as mãos antes das refeições era de interesse ritual, em vez de sanitário. Esse ato não era requerido pelo Velho Testamento, mas os fariseus o consideravam uma marca de piedade. Tocar um gentio era uma das muitas formas pela qual uma pessoa podia ficar ritualmente impura, segundo o ensina­ mento deles. Jesus rejeitou frontalmente essa distinção ritual entre puro e impuro. O termo contamina (koinoi) era usado pelos judeus para designar uma pessoa como “comum” , isto é, ritualmente desquaUficada para atos reUgiosos. Jesus acusou os fariseus de elevar a sua tradição acima do mandamento de Deus, nome que ele estava dando às Escrituras. Jesus reverteu a ordem, reconhecendo a autoridade das Escrituras, mas rejeitan­ do a tradição oral. Ele expôs a tendência dos fariseus de elevar a tradição acima das Escrituras, dando como exemplo o fato de eles não observarem a intenção do quinto dentre os Dez Mandamentos (cf. Êx. 20:12; 21:17). Ele ilustrou o ponto em questão, citando a sua regra conhecida como “corbã” , palavra ara­ maica que significa oferta ao Senhor. De acordo com esta regra, se uma pessoa pronunciasse “ corbã” em relação à sua propriedade, ela era dedicada ao Senhor. Isto podia resultar na incapacidade de um filho ajudar os seus pais, e oferecia a filhos egoístas um escape da responsa­ bilidade de ajudar os pais carentes. 210

Embora, por volta do fim do primeiro século, os rabis legislassem que uma pessoa não precisava cumprir um voto, se ele entrasse em confhto com os seus deveres para com os pais (Nedarim 9:1), esta prática era costumeira no tempo de Jesus. Mas Jesus recusou-se a colocar a religião acima do homem. Religião não deve ser confundida com Deus. A prática de corbã desonrava a Deus tanto quanto ao homem. Era “adoração de lábios” , para Deus, como fora denunciado por Isaías (29:13). Preceitos de homens, aqui, aplica-se à tradição oral judaica, embora Mateus não o apresente tão ex­ plicitamente como a expressão de M ar­ cos: “tradição de homens” (7:8). Jesus não apenas rejeitou a autoridade da tradição oral, em favor das Escritu­ ras, mas também introduziu um princí­ pio de longo alcance para a interpretação das Escrituras. Ele reconheceu a autori­ dade das Escrituras como mandamento de Deus, mas enfatizou a intenção da Lei, e não a letra da Lei. Jesus demons­ trou ser independente da Lei, mas com um diferente resultado do que os escribas haviam alcançado. A sua preocupação era cumprir a lei, levar a sua intenção à realização, e não esvaziá-la ou obscurecêla. Ele não se deteve, ao repudiar a regra farisaica acerca de mãos sem lavar, mas varreu a idéia toda de que contaminação ou purificação moral dependia de qual­ quer forma de legalismo. Ele rejeitou a idéia de que o mal está na natureza ou nas coisas, dando a entender que a raiz do mal está no coração humano (Schlat­ ter, p. 239). Ele apelou para isto como algo que o homem deve compreender (v. 17), e não como algo que pertence à sabedoria oculta ou esotérica. Ao declarar a contaminação como condição do coração, ao invés de resul­ tado do que entra pela boca, Jesus rèpudiou grande parte do alicerce do judaís­ mo farisaico (cf. Rom. 14:14; Tito 1:15). Jesus descobriu a fonte do mal no coração do homem, do qual saem maus pensa­ mentos, impulsos e sentimentos que se


podem tornar expressos exteriormente na forma de homicídios, adultérios, prosti­ tuição, furtos, falsos testemunhos e blas­ fêmias (estes modelados segundo os Dez Mandamentos). Ele recusou-se a encon­ trar o mal em termos de preocupações rituais, como, por exemplo, comer sem lavar as mãos. Negou categoricamente que um ato de comer ou beber é por si só uma coisa má. Descreveu-o como pro­ cesso fisiológico (v. 17). Foi até atrás de toda ação visível, para descobrir a origem do mal, seguindo-o até a intenção ou condição do “eu” íntimo (cf. 5:8). O coração abrange, na linguagem bíblica, sentimento e pensamento. Mateus não deixa dúvidas quanto ao grande abismo existente entre Jesus e os fariseus, com respeito à autoridade rela­ tiva das Escrituras e da tradição oral, e também com respeito à natureza do mal. Mesmo assim, Mateus não inclui a mais enfática declaração de Marcos: “Assim declarou puros todos os alimentos” (7:19). Mateus é, algumas vezes, acusado de ser exageradamente rude para com os fariseus, mas, nesta seção, ele por duas vezes suaviza a linguagem mais forte de Marcos (omitindo Marcos 7:8,19). Na verdade, Mateus mostra o conflito básico entre Jesus e os fariseus, mas não tornou maior do que era o abismo entre Jesus e os fariseus. De fato, desde os primeiros discípulos até hoje, tem sido difícil, para todos os seguidores de Jesus, aceitá-lo na plenitude da força da sua rebelião contra os preceitos de homens. Isto é dito reve­ rentemente, mas, ao romper com as crenças e práticas religiosas estabeleci­ das, Jesus foi mais radical do que qual­ quer um de seus seguidores tem sido. Até os discípulos ficaram temerosos, e Pedro achou que os ensinamentos de Jesus esta­ vam sendo confusos (v. 12 e 15). Pedro e os outros discípulos estavam ainda sem entender. Todos nós tendemos a “diluir” ou explicar evasivamente os seus ensina­ mentos. Será que também hoje em dia não tendemos a expressar em tom menor declarações tão enfáticas como Não é o

que entra pela boca que contamina o homem; mas o que sai da boca isso é o que contamina? Será que não procura­ mos fugir do seu ensino de que Do coração procedem os maus pensamen­ tos... etc.) escolhendo, pelo contrário, nos centraUzarmos em coisas mais visí­ veis? Ao falar de toda planta não plantada por Deus, pode ser que a referência ime­ diata de Jesus tenha sido à tradição oral, como é ilustrado pela lei ritual acerca da lavagem de mãos. De fato, este princípio se relaciona com qualquer um a das nos­ sas leis'religiosas, práticas ou ensinos que contradigam os mandamentos de Deus. Planta é uma figura bíblica famihar do povo de Deus. Aqui ela pode referir-se aos fariseus como os que se consideram o “cerne” da comunidade de Deus (Schni­ ewind, op. cit., p. 183; McNeile, op. cit., p. 227). Os guias cegos, contra quem ele advertia, eram os líderes reli­ giosos, que se consideravam as autorida­ des para interpretar a lei de Deus. A cegueira que ele declarou faria com que os líderes e os seus seguidores caíssem ambos no barranco, era a cegueira reli­ giosa melhor designada como legahsmo. Este legalismo não era simplesmente o de alguns extremistas de aldeia. A batalha estava sendo travada entre Jesus e os fariseus e escribas vindos de Jerusalém. 2. A Fé de uma Mulher Cananéia (15: 21-28) 21 Ora, partindo J e su s d ali, retirou-se para a s reg iõ e s de T iro e Sidom . 22 E e is que u m a m u lh er ca n a n éia , provinda d aquelas cerca n ia s, c la m a v a , dizendo: Senhor, F ilho de D a v i, te m com p aixão de m im , que m inha filha e s tá h orriv elm en te endem oninhada. 23 Contudo, e le não lh e respondeu p alavra. C hegando-se, p ois, a e le os seu s discípulos, rogavam -lh e, dizendo: D esp ed e-a , porque v em clam an d o a tr á s de n ós. 24 R espondeulh es e l e : N ão fui en viad o sen ão à s ov elh a s perdidas d a c a sa de Isr a e l. 25 E n tão v eio e la e, a d o ra n d o -o ,d isse: Senhor, socorre-m e. 26 E le, p orém , respondeu: N ão é b om tom ar o pão dos filh o s e lan çá-lo a o s cachorrinhos. 27 Ao que e la d isse : Sim , Senhor, m a s a té os

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cachorrinhos co m em d a s m ig a lh a s que ca em d a m e sa dos seu s donos. 28 E n tão r e s ­ pondeu J esu s, e d isse-lh e: Ó m u lh er, grande é a tua fé! Seja-te feito com o q u eres. E desde aq u ela hora su a filh a ficou sã .

É notável que esta história segue ime­ diatamente o relato da rejeição, expressa por Jesus, dos testes externos acerca do que é puro ou impuro. Superficialmente, esta história, que mostra pelo menos uma rejeição momentânea de uma mu­ lher cananéia, pelo fato de ela não ser judia, parece contradizer o princípio que acabara de ser exposto, isto é, de que a condição do coração, e não as coisas externas, é que determina se a pessoa está contaminada ou não. A história está também em aparente conflito com a Grande Comissão, com a qual se encerra o Evangelho (28:19). Mateus, ainda mais do que Marcos, aponta para amplas diferenças, que por fim são vencidas. Cananéia é quase ar­ caico (Marcos 7:26 identifica a mulher pela linguagem como “uma grega” , e, pelo nascimento, como “ siro-fenícia). Canaã era o nome da terra pagã dada a Israel. Esta história coloca lado a lado os reclamos de uma mulher cananéia e as ovelhas perdidas da casa de Israel. Gran­ de diferença também surge na compara­ ção de filhos e cachorrinhos. Este último não é tão indeUcado no grego como é em português, e não é, necessariamente, um termo de desprezo, pois o diminutivo é empregado para a palavra cachorros possivelmente se referindo aos animais de estimação das crianças. Assim sendo, filhos e “cachorrinhos” são relacionados, bem como distinguidos. A mulher cana­ néia não contesta a missão de Jesus às ovelhas perdidas da casa de Israel, e é ela que observa que os cachorros comem as migalhas que caem da mesa do seus donos (Marcos contém os cachorrinhos debaixo da mesa comem das “migalhas dos filhos” , como se os filhos os aUmentassem). Como resolver estes problemas? Primeiro, pode ser observado que Jesus não virou as costas ao povo judaico. 212

embora rejeitasse o legalismo farisaico e colocasse seu povo sob pesado julgamen­ to. Sua missão era às ovelhas perdidas da casa de Israel. Ele foi enviado a Israel não para recompensar pessoas retas, mas para resgatar as pessoas perdidas. Se Jesus tivesse dado as costas aos judeus e partido de imediato para os gentios, teria, quem sabe, fechado todas as portas entre si mesmo e os judeus. Desde o prin­ cípio o mundo inteiro estava incluído em sua missão, da mesma forma como as nações estavam incluídas na aliança de Deus com Abraão. Mas havia razões importantes para que ele se oferecesse “primeiramente aos judeus” e depois aos gentios (Rom. 1:16). Os judeus estavam mais bem preparados para receber e entender Jesus; poderiam tê-lo recebido e compartilhado com o mundo; e não havia barreiras de maior porte para que os gentios aceitassem um Salvador judeu, dos judeus. Pode ainda ser observado que, ao se oferecer primeiramente aos judeus, Jesus o fez de tal forma que repudiava a distin­ ção básica entre judeu e não-judeu. Esta é a conclusão da seção que acabamos de estudar. Jesus era fiel a certa prioridade (cronológica) aos judeus: “primeiramen­ te aos judeus.” Mas ele o fez de tal forma a descartar-se de distinções finais entre judeus e não-judeus. A mulher cananéia e Israel a princípio parecem ser pólos . opostos, mas, na verdade, estão reunidos nesta história. As ovelhas perdidas da casa de Israel e a cananéia que clamava por compaixão são reunidas, devido à sua necessidade comum. “Israel” e “Canaã” têm uma esperança de se unir: a confissão do que lhes falta, da sua necessidade. Há pelo menos três diferentes maneiras de abordar o problema da resposta de Jesus à mulher cananéia. Pode ser’que ele estivesse testando a sua fé, compe­ lindo-a a pôr de lado o seu orgulho ou preconceito anti-semita. O fato de ela tê-lo chamado de filho de Davi parece excluir nela esse problema, ou mostrar


que, devido à sua grande necessidade, ela ultrapassara o abismo entre judeus e não-judeus. Foi a sua grande fé que comoveu Jesus profundamente. A sua fé, como a do centurião (8:10), erguia-se em contraste com a falta dela em Israel. Uma segunda possibilidade é que Jesus tivesse usado o incidente como forma de instruir os discípulos. Eles esta­ vam mostrando impaciência para com a mulher, e rogavam-lhe que a despedisse, pois os seus clamores os perturbavam. Se eles tinham a intenção de que Jesus a curasse primeiro, não está claro. Pode ser que Jesus tivesse assumido a posição deles apenas para repudiá-la como uma repreensão a eles, e indicar a eles uma atitude melhor. Uma terceira e mais difícil abordagem é a que entende detectar uma luta inte­ rior em Jesus. A sua grande compaixão para com todas as pessoas foi por demais constatada, para ser menosprezada, embora ouçamos da sua boca palavras aparentemente ásperas, como: Não é bom (kalon significa “adequado”) dar o pão dos filhos aos cachorrinhos. Será que Jesus lutou entre o desejo de se entregar de imediato às nações do mundo, e o objetivo de dar ao seu próprio povo todas as oportunidades de recebê-lo? Voltar as costas aos judeus teria sido selar o seu destino, e os gentios ainda não tinham preparação formada para recebê-lo e proclamá-lo de maneira mais significa­ tiva. Até hoje, lemos um Novo Testa­ mento judaico (com a possível exceção de Lucas e Atos). Foram judeus os que em primeiro lugar receberam, compreende­ ram melhor e proclamaram Jesus. Mateus demonstra que Jesus não rejei­ tou a sua nação, embora ela por fim o tivesse rejeitado. Ele também mostra que Jesus se ofereceu aos judeus numa base que desacreditava toda diferença essen­ cial entre judeus e não-judeus. O Senhor ressurrecto comissionou os seus discípu­ los para levarem todas as nações ao dis­ cipulado. Seja qual for o significado da hesitação e das palavras de Jesus, perma­

nece o fato de que ele recomendou a fé da mulher e curou a sua filha. Israel negouo, nas ele não negou Israel. Com o seu pão, ele alimentou tanto os filhos como os “cachorrinhos” (Schlatter, op. cit., p. 245). Embora a restrição a Israel, nesta pas­ sagem e em 10:5 e s., pareça ser total­ mente oposta à comissão mundial de 28:19, èlas estão correlatas no Evangelho d© Mateus. Os que são comissionados para fazer discípulos de todas as nações têm solo firme debaixo dos seus pés. Jesus expressou fé em Israel, e a rejeição de Jesus, por parte de Israel, não podia ser desculpada com base em uma missão gentílica antecipada. Mais tarde, uma igreja gentílica pôde proclamar como Cristo alguém que era “filho de Davi, filho de Abraão” e que expressara leal­ dade ao seu povo (cf. Hummel, p. 138). 3. Multidões Curadas e Alimentadas (15:29-39) Z» P artin d o J esu s d a li, cliegou a « p é do m ar d a G a liléia ; e , subindo ao m on te, se n ­ tou-se a li. 30 E v ie r a m a e le gra n d es m u l­ tid ões, trazendo con sigo co x o s, a leijad os, ceg o s, m u d os, e outros m u ito s, e lhos p u se ­ ra m ao s p é s; e e le os curou; 31 d e m odo que a m u ltid ão se a d m ira v a , vendo m udos a falar, a leija d o s a fica r sã o s, co x o s a a n d ar, e c eg o s a v er; e g lo rifica v a m a o D eu s de Isra el. SZ J esu s cham ou os seu s distápulos e d is s e : Tenho co m p a ix ã o da m u ltid ão, por que já fa z três d ia s que e le s e stã o com igo e não tê m o que co m er; e não quero desp ed i los e m jeju m , p ara que n ão d e sfa le ç a m no cam inho. 33 D issera m -lh e os discípulos D onde n os viria m , num deserto , ta n to s p ã es para fa rta r tam an h a m ultidão? 34 P ergu n tou-lhes J e su s: Q uantos p ã e s ten d es? E r es ponderam : S ete, e a lg u n s p eixin h os. 3S E tendo e le ordenado ao povo que s e se n ta sse no chão, 36 tom ou os se te p ã e s e o s p e ix es, e havendo dado g r a ç a s, partiu-os, e os entre g a v a a o s d iscíp u los, e o s discípulos à m u lti dão. 37 A ssim todos co m era m , e se fa rta ra m ; e do que sobejou dos p ed a ço s lev a n ta ra m se te a lco fa s c h e ia s. 38 Ora, o s que tinham com ido eram quatro m il hom ens, a lé m de m u lh eres e cria n ç a s. 39 E , havendo J e su s desp ed id o a m u ltid ão, entrou no bar CO, e foi p a ra os confins de M agad ã.

Como paralelo do relato de Marcos, da cura de um surdo mudo (7:31-37), M a­ 213


teus apresenta uma declaração geral e sumária, descrevendo um ministério de cura às multidões, algures nas proximi­ dades do Mar da Galiléia. Possivelmen­ te este ministério foi aos gentios, como o fora a alimentação dos quatro mil. As multidões louvaram o Deus de Israel. Isto pode referir-se ao louvor expresso pelos judeus, porém mais provavelmente é louvor de gentios ao Deus de Israel. A alimentação de quatro mil homens é expressa como um ministério de com­ paixão. Jesus não queria mandar embora pessoas famintas, para que não desfale­ çam. Algumas pessoas consideram esta passagem como variante ou dublagem da alimentação de cinco mil pessoas. Tanto Mateus como Marcos consideram distin­ tas as duas multiplicações de pães e peixes (16:9 e s.; Mar. 8:18-20). Em muitos detalhes, as duas narrativas dife­ rem: número de pães e peixes, tipos de cestas (sphuris, uma cesta de pescadores flexível e trançada, para carregar peixes ou frutas, é a usada aqui) e o número de pessoas alimentadas. Provavelmente, as quatro mil pessoas eram gentias, sendo que os cinco mil haviam sido judeus. Se assim é, este é um ministério aos gentios em paralelo ao outro, aos judeus. Esta interpretação seria um a tentativa de achar em Jesus uma preocupação por todo o mundo, embora ele estivesse concentrando o seu ministério nas “ovelhas perdidas da casa de Israel” . Mateus cita Magadã, enquanto M ar­ cos grafa “Dalmanuta” (8:10). Cada um deles se refere à região da cidade mencio­ nada, e não à cidade propriamente dita. Nenhuma das duas cidades pode ser identificada. Alguns manuscritos poste­ riores citam “Magdala” , cidade bem co­ nhecida, do lado oeste do lago. Seja qual for a cidade, a região da qual ele aden­ trou, a alimentação das quatro mil pes­ soas ocorreu no lado leste, possivelmente na gentílica Decápolis (cf. Mar. 7:31). A localização das duas multiplicações de pães foi praticamente a mesma, porém os 214

cinco mil alimentados eram galileus que estavam seguindo a Jesus. 4. Os Discípulos Advertidos Quanto ao “Fermento” dos Fariseus e Saduceus (16:1-12) 1 E n tão ch eg a ra m a e le ò s fa riseu s e os sad u ceu s e, p ara o ex p erim en ta rem , p ed i­ ram -lhe que lh es m o str a sse a lg u m sin a l do céu. S M as e le respondeu, e d isse-lh es: Ao ca ir da tard e, d izeis: H a v erá b om tem po, IKtrque o céu e stá rubro. 3 £ p e la m an h ã: H oje h a v erá tem p esta d e, porque o céu e stá de um v erm elh o som brio. Ora, sa b e is d is­ cernir o a sp ecto do céu , e não p od eis d isce r ­ nir os sin a is dos tem p os? 4 U m a g era çã o m á e ad ú ltera p ed e u m sin a l, e nenhum sin a l lhe se rá dado, sen ã« o de J o n a s. £ , deixando-os, retirou-se. S Quando os discípulos p a ssa ra m p a ra o outro lad o, e sq u ecera m -se de lev a r pão. 6 £ J e su s lh es d is s e : O lhai, e aca u tela i-v o s do ferm en to dos fa riseu s e dos sad u ceu s. 7 P elo que e le s a rra zo a v a m en tre si, d izen ­ do : É porque não trou xem os pão. 8 £ J e su s, p ercebendo isso , d isse : P o r que arrazoais entre vó s por não terd es pão, h om en s de pou­ c a fé? 9 N ão co m p reen d eis ain d a , n em vos lem b ra is dos cin co p ã e s p a ra os cin co mU, e de quantos ce sto s lev a n ta ste s? 10 N em dos se te p ã e s p a ra o s quatro m il, e d e q uantas a lco fa s lev a n ta ste s? 11 Como n ão co m p re­ en d eis que não v o s fa le i a resp eito d e p ã«s? M as gu ard ai-vos do ferm en to d os fa r ise u s e dos sa d u ceu s. 13 E n tã o en ten d eram que nã« d issera que se g u a rd a ssem do ferm en to dos p ã es, m a s d a doutrina d os fa r ise u s e dos sad u ceu s.

Mateus junta os fariseus e saduceus cinco vezes (3:7; 16:1,6,11,12; cf. 22: 34). Para ele, eles representavam os mes­ tres e líderes de Israel, e ele tinha muito pouco interesse em fazer distinções entre eles (Walker, p .13). Marcos menciona “fariseus” e “Herodes” (8:15) onde M a­ teus grafa fariseus e saduceus. Marcos e Lucas mencionam os saduceus apenas uma vez cada um (Mar. 12:18; Luc. 20:27). Os versículos 2b e 3 não são encontra­ dos nos mais velhos manuscritos em grego, siiíaco, còptico e armênio. Tam ­ bém foram omitidos por Orígenes e em manuscritos conhecidos de Jerônimo.


Parece que esses versículos foram adicio­ nados por famílias de textos Ocidentais, aparentem ente m odelados segundo Lucas 12:54-56. O significado desses versículos é suficientemente claro. As pessoas que são capazes de prever as condições do tempo mediante a cor do céu òu a direção do vento, estranhamente são cegás para os sinais do julgamento iminente sobre a sua nação. Os sinais dos tempos possivelmente alude à crescente influência dos zelotes, às crescentes ten­ sões com Roma, e à indisposição dos judeus, como nação, em ouvir o seu ver­ dadeiro libertador. Em 70 d.C. a nação, tendo seguido os seus falsos “ Messias” , foi esmagada pelos romanos. Contudo, a evidência textual testifica contra a origi­ nalidade desses versículos, nesse ponto. Os fariseus e saduceus, para provar Jesus, pediram um sinal do céu. O que eles pediam de Jesus era algum milagre tão poderoso que os compelisse à fé. Jesus recusou-se a fazer tal demonstra­ ção. O único sinal que ele ofereceu a uma geração má e adúltera foi o sinal de Jonas. Adúltero é um termo familiar ao Velho Testamento, para designar a infi­ delidade a Deus. O sinal de Jonas já foi interpretado (cf. 12:38-42). Jonas pregou julgamento, e os ninivitas se arrepende­ ram. A geração de Jesus tinha maiores privilégios do que os ninivitas, e por isso seriam colocados sob juízo mais severo. Esta advertência é duplamente atestada na tradição do evangelho, sendo tirada de Marcos e Q; e aparece não apenas em Marcos 8:11-13 e Lucas 11:29, mas duas vezes em Mateus (12:39; 16:4). Ê a maior ironia da história que Jesus, que tentou tão intensamente fazer voltar a sua nação do curso que a levaria a uma colisão suicida com Roma, e que repetidamente rejeitou o papel de Messias político, ti­ vesse sido crucificado sob a acusação de rebelião; e a nação, tendo seguido os seus falsos “ messias” , continuasse o seu curso para a colisão e a ruína. Os versículos 5-12 expressam não apenas a ameaça da doutrina dos fari­

seus e saduceus, mas também a insensi­ bilidade dos discípulos, quando Jesus procurou ensiná-los. Fermento tem o simbolismo bíblico normal aqui, simboüzando o mal ou a corrupção. Os discí­ pulos haviam-se esquecido de providen­ ciar pão ao entrarem no barco, para atravessar o lago. Quando Jesus os adver­ tiu contra o fermento dos fariseus e dos saduceus, eles entenderam literalmente o que ele pretendera que fosse figurado. Eles entenderam que Jesus os estava advertindo contra o pão literal dos seus oponentes. Jesus havia-se referido ao ensino deles (Lucas 12:1 o chama de “hipocrisia”). Os versículos 8-10 podem consistir em uma repreensão dupla contra os dis­ cípulos. Eles são chamados de homens de pouca fé, pois deviam ter aprendido, das duas milagrosas multiplicações de pães, que não precisavam ter ansiedade nenhu­ ma acerca de pão. Mas a verdadeira ênfase recai sobre o perigo do ensino dos fariseus e saduceus. Os milagres de aümentação haviam sido realizados não apenas para nutrir corpos, mas para ensinar o valor do seu simbolismo. Eles haviam sido evidências de que o ensino de Jesus era adequado, e que eles preci­ savam do ensino desses falsos líderes (Johnson, p. 447).

X. Cristo, Sua Igreja e Sua Cruz (16 :1 3 — 17:27) Os temas que pertencem a esta seção são os temas centrais do evangelho: Cris­ to, a sua Igreja e a sua cruz. A confissão de Pedro acerca de Jesus como o Cristo, e a resposta de Jesus, em relação à criação de sua Igreja e da cruz como porta para o triunfo para si mesmo e para a sua Igreja marcam um ponto decisivo em todos os três Sinópticos. Em suma, o evangelho é a proclamação do que Deus fez na pessoa de Jesus Cristo, tendo o seu apogeu na sua morte e ressurreição, e personifica­ ção no povo que ele criou e está criando: a Igreja. 215


-®VV' Gristo e Sua Igreja (16:13-20) 13 Tendo J esu s chegado à s reg iõ es de C esaréia de F ilip e, interrogou o s seu s d is c i­ pulos, d izen d o: Quem d izem os hom en s ser o Ellho do hom em ? 14 R esp on d eram e l e s : U ns dizem que é João, o B atista ; outros, E lia s; e outros, J e rem ia s, ou a lg u m dos profetas. 15 M as vós, perguntou-lhes J esu s, quem dizeis que eu sou? 16 R espondeu-lhe Sim ão P e d r o ; Tu é s o C risto, o F ilh o do D eu s vivo. 17 D isse-lh e J esu s: B em -aventurado é s tu, Sim ão B arjon as, porque não foi c a m e e sangue quem to revelou, m a s m eu P a i, que está nos céu s. 18 P o is tam b ém eu te digo que tu és P ed ro , e sobre e sta .g e d r a edifica^^ ^ e a s por ire*válecerao contra e la ; 19 darbte ^ei a s ch a v es do rein g dos, c é u s ; o qüe l i b r e s , pois', na Iterra, se r a U g ä S o n o s céu s, e o que d e slig a ­ res na terra se r á desligad o n os céu s. 20 E ntão ordenou a o s discípulos que a ninguém d isse sse m que e le era o Cristo.

O Cristo (v. 13-17) — A confissão de que Jesus era o Cristo aconteceu nas regiões de Cesaréia de Filipe, e não na própria cidade. Este é o ponto mais ao norte que se sabe Jesus tenha alcançado, com a possível exceção da sua retirada para as regiões de Tiro e de Sidom (cf. 15:21). Cesaréia de Filipe não deve ser confundida com a cidade costeira de Cesaréia. A antiga Panéias (moderna Banias) fora refundada pelo Tetrarca Herodes Filipe, e chamada de Cesaréia, em honra ao Imperador César Tibério. Ela passou a ter nome duplo, para evitar confusão com outras cidades chamadas Cesaréia. Ela se localizava acima do Mar da Galiléia, em uma das fontes do Jor­ dão, e havia recebido o seu nome anterior de Pã, deus grego. Havia muitas opiniões acerca de Jesus, variando desde intenso temor e ódio, até amor e adoração. A primeira pergunta de Jesus suscitou algumas das opiniões correntes. Por muitos, Jesud era visto como um profeta. Alguns o considera­ vam como João, o Batista ressuscitado, ou como um segundo João Batista (cf. 14:1,2). Elias não fora apenas um grande profeta, mas esperava-se que ele fosse enviado antes do grande dia do juízo, num ministério de reconciliação (Mal. 216

4:5 e s.). Jeremias não é identificado com Jesus em outro lugar; nos Evangelhos, só Mateus o menciona (2:17; 27:9). Algum dos profetas é indefinido. Alguns pensa­ vam que João Batista fosse “o profeta” , possivelmente o profeta de Deuteronô­ mio 18:15 (cf. João 1:21), mas não se tem em vista essa interpretação aqui. Embora Jesus fosse visto como desem­ penhando 0 papel de um profeta e tivesse aceitado essa designação (cf. 13:57)„ este termo não era adequado. Jesus não podia limitar-se a esse ministério, e ele mesmo se considerava numa posição mais eleva­ da. Ele se via acima de Moisés, acima de João e acima de todos os profetas. Isto é expresso não apenas no que ele disse, mas especialmente nas promessas que fez, nas exigências que fez (por exemplo, a de se amá-lo acima dos pais, esposa ou filhos, e a de se deixar tudo para seguilo) e na própria maneira em que eie se moveu entoe os homens. C kasemáng/está inteiramente certo, ao dizer: “A única categoria que faz justiça às suas reivindicações (bem independen­ temente de se ele a usou ou a requereu dos outros) é aquela em que os discípulos o colocaram, isto é, a de Messias” (Es­ says, p. 38). As antíteses “eu, porém, vos digo” do Sermão da Montanha (5:2148); o fato de se colocar acima de Moisés, ao reinterpretar a lei (15:10-20; Mar. 7:19); e o fato de ele ter assumido a mesma autoridade que Deus tem sobre o sábado (12:8; João 5:17) são evidências ' de que Jesus se considerava com a auto­ ridade que só pertence a Deus. Uma comparação dos Sinópticos (16:16; Mar. 8:29; Luc. 9:20) demonstra que não havia nenhuma formulação fixa, autorizada, da confissão de Pedro em Cesaréia de Filipe. Mas “o Cristo” , “o Cristo de Deus” e o Cristo, o Filho do Deus vivo, todas estas expressões apon­ tam para o mesmo reconhecimento bási­ co de quem era Jesus. Este reconheci­ mento básico, e não a concordância ver­ bal, é o importante. O próprio fato de que, entre as acusações feitas contra


Jesus, em seu julgamento, estava a de ele sível, e não digno de confiança (cf. 14: ser pretendente ao trono judaico (John­ 28-31; 16:22 e s.; 26:33-35; 26:69-75; son, p. 448) é uma evidência irrefutável Gál. 2:11-14). Será que Jesus o chamava de que, durante a sua vida, Jesus fora de “pedra” c6ín'^umã ^ ro iiiã ^ T f^ õiã? considerado, pelos homens, em termos “M Sfprõvãviim ente éra^um noniê'3ãdomessiânicos, embora não foss.e entendido como uma promessa do que ele iria se nem por amigos nem por inimigos. Jesus tornar, e nao do-jous. ele era. Ele se era 'o aquele que Deus ungira, ^ tornou um baluarte de força, especial­ para reinar, p termo foiãceito põrJesusTl, mente diante da perseguição física (cf. rinãs era inadequado e requeria uma i At. 3:11 — 4:22). interpretação melhor, porque era enten­ A relação de Pedro com a Igreja é dido de maneiras diferentes por judeus e grandemente controvertida. Algum iogo romanos. __________ de palavra com a p a l a v r a pMfa:a-é.nhmn. Pedro é chamado Simão Baqonas. No texto grego, como em português, Simão era o seu nome judaico. Baijonas aparecem duas formas em tu és Pedro significa “filho de Jonas” . Em João 1:42, (Petros), e sobre esta pedra (petra). ele é “ Simão, filho de João” . Mas a Ambas as palavras significam “rocha” . compreensão de Simão não proviera de sêMõ~'aTõrmrinã:sculina7~^^ apro­ seu pai terreno, ou de came e sangue, priada para se referir a um homem. A isto é, da natureza humana. Era uma forma feminina, petra. CiarresrLonde à revelação de Deus, o Pai Celestial de forma feminina ^ o aramaico k e g ^ . É Jesus, e não uma descoberta da percep­ wãs£^^clfto!airOÍÍusTenhrTãladó"enr ção humana (cf. 11:25-27). aramaico. e não em grego. Entre as eviA igreja (v. 18-20) — Esta é, provaveld ê ííc ía s ^ e demonstram esta declaração mente, a passagem mãis contrcvgrtíaá, está o paralelo de João 1:42: “Tu és ~faa" BíCTia, entre os cnstaos. A própria Simão, filho de João; tu serás chamado 'atihôslêrã“ de controvérsia é uma das Cefas (que quer dizer Pedro).” Tanto principais barreiras pará a sua interpre­ quanto se conhece, nenhum jogo de pala­ tação adequada. Um grupo confessional vras era possível com “rocha” , em ara­ diz muita coisa da passagemalemclo que maico, em que uma só palavra servisse ela realmente transmite, e isto tenta para Petros e petra. A declaracão araoutros a descobrirem coisas de menos maica teria sido: }“Tu és Kepha esoBre nela., Nenhum intérprete pode jactar-se èSláíép^ de 1er esta passagem sem preconceüõT ^ antecedentes a esta pedra, sobre a ^PïïiT'ô^êïïvîgâ^ ’^ â o e^ m e n te uma / qual Cristo prometeu edificar a sua Igre­ 1actâncii~ fãisa^ maF^senã^uma forma w ja, não podem ser demonstrados cabal­ 'errada dè” abordar esta passagem, se mente. Há possibilidades de que fosse ela possíveL ÃTBiblia, alias7 naS^brê“os seus o próprio Pedro, a fé de Pedro, a confis-_; segredos à “ciência pura” , mas apenas à 'sIoTdB Pgdrõro próprio Cristo, ou .um á' fé devota. Mas a devoção da fé requer a cõmbinà^ão "deTãtores. Superficialmendisciplina dos métodos científicos. E, teT a referência parecè ser ao próprio principalmente, a pessoa deve desejar Pedro; mas, se ele for a pedra, é estranho ouvir honestamente a intenção das Escri­ que o impessoal esta pedra venha logo a turas, se for para ela ser ouvida. seguir do pessoal tu és. Não é apenas Pedro é utn nome grego, de que vem a impossível isolar precisamente o que nossa {J^pedrã^ em português, e corres­ Jesus queria dizer, mas pode ser que ponde ao aramaico “Cefas” (cf. João estejamos seguindo a direção errada, se 1:42). Era um apelido, dado a Pedrojixor êstreitaÍTOOT j Sfin ^ o —da—passagem, ~ã Jesus. Pedro não era semelhante à fro c l^ aíjenár^um?^coisa. Na resposta à sua < Muitas vezes ele era impulsivo, imprevi- { primeira pergunta, quanto a quem os 217


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homens diziam que ele era, Jesus não foi mencionado em primeiro lugar por havia encontrado nada sobre que edifi­ Paulo (I Cor. 15:5). Ele convocou o gru­ car. Na resposta de Pedro, ele encontrara po de cerca de cento e vinte pessoas em aquiio sõBre' que podia edificar a sua Jerusalém, depois da ascenção de Cristo Igre|£lTJm”hornem comum, nada mais i (At. 1:15). Ele pregou o sermão no dia de Pentecostes (At. 2:14). "do que parecido com pedra, iluminado pelo Espírito de Deus, reconhecera e Por outro lado, não há indicações de , confessara Jesus como o Cristo, o Filho qu'? ~Pedro tiygse alguma autpridade:::^do Deus vivo. Em contraste com aqueles s in ^ la r entre os doze ou entre os primi- ^ que confundiam Jesus com algum pro­ TivòV cristãos. ETè lilò "enviou ' oú to s feta, Pedro oj;ecqiyie^c^u como o Cristo, ''ãpostÒTòs^ tnas foi enviado por eles (At. o F iH w "3^eus. Jesus não é jljãõTlEííãs, 8:14). Tiago logo emergiu como o líder Jerelniasr”nem'* ninguém, a não ser ele da igreja em Jerusalém (At. 21:18). mesmo. Ele também aceitou Pedro como Paulo pôde repreender abertamente a era, sem confundi-lo com nenhum outro. Pedro, na igreja em Antioouia (Gál. Tu és o Cristo... tu és Pedro. Sobre isto ^2:11). I Não há "nenhuma partícula de Jesus pôde edificar a sua Igreja, cada um (f^^õdencia bíblica de que Pedro foi feito dedicado ao outro, cada um aceito pelo ^bispo sobre toda a Igreja, ou que quai­ outro. s q u e r ofício especial foi transmitido dele ______________ Embora ( P e d ^ fosse um indivíduo \ para outra pessoa. especial, e um apóstolo e discípulo pe­ ‘'^"E m bora haja tradições literári^, e arqueológicas que ligam os nomei^ de culiar, pode ser tam^ m que ele fos^e Pedro e Paulo com a Igreja Romana, no visto por Mateus"comolipo e f i ^ r a dòs caso de Pedro, estas tradições não se remontam à época posterior ao fim do segundo século; e, mesmo assim, elas se dada por Marcos, com adicional tradição relacionam conjuntamente a Paulo e petrina, peculiar a ele mesmo (cf. 14:28Pedro. 38 O significado de nossa passa31; 15:15; 17:24-27; 18:21), mas não tem gem em relação ~ã~Pedro não tem refeinteresse biográfico especial em Pedro. ■rêriciã~valigã~com respeito às reivindicaEB''^p:o“é-tiem"’‘'pró-petrinp^ ngnL a^ pètrino. Jvláteiis" apresenta os aspectos çõés fêfíãrp èl^ íg reja Romana. É pena positivos e negativos de Pedro, mostran­ "que esta declaração, umá^^HClusão ines­ capável de um estudo competente bíblico do não apenas a sua inconsistência, mas considerando-o como tipo e figura dos e histórico, precise ser feita em um con­ texto de controvérsia. discípulos, com todas as contradições que eles tinham, fator que foi e é um Embora Pedro e todos os apóstolc problema perene dentro da Igreja (cf. C,(Ef. 2:20; Apoc. 21:14) fizessem parte, Strecker, p. 198-206). /-em certo sentido, do alicerce sobre o qual /fL Igreja foi edificada, o Novo Testamento ( A compreensão mais natural da pas! nunca admite esta hipótese de maneira ( ^ vp.r lilp iim a im portância especial ligada a Pedro (veja Broadus, p. 355-61,'“ ;absoluta. O próprio Jesus é “a rocha’ para a definição desta posicão). O Novo ;ísobre que^aTg^^JJonstrul^ãTTsfo nãí Testamento claramente dá a Pedro certa tííecessita H^Ç^rovas^^e^lêxto^. O novo testamento é acerca de Jesus, e não acer­ ^im azia. Em todas as hstas de apóstoca de Pedro. Poderia haver um a'igreja Iõs7ele é mencionado em primeiro lugar. sem Pedro, mas não haveria nenhuma Ele sempre participou do círculo mais íntimo de discípulos, ao redor de Jesus. 38 P ara m elhor estudo das tradições ligando Pedro com Foi ele quem fez a confissão em Cesaréia Roma, cf. O scar C ullm ann, Peter: Disciple, A p o stle,. de Filipe. Ele estava entre as pessoas a Martyr, tr. F.V . Filson (Philadelphia: W estm inster, quem o Cristo ressuscitado apareceu, e 1953). 218


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mas também que “o Jesus histórico não sem Cristo. Pedro não é o cabeça nem separou um grupo como um pugilo o fundamentÕÜa Igreja. Jesus a fundou; (Shar) dos eleitos, à parte do povo judeu; êfa permanece de pe~õu cai com ele; e, ele chamou toda a nação” (p. 49 e s.). além disso, ele é o seu Senhor vivo, e Ele repetidamente iguala a Igreja com sua cabeça. uma “ organização” . Ë bem claro que A igreja que Jesus prometeu edificar é Jesus não organizou uma igreja, mas a suajgreja. Igreja é tradução do grego chamou e criou um povo de Deus, conheelfklesia, que, por seu turno, é tradução cido como igreja e por outros termos. do termo hebraico qahal, na LXX. Tanto a palavra grega como a hebraica desig­ Corretamente. Conzelmann observou que Jesus tinha seguidores, e que eles não nam literalmente uma convocação. eram organizados. Ele também é correto Qahal pode designar Israel como um no seu ponto de vista de que “os Doze” todo, ou reunido como uma congrega­ representavam os reclamos de^lesus^sia;^ ção, e ekklesia pode designar a Igreja de forma universal, ou como uma assem­ 'bre todo o Israel. M as i s t o ^ o garante a conclusão de~~que~lêsuriiãõ^ criou uina bléia local. a referência é obviamente a uma assembléia local, reu­ Igreja. Ele não procurõíTganhar todo o nida para disciplinar os seus membros. Í^Isrãél, e não há evidências de que ele Em a referência é, da mesma •tenha organizado algo; mas há evidên­ cias irrefutáveis do seu propósito primor­ rormãclara, à assembléia universal. Esta dial de chamar a si pessoas, cuja afinipassagem perderia toda validez, se fosse ■ restringida a uma igreja local. Jesus não )dade a ele e de uns aos outros fossem d e ; fé e de espírito, e não de carne e naciona- < estava em Jerusalém, e, sem dúvida lidade. Esta é .a Igreja em seu sentido' . também não em Roma, quando falo primário. A sua existência está ligada à essas palavras. Nenhuma assembléia local da região de Cesaréia de Filipe ou y ressurreição, sem a qual, provavelmente, nenhuma igreja teria sobrevivido. Mas os" / 'd ê le rusãlém sobrevive / de Jesus. A Igreia da qual ele falou sobre^ seus primórdios centralizaram-se ao ^ viveu, e é indestrutível até pelas portas do redor do “Jesus histórico” , e não logo de princípio ao redor do Cristo ressuscitado. Tiades Não é apenas uma confusão argumen­ ^ O fato de que a palavra igreja apare apenas aqui e em 18:17, em Mateus, e tar que “Jesus esperava o reino de Deus... não aparece em nenhum dos outros mas veio a Igreja” (Loisy). Jesus não Evangelhos, leva alguns intérpretes a apenas esperava o reino de Deus, como concluir que Jésus não pretendia criar a também declarou a sua chegada._|íãQera remo ^ Ig re jã'é qüiT slãpãssãgênrnlo remonfã o reino o uaJgr^a^jp^^^^jnb^ aos tempos de Jesus. A evidência dé^que veío"ennesusC ri?f^^ ele criou a Igreja. Portas do hades é literalmente o que \ Jesus desejava criar o que conhecemos como a Igreja vai muito além da palavra^ diz o original grego. Hades (como Sheol) igreja,. Este é apenas um dos muitos era um termo que designava o reino dos mortos (cf. Is. 38:10). Jesi^^|tova^gara té fmos^ empregados-em--er'T?ÕTO “Testa. e muitos dos seus seguidores Ihento paraTesignãr~õ'"^ sotrer oó martírio. Ma§.^a rnorte, encontrado no V^elho Testamento e re- ifíam soírer eõnstituído j3or'JeSüs7 esus chamou as para__o^Iestre e_os discípulos, por cruci^“ pessoas a si mèsmo, e as ligou com laços íicacão ou__causas naTiIraisriiaB''gogêría de amor, confiança e dedicação. Elas ^encefaJgr^jaTSeTesus tivesse cedido às foram ligadas por uma vida, uma tarefa e pressões paraTse tornar um Messias políiim destino comuns. tico, o que ele tivesse edificado seria tão 'ÇConzélm an^argum enta não apenas vulnerável como os reinos de Davi e dos com a rara”ocorrência da palavra igreja, Macabeus. Ele veio para criar uma igreja'

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sob o reinado de Deus. Ele iria edificar, com“ã cruz, e não com a espada; dando vida, e não tirando-a. A sua Igreja seria indestrutível para todo o sempre. Betz^Was Wissen Wir von Jesus? p738J encontra corretamente os^nteçe^ sníes desta tJassaeem em Isaías 28: ^oyef rgufhi^ ò s ."go v e m a t ^ 'Se Jerusalém sê jactavam d e q u e inham feito um pacto com a morte' morte” e um “acordo com o Sheol” . Eles pensavam aue estavam assegurados contra.« mnrtp Mas ojprqfeta de D ^ s declarou que “o y5sso’pac!o^ginã'*moTO será anulado’ e “a vossa aliança com o Sheol não subsis­ tirá” . Isto é, eles seriam derrotados e mortos. Contra essa falsa segurança dos 'or^lhósos gõveníãhtes de“ Témsalém levantava-se a certeza de que o Senhor Deus estava pondo “em Sião, como ali-" cerce, uma pedraT^uma péãra pipyada, funoSnento* ” T” '^ TòT^I ^ ^ e ’Turigimênto 'pòdé-se conffar. Este fundamento seria verdadeiro, pois, ao construí-lo, Deus faria “ o juízo a linha para medir, e a justiça o prumo” (v. 17). Esta passagem parece que estava cla­ ramente na mente de Jesus quando e le ' falou da criação da Igreja, edificada' sobre um firme alicerce, e impossível de ser destruída pela morte ou pelo H ades' Sheol). A passagem em Isaías é linda­ mente poética, para ser levada em toda a seriedade, mas não com literalismo cru. (As palavras atribuídas a Jesus também £ têm simbolismo poético, para serem leva/ das totalmente a sério, mas não são conspurcadas pelo literalismo cru, e cer'"\^>tamente não devem ser levadas a servir a nenhum grupo confessional, em seu egoísmo e seus reclamos ambiciosos. Promessas, como as contidas em Isaías 28:15-18 e Mateus 16:18-20, são cumpri­ das tão-somente em Jesus. As chames do reino simbolizam autorid a d e /A q u i^ las são dadas a PedroT^ m 1 S ! ^ ^ ã o dadas _a. todos os discípulos os poderes para ligar e desligar7^ ^ ^ ^ i7 a aplicação parece relacionar-se pnmor220

dialmente ao ensino; no (cap ítu lo lS J à disciplina eclesiástica. L i^ r ^ desligar eram termos rabínicos para expressar proibição e permissão (cf. Terumoth 5:4). ^ Será ligado (estai dedemenon) e será desligado (estai lelumenon) podem não ser precisamente as traduções dos tem­ pos de verbo nessa passagem. Em cada caso o tempo grego é uma forma peri­ frástica do futuro perfeito passivo. Pos­ sivelmente devam ser traduzidas “ierá sid o J[ig a^ ” e “te r á ^ d o ^ ^ e s lig a d ^ em bõram uitos granfflcõs' cliamanam isto de pedantismo. Se a força do futuro perfeito se exerce aqui, o significado é de certa forma alterado. Sugere não gue a ação na terra seráLr a tif íc ^ S n o c e u /n S ^ q ú e ^l^ éjjrev isla^ liõ ^ u T ^ ^ ^m o ü tras palavras, d ê sla T ^ m a ° ã “'^ T a segue o céu, e não ao contrário. A aaveríência para que os discípulos a ninguém dissessem que Jesus é o Cristo está de acordo com a decisão de Jesus de evitar assumir o papel de um rei popular, político. Visto que o papel do Messias era entendido de diferentes maneiras, e es­ pecialmente visto que muitos judeus e romanos viam nele implicações políticas, Jesus desencorajava o uso aberto do termo. Ele o,aceitava, mas somente da maneira como ele o interpretava. 2. Jesus Prediz Sua Morte e Ressurreição (16:21-28) 31 D esd e en tão co m eço u f^ e su s C ris@ a m ostrar a o s se u s d iscíp u los qi£& era n e c e s ­ sário que e le fo sse a J eru sa lém , que paaê^ ro sse m u lta s co isa s dos a n ciã o s, dos p rin ci­ p a is sa cerd o tes, e dos e scrib a s, que fo sse m orto, e que ao terceiro dia r e ssu sc ita sse . 32 E (P ed ro ,'^ m a n d o -o à p arte, com eçou a r e p r^ n d é -lo , dizendo: T enha D eu s co m ­ p aixão de ti, Senhor; is so ^ m odo n enhum te a co n tecerá . 23 E le , p orém , voltando-se, d isse a P ed ro : P a r a tr á s d e m im , Satanás, que m e se r v e s d e escãria a lo; porque nao e stá s p ensando n a s c o isa s aue sã o de D eu s, m asj sim , n a s que sã o dos hom en s. 34 EntãÕ^^díssê“9esÚsraos se u s discipulos: Se a lg u ém quer v ir ap ó s m im , n eg u e-se a si m esm o , to m e a su a c m z e sig a -m e; 25 pois, q uem q u iser sa lv a r a su a vid a , perdê-la-á;


m as qu em p erd er a su a vid a por am or de » m im , achá-Ia-á. 26 P o is que a p r o v e i t a ao ^ hom em se ganhar o m undo lntéirõ~é peYder a sim jd^aZ-^ou que dará o h o m em e m troca “SãJsua vida? 27 P orque o F ilh o do h om em há de vir n a glória de seu “Pai, com os seu s anjos; e en faorefrib u trá a ca d a um seejm d a as su a s obras. 28 E m verd ad e vos digo, álguns dos que aqui e stã o de m odo nenhum provarão a m orte a té que v e ja m v ir o F ilho do h om em no seu reino.

A pergunta feita e respondida em Cesaréia de Filipe se relacionava com a identidade de Jesus. Tendo aceito a con­ fissão dos discípulos, de que ele era o Cristo, Jesus avançou para o estágio se­ guinte, indicando a maneira como ele e os seus deveriam agir. Mateus registra que Jesus por três vezes declarou que seria o caminho da cruz, o caminho da completa auto-negação (ou abnegação) e auto-entrega (cf. também 17:22 e s.; 20:18 e s.). O mais flagrante paradoxo do evangelho é apresentado aqui. A pessoa salva a sua vida tão-somente ao perdê-la. Vive apenas ao morrer. O único triunfo verdadeiro é através da cruz. Paradoxal, mente, a cruz é uma forma de morte, mas, para Jesus e os seus seguidores, é a forma de vida através da morte. Jesus começou a mostrar que ele ir a Jerusalém, para sofrer e m oner, era algo que precisava jazer. Era uma necessida­ de sem liberdade, não devido a alguma compulsão externa, mas interna. Movido por amor redentor, isto era algo que ele “tinha que fazer” . Não era um destino inescapável, pois a porta de escape per­ maneceu aberta até o fim (cf. 26:53), mas a sua completa devoção às necessi­ dades humanas e à vontade do Pai o levou avante até a cruz e à glória que se lhe seguiu. Jesus considerava Jerusalém, o centro do mundo judaico, como a cidade onde ele deveria oferecer-se pela sua nação. AU ele conclamaria a sua nação a uma 39 Cf. E d u a rd Lohse, Die Geschichte des Leidens and Sterbens Jesus Christi (2* ed.; G ütersloh: M ohn, 1967), p .2 7 .

decisão. Ela deveria rejeitá-lo ou aceitálo. Este não era um destino imposto sobre a sua nação. A oferta de si mesmo era uma oferta verdadeira. Mas Jesus previa para si rejeição e execução nas mãos dos líderes de Israel. Entende-se por anciãos, principais sacerdotes e escribas o Sinédrio. Aquele corpo de sacerdotes e leigos o condenaria à morte. Mas Jesus não via morte, e, sim, vida, como a última palavra. Ao terceiro dia era necessário que ele ressuscitasse. As expressões “ ao terceiro dia” , de Mateus, e “ depois de três dias” , de Marcos, en­ tendia-se, significavam a mesma coisa (Cf, Deut. 15:12, “no sétimo ano” , e o texto hebraico de Jer. 34:14: “ ao fim de seis anos”). Pedro falou pelo grupo, recusando-se a admitir o sofrimento e a morte como quinhão do Messias. Eles participavam das expectações judaicas de que o Mes­ sias derrotaria os inimigos de Israel e restauraria o reino nacional (cf. At. 1:6). Pedro presumia poder corrigir Jesus do que para ele era um ponto de vista desne­ cessariamente pessimista e uma contra­ dição às idéias aceitas acerca do Messias. Tomando-o à parte (proslabontes) pode descrever uma ação em que Pedro levou Jesus de lado ou puxou-o para si, dando a entender uma intenção de oferecer pro­ teção ou até uma custódia protetora. Tenha Deus compaixão de ti é tradução do que literalmente é “(Deus) seja mise­ ricordioso para contigo” . Possivelmente, Pedro quis dizer: “Deus tenha misericór­ dia de ti por dizeres tal coisa” (cf, Fil­ son, p. 188). Jesus achou necessário repreender Pedro mais severamente do que Pedro o havia repreendido. Tendo anteriormente atribuído a confissão de Pedro à revela­ ção divina, ele agora chama o protesto de Pedro de satânico. O aramaico, por de­ trás das palavras gregas traduzidas como Para trás de mim, podiam significar “afaste-se” tanto no sentido de “para trás” como de ir “embora” (Robinson, p. 143). Provavelmente, Jesus sentiu a 221


força das tentações do deserto expres­ sando-se de novo na luta de Pedro por um Messias sem sofrimento e morte. Pedro estava errado, e Jesus teve de novo que colocar para trâs aquela sugestão de um Messias político (cLl4:8-10). A suggs^ tão de Pedro era um escândalo para Jesus, isto é, algo em que se tropeça (skandalon). Os alvos messiânicos colimados por Pedro pertenciam aos propó­ sitos do homem, e não de Deus. Jesus insistiu na necessidade do cami­ nho da cruz, não apenas para si mesmo, mas tamBenl para os seursêguidores. A cruz poderia v ira sêFITtêrãl'pIfFÕs^iscípulos, como o seria para o Mestre. Quer literal, quer não, ela representa uma verdadeira forma de vida através da “morte do eu” em cada discípulo. ’~Ã decisão do seguidorde^ Jesus, de negar-se a si mesmo, não é opcional dentro do discipulado. Não se pode se­ gui-lo sem observar este princípio. Seguir é tomar a c r ^ ejaegarje^aji^m g^p^ A negação do eu não deve ser confundida com a negação deãlgo a si mesmo, sejam coisas materiais, prazer, ou o que for. Os ímpios muitas vezes se negam muitas côIsaTT fim de alcancar os seus alvos egoísticos, ou vencer os seus inimigos. A negação"3e coisas para si pode ser uma expressão do que Jesus chamou de “ne­ gar-se a si mesmo” , mas pode ser, da mesma forma, uma autodisciplina, com vistas a alvos não-cristãos. Todo guer-, reiro, para não ir mais longe, se disci­ plina a fim de vencer os seus inimigos. O que Jesus quis significar com a expressão a u to n ^ a ç ã ^ ( a b n é muito mais r a d íc ir f B ^ u e líe g a r a si mesmo algumas coisas. Ele estava que­ rendo dizer que precisa-se dizer não para si mesmo. Ele estava dizendo o oposto do Hm~dê^gao para o eu, e não para Deus, Ele estava falando um sim para Deus e ^um não para o “ego” . Todo pecado, e düm iição do home^m centraliza-se no amor-próprio, confiança-própria e auto' afirmação. A craz^sjgnifiça o oposto. ' Sigmfica c o n f í S n ç ? « n ^ ^ , amor a 222

Deus, entrega a Deus, e não ao eu. Paraáõcãlmente, este não para o eu é um sim para o verdãdêirõ eu. A pessoa pela C ^Primeira vez se torna o aue foi feita para J \ ser quando nega-se a si mesma. ' ^ } A pessoa salva a sua vida somente "^ ^quãnctcrarperde-par^-Crisla^E perde a f \ sua vida quando (egoisticamente) tenta ^ salvá-la. Vida e alma são. traduções da mesma palavra grega (psuché). Desta forma, a pessoa pode salvar-se apenas guando se perde. E se perde quando tin ta j alvar-se. Esta é uma lei da vida, expressa em o Nòvo Testamento de mui­ tas maneiras. Não foi apenas declarada; Jesus salvou a sua própria vida (eu) pre-^ cisamente ao perdê-la na cruz (cf. 27:£ 41-44). Os versículos 26-28 relacionam-se com o juízo. Depois de advertir que a pessoa pode perder-se no próprio ato de tentar salvar-se, Jesus mdicou como j grande e irrecuperável essa perda. Mesmo ganhar o munHõ inteirò, não teria valor para al­ guém que perdera a sua vida. Ao falar de perder a vida, Jesus não se referiu à morte física, pois essa vem" para todos. Ele referiu-se ao fato de a pessoa não alcançar o seu verdadeiro destino, deixando^^êT^ornar o que sTiaêrSnava a ser. Em troca de sua vida, ou em troca de sêu eu perdido, a pessoa darâ alegremen­ te o mundo, se isso puder ser feito. Pafã~' expressá-lo mais simplesmente, quando uma pessoa persegue os seus alvos na vida, pode pèiFHer de vista a verdadeira vida, que só pode ser conhecida mediante uma relação apropriada com Deus. Se tal pessoa pudesse viver a sua vida de novo, " daria o mundo em troca da vida que permanece. Ao Filho do homem fora prometido um reino universal“ ê“ etemo (cf. Dan. 7:13 e s.). Embora o seu propósito posi­ tivo seja salvar a humanidade, eie tam­ bém vem para julgar. O juízo pertence redenção, faz parte dela, da mesma for- ( ma como a cirurgia faz parte da terapia. ^ Mas o juízo vem a ser não redentor, e apenas condenador, para os que rejeitam

S


o reinado do Filho do homem. Jesus falou de juizo como pagamento: ele retri­ buirá (apodosei) a cada um segundo as suas obras, pela sua “prática” (praxis). pessoa é salva por um ato livre da^ V graça de Deus, mas é julgada de acordo | / com o seus atos. Jesus predisse um a vinda do Filho do homem no seu reino durante a vida de algumas pessoas que o ouviam falar. Essa vinda parece relacionar-se especi­ ficamente ao juizo. O limite, o fato de que esse juizo viria durante a vida de algumas “pessoas^ qüe 6 ouviam falar é maüljonsèníaneõ c^om um cumprimento nos eventos que cercaram a sua morte, ou no julgam entcTquelõbr?" veio à nação em 70 d.C. A primeira hipótese parece ser mais natural, em relação ao contexto. Na sua morte e^ essurreição, Jesus triunfou, e assim tam-1 3ém levou o homem à crise de juízo {ci.j (João 3:18-21). Não deve ser menospre­ zada uma referência à destruição de Je­ rusalém e da nação em 70 d.C. Jesus repetidamente tentou fazer a nação se desviar da sua colisão com Roma. A ruína que sobreveio à nação, quando ela estava no próprio ato de tentar salvar-se, foi uma verdadeira vinda do Filho do homem para juízo. A referência mais óbvia, no versículo 27 e s. é à Parousia ou vinda do Filho do homem no fim dos séculos (cf. 10:23). Mas esta interpretação entra em dificul­ dades. A referência é a um acontecimen­ to que deve ser testemunhado por con­ temporâneos de Jesus. Quando Mateus escreveu, quase uma geração inteira se havia passado. Parece que, em outros lugares, Mateus claramente antevê um extenso período de espera e de atividade missionária por todo o mundo, antes do fim(cf. 24:48; 25:5, 19; 28:20). E depois, também, registra Jesus dizendo que “aquele dia e hora” só o Pai sabia (24:36). O versículo 27 e s. são melhor enten­ didos em termos do interesse paraenético ou didático de Mateus, aqui enfati­

zado por sua posição em um contexto escatològico. Mateus nâo nos apresenta uma formulação sistemática, um quadro sistemático do “fim do mundo” . A asser­ tiva é que a morte de Jesus nâo deveria ser a sua derrota, pois ele viria outra vez como Juiz e como Rei! Juntamente com isto, há tanto advertência quanto jn c o ^ ,raiaménto.lpararcaiiárpê5soá."de que as suas obras serão julgadas pelo Filho do homem, que virá no seu reino. Desta forma, a preocupação de Mateus nâo é fixar urna data para a Parousiia, mas enfatizar as exigências atuais, colocandoas em um contexto escatològico. 3. Jesus Transfigurado: Revelação e Pre­ paração para a Cruz (17:1-13) 1 S eis d ias d ep ois, tom ou J e su s con sigo a P ed ro, a T iago e a João, irm ão d este, e os conduziu à p arte a u m a lto m on te; Z e foi transfigurado d iante d e le s; o seu rosto r e s ­ p lan d eceu com o o so l, e a s su a s v e ste s torn aram -se b ra n ca s co m o a luz. 3 £ e is que lh es a p a r e c er a m M oisés e E lia s, falando com e le . 4 P ed ro , tom ando a p a la v ra , d isse a J esu s: Senhor, b om é esta r m o s aqui; se qu eres, fa r e i aqui três ca b a n a s, u m a p ara ti, outra p ara M oisés, e outra p ara E lia s. 5 E stan d o e le a in d a a fa la r, e is que u m a n uvem lu m in osa os cobriu ; e d ela sa iu u m a voz, que d izia: E ste é o m eu F ilh o am ad o, e m quem m e com p razo; a e le ouvi. 6 Os discipulos, ouvindo isso , ca ír a m com o rosto e m terra , e fic a r a m gran d em en te a te m o ­ rizados. 7 C hegou-se, p o is, J e su s e, tocandoos, d isse : L evan tai-vos, e n ão tem a is. 8 E , erguendo e le s os olh os, não v ir a m a n in ­ guém sen ão a J esu s som en te. 9 E nquanto d esc ia m do m on te, J e su s lh es ordenou : A n in gu ém co n teis a v isã o , a té que o F ilb o do h om em se ja lev a n ta d o en tre os m ortos. 10 P ergu n taram -lh e os discípulos: P or que d izem en tão o s e scr ib a s que é nec«ssário que E lia s v en h a p rim eiro? 11 R esp on ­ deu e le : N a v erd ad e E lia s h a v ia de v ir e restau rar tod as a s c o isa s; 12 digo-vos, porém , que E lia s já v eio , e n ão o reco n h e­ c era m ; m a s fizeram -lh e tudo o que q u ise­ ram . A ssim ta m b ém o F ilh o do h om em há de p a d ecer à s m ã o s d eles. 13 E n tão en ten ­ d eram os d iscíp u los que lh es fa la r a a r e s ­ peito de João, o B a tista .

Hoje em dia é lugar-comum chamar este episódio de aparecimento da ressur­ 223


reição, inserido na vida de Jesus. Isto não é garantido. Mateus o chama de visão, enfatizando o subjetivo. Essa foi real­ mente uma verdadeira experiência na vida de Jesus e de seus discípulos. Podese entender que essa experiência seria mais bem compreendida pelos discípulos depois da ressurreição de Jesus. A tra­ dução da palavra metamorphõthè como “transfigurado” deve-se à Vulgata Lati­ na. Essa palavra normalmente é vertida como “ transformado” , como em Roma­ nos 12:2. ou “mudado” , como em II Coríntios 3:18. Que Pedro, Tiago e João formavam um círculo mais íntimo ao redor de Jesus é fato bem atestado (cf. 26:37; Mar. 5:37; 13:3). Tiago foi um dos primeiros mártires (At. 12:2), e durante certo tem­ po pode ter sido mais proeminente do que João. O alto monte é identificado por tradição posterior como sendo o monte Tabor, mas o Hermom é mais provável, pois fica mais perto de Cesaréia de Fili­ pe, e se levanta a uma altura de 3.000 metros. A transfiguração de Jesus pode ter servido para fortalecê-lo para as prova­ ções que estavam à sua frente, mas isto não está explícito. O interesse explícito se relaciona mais com as necessidades dos discípulos. Eles precisavam receber uma certeza, vinda da voz na nuvem lumino­ sa, de que Jesus era o Filho amado, em quem Deus se compraz. Pedro acabara de expressar discordância acerca do que Jesus dissera a respeito de sofrimento e morte (16:22). Pedro havia demonstrado mais disposição para instruir Jesus do qu( ara ser instruído. Ele e os seus companheiros agora testemunham uma maravilhosa glorificação de Jesus, e lhes é dito: a ele ouvi. Só Lucas conta o que Moisés e Elias discutiam com Jesus (9:31). Eles falavam da sua partida, literalmente “êxodo” (exodon), que Jesus “estava para cum­ prir em Jerusalém” . (Moisés e Elias podem representar a Lei e os Profetas, 224

mostrando a relação entre a velha e a nova alianças. Possivelmente o ponto importante é a maneira triunfante pela qual cada um deles terminou a sua vida. Elias fora levado ao céu “ num rede­ moinho” , e presumivelmente em uma carruagem de fogo (II Reis 2:11). Uma tradição afirma que Moisés não morrera, mas ascendera ao céu (cf. A Assunção de Moisés em escritos pseudo-epigráficos). A palestra acerca da sua partida fortale­ ceria Jesus para a sua cruz, e era espe­ cialmente acerca desse assunto que os discípulos precisavam ouvi-lo. O desaparecimento de Moisés e Elias da visão, deixando a ninguém senão a Jesus somente, serve para exaltar a Jesus e para enfatizar a ordem dada aos discí­ pulos, de que eles deviam ouvi-lo. Se Moi­ sés e Elias tipificam a Lei e os Profetas, a mensagem é que Jesus é o cumprimento de ambos. Só ele é suficiente. A ordem para não contar a ninguém acerca da visão antes que Jesus fosse ressuscitado dentre os mortos servia a diferentes obje­ tivos. Os discípulos ainda não estavam plenamente preparados para interpretar a visão, e as outras pessoas teriam a ten­ dência de ver nela o cumprimento de es­ peranças nacionalistas populares. Levan­ tando dentre os mortos preserva a manei­ ra mais primitiva de descrever a ressur­ reição. O que estava sendo enfatizado não é que ele iria se levantar, mas res­ suscitar (At. 2:24). Baseando-se em Malaquias 3:1 e 4:5, esperava-se que Elias viesse antes do Messias, para preparar o seu caminho. Jesus identificara Elias com João Batista. Embora Jesus fosse experimentar uma morte triunfante, também sofreria rejei­ ção e execução às mãos de homens ím­ pios, como João o experimentara. O ver­ sículo 11 não é claro, ao dizer que Elias havia de restaurar todas as coisas. João Batista, o “Elias” que viera, fora morto. Se colocarmos a pontuação interrogativa, ficaria menos difícil, pois se seguiria: “Na verdade, Elias havia de vir; mas iria ele restaurar todas as coisas?” Isto pro­


piciaria o reconhecimento de que a obra de restauração ficaria para Jesus realizar. 4. Fé Para Remover Montes (17:14-21) 14 Quando ch eg a ra m à m u ltid ão, ap ro­ xim ou-se de J esu s um h om em que, a jo e ­ lhando-se diante d ele, d isse : 15 Senhor, tem com paixão de m eu filho, porque é ep ilép tico e sofre m uito ; p ois m u ita s v e z e s ca i no fogo, e m u ita s v ezes n a águ a. 16 E u o trouxe aos teus discípulos, e náo o p u d eram curar. 17 E J esu s, respondendo, d isse : Ó gera çã o incrédula e p erv ersa ! a té quando esta r e i convosco? até quando v o s sofrerei? Trazeim o aqui. 18 E n tão J e su s repreendeu ao dem ônio, o qual saiu do m enino, que desde aquela hora ficou curado. 19 D ep ois os d is­ cípulos, aproxim ando-se de J e su s em p a rti­ cular, p erguntaram -lh e: F o r que não p u ­ dem os nós expulsá-lo? 30 D isse-lh es e le : P or causa da v o ssa pouca fé ; pois e m verdade vos digo que, se tiverd es fé com o u m grão de m ostarda, direis a e ste m onte : P a s s a daqui para a co lá , e e le h á de p a ssa r; e n ad a vos será im p ossível.

Mateus segue Marcos, ao fazer esta história servir de contraste à experiência da transfiguração. Rafael, em um grande quadro, conseguiu captar o contraste entre a glória da transfiguração sobre o monte e o sofrimento e frustração lá embaixo. Há também o contraste entre 0 poder de Jesus e a ineficácia dos dis­ cípulos. O menino afligido é chamado epilético (literalmente, “lunático”) e também se diz que ele tinha um demônio. Isto é, dentro do próprio Novo Testamento, uma indicação de que a mesma doença pode ser descrita tanto cientificamente, ou medicinalmente, como teologicamen­ te. O emprego do termo demônio dá a en­ tender algum relacionamento entre as do­ enças humanas e o mal, mas a relação não é tão direta como quando a palavra Sata­ nás é empregada. Dá-se a entender a cul­ pa de uma pessoa quando as suas atitudes ou atos são atribuídos a Satanás. Contu­ do, quando se diz que uma pessoa é pos­ sessa de demônios, como no caso deste menino epilético, o que se enfatiza não é a culpa, mas o fato de a pessoa ser domina­ da ou vitimada por forças ou fatores des­ truidores, resultando em distúrbios físi-

cos e psicológicos (mentais e emocionais). 40

A acusação de Jesus, de que a sua geração era incrédula e perversa, expres­ sa Deuteronômio 32:6. O fato de os discípulos não terem podido curar o me­ nino foi lançado à conta de sua pouca fé, e não à incredulidade, como em tradu­ ções mais antigas. O grão de mostarda era proverbialmente a mais pequena das sementes (cf. 13:32). A idéia é que qual­ quer quantidade de fé deve dar à pessoa a vitória sobre as limitações e condições normais da vida. A referência à remoção de montes é proverbial, e deve ser consi­ derada como hipérbole, e não em sentido literal. Para a remoção literal de monta­ nhas, o equipamento moderno de terra­ planagem é suficiente. O versículo 21 tem grande confirma­ ção entre os manuscritos, mas está au­ sente dos manuscritos de mais confiabi­ lidade das famílias textuais alexandrina e cesareana. Parece claramente que é uma adição feita a Mateus. Ele é mais bem atestado em Marcos, porém, mesmo ali (9:29), a sua originaUdade não é certa. Ele muda a ênfase da fé para a oração (e até para o jejum, em um desenyolvimento textual posterior). A ausência do versículo nos melhores textos de Mateus e Lucas pode significar que ele não era original a Marcos. 5. Os Discipulos Novamente Advertidos (17:22,23) 23 Ora, achando-se e le s n a G aliléia, disselh es J e s u s : O FiUio do h o m em e stá p ara ser en tregu e n a s m ã o s d os h o m en s; 23 e m atálo-ão, e ao terceiro dia ressu rg irá . E e le s se e n tristecera m gran d em en te.

Parece que freqüentemente Jesus ten­ tou preparar os seus discípulos para a rejeição e morte dele. Mateus segue M ar­ cos, ao trazer isto à ribalta por três vezes. A primeira predição seguira-se à confis­ são de Pedro acerca de Jesus ser o Cristo 40 Cf. R agnar Leivestad, Christ the Conqueror (New York: M acm illan, 1954).

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(16:21). O segundo anúncio fora feito na Galiléia. O terceiro teve lugar quando Jesus se aproximava de Jerusalém, pouco antes de sua morte (20:17-19). Parece estranho que os discípulos estivessem tão despreparados para a morte de Jesus quando ela ocorreu. Isto demonstra até que ponto a pessoa pode ser “surda” para o que não quer ouvir. Os ouvidos são para ouvir, mas nem sempre ouvem (13:9; 17:5). Os discípulos ainda não entendiam, mas, nesta segun­ da ocasião, eles pelo menos não repre­ enderam Jesus. Ficaram muito tristes, ouvindo a palavra acerca de sua morte. 6. Imposto do Templo Pago, Direitos Abdicados (17:24-27) 2i Tendo e le s ch egad o a C afarnaiun, ap roxim aram -se de P ed ro os que cob ravam a s d id racm as, e lh e pergu n taram : O v o sso m estre não p a g a a s did ra cm a s? 25 D isse e le: S im . Ao en trar P ed ro e m c a sa , J esu s se lhe antecip ou, perguntando: Que te p a re ­ ce, Sim ão? D e qu em cobram o s r e is da terra im posto ou tributo? dos se u s filh os, ou dos alheios? 26 Quando e le respondeu: D os a lh eios, d isse-lh e J e s u s : L ogo, sã o isen to s os filh os. 27 M as, para que não os e sc a n d a li­ zem os, v a i ao m a r, la n ça o an zol, tira o prim eiro p eix e que subir e , abrindo-lhe a b oca, en con trarás u m e s t á te r ; tom a-o, e dálho por m im e por ti.

Esta história encontra-se apenas em Mateus; possivelmente é a mais estranha das histórias miraculosas. Algumas pes­ soas têm zombado dela; um milagre por um “shequel” (aproximadamente seten­ ta cruzeiros)! Levanta-se outro problema do fato de que Jesus normalmente se recusara a empregar milagres para a sua própria conveniência. Sérios estudiosos se têm perguntado se este milagre, apa­ rentemente insignificante, quase bizarro, pode realmente ser atribuído a Jesus. Todavia, este ponto de vista peca por não apreciar o grande princípio que ele ensina. Esta estranhâ história ensina o princípio primário do abandono dos di­ reitos pessoais quando estes puderem servir aos interesses de outrem. A idéia é que Jesus fez o que tinha direito de não 226

fazer. Pagou um imposto do Templo, do qual por direito era isento. As didracmas (“ a terça parte de um siclo” , conforme Neemias 10:32) eram um imposto do Templo, a ser pago anu­ almente, seis semanas antes da Páscoa, por todo judeu do sexo masculino “de vinte anos para cima” (Êx. 30:11-16). Quando Mateus escreveu, o imposto do Templo era pago para Roma, e não para Jerusalém, e podia servir como advertên­ cia contra a recusa de se pagar um imposto aos romanos; mas, em sua apli­ cação primitiva, exortava os cristãos para não usarem desta forma a sua liberdade, de forma a ofender os judeus (Hare, p. 142). Os que cobravam perguntaram a Pedro se o seu Mestre não pagava as didracmas (duas dracmas, moeda grega), fazendo a pergunta de forma a receber uma resposta afirmativa. Pedro impul­ sivamente respondeu por Jesus, esperan­ do, possivelmente, esclarecer o assunto com Jesus mais tarde. Posteriormente, em casa (a casa de Jesus, de Pedro, ou outra pessoa), Jesus se lhe antecipou (prosephthasen). Jesus estabeleceu o princípio de que os filhos dos reis estão isentos de taxas ou tribu­ tos, sendo lançados esses encargos sobre os alheios. Impostos (telè) se refere a taxas locais ou de alfândega, e tributos (kênsos) eram um imposto de recensea­ mento, ou imposto “por cabeça” . Como Filho de Deus, Jesus declarou a sua isenção do imposto do Templo. Não obstante, ele pagou o imposto, para não os escandalizar. Essa disposição de abrir mão de direitos pessoais, no interesse de outrem, é característica básica do modo de agir de Cristo (cf. I Cor. 8:13; 9:12; 10:28). A família humana nunca avança significativamente para uma vida mais significativa, exceto se alguém _estiver disposto a abdicar de direitos pessoais pelo bem de outrem. Este princípio en­ controu a sua expressão máxima em Jesus Cristo, especialmente na sua cruz. O fato de Jesus ter recorrido a um milagre (ele parece ser dado a entender.


mas, na verdade, não declarado ou des­ crito) pode ter tido o objetivo de uma demonstração imediata, para apoiar os seus reclamos de que de fato ele era o Filho, ao qual pertencia o Templo, e que, desta forma, era isento de pagar esse imposto. O seu propósito não era o de servir a interesses e conveniências pes­ soais, mas preparar o cenário para im­ primir nas mentes um princípio básico. Resumindo, Jesus declarou a sua filiação característica, a sua isenção do imposto do Templo (com a implicação da sua liberdade, e de seus discípulos, do pró­ prio templo) e a sua disposição de pagar o imposto em consideração aos outros. Esta passagem faz manterem-se em equiKbrio dois princípios cardeais; (1) a liber­ dade de Jesus e dos seus seguidores em relação ao Templo e à lei judaica, e (2) o interesse dos outros limitando a liber­ dade pessoal. Pode-se dizer que a fé de uma pessoa a torna livre, e o amor esta­ belece os limites com que essa liberdade deve ser exercida.

XI. Instruções Para a Igreja (18:1-35)

ligado inseparavelmente à perdoabilidade, e não deve conhecer limites. *1. A Grandeza no Reino (18:1-14) Marcos (9:33-37) indica que os discí­ pulos haviam estado a discutir a questão de quem era o maior. Ao entrar numa casa de Cafarnaum, possivelmente a de Pedro, Jesus perguntou-lhes o que é que eles haviam estado discutindo. O silêncio deles traiu a conclusão a que haviam chegado: de que o seu interesse não iria ser do agrado de Jesus. Marcos cita Jesus~ estabelecendo, em^^garado^, o_grMde^ princípio de que a grajicleza pertencé'õu~ fãz parte da disposição íe"sér o últimõT" servo de todos. Mateus resume o tratamento que M ar­ cos dá ao episódio, mas preserva o ponto essencial. Ele também omite a história que Marcos conta (9:38-41), da hostili­ dade dos discípulos para com um exor­ cista, que trabalhava fora do seu grupo, tendo Jesus repreendido o preconceito dos discípulos contra aquele estranho. Desta forma, Mateus se concentra na ameaça do. orpiilhn^ enquanto Marcos trata as ameaças gêmeas de orgulho e preconceito. Possivelmente a omissão de Mateus, em relação à história contada por Marcos, acerca do estranho a quem Jesus sancionou, deva ser entendida em termos da preocupação dele em focalizar a atenção na Igreja. Os seus leitores poderiam ter usado a história para justi.. ficar movimentos cismáticos. ’

Aqui começa o quarto dos cinco gran­ des discursos de Mateus que dividem este Evangelho em cinco partes (cf. 5-7; 10; 13; 18; 24 e 25). Esta coleção de discur­ sos é edificada ao redor do tema do rela­ cionamento dos discípulos uns com os diitros dentro da I ^ j a (Lau, p. 134). A ambição orgulhosa é rejeitada, em favor. 1) Humildade Infantil (18:1-4) 3o serviço humilde. "A aceitação do povo de Cristo é um 1 N aquela hora ch eg a ra m -se a J esu s os teste básico de discipulado. Levar outra discípulos e p e r g u n ta ra m : Quem é o m aior pessoa a fracassar, seja por mau exemplo no reino dos céu s? 2 J e su s, cham ando u m a crian ça, colocou-a no m eio d ele s, 3 e d isse : orgulhosa ambição, por indiferença, E m v erd ad e v o s digo que, se não vos co n ­ ou outra coisa, é pecado mortal. A im­ verterd es e não vos fizerd es co m o cria n ça s, portância do “mênor” e do último é de m odo a lg u m en tra reis no reino dòs cèü s. suficiente para nos levar a um esforço 4 P ortanto, quem se tornar hum ilde com o |estrem]^yoãra recuperar o perdido. A< , esta cria n ça , e ss e é o m aior/nojireino dos icOmunRâo eclesiástica requer auto-dis-J [ciplina, mas o alvo da disciplina é a sal-< Jesus respondeu à pergunta dos dis­ rvação ou convalescença. A reconciliação cípulos, acerca da grandeza, por meio de é a atividade da Igreja. O perdão está uma parábola dramatizada, colocando 227


uma criança no meio deles. Rle primei- Ç ramente abalou o seu interesse na eran- ^ T----------------------- 3~— --— 2 T" deza no reino aíiiS ^ndo que, se eles nao , ^vessem um espirito diferente, nem en-L v trariam no reino. Eles precisavam se converter (straphête) e se fazer como crianças. Dua^andogiag^familiares são empregadas aqui: conversão erenovag^. Con­ verter (mudãr de rumo ou direção) é a idéia de mudar as atitudes e o curso básico da vida. A preocupacão com a grandeza pessoal é a coisa diametral­ mente oposta da preocupação pelo ver­ dadeiro discipulado. E.também o oposlõ" da submissão requerida pelo reino de Deus. Como já foi observado, o reinoXo overno ou reinado deJDeus. A ambição i~grãndeza" nãÕ*sê'’cõadunãr'com esses requisitos. A luta do discípulo em busca< de poder ou primazia entre os seus pares também trai a confusão que está fazendo I do reino dos céus com um tipo de reino terreno, político, que propicia posições de poder (cf. 20:20-28). A exigência de que as pessoas que entram no reino se façam como crianças ^çopgiste em um paralelo íntimo com o f^^n^ c e r 3ê~novy^ analogia apresentada por João (3:3). Entrar no reino significa

f

qiip a ppccna r n m p p a a -virla- /íp .novn.

baslcãmen^te com novas atitudes, valores,' confiança e dedicacãoT A semelhança a uma criança é coloca> da‘com y5Q aíaa“^ T g r a ^ do - < 5 remo, bem como a condição para entrada nele. O ^ aio r^ aquele^ e ^ : 9 ^ humilde. O sé n íím è n to ^ e '^ 2 ^ is3 e n S ^ ^ “S ã c n â íí^ , baseado na percèpção da sua pequenez, pode ser considerado, mas Jesus enfatiza a humildade como o I^ oposto às orgulhosas ambições dos discí! pulos (cf. 23:12). 2) O Pecado de Fazer um Pequenino Tropeçar (18:5-9) 5 E qualquer que receb er e m m eu nom e um a j^ian^Su ta l com o e sta , a m im m e receb è. 6 M as qualquer que fizer tropeçar um d estes Deau^jjjios^que c rê e m em m ^ , m elhor Ih ^ fo r a que s^ T h ê^ en d u râ ssê^ à ò

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b r ite i.

p esco ço u m a p ed ra de m oinho, e se subprofundeza do m a r. 7 Al do m undo, por ca u sa dos tropeços!

- mevitável que venham; mas ai do

h om em por q u em o trop eço v ier! 8 S e, pois, a tua m ã o ou o teu pé te fizer tropeçar, corta-o, e lança-o de ti; m elh or te é entrar n a vid a aleija d o , ou coxo, do que, tendo duas m ã o s ou d ois p é s, ser lan çad o no fogo e te r ­ no. 9 E , se o teu olho te fizer tropeçar, arran ca-o, e lan ça-o d e t i ; m elh or te é entrar n a v id a co m lu n só olho, do que, tendo dois olhos, se r lan çad o no infern o de fogo.

A aceitação uns dos outros, e especial­ mente a recepção dos pequeninos é um teste básico do discipulado. Jesus se identificou tanto com os pequeninos que recebê-los em seu nome é recebê-lo (cf. 25:40). Ao falar de pequeninos, Jesus estava se referindo tanto a crianças como a pessoas que comumente são menos-": prezadas, negligenciadas ouexploradas — os “pequeninos” do mundo. Üma comparação dos versículos 5, 6, 10 e 14 esclarece este fato. Precisa-se considerar as atitudes contemporaneas em relação às criancas_e ‘*pêqü^inos” ,^ a r a apreciar a a tl^ d e e os ensinamentos de Jesus. Os iudeus tinham muito mais consiaeraçao para com as crianças do que o s p ^ ã o s , mas até eles ficavam aquém do exemplo de Jesus. A impaciência dos discípulos para com as crianças se colocou em contraste com a acessibilidade de Jesus para com elas (19:13-15). As meninas sofriam mais do que os meninos, n o m undõ^iJesus. Os p^ aro -n n iitas v*^^^ expunham ^arc?íâs recém-nascidas. à„jnorte, quando não eram desejadas. Isto é explícito em um papiro do primeiro século, do qual resta um fragmento com uma carta de Hilarião à sua esposa Alis, instruindo-a acerca do bebê que esperavam: se fosse menino, conservá-lo; se fosse menina, deixá-la morrer. NoJudaísnjQ^ uma filha era proprieàa3e qu^^im a ser dada a outra pessoa, em um contrato de casamento. Jesus 41 Cf. W . H . Davis G reek P apyri of the F irst Century (New Y ork; H arper, 1933) p. 1 e s.


elevou as crianças, bem como as mulheres7 os “pequeninos” e os “estrangeiros” “a condição de pessoas preciosas, que deviam ser aceitas, cuidaoas e amadas. Us "pequeninos" tem sido negligenciados ou explorados em todas as épocas. Havia milhões de escravos na éooca de Jesus, e até os lideres judeus~d^]^ez'avam o ‘am ha’ arez, “o povo da ter r ^ (cf. Pirke ^ ãra Jesus não havia pessoas sem importân­ cia. Pequeninos pode ser um apelido para todos os seus discípulos. A insistência no fato de que, ao reieitar ou aceitar o seu povo, a pessoa reieita ou aceita o próprioTêsus é um tema em que se toca constantemente no Novo Testa­ mento. A verdadeira atitude e relação dc uma pessoa com Jesus é expressa na sua atitude e relação para com o seu p o v o . Não se pode divorciar a relação “verti­ cal” com Deus da relação “horizontal” com o próximo (cf. 5:7, 23 e s.; 6:14 e s.; 25:40; I Cor. 8:12; I João 4:20 e s.). Fazer um pequenino, literalmente, uma criança ou pessoa comum, tropeçar (skandalisèi) é pior do que morrer. Seria melhor ser afogado no mar do que fazer com que um pequenino se transvie. Uma pedra de moinho, à qual Jesus se referiu, era a mó superior, dentre as duas pedras do moinho, tão grande que precisava ser girada por um asno. As causas de tro­ peço podem ser várias, mas a que por inferência é mencionada aqui é a ambi­ ção orgulhosa, como a que acabara de ser manifestada pelos discípulos. Marcos traz à baila também os efeitos pernicio­ sos do preconceito (9:38-41). Os inevitáveis tropeços (skandala), contra os quais Jesus advertiu, são oca­ siões para tropeçar, tentações para tal. Ao dizer que eles são inevitáveis (anagké), Jesus não quis dizer que Deus os decre­ tou, ou que eles são indispensáveis para nós. O que ele disse foi que na vida, ela sendo como é, pode-se contar com o problema constante da tentação. Sempre que a vida é Uvre, é perigosa. Dar ao homem a opção do bem é dar-lhe a opção

do mal. Isto não significa que não pode haver bem sem mal, pois este é um “dualismo” estranho à Bíblia. Significa que Deus nos deu verdadeira liberdade e verdadeiras oportunidades para escolher, e que a vida é cheia de armadilhas. Mas a advertência é feita especialmente contra o fato de se fazer outra pessoa tropeçar. Uma mudança súbita de rumo é efe­ tuada no versículo 8 e seguintes. Precisase não apenas guardar-se contra o perigo de fazer outra pessoa tropeçar; é neces­ sário a própria colocar-se debaixo da dis­ ciplina que for necessária, para salva­ guardar-se contra os tropeços. Sem dú­ vida, o sacrifício literal de mão, pé ou olho não resolverá os problemas da tenta­ ção e do pecado, mas a ilustração é clara. Da mesma forma como se sacrifica um órgão do corpo para salvar a vida física, também qualquer disciplina, por severa que seja, não é preço muito grande a ser pago pela vitória sobre os tropeços. Em 5:27-30 uma analogia cirúrgica similar é empregada com respeito ao problema da concupiscência carnal. Aqui a mesma analogia cirúrgica é apli­ cada ao problema do orgulho (e do pre­ conceito em Marcos), que está tão pro­ fundamente arraigado. O verdadeiro problema do homem está dentro dele mesmo, e a vitória sobre o egocentrismo, tão firmemente alojado (e também do orgulho, preconceito, concupiscência, ou seja o que for), só acontece com a radical “cirurgia” do arrependimento, conver­ são, novo nascimento e disciplina diária. 3) Preocupação Para Que Nenhum Pe­ quenino Pereça ( 18:10-14) 10 V ede, não d esp rezeis a nenlium d estes pequeninos; pois eu v o s digo que os seu s anjos nos céu s sem p re v ê e m a fa c e d e m eu P a i, que e stá nos céu s. 11 Porque o F ilh o do h om em v eio sa lv a r o que se h a v ia perdido. 12 Que v o s p a rece? Se a lg u ém tiv er cem ovelh as, e u m a d e la s se ex tra v ia r, não d e i­ x a rá a s n oven ta e nove nos m on tes, p a ra ir bu scar a que se extraviou ? 13 E , se a co n te­ cer a ch á -la , e m v erd ad e v o s digo que m aior prazer te m por e sta do que p ela s n oven ta e nove que não se ex tra v ia ra m . 14 A ssim

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tam b ém não é d a von tad e de v o sso P a i, que está nos céu s, que ven lia a p erecer um só d estes pequeninos.

Mateus parece ter tirado a história da ovelha perdida de Q, sendo o seu para­ lelo encontrado em Lucas 15:3-7. É en­ fatizada a importância do menor e do último. Deus não deseja' a perda de nem um só destes pequeninos, pelo con­ trário, ele tem o maior prazer com a recuperação, nem que seja de apenas um deles. Ter noventa e nove em segurança não satisfaz o pastor, se existe uma ove­ lha que seja que se extraviou. Não que ele ame menos as noventa e nove, mas é que não existe alegria como a de recuperar uma que estava perdida. A alegria de Deus ao recobrar perdidos talvez seja a idéia prin­ cipal da história, a julgar da maneira como Jesus a contou (cf. Luc. 15:7,10, 22-24). Jesus advertiu contra o pecado de des­ prezar um pequenino. O fato de que os seus aivjos nos céus sempre vêem a face de Deus reflete o ponto de vista de que cada pessoa tem um “sósia” ou represen­ tante angélico nos céus (cf. Est. 1:14; Dan. 10:13; At. 12:15; Apoc. 1:20). Não está claro que Jesus tenha querido en­ dossar a crença em anjos da guarda. A preocupação não é com essa doutrina como tal. A citação é apenas incidental, em relação à idéia central. A preocupa­ ção de Jesus era dizer que as crianças e os “pequeninos” são importantes para Deus, e por isso devem ser importantes para nós. É forte a evidência de manuscritos, tanto a favor como contra o versículo 11. O versículo provavelmente não é original em relação a Mateus, mas emprestado de Lucas 19:10. Se ele fosse original, os escribas não teriam razão para tirá-lo dos manuscritos primitivos em grego, latim, siríaco e copta. 2. Disciplina Eclesiástica: Corrigir e Recuperar (18:15-20) 15 Ora, se teu irm ão p eca r, v a i, e rep re­ ende-o entre ti e e le só ; se te ouvir, terá s

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ganho teu irm ã o ; 16 m a s , se não te ouvir, le v a ain d a contigo um ou'dois, p ara que p ela boca de duas ou tr ês testem u n h as toda p a ­ la v ra se ja con firm ad a. 17 Se recu sa r ouvilos, dize-o à ig r e ja ; e, se tam b ém recu sar ouvir a ig reja , considera-o com o gentio e publicano. 18 E m verd ad e vos d igo: Tudo quanto lig a rd es n a terra ser á ligad o no céu ; e tudo quando d eslig a rd es na terra será d esligad o no céu. 19 Ainda vos digo m a is : Se dois de v ó s n a terra concordarem a c e r ca de a lgu m a co isa que p ed irem , isso lh es será feito por m eu P a i, que e s tá nos céu s. 80 P o is onde se a ch a m dois ou tr ê s reunidos em m eu nom e, a í estou eu no m eio d eles.

Este parágrafo propicia o modelo de disciplina eclesiástica, inclusive motivo, espírito e procedimento básico. Estão ausentes dele todos os traços de legalismo ou motivação penal. A preocupação é salvar e fortalecer, e não expor e tripudiar os errados. Jesus colocou a maior responsabili­ dade para reconciliação sobre a pessoa contra quem se pecou. Não que o ofensor não tenha responsabilidades (cf. 5:23 es.), mas é que o próprio fato do pecado já prejudica o pecador. A pessoa preju­ dicada está em posição melhor para dar início à reconciliação do que o malfeitor (cf. Gal. 6:1). Jesus, além disso, estava preocupado em que a reconciliação fosse efetuada sem desnecessária exposição pública do ofensor. Está excluída qual­ quer disposição para punir, embaraçar ou expor uma pessoa à zombaria da comuni­ dade. Somente quando todos os esforços feitos em particular falham, é necessário chamar o ofensor diante da igreja. Jesus esboça quatro passos possíveis na disciplina eclesiástica. O primeiro, que é o ideal, é a reconciliação, que deve ser tentada pelos imediatamente interes­ sados. O objetivo é que o irmão seja ganho ou recuperado. No caso de fra­ casso, o segundo esforço deve ser através de uma comissão. Isto segue o pçncípio exarado em Deuteronômio 19:15, que determina que as disputas deviam ser resolvidas na presença de duas ou três testemunhas. A palavra de um contra o outro pode levar apenas a um impasse,


e nenhuma pessoa deve ser condenada mediante a palavra de apenas uma tes­ temunha. Se o segundo passo falhar, o ofensor deve ser chamado perante a igreja. Uma disciplina assim interessada não é antitética em relação à natureza da igreja, mas apropriada a ela. Deve pre­ sumir-se que a mesma motivação e espí­ rito governem a igreja, como governem o indivíduo ou a comissão que procuram ganhar o irmão. Pode ser que seja neces­ sário um quarto passo, se ele também recusar ouvir a igreja. Neste caso, não é demais que ele seja excluído, por se ter auto-excluído. Não que a igreja “negue comunhão” a ele, mas que ele aprende, infelizmente, que não há comunhão para ele ali. A afirmação de que a pessoa que se recusar ouvir a igreja deve ser conside­ rada como gentio e publicano parece dura. Ela expressa claramente uma situação judaico-cristã, e não um con­ texto gentílico. A dureza não é assim tão grande quando todos os fatores são con­ siderados. Antes de tudo, são pressupos­ tos três passos anteriores, procurando a reconciliação. E depois, o ato não é tanto de exclusão, mas é uma recusa de “per­ tencer” à igreja. Além do mais, Jesus sempre era amável e aberto para com os gentios e publicanos. O fato de a igreja reconhecer como um estranho a pessoa que se recusara a ouvir, de imediato, não fecha a porta para que ela seja recebida quando estiver disposta a ser recebida (e disciplinada) como irmão. Este pará­ grafo ensina que cada discípulo é res­ ponsável pelo seu irmão, e que toda a igreja é responsável por todo membro, e que cada membro responde perante a igreja (cf. Schniewind, p. 200). A autoridade para ligar e desligar, dada a Pedro em 16:19, aqui é estendida a toda a igreja. Em 16:19 ela parece se relacionar primordialmente à instrução, que conduta é permitida e que conduta não é. Aqui ela se relaciona principal­ mente com a disciplina eclesiástica. O futuro perfeito passivo perifrástico é

usado para os verbos ligar e desligar, como em 16:19 (veja o comentário a respeito). Se esta distinção de tempos verbais puder ser enfatizada, a igreja recebe a certeza de que a sua ação ao receber uma pessoa que houve, ou de excluir a que se recusa a ouvir já foi prevista nos céus. Entendido como um tempo futuro simples, a certeza é a de que os céus validarão a ação da igreja. De qualquer forma, é descrita uma con­ cordância entre os céus e a igreja. Esta idéia, sem dúvida, pressupõe que, ao empreender a disciplina de um membro, a igreja seja governada pelas motivações e pelo espírito prescritos. Além disso, assegura-se aos discípulos que eles terão as bênçãos e a presença de Cristo onde quer que se reúnam em oração ou de comum acordo. Este não é um “cheque em branco” para pessoas egoístas. Segundo o contexto, estas pa­ lavras devem ser compreendidas como uma certeza da presença e da ajuda divina, quando o povo de Cristo empre­ ende a difícil tarefa de cuidar uns dos outros, mesmo até a extensão da disci­ plina corretora e redentora das pessoas erradas. Por exemplo, o fato de receber de volta um irmão que cometeu um erro, sem sujeitá-lo à vergonha ou a alguma punição, pode deixar a igreja propensa a críticas, dizendo que foi indulgente de­ mais. E excluir um membro que se re­ cusa a ouvir é coisa bastante dolorosa para uma igreja conscienciosa. Em am­ bos os casos, a igreja tem diante de si uma tarefa difícil. Ela precisa do consolo de estar agindo corretamente ao ter de usar de disciplina. Jesus prometeu tudo isto. Ele prome­ teu estar presente quando dois ou três se reunirem em seu nome. Um ensinamento rabínico (Aboth 3:2) falou da Shekinah, a presença de Deus, presente com os que se ocupavam com as palavras da Torah (Lei). A igreja é assegurada da presença de Deus quando realmente age como igreja. 231


3. Só Quem Perdoa Ê Capaz de Receber Perdão (18:21-35) E n tão P edro, aproxim an d o-se d ele, lhe perguntou: Senhor, a té q uantas v e z e s p e c a ­ rá m eu irm ão contra m im , e eu lh e h ei de perdoar? Até sete? t t R espondeu-lhe J esu s: N ão te digo que a té se te ; m a s a té seten ta v ezes se te. 33 P or isso o reino dos céu s é com parado a um rei que quis tom ar con tas a se u s s e r v o s ; 34 e , tendo com eçad o a to m á -la s, foi-lhe apresen tado u m que lhe d ev ia d ez m il ta le n ­ tos; 35 m a s não tendo e le co m que p agar, ordenou seu senh or que fo sse m vendidos e le , su a m ulher, seu s filh os, e tudo o que tinha, e que se p a g a sse a d ívid a. 36 E ntão aquele servo, prostrando-se, o r e v e r e n c ia ­ va, d izen d o: Senhor, te m p a c iê n c ia com igo, que tudo te p a g a rei. 37 O senhor daquele servo, p ois, m ovido de com p aixão, soltou-o, e perdoou-lhe a d ívida. 38 Saindo, porém , aquele servo, encontrou um dos seu s conservos, que lhe d ev ia cem d en ários; e, segurando-o, o su fo ca v a , dizendo: P a g a o que m e d e v e s. 39 E ntão o seu com panheiro, caindo-lhe a o s p és, rogava-lh e, dizendo: T em p a ciên cia com igo, que te p a g a rei. 30 E le, porém , não q u is; a n tes foi encerrá-lo na p risão, até que p a g a sse a d ívid a. 31 V en­ do, pois, o seu s con servos o que aco n tecera , contristaram -se gran d em en te, e foram revelar tudo isso ao seu sen h or. 33 E ntão o seu senhor, cham ando-o à su a p resen ça , d isse-lh e: Servo m alvad o , perdoei-te toda aq uela dívida, porque m e su p U ca ste; 33 não d evias tu tam b ém ter co m p a ix ã o do teu com panheiro, a ss im com o eu tiv e co m p a i­ xão de ti? 34 E , indignado, o seu senhor o entregou aos verd u gos, a té que p a g a sse tudo o que lh e d evia. 35 A ssim v o s fa r á m eu P a i c e le stia l, se de coração não p erd oard es, cad a um a seu irm ão.

Perguntas podem ser tão reveladoras quanto respostas. Duas perguntas apa­ recem no capítulo 18, cada uma delas expressando lacunas sérias na vida, dos discípulos, tanto de entendimento como de espirito (v. 1 e 21). Quem é o maior? Eu preciso perdoar sempre? Jesus res­ pondeu à primeira, j nostrando o interes~ se de Deus pelas crianças e os “peque­ ninos” . Respondeu à segunda, mostran­ do a ílimrEãda misericòrdíârHe Deus para com os pecadores (cf. Schlatter, p. 289). Reconciliação diz respeito ao j:rente, da mesma forma coíncTa Cristo, e não_ 232

conhsçeJim^ites_Jcf. II Cor. 5:18-20). Pedro se predispôs a fazer uma boa pergunta, mas a fez da maneira errada. Ele estava correto ao considerar o assun­ to do perdão de um irmão que o ofen­ dera, mas errado em pensar acerca de limites além do qual a sua responsabili­ dade cessasse. Sete vezes pode ter pare­ cido generoso para ele, mas não ê. Perdão não é tanto um ato, como uma atitude (Robinson, p. 156). e a disposi­ ção para perdoar deve ser ilimitada. ” A frase setenta vezes sete é incerta em um ponto insignificante. O grego pos­ sivelmente poderia ser traduzido “seten­ ta e sete vezes” , em vez de “setenta vezes O problema surge na versão da sete” . LXX, de Gênesis 4:24, que serve de antecedente à passagem sob considera­ ção. O ponto não é importante, pois a intenção não é dizer literalmente setenta e sete ou quatrocentos e noventa. Manter-se contando trairia a falta de um verdadeiro espírito de perdão, não im­ porta quantas vezes se presumisse que uma pessoa devesse perdoar outra. O verdadeiro significado da resposta de Jesus é encontrado apenas quando a pessoa a vê como o reverso da velha lei de vingança, como fora expressa por Lameque (Gên. 4:23,24). Cita-se que Lamequ^ 3isse às síias~3üãs^sposas: “Matei u homem por me ferir, e um mancebo por me pisar. Se Caim há de ser vingado sete vezes, com certeza Lameque o será seten­ ta e sete vezes.” Jesus apresenta o reverso da lei da vingança de Lameque. Em vez de vingança infindável, o discípulojdaKfc, praticar per9ão interminável (cf. 5:3848). Esta parábola contém tanto uma promessa como uma advertência. Ela ~^ ^m ete o perdão de Deus para as dívi­ das do homem, embora sejam enormes. E adverte que o perdão é impossível para aque[equê não perdoa. A parábola do servo desapiedado, encontrada apenas em Mateus, serve 42 Cf. E. J. Goodspeed, Problems of New Testament Translation (Chicago: University, 1945), p. 29-31.


bem para tornar claros a natureza e o com um princípio freqüentemente repe­ princípio do perdão. Ela contrasta a tido por Jesus. O princípio não é arbi­ enorme dívida do homem para com Deuj trário. O verdadeiro perdão nasce no com a msigmtTcância do q ü ê ^ ndemos a coração. É uma atitude, bem como um ato. A incapacidade de perdoar demons­ considerar como os débitos dõs"óutros tra falta de aceitação do princípio do para conosco. A nossa dívida para com Deus é tão grande que nunca poderemos perdão. pagá-la. Estamos inteiramente depen­ Basear o relacionamento com os outros dentes da sua misericórdia, único fator em méritos é negar misericórdia e graça. que nos pode libertar das nossas dívidas. É negar a única esperança do homem, Não é apenas absurdo exigirmos paga­ quando ele se apresenta diante de Deus. mento dos outros sob ameaça de vin­ Não perdoar e ser vingativo é uma con­ gança contra eles, mas é também negar a dição. Tal pessoa não tem condições para única base pela qual podemos esperar receber ou para oferecer perdão (cf. permanecer de pé diante de Deus. A 6:14 e s.). Não existe sinal mais seguro de Fpessoa que não perdoa tem de permaneque uma pessoa verificou o que é con­ Wer sem ser perdoada, porque, ao negar siderar-se pecadora diante de Deus e conheceu as alegrias do perdão do que perdão a outrem, ela demonstra que não I tem condições de ser perdoada. ^ verificar a sua própria misericórdia para í— Jesus deliberadamente pintoi^ um com os outros. A pessoa que é inflexível quadro absurd(^de um homem que devia^ mostra que nunca experimentou o que é “ã cT sêüT iP íim a enorme quantia, man­ obter misericórdia diante de Deus. dando outro para a prisão por causa de 0 perdão precisa ser de coração. A obrigação do discípulo é perdoar incon­ um débito insignificante. Os valores monetários mudam dia a dia, e é impos­ dicional e ilimitadamente. Essa obriga­ sível chegar-se a uma soma que hoje em ção não é governada pela matemática, mas por uma disposição que provém de dia fosse equivalente aos dez mil talentos devidos pelo primeiro devedor, e aos cem Deus. denários, devidos pelo segundo. Quan­ tias próximas de um bilhão de cruzeiros e XII. Casamento, Divórcio, Celi­ dois mil cruzeiros podem pelo menos ser bato (19:1-15) sugeridas como contraste (1981). A ilustração é tirada do mundo pMã<i,, §nL9 ue 1. Introdução (19:1,2) atos punitivos que tais, contra um deve1 Tendo J esu s concluído e sta s p ala v ra s, dor, eram possíveis. No judaísmo, um partiu da G aliléia, e foi para o s confins da judeu apenas podia ser vendido por Ju d éia, a lé m do Jord ão; Z e seguiram -no causa de roubo, e em casos em que a grandes m u ltid ões, e curou-as ali. soma não podia ser inferior ao preço pelo A quarta fórmula de Mateus, mar­ qual o ladrão pudesse ser vendido, e quando o ladrão não podia fazer resti­ cando o fim de um discurso, aparece aqui (cf. 7:28; 11:1; 13:53; 19:1; 26:1). tuição. A venda de uma esposa e a tortura de um devedor eram proibidas Não há separação completa entre mate­ riais de discurso e de narrativa, pois pela lei judaica (cf. J. Jeremias, Parables. grande parte dos discursos, ou discus­ p. 211). A história podia ser contada na Palestina segundo uma perspectiva ju ­ sões, seguem-se imediatamente à fór­ daica, mas aproveitando-se de práticas e mula. No versículo 2, Mateus caracteris­ ticamente chama a atenção para o minis­ ilustrações não-judaicas. A história é tão clara e minuciosa, que tério de cura de Jesus, embora o seu Evangelho esteja cheio de material didá­ o ponto de ser enfatizado dificilmente tico. Marcos, no paralelo a este texto pode ser menoscabado. É consentâneo 233


ca sa r com a repudiada ta m b ém com ete (10:1), caracteristicamente chama a a d u ltério .) atenção para Jesus como mestre, embora inclua mais material de ação do que Esta é a segunda vez que Mateus trata ensino. A despeito de toda a diferença de da questão do casamento e divórcio (veja ênfase entre eles, ambos reconhecem a os comentários a 5:31 e s.). Ambas as importância dos atos e palavras de Jesus. Mateus marca uma significativa tran­ passagens contêm a tão debatida “cláusula-exceção” . Ambas não contêm a sição, quando Jesus começa a aproximarmesma ênfase, pois a primeira focaliza a se, finalmente, de Jerusalém. Jesus aban­ atenção sobre a enorme injustiça feita ao donou a Galiléia, e foi para os confins da se divorciar de uma esposa inocente, Judéia, além do Jordão, isto é, a Peréia. onde a “ cláusula-exceção” é necessária A referência não é clara, pois a Peréia era para a idéia em consideração. Nos versí­ uma região politicamente sob o domínio culos 3-9, toda a questão do casamento e de Herodes Antipas, como a Galiléia. divórcio é abordada mais diretamente, A Peréia era separada da Judéia, porém embora se focalize a atenção sobre a Mateus aparentemente expressa uma óulpa do marido que se divorcia de uma forma popular de se referir a ela como esposa mocente e depois se casa de novo. parte da Judéia. O divórcio recente de Diferenças marcantes aparecem entre Herodes Antipas aguça a referência à os paralelos de Mateus e Marcos (10:2questão do divórcio. 12). Em Marcos a expressão por qualquer Grande parte do material dos capí­ tulos 19 a 25 revolve-se ao redor do tema motivo não aparece na pergunta dos fari­ seus, e as palavras a não ser por causa de de julgamento (cf. Bacon, p. 308-25). A história avança em direção ao julga­ infidelidade não constam na resposta de Jesus (cf. Luc. 16:18; I Cor. 7:10 e s.)_^ mento de Jesus, mas os fariseus e a nação estão também sob julgamento por parte Y^erá que Jesus descartou completamente~ a hipótese do divórcio, ou será que ele daquele que eles acham que estão jul­ gando. Esta longa seção definirá a enor­ reconheceu pelo menos um motivo p a r^ ele? Os estudiosos são quase unânimes me brecha que se alargava entre Jesus e os líderes da nação, e indica o julga­ êm apegar-se à prioridade de Marcos (reforçada por Lucas e Paulo) e sustentar mento daquele e destes. que Mateus incorpora uma modificação 2. Casamento: Sagrado e Indissolúvel, posterior, feita pela igreja, que procura­ Exceto pela Morte (19:3-9) va ajustar o ideal a uma regra praticável. 3 A p roxim aram -se d ele a lg u n s fa riseu s, - Argumentam que não apenas Marcos, Lucas e Paulo preservam a posição mais que o ex p erim en ta v a m , d izen d o : É lícito ao h om em repudiar su a m u lh er por qualquer extrita, mas que até Mateus cita o apelo m otivo? 4 R espondeu-lhes J e su s: N ão te n ­ de Jesus ao próposito de Deus na criação, d es lido que o Criador os fez d esd e o p rin ­ não deixando vasa para a modificação de cípio h om em e m ulher, 5 e que ordenou: P or a não ser por causa de infidelidade. Pode isso d eixará o h om em p ai e m ã e, e unir-se-á à su a m ulher; e serã o o s dois u m a só c a m e ? ser apresentada uma defesa melhor da 6 A ssim já n ão são m a is d ois, m a s u m a só “cláusula-exceção” de Mateus? O míni­ carne. P ortanto, o que D eu s ajuntou, n ão o mo que pode ser dito é que mais apoio à sep are o h om em . 7 R esp on d eram -lh e: E n ­ cláusula de Mateus pode ser conseguido tão por que m andou M oisés dar-lhe ca rta do que foi citado acima, ou dado a de divórcio, e repudiá-la? 8 D isse-lh es ele : P e la dureza de v o sso s co ra çõ es M oisés vos entender. perm itiu repudiar v o ssa s m u lh e r e s; m a s não Os antecedentes para a forma em que foi a ssim d esde o princípio. 9 E u v o s digo, Mateus apresenta a pergunta dos fari­ porém , que qualquer que repudiar su a m u ­ seus são fáceis de encontrar. As escolas lher, a não ser por ca u sa de in fid elid ad e, e ca sa r com outra, com ete ad u ltério; (e o que de Shammai e Hillel, no tempo de Jesus,

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debatiam as bases para o divórcio, assu­ mindo diferentes posições na sua inter­ pretação de Deuteronômio 24:1 (cf. Gittim, 9:10). A passagem em Deutero­ nômio presume a prática do divórcio e pretende regulá-la. Presume o direito de um marido divorciar-se de sua esposa “se ela não achar graça aos seus olhos, por haver ele encontrado nela coisa ver­ gonhosa” . As escolas de Shammai e Hillel deba­ tiam o significado de “coisa vergonhosa” ou “alguma indecência” . A frase em he­ braico é de significado incerto, mas aparece também éifr^ Deuteronômio 23:14, onde literalmente diz: “a nudez de uma coisa” . A escola de Shammai enfatizava a palavra “nudez,” e a inter­ pretava como falando de adultério, fa­ zendo dessa a única base para o divórcio. A escola de Hillel preferia basear a sua exegese na palavra “ coisa” , e desta for­ ma encontrara um texto-prova para fazer com que qualquer coisa servisse como motivo para o divórcio. Para a escola de Hillel a “coisa” podia ser, por exemplo, o fato de a esposa ter queimado a comi­ da, de o marido ter visto uma mulher que lhe agradasse mais, ou de a esposa levar o marido a comer algo que não havia sido antecipadamente dizimado. A frase, em Deuteronômio, aparente­ mente se refere a “procedimento imodesto ou indecente” , mas não ao adultério, pois, se assim fosse, isso se enquadraria em uma penalidade mais severa do que o divórcio pelo primeiro marido (Driver, p. 271). Seja qual for a intenção da lei, o certo é que no tempo de Jesus a escola de Shammai assumira o ponto de vista mais extrito, de que o divórcio só é permitido quando do adultério da esposa, e que a escola de Hillel assumira o ponto de vista liberal de que o homem podia divorciarse de sua esposa por qualquer causa. Não há nenhuma evidência de que os 43 S. R, Driver, D euteronomy, “ The International C riti­ cal C om entary” (3® ed.; Edinburgh: T. & T. Clark, 1902), p. 269 e ss.

fariseus da época questionassem o divór­ cio em si. Tanto em Mateus como em Marcos, Jesus foi além de Deuteronômio 24:1, e expandiu a intenção de Deus na criação do homem (Gên. 1:27; 2:24). Ele obser­ vou que desde o princípio Deus fizera homem e mulher, prescrevendo que por amor ao casamento o homem devia deixar pai e mãe, e que ele unir-se-á à sua mulher e serão os dois uma só carne. Esta união ele reconhecia como obra de Deus, que não podia ser desfeita pelo homem. Separar é obra do homem, e não de Deus. Dizendo que serão os dois uma só carne, Jesus não deu a entender que a individualidade se perde no casamento, da mesma forma como não se perde na redenção, quando um discípulo se faz um com Cristo (cf. 25:40). A individua­ lidade encontra cumprimento no casa­ mento, mas, paradoxalmente, os dois se tornam um. A união física externa é santificada por uma união espiritual pes­ soal, que é indissolúvel, exceto pela morte. Os fariseus apelaram para o que man­ dou Moisés (Deut. 24:1). Jesus coloca o mandamento em sua verdadeira perspec­ tiva, afirmando que Moisés permitiu o divórcio pela dureza de vossos corações (veja Mar. 10:2-8, para a ordem reversa em relação a Moisés e à criação). O divórcio era comumente praticado, e a regra de Deuteronômio procurou regu­ lá-lo, propiciando à esposa alguma pro­ teção. Até então a esposa fora conside­ rada como propriedade do homem. A carta de divórcio pelo menos provaria que o marido abrira mão de seus direitos legais sobre a esposa que mandara em­ bora de casa. Isto significava que a espo­ sa repudiada podia procurar um novo lar ou relação. Sem o certificado de divórcio, outro homem podia ser acusado de rou­ bar ou violar os direitos de propriedade do primeiro marido, se tomasse a mulher como sua esposa ou serva. Desta forma, a escritura de divórcio tinha em vista 235


colocar alguns limites sobre o marido, e dar à esposa alguma proteção. Jesus atalhou tudo isto, baseando a natureza e a indissolubilidade do casamento na intenção de Deus, ao criar o homem. B. H. Streeter argumenta que a seção de Mateus acerca do divórcio é “narrada mais naturalmente e está mais intima­ mente relacionada com o uso judaico do que o paralelo em Marcos” . Ele obser­ va que a questão do divórcio por qual­ quer motivo era, na verdade, debatida na época, mas que o direito de se divorciar, como tal, não o era. Ele sugere que Mateus pode ter empregado uma fonte independente de Marcos, uma versão paralela, que Streeter chama de “M ” , com material peculiar a Mateus. Ao achar Mateus, neste ponto, mais primi­ tivo do que Marcos, Streeter seguiu R. H. Charles, que argumenta fortemen­ te em favor da originalidade do relato de Mateus. O debate continuará entre os intér­ pretes, quanto ao fato de Jesus simples­ mente ter tomado o partido da escola de Shammai, contra a de Hillel, ou que ele simplesmente desaprovou totalmente o divórcio. Pelo menos é claro que, ao remontar à criação, ele afirmou, sem ambigüidades, que a intenção de Deus para o casamento é cumprida apenas ná união vitalícia de marido e mulher, que não deve ser dissolvida pelo divórcio. Ao chamar a união matrimonial de ato de Deus unindo os dois, Jesus não disse que alguns casamentos não são feitos por Deus, e por isso podem ser dissolvidos. Pode haver “casamentos” que Deus não fez, mas esta passagem não nos autoriza a dissolver nenhum casamento, dizendo que Deus não o fizera. Há abdicações e obrigações em todo casamento, que podem não ser renunciadas sem prejuízo de todas as pessoas envolvidas. 44 The F ou r G ospels, A S tu d ; of O rigins (London: M ac­ millan, 1924), p. 259. 45 The T eaching of th e New T estam ent on Divorce (L on­ don: W illiams & N orgate, 1921), p. 85 e ss.

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É significativo que Jesus discutiu o casamento sem subordinar a mulher a um papel secundário. Os dois se tornam um. Jesus não reconhecia um padrão duplo para homem e mulher, marido e esposa. O judaísmo permitia que o ho­ mem se divorciasse de sua esposa, mas não permitia que a esposa se divorciasse do seu marido, como era permitido no mundo romano. Jesus contendeu pela permanência do casamento monogâmico, honrando igualmente marido e espo­ sa. Os romanos davam aos maridos e às esposas igual direito de se divorciarem; Jesus deu aos maridos e às esposas igual direito (e responsabilidade) para per­ manência no casamento. A palavra traduzida como infidelidade (porneiai) é geralmente traduzida como “fornicação” , e pode denotar impureza anterior ao casamento. Etimologicamen­ te, o termo se refere à venda do corpo em sexualidade. Desta forma, pelo menos durante algum tempo, porneia designou prostituição ou impureza pré-marital, enquanto moicheuai designava adultério: sexualidade ilícita dentro do casamento e contra ele. Mais tarde as duas palavras passaram a ser usadas indiferentemente. Se porneia, em Mateus, retém o seu primitivo sentido ou não, é incerto. Em caso afirmativo, a “cláusula-exceção” refere-se a uma infidelidade pré-marital, tornando possível o que hoje em dia se chama de anulação. Na época de Jesus, chamava-se divórcio, pois até o noivado era um contrato legal (e freqüentemente financeiro), que só podia ser rompido através do divórcio (cf. 1:18 e s.). Portanto, é possível que até a “cláu­ sula-exceção” se relacione com o que chamaríamos de causa de anulação, e não de divórcio, e, até baseando-se em Mateus, não é absolutamente cerjo que Jesus possa ser citado como tendo auto­ rizado novo casamento seguindo-se ao__ divórcio. Se, de alguma forma, se pode "apelar a Jesus, para uma segunda opor­ tunidade no casamento, é mais provável que seja em termos da sua misericórdia


e graça, e não nos de sua declaração/ explícita. Jesus sustentou claramente! apenas um ideal, de que o casamento | monogâmico não pode ser rompido. Para | os que o romperam, em qualquer senti- i do, e em todos o sentidos, ele ofereceu perdão. Mas isto é ir além do texto. | 3. Celibato e Suas Exigências (19:10-12) 10 D isseram -lh e os d iscíp u los: Se tal é a condição do hom em rela tiv a m en te à m u ­ lher, nào convém ca sa r. 11 E le , porém , lh es d is s e : N em todos podem a ce ita r e sta p a la ­ vra, m a s som en te a q u eles a q u em é dado. 12 P orque há eunucos que n a sce r a m a s s im ; e há eunucos que p elos h om en s foram feitos t a is ; e outros há que a si m e sm o s se fizeram eunucos por ca u sa do reino dos céu s. Quem • pode a ceita r isso , aceite-o.

Os discípulos acharam que o padrão de Jesus para o casamento era tão ele­ vado que questionaram se haveria sabe­ doria em se casar. Eles não apenas esta­ vam assustados com as exigências do casamento, mas também o encaravam apenas do ponto de vista do homem. Disseram que não convém casar se for esta a condição do homem para com sua esposa. Aparentemente, eles queriam dizer que o homem não devia se casar, se do casamento não pudesse escapar. Não falaram nada acerca do perigo em que a mulher cairia ao tomar um esposo inde­ vido. Especularam que era melhor o homem ficar solteiro do que se arriscar aos envolvimentos do casamento. A alternativa ao casamento é o ceUbato. Jesus deu lugar a ambos como honoráveis e apropriados para o disci­ pulado. Contudo, advertiu que as exigên­ cias do celibato são grandes, da mesma forma como as do casamento. Alguns estão incapacitados para o casamento por causa de impotência ou dano físico. São os que são eunucos que nasceram assim ou os que pelos homens foram feitos tais. Nas cortes reais, especialmen­ te, havia escravos que eram feitos eunu­ cos mediante cirurgia, para que não se tornassem uma ameaça para a família do seu senhor. Aqueles que a si mesmos se

fizeram eunucos por causa do reino dos céus são os que abrem mão do casamen­ to, tendo em vista uma vida dedicada mais plenamente ao serviço de Cristo. Quando Jesus falou do casamento e do celibato, não disse que um era moral­ mente mais elevado do que o outro, ou que um oferecia maiores oportunidades de discipulado que o outro. Cada um deles é üma escolha honrosa, a ser feita em acordo com o foro íntimo. O celibato é uma escolha vocacional válida do seguidor de Cristo, mas é ape­ nas para quem pode aceitar isso, isto é, que pode enfrentar as suas exigências. O casamento não é um mal a ser enxotado, mas algo bom a que abdicam aqueles que desejam cumprir o discipulado em celi­ bato. O celibato é sancionado como esco­ lha vocacional, mas não por razões ascé­ ticas. O casamento monogâmico como união vitalícia e o celibato pelo amor do reino, são ambos honrosos e elevados em suas exigências. 4. O Acesso das Crianças a Cristo (19: 13-15) 13 E n tão lh e trou xeram a lg u m a s cria n ­ ç a s, para que lh e s im p u se sse a s m ã o s, e o r a s s e ; m a s os d iscip u los os rep reen d eram . 14 J e su s, p orém , d is s e : D eix a i a s cria n ça s e não a s im p e ç a is de v ir e m a m im , porque de ta is é o reino dos céu s. 15 E , d epois de lh es im por a s m ã o s, partiu dali.

Este belo quadro de Jesus recebendo ternamente as crianças é uma feliz con­ clusão da seção acerca do casamento, divórcio e celibato. Ele é apenas man­ chado pela impaciência dos discípulos, que os repreenderam (às pessoas que trouxeram as crianças). Jesus deu aten­ ção às criancinhas, da mesma forma como havia dado às mulheres, aos po­ bres, aos doentes, a publicanos e peca­ dores, judeus e gentios. As crianças de­ viam ter livre acesso a ele, e ninguém devia impedi-las de se aproximarem dele. Esta passagem não pode ser usada validamente como texto de prova para o batismo infantil. S6 quando o reino dos céus foi confundido com a Igreja é que 237


este texto foi aplicado ao batismo (cf. McNeile, p. 277). O texto nada diz acer­ ca de igreja ou batismo eclesiástico; e fala de crianças (paídia), que devem ter a permissão de virem, e não de crianças trazidas para serem batizadas.

XIII. Repreensões ao (19:16 — 20:34)

Egoísmo

gran d em en te m aravilh ad os, e p ergu n ta­ ram : Q uem pode, en tã o , se r salvo? 26 J esu s, fixando n e le s o olhar, resp o n d eu : Aos hom ens é isso im p o ssív el m a s a D eu s tudo é p o ssív el. 27 E n tão P ed ro , tom ando a p a la ­ vra, d isse-lh e: E is que nós d eix a m o s tudo, e te seg u im o s; que reco m p en sa , pois te r e ­ m os nós? 28 Ao que lh e d isse J e su s: E m verd ad e v o s digo a vós que m e se g u iste s, que na reg en era çã o , quando o F ilh o do hom em se a ssen ta r no trono d a su a g lória, sentarv os-eis ta m b ém vós sobre doze tronos, para julgar a s doze tribos de Isra el. 29 E todo o que tiv er d eixad o c a sa s , ou irm ã o s, ou ir ­ m ã s, ou p ai, ou m ã e, ou filhos ou terra s, por am or do m eu n om e, receb erá ce m v e zes tanto, e herdará a v id a e te m a . 30 E n treta n ­ to, m u itos que são p rim eiro s serã o ú ltim o s; e m uitos que sã o ú ltim os serã o p rim eiros.

A comparação de 19:30 e 20:16 des­ venda o fato de que a história do jovem rico e a parábola dos trabalhadores na vinha devem, segundo as intenções de Mateus, ser lidas juntamente. Cada uma delas terminou com “últimos serão pri­ meiros e primeiros, últimos” . A seqüên­ Esta história é encontrada também cia e as conexões não são tão óbvias com em Marcos (10:17-31) e Lucas (18:18relação às outras unidades desta seção. 30), com variações em cada Evangelho. Os nossos esboços ou agrupamento de Mateus chama o inquiridor de jovem e materiais não expressam, necessaria­ Lucas o identifica como um “dos princimente, em todos os casos, o senso de pais” , possivelmente um dos chefes da ordem do próprio Mateus. As nossas "smãgoga. Os três Evangelhos o descre­ próprias necessidades de estudo nos com­ vem como rico e localizam o problema pelem a procurar uma ordem, e a adver­ nessa condição. No judaísmo havia dois tência contra as várias expressões de o o n to ^ _ ^ ^ ^ i^ a ^ jm rela ç ão à riqueza: egoísmo parecem ser um “Leitmotiv” por Cum^consideran3õ-a um-SÍnal de piedade e gST ^ f ^ y f ,^ f a vor divino., e o püír^vendo-a cõrnõ ímpiedadeTTêsus não viu ne1 .‘O ‘ O Perigo das Riquezas (19:16-30) sinal de ímpiedadeTTesus fnhum mai na riqueza em si mesma, mas 16 E e is que se aproxim ou d ele u m jo v em , e lhe d isse: M estre, que b em fa r e i p ara co n ­ \ a considerava como uma grande ameaça seguir a vid a e te m a ? 17 R espondeu-lhe e l e : l para a pessoa que a possuísse. Embora P or que m e p ergu n tas sobre o que é bom ? ele estivesse grandemente interessado nos U m só é b o m : m a s, se é que q u eres entrar pob r ^ , e fizesse da preocupação pelos na vid a, guarda os m an d am en tos. 18 P e r ­ pobres um teste de afinidade consigo (cf. guntou-lhe e le : Q uais? R espondeu J esu s: 25:31-46), o objetivo desta passagem jião N ão m a ta rá s; não ad u ltera rá s; não furtará s; não dirás fa lso testem u n h o; 19 honra a é apontar jsto. Antes de tudo, aqui Jesus teu pai e a tua m ã e ; e a m a r á s o teu próxim o estava interessado no que o dinhèiroTãz com o a ti m esm o . 20 D isse-lh e o jo v em : à pessoa que o possui, e em seguida no Tudo isso tenho guardado; que m e fa lta que o homem faz com o dinheiro. ~ ainda? 21 D isse-lh e J e su s: Se queres ser Jesus baseou o _ d isd g u la^ n a com pl^ perfeito ,vai,ven de tudo o que ten s e dá-o aos pobres, e terá s u m tesouro no céu ; e v em , ta dependência de Deus. E por isso que segu e-m e. 22 M as o jo v e m , ouvindo e ss a os pobres, os “pequeninos", as crianças, p alavra, retirou-se triste; porque possuía os publicanos e “pecadores” têm vantam uitos bens. 23 D isse então J esu s aos seu s d iscíp u lo s: gen^ Eles conhecem a sua deficiência, a E m verd ad e vo s digo que im i rico d ificil­ sua necessidade e a sua completa depen­ m ente en trará no reino dos c é u s. 24 E outra dência de Deus. A posse de dinheiro ' vez vos digo que é m a is fá c il um cam elo tende a dar à pessoa um falso senso de pa ssa r pelo fundo dum a ag u lh a , do que segurança, e menos disposição de confiar entrar um rico no reino de D eu s. 23 Quando em Deus. Jesus procurou libertar o ho­ os seu s d iscíp ulos ouviram isso , fica ra m 238


mem _da Jirania_ das _ coisas matgriais^ levandoro a ^ car sob a soberania de Deus, único lugar em que há lib e rd ^ e ^e O jovem rico estava longe da vida etema, embora sinceramente a buscasse. Ele senBã-sTWnfiante pelo fato dê ter guardado (ephulaxa) todos os manda­ mentos. Na verdade, ele estava fazendo papel de negociante, na procura séria da vida eterna; mas, como bom negociante, ele não estava disposto a pagar mais do que pensava q u ^ l a valia.Ã sü ã ã E o rd a"^em egocêntrica ou egoísta é o exato oposto da autonegação, do caminho da cruz, sem a qual ninguém pode seguir ^ Jesus (cf. 16:24 e s.). Ele dirigiu-se a Jesus, procurando a vida eterna, à pessoa certa, procurando as coisas certas; mas retlrou-se sem ter obtido o que procura­ va. Ele era possuído pelo que possuía. Principalmente, ele era possuído por si mesmo, e fracassou devido à sua indis-" posição de entregar tudo, para seguir a Jesus. Ele não aprendeu que todo lucro coineça com a perda. A tradução farei expressa bem a força da pergunta no versículo 16. Mais ainda, ele perguntou: “Que preciso fazer para adquirir (schõ) a vida eterna?” Da mes­ ma forma, a tradução Que recompensa, pois, teremos nós? .rouba um pouco a clareza da pergunta de Pedro., Ele per­ guntou: “Que se rá ^ e nós?” Ambas as perguntas são egoístas. “Que_será de m im P T isõ contradiz o princípicTMsico Sa^^om, e se afasta, ao invés de se aproximar da qualidade de vida encon­ trada em Jesus. Paradoxalmente, vida”^ etema pertence à pessoa que perde a sua vida por amor de Cristo, e não à que procura “ganhá-la” . Jesus repreendeu o espírito negocista que persistia em Pe­ dro, e que triunfou no jovem rico. ___ Mateus evita a maneira de Marcos mencionar a forma por que aquele jovem se dirigiu a Jesus: “Bom Mestre” , e a resposta dele: “Por que me "Chamas bom?” (10:17 e s.). Possivelmente, ele o fez para impedir os leitores de entende­

rem que Jesus estivesse negando o fato de ser bom. Nem_.em-MarcQs nemjem^Mateus Jesus dá a entender que não é bom.  idéia é de que a bondade reside em Deus apenas, e não no que o homem faz. bondade pode ser expressã^m fazer,? mas faz parte essencialmente do ser. istoC é, do que a pessoa, é. Antes de tudo, ela J faz parte do que Deus é . De duas maneiras parece que Mateus vai além de Marcos, em sua ênfase quari^ to aos atos; ao mencionar Jesus quando diz ao jovem rico que ele precisa guardar os mandamentos, se quiser entrar na vida (v. 17), e ao estabelecer as condições sob as quais ele poderia ser perfeito (v. 21). Em _Marcos, o homem é simples­ mente levado a recordar que conhece os mandamentos, e lhe é dito que ainda lhe faltava uma coisa (10:19,21). Em parte, isto reflete a grande ênfase que Mateus da àse^gências tanjo-giianto às^dádixas. na salvação. As exigências são dadas a entender em Marcos, mas não de manei­ ra tão explícita. Em Mateus, tanto q u a n ^ To em Marcos, a vida etem a é determi­ nada, finalmente, não pelõ~fãi5°°de se" f a r d a r os mandamentos, mas pela dis­ posição de se render tudo a Jesus, e ----segui-lo. ^“ “ Embora a g e rtó ^ ^ p e rm a n e ç a sendo a exigência (v. aTjondade se encon­ tra apenas em Deus, e por isso está além do alcance do homem (cf. Lohmeyer, p. 286). Aqui outra vez encontramos, em Mateus, lado a lado, a exigência absoluta de Deus (y. 17, 21^ e, no entanto, a total dependência do homem, de Deus, em quem, somente, existe bondade (v. 17) e em quem, somente, há poder para salvar (v. 26). A cláusula se queres ser perfeito pode dar a implicação de que Mateus consi­ dera dois^raus_de_discÍ£uto^ os que têm vida eierna, e os que são perfeitos (teleios). Isto não se entrevê em nenhuma outra parte de Mateus, e, em 5:48, a ordem “seia perfeito” é dada a todõi~os discípulos. Jesus não separou os seus seguidores em dois grupos; os comuns e 239


os esforços para interpretar camelo como cs perfeitos. Ele, isso sim, enfatizou per­ sendo uma confusão com um cabo de feição como o ideal para todos, mesmo navio ou corda,. e fundo duma agulha que ninguém o alcance. As palavras como referência a uma pequena porta no mencionadas por Mateus, se queres ser muro de Jerusalém é pura fantasia, sem perfeito, são a contrapartida das de nenhum suporte de evidências. Jesus Marcos: “Uma coisa te falta.” Nem usou uma hipérbole deliberada. A intenT Mateus nem Marcos apresentam o ho­ mem como possuidor da vida eterna. 'çao era representar a salvação de um homem rico como nada menos do que Nenhum discípulo é considerado perum milagrç^, possível apenas para Deus. feitõ^ Seria um milagre um camelo, o maior “' ’Os”mandamentos citados são basica­ animal da Palestina, passar pelo fundo mente os da segunda tábua do Decálogo, duma agulha. que dizem respeito primariamente ás relações do homem com o homem. MaSó o poder de Deus pode libertar o teus segue Marcos 10:19, mas omite “a homem da tirania das coisas materiais, e ninguém defraudarás” , que não é encon­ levá-lo à verdadeira liberdade, que é trado no Velho Testamento. O fraseado conhecida tão-somente no reino (reina-J de Mateus é mais próximo do hebraico ido) de Deus. Esta passagem se relaciona em Exodo 20:12-16, com a adição do não apenas com a necessidade que o mandamento para amar o próximo como homem tem de salvação, mas tambem a si mesmo, que é tirado de Levítico cõürõsrêquisitõs^depeuspara a retidão, 19:18. tão proeminente através de todo o Evan^ Quais? (poias) pode conter o signifi­ ^elho. Mateus demonstra que tanto a cado de “ de que espécie?” mas esta não ■ salvação como a retidão são possíveis parece a intenção do versículo 18. apenas mediante o poder de D e u s . _____ A ordem para vender e dar obviamente ‘ Jesus não indicou que uma soma fixa expressa interesse pelos pobres, mas essa fizesse a diferença entre um homem rico não era a preocupacão básica de„lesus., neste caso. Era, isto sim, libertar o moço _e um pobre. Este é um assunto relativo. A mesma pessoa é rica pelos padrões de rico das muletas das riquezas. Jesus não uma comunidade, e pobre pelos padrões cõbrãvã'dêTõ3bs õs~cãndidãtos a discí­ de outra. Um homem pobre pode estar pulo a entrega das propriedades. Parece escravizado aos seus tostões; todavia. que Pedro tinha uma casa (8:14) e um quanto maior a riqueza, mais provável é barco (João 21:3), e José de Arimatéia que o seu possuidor lhe dê o seu coração, era um homem rico e discípulo de Jesus . em amor e confiança. (27:57). É significativo que Jesus não (P ed ro ):onfiantemente apontou para os tinha forma estereotipada de dirigir-se às sacrifícios que ele e os seus condiscípulos p e s i^ s TÇãdãTTima era indivi^iiar, e ele haviam tèito a fim de seguir a Jesus. Ise dirigia ao âmago do problema de cada Depois, fez uma pergunta que traiu a grande distância a que ele estava de Jesus ______ ___ ^ _____ma da vida do Uovem rrco eraT dinheiro, e Jesiís õ desa(cf. 26:58). Que recompensa, pois, tere­ ItTòTnesàVpontio. Foi através desse teste mos nós? é, literalmente: “Ql que, .pois, / / ^ w ique o moço rico pôde descobrir se queria há de ser de ngs?” “O que é que vamos f 1 2 realmente ou não a vida que lhe era tirar disto?” Pedro estava “sendo ’salvo” "colocada à disposição, de seguir a Jesus. (cf. I Cor. 1:18), mas a maior parte da Jesus espantou os discípulos ao decla­ sua peregrinação ainda estava para ser rar que um rico difícilmente entrará no feita. A sua pergunta era mais pagã do. que c m tã . Foi egocêntrica. ( Jesu sjdeu reino dos céus. Ê mais fácil um camelo üm a resposta paciente, todavia pesada. passar pelo fundo duma agulha. Todos 240


dramática e forte de assegurar aos seus tanto com julgamento quanto com pro­ discípulos que Deus é muito mais gene­ messa, advertência e segurança. roso em suas recompensas do que o ho­ Jesus (^'rimeiramenté^ assegurou a mem merece. Ninguém pode exceder Pedro que Deus iria recompensar ampla­ mente o seu povo. Sa regéiiéíáção (palig- ISeÜs em dar. Regeneração, vida etergenesíai), o discípulo poderia ter a certe­ na e recompensas muito além do cus­ za de ganhar cem vezes mais do que os to do discipulado são certezas para aque­ les que estão dispostos a entregar tudo, custos do discipulado. A palavra paligpara seguir a Jesus., genesia traz consigo a idéia de renovação Mas Jesus tinha mais a dizer em res­ ou renascimento. A regeneração é lin­ guagem bíblica para designar este mun- posta a Pedro. Embora as recompensas do discipulado sejam certas e generosas, do^ seja transformado, seja substitmdo haverá muitas ,^uggre^s.^ Muitas posi­ por outro,.depois da sua destru!Hõ°(Is. ções na regeneraçao serão opostas às do '65:17; 66:22; Rõín. 8 :lT 2 irB á l. 6:15; II Ped. 3:13; Apoc. 21:1-5). Não é a presente. "MüTtor^que parecem ser priintenção desta passagem d e s c r e ^ ou miTros serão últimos, e muitos últimos serão primeiros. A parábola a seguir discutir esse mundo novo como tal, mas termina com o mesmo princípio e é a sua assegurar aos discípulos as grandes bênexplicação. As recompensas serão maio- ' ç a o s ^ depósito para eles. _________ é um estado em que res para aqueles que não buscam recom­ res pensa, e menores para aqueles que estão o Filho do liomem se assenta no trono da preocupados com recompensas. A pessoa sua glória, e em que os discípulos, pos­ “conseguirá” tudo o que merece; mas sivelmente os apóstolos, se assentarão se a sua preocupação é com “O que será sobre doze tronos, para julgar as doze de mim?” a sua recompensa será peque­ tribos de Israel. Embora a intenção seja na. séria, isso nâo deve ser forçado em senti­ do literal. Em outras partes, assegura-se. 2. Trabalhadores na Vinha: Os Primeiros a todos os seguidores de Jesus que eles por Ültimo, Os Ültimos Primeiro reinarão com Cns!õlTOeT °12?3^7^*q^ (20:1-16). S5 santo's~jirigárao^ o niundo (I Cor. 6:2). EstaUão é uma promessa de que as doze 1 Forque o reino dos céu s é sem elh a n te a um h o m em , p roprietário, que saiu de m a ­ tribos de Israel originais serão revivificadrugada a contratar trab alh ad ores para a das, pois Jesus veio para criar os verda­ sua vinha. 2 Ajustou co m os trabalhadores deiros “filhos de Abraão” , da fé, e não o salário de um denário por d ia, e mandouda carne. os p ara a su a vinha. 3 C erca da hora terceira Há intérpretes que visualizam um rei-^ saiu, e v iu que e sta v a m outros, o cio so s, na no literal na Palestina, com tronos lite­ p raça, 4 e d isse -lh e s: Ide ta m b ém v ó s p ara a vinha, e dar-vos-ei o que for ju sto . E e le s rais para Jesus e os doze apóstolos. Esta foram . 5 Outra v ez sa iu , ce r c a d a hora sex ta ou qualquer outra interpretação literal e da nona, e fez o m e sm o . 6 Igu alm en te, pode ser comparada com o resto da cerca da hora u n d écim a, sa iu e achou outros passagem em consideração. Se esses te r^ que lá esta v a m , e perguntou-lhes: P o r que esta is aqui o ciosos o dia todo? 7 R esp on d e­ f~mos devem ser tomados em sentido lite­ ram -lhe e le s : Porque n in gu ém nos co n tra ­ ral, será que a mesma coisa se aplica à tou. D isse-lh es ta m b ém e le : Ide tam b ém promessa de cem vezes mais em pais, vós p ara a vinha. 8 Ao an oitecer, d isse o irmãos, irmãs, filhos e terra? Lucas senhor d a vinha ao seu m o rd o m o : C ham a os trabalhadores, e p a g a -lh es o sa lá rio , c o m e­ inclui “esposa” na sua lista! Certamente çando p elos ú ltim os a té o s p rim eiros. 9 C he­ Jesus não prometeu cem esposas para gando, pois, os que tin h am ido c e rc a da hora í c a d a seguidor. Literalizar é obviamente u n décim a, receb era m u m denário cad a um . trivializar, e perder de vista a intenção de 10 Vindo, en tão, os p rim eiros, p en sa ra m que ha v ia m de receb er m a is; m a s do m esm o Jesus. A sua resposta foi uma forma 241


m odo receb era m um denário ca d a um . 11 E , ao recebê-lo, m u rm u ravam contra o proprietário, dizendo: 12 E ste s ú ltim os trab alh aram so m en te u m a hora, e os ig u a ­ la ste a nós, que suportam os a fa d ig a do dia inteiro e o forte calor. 13 M as e le , respon­ dendo, d isse a u m d e le s : A m igo, não te faço in ju stiça; não a ju sta ste com igo u m d en á­ rio? 14 T om a o que é teu , e v a i-te; eu quero dar a e ste últim o tanto com o a ti. 13 N ão m e é licito fazer o que quero do que é m eu? Ou é m au o teu olho porque eu sou bom ? 16 A ssim os últim os serã o p rim eiro s, e os prim eiros serão últim os.

Stephen Langton, em 1228, ao estabe­ lecer a moderna divisão em capítulos, bem poderia ter evitado separar 20:1-16 de 19:16-30. A parábola explica o prin­ cípio de que os primeiros serão últimos e os últimos primeiros. O motivo da re­ compensa é solidamente baseado nos ensinos de Jesus, mas é importante veri­ ficar que, para os seguidores de Jesus, “a recompensa se torna cada vez mais a coroa, em vez de o motivo do serviço, e também ela não é de tal sorte a atrair o homem centralizado no eu” (Cox, p. 125). A parábola ensina a manifestação de motivos e atitudes quanto ao assunto de recompensas. O ditado acerca dos “primeiros por último e os últimos em primeiro lugar” era provavelmente um provérbio empre­ gado em várias situações (cf. 19:30; Mar. 10:31; Luc. 13:30). Pode ser visto, da introdução da parábola, pela palavra porque (v. 1), e da introdução do segun­ do emprego do provérbio (v. 16), pela palavra assim (houtõs é um advérbio que significa “desta forma”), que Mateus pretendia relacionar a parábola e o pro­ vérbio à discussão com Pedro. Havia, nos tempos de Jesus, um largo uso de um provérbio de “primeiros por último e últimos em primeiro lugar” , para enfatizar igualdade, e isto algumas vezes foi aplicado ao uso de Mateus, verificando-se que o significado é que as recompensas são todas iguais no reino dos céus. Em IV Esdras 5:42, o juízo é comparado a uma “ dança redonda” , um 242

círculo em que ninguém é primeiro ou último. Ê verdade que na parábola todos os trabalhadores receberam o mesmo salá­ rio, mas esse não é o ponto que ela deseja provar. Ela aponta para o fato da liber­ dade e da generosidade do proprietário, ao dar um salário de um dia aos traba­ lhadores que haviam trabalhado apenas uma hora. É um a defesa da graça livre do evangelho, contra os protestos dos que tropeçam quanto a isto (cf. J. Jeremias, Parables, p. 33-38). Da mesma forma como alguns trabalhadores murmura­ vam contra o proprietário, por ter pago aos últimos o mesmo que eles receberam, Jesus era constantemente criticado por receber pecadores (cf. Luc. 15:1 es.). Embora a parábola, em seu contexto imediato, provavelmente enfatizasse a generosidade de Jesus em contraste com os seus críticos, em Mateus ela serve a um propósito ulterior. É uma repreensão contra o espírito negocista, encontrado no moço rico, e que ainda era um pro­ blema para Pedro, e a característica dos trabalhadores que murmuravam contra o proprietário. Os primeiros trabalhadores tinham um trato com o proprietário, pois ele tyustou com eles o salário de um denário por dia. Que o fato de um con­ trato é importante para a história, é claro do fato de o proprietário ter feito um deles se lembrar que eles haviam feito um contrato, e que ele fora observado, e que agora ele podia ir-se (v. 14). Só os últi­ mos trabalhadores, aqueles que haviam trabalhado apenas uma hora, não ha­ viam feito contrato nenhum. Eles sim­ plesmente responderam ao chamado para trabalhar na vinha. Os primeiros lavradores concordaram em trabalhar o dia todo por um denário. Este era o salário diário médio de um trabalhador comum, baixo, segundo os nossos padrões, contudo, mais substan­ cial do que pode dar a entender o dinhei­ ro equivalente a cerca de mil cruzeiros (quatro denários compravam uma ove­ lha). O segundo grupo foi empregado à


hora terceira, segundo a forma judaica de medir o tempo, contando-se do nascer do sol ao ocaso. A esses fora prometido o que for justo, presumivelmente uma boa porcentagem do salário de um dia. O mesmo contrato foi acordado com os tra­ balhadores que foram empregados à hora sexta (meio-dia) e à hora nona. Os últimos trabalhadores foram empregados à hora undécima, apenas uma hora antes do pôr-do-sol. Eles explicaram a sua ociosidade como devida a não terem tido oportunidade de trabalhar. O proprietá­ rio disse: Ide também vós para a vinha. Manuscritos posteriores acrescentam a promessa dada ao grupo de trabalha­ dores que começou no meio do dia; mas esta não é encontrada nos melhores ma­ nuscritos, e a adição obscurece um prin­ cipal ponto da parábola. Esses últimos não haviam ajustado nada, e nada pedi­ ram. Ao anoitecer, o senhor da vinha ins­ truiu o mordomo (idêntico ao chamado proprietário) para pagar os trabalha­ dores, começando pelos últimos e termi­ nando com os primeiros. Receberam um denário cada um. Vendo a genero­ sidade do senhor, os primeiros ansiosa­ mente previram uma grande soma, pois haviam trabalhado longas horas, e ha­ viam suportado o calor do dia. Ficaram não apenas desiludidos, ao não rece­ berem mais, mas murmuravam porque aqueles que trabalharam apenas uma hora haviam sido igualados a eles. O proprietário lhes fez lembrar o ajuste feito: um denário por dia. O trato havia sido honrado de ambos os lados, e fora cumprido. O proprietário defendeu a sua liberdade e direito de ser generoso para com aqueles que haviam trabalhado sem ajuste. Um marcante contraste é observado entre aqueles que resmungaram e aquelfe que exerceu generosidade. “M urm urar” é tradução da palavra grega que literal­ mente pode ser traduzida: Ê mau o teu olho? Olho mau era uma expressão para

designar inveja ou avareza (cf. 6:23; Mar. 7:22). Aplicando-se ao moço rico e a Pedro, isto significaria que a atitude e a motiva­ ção afetam a recompensa. Jesus chamou seguidores que não pedissem nenhum “ajuste” , pessoas cuja preocupação não fosse o que iriam “receber” . O discípulo, bem como o “ negocista” receberão tudo o que lhes for devido, mas o negocista sempre ficará insatisfeito com o que receber. As maiores recompensas são para aqueles que não procuram recom­ pensa. Jesus está procurando aqueles que pedem apenas a oportunidade de traba­ lhar na sua vinha. A sua generosidade é muito maior do que os salários garanti­ dos por qualquer ajuste. Jesus oferece-se a nós sem medida, e nos chama a si com a mesma intensidade. O nosso relacio­ namento com ele deve ser de confiança e amor, incluindo doação e recepção ge­ nerosas. Qualquer barganha é inteira­ mente estranha a este tipo de relaciona­ mento. 3. Terceiro Aviso de Morte e Ressurrei­ ção Iminentes (20:17-19) 17 E stan d o J esu s para subir a J eru sa lém , cham ou à p arte os doze e no cam in h o lh es d is s e : 18 E is que subim os a J eru sa lém , e o Filho do hom em se rá en tregu e a o s p rin ci­ p ais sa cerd o tes e a o s e scrib a s, e e le s o condenarão à m orte, 19 e o en tregarão aos gen tios, para que d ele e sc a rn eça m , e o aço item e cru cifiq u em ; e a o terceiro dia ressu scita rá .

Pela terceira vez Jesus procurou fazer os seus discípulos entenderem o que o esperava, bem como a eles (cf. 16:21-23; 17:22,23). Desta vez, Jesus estava a ca­ minho de Jerusalém. Esperando-o ali, estavam traição, zombaria, tortura e morte por crucificação, bem como res­ surreição. Esta terceira predição indica que a iniciativa contra Jesus já fora tomada, pelos líderes judeus, e que os gentios, oficiais romanos, estariam envolvidos na execução de Jesus. A despeito dos protés243


tos modernos de que a morte de Jesus foi iniciada pelos romanos e que a igreja cristã gentílica, subseqüentemente, tirou a culpa dos judeus e a colocou sobre os romanos, a posição de Mateus é sustenta­ da pelas evidências. Paulo não era antisemita, mas, pouco depois de 50 d.C., escreveu que “ os judeus” haviam m ata­ do Jesus (I Tess. 2:14 e s.). Mateus nãoé anti-semita. Os seus heróis e os seus vilões são judeus. O própçio Jesus é “filho de Davi, filho de Abraão” , bem como “Filho de Deus” . Em cada ocasião, os doze parecem não conseguir entender o que Jesus lhes diz. De cada vez, a reação deles é de recusa em ouvir ou de absorção em suas ambi­ ções egoísticas. Mateus não explica a falha dos discípulos em compreender Jesus em termos de um “segredo mes­ siânico” , mas, pelo contrário, em termos da sua recusa em ouvir a Jesus. Até Marcos, para quem o “segredo messiâ­ nico” é mais proeminente, mostra Jesus proclamando claramente a sua morte aos seus discípulos (10:32-34), demonstran­ do sentimentos tão fortes que aqueles que jornadeavam com ele “se maravilha­ vam” e ficaram “atemorizados” . 4. Os Discípulos, Que Procuravam os Seus Próprios Interesses, Desafiados a Serviços Sacrificiais (20:20-28) 20 A proxim ou-se d e le , en tão, a m ã e dos filhos de Zebedeu, com se u s filh os, a joelh an ­ do-se e fazendo-lhe um pedido. 21 P erg u n ­ tou-lhe J esu s: Que queres? E la respondeu: Concede que e ste s m eu s dois filh o s se se n ­ tem , um à tua d ireita e o outro à tu a esq u er­ da, no te u reino. 22 J esu s, p orém , rep licou : N ão sa b eis o que p e d is ; podeis b eb er o c á ­ lice que eu estou para beber? B esp on d eram Ihe: P od em os. 23 E n tão lh es d issé : O m eu cá lice certa m en te h a v eis d e b eb er; m a s o sentar-se ã m in ha d ireita e à m in h a esq u er­ da, não m e p erten ce concedé-lo; m a s is so é para a q u eles para quem e stá preparado por m eu P a i. 24 E ouvindo isso os dez, in d ign a­ ram -se contra os dois irm ã o s. 25 J e su s, pois, cham ou-os para junto de s i e lh e s d isse: Sabeis que os governad ores dos gen tios os dom inam , e os seu s gran d es e x e r c e m a u to ­ ridade sobre e le s . 26 N ão será a ss im entre

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vós; a n tes qualquer que en tre vós quiser tornar-se gran d e, se r á e s s e o que vos sirv a ; 27 e qualquer que en tre vós q u iser se r o prim eiro, se r á o v o sso s e r v o ; 28 a ss im com o o F ilho do h om em não v eio para s e r servid o, m a s p ara serv ir, e p ara dar a su a vid a em resg a te de m u itos.

Mateus especifica a mãe dos fílhos de Zebedeu, isto é, Tiago e João, falando a Jesus em favor dos seus filhos. Marcos diz que Tiago e João fizeram o pedido para si mesmos (10:35). Quer Mateus esteja removendo parte da culpa dos dois discípulos, quer simplesmente suprindo maiores minúcias ao relato de Marcos, tanto ele como Marcos mostram que os próprios discípulos eram os responsáveis pelo pedido egoísta e incivilizado. Isto é claro devido à resposta de Jesus no versí­ culo 22 e s., dirigida aos discípulos, e não à mãe deles. O pedido de uma posição de honra, à direita e à esquerda de Jesus em seu reino (provavelmente a mesma coisa que M ar­ cos menciona: “na tua glória” , 10:37), expressa o interesse egoísta dos discí­ pulos, e também a sua falta de compre­ ensão da natureza do reino de Jesus. O padrão que eles tinham em vista era flagrantemente semelhante ao dos rei­ nos deste mundo. Eles consideravam o reino messiânico como basicamente político, esperando que Jesus expulsasse os governantes romanos de Jerusalém. O assento à direita do trono de um rei era da primeira pessoa em honra, e o à esquerda, da segunda. O desejo dos dis­ cípulos de receber honra e a sua idéia de grandeza eram essencialmente pagãos, como Jesus disse. Os discípulos não perceberam o que estavam pedindo, ao desejar lugares próximos a Jesus no seu reino. Eles ainda não compreendiam que o seu trono iria ser a cruz. Cálice é uma figura que Jesus usou para a morte que o aguardava. No relato de Marcos (10:38), “batismo” também é usado como figura do sofri­ mento e morte que o esperavam. Estas não são referências diretas à Ceia do


Senhor e batismo nas águas, mas uma linguagem figurada poderosa para desig­ nar a morte. O versículo 22 coloca a responsabilidade, pelo pedido egoísta, irrefutavelmente sobre Tiago e João, e os acusa de não conseguirem entender o que estavam pedindo. Isto significa que eles não compreendiam o que esperava por Jesus. Ã pergunta de Jesus acerca da capaci­ dade de beber o cálice que ele estava para beber, os discípulos responderam depres­ sa: Podemos. Como eles demonstraram ser incapazes e estarem despreparados! Quando Jesus foi preso, todos os doze “ deixando-o, fugiram” (26:56). Ironica­ mente, as posições à direta e à esquerda de Jesus, na sua hora de maior triunfo, foram ocupadas não por Tiago e João, mas por dois ladrões {21:38). Jesus predisse que Tiago e João iriam . beber o seu cálice, isto é, entrar nos seus sofrimentos. Tiago veio a ser o primeiro dos doze a sofrer o martírio, sendo exe­ cutado por Herodes Agripa (At. 12:2). Nenhuma das conflitantes tradições acerca de João pode ser provada: nem a de que ele sofreu o martírio nem a mais forte, de que ele viveu até a mais avança­ da idade em Éfeso. João 21:22 parece apoiar a última. Embora beber o cálice de Jesus possa bem referir-se ao martírio físico, no pensamento do novo Testamen­ to, tal dedicação a Cristo, da parte de uma pessoa que esteja pronta para mor­ rer por ele, é, em princípio, considerada como martírio (cf. 16:24 e s.; Gál. 2:19 e s.). Neste sentido, João bebeu o cálice, quer tenha ou não sofrido o m ar­ tírio físico. Os lugares à direita e à esquerda de Jesus, por natureza, não são posições que possam ser arbitrariamente concedidas ou dadas como prêmio. O próprio Jesus não podia “ dá-las” , pois pertenciam àqueles para quem está preparado. Jesus demonstrou que a grandeza é medida pelo serviço sacrificial. O maior é aquele que é servo; o primeiro é aquele que serve. No mundo pagão, os gentios me­

diam a grandeza através da dominação, sendo o grande aquele que exercia o maior controle sobre o maior número de pessoas. Jesus reverteu o padrão gentí­ lico, mas os discípulos ainda estavam por aprender essa lição. Possivelmente aque­ les para quem os principais lugares esta­ vam preparados são os que se entregam mais plenamente a um serviço sacrificial. Esta é uma outra declaração do princípio de que “primeiros serão últimos, e últi­ mos, primeiros” (19:30; 20:16). A indignação dos dez mostrou que eles não estavam mais livres dos interesses egoístas e mundanos do que os dois irmãos, mas possivelmente não eram tão ousados. Em o Novo Testamento há traços da rivalidade entre Pedro e João, e o pedido de Tiago e João pode refletir isso (cf. João 20:2-6; 21:20-22). Se tal rivalidade era visível, pelo menos mais tarde eles são encontrados trabalhando juntos em harmonia (At. 3:1-4). As palavras concernentes ao contraste entre os padrões falsos do mundo quanto à grandeza e o princípio exarado por Jesus, de serviço sacrificial, foram diri­ gidas a todos os discípulos. No mundo deles, o servo (escravo) era colocado no degrau mais baixo da escala social. Jesus tomou os termos servo e escravo como padrões de grandeza. Aquele que se tor­ nasse escravo voluntário, renunciando todas as reivindicações a direitos e pre­ tensões de mérito ou grandeza, iria ser o primeiro entre eles. O versículo 28 está entre os mais im­ portantes de IVlateus. Jesus interpretou o papel do Filho do homem em termos de serviço sacrificial, possivelmente aprovei­ tando-se das passagens acerca do Servó Sofredor em Isaías (53:12). Ao combinar essas figuras ou papéis, Jesus foi bem além do judaísmo contemporâneo e dos seus próprios discípulos. O Filho do homem, a quem foram dados domínio e glória e um reino universal e eterno (Dan. 7:13 e s.), tinha vindo na forma humilde de servo, e iria dar a sua vida em resgate de muitos. Esses papéis não 245


apenas se uniam em Jesus, mas também foi ele a primeira pessoa a declará-los, e não os discípulos ou a Igreja. Os pri­ meiros discípulos e a primeira igreja resistiram a esse caminho estranho, da mesma forma como o fazemos hoje. A palavra resgate (lutron) é construída de uma palavra grega, cuja raiz significa livrar ou libertar. Carrega a idéia de custo e libertação. Através da entrega da sua vida, Jesus colocaria muitos em li­ berdade. Vida (psuchê) podé significar o eu ou a vida física. Jesus deu ambos. Ele deu a sua vida física na cruz, mas deu mais. Deu-se a si mesmo em completa autonegação (abnegação) e auto-sacrifício. O termo resgate não é um termo litúrgico (cúltico, no original em inglês) usa­ do em conexão com a oferta pelo pecado (cf. Robinson, p. 168, e Hummel, p. 101). É um termo usado em conexão com o salvamento de uma pessoa ou animal, mas nunca, no pensamento judaico, para a substituição de um pecador pela víti­ ma, no sacrifício. Jesus estava falando de algo muito mais exigente, mais pessoal e mais significativo. Ele veio para libertar o homem das garras do pecado (1:21), e isto ele pôde realizar somente dando a sua vida (a si mesmo) e operando aquele milagre de conversão naqueles que nele confiam, através do qual eles também bebem o seu cálice, suportam o seu “ba­ tismo” (Mar. 10:38) e seguem o seu Mestre em autonegação e no caminho da cruz (16:24). Resgate de muitos não dâ a entender um número limitado de pessoas, por quem Jesus morreu ou para quem a sal­ vação é possível. Muitos é uma forma judaica de dizer “ todos” (cf. Is; 53:12). A preposição por (anti) (em português, em nossa tradução, de) não implica, necessariamente, “em lugar de” , como demonstra o emprego desta palavra em seu freqüente uso em o Novo Testamen­ to. Jesus deu a sua vida por nós, mas ele o fez para nos capacitar a também dar­ mos a nossa, em um sentido real. Esta é a 246

idéia da sua repreensão da ambição autocentralizada e auto-afirmativa dos seus discípulos. Eles podem encontrar vida apenas “perdendo-a” e vivem ape­ nas “morrendo” . Esta não é uma “teoria exemplificada da expiação” ; longe disso. Não que o homem salve a si mesmo seguindo o exemplo de Jesus. Ê um res­ gate, quando Jesus se torna uma presen­ ça transformadora na vida do seu segui­ dor, libertando-o da morte que parece vida, para a vida que tem a forma de morte. 5. Jesus Cura Dois Cegos Repreendidos pela Multidão (20:29-34) 29 Saindo e le s de J erie ó , seguiu-o u m a grande m u ltid ão; 30 e e is que d ois ceg o s, sen tad os junto do cam in h o, ouvindo que J esu s p a ssa v a , c la m a ra m , dizendo: Senhor, Filho de D a v i, te m com p aixão de n ós. 31 £) a m ultidão os rep reen d eu , p ara que se c a la s ­ sem ; e le s, p orém , c la m a ra m a in d a m a is alto, dizendo: Senhor, F ilh o d e D a v i, tem com p aixão de nós. 32 £) J e su s, parando, cham ou-os e perguntou: Que q u ereis que v o s fa ça ? 33 D issera m -lh e e le s : Senhor, que se nos ab ra m os olhos. 34 E J esu s, m ovido de com p aixão, tocou-lhes os olhos, e im e d ia ta ­ m ente recu p eraram a v ista , e o seg u ira m .

Esta história é muito parecida com a de 9:27-31. Em cada uma das histórias, dois cegos gritam pedindo misericórdia a Jesus, chamando-o de Filho de Davi. Na primeira, eles são questionados acerca de sua fé, e, depois de serem curados, são instados para que não o relatem. Nesta história, a compaixão de Jesus é contras­ tada com a repreensão dos dois homens, levada a efeito pela multidão. A essa altura, Jesus está avançando abertamente para Jerusalém, para ali ter a sua con­ frontação final, e não pede mais silêncio da parte dos que foram curados. O motivo para a multidão dizer aos cegos para guardarem silêncio pode ser apenas conjecturado. Pode ter sido ex­ pressão da sua indiferença para com as necessidades dos homens, ou medo de que a aclamação pública de Jesus como Filho de Davi pudesse suscitar hostili­ dade. Mas isto não está claro.


Filho de Davi é um título importante, que se repete várias vezes em Mateus (cf. 1:1; 9:27; 12:23; 15:22; 21:9,15). Mais tarde, no judaísmo, ele emergiu como título messiânico, mas as esperan­ ças messiânicas populares entre os judeus se centralizavam em um rei davídicò. Senhor (kurios) pode ser usado para designar desde um “ senhor” ou pessoa qualquer como simples pronome polido de tratamento até um título para Deus. A sua força aqui não é clara, mas Senhor veio a ser um título de primeira importância para Jesus no Novo Testa­ mento. Aquele que está a caminho de Jerusalém como Servo Sofredor, para ali sofrer zombaria, açoites e crucificação, e em relação a quem até os doze estavam ainda tão cegos, aqui é aclamado por dois cegos, na majestade de Filho de Davi.

XIV. Entrada Triunfal em Jeru­ salém (21:1 — 23:39) Antes de tudo Jesus foi enviado às “ovelhas perdidas da casa de Israel” (10:6), e, neste ponto, Mateus mostra como Jesus fez abertamente as suas rei­ vindicações messiânicas sobre Jerusalém e legitimou essas reivindicações mediante as suas obras miraculosas. A entrada triunfal em Jerusalém, o fato de ele ter aceito a aclamação do povo, dizendo ser ele o Filho de Davi, a purificação do Templo e os sinais messiânicos em Jeru­ salém, tudo aponta para o fato de que Jesus é o Filho de Davi enviado a Israel (cf. Hummel, p. 138 e s.). A hora da decisão para Jerusalém chegou. Israel precisava receber ou rejeitar o seu rei. Não haveria uma terceira chance para eles. 1. A Entrada Triunfal (21:1-11) 1 Quando se ap roxim a ra m de J eru sa lém , e ch egaram a B e tfa g é, a o M onte d as O livei­ ras, en viou J e su s dois d iscíp u los, dizendolh es: 2 Ide à a ld eia que e stá d efronte de v ó s, e logo en con trareis u m a ju m en ta p resa , e um jum entinho com e la ; d esprendei-a, e trazei-m os. 3 E , se a lg u ém v o s d isser al-

gum a co isa , respondei: O Senhor p recisa d e le s ; e logo os en v ia rá . 4 Ora, isso a co n te­ ceu p a ra que se cu m p risse o que foi dito pelo profeta: 5 D izei à filh a de S iã o : E is que a í te v e m o teu R ei, m an so, e m ontado em um ju m ento, em u m jum entinho, cria de a n im a l de carg a . 6 Indo, p ois, os d iscíp u los e fazen d o com o J esu s lh es ordenara, 7 trou xeram a ju m en ta e o jum entinho, e sobre e le s pu sera m os seu s m an tos, e J esu s m ontou. 8 E a m a io r parte da m u ltid ão esten d eu o s seu s m an tos pelo ca m in h o ; e outros co rta v a m ra m o s de á rv o ­ res, e os esp a lh a v a m p elo cam in h o. 9 E a s m u ltid ões, tanto a s que o p reced ia m com o a s que o seg u ia m , c la m a v a m , dizendo: H osana, ao F ilh o de D a v i! bendito o que v e m em n om e do Senhor! H osana n a s a l­ turas! 10 Ao en trar e le e m J er u sa lém , agitou-se a cid ad e toda e p e r g u n ta v a : Q uem é este? 11 E a s m u ltid ões resp on d iam : E ste é o profeta J esu s, de N azaré da G aliléia.

Este é um ato messiânico, mais exata­ mente designado como entrada real do que entrada triunfal. Jesus deliberada­ mente apresentou-se como Rei, mas não como um rei mundano e político. Ele nâo empregou nenhum símbolo de poder mundano. Entrou montado em uma humilde besta de carga, e não em um cavalo branco, como um vitorioso mili­ tarista. Isto é verificado como cumpri­ mento da promessa que consta em Zaca­ rias 9:9, sendo colocada a ênfase sobre Jesus como Rei de Israel, e, não obstan­ te, humilde. A expressão “triunfante e vi­ torioso’’de Zacarias não é citada (cf. Mar. 11:3-10; Luc. 19:31-38; João 12:12-19). Claro que Jesus triunfou em Jerusalém, através do estranho caminho da cruz, mas qualquer semelhança com o padrão mundano de “ triunfo” é evitado. De acordo com João, a chegada a Betânia ocorreu seis dias antes da Páscoa (12:1), e a entrada em Jerusalém, no dia se­ guinte (12:12). Betfagé é mencionada aqui pela pri­ meira vez. A sua localização exata é desconhecida, mas era perto de Betânia (Mar. 11:1), cerca de seis quilômetros ao sudeste de Jerusalém. O seu significado, “casa dos figos novos” , pode ter algo a 247


ver com o fato de seu nome ser mencio­ nado, visto que o episódio da figueira estéril segue-se logo (21:18-22). Embora possa ser considerado um conhecimento sobrenatural, uma combi­ nação prévia para o jumentinho (ou ju ­ mentinho e sua mãe) pode ter sido feita. Se assim foi, pode ser que Lázaro de Betânia o tivesse preparado. Entendida assim, a palavra O Senhor precisa deles poderia ser uma senha. Esses planos requeriam o máximo de segredo, até a hora da dramática entrada em Jerusa­ lém, de outra forma, esta poderia esbar­ rar com a interferência de adversários, ou o elemento surpresa se perderia. O fato de que essas combinações tives­ sem sido feitas antecipadamente, admi­ timos, é um a pressuposição, mas não inerentemente inadmissível nem se refle­ te adversamente sobre a história. Expli­ caria a boa vontade dos proprietários em entregar o jumentinho (e sua mãe) sem resistência. Mateus claramente se refere a dois animais: uma jumenta, e seu jumenti­ nho. Ele interpreta Zacarias 9:9 como referindo-se a dois animais. Os outros três Evangelhos mencionam apenas o jumentinho (cf. Mar. 11:1-10; Luc. 19: 31-38; Joâo 12:12-19). A conjunção grega kai pode ser traduzida como “e” ou “mesmo” . As linhas ou versos poéticos são geralmente entendidos de forma a conter paralelismo hebraico: “ sobre um jumento, mesmo sobre um jumentinho, filho de jum enta” . Autõn, no versículo 7, é mais apropriadamente traduzido “sobre eles” (conforme na Versão da IBB), significando que Jesus sentou sobre os dois animais ou sobre os man­ tos. Mesmo se ao que se está referindo são os mantos, a afirmação permanece obscura, pois a referência é feita aos mantos sobre eles. Não há, evidente­ mente, solução para este problema. É claro que Mateus tinha em mente dois animais, e que essa era a forma como ele interpretou Zacarias 9:9. O que é mais importante é que ele não 248

inventou a história da entrada de Jesus em Jerusalém, montado em um animal humilde. Mateus aproveitou-se bem do tema de cumprimento das profecias e empregou a linguagem das suas citações do Velho Testamento, ao contar as suas histórias. Mas, como temos insistido no decorrer de todo este comentário, ele nâo criou as histórias para ajustar-se a textos de prova, e, sim, interpretou, mediante as Escrituras, o que já era reco­ nhecido como acontecimentos na vida de Jesus. Até a relação algumas vezes for­ çada entre o texto da Escritura e o acon­ tecimento, argumenta em favor da prio­ ridade da história, e não contra ela. A primeira parte do versículo 5 vem de Isaías 62:11, uma promessa feita â filha de Sião, isto é, Jerusalém, de que a sua salvação se aproxima. Mateus vê o cum­ primento dessas palavras em Jesus, o rei humilde que, nessa condição, entrou em Jerusalém. A saudação da multidão faz eco com Salmos 118:25 e s., o último dos cânticos de Hallel, cantados na Pás­ coa. Hosana significa: “Salva-nos, te rogamos.” Originalmente, era uma prece, pedindo a ajuda, mas aqui parece ser um grito de louvor. Tanto Filho de Davi como o que vem são títulos messiâ­ nicos. As multidões também aclamaram Jesus como o profeta, provavelmente mais do que simplesmente uni profeta. Havia expectações judaicas de que sur­ giria um profeta como Moisés (Deut. 18:15,18), aparentemente messiânico. Pela terceira vez Mateus demonstrou que Jesus foi proclamado Filho de Davi pelo põvo comum, tendo sido antes por f e " -W p rt9 ? 2 T 3 1 ) e pelas multidões (12:22 e ss.), e, aqui, ele é rejeitado pelos líderes (WalJker, p. 131). 2. A Purificação do Templo (21:12-17) IZ E n tã o J e su s entrou no tem p lo ,' ex p u l­ sou todos os que aU v en d ia m e com p ravam , e derribou a s m e sa s dos ca m b ista s e as ca d eira s dos que v en d iam p om b as; 13 e d isse-lh es: E s tá e sc r ito : A m in h a c a sa se r á ch a m a d a c a sa de o ração; v ó s p orém , a fa ­ zeis co v il de sa ltea d o res.


14 E ch egaram -se a e le , no tem p lo , ceg o s e coxos, e e le os curou. 15 V endo, porém , os p rincipais sacerd o tes e os escr ib a s a s m a ­ ravilh as que e le fizera, e os m en in os que c la m a v a m no tem p lo: H osana a o F ilho de D avi, in d ign aram -se, 16 e p erg u n ta ra m -lh e: Ouves o que e ste s estã o dizendo? R espondeulh es J e s u s ; S im ; nunca le s t e s : D a b oca de pequeninos e d e crian cin h as de p eito tira ste p erfeito louvor? 17 E deixando-os, saiu da cid ad e, para B e ­ tãn ia, e a li p assou a noite.

A purificação do Templo foi um ato profético. Não foi um protesto contra o Templo em si, mas contra os abusos que ali se praticavam. As famílias dos sumos sacerdotes, particularmente a de Anás, no tempo de Jesus, exerciam grande con­ trole sobre o Templo, através da sua colaboração com os romanos. Por templo (hieron) entende-se não o santuário (naos) propriamente dito, mas o comple­ xo de cinqüenta mil metros quadrados, que incluía várias cortes e edifícios. Não sendo Jesus, sacerdote, era-lhe barrada a entrada no Templo pro­ priamente dito (naos). A venda de animais para sacrifícios e a troca (câm­ bio) de moedas eram feitas no Pátio dos Gentios. A prática inicialmente servia às necessidades do povo, pois os judeus provindos de lugares distantes não po­ diam, com facilidade, trazer animais para os sacrifícios consigo, e também precisavam cambiar moedas gregas, ro­ manas e de outras terras, para obter as duas didracmas requeridas. Parece que sal, óleo e vinho eram também vendidos no pátio do Templo. Os cambistas mon­ tavam as suas mesas desde o mês judaico de Adar, no dia 25, até 1 de Nisã (mais ou menos março-abril). Possivelmente, preços exorbitantes eram cobrados pelos cambistas, mas não se conhece nenhum protesto da parte dos judéus contra isso. Havia protestos con­ tra a venda de animais e pássaros. Pode ser que a ação de Jesus tivesse sido diri­ gida primordialmente contra a venda de animais e aves, e que as mesas dos cambistas tivessem sido derribadas na confusão (Johnson, p. 504). Robinson

acha que a ofensa mais séria foi expressa nas palavras covil de salteadores (cf. Jer. 7:11). Que o Templo servia de santuário para todo judeu que tivesse prejudicado um gentio, e Jesus estava considerando que as autoridades do templo estavam permitindo que o Templo se tornasse abrigo de malfeitores ou fugitivos da justiça, com quem se identificavam al­ guns dos que negociavam ali (p. 171 e s.). Esta possibilidade não pode ser verifi­ cada. A explicação mais simples e mais provável é que Jesus viu o Pátio dos Gentios em tal confusão que era impos­ sível orar ali, e que ele via o povo sendo explorado em nome da religião. Contra isso foi que ele protestou. A declaração de Jesus de que o Templo era a casa de Deus e casa de oração expressa a linguagem de Isaías 56:7 e Jeremias 7:11. A expressão “para todas as nações” é encontrada em Marcos 11:17 (cf. Is. 56:7). Tem sido sugerido que Mateus omitiu-a porque via o Tem­ plo como a casa de oração apenas para Israel, mas isto não seria atribuído à sua ausência em Lucas 19:46, cujo tema de um evangelho para todas as nações teria sido tão bem servido com a sua inclusão! A explicação pode ser que Mateus e Lucas seguiram um texto diferente do de Marcos, neste ponto, ou as palavras podem ser um a adição de escribas, em Marcos. Embora anteriormente Jesus tivesse evitado o encorajamento das aclamações populares, por causa dos muitos perigos que podia acarretar à sua missão, agora ele abertamente curava cegos e coxos, até no Templo. O que agradou às multidões e fez com que até os meninos expressas­ sem o seu louvor fez com que os prin­ cipais sacerdotes e escribas ficassem in­ dignados. Quando os meninos louvaram Jesus como o Filho de Davi, esses líderes religiosos protestaram contra Jesus. Louvor de crianças e protestos das auto­ ridades do Templo e da sinagoga pare­ cem ser um estranho padrão, mas não era novo. Jesus encontrou em Salmos 8:2 249


uma previsão de perfeito louvor, vindo de pequeninos e de criancinhas de peito. Saindo do Templo, Jesus foi para Betânia, e ali passou a noite. Eulisthê pode indicar que ele passou a noite ao relento, mas o termo não é limitado a este significado. Provavelmente, por medidas de segurança, Jesus passou a noite ao relento ou com amigos em Betâ­ nia no lar de Lázaro, Maria e M arta (João 11:1 e s.; 12:1 e s.). A data específica da purificação do Templo é problemática. João apresenta a purificação do Templo como tendo ocor­ rido no começo do ministério de Jesus (2:14-17). Todos os Sinópticos a colocam depois da entrada triunfal de Jesus em Jerusalém — Mateus e Lucas no dia da entrada, e Marcos, no dia seguinte (11: 11-15). O fato de Jesus ter feito esse protesto contra os abusos do Templo tem base sólida em todos os Evangelhos. Que ele falou de um verdadeiro Templo — ele mesmo e sua Igreja — que substituiria aquele “feito por mãos” , é mencionado por João (2:19) e constituiu uma acusa­ ção de monta no seu julgamento (26:61; Mar. 14:58; cf. Ef. 2:18e ss.; II Cor. 5:1). Mais do qualquer outra coisa, esta ação e estas palavras incitaram os sumos sacer­ dotes saduceus à ação, pois o protesto de Jesus era contra eles, e não apenas contra os mercadores e cambistas. Já havia muito tempo que os fariseus se haviam decidido a destruir Jesus, porque ele havia desa­ fiado os fundamentos do seu sistema e a distinção que eles faziam entre o povo de Deus “limpo” e “justo” e os que não o eram. Neste ponto os dois grupos mais poderosos do judaísmo, saduceüs e fari­ seus, uniram as suas forças contra o seu comum inimigo. 3. Lições Tiradas de uma Figueira Infru­ tífera (21:18-22) 18 Ora, de m anh ã, ao voltar à cid ad e, te v e fom e; 19 e , avistan d o u m a fig u eira à beira do cam inho, d ela se aproxim ou, e não achou n ela sen ão folh as som en te; e d isse-lh e:

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N unca m a is n a sç a fruto de ti. E a figu eira secou im ed ia ta m en te. 20 Quando os d is c i­ pulos v ir a m isso , p ergu n taram , a d m ir a d o s: Ciomo é que im ed ia ta m en te seco u a fig u ei­ ra? 21 J esu s, p orém , respondeu-lhes: E m verd ad e vos digo que, se tiv erd es fé e não duvidardes, não só fa reis o que foi feito à figu eira, m a s a té , se a e s te m on te d is se r d e s: E rgu e-te e lan ça-te no m a r, isso se r á feito; 22 e tudo o que ped ird es n a o ração, crendo, receb ereis.

O fato de que Jesus teve fomé na manhã seguinte, depois de ter passado a noite em Betânia (v. 18), sugere que ele tenha passado a noite ao relento. O verbo usado (eulisthê) pode sugerir isso. Se passara a noite ao relento, pode ser que não tivesse comido nada. Os figos aparecem ao mesmo tempo que as folhas, em um a figueira, surgin­ do, na verdade, os botões antes das folhas. As folhas amadurecem antes dos figos, mas uns poucos figos são comíveis antes da colheita principal. A folhagem suscitaria, em pessoas famintas, a espe­ rança de que a figueira tivesse frutos maduros. O fato de ele ter achado folhas somente significa que aquela figueira não iria produzir frutos naquele ano. Se Jesus usou a figueira como uma lição objetiva, como um sinal dramático ou como simbolismo profético acerca do destino da infrutífera Israel, tudo está bem claro. A figueira era uma figura e um símbolo familiar para Israel, e esta parece ser a lição na parábola da figueira infrutífera em Lucas 13:6-9. O sacrifício de uma árvore, à beira do caminho, se justificaria, se ele pudesse despertar os doze e a sua nação para o terrível perigo que os ameaçava (cf. 21:41,43). A lição igualmente podia ser aplicada como advertência contra a esterilidade na vida individual (cf. João 15:2-6) O discurso acerca de fé e oração não é óbvio em sua relação com o fato =de a figueira ter secado. Que a pessoa precisa orar, e orar com fé, é claro. Mas o que significa fazer outras figueiras como aquela secarem, ou lançar um monte no mar?


Pode-se encontrar algum paralelo en­ tre esta passagem e João 15:1-11. Em ambas, a discussão passa da importância de dar frutos para o assunto de pedir. É fatal ser infrutífero, tanto para um indi­ víduo como para uma nação; mas isto não é necessário. Há recursos divinos que podçm salvar da esterilidade e da sua consequente destruição. Em João, esses recursos estão à disposição daquele que “permanece” em Cristo e “pede” . Em Mateus, esses recursos estão à disposição da pessoa que ora com fé. 4. A Questão da Autoridade de Jesus (21:23-22:14) Autoridade é a palavra-chave que pro­ picia unidade a esta seção. A questão é levantada pelas autoridades judaicas reconhecidas, e Jesus a enfrentou cara a cara. Ele primeiramente trouxe à tona a hipocrisia dos que pediam as suas cre­ denciais. Depois, apresentou a natureza, significado e testes para a autoridade, e as conseqüências do desrespeito à auto­ ridade. 1) AutoridadeDesafíada(21:23-27) 23 Tendo J esu s entrado no T em plo, e estando a en sin ar, ap rox im a ra m -se d ele os principais sacerd o tes e os an ciã o s do povo, e p erg u n ta ra m : Com que autoridade fa z e s tu e sta s coisas? e quem te deu ta l autoridade? 24 R espondeu-lhes J e su s: E u ta m b ém vos p erguntarei u m a co isa ; se m a d isserd es, eu de ig u a l m odo v o s d irei com que autori’ dade faço e sta s co isa s. 23 O b atism o de João, donde era? do céu ou dos hom ens? Ao que e le s arra zoavam en tre si: Se d isse r ­ m os: Do céu, ele nos dirá: E ntão por que não o crestes? 26 M as, se d isserm o s: D os hom ens, tem em o s o povo; porque todos co n ­ sid eram João com o profeta. 27 R esp on d e­ ram , p ois, a J e su s: N ão sa b em o s. D isselh es e le : N em eu vos digo com que au tori­ dade faço esta s co isa s.

Os principais sacerdotes e os anciãos do povo eram as autoridades reconhe­ cidas do judaísmo. Entre os principais sacerdotes estava o sumo sacerdote, que era também presidente do Sinédrio, a suprema corte dos judeus. Os anciãos

(presbuteroi) eram os leigos, fariseus ou escribas, que também eram represen­ tados no Sinédrio. Esses homens tinham o direito de pedir de Jesus as suas cre­ denciais, especialmente em vista da liberdade que ele tomara na interpreta­ ção da Lei, atribuindo novos valores à tradição oral, e no fato de purificar o Tem­ plo. Jesus havia falado ousadamente e agido em áreas que eram reconhecidas como esfera de autoridade deles. Jesus não desafiou o direito deles de questionálo. Eles teriam negligenciado os seus deveres, se tivessem sido indiferentes ao que ele estava ensinando e praticando. Jesus desafiou as “autoridades” em outro ponto, o da sinceridade. Trouxe à tona a sua hipocrisia, testando-os. Se eles tivessem inquirido honestamente acerca da autoridade dele, Jesus teria respeitado às suas perguntas. Mas essa não era a evidência de que eles necessitavam. Pre­ cisavam de uma disposição para pesar honestamente as evidências que já esta­ vam diante deles. Jesus desnudou a sua hipocrisia, perguntando-lhes acerca do batismo de João. Era ele de Deus ou dos homens? Percebendo o dilema, eles se tornaram evasivos. Não querendo reco­ nhecer o comissionamento de João como sendo de Deus, e temendo o povo, que reconhecia João como um profeta, eles disseram que não sabiam responder. Jesus se recusou a dar resposta à sua pergunta, não porque ela em si era im­ própria, mas porque eles não estavam abertos para a verdade. Jesus não tinha nenhuma palavra para a hipocrisia, a não ser julgamento. Se eles não eram competentes para julgar João, cuja vida já se completara, como podiam julgar Jesus? Não que eles não o pudessem, mas o fato é que não julgariam retamente nem João nem Jesus. 2) Dois FUhos: Autoridade Reconhecida em Obediência, e Não em Palavras (21:28-32) 28 M as que vos p a rece? U m h o m em tinha dois filh os; e , ch egan d o-se ao prim eiro, d isse: F ilh o, v a i trab alh ar hoje n a vinha.

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29 E le respondeu: Sim , sen h or; m a s não foi.

30 C hegando-se, en tão, a o segu n d o, falou-lhe de igu al m odo; respondeu-lhe e ste : N ão quero; m a s depois, arrep en d en d o-se, foi. 31 Qual dos dois fez a vontade do p ai? D is­ sera m e le s : O segund o. D isse-lh es J esu s: E m verd ad e v o s d igo que os publicanos e m eretrizes en tram ad ian te d e v ó s no reino de D eu s. 32 P o is João v e io a v ó s no cam inho da ju stiça , e não lh e d este s créd ito, m a s os pubUcanos e a s m eretrizes lho d era m ; vós, porém , vendo isto , n em depois v o s a rrep en ­ d estes p ara crerd es n ele.

O ponto principal está claro: que_a^ autoridade é respeitada pela j abediência. e não da boca para fora. Os principais 'sacerdotes e linciãòs7\ao perguntarem “a Jesu^acêrca da sífã autoridade, deram a entender £ue eles respeitavam a autori­ dade. ^esus^vprimeiro desnudou a sua hmocrisiiráuestionando-os a respeito de João, e depois focalizou o assunto do que constitui respeito pela autoridade.,, ÕbedíênHC^êliãHaTnSnõrdõ que isso, é a resposta! O único problema, nesta parábola, é textual. Os~mãnuscn1®s existentes apresenfãm frês versões diferentes: (1) no seguido pelas versões da IBB antiga e Trinitariana, o primeiro filho diz não, mas se arrepende; e o seguriHõ~fÍffio^Hz sim, mas nada faz^ O primeiro filho é aprovado por ter feito a vontade do seu pai. Esta versão tem suporte relativa­ mente bom de manuscritos, e provavel­ mente é a correta. (2) Os manuscritos que são geralmente muito dignos de con­ fiança revertem a ordem, em que o pri­ meiro filho diz sim, mas não faz nada, e o segundo diz não, mas obedece. O se­ gundo filho é aprovado. (3) Os manuscristos Ocidentais contêm um a versão que surpreende. O p^rimeiro filho diz não, mas se arrepende; o segundo diz sim, mas nada faz; não obstante, o sggundo é aprovado. Esta claramente não e a idèlà que Jesus" tinha em mente. A escolha está entre as versões (1) e (2), ambas aprovando o filho que obedeceu, embora a princípio tivesse dito não. Seguindo a versão da IBB, o primeiro filho tipifica Israel ou os líderes aê^lsraiT, 252

que prometem obediência a Deus, mas não obedecem aos seus mandamentos, ac passo que o segundo tipifica os publica­ nos e as meretrizes. E stésen tram no reino de Deus antes dos governantes judaicos. O reino é o governo de Deus. Ele exige submissão, e nao mero semçb da boca paj a forá. ~0s publicanos e as meretrizesl3efce5em melhor o seupecado e se a r r e p e n d i e crêem lhais facilmente. A culpa das autoridades religiosas é agravada pelo fato de elas não' apenas terem ignorado.!_____ mas de não se terem comovido nem sequer quando os publicanos e as meretrizes sendo levados para o caminho da justiça, para o governo real de Deus, mediante a pregação de João. Ao louvar os publicanos e as meretri­ zes mais do que os principais sacerdotes e anciãos do povo, Jesus não sancionou as tendências libertinas ou antinomianas. O que ele fez foi censurar os líderes por não terem reagido adequadamente a João, que viera no caminho da justiça. O reino de Deus faz exigências retas como as que João proclama, mas abre as portas para os publicanos e as meretrizes, que se arrependem e crêem. Esta é a ênfase de Mateus, e nisto ele representa correta­ mente a posição de Jesus. Exigências radicais e misericórdia ilimitada são juntãdãFho eásinõ e proCSdimênto de Jesus. 3) Os Lavradores Maus: Esmagados pela Autoridade Rejeitada (21:33-44) 33 Ouvi ainda outra p a rá b o la : H a v ia um h om em , proprietário, que plantou u m a vinha, cercou-a com u m a seb e, cavou n ela um la g a r, e edificou u m a to r r e ; depois a r ­ rendou-a a uns la v ra d o res e ausen tou -se do p a ís. 34 E quando chegou o tem p o dos frutos, enviou os se u s se rv o s a o s la v ra d o res, para receb er os se u s fru tos. 35 E os lavrad ores, apoderando-se dos ser v o s, esp a n ca ra m um , m a ta ra m outro, e a outro a p ed rejaram . 36 D ep ois en viou a in d a outros serv o s, em m aior núm ero dò que os p rim eiros; e fiz e ­ ram -lh es o m esm o . 37 F o r ú ltim o envioulh es seu filho, dizendo: A m eu fUho terão resp eito. 38 M as o s lavrad ores, vendo o filho, d isse ra m en tre si: E ste é o herdeiro; vinde, m atem o-lo, e apoderem o-nos da su a


herança. 39 E , agarrando-o, lançaram -no fora da vinha e o m a ta ra m . 40 Quando, pois, vier o senhor d a vinha, que fo r á à q u eles lavradores? 41 R esp ond eram -lh e e le s : F a r á p erecer h orrivelm en te a e s s e s m a u s, e a r ­ rendará a vinha a outros la v ra d o res, que a seu tem po lhe en treg u em os fru tos. 42 D isselh es J e su s: N u n ca le s te s n a s E scritu ra s: A pedra que o s ed ificad o res rejeita ra m , e ss a fo i posta com o pedra a n g u la r ; pelo Senhor foi feito isso , e é m aravilh oso a o s n o sso s olhos? 43 P ortanto, eu v o s digo que v o s se rá tir a ­ do o reino de D eu s e se r á dado a u m povo que dê os se u s frutos. 44 E q u em c a ir sobre e sta pedra se r á d esp ed a ça d o ; m a s aq u ele sobre quem e la ca ir se r á reduzido a pó.

Autoridade é o tema continuo na pará­ bola dos lavradores maus. Esta é uma história de rebelião contra a autoridade e as suas conseqüências. A parábola está em forma de alegoria, grandemente ba­ seada no padrão de Isaías 5:1-7. A vinha é uma figura familiar para Israel, e esse é o seu simbolismo aqui. Deus é o proprie­ tário da vinha, e os lavradores arrenda­ tários são os líderes de Israel, ou Israel mesmo. Os servos são os profetas, e o filho é Jesus. Os outros lavradores, a quem a vinha é dada, são os líderes cristãos ou a própria Igreja. A descrição da vinha e suas provisões ou benfeitorias é clara e corresponde aos costumes da época. Sebe é uma cerca viva, feita de arbustos; serve de proteção contra animais daninhos. O lagar consis­ tia de duas partes: a superior, em que as uvas eram esmagadas, e a inferior, em que o suco era coletado. A torre servia como abrigo para os trabalhadores, e como observatório para os guardas. Essas minúcias pertencem apenas ao colorido da história e não têm valor simbólico, exceto para sugerir as cuida­ dosas provisões que Deus fez para o seu povo, como o proprietário fez para a sua vinha. Um ponto importante da parábola é que ao rejeitar os servos e o fílho, os lavradores maus estavam realmente re­ jeitando a autoridade do proprietário.

Era com ele que finalmente eles teriam que se haver. Semelhantemente, Israel ou os seus líderes haviam matado os profetas e em breve iriam m atar o filho, mas, ao fazê-lo, não conseguiriam ganhar a sua herança para si. Ao m atar profetas e filho, eles estavam desafiando a auto­ ridade de Deus, e teriam que responder diante dele. Um outro ponto, indicando a culpa dos lavradores, é que eles mataram os profetas e o filho sabendo quem eles eram. O crime não fora cometido por ignorância. Desta forma, Jesus está dei­ xando bem clara a acusação de que os principais sacerdotes e anciãos do povo que questionavam a sua autoridade eram insinceros. Pediam mais evidências, mas não estavam abertos para elas. Era a sua rejeição deliberada do filho que consti­ tuía i) seu grande pecado. Um dos versículos mais comoventes e instrutivos é o 37. O filho foi enviado, apesar de os servos já terem sido maltra­ tados e mortos. Deus mandou o seu Filho a um mundo que já havia matado os seus profetas. Este era o risco calculado do amor. Os lavradores não precisavam matar o filho, e o proprietário não man­ dou o seu filho para ser morto. O pro­ prietário mandou o seu filho para pre­ valecer sobre os lavradores, para lhe en­ tregarem o fruto. Deus não forçou Israel a crucificar Jesus, e ele não queria que Israel o rejei­ tasse e crucificasse. Deus mandou o seu Filho para converter o povo, para salválo. O Novo Testamento condena o que os judeus e romanos fizeram como rejei­ ção (21:42; João 1:11; At. 4:11; Rom. 9:32; I Ped. 2:7), traição (Mar. 8:31; 9:31; 10:33; 14:41) e assassínio (At. 7:52). Deus deu o seu Filho, e Jesus deu a sua vida, e nessa doação há redenção; mas o homem tirou a vida, e essa é a sua culpa (cf. At. 2:23). Os versículos 42 e seguinte refletem Salmos 118:22 e s; uma passagem muito importante em sua aplicação a Jesus, feita pelos cristãos primitivos (cf. At. 253


4:11; I Ped. 2:7). Jesus é a pedra que os edificadores rejeitaram. Mas a pedra rejeitada foi posta como pedra angular, possivelmente sendo a pedra principal do alicerce. A pedra angular era mais do que uma pedra ornamental ou depositá­ ria de recordações, como acontece hoje em dia. Ela, na verdade, suportava grande parte do peso do edifício (Mc­ Neile, p. 312). Alguns acham que a pedra se refere à pedra de remate, mas isso não é prová­ vel. Seja qual for a função da pedra, ela é a mais importante do edifício. Israel está para colocar Jesus de lado, mas ele é o próprio fundamento do “edifício” que Deus constrói. A favorecida Israel, tendo falhado em sua mordomia, perderá o reino pará outra nação, isto é, para a Igreja, a comunidade dos crentes (cf. IPed. 2:9,10). O versículo 44 é de autenticidade incerta. Não é encontrado nos manus­ critos Ocidentais, e pode ter sido tomado emprestado de Lucas 20:18. A sua adver­ tência parece ser que aqueles que se opõem a Cristo serão despedaçados, e que, sob o seu juízo final, serão esmaga­ dos. A destruição de Jerusalém e da nação em 70 d.C., depois que Israel seguiu os seus falsos messias guerreiros, foi, pelo menos em parte, o cumprimento deste destino. 4) Endurecimento dos Principais Sacer­ dotes e Fariseus (21:45,46) 45 Os princip ais sa cerd o tes e os fariseu s, ouvindo e ss a s p aráb olas, en ten d eram que era d eles que J e su s fa la v a . 46 E procura­ vam prendé-lo, m a s tem era m o povo, p or­ quanto este o tinha por profeta.

Este parágrafo remonta a 21:23, exceto que os anciãos do povo agora são identificados como fariseus. Indica tam­ bém que as parábolas dos dois filhos e dos lavradores maus fazem parte da resposta de Jesus aos principais sacerdo­ tes e fariseus (os anciãos do povo de 21:23). É indicado, além disso, que eles já estavam decididos, com as mentes 254

fechadas para as evidências que haviam levado as multidões a considerar Jesus como um profeta, isto é, alguém que falava em lugar de Deus. 5) Hóspedes Desafiadores e a Ira do Rei (22:1-14) 1 E ntão J e su s to m o u a falar-lh es por p arábolas, dizendo: 2 O reino dos céu s é sem elh a n te a um rei que celebrou a s bodas de seu filho. 3 E nviou os seu s serv o s a cham ar os convidados p a ra a s b od as, e e ste s não q u iseram vir. 4 D ep ois en viou outros servos, ordenando: D izei a o s convidados: E is que tenho o m eu ja n ta r preparado; os m eu s b ois e c e v a d o s já e stã o m ortos, e tudo e stá pronto, vinde à s b od as. 5 E le s, porém , não fazendo ca so , foram , um para o seu cam po, outro p ara o seu negócio; 6 e os outros, apoderando-se dos serv o s, os u ltra­ ja ra m e m a ta ra m . 7 M as o rei encolerizouSe; e , enviando o s seu s ex ército s, destruiu a^iueles h om icid as, e incendiou a su a c id a ­ de. 8 E n tão d isse a o s se u s serv o s: As bodas, n a verd a d e, estã o p rep arad as, m a s os co n ­ vidados não e ra m d ign os. 9 Ide, p ois, p elas encruzilhadas dos cam in h os, e a quantos encontrardes, convidai-os p ara a s bodas. 10 E sa íra m a q u eles se rv o s p elos cam inhos, e aju n taram todos quantos encontraram , tanto m a u s com o b o n s; e en ch eu -se de con ­ v iv a s a sa la nupcial. 11 M as, quando o rei entrou p ara v er os co n v iv a s, viu a li im i hom em que não tra ja v a v e ste n upcial; 12 e perguntou-lhe: A m igo, com o en tra ste aqui, sem te res v e ste nupcial? E le , p orém , e m u ­ d eceu. 13 Ordenou en tão o rei a o s serv o s: A m arrai-o de p és e m ã o s, e lançai-o n as trev a s e x te r io r e s; a li h a v e r á choro e ranger d e d en tes. 14 P orq u e m u ito s sã o cham ados, m a s poucos escolh id os.

Esta parábola pode não estar intima­ mente relacionada com a questão de autoridade colocada em 21:23, como estão as parábolas dos dois filhos e dos lavradores maus, mas pode ser que Mateus tencionasse que ela fosse a pará­ bola que marcasse o apogeu do desenvol­ vimento desse tema. A lição estabelece um paralelismo bem íntimo com a pará­ bola dos lavradores maus. Aqui um rei é a figura central, e é a sua autoridade que é desafiada; e os desafiantes não esca­ pam. O rei emitiu convites para muitas pes­ soas, para que se considerassem hóspe­


des nas bodas de seu filho. Embora emitido como convite, é muito mais do que um a simples cortesia social, o con­ vite do rei. Desprezar o convite do rei seria rejeitar a sua autoridade. Isto não pode ser feito impunemente. Na pará­ bola, o rei faz referência a Deus. Deus convida os homens à sua mesa. Se ele não convidasse, o homem não poderia assentar-se à sua mesa, da mesma forma como um súdito não poderia participar de um banquete do rei, a não ser que fosse con­ vidado. Deus convida, mas não obriga ninguém a comer do seu banquete. A pessoa pode recusar-se, mas, ao fazê-lo, desafia a autoridade de Deus, e desta forma escolhe a alternativa: destruição nas trevas exteriores. É necessário entender os costumes antigos, para ter a idéia de serem envia­ dos os servos a chamar os convidados. Os convites haviam sido enviados antecipa­ damente; e, quando o banquete estava pronto, os servos foram enviados àque­ les que haviam sido convidados, para dizer-lhes que o banquete estava pronto, e que estava na hora de comparecerem. Isto significa que as pessoas que se recu­ saram a participar haviam recebido seus convites antecipadamente, e tinham ainda menos desculpas para se recusa­ rem a ir. As pessoas convidadas a principio se recusaram a ir, e mais tarde não fizeram caso do convite, preocupando-se com outros interesses. Mas não havia apenas indiferença para com o convite do rei; alguns demonstraram hostilidade. Quan­ do pela segunda vez os servos foram enviados, alguns dos convidados zomba­ ram, e outros ultrajaram e mataram os servos. A conduta das pessoas convida­ das é quase impossível de crer. Foi rude, abjeta e cruel. Mas esta é a idéia. Mais surpreendente do que o amoroso convite de Deus para os homens, para se assenta­ rem à sua mesa, é a indiferença, recusa e até desafio do homem. O versículo 7 encaixa-se na história com dificuldade. O rei enviou os seus

exércitos para destruir os homicidas e queimar a sua cidade (presumivelmente uma alusão à destruição de Jerusalém em 70 d.C.), contudo, as bodas ainda estão preparadas (v. 8) para os hóspedes. É forçado pensar em uma “blitz” que pudesse estar terminada antes que a re­ feição se esfriasse. É melhor lembrar simplesmente que isto é uma parábola. As lições são suficientemente claras, apesar de ser difícil perceber os detalhes da história. Embora um banquete não permaneça preparado enquanto se trava uma guerra, o “banquete messiânico” , ao qual a parábola se refere, permanece pronto. Quando os que foram convidados a princípio demonstraram que não eram dignos, os servos foram mandados para as encruzilhadas (diexodous pode signi­ ficar as estradas que saem da cidade, ou o cruzamento de estradas), para convidar qualquer pessoa que fosse encontrada, tanto maus como bons. A referência pode ser à missão gentílica, em seguida à rejeição de Jesus, por parte de Israel, mas, antes de tudo, aos coletores de im­ postos e “pecadores” dentro de Israel. A vocação ou eleição tem suas faízes na graça de Deus, e não no mérito do ho­ mem. A sala nupcial vai encher-se, quer atendam ou não os mais privilegiados. Uma parábola dentro de uma pará­ bola encontra-se nos versículos 11-14. Descobriu-se que um dos convivas não tinha veste nupcial. A conjetura de que o hospedeiro providenciasse roupas espe­ ciais para os convidados pode ser correta, mas será derivada apenas desta passa­ gem (a não ser que, como parece impro­ vável, tal pensamento seja um reflexo de Gên. 45:22; Juí. 14:12 e s.). Não somos informados por que o homem se conside­ rou culpado. Quando interrogado, para explicar que direito ele tivera de entrar (e não como entrara) sem veste nupcial, ele emudeceu. Possivelmente não encon­ trou desculpas. A idéia pode ser que o seu desafio da autoridade era ainda maior do que dos primeiros homens con255


vidados. Eles haviam desafiado a auto­ ridade do rei, recusando-se a assistir à festa. Este homem desafiou essa autori­ dade de maneira mais arrogante, ten­ tando assisti-la à sua própria moda. A confusa passagem acerca do homem sem veste nupcial, bem como a declara­ ção final de que muitos são chamados, mas poucos escolhidos, podem ter o obje­ tivo de advertir o último grupo convida­ do, fossem eles coletores de impostos e prostitutas (21:32) ou gentios, de que eles também estão correndo o perigo de se­ rem presunçosos. Da mesma forma como o primeiro grupo convidado representa os lideres judeus, o segundo grupo, ao qual pertencia o homem sem vestes nup­ ciais, representa os gentios, ou o grupo de proscritos em Israel. Devido à pre­ sunção, ou privilégio, qualquer dos dois grupos pode ser rejeitado. A veste nup­ cial é uma forma de fazer lembrar que, até dentro da graça da vocação, ou elei­ ção, divina, há exigências morais (cf. Lau, p. 157). Jeremias afirma que não se deve enten­ der, por veste nupcial, nenhuma roupa usada especialmente para tais celebra­ ções, mas que a referência era às condi­ ções das vestes, lavadas muito bem para o banquete (Parables, p. 187-89). A dá­ diva gratuita da salvação, feita por Deus^ muitas vezes é descrita como “roupas de salvação” ou “vestes de justiça” (Is. 61:10). Na interpretação rabínica de Eclesiastes 9:8, “sejam sempre alvas as tuas vestes” , a roupa festiva significa arrependimento. Em Apocalipse uma roupa branca simboliza a pureza ou ar­ rependimento (3:4,5,18; 19:8). Portanto, aqui, a veste nupcial pode simbolizar o dom da salvação, oferecido por Deus, ou especificamente arrependimentos e jus­ tiça. A salvação é oferecida a coletores de impostos e prostitutas e gentios, mas não há indulgência. Há dádiva e exigên­ cia. O preço da rejeição do convite de Deus é a rejeição. Muitos são chamados (klé^ toi), mas poucos escolhidos (eklektoi). 256

Isto parece significar que muitos são chamados, mas nem todos aprovados. O ensino, aqui, de certa forma, serve de paralelismo ao das parábolas do joio (13:24-30,36-43) e da rede (13:47-50). Os maus e bons encontram-se juntos até o juízo, mas no juízo final são separados. Mateus difere de Paulo no emprego dos termos “chamados” e “ escolhidos” , ou “eleitos” . Paulo restringe os termos às pessoas que responderam em fé ao con­ vite de Deus. Para ele, o oposto a “os chamados” não é os “não chamados” , mas os que se recusaram ou desobede­ ceram. Mateus emprega “chamados” para o convite de Deus, extensivo a todos, e “eleitos” aos que se verificou terem reagido adequadamente. 5. Esforços Abortados Para Lograr Jesus (22:15-40) Mateus agora segue Marcos ao apre­ sentar três tentativas das autoridades judaicas para lograr ou apanhar Jesus, quer levando-o a fazer declarações acerca de assunto controvertido, quer embaraçando-o ou desacreditando-o diante do povo. Os fariseus, com a ajuda dos hero­ dianos, fizeram a primeira tentativa. Foram seguidos pelos saduceus, e depois tentaram, ainda um a outra vez, confun­ dir Jesus na área da Lei, onde eles se julgavam autoridades. 1) O Pagamento de Impostos a César (22:15-22) 15 E n tão os fa riseu s se retira ra m e co n ­ su ltaram en tre s i com o o ap an h ariam em a lg u m a p a la v ra ; 16 e en viaram -lh e os seu s discipulos, ju n tam en te co m os herodianos, a d iz e r ; M estre, sa b em o s que é s verdadeiro, e que e n sin a s segundo a verd a d e o cam inho de D eu s, e de n in gu ém se te dá, porque não olhas a a p a rên cia dos h om en s. 17 D ize-nos, pois, que te p a rece? É líc ito p a g a r o tributo a C ésar, ou não? 18 J e su s, p orém , p e r c e ­ bendo a su a m a líc ia , resp o n d eu : P o r ^ue m e ex p erim en ta is, h ip ócritas? 19 M ostrai-m e a m oed a do tributo. E e le s lh e ap resen taram um denário. 20 P ergu n tou -lh es e l e : D e quem é e sta im a g e m e in scriçã o ? 21 R esp on d e­ ram : D e C ésar. E n tã o lh e s d isse; D ai, pois, a C ésar o que é de C ésar, e a D eu s o que é de


D eus. 22 Ao ou virem isso , fic a r a m a d m ira ­ dos ; e , deixando-o, se retira ra m .

O fato de questionarem Jesus acerca do pagamento de tributo a César era uma conspiração deliberada, tendo em vista forçá-lo a entrar em um dilema, do qual não pudesse escapar. Os fariseus se opunham ao pagamento desse tributo a César, embora coubesse futuramente aos zelotes fazer a nação mergulhar em uma guerra, por esse motivo, contra os roma­ nos (66 a 70 d.C.) Os herodianos (cf. Mar. 3:6) eram partidários políticos que apoiavam os herdeiros de Herodes, o Grande. Visto que Herodes dependia dos romanos, para manter-se no cargo, apoiava o pagamento do tributo. O tributo (kênson) em questão era uma capitação ou imposto pago por cabeça, chamado hoje imposto de recen­ seamento, cobrado igualmente de todos os do sexo masculino de quatorze anos para cima, e do sexo feminino dos doze aos sessenta e cinco anos de idade, em províncias como a Judéia, que estavam diretamente sob o domínio de Roma. Este tributo pessoal era cobrado em adi­ ção a um imposto sobre as propriedades e taxas sobre a produção. O tributo era pago com um denário especial, de prata, que ostentava o busto e o nome do César que estava reinando. O tributo era du­ plamente odioso para os patriotas ju ­ deus, pois os forçava a reconhecer a sua subordinação a um governante estran­ geiro, e a imagem de César violava a sua lei e a sua consciência contra a idola­ tria. Este foi o tributo que serviu de ocasião para a revolta de Judas da Gali­ léia em 6 d.C. (Josefo, Antig., 18:1 e Guerras, 2:8). Esperando apanhar Jesus em alguma palavra, isto é, levá-lo a dizer algo que afastasse dele os patriotas judeus, ou que desse aos herodianos motivo para acusálo de tendências revolucionárias ou trai­ ção, os fariseus primeiro tentaram apa­ nhar Jesus desprevenido, mediante li­ sonja. Dirigiram-se a ele como Mestre,

título de honra entre eles, e o louvaram como verdadeiro e imparcial. As frases de ninguém se te dá e não olhas a apa­ rência dos homens são um tanto ambí­ guas. O que se queria dizer era que Jesus não demonstrava parcialidade, e que ele não julgava os homens pela aparência exterior. Neste contexto, eles fizeram a pergunta que, esperavam eles, deixaria Jesus sem saída: tributo a César, ou não? Eles usaram originalmente a palavra dar, e não a palavra pagar. Em Marcos 12:14 é mais enfático: “Daremos, ou não da­ remos?” A questão de se era lícito ou não pagar o tributo foi feita do ponto de vista da lei mosaica. Jesus não fugiu à pergunta, mas deu uma resposta surpreendente, tanto de­ vastadora para a posição farisaica, como de longo alcance em sua direção para todo o povo. A alternativa para “equi­ librar-se na cerca” não é necessaria­ mente cair num lado ou no outro. Pode ser demolir a cerca. Jesus, percebendo a sua malícia, chamou-os de hipócritas. Respondeu à pergunta pedindo a moeda (nomisma) do tributo (kénsou), isto é, a moeda especial para o tributo do censo ou “por cabeça” . O próprio fato de eles possuírem a moeda era prova de que já haviam reco­ nhecido o domínio de César. Ao aceitar a sua m.oeda, eles haviam assumido certas obrigações. Jesus os compeliu a reconhe­ cer que ela continha a imagem e inscri­ ção (literalmente, “nome”) de César. Jesus então os encarregou de dar (literal­ mente “ devolver,” apodote) a César o que é de César e a Deus o que é de Deus. Ele mudou o seu “ dar” para “ devolver” , para enfatizar o seu débito para com César e para com Deus. Implicitamente, Jesus se recusou a apoiar o que estava sendo demonstrado ser uma guerra devastadora e sem espe­ ranças contra Roma, e tampouco disse que Roma tinha o direito de governar sobre os judeus. Ele ensinou a validade do governo humano, e reconheceu o domínio romano como um fato. Ao 257


reconhecer débito para com César e para com Deus, Jesus não estava afirmando uma completa separação entre os dois, fazendo César independente de Deus, ou isolando o que é secular do que é sagra­ do. “César” , ou o Estado, tem as suas reivindicações válidas, mas “César” permanece válido apenas quando é sub­ misso a Deus, único soberano, que está sempre acima de César. Sempre que o governo (César) procurar ser totalitário ou independente de Deus, torna-se idó­ latra. Imagem (eikõn) pode ser um a referên­ cia adicional aos ensinos bíblicos de que o homem é feito à “imagem” de Deus (Gên. 1:27). O que o homem precisa “devolver” a Deus é antes de tudo a si mesmo. 2) A Questão da Ressurreição (22:23-33) 23 N o m esm o d ia v ie r a m alg u n s sa d u ­ ceu s, que dizem não h av er ressu rreição , e o interrogaram , dizendo: Z i M estre, M oisés d isse: Se m orrer a lg u ém , n ão tendo filhos, seu irm ão ca sa r á com a m u lh er d e le , e s u s­ citará d escen d ên cia a seu irm ã o . 25 Ora, h avia en tre nós se te irm ã o s: o prim eiro, tendo casad o, m orreu; e, n ão tendo d e sc e n ­ dên cia, deixou su a m ulh er a se u irm ão; 26 da m e s m a sorte tam b ém o segu n d o, e o terceiro, até o sétim o . 27 D ep o is de todos, m orreu tam b ém a m u lh er. 28 P ortan to, n a ressu rreição, de qual dos se te se r á e la e sp o ­ sa , pois todos a tiveram ? 29 J esu s, porém , lh es respondeu: E rra is não conhecendo m E scritu ra s n em o poder de D e u s ; 30 pois na ressu rreição nMn se c a sa m n em se dão em casam en to; m a s serão co m o os anjos no 'céu. 31 E , quanto à ressu r r e i^ Ó dós m ortos, não le s te s o que v o s foi dito por D e u s : 32 E u sou o D eu s de A braão, o D eu s dé Isaq u e, e o D eus de Jacó? O ra, e le não é D eu s de m o r ­ tos, m a s de v iv o s. 33 E a s m u ltid ões, ou vin ­ do isso , se m a ra v ilh a v a m da su a doutrina.

Os saduceus (nome derivado possivel­ mente de Zadoque) são mencionados aqui pela sexta vez, por Mateus (cf. 3:7; 16:1, 6, 11 e s.), mas pela primeira vez agindo sozinhos. Em Marcos e Lucas eles são mencionados apenas nesta história (Mar. 12:18; Luc. 20:27). Os saduceus eram ricos aristocratas, poucos em n ^ miêrÕ7 mas~lnurtó^Õdèrosos. Haviam 258

emergido dos “ grepos” ou “helenistas” . que, iiõ^tempo de Antíoco Epifânio (c. 175 a.C.), haviam colaborado com os sírios, adaptados ao sistema gfego. JSob_ o domínio dos romanos (60. a.C. em diintê);'éres se tornaram colabojacionistas, aceitando o sumosacerdòcio como cargo nomeado pelos romanos. Éram o \ partido sacerdotal, os fariseus sendo J leigos. Nem o termo liberais nem o termo conservadores descreve adequadamente os saduceus. Se ambos esses termos fo­ rem aplicados, eles eram política e so­ cialmente conservadores (status~qüo) e 6T5Hcârnênte (Pentateuco) literalistas. Não há evidência conclusiva de que eles rejeitassem qualquer parte das Escritu­ ras, mas edificavam sobre o Pentateuco. Rejeitavam a tradição oral dos fariseus.-\ R ^êítãvãínT r3õutfnãs ~3ã_ressurreicão, \ anjos, destino e providência, enfatizando | o livre-arbítrio do homem (cf. At. 23:8; ' Josefo, Antig., 13:5; 18:1; Guerras, 2,8). A doutrina da ressurreição surgiu num período mais tarde no Velho Testamento (cf. Is. 26:19; Dan. 12:2 e s.; Habacuque; Jó; Sal. 71, e os saduceus não a/ aceitavam. É significativo que Jesus ré^ í montou a Êxodo 3:6, 15 e s. para encon! trar uma base bíblica para a doutrina da (ressurreição. A intenção dos saduceus era principalm en^^ m ^ r ^ â r ' Jesus, mas, para eles e para os romanos. Havia algumas to n a F dades políticas na doutrina da ressurrei­ ção. A doutrina era escatológica, e podia í Csugerir um Israel nacional restaurado à j í soberania e í6 e r3 a 3 r* d e ^ o m ã . M a s / *^isto que os poderosos fariseus^ criam firmemente eih uma ressurreição, os saduceus podiam fazer pouco càsd disso, como acusação política contra Jesus. Eles provavelmente pretendiam apenas ridi­ cularizar tanto Jesus'^üãi2Ô ^O ifiseü|7 '~~r iu s t o r i a ' dos sete irmãos, em qilê cada“um7'por sua vez, esposaram a mes­ ma mulher, era provavelmente uma anedota corrente, usada pelos sáducéus escarnecedoramente. Ela alude à doutri­


na do levirato de Deuteronômio 25:5 da criação, que considera o corpo como fcTada a éntendér em Gên. 38:8), que essencial para o que o homem é, e ã requeria que, quando irmãos viviam jun­ doutrina da redenção, que considerado tos, e um morresse sem deixar filhos do homem completo como o objetivo da sexo masculino, o irmão sobrevivente redenção. Mas o corpo é visto como pasdevia tomar a mulher dele como esposa, sando por transformações, comparáveis e suscitar um filho para o seu irmão fale­ à renovação ^'ue corneça com o homem cido. Os saduceus citaram a versãq^_da interiqr. ' LXX, que omite a condição de que os È significativo quetfesu^enha apelado irmãos haviam vivido no mesmo lugar e para o_Peatateuco (Êx. 3:6), parte mais que se refere apenas a não tendo fílhos antiga das Escrituras, reconhecida pelos (sperma, semente), em vez de “ não tendo saduceus, ao afirmar que Deus é o Deus filhos do sexo masculino” . A estória dos de Àbraãó, o Deus de Isaque, e o Deus saduceus também presumia uma ressur­ de Jacó, e o Deus de vivos. Antes de tudo, reição material, em que a vida ressuristo afirma a importância eterna da indirecta seria como esta. yidualidade. Ele não é apenas o Deus de Jesu^ _corrigiu os saduceu^^em dojs^ Israel, mas de pessoas individualmente..^ pontos. Eles e r a m j ^ i o r a n ^ das Éscri- '”Somos indivíduos distintos na criação, / t u j ^ ^ t é mesmo da parte que"l?conheredenção e continuaremos sendo n o / ciam como tal), eJ§inbémjl^^_gueJD^s mundo futuro. Jesus afirmou que Deus pode fazer. A ressurreição é a continuaagora, presentemente, é o Deus de çãò^âa^ída pessoal, mas não em expres­ Ãbraãõ^TsIq u re Jacó. Èsses homens não sões materiais como o lado físico do casa­ e^taò mo ^ s , mas viros. Eles estão vivos mento. Jesus e Paulo (I Cor. 15:35-44) como pessoas individuais. Não estão ensinaram que o corpo da ressurreição mortos ou dormindo. Sejam quais forem será espiritual, corpo, mas não de “carne as dimensões ulteriores dadas à ressur­ e sangue” . Na analogia da “ semente” reição na Parousia de Jesus, já os que (descendência), Paulo encontrou tanto morreram são pessoas vivas (cf. 17:3). continuidade como descontinuidade A crença na continuidade da vida para ! entre o corpo que temos agora e o corpo o homem está ligada à crença em um í ressuscitado. Jesus não entra em deta­ Deus vivo. J lhes, mas isto é o que se depreende da sua A declaração de que na ressurreição os resposta aos saduceus. homens são como os aiyos não deve ser A doutrina neotestamentária da res­ forçada ãlém de um ponto: nem se casam surreição evita dois extremos: o ponto de nem se dão em casamento. A idéia po­ vista cruamente literal dos saduceus, e o pular de que ps homens se tornam anjos ponto de vista chamado “grego” , de uma nos céus não tem apoio bíblico. alma imortal. O^ ponto de j istaLmaterial 3) O Grande Mandamento (22:34-40) era amplamente esposáBo no mundo antigo, cõ5iõ~TêvTáen£ exem­ 34 Os fa riseu s, quando sou b eram que ele plo, nos costumes funerais dos antigos fizera em u d ecer o s sa d u ceu s, reuniram -se egípcios e dos primitivos índios america­ todos; 35 e um d ele s, doutor da le i, p ara o nos. Eles esperavam que a vida no mun­ ex p erim en tar, interrogou-o, dizendo: 36 M estre, qual é o grande m an d am en to n a lei? do futuro fosse física e material. O ppr^to 37 B espondeu-lhe J e su s: A m arás o Senhor de vista “ tn-ego” (esposado por muitos teu D eu s de todo o teu coração, de toda a tua não-gregos) da imortaUdade da alma sus­ alm a, e de todo o teu en ten d im en to. 38 E ste é tentava que o corpo era apenas a sepul­ o grande e prim eiro m an d am en to. 39 E o segundo, sem elh a n te a e ste , é : A m arás o teu tura qu prisão da alma, e que a morte era próxim o com o a ti m e sm o . 40 D e ste s dois a amiga que iria libertar a alma do m an d am en tos dep en d em toda a le i e os corpo. Isto contradiz a doutrina bíblica p rofetas. !■— ■liiBaiimiMiiiiiiiilHin II IIIIIII.. . WI iiriiTTT i»m

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o granite mandamento aparece em todos os três Sinópticos, baseado em Deuteronômio 6:5. Há pequenas varia­ ções em cada uma das citações. As dife­ renças sinópticas parecem apontar para duas tradições básicas: uma preservada em Marcos 12:28-34, e outra no do­ cumento Q. Em Lucas, o “ doutor da lei” é creditado com o fato de combinar Deu­ teronômio 6:5 e Levítico 19:18, reunindo os mandamentos para amar a Deus e o homem. Lucas parece ter preservado a tradição de Q. Em Marcos os dois man­ damentos são reunidos por Jesus (12:29 e s.), e depois são mencionados de novo pelo “escriba” (12:32 e s.). Mateus segue Marcos, ao atribuir a declaração sumária a Jesus. Em Marcos, o grande manda­ mento é apresentado contra a declaração da unicidade de Deus (Deut. 6:4), e a história é conciliatória. Em Lucas, o segundo dos grandes mandamentos é explicado através da história do bom samaritano. Em Mateus a hostilidade entre fariseus e Jesus é visível. Os fariseus haviam descoberto que as leis eram em número de 613, sendo que 365 proibições e 248 mandamentos posi­ tivos. Também haviam discutido a im­ portância relativa das leis. Doutor da lei (nomikos) é um termo alternativo para escriba — copista e estudioso da lei mosaica. A palavra-chave, no grande manda­ mento, bem como no segundo, que é semelhante a ele, é amor (veja a discus­ são de 5:43-48). O amor é a disposição básica de todo o ser da pessoa em relacio­ nar-se com Deus, para a Sua glória, e com o homem, para o seu bem. Coração, no pensamento judaico, era a sede dos pensamentos e sentimentos. Alma (psuquê) pode referir-se a vida, mente ou “eu” . Entendimento (dianoia) refere-se ao elemento racional. Quando se compara todas as passa­ gens envolvidas, torna-se claro que os termos variam em número e em ordem. O texto hebraico de Deuteronômio 6:5 apresenta coração, alma e força. A LXX 260

apresenta o mesmo no Codex Alexandrinus, mas mente, alma e força no Codex Vaticanus. Em Marcos, Jesus fala de coração, alma, mente e força, ao passo que o escriba menciona coração entendi­ mento e força. Em Lucas, o doutor da lei menciona coração, alma, força e mente. O que se pretende, em cada passagem, é que todo o ser seja dedicado a Deus e aos outros. Precisão mecânica não é um alvo importante para os escritores bíblicos. Jesus faz do amor não apenas o grande mandamento, mas também a essência e cumprimento da lei e os profetas (cf. 5:17). Todas as Escrituras dependem destes dois mandamentos. Traduzindose literalmente, a lei e os profetas “de­ penduram-se” (krematai) nesses dois mandamentos acerca do amor, como uma porta nos seus gonzos. Isto significa que o duplo mandamento para amar é o princípio da interpretação de toda a lei e os profetas (o nosso Velho Testamento). Também significa que, ao executarmos a lei de amor para com Deus e o próximo, todas as leis de Deus são cumpridas, pois aquela é a essência da Lei. Jesus e os rabis aparentemente esta­ vam de acordo quanto à compreensão da Lei desta forma, mas havia uma dife­ rença de monta que os separava. Embora os rabis ocasionalmente reconhecessem um sumário de todas as leis em um ou em uns poucos mandamentos, apegavam-se firmemente ao princípio de que cada mandamento é tão importante quanto os outros, sendo os mandamentos “leves” tão importantes quanto os “pesados” (cf. Aboth 2:1b; Jerusalém Kiddushin 1:61b; Tanhuma 5b; Hagigah Babiló­ nica 5®). Jesus, todavia, achava que o amor é o cumprimento de todas as leis, e não apenas uma lei ao lado das outras (cf. Bornkamm, p. 75-78, 85). Mateus mostra que Jesus reconhecia a validade de toda a Lei, sendo esta posição contra os antinomianos. Ele mostrou que Jesus tinha uma compreensão mais profunda da Lei do que os rabis. Isto se opõe a todo o legalismo. Esta idéia não nos coloca


debaixo de requisitos mais leves, porém mais pesados, porque os requisitos do amor são mais pesados do que todo o legalismo. O amor tanto liberta quanto prende. Ele dá gratuitamente, contudo, requer todo o ser para Deus, o próximo e si mesmo. Para um fariseu, o seu próximo seria outro fariseu. O nome fariseu, que signi­ fica separatista e alude ao seu propósito de separar-se das pessoas e coisas ritual­ mente “impuras” , era um apelido que lhes era dado pelas outras pessoas. A si mesmos eles se chamavam Haberim, que significa “vizinhos” . Jesus ensinou que o verdadeiro próximo é aquele que age em amor para com qualquer pessoa a quem possa servir (cf. Luc. 10:29-37). Embora a ênfase seja acerca de amar a Deus e o próximo, a pessoa deve também amar a si mesma. Existe um amor pró­ prio que é a essência da depravação, mas há também um amor piedoso que neces­ sariamente inclui a si próprio. Quando a pessoa verifica que pertence a Deus e ao próximo, descobre que precisa também cuidar de si mesma. O amor não pode ser dividido, e o verdadeiro eu não pode ser separado de Deus ou do próximo. Ou a pessoa ama a Deus, o próximo e a si. mesma, ou não ama a nenhum deles. 6. A Pergunta de Jesus: Filho ou Senhor de Davi? (22:41-46) 41 Ora, enquanto os fa r ise u s e sta v a m reunidos, interrogou-os J esu s, dizendo: 42 Que p en sais vó s do C risto? D e q u em é filho? R esponderam -lhe: D e D a v i. 43 R eplicoulh es e l e : Como é então que D a v i, no E sp iri­ to, lhe ch a m a Senhor, dizendo: 44 D isse o Senhor ao m eu Sen h or: A ssenta-te à m in h a direita, a té que eu ponha o s teu s in im ig o s debaixo dos te u s pés? 45 Se D a v i, pois, lh e ch a m a Senhor, com o é e le seu filho? 46 E nin gu ém podia responderlhe p a la v ra ; n em d esd é a q u ele dia ja m a is ousou alg u ém interrogá-lo.

Depois de responder a várias perguntas-testes, propostas pelos fariseus e saduceus, Jesus tomou a iniciativa de

propor uma pergunta que não apenas silenciou os seus oponentes, mas também focalizou a interrogação básica quanto à sua própria identidade. Quem é Jesus? A resposta é que ele é tanto filho de Davi coino Senhor de Davi. Mateus começou chamando Jesus de “filho de Davi, filho de Abraão” e mostra que Jesus aceitou o título de “filho de Davi” (20:31; 21:9,15). Mas ele é infinitamente mais do que filho de Davi. Ele é verdadeiramente humano, “da descendência de Davi segundo a carne” (Rom. 1:3), mas é também “Filho de Deus” e Senhor de Davi. Ele não é um Messias político, davídico, como se en­ tendia no judaísmo daquela época. Esta passagem não tem o objetivo de negar que Jesus é “filho de Davi” , mas corrige ou interpreta essa declaração. É interessante que a discussão, mencionan­ do Salmos 110:1, termina com a pergun­ ta: “Como?” A peculiaridade de Jesus ser tanto filho de Davi como Senhor de Davi, bem como verdadeiro Deus e ver­ dadeiro homem, é um fato a ser afirma­ do, mas não a ser reduzido a uma expla­ nação lógica. A fé cristã se mantém segu­ ramente diante do mistério da encarna­ ção, e não remove o mistério. 7. Os Escribas e Fariseus Expostos e Denunciados (23:1-36) Uma seção principal, começando aqui e continuando por todo o capítulo 25, pode ser reconhecida. A denúncia dos escribas e fariseus levou Jesus a lamentar sobre Jerusalém (23:37-39), e esta lamen­ tação, por seu turno, levou-o a julgar Jerusalém e o mundo (24 - 25). A seção imediatamente diante de nós, 23:1-36, tem alguns paralelos em Marcos 12:37-40 e extensos paralelos, espalhados por váriôs capítulos de Lucas e em ordem diferente (especialmente capítulos 11 e 20). O discurso em Mateus divide-se em duas partes: advertências contra o exem­ plo dos escribas e fariseus (23:1-12) e juízo sobre os escribas e fariseus 23:1336). Os escribas e fariseus, como líderes 261


religiosos, representam Israel como um todo, e não apenas um partido.

tente em um a sinagoga, simbolizando a origem e a autoridade do ensino dos es­ cribas. Os escribas atribuíam as origens 1) Advertências Contra o Seu Exemplo dos seus ensinos a Moisés. A acusação de (23:1-12) que os escribas e fariseus não praticam o 1 E ntão falou J e su s à s m u ltid õ es e a o s que dizem não deve ser levada em sentido seu s d iscípulos, dizendo: 3 N a ca d eira de absoluto, como o indica o versículo 5. M oisés se a ssen ta m o s e sc r ib a s e fa riseu s. Jesus não endossava tudo o que eles pre­ 3 P ortanto, tudo o que v o s d isserem , isso gavam, mas reconhecia que eles pratica­ fazei e o b se r v a i; m a s n ão fa ç a is conform e a s su a s obras; porque d izem e não p ra ti­ vam alguns dos seus ensinamentos, pelo ca m . 4 P o is a ta m fardos p e sa d o s e d ifíceis menos exteriormente. Neste ponto, a de suportar, e os p oèm a o om bro dos h o ­ acusação é contra as suas motivações e m en s; m a s e le s m esm o s n em co m o dedo procedimento, que roubavam o valor de q u erem m ovê-los. 5 X odas a s su a s obras e le s a s fa zem a fim de se r e m v isto s p elos h o ­ suas ações, pois, paradoxalmente, eles m en s; p ois a la rg a m o s seu s fU actérios, e não praticavam, realmente, aos olhos de au m en tam a s fra n ja s dos se u s m a n to s; 6 Deus, o que pareciam fazer (McNeile, p. gostam do prim eiro lu gar nos ban q u etes, 330). d as p rim eiras ca d eira s n a s sin a g o g a s, 7 d as Esta passagem expressa um relaciona­ sau d ações n a s p ra ça s, e de se r e m ch am ad os p elos h o m e n s: R abi. 8 V ós, p o rém , náo q u ei­ mento entre os discípulos de Jesus e a ra is ser ch am ad os B a b i; porque u m só é o sinagoga, sem nenhuma sugestão de um vosso M estre, e todos v ó s so is irm ã o s. 9 £ a rompimento total entre eles (Lohmeyer, ninguém sobre a terra ch a m eis vo sso p ai; p. 335; Bornkamm p. 21 e s.) porque u m só é o v o sso P a i, a q u ele que e stá nos céu s. 10 N em q u eirais se r ch am ad os Os fardos que os escribas e fariseus g u ias; porque u m só é o v o sso G uia, que é o atam sobre o povo são as regras meti­ C risto. 11 M as o m aior dentre v ó s há de ser culosas acerca de rituais de purificação, v osso servo. 12 Qualquer, p ois, que a si leis alimentícias, observância do sábado, m esm o se ex a lta r, se r á hum ilhado; e q u al­ dízimo até de produtos da horta, e coisas quer que a si m e sm o se hum ilhar, se r á exaltad o. semelhantes. Atar é o termo técnico para proibir. A escola de Hillel era mais libe­ Os escribas e os fariseus não são idên­ ral do que a de Shammai, mas, em ticos. A maior parte dos escribas eram muitos respeitos, esta última parece que fariseus, mas nem todos os fariseus eram prevalecia na época de Jesus. A religião escribas. Os escribas eram os intérpre­ passara a ser, de forma exagerada, um tes reconhecidos da lei judaica. As suas fardo a ser carregado, e não um poder oiigens remontam ao tempo de Esdras. . que sustentasse o crente (cf. 11:28-30). Os primeiros escribas eram sacerdotes, As acusações, aqui, são devastadoras, mas os últimos eram leigos. Os fariseus mas expressam a extensão em que uma do tempo de Jesus consistiam de cerca de reforma se fazia necessária. Acusações seis mil leigos judeus, que procuravam mais suaves não teriam sido ouvidas. escrupulosamente executar o governo Embora houvesse exceções entre os mes­ tribal. Lucas preserva a distinção entre tres e os ensinos, basta apenas ler as escribas e fariseus, registrando três ais longas seções do Talmude, para verificar contra cada um (11:42-52), porém M a­ a extensão em que fardos de trivialida­ teus não estava interessado nessa distin­ des haviam sido lançados sobre o povo. ção (cf. a Introdução). Quando escreveu, Jesus clamou pela substituição de’regras os fariseus eram os lideres do judaísmo, mortas por uma dedicação básica de quase sem rivais. Para ele, eles represen­ amor a Deus e ao próximo. Ele concla­ tavam Israel como um todo. mou os seus ouvintes a uma maior liber­ Cadeira de Moisés parece referir-se a dade para a consciência individual, e uma cadeira propriamente dita, exis­ menos regulamentos de todas as áreas da 262


vida de uma pessoa, pelos escribas e doutores da lei. Uma acusação importante é a de que eles estavam representando, para serem vistos pelos homens. Esta prática levava a atos extremos de ostentação, exibição ou dramatização da sua piedade. Filactérios eram caixas de couro usadas sobre a testa e o braço esquerdo (Êx. 13:9; Deut. 6:8,9), contendo as palavras de Êxodo 13:1-10,11-16 e de Deuteronômio 6:4-9 e 11:13-21, escritas em tiras de velo (pergaminho), em cumprimento literal de Êxodo 13:16 e Deuteronômio 6:8 e 11:18. Alguns faziam essas bolsas de couro indevidamente grandes, para chamar a atenção para a sua piedade. As fraiyas eram borlas costuradas nos qua­ tro cantos da vestimenta exterior (cf. Núm. 15:38e s., Deut. 22:12). O próprio Jesus usava essas borlas (9:20; 14:36). O seu protesto não era contra o costume, mas contra a ostentação: o alongamento das bordas de forma a parecer piedoso. Além da exibição pública de piedade, mediante a vestimenta, havia o desejo de privilégios especiais e honras. O mais importante lugar numa festa era uma poltrona ao lado direito imediatamente próximo ao hospedeiro. Parece que os lugares de honra ficavam em uma plata­ forma, de frente para a congregação. Saudações não eram os cumprimentos apressados, como no mundo ocidental, mas rapapés mais formais. Jesus encon­ trou duas falhas no desejo de títulos espe­ ciais: reclamar o que pertence apenas a Deus ou ao seu Cristo, e a negação do princípio básico de que a medida da grandeza é o serviço. Rabi significa “ meu mestre” (profes­ sor). Depois do tempo de Jesus, o prono­ me perdeu a sua força, e o termo passou a significar apenas “ mestre” , Na comuni­ dade de Cristo, ele é o Mestre, e nós somos os irmãos. “Abba” (pai) era um termo usado para designar os rabis e grandes homens do passado, e, aparen­ temente, naquela época estava sendo usado para pessoas vivas. Mestre (kathè-

gétés) é tradução de outro termo sinôni­ mo de professor, encontrado apenas na Bíblia. Como hodègos, no versículo 24, ele enfatiza um papel de liderança, e não administrativo. Não há distinção entre mestre, no versículo 8, e guia, no versí­ culo 10, representando as duas palavras gregas, aparentemente, a hebraica rab (professor, mestre). A verdadeira gran­ deza, medida pelo serviço e humildade, é um tema constante em o Novo Testamen­ to e seu ensino. Os crentes devem ser irmãos, aprendizes e servos (dialconos, diácono ou servo). 2) Sete Ais e o Julgamento Vindouro (23:13-36) 13 M as a i de v ó s, e sc r ib a s e fa rise u s, hip ó­ critas! porque fec h a is a o s h om en s o reino dos c é u s ; p ois n em v ó s en tra is, n em a o s que en trariam p erm itis en trar. 14 Ai de vós, escrib a s e fa r ise u s, h ip ócritas! porque d evorais a s c a s a s d a s v iú v a s, e sob p retexto fazeis lo n g a s o ra çõ es; por isso receb ereis m aior con d en ação. 15 A i de v ó s, escr ib a s e fa riseu s, h ip ócritas! porque p erco rreis o m a r e a terra , p ara fa ze r u m p rosélito; e, depois d e o terd es feito, o to m a is duas v e z e s m a is filho do inferno do que v ó s. 16 Ai de vós, g u ia s ceg o s! que d izeis: Quem jurar pelo san tu ário, isso n ad a é ; m a s quem jurar p elo ouro do santuário, e s s e fic a obrigado ao que jurou. 17 In sen sa to s e ceg o s! pois qual é m a io r: o ouro, ou o san tu ário, que sa n tifica o ouro? 18 E : Q uem ju rar pelo altar, is so n ad a é ; m a s quem ju rar p ela oferta qu e e stá sobre o a lta r, e s s e fic a obri­ gado a o que jurou. 19 C egos! P o is qual é m aior: a o ferta, ou o a lta r que sa n tifica a oferta? ZO P ortan to, q u em ju rar pelo altar ju ra por e le e por tudo quanto sobre ele e s t á ; 21 e quem ju rar pelo san tu ário ju ra por e le e por a q u ele que n ele h ab ita ; 22 e q u em jurar pelo céu ju ra pelo trono de D eu s e por aq u ele que n ele está assen ta d o . 23 Ai de v ó s, e sc rib a s e fa riseu s, h ip ócri­ ta s! porque d a is o d ízim o d a h ortelã, do endro e do com inho, e ten d es om itido o que há de m a is im p ortan te n a lei, a sa b er, a ju s ­ tiça , a m iseric ó rd ia e a fé; e sta s co isa s, porém , d ev íeis fa zer, se m om itir aq u elas. 24 G uias ceg o s! que co a is u m m osquito, e en gu lis u m ca m elo . 25 Ai de v ó s, e scr ib a s e fa riseu s, h ip ócri­ ta s ! porque lim p a is o exterio r do copo e do prato, m a s por dentro e stã o ch eio s de rapina e de in tem p era n ça . 26 F a r ise u ceg o ! lim pa

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prim eiro o interior do copo, p a ra que ta m ­ b ém o exterior se to m e lim po. 37 Ai de v ó s, e scrib a s e fa r ise u s, h ip ócri­ ta s ! porque so is sem elh a n te s a o s sep u lcros caiad os, que por fora r ea lm en te p a recem form osos, m a s por dentro e stã o ch eios de ossos de m ortos e de tod a im u n d ícia. 28 A ssim tam b ém vó s ex terio rm en te p a receis ju st»s ao s h om en s, m a s por dentro e sta is ch eios de hip ocrisia e de iniqüidade. 29 Ai de v ós, escrib a s e fa r ise u s, h ip ócri­ tas ! porque ed ifica is os sep u lcros dos p ro fe­ ta s, e ad ornais os m on u m en tos dos ju sto s, 30 e d izeis: Se tiv é sse m o s viv id o nos d ia s de nossos p ais, não teríam o s sido seu s cú m ­ p lices no d erram ar o san g u e de p ro feta s. 31 A ssim v ó s testem u n h a is con tra v ó s m esm o s que so is filh os d aq u eles que m a ta ra m os profetas. 32 E n ch ei v ó s, p ois, a m ed id a de vossos p ais. 33 S erp en tes, ra ç a de víboras! com o e sc a p a reis d a cond en ação do in fem o ? 34 P ortanto, e is que eu v o s en vio p rofetas, sábios e escrib a s; e a un s d e le s m a ta r e is e cru cificareis; e a outros a ço ita reis n a s v o ssa s sin a g o g a s e os p erseg u ireis de cid ad e em cid ad e; 35 p ara que sob re v ó s ca ia todo o sangue ju sto, que foi d erram ad o sobre a terra, d esd e o san gu e de A bel, o ju sto, a té o sangue de Z acarias, filho de B araq u ias, que m a ta ste s entre o santuário e o alta r. 36 E m verdade vos digo que tod as e s s a s c o isa s hão de v ir sobre e sta geração .

Sete ais (23:13-32) — Estes versículos freqüentemente têm sido criticados como severos demais para pertencerem a Jesus, e por isso têm sido atribuídos à Igreja posterior, em um período de amargo conflito com o judaísmo. Por outro lado, deve ser reconhecido que os discursos e atos de Jesus foram preservados e procla­ mados por diferentes comunidades e escritores cristãos, com suficiente liber­ dade para permitir ênfases e aplicações diferentes. Isto é conseqüência inescapável de qualquer comparação entre os paralelos sinópticos. Algo da experiência e caráter de cada comunidade, de cada es­ critor, é estampado em cada transmissão do Evangelho. Mas quando a devida margem é dada à participação da Igreja, deve ser feita justiça ao fato de que a figura de Jesus aparece clara e radiosa. A passagem, diante de nós, preserva o jul­ gamento de Jesus contra a liderança reli­ giosa da sua época. 264

Antes de tudo, pode ser observado que a rejeição cabal de fundamentos básicos dos escribas e fariseus aparece com ex­ pressão mais forte em Marcos do que em Mateus. Por exemplo, em 15:6 Mateus atenua a expressão mais forte de Marcos (7:8): “as tradições dos homens” . Em 15:18 ele omite o drástico “Assim decla­ rou puros todos os alimentos” de Marcos 7:19. Mateus escreveu em uma época de grande tensão entre igreja e sinagoga, mas também procurou conservar os canais abertos entre as duas. O Novo Testamento contém fortes evidências de que Jesus era, na verdade, mais “radi­ cal” , em sua rejeição dos ensinos, prá­ ticas e alvos do judaísmo farisaico, do que a Igreja. Ela continuou a apegar-se a elementos da prática judaica daqueles dias, dos quais Jesus já havia oferecido completa liberdade (cf. At. Gál. e Heb.). Porém, ainda mais, é fácil interpretar erroneamente a intenção e espírito de Jesus, quando ele pronunciou esses “ ais” contra os escribas e fariseus. Al (ouai) não é uma maldição, e não é apenas uma denúncia. A palavra pode expressar ira ou piedade. Embora ela traga consigo um elemento de juízo, aqui ela é um clamor ou lamentação. Jesus chorou sobre Jerusalém, e os sete ais são lamen­ tações, bem como condenações dos líde­ res religiosos, que estavam guiando er­ radamente as pessoas que confiavam neles. Não deve ser passado por alto o fato de que esses ais não foram dirigidos contra os “pequeninos” , os cobradores de impostos, ou meretrizes, mas contra os que estavam em posição de conhecer melhor e agir melhor do que os outros. Foram dirigidos contra os privilegiados líderes: porque fechais aos homens o reino dos céus. Os ais foram pronunciados por alguém ] que, desta forma, expôs a sua própria] vida, e, na verdade, a entregou, no esfor- í ço de fazer os líderes e o povo se voltarem i da morte para a vida, da escravidão p a ra ! a liberdade, das coisas da religião para o \ próprio Deus. Jesus não era anti-semita.


Ele era, de acordo com a came, um judeu, que amava o seu povo suficiente­ mente para expor os seus falsos valores e verdades deslocadas, e apontar-lhes a sua única esperança. Foi por amor, e não ódio, que essas denúncias tão fortes foram feitas. Embora, por sua natureza, elas julgassem, eram redentoras em sua intenção. Não se conclui, do versículo 13, que nenhum escriba ou fariseu está salvo. José de Arimatéia, por exemplo, era um discípulo de Jesus, bem como membro do Sinédrio (27:57; Mar. 15:43; Luc. 23: 50-53; João 19:38) e presumivelmente um fariseu. A idéia é que os fariseus não estavam dando ao mundo um a chance imparcial de salvação; e isto consistia uma acusação muito séria (Robinson, p. 188). O versículo 14 está entre colchetes na versão da IBB e em todos os textos mo­ dernos, pois só se apoia em manuscritos menos antigos. É emprestado de Marcos 12:40 por outros manuscritos. O judaísmo do primeiro século era aberto para prosélitos, gentios que eram induzidos ao judaísmo tanto como reli­ gião quanto como nação, mediante a circuncisão dos homens (no mundo anti­ go havia uma circuncisão para as mu­ lheres, mas não no judaísmo), e também o batismo e a oferta de sacrifícios rituais para homens e mulheres. Freqüentemen­ te um proséUto de uma religião é mais extremado do que os que o converteram para aquela religião. Provavelmente, Jesus queria dizer que a situação era piorada para o gentio que era levado a confiar em valores legais e rituais para sua salvação. O terceiro ai relaciona-se com a ca­ suística, uma distinção legal entre votos considerados compulsórios, e outros não considerados como tais. Ao tornar-se alguns votos válidos, e outros não, estava aberto o caminho para a legalização do perjúrio, isto é, fingir obrigar-se mediante juramento, mas dekando-se um escape técnico ou legal. Por detrás

dessa casuística estava a idéia de que um um voto ou juramento não era válido, a não ser que fosse feito na presença de Deus, como se ele estivesse mais presen­ te e envolvido no juramento, se este fosse feito pelo ouro do Templo, do que se feito pelo próprio Templo. Em 5:33-37, M a­ teus mostra que Jesus ensinou que ne­ nhum juramento é absolutamente neces­ sário para pessoas honestas. É bobagem e cegueira procurar esconder-se por detrás de uma ficção legal, como a do fraseado especial de um juramento, para obrigar uma pessoa à palavra dada ou não. O quarto ai expressa a falácia da aten­ ção escrupulosa a matérias de menor importância, em face da negligência de princípios básicos e valores primordiais. O dízimo (um décimo) do grão, do vinho, do óleo, das frutas, do rebanho, era pres­ crito nas Escrituras (cf. Lev. 27:30; Deut. 14:22), mas os escribas haviam extendido esse conceito para incluir até as ervas da horta. Hortelã, endro e comi­ nho eram ervas ou especiarias usadas para tempero, e as duas últimas eram também usadas na medicina. A maior falha não era a ênfase indevida nas coisas de menor importância, mas o fato de eles não terem dado a atenção devida ao que há de mais importante na lei. A justiça, a misericórdia e a fé são, de certa forma, reminiscências de Miquéias 6:8 e Provér­ bios 14:22. Fé (pistin) pode significar confiança ou fidelidade, sendo a fideli­ dade a Deus provavelmente o pensamen­ to aqui. A parábola do mosquito e o camelo é deliberadamente grotesca, para apontar para a cegueira da atenção meticulosa a matérias tão pequenas como dar o dízi­ mo de ervas da horta, enquanto negUgenciavam matérias básicas de caráter e conduta. Coar é filtrar. O quinto ai é uma advertência contra uma vida exteriormente regulada que esconde uma vida interior impura. Rapi­ na (harpagés) e intemperança (akrasias) são acusações pesadas. Harpagés é rou­ bo, e alcrasias é falta de autocontrole ou 265


desejo desenfreado (cf. I Cor. 7:5). Jesus estava preocupado com que tanto o Inte­ rior quanto também o exterior do copo e do prato se torne limpo. Ele colocou o homem interior em primeiro lugar, mas também ensinou que uma renovação in­ terior é refletida ou expressa na vida exterior. Os sepulcros caiados do sexto ai prova­ velmente se referem ao costume judaico de pintar com cal os sepulcros um mês antes da Páscoa, de forma que eles pu­ dessem ser vistos prontamente, e evita­ dos. Tocar um túmulo era contaminarse. A caiação fazia com que os túmulos parecessem formosos, mas todos conhe­ ciam as suas condições, interiormente. Este ai é dirigido contra a hipocrisia. O legalismo facilmente se torna uma capa sob a qual pode estar de emboscada um coração não regenerado. Jesus, aqui e em vários outros lugares, advertiu con­ tra a religião com o objetivo de servir de exibição, para ser vista pelos homens. Mateus, resistindo ao antinomianismo, bem como ao legalismo, pode ter tido um interesse especial no contraste entre a justiça que Jesus exigia e a prática da iniqüidade (anomias é ilegalidade ou antinomianismo). O sétimo ai desvenda a contradição entre o louvor aos profetas, agora conve­ nientemente mortos, e a rejeição dos profetas, que nos causam desconforto pela sua presença. Isto é desonestidade. Antes de tudo, desta forma a pessoa finge ser melhor do que os seus antepas­ sados, dando a implicação de que ela teria respeitado os profetas de antanho. Depois, é desonesto porque a pessoa rejeita, em seus dias, o mesmo testemu­ nho profético que presume estar honrado do passado. Será que ouviríamos com atenção a Amós, Miquéias ou Jeremias, se eles aparecessem em nossos dias? Todos nós gostamos de nos identifica^ com os profetas ou o salvador, tranca­ dos com segurança no passado. Os filhos daqueles que mataram os profetas é uma maneira proverbial de dizer: “Tal pai, tal 266

filho.” O versículo 32 é corretamente traduzido como imperativo, o que é ates­ tado pelas melhores versões gregas. Jesus emprega aqui uma triste ironia: “Conti­ nuai e completai o que os vossos pais começaram!” Os filhos daqueles que haviam matado os profetas bem depressa iriam crucificá-lo. luízo vindouro (23:33-36) — Estas palavras soam como as mais duras já atribuídas a Jesus. Muitos intérpretes acham que Jesus não teria falado essas palavras. Mas uma leitura cuidadosa pode lançar nova luz sobre elas. É bom que seja notado que Jesus nunca, nem sequer remotamente, sugeriu que os seus seguidores perseguissem outras pessoas. Ele nem mesmo permitiu que os seus discípulos o defendessem no Getsêmane. Ele está denunciando a perseguição, e ao mesmo tempo rogando, às pessoas que têm disposição para tal, que deixem de fazê-lo. Quem pode negar que toda forma de ódio e perseguição denunciada aqui veio a ter ativa expressão incontáveis vezes no judaísmo, bem como em outras religiões? Quem pode negar que o homem tem as­ sassinado “em nome de Deus” e até em “nome de Cristo” ? Jesus não estava lutando contra um espantalho. Ele não odiava ninguém, e nunca, nem uma vez, sancionou a perseguição. Nestas fortes palavras, ele está denunciando qualquer religião em que o homem tenta “fazer de conta” que é Deus, ao tratar com as outras pessoas. As palavras de Jesus po­ dem chocar-nos. Será que ficamos menos chocados com os que matam, crucificam e açoitam outros, até em uma assembléia religiosa, ou perseguem pessoas de cida­ de em cidade? Deve ser lembrado que essas palavras eram inteiramente contra a impiedade das autoridades religiosas, que insistiam em sua piedade e autoridade. Em jogo estava o seu destino, bem como o da sua nação. A devastação de 70 d.C. nada mais era do que uma parte do que have­ ria de sobrevir a esta geração.


Os assassinos de Abel e Zacarias ex­ pressam a ordem dos livros da Bíblia Hebraica, começando com Gênesis e ter­ minando com II Crônicas. Jesus simples­ mente chamou a atenção para a trilha de sangue ou de homicídios de justos, desde o primeiro (Grên. 4:8) até o último men­ cionados (II Crôn. 24:20 e ss.) na Bíblia Hebraica. Baraquias (ausente de Lucas 11:51 e sendo mencionado em nossa tra­ dução como Baraquias), era, na verdade, o pai de Zacarias em Zacarias 1:1, sendo Jeoiada o pai de Zacarias de II Crônicas 24:20 e ss. Em que ponto esta troca de nomes ocorreu, é fato desconhecido, e por isso mesmo sem importância. 8. Jesus Chora Sobre Jerusalém (23:37-39) 37 J eru sa lém , J eru sa lém , que m a ta s os profetas, e ap ed rejas os que a ti são e n v ia ­ dos; quantas v e z e s quis eu ajuntar o s teu s filhos, com o a galinh a ajunta o s se u s pintos debaixo d as asaa, e n áe o q u is e ste ! 38 E is a i abandonada vo s é a v o ssa c a sa . 39 P o is eu vos d eclaro que d esd e agora de m odo alg u m m e v er e is, a té que d ig a is: B endito aquele que v e m e m nom e do Senhor.

Este lamento, profundamente como­ vente, sobre Jerusalém, lança mais luz sobre os ais da passagem precedente. Foi rofunda tristeza e interesse ativo aue ievou Jesus a insistir em advertir o seu povo. Jerusalém era o centro sem rival do mundo judaicç. Era lá que se decidiria o destino da nação. Embora todos os regis­ tros de ter ela matado os profetas e ape­ drejado os que a ela foram enriados (maneira judaica de execução), Jesus a ela se dirigiu, oferecendo-se para aceita­ ção ou rejeição. Quantas vezes pode dar a entender uma confirmação do registro de João de que Jesus fez várias viagens a Jerusalém durante o seu ministério (João 2:13; 5:1; 7:14; 10:22 e s.; 12:12). Galmha (ornls) pode referir-se a qualquer ave-mãe, e a analogia de uma ave-mãe reunindo os seus pintos debaixo das asas pode expres­ sar passagens como Salmos 36:7 e Isaías 31:5. Jesus não deseiava nenhum mal a

Jerusalém oii ao_sen pnvn. alegre- "■ mente teria escudado a ambos com a sua , p rópria pessoa, reunindo-os a si mesmo • ;em amor, para abrigar e escudar. / Mas Jerusalém não o quis! Nenhuma doutrina de predeterminação (determiiusmÕ) pode sobreviver entre o eu quis de Jesus e o não o quiseste de Jerusa­ lém. Jerusalém ficou abandonada, mas o destino Joi escolhido., e não imposto. Uma referência especial pode ser feita à ruína do Templo, da cidade, da nação ou de todos eles. O versículo 39 é escatológico, referindo-se à Parousia de Jesus. Ele haveria de voltar em juízo, aclamado pelos seus como aquele que vem em nome do Senhor. Mas então seria tarde demais para aqueles que o haviam rejei­ tado.

XV. Juizo: Imediato e Final (24:1 — 26:2) O longo discurso contido nos capítulos 24 e 25 é escatològico por natureza e prático quanto ao objetivo. É o quinto grande discurso de Jesus em Mateus. Escatologj^^un^aspecto do mundo lustoria em que Dèus é visto lévando-os a uin álvò: üma cbnsumação tanto de julgàménTo‘cÕmo^“dê salvacãòTCTÕbietivo prático do ^scursõ éÜèspertar ou^usíên^ tar uma expectativa de^qyèTHus vbltar? à terra, para levar o mundo ao seu alvo, advertir contra a direção errada, indicaâã"põiTIlsõs"^ofetas"ou‘cristos, enco­ rajar prontidão para a volta de Cristo. e fazer os seguidores de Jesus se lembrarem de sua missão mundial. métüacTTftefanQ~ãqüi encontrado tem algumas, mas não todas as caracte­ rísticas do apocalíptico. Da mesma for-" rm a como e s^fõ í^p e a é a teoria de que a história tem um alvo (eschaton) em juízo e salvação, apocalíptico é um método de ^ e c la ra r isto. Apoçalí^tíço é a palavra grega que signitica" "revelação’’ ou “desvendamento’’. O simbolismo poético, empregado neste”^iscurso, ^ rte n c e ao método apocalíptico: mas outras cãrlc267


teristicas apocalípticas estão ausentes. como a comunicação de conhecimentos secretos através de sonhos, visões e vozes (cf. Johnson, p. 542). Não é apocaHptico como Daniel ou Apocalipse. O interesse de Mateus é suscitar uma fé éscãMôgica equilibrada:Oe u m la d õ ^ esperando seriamente a volta dÍ"ünifo, e, ^ E ~ o u f^ dando atenção séria à preparãÇSõpMsoal, à fidelidade à esperança sagrada, obediência ao comissionamento para pregar o evangelho a todas as na­ ções, e recusa em ser transviado pelos falsos profetas ou cristos, ou envolver-se em especulações acerca do tempo da volta de Jesus. A questão da origem do discurso “apocaliptico” (24:1 — 26:2) não encontrou resposta completamente satisfatória. Quase todos os estudiosos reconhecem que Marcos-13 está por detrás de Mateus conclusão de Marcos (13:33-' 37), recomendando a necessidade de vi­ giar, é considerada expandida por M a­ teus. Da conclusão de Mateus, 24:37-51 é em grande parte tirada de Q (cf. Luc. 17:26,27, 34,35; 12:39,40, 42-46). O res­ to consiste da parábola das dez virgens (25:1-13), a dos talentos (25:14-30), e um ensinamento acerca do juízo final (25:3146). Destas três unidades, só a segunda tem paralelo: a pãrSBÕla das minas, "de^

Cuc^T 19:20-f 7). Indica-se claramente que Jesus parti­ lhou do ponto de vista escatològico da história, istoé, de que*e!aenrêínrúltima análise,' sob o controle de Deus, e está sendo levada ao seu alvo em redenção e juízo. Jesus declarou não conhecer ne­ nhum tempo definido para o seu cumpri­ mento, e desencorajou qualquer esforço para determinar isto. A sua preocupação era recomendar dedicação moral, em vez de especulação acerca do tempo do fim. ^ " tim E e n T ^sèh cS rajõ u o nacionalismo fanático, que esperava que o reino de 1t)eFs”viesse como uma libertação nacio­ nal de Roma, e as extravagâncias do apocalipticismo parecem nâo provir da época dele. 268

Marcos 13 relaciona-se com a Parou­ sia do Filho do homem (13:24-27), bem como com a destruição de Jerusalém; porém Mateus reforça o interesse de Marcos no primeiro (cf. 24:3 com Mar. 13:4, e veja a sua perícope adicional acerca da Parousia do Filho do homem 24:26-28). Quer haja ainda um reforço de interesses apocalípticos em fontes que estão por detrás de Marcos quer em Marcos além dessas fontes, é fato que não pode ser determinado. Se tal acon­ teceu, Jesus era menos apocalíptico do que a igreja veio a sen 1. Predita a Destruição do Templo (24:1,2) 1 Ora, J e su s, tendo saíd o do tem p lo, ia-se retirando, quando se ap roxm iaram d ele os seu s d iscíp u lo s, p a ra lh e m o stra rem os e d i­ fícios do tem p lo . 2 M as e le lh e s d isse : N ao v ed es tudo isto? E m verd ad e v o s digo que não se d eix a rá aqui p ed ra sobre ped ra que não se ja derribada.

Um indício para a interpretação do discurso escatològico é dado logo no seu início. Ele se relaciona, antes de tudo, com a destruição do templo de Jerusa­ lém. Toma-se igualmente claro, à medi­ da que o discurso se desenvolve, que o discurso tem em vis7a algo além dessa catástrofe :~õ^ a n d e evento que ela pir? figura, a saber, a volta de Cristo. O templo era o terceiro templo judaico levantado no Monte Moriá, em Jemsalém. O primeiro fora constmído por Sa­ lomão (I Reis 6:1 e s.) e destmído em 587 a.C. O segundo fora construído sob a direção de Zorobabel (Esd. 2:68 e s.) e o terceiro forãTTniciàdo por Herodes. o Grande, em 20 — 19 a.C., substituindo o anterior, que era menor. A magnificên­ cia do complexo de edifícios que consti­ tuíam o templo (hieron) extasiou os dis­ cípulos (Mar. 13:1; Luc. 21:5). Os edifícios eram constmídos de mármore brancÔ°é~decora3Srcom°winõrpedras precio­ sas e ricas tapeçarias. O Templo era uma_ das maravilhas do tnimdo. ^ esus predisse a destmição do Templo, efetuada pelos s ô I^ d o rg ê T n o Tciuando


Jerusalém foi conquistada e destruída em (Parousia) de Jesus e do fim do mundo 70 d X . (Josefo, Guerras, 7:1). As pedras (consumação da era). A pergunta dava a que iriam ser derribadas incluíam alguns entender que certo número de coisas blocos de granito de cerca de 12 por 4 por estava ligado em um feixe: a destruição 6 metros (Josefo, Antig., 15.11). Em do Templo, a Parousia e a consumação Guerras, 5.5, Josefo escreve acerca de do século. Jesus quebrou o feixe, e indi­ pedras com 20 metros de comprimento. cou que pelo menos a destruição do„(^y Parte dos alicerces do grande muro exTemplo e o fim eram distintos, emijora" terior. connecmo, atualmente, como o ^ m ú itò relacionadoíi. A catástroíe da desMuro das Lamentações, e como pedras j truição do templo iria prefigurar o juízo dos cantos sudeste e s^udoeste, permane- ^ no fim do mundo, mas não coincidir com cem até hoje. Obviamente, “ não se dei- |e le . * xara aqui pedra sobre pedra” nào deve ^ Tua vinda é tradução do termo técnico ser levado em sentido literal. A língua- 9 “sua parousia”. Parousia é a palavra gem não é científica, mas popuIärlcfT grega que significa vinda ou presença, broadus, p. —— —— ^ Aqui parece que se pretende a idéia de 2. Ais 4ntes do Fim dos Séculos A expressão “segundajinda” não (24-3-14) '5 aparece em o Novo 1’estamento, sendo o .. 3 E , estando e le sen ta do no Mont« d a s mais aproximado o que aparece ^ QMveira-s. ch egaran T iS ^ a lile os seusT lfí^ íem Hebreus 9:28: Cristo ... aparecera pulos e m particu lar, dizendo: D eclara-n os v^se^ n da O fim d o m u n d o poderia 4 quando serão e s s a s co isa s, e que sin a l h a v e ■ IraíuzTàò “a consumação (sunteleias) I dos séculos (alõnos)’’.1^sta é 'u m a expresi i>ondeu-lhes J e su s; A cau telai-vos, au e nm- b -íb— g u\ . ? r suém vos engane. 5 ro rq w muSI^fvirão em ^ *ao freqüente em Mateus, constituindo ^^m eu nome, dizendo: Eu sou o Cristo; e a ^ as últimas palavras deste Evangelho (28: 'Srimuitos enganarão. 6 E ouvireis falar de nJ 20). A ênfase não estA tantn no j^jTiiinp )&guerras e nm ores de guerras; olhai, ^ a u a n to lü ^ ^ l e t a c ã o õu c o n s u g ã S . ~^iivos perturbeis: porque forçoso e que assmi í Ä ^ , «mir' < 5 ? S w S 5 S a in d a n ã o é o fim .7 P o rq u a n . ,lN a Parousia, esía^efa da lugar a era ^ ç to se levantará nação contra ym.ção, e reino-^^fii^^.!, quando O reino de Deus for estacontra reino; e haverá fomes e terremotos ^ belecido em plenitude, levando todos os em vários lugares, 8 »Ias todas essas coisas ^ homens e nações ao seu juízo ou recomsão o princípio das dores. ^ < p en sa finais. * E ntão sereis en tregu es à tortura, e vos O i j S ^ m atarão; e se r e is odiados de tod as a s n ^ í í ' | ÿ ^ ções, por ca u sa do m eu n o m e. 10 N e sse 1 determina o tom do discurso. Ele é feito , . tempo m uitos hão de se esca n d a liza r, e ^ como advertência contra preocupações trair-se uns aos outros, e mutuamente se com as especulações acerca do fim dos /< odiarão. 11 Igu alm en te hão de su rgir m uitos tempos, que ileixam a pessoa vulnerável ^ falsos profetas, e enganarão a m u ito s; 13 e r por se m u ltip licar a iniqüidade, o am or de w aos íahos profetas ou falsos cristos, e que ' m uitos esfria rá . 13 M as quem p e r e e v e r ^ § resultam em negUgência quanto à missão Í2 até o fim , e sse se r á salvo . 14 E e s ie elfSngede pregar o evangelho às nações. Con­ V lho do reino se r á p regad o no m undo inteiro, s'? trariamente às muitas interpretações desgirem testem unh o a todas a s n a çõ es, e então S~ta passagem, o interesse não é renovar a ^ virá o fim . S“ fé na Parousia. Este é um interesse, mas Monte das Oliveiras fica do outro ^ ã o ó único. O discurso afirma clara-----do profundo Vale de Cedrom, ^ ? mente a destruição do Templo e a;^ug^ le s t^ d o Templo. Olhando dali para O-^seqüente volta de Cristo em juízo. Ainda 5 ^ Templo, os discipulos fizeram uma por- ^ rnais7assegúfa"qué~o fun dõTêm pjo não í ção deTnterrogações. Eles perguntaram _ é o fim do mundo. (Vquando essas coisas (plural) deveriam V ' Úma preõcüplção jm p o rta jti^ é afir1^ acontecer, e que sinal haveria da vinda ^ mar um período de duração infinita entre 269


Ki a destruição do Templo e a volta de

tres naturais, como fomes e terremotos, mas sofrerá a perseguição como tal. Se­ reis entregues refere-se ao fato de eles serem entregues às autoridades reinan­ tes, quer iudaicas. quer romanas. Logo em 64 d.C. os cristãos foram perseguidos pelo Imperador Nero. de Roma, que os acusou falsamente de incendiários, isto è, de terem posto togo em Koma. Uma acusação comum passou a ser a de ateís­ mo, porque eles não reconheciam os deu­ ses do Império Romano. O fato de eles se traírem e odiarem mutuamente parece refletir um período uando os seguidores de Jesus eram ainuma congregação judaico-cristã. ain­ da não separada do judaísmo (cf. Mar. 13:9). Os muitos falsos profetas podem

período tos catastróficos: recusa em ser desviada, atenção à preparação pessoal para a vol­ ta de Cristo, paciência na perseguição e a pregação do evangelho. A ênfase é no^ d a , em palavras como acautelai-vos, esperai, \eáe, p ^ ê v e ra i, trabalhai. Durante o primeiro e segundo séculos, houve muitas pessoas que disseram ser Cristo.'Havia^z^otes.^cuioliivoera libertar a nação oK jugo romano. Houve muitos lerantesjw gis, induzindo às duas guerras judaico-romanas (66-70 d.C. e 132-135 d.C.). Na segunda guerra. Bar Cocheba foi rearmen^ê^clamãdío~^‘Messias” por Akiba, principal rabi da época. Jesus advertiu contra a futilidade de tais tos, ou cristãos nominais, que procura­ guerras, e ensinou claramente que elas vam fazer com que os seus condiscípulos não eram verdadeiramente messiânicas. se voltassem para falsas esperanças, parAs guerras e rumores de guerras contra ticularmente com respeito ao fim. as quais ele advertiu eram guerras “mes­ Os versículos 10-13 tratam do proble­ siânicas” , não as guerras costujneira^^ ma de uma “i^ ^ ^ ^ m s te ” , isto é, discí­ qüi~SmTuST no]^n^ó."^té^texto1tem ' pulos verdadeiros é falsos dentro d ^ Igresido um tanto mal a p li^ d o , no sentido j a , ^ t a é uma preocupação importante de alguém resignar-se com o fato de uma no Evangelho de Mateus. O fato de que a guerra internacional como inevitável. JeIgreia passará pelo mesmo julgamento sus não estava ensinando que nada pode que o mundo ê‘~üma~entás¥~TêpêB?a ser feito para impedir as guerras. O seu (cf. as parábolas do joio, da rede, das dez interesse particular era advertir os seus virgens, das ovelhas e bodes, etc.).. ^ d ^ seguidores contra o perigo de serem ar-/ vertências especiais são dirÍRidas çpn^a rastados a “guerras santas” que disses-/ os que desertam ou traem a Igreja por sem ser messiânicas. -----' causa da perseguição. U S ito s hâcTUê* Não vos perturbeis pode parecer uma falhar no teste e se escandalizar. A pala­ ordem impossível, pois todas as guerras vra grega skandalisthésontai significa ser são alarmantes. “Assusteis” traduz meescandalizado ou tropeçar. Alguns se tor­ Uior o gregò, mas pensamento é que' narão info m ^ ite s. e irão trair-se uns aos ( guerras e rumores de guerras nao dévem outros ^ ã n r e í íã s autoridades, seja da assustar-nos, levando-nos a crer que o sinagoga, seja do governo romano. Sob fim dos séculos chegou. ~ ' as pressões da perseguição, alguns, na ~ O princípio das dores ou inicio das verdade, mutuamente se odiarão. Falsos dores de parto é o “trabalho de parto” do profetas podem incluir aqueles que torMessias (cf. Is. 26:16-19; Miq. 4:9,10; nam o messianismo em õu aqueles que enganarão a muitos, le­ Apoc. 12:1-5). Estes são os sofrimentos vando-os ao libertinismo ou antinomia­ do^pffl?Oj4e-£risto, gue çgntÍTOa..Qsj;ofri; mentos do próprio Cristo, (cf. Col. 1:24). nismo. Provavelmente a última hipStêse O povo de Cristo não apenas viverá em é a pretendida aqui (cf. Bornkamm, p. um mundo em que há guerras e desas­ 75). Iniqüidade é tradução de anomian. 270


que parece ser a ilegalidade dos antinomianos, que conrunaiam a UDeraaST da graça com a libertação da lei. O elevado interesse do amor é desta forma esfriado pelo interesse egocêntrico da au­ to-afirmação, no messianismo militante, político, ou pela auto-indulgência no an­ tinomianismo. Provavelmente a última hipótese é o objetivo aqui, pois o amor é o oposto de anomia (iniqüidade) em Ma-" teus. Só são salvos os que perseverarem até o fim. Isto deixa entrever claramente que nem todos os discípulos nominais serão _salvos. Concluir que um a pessoa pode ou nâo perder a salvacãoTuma vez a tenha é ir além de qualquer coisa ex­ plícita no versículo 13. A maioria dos intérpretes entendem que aqui se fala de uma apostasia propriamente dita, mas isto não está explícito. O que está explí­ cito é que o te s te da s a lv a ç ã o é perseverar até o fim (seja o fim do período de perseguição, ou da vida da pessoa). O que é principalmente condenado é a de­ serção ou traição à Igreja, em seus tem­ pos de perseguição (cf.~lü:16 e s.. 22.23Í. Õ teste da salvação ^não é uma profissão verbal, mas a obediência fiel à vontade de Deus (7:21-23^ © .ejgngeUio^dojgij^ isto é, as boasnovas do governo de Deus, através do Cristo, deve ser pregado no mundo intei­ ro, em testemunho a todas as nações. Nações geralmente se refere aos gentios. Esta é a tarefa dos discipulos (cf. 28:19). Só então vira o fim dos séculos. Uma vinda antecipada do fim parece ser previstãTmãsTi^EÚmã dataé fixada, porém s ^ m a ordem_de^CTentos^Embora o peso ( /f da ênfase recaia sobre a obrigação de/ pregar o evangelho a todo olnu n d Õ rh áj também uma certeza, pelo menos dada a J \entender, de que o evangelho será prega-< J do até o fim (Schniewind, p. 242).

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3. Destino da Judéia e Advertência Con­ tra Falsos Messias e Profetas(24:15-28) 15 Quando, p ois, v ird es e sta r no lu gar santo á abom inação d a d eso la çã o , predita

pelo p rofeta D an iel (q u em lê , en ten d a ), 16 então os que e stiv e r e m na Ju d éia fu jam para o s m o n tes; 17 q u em e stiv e r no eirado não d e sç a p a ra tirar a s c o isa s d e su a c a sa , 18 e q u em e stiv e r no cam p o n ão v o lte a trás para apanhar a su a ca p a . 19 M as al d as que estiv e re m grá v id a s, e d a s que a m a m en ta ­ rem n aq u eles d ia s I 20 Orai p ara que a v o ssa fuga não su ced a no inverno n em no sábado ; 21 porque h a v erá então u m a trib u lação tão grande, com o n im ca houve d esd e o princípio do m im do a té a g o ra , n em ja m a is h a v erá . 22 E , se aq u eles d ias não fo sse m a b reviad os, ninguém se sa lv a r ia ; m a s por ca u sa dos escolhidos serã o ab reviad os a q u eles d ias. 23 Se, p ois, a lg u ém v o s d isser: E is aq u i o Cristo! ou: E i-lo a li! n ão a c red iteis; 24 p o r­ que hão de su rgir fa lso s cristo s e fa lso s profetas, e farão gran d es sin a is e prodígios ; de m odo que, se p o ssív e l fora, en gan ariam até os escolh id os. 25 E is que d e an tem ão vo-lo tenho Jito. 26 P ortanto, se v o s d is se ­ rem : E is que e le e stá no d eserto ; n ão sa ia is; ou: E is que e le e stá no interior da c a sa ; não acred iteis. 27 P orque, a s s im com o o r e lâ m ­ pago sa i do oriente e se m o stra a té o o cid en ­ te, a ssim se r á ta m b ém a vin d a do F ilh o do hom em . 28 P o is onde e stiv e r o ca d á v er, a í se ajuntarão o s ab u tres.

Neste parágrafo se faz inconfundível referência à destruição de Jerusalém (70 d.C.). Lucas remove toda dúvida a esse respeito, quando descreve a cidade sob assédio, sofrendo vingança da espada e sendo pisada pelos gentios (21:20-24). O discurso vai desenvolver-se para referirse igualmente de maneira clara ao fim dos séculos, mas o ponto de transição não é claro. Algumas referências são in­ teligíveis apenas na sua menção de um acontecimento dentro da história, outras apenas quanto a um acontecimento no fim da história, e ainda outras não estão claras quanto ao que se referem. A abominado da desolação é uma frase de Daniel (9:27; 11:31; 12:11). Em Daniel, ela se refere à substituição de sacrifícios no Templo pela “ abominação da desolação” . Geralmente entende-se que isto faz referência ao ato atroz de Antíoco IV (Epifânio), governante sírio que, em 168 a.C. sacrificou um porco no altar, e construiu no Templo um altar aos deuses gregos (cf. Josefo, Antig. 12.5 271


e I Macabeus 1:54-64). Esse ato se tor­ nou um símbolo da afronta mais arro­ gante e atroz que se podia conceber contra os judeus. O termo é aqui apli­ cado à profanação e destruição do lugar santo ou Templo, em 70 d.C., levada a efeito pelos romanos. O parêntesis quem lê, entenda, segue ípsís llterís o paralelo de Marcos (13:14). Ou Mateus (seguindo Marcos) está alertando o leitor para um significado oculto deste texto, ou o pró­ prio Jesus alertara os seus ouvintes aceica de um significado oculto em Daniel. Os cristãos que estivessem na Judéia deveriam fugir para os montes, a fim de escapar ao morticínio, que seria efetuado pelos destruidores de Jerusalém. Em 70 d.C. eles, na verdade, fugiram para Pela, no vale do Jordão. Se este texto tivesse sido composto após 70 d.C., parece que teria redação diferente. Pode ser mais bem compreendido como sendo compos­ to antes do acontecimento. A fim de salvar a vida, seria necessário deixar os seus pertences para trás. Até o fato de descer do telhado plano de uma casa, para pegar algo dentro da casa, podia custar a vida de alguém. Essa fuga seria especialmente difícil para futuras mães e as que tivessem filhos pequenos. A fuga no inverno seria difícil para todos, e as restrições ou escrúpulos em relação ao sábado, impedindo viagens, seriam difi­ culdades para alguns. Uma situação ju ­ daica, na Palestina, é objetivada. E tam­ bém um acontecimento dentro da histó­ ria, e não ao fim dela, é dado a entender pelos detalhes das instruções para a fuga. No fim da era, a localização da capa de alguém, a estação do ano, ou o dia da semana não teriam importância em rela­ ção às necessidades ou procedimento de alguém. Embora o versículo 21 possa ter im­ plicações com o fim dos tempos, a sua referência imediata é à destruição de Jerusalém. A tribulação, ou aflição, de Jerusalém durante o longo cerco e depois que os romanos atravessaram os muros da cidade foi quase incrível (cf. Josefo, 272

Guerras 5.10). Ê compreensível que, pa­ ra a geração de Mateus, aquele aconteci­ mento parecesse o pior possível. Pode-se permitir alguma hipérbole, mas se o morticínio continuasse, tuda a nação ju ­ daica teria sido destruída. Jesus advertiu os seus seguidores repe­ tidas vezes acerca das falsas esperanças alimentadas pelos falsos cristos e falsos profetas. Durante o longo cerco de Jeru­ salém, houve promessas feitas ao povo de que experimentaria uma libertação mes­ siânica antes do prevalecimento dos ro­ manos. Os seguidores de Jesus foram advertidos para não crerem em nenhuma alegação de um libertador messiânico que aparecesse no deserto ou no interior da casa, mesmo que essas alegações fos­ sem apoiadas por sinais e prodígios. Os versículos 27 e 28 podem referir-se à destruição de Jerusalém ou ao fim dos tempos, mas a última hipótese parece ser indicada. Há um sentido real em que o Filho do Homem veio em Juízo sobre Jerusalém em 70 d.C ^ e pode-se enten­ der isto aqui. Se assim é, há insinuações acerca do juízo no fim dos tempos. Pro­ vavelmente a referência é diretamente a esse julgamento final. A passagem é for­ temente escatológica. Quando o Filho do Homem vier no fim dos tempos, não haverá segredo a esse respeito. A sua vinda será tão conspícua quanto um re­ lâmpago no céu. Mais do que isso, a sua vinda em juízo é tão inevitável quanto a reunião dos abutres onde há um cadáver, ii^uias é a palavra grega, literalmente, e pode haver, mas provavelmente não há, uma referência velada à vinda da “águia” romana a Jerusalém. A palavra grega ptõma normalmente designa um cadáver ou carcaça, e não um corpo vivo. A palavra traduzida como a vinda do Filho do Homem é Parousia, referencia aparente à sua vinda no fim dos séculos. 4. A Vinda do Filho do Homem (24:29-31) 29 Logo depois da trib u lação daqueles dias, esc u r ec e r á o so l, e a lu a não d ará a sua


luz; a s estrela s cairão do céu e os poderes dos céu s serão ab alad os. 30 E n tão a p a r e c e ­ rá no céu o sin al do F ilh o do h o m em , e todas a s tribos da terra se lam en ta rã o , e v erão vir o F ilho do h om em sobre a s n u ven s do céu , com poder e grande glória. 31 E e le en viará os seu s anjos com grande clan gor de tro m ­ beta, os quais lhe ajuntarão o s escolh id os desde o s quatro ven tos, de u m a ã outra extrem idade dos céu s.

A tribulação do versículo 29 aparente­ mente se refere à do versículo 21. A gran­ de tribulação que acabou de ser descrita referiu-se aos sofrimentos e tentações dos homens. Os dias seguintes à tribulação são marcados por cataclismas cósmicos, descritos em Unguagem tipicamente apo­ calíptica. Não há nada, no contexto, que requeira outra compreensão, que não seja literal acerca do escurecimento do sol e da lua e queda das estrelas, mas normalmente essa linguagem é poética nos escritos apocalípticos. Uma olhadela em Atos 2:16-20 propicia uma evidência bem conclusiva de que esta linguagem é usada simbolicamente, pois não é prová­ vel que Pedro estivesse dizendo que a lua realmente se tivesse transformado em sangue no dia de Pentecostes. Os poderá dos céus incluem o sol, a lua e as es­ trelas. O sinal do Filho do homem é de significado desconhecido, embora esteja mais diretamente relacionado a Jesus do que os sinais astronômicos. O genitivo grego permite a idéia de que o Filho do homem seja pessoalmente o sinal, isto é, “o sinal, que é o Filho do homem” . A vinda do Filho do homem sobre as nuvens do céu é sua volta à terra em poder e glória. Durante o seu ministério terreno, ele tomou a forma de servo, sofreu e morreu. A sua vinda agora é em juízo, mas com ênfase de que é para juntar os escolhidos de todas as partes do mundo. Onde eles serão ajuntados não é indicado (cf. I Tess. 4:17). Duas passagens do Velho Testamento sâo reu­ nidas no versículo 30: Zacarias 12:10-14, que fala como o povo da terra se lamen­ tará sobre aquele a quem traspassou, lamentando-se como alguém chora o seu

filho único; e Daniel 7:13 e s., que retrata a vinda triunfante do Filho do homem. Em Daniel, a vinda é “ao An­ cião de Dias” , mas aqui é claramente à terra. O fato de a reunião dessas duas passagens ser primitiva, verifica-se no fato de que elas sâo ligadas também em Apocalipse 1:7. 5. Lições Tiradas da Figueira (24:32-35) 32 A prendei, p ois, da fig u eira a su a p a rá ­ bola: Quando já o seu ram o se to m a tenro e brota folh as, sa b e is que e stá próxim o o verão. 33 Igu alm en te, quando v ird es todas essa s co isa s, sa b ei que e le e stá próxim o, m esm o à s p ortas. 34 E m verd ad e v o s digo que não p a ssa rá e sta gera çã o se m que todas e ssa s co isa s se cu m p ram . 35 P a ssa r á o c é u e a terra, m a s a s m in h as p a la v ra s ja m a is p assarão.

Esta parábola admoesta para que prestemos atenção aos sinais que mos­ tram um acontecimento iminente. A ele­ vação da seiva em uma figueira, indicada por tenros brotos e depois folhas, é um sinal seguro de que está próximo o verão. Essas coisas, no versículo 33, indicam os sinais do parágrafo anterior. Ele está próximo pode ser tanto masculino como neutro, pois o texto grego não tem sujeito expresso, neste ponto. O significado é que o Filho do Homem está próximo, ou que o fim está próximo. Provavelmente o primeiro caso é pretendido. O significado de esta geração é muito disputado. Esforços, como o de Jerôni­ mo, para fazê-lo significar a raça judai­ ca, ou de Orígenes e Crisóstomo, para referir-se a todos os cristãos, sâo arbitrá­ rios, e devem ser rejeitados. Esta geração refere-se aos contemporâneos de Jesus, como a referência 11:16 e outros textos. Se primordialmente esta passagem foi usada para referir-se à destruição de Jerusalém, e do Templo, o seu cumpri­ mento é claro. Se as coisas a se cumprir nesta geração referem-se à vinda do Filho do homem, essa também teve cumpri­ mento no julgamento de Israel em 70 d.C. A interpretação mais difícil é a que parece a mais natural aqui: a referência 273


ao fim dos tempos. Desta forma, haveria uma referência dupla: primeiro à des­ truição de Jerusalém, e depois ao juízo do fim do mundo, que aquela prefigura. Se esta é a intenção, o problema óbvio levanta-se do fato da continuidade históri­ ca. O versículo 36 pode propiciar a solu­ ção, pois Jesus negou que soubesse o tempo do fim, declarando apenas o fato da sua proximidade (cf. comentários a 16:27 es.). 6. Ê Desconhecido o Tempo da Parousia (24:36-44) 36 D aquele dia e h ora, p orém , ninguém sabe, n em os anjos do céu, n em o F ilh o, senão som en te o P a i. 37 P o is com o foi nos dias de N oé, a ssim se r á tam b ém a vin d a do Filho do hom em . 38 Porquanto, a ss im com o nos d ias an teriores ao dilúvio, co m ia m , bebiam , c a sa v a m e d avam -se e m casam en to, até o dia em que N oé entrou n a a r c a , 39 e não o perceb eram , a té que v eio o dilúvio, e os levou a todos; a ssim se r á ta m b ém a vinda do FUho do h om em . 40 E n tão, estan d o dois hom ens no cam po, será levad o u m e deixado o outro; 41 estan do duas m u lh eres a tra b a ­ lhar no m oinho, será lev a d a u m a e d eixad a a outra. 42 V igiai, pois, porque não sa b eis em que d ia vem o vosso Sen h or; 43 sa b ei, p o ­ rém , ist»: se o dono da c a sa so u b esse a que vigília d a noite h a v ia de vir o ladrão, v ig ia ­ ria e não d eixaria m in ar a su a c a sa . 44 P or isso fica i tam b ém vó s a p erceb id os; porque num a hora em que não p en seis, v irá o F ilho do hom em .

Várias expressões são usadas para o fim da era, que é a preocupação deste parágrafo. Ele é aquele dia e hora, e é também a vinda (parousia) do Filho do homem, bem como o dia em que vem o vosso Senhor. A idéia é que, apesar de toda a certeza da sua vinda, o tempo dela é conhecido só do Pai. A sua vinda vai pegar os homens de surpresa,. encon­ trando-os preocupados com interesses normais e universais, como comer e be­ ber, casar e dar-se em casamento, tra­ balhar no campo e no moinho. Na expressão daquele dia e hora, a adição de “uma hora” é retórica, tendo dia e hora o mesmo significado (McNeile, p. 356). O conhecimento daquele dia e 274

hora pertence apenas ao Pai. A gramáti­ ca grega permite a idéia de que não é o tempo, mas a natureza daquele dia e hora que é conhecida apenas do Pai, mas o contexto favorece grandemente a inter­ pretação de que está-se falando do tem­ po. Nem o Filho é uma versão disputada em Mateus, sendo que algumas tradu­ ções o omitem, baseando-se em manus­ critos bizantinos menos antigos. A inclu­ são tem a confirmação exuberante dos manuscritos alexandrinos, ocidentais e cesareanos. A versão é certa em Marcos 13:32, e dá a entender o mesmo no in­ discutível só o Pai em Mateus. Esta expressão indubitavelmente remonta a Jesus, pois nenhum discípulo teria suge­ rido que ele tinha conhecimento limita­ do. Esta declaração, na verdade, susten­ ta a sólida afirmação do Novo Testa­ mento de que Jesus Cristo era verdadei­ ramente humano, tanto quanto divino. A fé cristã pode apenas colocar-se di­ ante deste mistério da plena realidade da encarnação. Deus veio de maneira pe­ culiar em alguém que era um verdadeiro homem, e não apenas um homem apa­ rente (gnóstico). Este versículo demanda não apenas o pleno reconhecimento das limitações humanas de Jesus, mas tam ­ bém exige que reconheçamos as nossas limitações humanas, sendo um a delas a de que não sabemos o tempo do fim do mundo, ou da vinda do Filho do homem. O crente precisa aceitar a necessidade de viver na tensão entre conhecer a certeza da volta de Cristo, sem saber quando ela ocorrerá. A Parousia será como nos dias de Noé, em que os homens se encontrarão des­ preparados. Não há nada de errado em comer e beber, casar e dar-se em casa­ mento, trabalhar no campo ou no moi­ nho. O que é fatal, nessa preocupação com tais assuntos normais e necessários, é a pessoa negligenciar a necessidade de vigiar pela vinda do Senhor, e não ficar apercebida para ela. A ilustração do dono da casa ensina que o Senhor virá


noma hora em que não penseis, da mes­ ma forma como um ladrão vem sem aviso prévio da “vigília” da noite em que pre­ tende vir. Da mesma forma como o dono da casa precisa estar apercebido para a vinda do ladrão a qualquer hora, nós também precisamos estar prontos para a vinda do Senhor a qualquer hora (cf. I Tess. 5:2). A separação entre os levados e os deixados não seguirá Unhas convencio­ nais, como raça ou nacionalidade. As Unhas correrão no meio de famíüas e vizinhos, separando aqueles que haviam tido laços tão íntimos como o trabalho diário (Lucas 17:34 inclui dois numa cama, presumivelmente da mesma famíUa). O levado é provavelmente o bom, e o outro, deixado ao seu destino, embora a idéia reversa, de um para o julgamento e o outro deixado em segurança seja pos­ sível, mas nâo provável (McNeile, p. 357). O que é claro é o fato da separação e do contraste de destinos, determinado pelo fato de se estar ou não pronto para a vinda do filho do Homem, e não por identidade nacional ou familiar. Em M a­ teus, a ênfase dupla é expressa em vigiai e ficai apercebidos (v. 42 e 44). 7. Acerca de se Ficar Preparado (24:45 — 25:13) Agrupando a parábola dos servos fiéis e infiéis com a das dez virgens, verifica­ remos a exigência de preparo. Este tema já é visível no parágrafo anterior, mas recebe especial ênfase nestas duas pará­ bolas. 1) O Servo Fiel e o Infiel (24:45-51) 45 Q uem é , p ois, o serv o fiel e prudente, que o senhor p ôs sobre o s se u s se r v iç a ls, para a tem po dar-lhes o sustento? 46 B em aventurado aq u ele serv o a quem o seu s e ­ nhor, quando v ier, a ch a r a ssim fazendo. 47 E m verdade v o s digo que o porá sobre todos os seu s b en s. 48 M as se a q u ele outro, o m au servo, d isser no seu coração: M eu s e ­ nhor tarda em v ir, 49 e co m eça r a esp an car 0 8 seu s con servos, e a co m er e b eb er com os ébrios, 50 v irá o senhor daquele servo, num dia e m que não o esp era , e num a hora de que

não sa b e, 51 e cortá-lo-á pelo m eio , e lhe dará a su a p arte com os h ip ócritas; ali h averá choro e ranger de den tes.

Os seguidores de Jesus nâo devem ape­ nas vigiar com respeito à sua vinda, mas têm trabalho a realizar. O servo fiel e prudente (phronimos significa prudente) será encontrado fazendo o que lhe foi ordenado. Como através de todo este Evangelho, nada menos do que total obediência, ou fazer a vontade de Deus, é exigido do discípulo. A pessoa nâo é salva pelas suas obras, mas é julgada por elas. Servo é tradução de doulos, escravo. A pessoa demonstra que pertence a Deus, obedecendo-lhe. A recompensa da obediência não é aposentadoria para des­ cansar, mas promoção para uma tarefa maior. O servo fiel é colocado sobre todos os bens do seu senhor. O mau servo interpreta mal a volta adiada do seu senhor. Tarda em vir é tradução de chronizei, demora. A adver­ tência é contra presumir-se que, visto que o Filho do homem ainda nâo veio, ele não virá, ou pelo menos a vinda é tão remota que não nos concerne. Corta'-lo-á pelo meio é tradução de diehotomé^i (ou dichotomize), termo muito forte, que po­ de significar uma redução de posição. A parábola contém um a advertência es­ pecial para os crentes que têm cargos de responsabiUdadé que dizem respeito ao cuidado dos outros, mas que usam a sua posição para adquirir vantagens pes­ soais, tentando ser senhores, em vez de servos, exercendo uma tirania sobre os que não os apoiam, e sendo indulgentes para com os que os apoiam. Pode ser observado, de passagem, que Jesus ad­ vertiu os seus seguidores em perspectiva tão severamente quanto aos escribas e fariseus. Esta severidade é originada do interesse, e não do desprezo. Os rolos de Qumran podem lançar ainda mais luz sobre o versículo 51, onde cortar pelo meio é tradução dichotomêsei, Uteralmente, cortar em duas meta­ des. Betz encontra um íntimo paralelo à Regra da Comunidade (1 QS H, 16 e s.). 275


onde o hipócrita que entra no pacto de Qumran apenas para ganhar as bênçãos escatológicas, sem intenção de mudar os seus procedimentos, é “cortado fora dos Filhos da Luz” e lhe é dada a “sua porção no meio dos amaldiçoados para sempre” . Ele considera “cortar pelo meio” uma tradução do hebraico karath, que pode significar cortar, cortar fora, fazer (cortar) um pacto, ou até cortar em dois (cf. Jos. 3:13; 4:7). Cortar em dois é mais Uteral, e traduz mais dramatica­ mente a palavra grega do versículo 51, que originalmente significava “ele será cortado fora” , isto é, fora do povo de Deus. A segunda parte do julgamento, lhe dará a sua parte com os hipócritas, é literalmente “ele colocará a sua sorte com os hipócritas” . Isto consiste em um bom paralelismo da segunda parte da passagem de Qumran, onde o hipócrita é a pessoa que entra na comunidade pro­ curando as bênçãos escatológicas ape­ nas. Desta forma, o versículo 51 diz que o servo mau será cortado do povo de Deus, e o seu destino apropriado será com aqueles que são amaldiçoados para sempre. Salmos 37 está por detrás da passagem de Qumran e da parábola de 24:45-51, e ilumina o estudo de ambas. 2) As Dez Virgens (25:1-13) 1 E ntão o reino dos céu s se r á sem elh a n te a dez virg en s que, tom ando a s su a s lâ m p a d a s, saíram ao encontro do noivo. 2 Cinco d ela s eram in sen sa ta s, e cin co, p rudentes. 3 Ora, a s in sen satas, tom ando a s lâ m p a d a s, não levaram a zeite con sigo, i As p rudentes, p o ­ rém , lev a ra m a zeite em su a s vasU has, ju n ­ tam en te com a s lâm p ad a s. 3 E , tardando o noivo, coch ilaram todas, e dorm iram , 6 M as à m eia-noite ouviu-se um grito: E is o noivo! saí-lhe ao encontro! 7 E ntão tod as aq u elas virgens se lev a n ta ra m , e prep araram a s suas lâm p ad as. 8 E a s in sen sa ta s d issera m às prudentes: D al-nos do v o sso a zeite, por­ que a s n o ssa s lâm p ad as estã o se ap agando. 9 M as a s prudentes respon d eram : JVão; p ois de certo nâo ch eg a ria para n ós e p a ra v ó s ; ide a n tes a o s que o ven d em , e com prai-o 46 O tto Beiz, "T h e D ichotom ized Servant and the E n d of Judas Iscariot” , Revue de Qumran, 5:17 (outubro de 1964), p. 43-58.

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para v ó s. 10 E , tendo e la s ido com prá-lo, chegou o noivo; e a s que e sta v a m p rep a ra ­ das en traram com e le p ara a s bodas, e f e ­ chou-se a p orta. 11 D epois v ie ra m tam b ém a s outras v irg en s, e d issera m : Senhor, S e­ nhor, abre-nos a p orta. 12 E le, p orém , r e s ­ pondeu: E m v erd ad e v o s d ig o , n ão vos c o ­ nheço. 13 V ig ia i, p o is, porque não sa b eis n em o dia n em a hora.

Esta parábola assume características de uma alegoria, com vários pontos de comparação. O seu alvo principal é ad­ moestar a prontidão ou preparação para a Parousia, cujo tempo exato é desconhe­ cido. Jesus é o noivo, as dez virgens são o povo (possivelmente, mas não necessaria­ mente a Igreja) que espera a sua volta, a demora do noivo é o tempo de espera pela Parousia, a vinda repentina do noivo é a Parousia, e a rejeição das virgens insensatas é o juízo que recairá sobre os que não estiverem preparados por oca­ sião da volta de Cristo. O reino dos céus não é como dez virgens, mas é semelhante à experiência das dez virgens. Ele vem oferecendo sal­ vação, mas também julgamento. Há um período de preparação e um tempo em que será tarde demais para preparar-se. Esta é a idéia a ser enfatizada. O dia da volta do Senhor pode ser alegre, em que a pessoa entra para as bodas. O “banque­ te messiânico” é uma analogia familiar para as alegrias da salvação (cf. Apoc. 3:20). Os que não estão preparados ficam de fora, como pessoas desconhecidas. A tradução não vos conheço perde uma parte do significado da passagem. O tempo perfeito do verbo (oida) pode que­ rer dizer: “Não vos conheci nem vos co­ nheço agora.” Não que eles outrora fos­ sem conhecidos e depois esquecidos, mas, sim, que nunca foram conhecidos. Lâmpadas (lampas) usualmente signi­ fica tochas, possivelmente lâmpadas amarradas a varas, ou “flambeaux” . O termo é algumas vezes usado para lâm­ padas ou luzes, como em Atos 20:8. Quem eram as virgens, se da aldeia ou da casa da noiva, não é divulgado. A casa também não é identificada, se era do pai


da noiva (se o noivo está vindo para ela) ou do noivo (se, de acordo com muitos manuscritos, ela já estivesse com ele). Há forte apoio de manuscritos para a inclu­ são de “ a noiva” juntamente com o noi­ vo, no versículo 1. A idéia da Igreja como noiva de Cristo (cf. II Cor. 11:2) não está presente na história. As cinco virgens insensatas sabiam que precisavam de óleo, pois tinham óleo em suas lâmpa­ das. A sua insensatez foi não terem cal­ culado que um suprimento extra de óleo iria importar, em um atraso. Elas não haviam levado vasilhas, juntamente com as lâmpadas, com óleo de reserva. A história é contada vividamente, em­ bora alguns desses detalhes pertençam unicamente ao cenário da história, e não devem ser forçados para significarem al­ go. Tardando (chronizontos) podia tam­ bém ser traduzido “foi atrasado” . Todas as dez virgens, prudentes e insensatas, cochilaram e dormiram, isto é, foram caindo no sono pouco a pouco, e conti­ nuaram dormindo. As insensatas não são censuradas por terem dormido; apenas por não se terem provido de óleo sufi­ ciente. Prepararam as suas lâmpadas significa que elas removeram a porção queimada dos pavios, e as acenderam de novo. As lâmpadas das virgens insensa­ tas começaram a se apagar, terminado o óleo. Se se deve tirar uma lição do ver­ sículo 9, é de que a preparação para a Parousia não pode ser tomada empresta­ da, mas provavelmente não é esta a intenção. A idéia verdadeira é que as cinco virgens insensatas esperaram até que se tornou tarde demais para se pre­ pararem para encontrar o noivo. Muitos intérpretes fazem objeção ao versículo 13, dizendo que ele não se coa­ duna com a intenção da parábola, e que foi uma adição posterior. J. Jeremias (Pa­ rables p. 51-55) argumenta que original­ mente essa parábola não era uma alego­ ria, e que a admoestação para vigiar muda a ênfase da idéia original de pre­ paração, sustentando que as virgens in­ sensatas não foram julgadas por que

dormiram, mas porque não tinham óleo. As prudentes não dormiram menos do que as insensatas. Ele acha que a forma mais primitiva da história está em Lucas 12:35-38; 13:22-30 e que o uso de vigiai, por Mateus, nô versículo 13, foi empres­ tado de Marcos 13:35. Isto pode ser, mas outra explicação pode ser dada para o uso dessa expressão em Mateus. É vèrdade que seria lógico esperar que o versículo 13 admoestasse o leitor a “estar preparado” (cf. 24:44), em vez de vigiar. Mas isto seria insistir em uma coerência que provavelmente não era a preocupação de Mateus.Um estudo de Lucas 12:35-38 desvenda uma correspon­ dência virtual das idéias de preparação e o fato de estar acordado. Lucas 12:35 admoesta para que “estejam cingidos os vossos lombos” e “acesas as vossas can­ deias” (preparação); todavia, os declara­ dos como bem-aventurados são os encon­ trados “ acordados” , literalmente, “vi­ giando” (v. 37). A lógica que Jeremias requer de Mateus requereria que Lucas 12:37 dissesse: “ Bem-aventurados aque­ les servos aos quais o seu senhor, quan­ do vier, achar preparados.” E outra vez, em Lucas 12:39,40, na versão encontrada na maioria dos manuscritos, há uma clara correspondência entre vigiar e estar preparado. O mesmo uso indiferente de “vigiar” e “estar preparado” é encontra­ do em Mateus 24:42,44. Segue-se, por­ tanto, que, embora o versículo 13 possa mudar a ênfase e possa ser uma adição posterior, não há razões que forcem esta conclusão. Seria insistir em uma ciência mais moderna do que antiga, requerer “estai preparados” , em vez de “vigiai” , como conclusão da parábola que estamos considerando. 8. A Parábola dos Talentos: Os que os Têm e os Que Não os Têm (25:14-30) 14 Porque é a ssim com o u m liom em que, ausentando-se do p a is, ch a m ou õ F iê u s servos e lh e s en tregou os seu s b e n s ; 15 a im i 3 è ií'c in r a ^ le n to s , a õuffo~3ÕÍs, e a outro um , a cad a lun segundo a suaTcapacidade; e

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A verdade aqui faz paralelo com a do grande princípio de que perder a^vida^é, achá-la, enquanto tentar salvá-la é per­ dê-la (£f: 16:25). As diferenças entre as parábolas em Mateus e Lucas sâo quase tão marcantes quanto os seus paralelos. Elas não pro­ vieram da mesma fonte. Ou Jesus deu duas parábolas distintas, mas similares, ou as versões de Mateus e de Lucas as­ sumiram forma em diferentes situações eclesiásticas, com adaptações a necessi­ dades algo diferentes. A história em Mateus é mais simples cíõ que a de Lucás. J. Jeremias (Parables, p. 61 e s.) afirma que a parábol^ originalmente era diri-, gida contra os escribas, como uma acusa-j çâo da sua negligente mordomia da Pala-/ vra de Deus que lhes fora confiada. Ele considera que ela posteriormente se tornoujsçatológica, cõinjreferêncía especial à ParoüsíãrO seu argumento é baseado principalmente em uma análise compa­ rativa das histórias de Mateus e Lucas, bem como numa parábola em desenvol­ vimento posterior, no Evangelho Apócri­ fo dos nazareanos. Embora se possa con-\ firmar a teoria de Jeremias, a parábola em Mateus se relaciona claramente com T PafõusiãT etn que referencias como o goTO^õtêu senhor (v. 21) e o banimento para trevas exteriores (v. 30) sâo ineludivelmente escatológicas. Há marcantes paralelos entre a ParáPor detrás do princípio mais importan­ te da parábola, estão ^ g p jif iõ e s . Todos bola dos Talentos, contada por Mateus, e os dons e oportunidades o nõinem vêm à^Pãrábòla das Minas (19:11-27), conta­ de Deus. O que se requer élidelidade. Õs da por Lucas. A ^ rin d ^ a l l i ç ã ^ ^ n A . ^ ^õffiW D eus^e sua correspondente res­ ^ ,m e s m æ que Deus poaecÕncêder, ^ ponsabilidade sâo comunicados a cada concede, dádivas maiores aos que são um segundo a sua capacidade. Não é a fiéis, enquanto aqueles que nâo confiam quantidade de dons que é importante, nele podem apenas perder o que têm. _________ _________ o_ ^princípio ___ mãTir fidelidade a ele, como é visto no'' O 29^ personifica _ versículo da parábola, aplicado a diferentes situa- ^ f a t o de que o homem que ganhou dois ções, nos Evangelhos (cf. comentário a ^ -^talentos para o seu senhor recebeu louvor- j j 13:12). Mais pode ser dado ao que tem, ^ lidêntico ao recebido pelo servo que granmas (paradoxalmente) daquele que não^ggeara cinco talentos. A recompensa de tem, até aquilo que tem ser-lhe-á tirado. ^ serviço fiel é uma oportunidade mãior O dom não usado, ou_a oportunidade^ para servirrTIdêÍi3ã3i no põiScõ^abré~õ^ ■ não usada, sM peràTdos. à vida dada a Q caminho para ser confiado muito à pes-^ Deus em servÍçõlIivõTõrnir-se mais rica, Iso a fiel. A recompensa de serviço fiel

seguiu v ia g em . 16 O que receb era cinco talentos foi im ed iatam en te n eg o cia r, com e les, e ganhou outros cin co; 17 d a m e sm a sorte, o que receb era d ois ganhou outros abis; 18 m a s o que r e c e S e fa um foi e cavou na terra e escondeu o dinheiro do seu senhor. 19 Õra, depois de m uito tem p o v eio o senhor d aqueles serv o s, e fez conto s com e les. 20 E n tão, chegando õ que receb era cinco ta len to s, a p resen to u jh e outros cinco teiênTõs , dizendo: Senhor7”én treg a ste-m e cincõnCalentos: e is aqui outros cin co que lianhei. 21 D isse-lh e o seu sen h or: Muit|) b em , servo bom e fiel: sobre o pouco foste fiel, sobre m uito te colo c a r e i; en trá n o ^ o M do teu senhor. 22 Chegando to m b ém o que receb era dois talen tos, d is s e : Senhor, entregaste-m e dòis^ ^ en jiõs; e is aqui o u ^ s _ ^ i s _que gan h ei. 23 D isse-lh e o seu sen h or: M uito bem , servo bom e fiel; sobre o pouco foste flel, sdbrFm Dlto tê cíilòcarei; en tra no gozo do teu senhor, 24 Chegando por fim o que receb era • Senhor, e u te conhecia, que e s u m hom e m duro, au e ceifa s ondê nao se m e a sfô , e reco lh es onde não jo«^r a ste ; 25 e , atem orizad o, fui e sconder na terra o teu to le iito ; e is agu Ltens o que e"têu. 26 Ao que lhe respondeu o seu sr a h o r : Servo , sa b ia s que c eifo onde liãõ sem eei, e recolho onde não joeirei? 2 7 ^ ^ então en tregar o m eu dinlielro a g s banguefros e , v in d o e u , te^Íol i r'recÍbiHõ~c5m jurõSTlSS T trai-lhe, po is, o talen to e dài^õ"ãõ que te m o s dez ta J ^ t o s . 29 Porque a todo Çque tem , dar-se-lhe-á, e terá e m abundãn-j >cia; m a s ao que não te m , a té aquilo que tem^ |ser-lh e-á tirado, 30,E la n ça i o serv o inútil nas trev a s ex terio res; a li h a v erá choro e ranger de den tes.

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também é conhecida em termos de entra­ dele serão reu n id as tod as a s n a çõ e s; e ele sep arará uns dos outros, com o o p astor s e ­ da no gozo do senhor do servo fiel. para a s o v elh a s dos cab ritos; 33 e porá a s O servo que recebera apenas um ta­ ovelh as à su a d ireita, m a s os cab ritos à lento, escondeu-o na terra. E tentou iusesquerda. 34 E n tão d irá o R «i a o s que e s t i­ tificar-se, quando chegou a hora de acer­ v erem ã su a d ir e ita : V inde, benditos de m eu P ai, p ossu í por h era n ça o reino que vos está tar as contas. Ele tentou desculpar-se. preparado d esd e a fundação do m undo; atacando o caráter do seu senhor, acu3 5 porque tiv e fo m e, e m e d este s de com er; ^ n d õ ^ d e ser homem duro, explorando tive se d e , e m e d este s d e b eb er; era fo r a s­ õTrãbãlho dos outros. Ele não confiava teiro, e m e a c o lh e ste s; 36 e sta v a nu, e m e no seu senhor, e disse* que ficara atemo­ v e stiste s; a d o eci, e m e v isita ste s; e sta v a na rizado, em outras palavras, que tinha prisão, e fo stes v er-m e. 37 E n tão os ju stos p ergu n tarão: Senhor, quando te v im o s medo dele. Estava claro que ele não ô lhe com fo m e, e te d em os d e com er? ou com amava, pois, do contrário, teria arrisca­ sede, e te d em o s de b eb er? 38 Quando te do uma perda pessoal, no esforço de vim os fo ra steiro , e te acolh em os? ou nu, e te servir ao seu senhor. Ele tentou “s ^ a r a vestim o s? 39 Quando te v im o s en ferm o, ou a prisão, e fom os v isita r-te? 40 E resp o n ­ sua vida” , e dessa forma a p7erdeu^,0 mí- nder-lhes-á o R ei: E m v erd ad e v o s digo que, iu m õ ^ ue ele poderia ter feito seria inves­ sem pre que o fize ste s a u m d este s m eu s tir o dinheiro do seu senhor junto aos irm ãos, m e sm o dos m a is pequeninos, a m im banqueiros, mediante uma taxa certa de o fiz estes. 41 E ntão d irá ta m b é m 'a o s que juros. Ao invés de experimentar o gozo estiv erem ã su a esq u erd a : A partai-vos de m im , m a ld ito s, para o fogo e te m o , p rep a ra ­ í3o seu senhor, o servo inútil (sem valor)J do p ara o D iabo e se u s a n jo s ; 42 porque tiv e lançado nas trevas exteriores, símbolo de fom e, e não m e d este s de co m er; tiv e se d e , e rejeição ou da Geena. onde os homens não m e d este s de b eb er; 43 era fo rasteiro, e Shoram e rangem os dentes, expressões não m e a co lh este s; e sta v a nu, e n ão m e v e s ­ dolorosas para a pessoa atormentada por tistes; en ferm o, e n a p risão, e n ão m e v is i­ ta stes. 44 E n tão ta m b ém e ste s p erg u n ta rã o : castigos infernais. — Senhor, quando te v im o s co m fo m e , ou com - O fato do talento enterrado ter sido sed e, ou fo rasteiro, ou nu, ou en ferm o, ou na dado ao servo que tinha dez pode ser prisão, e não te serv im o s? 45 Ao que el^ lh es responderá: E m v erd ad e vo s d igo que, s e m ­ mais bem in te^retado por uma metáfora que o d e ix a ste s de fazer a um d estes usada porí|phannes Weiss: “Os dons dê^ pre m a is pequeninos, d e ix a ste s ta m b ém de o Deus não são dados como dinheiro, mas fozer a m im . 46 E irão e s te s p ara o ca stig o como plantas, que precisam de solo ade­ etem o , m a s o s ju sto s para a vid a e te m a . quado para crescer” (Robinson, p. 207)._ Embora a seção que começou em 24:1 ~ O termo talento representava, a princí­ pio, uma medida de peso, e depois pas­ fale do destino de Jerusalém, bem como do mundo, a ênfase anterior dá lugar sou a designar uma certa quantidade de completamente à última parte, neste pa­ prata ou ouro. Os valores monetários variam dia a dia, e não podem ser com­ rágrafo. Ele inclui a parábola das ove­ parados através de séculos. Cem mil cru­ lhas e dos cabritos, mas esta é mais do que um a parábola. No seu todo, ela é um zeiros pode sugerir o equivalente a um talento, mas apenas como cálculo aproxi­ quadro profético do juízo final, que espe­ mado. O u^o dessa palavra para deter­ ra todas as pessoas. A ênfase recai sobre o padrão ou princípio de julgamento, que minar capacidades pessoais ou “ dons” é a verdadeira relação de um a pessoa teve origem nesta parábola. com Cristo, expressa no seu ministério 9. O Juízo Final: Servir a Cristo em aos pequeninos do seu povo, especial­ Servir aos Outros (25:31-46) mente em suas situações de necessidade. Esta passagem ineludivelmente pro­ 31 Quando, p ois, v ier o F ilh o do h o m em , n a vém de Jesus, e preserva alguns dos en­ sua glóH a, e todos os an jos com e le , en tão se assen tará no trono d a su a glória; 3 2 e d ia n te sinamentos mais profundos e de longo 279


alcance (cf. J. Jeremias, Parables, p. 209). Ela se encontra apenas em Mateus, provavelmente preservada por cristãos judeus. Tem marcante afinidade com passagens como Lucas 10:30-37 e Tiago 1:27; 2:14-17. Ela vê todas as nações. Igreja e mundo, sendo julgados pelos mesmos padrões — amor refletido no mi­ nistério aos outros. Este não é apenas um espírito humanitário, pois é algo que a pessoa tem em sua relação com Cristo. A passagem é fortemente cristológica. Jesus nunca se refere a si mesmo expli­ citamente, mas não pode haver dúvidas de que, ao falar de Filho do Homem, o Rei e Senhor, Jesus está referindo-se a si mesmo. Aquele que assumiu a humilde forma de servo, e que foi escarnecido, rejeitado e crucificado, por fim voltará como o glorioso Filho do Homem, o Rei, para declarar o juízo de Deus sobre todos os homens. Aparecendo no trono da sua glória como Rei, o Filho do Homem julgará todas as nações. Nessa ocasião, ele sepa­ rará os justos dos malditos da maneira como um pastor separa as ovelhas dos cabritos. Como na parábola do joio e da rede e em outras passagens em Mateus, aqui é ensinado que os bons e os maus vivem juntos no mesmo mundo e até nas mesmas estruturas religiosas. Na Pales­ tina, ovelhas e cabritos muitas vezes vi­ viam misturados no mesmo rebanho. De noite, eles eram separados, pois os cabri­ tos requeriam mais proteção do frio do que as ovelhas. As ovelhas e cabritos sâo facilmente diferenciados pelo pastor, mas os justos e os malditos nem sempre reconhecem a sua identidade, e são dife­ renciados, com certeza, apenas por Deus. Em certo sentido, Jesus iião é tanto o juiz, mas declara juízos já feitos pelo Pai. Os que estâo à direita, lugar costumeiro de honra e poder, são os benditos, que pertencem ao seu Pai. A palavra bendi­ tos (eulogêmenoi) os designa como obje­ tos da bênção de Deus. Não é a mesma palavra que introduz as beatitudes (ma280

charioi), onde se dá a entender um esta­ do de felicidade. Os benditos devem possuir por heran­ ça o reino. Precisamente os que se sub­ metem ao governo de Deus são os que herdam esse reino. Paradoxalmente, as pessoas que se dão a si mesmas, pro­ curando apenas servir, e não reinar, são as que reinam com Cristo (cf. 5:3; Luc. 12:32; Rom. 5:17; Apoc. 1:9; 5:9 e s.; 22:5). Esta bendita herança é preparada para eles desde a criação. Não é uma dádiva imposta, um acidente, nem algo atribuível à iniciativa humana. É a rea­ lização de algo provindo da provisão deliberada de Deus. A ênfase do parágrafo é sobre o padrão pelo qual todos os homens são julgados. Este é o “exame final” , e as perguntas são anunciadas antecipadamente! Seria menos do que esperteza preparar-se para o grupo errado de perguntas, quando as que vão ser feitas no exame final são expostas antecipadamente. O Rei teve fome, sede, foi forasteiro, esteve nu, enfermo e na prisão; e os justos minis­ traram a ele! A identificação de Jesus com o seu povo é um ensinamento proe­ minente no Novo Testamento (cf. At. 9:4 e s.; I Cor. 1:13; 8:12). Ao ministrar aos necessitados, a pessoa ministra a Cristo. É interessante que aqueles que foram reconhecidos como tendo desta forma ministrado a Cristo não haviam perce­ bido que o estavam fazendo. Esta é a idéia. Não eram atos religiosos calcula­ dos, para serem bons, para agradarem a Deus, ou para obterem recompensa. Eram atos espontâneos, a reação normal dessas pessoas a outro ser humano neces­ sitado. Coloque um rato diante de um gato, e ver-se-á o que é um gato; coloque uma pessoa necessitada diante de um verdadeiro filho de Deus, e ver-se-á o que é um filho de Deus. A conclusão nâo é que a bondade está nos próprios atos. Motivos egoísticos que velam a hipocrisia podem levar uma pes­ soa a alimentar os famintos, dar água aos sedentos, dar hospitalidade aos forastei­


ros, vestir os nus, ou visitar os doentes e presos. São os atos que refletem o que a pessoa é que são importantes. O que são os justos percebe-se mediante o seu rela­ cionamento com aquele que serviram, ao servirem ao seu povo. Embora o ministério às necessidades dos outros seja indubitavelmente o crité­ rio de juizo enfatizado aqui, a omissão cometida por Jesus, de outras exigências, não as exclui (McNeile, p. 370). Esta passagem corta fundo, desvendando o que basicamente caracteriza uma pessoa como filha de Deus, e não ousamos ne­ gligenciar as suas implicações meridianas. Nunca Jesus deu tanto valor a prá­ ticas cúlticas (religiosas), ou ortodoxia doutrinária, como deu à bondade para com os outros, que reflete a afinidade com ele. Os que precisam apartar-se como mal­ ditos são julgados pelo mesmo padrão. Nâo são as pessoas que cometeram o que é normalmente considerado como atos pecaminosos grosseiros, mas a sua culpa é no que elas deixaram de fazer (e ser). Elas nâo haviam percebido que estavam deixando de lado o Senhor. A sua respos­ ta dá a entender que, se elas houves­ sem reconhecido o Senhor na pessoa da­ queles mais pequeninos dos seus irmãos, teriam ministrado a ele. Mas a sua defesa foi a sua condenação. Se uma pessoa precisa perguntar quem é necessitado, demonstra não pertencer Aquele cujo amor é indiscriminado, que oferece as suas dádivas a bons e maus igualmente (cf. 5:45). Os destinos contrastantes são castigo etemo e vida eterna. O primeiro é o fogo etemo, preparado não para o homem, mas para o Diabo e seus aqjos. O último, é o destino pretendido e preparado para o homem. Deus não deseja a perda de ninguém; o que ele quer é a salvação de cada um (cf. 18:14; II Ped. 3:9). Fogo etemo ou castigo etemo representa o des­ tino escolhido pelo próprio homem, e não a vontade de Deus para com o homem. O padrão pelo qual todas as nações sâo

julgadas não está fora do alcance de ninguém. O “fruto” pelo qual cada um é conhecido (cf. 7:20 e s.) é o formado em cada pessoa que seja receptiva para com Deus, tendo a fé que lhe torna possível receber as suas dádivas e súbmeter-se aos seus requerimentos. Castigo etemo é uma expressão da qual muitas pessoas fogem, e que muitas se recusam a atribuir a Jesus, ou tentam explicar como significando algo diferente do que está claro. (Veja Broadus, p. 511-15, para uma revisão completa e coe­ rente dos argumentos lingüísticos, meta­ físicos e morais.) Castigo é tradução da palavra grega kolasis, usada, a princípio, em relação à poda (de uma árvore ou videira), e de­ pois, em relação à repressão, ou punição. No grego clássico, ela diferia da palavra timoria, porque esta última significava vindicação, ou vingança. Aristóteles afir­ mou que kolasis, castigo, é em favor do que o sofre, mas timoria é para a sa­ tisfação do que o infUge. Em o Novo Testamento, o termo timoria é usado apenas em Hebreus 10:29. Kolasis dá a idéia de penalidade, em algumas passa­ gens do Novo Testamento (cf. At. 4:21; 22:5; 26:11). Não pode ser sustentado, admitido, portanto, que em nosso texto kolasis deva ser entendido apenas como castigo, e não como pena. A palavra por si mesma não decidirá essa divergência. Eterno é a tradução do grego aiõnios, sendo a palavra idêntica usada para fogo etemo (v. 41), castigo eterno (v. 46) e vida etema (v. 46). Não há nada que sugira coisa diferente de que se pretende o mesmo significado em cada caso em que a palavra é usada. É verdade que aiõnios pode ser usada mais qualitativa­ mente do que quantitativamente, em co­ nexão com “vida” , mas aqui a idéia de duração nunca se perde, e parece ser a pretendida aqui. Há incerteza quanto ao significado da raiz por detrás de aiõnios, mas a mesma raiz sublinha aiõn (era ou época ou idade), bem como aiei e aei (sempre). O equivalente latino é aevum. 281


de que provém ae (v) ternus (eterno), bem como o alemão ewig (perene) e o inglês ever (para sempre). No versículo 46, tanto castigo como vida são descritos pelo mesmo termo, aparentemente, co­ mo perenes (cf. Dan. 12:2). Na LXX, aiõnios corresponde ao he­ braico holam e pode ser usado acerca de coisas que existiram por longo tempo no passado. Quando usada acerca do futu­ ro, essa palavra raramente dava a plena idéia de eternidade, denotando, pelo contrário, a de perpetuidade, permanên­ cia ou inviolabilidade. Quando o pensa­ mento judaico começou a se centralizar mais na vida futura, a idéia de “eterno” se tornou mais proeminente, fosse qual fosse a raiz de aiõn. Em o Novo Tes­ tamento, como “vida eterna” é conside­ rada como uma realidade presente, aiõ­ nios passou a enfatizar mais o aspecto espiritual ou qualitativo daquela vida (McNeile, p. 262 e s.). A idéia de dura­ bilidade algumas vezes fica em segundo plano; mas nunca se perde, e algumas vezes se move para o primeiro plano, como aparentemente é o caso na passa­ gem em consideração. Sò uma mente doentia pode encontrar prazer no pensamento de um destino de castigo eterno, mesmo que kolasis seja entendido em seu sentido mais brando. Mas a insatisfação com a realidade nâo a torna diferente. O próprio Deus não tem prazer no destino dos ímpios; e este representa não a sua vontade ou intenção para o homem, mas, pelo contrário, a rejeição da sua vontade. Mas esta não é a idéia. Para ser livre para confiar em Deus, o homem precisa ser livre para desconfiar dele. Para ser livre para en­ contrar a vida perdendo-a, o homem precisa ser livre para perdê-la tentando salvá-la. Deus fez o homem livre, sufi­ cientemente livre para dar as costas a Deus e andar pelo seu próprio caminho. Deus faz tudo, menos compelir o homem a agir de outra forma, e por isso não o obriga a nada. Obrigar seria por si mes­ mo destruir o homem, pois roubaria do 282

homem uma liberdade sem a qual ele não pode ser verdadeiramente um homem. O pensamento de que o homem pode esco­ lher um caminho que leve à sua autodes­ truição é terrível, mas não é menos real por ser terrível. Pode ser perguntado o que significa fogo na expressão fogo eterno. O fato de fogo ser empregado em várias formas nâo literais em o Novo Testamento deixa aberta a questão do seu uso aqui. Broa­ dus (p. 511) observa sobriamente: “ Se castigo eterno inclui qualquer realidade física correspondente ao fogo, não o sa­ bemos; haverá algo tão mau como o fogo, e, sem dúvida, pior, pois nenhuma ima­ gem terrena pode ser adequada.” Enten­ der fogo em um sentido não literal não é nem rejeitar o que ele simboliza, nem reduzir a sua seriedade, da mesma forma que considerar as ruas de ouro transpa­ rente (Apoc. 21:21) como simbolismo do esplendor do céu não roubaria ou dimi­ nuiria o seu significado. Seja o que, em particular, signifique fogo eterno ou cas­ tigo eterno, fala-se de um destino que é bem oposto à vida etema ou à herança do reino que Deus preparou para o homem. O Novo Testamento ensina claramente que haverá graus de punição, bem como de recompensa (cf. 11:22; Luc. 12:47; II Cor. 5:10), mas isso não faz parte da discussão aqui. 10. Predições Acerca da Traição (26:1,2) 1 E , havendo J esu s concluído todas esta s p ala v ra s, d isse a o s seu s d iscíp u los: 2 Sabeis que daqui a dois d ia s é a p á sco a ; e o F ilh o do hom em se r á en tregu e p a ra ser crucificado.

Este é o sumário final colofão de M a­ teus, marcando o término do quinto dis­ curso principal (cf. 7:28; 11:1; 13:53; 19:1). Ele marca também a transição para a grande seção da paixão e ressur­ reição de Jesus, o clímax do Evangelho. A Páscoa era a festa anual dos judeus, que comemorava a sua libertação do ca­ tiveiro egípcio. Caía no dia quatorze de Nisã (março-abril). O cordeiro pascoal


era imolado no Templo no dia quatorze, e comido entre o pôr-do-sol e a meianoite, no dia quinze, sendo que o novo dia começava ao pôr-do-sol. A quarta predição de Jesus acerca de sua morte (cf. 16:21 e ss.; 17:22 e s.; 20:17 e ss.) a relaciona com a Páscoa. Jesus não estava buscando a morte, mas previa-a e aceitava-a. Ele não achava que os seus inimigos eram meros instrumen­ tos escolhidos como parte do drama, pois julgava o ato deles como traição. Jesus marchou para a morte, oferecendo-se ao seu povo para aceitação ou rejeição, e o fez como algo que precisava fazer. Por outro lado, o que os homens ímpios fizeram a ele é chamado “rejeição” (21: 42; João 1:11; At. 4:11; Rom. 9:32; I Ped. 2:7), “traição” (26:2; Luc. 6:16) e “homicídio” (I Tess. 2:14 e s.; At. 7:52). No fato de ele dar a sua vida há reden­ ção, por detrás do que está o amor e a vontade de Deus. O ato de tirar essa vida é a iniqüidade do homem em sua ex­ pressão mais refinada (cf. At. 2:23).

tação da morte de Jesus. Eles eram capa­ zes de reinterpretar a morte de Jesus à luz da ressurreição e das Escrituras, às quais se voltavam de novo, procurando orientação. De fato, eles não apenas in­ terpretavam Jesus pelas Escrituras, mas chegaram a uma nova compreensão das Escrituras através de Jesus (Lohse, p. 16). Mateus especialmente considera que, desta forma, a interpretação rabíni­ ca das Escrituras foi superada. Mateus segue Marcos bem de perto, suplementando o seu relato com algumas adições (cf. 26:52; 27:3-10, 19, 24 e s., 51-53, 62-66) e alusões ao Velho Tes­ tamento (26:54; 27:34,43).

XVI. Prisão, Crucificação e Ressurreição de Jesus (26:3 — 28:20)

Os principais sacerdotes e os anciãos do povo eram os representantes saduceus e fariseus do Sinédrio. José Caifás era o sumo sacerdote (c. 18-36 d.C.) e, desta forma, presidente do Sinédrio (Josefo, Antig. 18:2). O Sinédrio se reunia infor­ malmente no pátio, literalmente “corte” (aulè) da casa do sumo sacerdote. Embora os fariseus tivessem sido os primeiros a se oporem a Jesus, devido aos conflitos acerca da Lei, parece que os saduceus assumiram a liderança, por fim. A sua oposição a Jesus era mais política do que religiosa, pois eles per­ cebiam que estava sendo desafiada a sua autoridade sobre o Templo, mas também estava sendo desafiada toda a sua relação com os romanos. Como colaboracionistas com Roma, dependendo de Roma para a sua nomeação para os cargos que ocupa­ vam, eles temiam qualquer coisa que pa­ recesse potencialmente revolucionária. Eles apressadamente deliberaram não para decidir acerca dos alvos, mas dos

A narrativa da paixão foi, provavel­ mente, a parte mais antiga da tradição do evangelho a tomar forma. A morte de Jesus veio como golpe severo contra os mais íntimos seguidores de Jesus, a des­ peito dos seus esforços para prepará-los para isso. A morte na cruz, à mão dos romanos, significava que externamente ele morreu da forma que um criminoso morre, especialmente um inimigo do Es­ tado. A morte de Jesus requereria explica­ ções tanto para os seguidores de Cristo quanto para os seus inimigos. Isto exigia uma declaração plena, em que seria mos­ trado historicamente como Jesus cami­ nhou para a morte, mostrando a sua ino­ cência e a culpa dos que se conluiaram para crucificá-lo. Teologicamente, os cristãos precisariam de uma reinterpre-

1. Eventos Antecedentes (26:3 — 27:26) 1) A Conspiração (26:3-5) 3 E n tão os principais sa cerd o tes e os a n ­ ciãos do povo se reu n iram no pátio da c a sa do sum o sacerd ote, o qual se c h a m a v a C ai­ fá s; 4 e d elib eraram com o prender J esu s à traição, e o m a ta r. 5 M as d iziam : N ão du­ rante a festa , p ara que não h a ja tum ulto entre o povo.

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meios. Eles já haviam decidido matar Jesus. O seu problema era consegui-lo com o mínimo de riscos de excitação da parte da multidão. Visto que Jerusalém estava apinhada de adoradores judeus durante a Páscoa, e visto que sentimen­ tos patrióticos se elevavam muito nessa época, eles planejaram evitar qualquer ação durante a Páscoa. Eles concorda­ ram em duas coisas: Jesus precisa ser morto, mas não durante a Páscoa. Pare­ ce que não haviam encontrado um plano adequado, até que Judas lhes ofereceu ajuda inesperada. 2) lesus Ungido em Betânia (26:6-13) 6 E stando J esu s em B etâ n ia , e m c a sa de Sim ão, o leproso, 7 ap roxim ou-se d ele u m a m ulher que trazia um v a so de alab astro cheio de b á lsam o precioso, e lho derram ou sobre a ca b eça, estando e le reclin ad o à m e ­ sa. 8 Quando os discípulos v ira m isso , in d ig ­ naram -se, e d issera m ; P a r a que e ste d e s­ perdício? 9 P ois este b álsa m o podia se r v e n ­ dido por m uito dinheiro, que se d aria aos pobres. 10 J esu s, porém , p ercebendo isso , d isse-lhes: P or que m o lesta is e sta m ulher? pois praticou u m a boa a çã o p ara com igo. 11 Porquanto o s pobres sem p re os ten d es convosco; a m im , porém , nem sem p re m e tendes. 12 Ora, derram ando e la e ste b á ls a ­ mo sobre o m eu corpo, fê-lo a fim de p rep a ­ rar-m e p ara a m inha sep u ltu ra. 13 E m v e r ­ dade vo s digo que onde quer que for pregado em todo o m undo e ste evan gelh o, tam b ém o que ela fez se r á contado p ara m em ó ria su a.

A história em Mateus é quase idêntica à de Marcos 14:3-9. O paralelo em João 12:1-8 é tão notável que, a despeito das diferenças, deve ser reconhecido como descrevendo o mesmo incidente. João identifica Maria, irmã de M arta e Lá­ zaro, como a mulher que ungiu Jesus. João não diz que a unção teve lugar na casa de Maria, mas o seu relato parece implicar este fato. O principal problema surge das datas apresentadas; João colo­ ca o acontecimento seis dias antes da Páscoa, enquanto em Marcos e Mateus ele se dá dentro de dois dias antes da Páscoa. Broadus (p. 517 e s.) provavel­ mente é correto em preferir a data apre­ sentada por Mateus e Marcos. Em João, 284

Maria unge os pés de Jesus, enquanto em Mateus e Marcos a mulher sem nome derramou (não há palavra para o lho no texto grego) sobre a cabeça, deixando a possibilidade de que também o fosse sobre os pés. A história em Lucas 7:36-50 difere tanto que sugere um outro inci­ dente. Simão é conhecido como o leproso, mas presumivelmente a lepra fora cura­ da, pois, de outra forma, a lei judaica teria proibido a sua presença à mesa de um banquete. Claro que a referência es­ pecífica é apenas à casa de Simão, dei­ xando aberta a questão da sua presença. Marcos fixa o valor do ungüejtito^mjre-, zentos denários, cerca de um ano de salário paralõm trabalhador comum (cf. Mat. 20:2, em que pagava-se um dená­ rio por dia aos trabalhadores). Os discí­ pulos protestaram contra o desperdício, argumentando que aquele dinheiro po­ deria ter sido dado aos pobres. Jesus repreendeu os discípulos, fazendo-os lembrar que haveria sempre pobres à dis­ posição deles, para serem servidos, ao passo que ele não estaria com eles sem­ pre. A história serve para equilibrar a ên­ fase de 25:31-46, onde o ministério aos necessitados é considerado de suma im­ portância. O extravagante ato dessa mu­ lher teve também o seu lugar. Ela prati­ cou uma boa ação. Nem todo serviço cristão precisa ser “prático” ou dirigido aos pobres. Expressões pródigas de gra­ tidão ou amor também têm o seu lugar. Jesus afirmou que a mulher havia der­ ramado o bálsamo sobre o seu corpo, a fim de prepará-lo para a sepultura. M a­ teus não desvenda os motivos da mulher, mas Jesus indica o efeito. Ele o recebeu como um ato de amor na hora em que se aproximava da morte, ainda mais signifi­ cativo em uma ocasião quando um dos doze estava para traí-lo, outro para negálo e todos para abandoná-lo. A história tem sido contada onde quer que o evan­ gelho tenha sido pregado, como Jesus predisse.


ram : Onde q u eres que fa ça m o s os p rep a ­ rativos p ara co m eres a p áscoa? 18 R esp on ­ 14 E n tão um dos doze, ch am ad o Judas deu e l e : Ide à cid ad e, a um certo h o m em , e dizei-lhe: O M estre diz: O m eu tem po e stá Iscariotes, foi ter c«m os p rin cip ais s a c e r ­ próxim o; e m tua c a sa cele b ra rei a p á sco a dotes, 13 e d is s e : Que m e q u ereis dar, e eu com os m eu s d iscíp u los. 19 E os discípulos vo-lo en tregarei? E e le s lhe p esa ra m trinta fizeram com o J e su s lh es ordenara, e p re ­ m oedas de p rata. 16 E d esd e en tão b u sca v a pararam a p á scoa . ZO Ao an oitecer, recliele oportunidade p ara o en tregar. nou-se à m e sa co m os doze d iscíp u los; Z1 e, Judas recebeu trinta moedas de prata enquanto co m ia m , d isse : E m verd ad e vos (shekels, ou didracmas, que valiam cerca digo que u m de vós m e trairá. Z2 E e le s, de 120 denários) pela traição de Jesus profundam ente contristados, co m eça ra m (veja Zac. 11:12) e mais tarde as devol­ cada um a perguntar-lhe: P orven tu ra sou veu, e cometeu suicídio (27:3-10). O mo­ eu. Senhor? Z3 R espondeu e le : O que m ete com igo a m ã o no p rato, e ss e m e trairá. tivo todo por detrás do seu ato não é 24 E m verd ad e o FUho do h om em v a i co n ­ desvendado. Talvez Judas seguisse Jesus form e e stá escrito a seu resp eito; m a s ai daquele por q u em o F ilh o do h om em é tr a í­ na expectativa de Jesus se tornar o rei de do! b om se ria para e s s e h om em se não Israel, comõ'Messias poKticq. Se assim houvera n ascid o. Z5 T am b ém Ju d as, que o foi, ele foi o primeiro dos doze a entender traía, perguntou: P orven tu ra sou eu , R abi? Jesus ao pé da letra, quando Jesus rejei­ R espondeu-lhe J esu s: Tu o d isseste.

3) Judas Negocia a Traição (26:14-16)

tou esse papel. Será que Maria de Betânia e Judas fo­ As festas da Páscoa e dos Pães Ãzimos ram os primeiros a entender que Jesus na eram originalmente duas festas distintas, verdade iria morrer? Se assim foi, eles mas intimamente relacionadas (cf. Êx. reagiram de maneiras diferentes: uma 12:1-8, 18-20; Lev. 23:5 e s.; Núm. 28: “desperdiçando” bálsamo caríssimo so­ 16-25). A Páscoa caía em quatorze de bre o seu Senhor e o outro traindo-o por Nisã (entre março e abril, mas era o cerca de cento e vinte denários — o preço primeiro mês para Israel), sendo imolado de um escravo (Êx. 21:32). Possivelmen­ o cordeiro na tarde do dia quatorze (cf. te, Judas esperava uma recompensa Núm. 9:3) e a refeição pascoal comida maior, mas descobriu-se à mercê dos após o anoitecer. Desta forma, a Páscoa principais dos sacerdotes, quando se tor­ se comemorava de quatorze a quinze de nou seu informante. Nisã. A Festa dos Pães Ázimos continua­ O que Judas traiu (“entregar” e va por sete dias. As duas festas estavam “trair” são traduções da mesma palavra tão intimamente relacionadas, que pas­ grega) foi o lugar em que Jesus podia ser saram a ser referidas como uma festa de preso com a menor publicidade possível. oito dias, chamada por um dos nomes ou Ele os guiaria a Jesus durante a noite. por ambos (cf. Josefo, Antig. 2,15; 3,10; Essa ajuda inesperada fez com que os Guerras 5,3; Mar. 14:1,12; Mat. 26:17; principais sacerdotes se movimentassem Luc. 22:7). mais cedo do que haviam planejado. A Há um conflito aparente entre a decla­ frase um dos doze expressa o sentimento ração explícita dos Sinópticos, de que contínuo da Igreja em relação a essa trai­ Jesus comeu a Páscoa, e o que parece a ção por parte de um apóstolo de confian­ insinuação de João, de que Jesus foi ça. A história faz também parte da ho­ preso antes que a Páscoa fosse comida nestidade da Igreja, gue se recusa a es­ (João 13:1; 18:28; 19:14). Também pode conder do mundo a sua vergcmha. haver uma insinuação feita por Paulo, de que Jesus foi crucificado na hora em que 4) A Páscoa Com os Discípulos (26:17- 0 cordeiro da Páscoa era imolado (cf. 25) 1 Cor. 5:7). Mas se “Páscoa” , no Evange­ lho de João, é usada para designar a festa 17 Ora, no p rim eiro d ia dos p ã e s ázim os, vieram os discípulos a J e su s, e p ergu n ta­ de oito dias. Páscoa e Pães Ázimos, há 285


nhor? expressa que os onze não suspei­ alguma possibilidade de conciliar essa tavam de Judas, e também que eles não narrativa com os Sinópticos. Parece que haviam sido feitos prepara­ estavam absolutamente certos da sua tivos prévios, de uma sala, para Jesus lealdade. A partícula negativa dá à per­ celebrar a Páscoa com os doze (cf. Mar. gunta um tom atenuado: “Não sou eu, sou?” Jesus não designou o culpado de 14:13 e s.). O Mestre diz é uma fórmula maneira tão clara a revelá-lo aos outros, simples, que surgiu no mesmo circulo de mesmo ao referir-se àquele cujas mãos ouvintes em que o “Eu, porém, vos digo” estavam com as dele no prato. Todos acarretava absoluta autoridade, como o “assim diz o Senhor” do Velho Testa­ molhavam nacos de pâo em uma tijela mento (cf. Lohmeyer, p. 352). Jerusalém comum, e pode ser que vários o tives­ sem feito ao mesmo tempo. A identifica­ estava sempre apinhada de peregrinos judeus, vindos de outras terras, por oca­ ção do traidor progride em três passos: sião da Páscoa, e a refeição pascoal um dos doze, alguém que estava pondo a precisava ser comida dentro dos muros mão no prato, e, então. Judas (Loh­ da cidade. Devido ao problema de hos­ meyer, p. 352). pedagem, todos os habitantes da cidade O versículo 24 contém duas declara­ eram obrigados a abrir as suas casas para ções muito cuidadosamente formadas e os visitantes que vinham adorar (Lohse, equilibradas: uma dizendo que o Filho p. 45). Era requerido que os cordeiros do homem (a partícula grega men sugere “por um lado”) vai conforme as Escritu­ pascoais fossem imolados no Templo, à tarde, e depois preparados e comidos nos ras previam, mas (a partícula grega de lares. A palavra tempo (l^airos) não signi­ sugere “por outro lado”) ai (coitado!) fica, necessariamente, “época de crise” , daquele por quem o Füho do homem é como distinção da idéia meramente cro­ traído. Nenhuma vida teria sido pior do nológica (chronos), mas parece que essa que a que ele vivera. Judas fez a mesma pergunta que os onze: Porventura sou eu, é a idéia aqui. Os discípulos comple­ taram os preparativos para a refeição, Rabi? A resposta de Jesus é algo enig­ que, se era realmente uma refeição pas­ mática: Tu o disseste. Esta expressão coal, consistia de um cordeiro assado, parece ser idiomática, significando “Sim” pão ázimo, ervas amargas e vinho. Con­ (compare o v. 64 com Marcos 14:62). tudo, nenhuma referência é feita ao cor­ 5) Instituição da Ceia do Senhor (26: deiro, às ervas amargas, ou a outras 26-29) características da refeição pascoal, ná^íO^ descrição da Ültima Ceia. O silêncio e m A ' *6 Enquanto co m ia m , J esu s tom ou pão, e o partiu e o deu aos discíp u ­ relação a essas características não prova, if- abençoando-o, los, dizendo: T om ai, co m ei; isto é o m eu porém, que a Ultima Ceia não foi uma corpo. 27 E , tom ando um c á lic e , rendeu Páscoa; e nem pode ser dito, conside­ graças e deu-lho, d izen d o; B eb ei dele to d o s; 28 pois isto é o m eu san gu e, o san gu e do rando-se o pão e o vinho, que era uma pacto, o qual é derram ado por m u itos, para Páscoa, pois esses alimentos pertenciam rem issão dos p ecad os. 29 M as digo-vos que a refeições comuns. Na observância da desde agora não m a is b eb erei d este fruto da refeição, os participantes se reclinavam videira a té a q u ele dia e m que con vosco o beba de novo, no reino de m eu P a i. em divãs. Daí o reclinou-se. Há quatro narrativas da Ceia do Se­ O anúncio feito por Jesus de que um nhor nb Novo Testamento, diferindo algo dentre eles iria traí-lo chocou e entris­ em ênfase (cf. Mar. 14:22-25;_j^c. 22: teceu os doze. O fato de eles terem feito a 14-23; I Cor. 11:17-34).(M ateu^segue interrogação: Porventura sou eu, Se( ^ a r c o ^ e perto, ao enfatizar o aspecto 47 Cf. J. Jeremias, The Eucharistie W ords of Jesus, tr. còiilfãfual da Ceia. O texto é discutido N orm an Perrin ed. rev., New York: Scribner’s, 1966\ erq^^K^>,de forma que a ênfase 2 rinj_ p. 15-88, p a ra um a descrição da Páscoa. 286


cipal é incerta. ,Paulo)é o autor da narrativá inais antiga db Novo Testamento, e faz a apresentação mais completa: me­ morial, concerto, coniunhão (kçinõnia) e es£^Mçla esçaíológica. X proeminência da Ceia na vida cristã primitiva é uma íorte evidência de que Jesus previu a sua morte, e indicou o seu significado aos seus seguidores. Embora não seja explícito que Jesus comeu e bebeu com os doze, ele clara­ mente serviu como hospedeiro. Na maior parte do mundo, um^refeição partilhada sempre significou comunhão, e isso era especialmente verdadèTrd pára os judeus. A Ceia do Senhor não tem um nome, dbminante em o Novo f estamejnto, como o tem o batismo; mas férmos como aben­ çoado e graças (v. 26 e s.), pacto (v. 28), “comunhão” (I Cor. 10:16, redação tex­ tual marginal e “ memória” (I Cor. 11:24 e s.) são empregados nas narrativas da Ceia. A Ceia é um memorial w recor.-,, dação de Jesus^ especialniente da^^su^^ morte. E a expressão de üm a eiperança, prevêndò a sua volta triunfáhte. E um pacto com Cristo e de uns com os outros, através da vida que ele compartilhou (sangue). É uma comunhão com Cristo e seu corpo, a Igreja (I Cor. 10:16). Como o hospedeiro, Jesus tomou um pão, e, abençoando-o, o deu aos discipu­ los para comer, dizendo: isto é o meu corpo. Antes de tudo, o pão simboliza o corpo de Jesus, dado na cruz. Atóm disso, ele simboliza a sua Igreja, o corpo de Cristo, embora seja nos escritos paulinos que se encontre a explicação da doutrina da Igreja como o corpo de Cris­ to (cf. Rom. 12:4 e s; I Cor. 10:16; 12:12-27; Col. 1:18,24; 2:16-19; 3:15; Ef. l:2 2 e s.; 4:1-16). Claro que o pão não se torna em ver­ dade o corpo de Cristo. Permanece pão em essência e em sua estrutura básica (aparência, gosto, etc.). Mas, embora o pão permaneça sendo pão, e como tal seja um símbolo, simboliza aquilo que p o r ji mesmo está além, doLsimbolismo., Jesus não é um símbolo, e nem a sua

Igreja, o corpo de Cristo. Comer juntos, em confiança, amor, aceitação, grata re­ cordação e esperança, é mais do que sim­ bolismo. A _G eia£m preg^j^ pão e cálice; mas, se é gehufha, é m a i s ^ que simbolismq.__Nãp é mágica, nem mero ’ ‘ símbolo. É um grato ato de adoração, 'memória, esperança, comunhão e pro­ clamação, empregando simbolismo. Partiu indica um ato necessário para se comer e compartilhar o pão. A idéia de que esse ato enfatiza o “corpo partido” de Jesus provém de uma adição poste­ rior a I Coríntios 11:24, onde a versão correta é: “Isto é o meu corpo, que é por vós.” João 19:33-36 ressalta o fato de que nenhum osso foi quebrado. O pão sim­ boliza todo o corpo de Cristo. dadõ~nõ~ "Gólgota, continuando no fato de ser per­ sonificado em sua Igreja. “Partir o pão” é uma forma de dizer “comer juntos” sem nenhuma atenção especial ao fato de se dividir em pedaços um pão. As traduções em português traduzem bem o versículo 27, mostrando que todos se refere aos discípulos^ e não ao vinho. A versão inglesa do Rei Tiago é ambígua a esse respeito. A frase grega só pode significar bebei dele todos, e não “bebeio todo” . O fato de Judas ter permanecido durante toda a Ceia (Luc. 22:21) não significa que ele merecia esse privilégio, mas expressa o fato de que Jesus deixou aberta para Judas uma porta para o arre­ pendimento, até o fim (João 13:26-30). O cálice de vinho simboliza o sangue do pacto, derramado por Jesus. Várias passagens do Velho Testamento formam os antecedentes desta frase. O pacto^dado a Moisés no Sinai foi selado quando sangue de bois foi espargido sobre o altar "^nõbre o povo, simbolizando a ligação ^ t r e Deus e Israel (Êx. 24:4-8). Jeremias declarou uma nova aliança, cÔín á lei ' escrita não em tábuas de pedra, mas nos corações dos homens que vieram a co­ nhecer a Deus mediante o perdão de pecados (31:31-34). O cálice simboliza o sangue de Jesus, derramado na consumação da nova ali­ 287


ança, acerca da qual Jeremias escrevera. Sangue significa a própria vida derrama­ da ou dada (Gên. 9:4). a referência não é primariamente ao sangue de um animal sacrificial, embora Jesus seja considera­ do como o Cordeiro Pascoal, mas a êi^ fase sobre a entrega da sua vida pela humanidade, e para ela. Significa não apenas ter aplacado o Pai, mas uma vida nova para o homem, na remissão de pecados (cf. Lohse, p. 55 e s.). O costu­ me dos seguidores de Jesus, de beberem do cálice, significa a idéia ulterior de que a nova aliança precisa ser “escrita no profundo dos corações” . Jesus morreu por nós, mas nós precisamos “morrer” com ele, se é para a sua morte se tornar salvadora para nós, como é ensinado em passagens, como Marcos 10:38, Lucas 12:50, João 12:24 e ss., Romanos 5:1-11, Gálatas 2:20 e Colossenses 2:20 (cf. Stagg, New Testament Theology, p. 12248). Dizer que a morte de Jesus é por mui­ tos não significa que é limitada apenas a alguns. Trata-se de uma expressão bíbli­ ca para_deãgnaL a Jpdos, Todo o minis­ tério de Jesus foi de reconciliação, e isso tem lugar na remissão dos pecados (Ef. 2:13-16). A Ceia do Senhor é um antegozo do “Banquete Messiânico” , no fim dos tem­ pos. A Ültima Ceia não foi um a despe­ dida, mas uma garantia dê que o Reino do Pai iria prevalecer, e que o povo de Jesus seria novamente reunido no Ban­ quete Messiânico, debaixo desse governo soberano. A Ceia termina com uma nota ^ triunfante: a morte de Jesus não é derro­ ta, mas vitória. Embora Jesus não mais venha a beber do fruto da videira (vinho) nesta vida, ele o beberá novo (literal­ mente, “fresco”), com o seu povo no reino de seu Pai. Ah ele beberá uma nova qualidade (kainon) de vinho, o cumpri­ mento daquele prefigurado na Ceia do Senhor. O termo “eucaristia” é derivado do grego traduzido como rendeu graças (eucharistêsas), no versículo 27. É uma 288

“ação de graças” , bem como um a grata memória, uma confiante esperança e uma comunhão em um novo pacto do povo que em Cristo experimentou per­ dão. É uma das ironias da história o fato de estarem os cristãos tão divididos com relação à Ceia, a qual se relacionava principalmente com a sua unidade. Em Mateus e Marcos não há ordem para repetir o ritual. Tal ordem é explí­ cita no relato de Paulo, e no disputado texto de Lucas 22:19. 6) Jesus Adverte os Discipulos Quanto à Traição, e Pedro Protesta (26:30-35) 30 E , tendo cantado um hino, sa íra m p ara o M onte d as O liveiras. 31 E n tão J esu s lh es d is s e : Todos vós e sta noite vos esca n d a liza ­ reis d e m im ; pois e stá escrito: F e rirei o pastor, e a s ov elh a s do rebanho se d isp er­ sarão. 32 T odavia, depois que eu ressu rgir, irei adiante de v ó s para a G aliléia. 33 M as Pedro, respondendo, d isse-lh e: Ainda que todos se esca n d a lizem de ti, eu nunca m e escan d alizarei. 34 D isse-lh e J e su s: E m v e r ­ dade te digo que e sta noite, a n tes que o galo cante, três v e z e s m e n eg a rá s. 35 R espondeulhe P edro: A inda que m e se ja n ecessá rio m orrer contigo, de m odo algu m te n egarei. E o m esm o d issera m todos os discip u los.

O hino cantado no término da Ceia foi, provavelmente, a última parte do Hallel de Páscoa (louvor, como na palavra “Ale­ luia” , “louvai a Deus”), consistindo dos Salmos 115 — 118. O Monte das Oüveiras ficava a nordeste de Jerusalém, se visto do Templo, através do Vale de Cedrom. Escandalizareis (skandalisthésesthe) aqui significa tropeçar. Os discí­ pulos iriam falhar para com Jesus, mas com exceção de Judas, todos mais tarde acorreriam a ele (cf. Lucas 24:33 e s.). Em Mateus isto é visto como o cumpri­ mento de Zacarias 13:7 e ss. O rebanho seria testado e dispersado, mas iria tam­ bém ser “refinado” . A morte de-Jesus seria uma experiência abaladora para os seus seguidores, mas além da sua morte estava a sua ressurreição, que os reuni­ ria. Mateus e Marcos ressaltam a Gali­ léia como cena das manifestações do


Senhor ressuscitado aos seus discípulos, embora ir adiante pode significar que Jesus iria guiar os seus discípulos à Ga­ liléia, dando a entender aparecimentos anteriores em Jerusalém. Pedro se jactou de que não iria falhar, embora todos os outros também o fizes­ sem. ’Jesus preveniu-o de que ele o iria negar três vezes antes que o galo can­ tasse. O numeral três refere-se às nega­ ções, e não aos cantos do galo; isto é claro em Marcos 14:30. A expressão “canto do galo” era idiomática, e signifi­ cava a terceira vigília da noite, aproxi­ madamente entre meia-noite e três horas da manhã, no sistema romano de dividir a noite em quatro vigílias (cf. 14:25), embora, aparentemente, se faça referên­ cia a um verdadeiro canto do galo em 26:74. O que Pedro negou foi que tivesse qualquer relacionamento com Jesus (cf. João 13:38). Pedro se vangloriara ainda mais, bem como todos os discípulos, que preferia morrer por Jesus, antes de negálo. Ele fracassou miseravelmente naquela noite e no dia seguinte, mas, de acordo com Atos, ele mais tarde arriscou a vida por Cristo, e de acordo com o Evangelho de João e tradições posteriores, ele real­ mente a deu por ele (cf. João 21:18 e s.). 7) O Getsêmane (26:36-46) 36 E n tão foi J esu s co m e le s a u m lu gar cham ado G etsêm an e, e d isse a o s d iscípulos: Sentai-vos aqui, enquanto eu vou a li orar. 37 E , levando consigo P edro e os dois filhos de Z ebedeu, com eçou a en tristecer-se e a angustiar-se - 38 E ntão lh es d is s e : A m inha alm a e s tá triste a té a m o r te ; fic a i aqui e v ig i­ ai com igo. 39 E , adlantando-se um pouco, prostrou-se com o rosto em terra e orou, d i­ zendo : M eu P a i, se é p o ssív el, p a ssa de m im este cá lic e ; todavia, não se ja com o eu qu e­ ro, m a s com o tu qu eres. 40 Voltando p ara os discípulos, achou-os dorm indo; e d isse a Pedro: A ssim , n em u m a hora p u d estes v i­ giar com igo? 41 V igiai e orai, p ara que não entreis em ten tação; o esp írito , n a verd ad e, está pronto, m a s a c a m e é fr a c a . 42 Ketirando-se m a is u m a v ez, orou, dizendo: P a i m e u ; se e ste cá lice não pode p a ssa r se m que eu o b eb a, fa ça -se a tu a vontade. 43 E , v o l­ tando outra v ez, achou-os dorm indo, porque os seu s olhos esta v a m carreg a d o s. 44 D e i­

xando-os n o v am en te, foi orar terceira v ez, repetindo a s m e sm a s p a la v ra s. 45 E ntão voltou p a ra o s d iscip u los e d isse-lh es: D or­ m i agora e d esca n sa i. E is que é ch eg a d a a hora, e o F ilh o do h om em e stá sendo e n tre­ gue n a s m ã o s dos p eca d o res. 46 L evantaivos, vam o-nos ; e is que é ch egad o a q u ele que m e trai.

Getsêmane é, provavelmente, a pala­ vra aramaica que significa “prensa de azeitonas” , mas nenhuma alusão à idéia de elas serem pisadas é explícita (Is. 63:3-6, algumas vezes citado aqui, fala de uma prensa de vinho e expressa outra coisa). A humanidade do Filho de Deus é claramente expressa em seu anseio por companhia humana e apoio na sua hora suprema de prova, tristeza e solidão. Os seus amigos de confiança falharam, in­ clusive Pedro, Tiago e João. A Igreja nunca teria inventado uma tal história do fracasso desses principais apóstolos, na hora da maior tristeza e tribulação do seu Senhor. O lugar era, provavelmente, um jardim particular, e pode ser que ele lhes tivesse pedido para ficarem na entrada, e vigiarem. A sua localização precisa é hoje desconhecida. Mateus descreve o intenso estado emo­ cional de Jesus como entristecido e an­ gustiado. Marcos emprega um termo mais forte: “pavor” . Jesus clamou que estava triste quase ao ponto de morrer, ou com uma tristeza tão grande como a da morte. O pedido para que os seus discípulos vigiassem pode referir-se a vigiar para que o in m ^ o não se aptoxi^L^ tnãss¥,” mãs~á palavra comigo sugere, pelo cõnirárip, que eles deviam dar-lhe sustentojia sua a,gqiiia. Se a sua intenção fosse escapar do inimigo, seria hora de fugir, e não de orar e vigiar. Ele queria a ajuda deles não para escoltá-lo no encon­ tro com o inimigo, que estava vindo, mas a fim de ter forças para enfrentar as demandas da hora. A preocupação da oração de Jesus era com o seu cálice, mas o seu coração esta­ va disposto a fazer a vontade do seu Pai. O cálice não é explicado. Parece referirse à sua morte, e tudo o que com ela se 289


entre a disposição de espirito e a fraquerelacionava: o fracasso de seus discípu­ za da carne é a que existe entre a sinlos; a nova libertação de paixões egoís­ cera devoção e a fraqueza humana. Carticas, covardes e rancorosas nas próprias nèlîaôraevi^sir considerada em sentido pessoas a quem ele viera salvar; tudo isto literal, mas representando o homem to­ e muito mais do que ele podia saber. Nós do, em sua fraqueza e distância de Deus. simplesmente não podemos sondar as A carne que fracassou abrange a vontade razões da sua tristeza, nem conhecer a e emoções. extensão da prova por que ele estava A ordem para vigiar e orar é preserva­ passando, nem entender tudo o que o seu da aqui não apenas como foi aplicada, a cálice significava. princípio, às necessidades dos discípulos, A submissão da sua vontade à do seu no Getsêmane, mas como o curso aproPai foi a grande vitória de Jesus no Getsêmane. Tudo acerca do seu cálice ou W àdõ~aos crentes em suas contínuas dá sua hora deram-lhe razões para re­ próvás T~Sntações. Nessa vigilância e oração, e não na confiança que o mundo cuar. ^ A jn o rte n ã o jo i uma bela amiga tem na espada, estão os verdadeiros ar­ que vinha para libertar a “alma” do mamentos para a guerra do crente (cf. II corpo, como disse Sócrates. Foi uma horripilante inimiga a ser vencTda. E m ' Cor. 10:3 es.). O contraste entre a disposição de es­ jogo estava a submissão de Jesus ào Pai, è pírito e a fraqueza da carne é similar ao esta, por sua vez, foi a questão básica de expresso no pensamento de Paulo (cf. ^ ele iria salvar-se a si mesmo ou salvar Rom. 7:7-25), nias não idêntico ou de­ os outros (cf. 27:41 e s.). Se ele tivesse pendente dele. Para Paulo, a carne signitomado providências para se salvar, teria seguido o princípio egoístico e~ègõcentrifica o homem natural, lutando desespeco que está no cerne da forma de agir do radamente para alcançar a sua própria mundo. Mas ele não deixou esse prin­ salvação, seja como judeu, através da cípio vencer. Ele foi tentado no Getsê­ Lei, seja como grego, através da sabedo­ mane da mesma forma como o fora em ria. O. homem como espírito é o homem em Cristo, sendo tão-somente o Espírito seguida ao seu batismo. A tentação foi real, bem como a vitória foi real (cf. Heb. dê Deus capaz de libertar o homem, 5:7-10). Ao passar por esse teste supre­ como “carne” , do pecado e da morte. mo, ele se entregou à autonegação e ao Em Mateus (cf. Mar. 14:38), carne e auto-sacrifício, e rejeitou a autopreserespírito representam a luta que há dentro vação. No seu como tu queres há um eco do próprio homem, semelhante às lutas da Oração Modelo. O que ele ensinou Tntimas do homem descritas na literatura aos outros a orar, eie pfatícõüT^ e não" de Qumran (I QS iv, 23-25; xi, 9 e ss.). tinha dúvidas de que todas as coisas VPara Paulo, a. came é fraca pelo fato de”^ não se poder libertar sozinha do pecado e eram possíveis para o seu Pai, remover da morte, mas é forte em sua rebelião e ou reter o cálice, mas a sua vontade era pode ser vencida apenas pelo Espírito de fazer a vontade do seu Pai. Do seu " soffínTento surgm o seu triunfo g ,a_su^ Deus. 't» —-Os verbos, no versículo 45, podem ser glória (cf. João 12:20-28). A admoestação adicional de Jesus, aos indicativos ou imperativos. Vendo ou ou­ vindo a aproximação de um bando de discípulos, para que orassem, bem como homens, ele declarou que é cheg'ada a vigiassem, era para o seu bem, para a sua hora. Aquele que me trai, da mesma segurança. Ele pediu que eles vigiassem forma, estava se aproximando. Para Jecom ele, levassem o fardo com ele. Ele instou para que eles orassem por si p róprios, para que tivessem forças pàra en48 Cf. R. G. K uhn, “Jesus in G ethsem ane” , Evangelische Theologie 12,1952-53, p. 260-85. f rS tã r a prova que iriam ter. O conflito 290


sus, a verdadeira vitória já havia sido conseguida (cf. João 16:33). Até aquele momento, ele tinha a opção de escapar, mas tinha-a recusado. A lua cheia da época da Páscoa, e tochas carregadas pelos inimigos (João 18:3) faziam com que a aproximação da turba fosse facil­ mente visível. Até nesse ponto Jesus to­ mou a iniciativa: Levantai-vos, vamonos. Ele não estava procurando a cruci­ ficação. A cruz veio a ele, porém ele a enfrentou cara a cara, não fugindo. Uma acusação mais pungente dificil­ mente poderia ter sido feita do que o FUho do homem está sendo entregue nas mãos dos pecadores. Estes eram gen­ tios, chamados pecadores pelos judeus. O próprio povo do Filho do homem não apenas o havia rejeitado, mas o entrega­ ra àqueles que desprezavam como “peca­ dores” . Ele foi crucificado por pecado­ res, mas foi rejeitado e traído pelo seu próprio povo. Isto é história, e não ficção da teologia. 8) Traição e Prisão (26:47-56) 47 E , estando e le ain d a a fa la r, e is que veio Ju d as, um dos doze, e com e le grande m ultidão com esp a d a s e v a rap au s, vin d a da parte dos princip ais sa cerd o tes e dos a n ­ ciãos do povo. 48 Ora, o que o tr a ía lh es havia dado um sin a l, d izen d o : A quele que eu beijar, e s s e é ; prendei-o. 49 E lo g o , aproxim ando-se de Jesu s, d is s e : S a lv e, R abi. E o beijou. 50 Jesu s, porém , lh e d is s e : A m igo, a que v ieste? N isto, ap roxim an d o-se e le s , la n ­ çaram m ão de J esu s, e o p ren d eram . 51 E eis que um dos que esta v a m com J esu s, estendendo a m ã o , puxou da e sp a d a e , ferin ­ do o serv o do sum o sa cerd o te, cortou-lhe um a orelha. 5Z E ntão J esu s lh e d isse: M ete a tua esp ad a no seu lugar; porque todos os que la n ça rem m ã o da esp a d a , à esp ad a m orrerão. 53 Ou p en sa s tu que eu nã« p od e­ ria rogar a m eu P a i, e e le não m e m an d aria agora m esm o m a is de doze le g iõ e s de anjos? SI Como, pois, se cum pririam a s E scritu ra s, que dizem que a ss im con vém que acon teça? 55 D isse J esu s à m ultidão naq u ela hora: S aistes com esp a d a s e va ra p a u s p ara m e prender, com o a u m saltead or? Todos os dia« esta v a eu sentado no tem p lo, en sin a n ­ do, e não m e p ren d estes. 56 M as tudo isso aconteceu para que se cu m p rissem a s E s ­

critu ras d os p ro feta s. E n tão tod os o s d is c i­ pulos, deixando-o, fu giram .

Judas sabia onde encontrar Jesus na­ quela noite. João nos conta que Jesus freqüentemente se reunia naquele lugar com os seus discípulos (18:2). O grupo armado, guiado por Judas, fora manda­ do sob a autoridade dos principais sacer­ dotes e dos anciãos do povo. Provavel­ mente, consistia de guardas do Templo e escravos do sumo sacerdote. Judas havia combinado um sinal, pelo qual os oficiais saberiam a quem prender; indicando que o Sinédrio estava primordialmente inte­ ressado em prender Jesus, e não os seus seguidores, pensando erradamente que, matando o líder, acabariam com o movi­ mento. Lucas aponta para a ironia da traição com um beijo, que normalmente expressa amor, confiança, lealdade. Era normal um discípulo saudar o seu mestre com um beijo. Mateus segue Marcos, ao empregar uma forma forte do verbo para be^ou (katephilêsen), indicando que Ju­ das fez uma forte demonstração de afei­ ção no beyo de traição. Amigo (hetaire) podia ser traduzido “camarada” . É usado normalmente co­ mo termo amável, mas, em cada uso que se faz dessa palavra em Mateus, a pessoa a quem ela foi dirigida havia prejudicado àquele que fala (cf. 20:13; 22:12). A pergunta feita a Judas é de significado desconhecido. Jesus sabia por que Judas estava ali. Possivelmente, a pergunta foi feita não para pedir informações, mas para compelir Judas a considerar o que estava fazendo. A pergunta pode ter sido um último apelo para Judas se arre­ pender. Pedro não o suportou quando os ho­ mens lançaram mão de Jesus. Somente João identifica esse um que tirou a espa­ da e cortou a orelha do servo do sumo sacerdote (18:10). Lucas e João registram que foi a orelha direita, fazendo com que algumas pessoas especulassem que Pedro era canhoto, ou que o escravo virou a cabeça exatamente a tempo de evitar 291


dano mais sério. A intenção de Pedro era, sem dúvida, fazer mais do que cortar-lhe uma orelha. Jesus repreendeu Pedro, e Lucas regis­ tra que Jesus curou o homem (22:51). Mateus destaca o fato de Jesus ter re­ jeitado a espada, e advertido que aqueles que recorrem à espada à espada mor­ rerão. Como havia feito anteriormente, Jesus rejeitou as armas do mundo. Ele iria conquistar com um a cruz, e não com uma espada. Ele iria vencer dando vida, e não tirando-a. Esta era a sua forma de agir, e deve ser a nossa. Jesus não apenas rejeitou a espada, mas também negou-se a pedir do seu Pai a ajuda de mais de doze legiSes de ai^os. A vitória que ele precisava obter era pela entrega íntima à vontade do Pai, e não procurando li­ bertar-se através das espadas dos homens ou da intervenção dos anjos de Deus. Jesus submeteu-se à prisão, mas pro­ testou contra as falsas implicações de espadas e varapaus com que a turba estava armada. Ele não era nem ladrão nem homem de violência. Salteador é tradução de um a palavra, usada por Josefo, para designar os revoltosos que combinavam revolta armada com ban­ ditismo — que hoje chamaríamos de ter­ roristas (Antig., 20:8). Ele havia ensina­ do abertamente no Templo, onde estive­ ra à disposição deles para ser preso. Todos os dias pode dar a entender mais visitas ao Templo do que os Sinópticos registram, dando apoio ao Evangelho de João, que registra várias visitas de Jesus a Jerusalém. Embora Pedro estivesse preparado pa­ ra lutar, e, provavelmente, teria dado a sua vida física em combale, ele e todos os discípulos fugiram quando o seu Mestre se entregou aos seus inimigos, sem lutar e sem permitir que eles lutassem. Jesus foi deixado só. 9) Audiência Diante de Caifás (26:57-68) 57 A queles que p renderam a J esu s lev a ram -no à p resen ça do sum o sa cerd ote C ai­ fá s, onde o s escrib a s e os a n ciã o s e sta v a m

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reunidos. 58 E P ed ro o se g u ia de lon ge a té o pátio do sum o sa cerd o te; e , entrando, se n ­ tou-se en tre os gu a rd a s, p a ra v e r o fim . 59 Ora, 0 8 p rin cip ais sa cerd o tes e todo o sin é ­ drio b u sca v a m fa lso testem u n h o contra J e ­ sus, p a ra p od erem en tregá-lo à m orte; 60 e não o a ch a v a m , a p esa r d e se ap resen tarem m u itas testem u n h a s fa lsa s. M as por fim co m p areceram duas, 61 e d issera m : E ste d is s e : P o sso d estru ir o san tu ário de D eu s, e reedificá-lo e m tr ê s d ia s. 63 L evantou-se en ­ tão o su m o sa cerd o te e pergu n tou -lh e: N ada respondes? Que é que e ste s d ep õem contra ti? 63 J e su s, p orém , g u ard ava silên cio . E o sum o sa cerd o te d isse-lh es: Conjuro-te pelo D eus v ivo que n os d ig a s a e tu é s o C risto, o Filho d e D eu s. 61 R espondeu-lhe J e su s: É com o d is s e s te ; contudo, v o s digo que v er e is em b reve o F ilh o do h o m em a ssen ta d o à direita do P o d er, e vindo sobre a s n u ven s do céu. 65 E ntão o sum o sa cerd o te rasgou as su as v e ste s, dizendo: B la sfem o u ; p ara que p recisam os a in d a de testem u n h a s? E is que agora a c a b a is de ouvir a su a b la sfêm ia . 66 Que v o s p a rece? R esp on d eram e le s : É réu de m orte. 67 E ntão uns lh e cu sp iram no rosto e lh e d era m so co s, 68 e outros o e sb o ­ fetea ra m , dizendo; P rofetiza-n os, ó C rist», quem foi que te bateu?

Caifás já foi apresentado ao leitor (cf. 26:3). Os discípulos fugiram quando Je­ sus se submeteu à prisão, e não se sabe até onde foram. Pedro voltou, e o seguia de longe, até o pátio do sumo sacerdote. O palácio do sumo sacerdote era, apa­ rentemente, construído no estilo romano, com um pátio aberto no meio. Pedro assentou-se com os servos ou subordina­ dos (huperetõn) do sumo sacerdote. Guardas pode ser o que esses homens eram, mas esse-não é, necessariamente, o significado do termo usado. Pedro espe­ rava para ver o fim, isto é, o resultado, que, por todas as indicações, podia-se esperar que fosse a execução. João 18:15 relata que outro discípulo também se­ guiu Jesus ao palácio, possivelmente João. Audiência, em vez de julgamento, pro­ vavelmente descreve melhor o fato de Jesus ter aparecido diante do Sinédrio. A função deste era formular acusações, que seriam apresentadas à corte romana, ten­ do esta a autoridade final. Não é claro


que poderes restavam para o Sinédrio, dados pelos romanos, no primeiro sé­ culo (cf. Josefo, Antig. 14:9; Guerras 6:2). João 18:31 indica que o Sinédrio não podia decretar a sentença de morte. Os poderes do Sinédrio haviam sido restringidos durante o governo dos Hasmoneanos (c. 166-40 a.C.). No governo de Herodes, o Grande, esses poderes foram ainda mais limitados (37-4 a.C.). Em 6 d.C. a Judéia se tomou uma pro­ víncia romana, governada por um pro­ curador romano. Visto que o procurador tinha residência oficial em Cesaréia, al­ guns poderes locais eram dados ao Siné­ drio em Jerusalém. Parece que, em casos excepcionais, quando o Templo era pro­ fanado por um gentio, mesmo que ele fosse romano, o Sinédrio tinha o poder de condená-lo à pena capital (cf. Lxjhse, 78). Não há evidência conclusiva de que os poderes do Sinédrio, de aplicar a pena capital, fossem além dessa concessão es­ pecial. Causas alegadas são questioná­ veis. O caso da filha de um sacerdote, apedrejada sob a acusação de devassidão (Sanhedrim) 7:2), provavehnente, e o da execução de Tiago, irmão de João (At. 12:2), certamente ocorreram durante o governo de Herodes Agripa I (41-44 d.C.). Herodes teve o título de rei, com poderes soberanos por um breve período. A execução de Tiago, irmão de Jesus, ocorreu em um período caótico, entre a morte de Pórcio Festo e a indicação do seu sucessor, tendo, no intervalo, o Sinédrío lançado mão do poder (Josefo, Antig. 20:9). O apedrejamento de Estê­ vão (At. 7:54-60) é melhor explicado como um ato de linchamento, por parte da multidão, e não como uma ação for­ mal do Sinédrio. 49 Paul W inter, em O n the T rial o f Jesus (Berlin: W alter de G ruyter, 1961), p. 62-90, argum enta que o Sinédrio reteve a autoridade de condenar à p e n a capital até 70 d.C . Ele não cita n enhum a evidência conclusiva, baseando o seu argum ento principalm ente em alegadas implicações do M ishnah Sanhedrim 7:1 e Atos 5;33; 6:12; 22:4; 25;9; 26:10.

Os quatro Evangelhos descrevem as­ pectos do julgamento de Jesus. Ê impos­ sível reconstruir toda a cena, embora os processos, motivos e acusações básicos sejam suficientemente claros. De acordo com Lucas, o julgamento só foi realizado quando amanheceu, sendo Jesus manti­ do durante a noite no pátio do sumo sacerdote, onde foi insultado e ferido brutalmente pelos guardas, e onde ele ouviu e viu Pedro negá-lo três vezes. Joâo registra uma audiência diante de Anás, ex-sumo sacerdote e sogro de Caifás. A história pode ser encaixada em Marcos e Mateus, parecendo que a audiência dian­ te do Sinédrio aconteceu no meio da noite. A questão de irregularidades no julga­ mento de Jesus pode ser pesquisada e demonstrada. Por exemplo, de acordo com uma legislação do segundo século, que, possivelmente, mas não certamente, estava em vigor no primeiro século, os criminosos que se apresentassem diante do Sinédrio deviam ser julgados duran­ te o dia; e, se o veredicto fosse: “cul­ pado” , o julgamento não podia ser con­ cluído antes do segundo dia (Sanhedrim 4:1). Mas não adianta pesquisar esses assuntos. A principal acusação contra o Sinédrio é que a sua decisão fora tomada antes do julgamento. O julgamento foi uma mera formalidade, para fazer com que a execução parecesse legal e correta. Procurou-se falsas testemunhas, e o seu testemunho foi aceito, mesmo não sendo coerente. Os relatórios acerca do julga­ mento podem ter provindo de José de Arimatéia (Mar. 15:43; Luc. 23:50-53) e do discípulo não identificado em João 18:15. Uma das principais acusações contra Jesus centralizava-se em algo que ele dissera acerca do templo. Embora a sua declaração exata não possa ser determi­ nada, Jesus, indubitavelmente, disse algo sobre a destruição do Templo e sua re­ construção em três dias (cf. 24:2; João 2:19-22; At. 6:14). Jesus predissera a destruição do Templo; e, ao falar na sua 293


reconstrução, ele, provavelmente, quise­ ra dizer duas coisas: antes de tudo, a sua ressurreição, e depois, a criação da Igreja como o verdadeiro templo de Deus (cf. ICor. 3:16es.). Mateus evita o contraste que Marcos estabelece (14:58) entre um templo “construído por mãos” e outro “não feito por mãos” . Mateus cita o santuário de Deus. Onde Marcos diz: “Eu destrui­ rei” , aparece “posso destruir, em M a­ teus. Estas podem ser evidências adicio­ nais de que Mateus evitou um rompi­ mento completo com o judaísmo, ou qualquer coisa que parecesse um ques­ tionamento da legitimidade do Templo para o judaísmo. A sua ênfase estaria no cumprimento do que legitimamente era prefigurada no judaísmo. Por outro lado, o retrato que as falsas testemunhas fi­ zeram de Jesus, como capaz de destruir o que Deus edificara, atendia bem à bus­ ca que o Sinédrio estava fazendo de uma acusação de monta (aqui, blasfêmia) contra Jesus. Jesus, porém, guardava silêncio diante de algumas das perguntas, sabendo que não havia receptividade para a verdade. O sumo sacerdote parecia ansioso para ter a plena concordância do Sinédrio, e, por isso, queria fazer com que Jesus forne­ cesse base adicional para as provas de sua culpabilidade, sendo que as testemu­ nhas estavam em óbvio conflito uma com a outra. Ele colocou Jesus sob um jura­ mento: Coi\juro-te, para dizer, sem am­ bigüidades, se és ou não o Cristo, o Fillio de Deus. De acordo com Mateus, á res­ posta de Jesus foi literalmente: “Foi você quem disse.” Em Marcos 14:62 é um simples: “Eu o sou.” A forma de Mateus,^ sem dúvida, significa: “Foi você quem disse, e é verdade.” A confissão feita por Jesus, de ser o Messias, deu ao Sinédrio um argumento que podia ser usado para interessar à corte romana, especialmente se o messia­ nismo fosse interpretado politicamente. Era isso que o Sinédrio desejava. 294

Incidentalmente, o “Eu o sou” sem ne­ nhuma ambigüidade, citado por Marcos, parece menos primitivo em sua forma do que o Ê como disseste de Mateus ou do que a ênfase completamente diferente de Lucas (22:67). Esta não é nada mais do que mais uma das muitas evidências de que o relacionamento dos Evangelhos um com o outro está longe de ser resol­ vido (cf. Lohmeyer, p. 367). O versículo 64 combina Daniel 7:13 e Salmos 110:1. Nos versículos 63 e s., Mateus segue Marcos, ao reunir três títulos importantes: Cristo, Filho de Deus e Filho do homem, e também ao ligar o ministério, a paixão e a Parousia de Jesus. O Sofredor e Aquele que vem sao o mesmo. 50 A declaração feita por Jesus tecnica­ mente não foi blasfêmia, pcis nada foi falado contra o nome de Deus. O sumo sacerdote arbitrariamente a rotulou de blasfêmia, provavelmente expressando a sua própria oposição contra o messianis­ mo em princípio e contra Jesus em par­ ticular. O ato de rasgar as vestes expres­ sava verdadeiro horror, ou era um ato simbólico de acordo com a Lei, que dizia que a pessoa que ouvisse blasfêmia devia rasgar as vestes. O veredicto preconceituoso do Siné­ drio, ao declarar Jesus digno de morte, deu à guarda rude desculpas suficientes para insultar e m altratar Jesus. O ato de cuspir na face de alguém é reconhecido universalmente como insulto degradante. Eles deram socos em Jesus (ekolaphison) e 0 açoitaram possivelmente com varas (rapis). Marcos 14:65 supre um dado necessário para se entender o sarcástico: Profetiza-nos, ó Cristo! Eles haviam ven­ dado os olhos de Jesus, e estavam fa­ zendo uma brincadeira cruel, de “enga­ nar o cego” , ou o estavam provando.

50 Conzelmann, “ Historie und Theologie in den synop­ tischen Passionsberichten” , Zur Bedeutung des Todes Jesu (G ütersloh; M ohn, 1967), p. 47.


para ver se ele tinha conhecimento sobre­ natural. 10) Pedro Nega Jesus 26:69-75) 69 Ora, P ed ro e sta v a sen tad o fora, no pátio; e aproxim ou-se d ele u m a criad a, que d isse: Tu tam b ém e sta v a s co m J esu s, o galileu. 70 M as e le negou d iante de todos, dizendo : N ão se i o que d izes. 71E , saindo ele para o vestíb u lo, outra criad a o viu , e d isse aos que a li esta v a m : E ste ta m b ém e sta v a com J esu s, o n azaren o. 72 E e le negou outra vez, e com juram ento: N ão conheço ta l h o ­ m em . 73 E daí a pouco, aproxim ando-se os que ali esta v a m , d issera m a P ed ro : C erta­ m ente tu tam b ém é s um d eles, pois a tua fala te denuncia. 74 E ntão com eçou e le a praguejar e a jurar, dizendo: N ão conheço esse h om em . E im ed iata m en te o galo c a n ­ tou. 75 E P edro lem brou-se do que d issera Jesu s : A ntes que o galo ca n te, tr ê s v e z es m e n egarás. E , saindo d a li, chorou a m a r g a ­ m ente.

Os quatro Evangelhos falam acerca de Pedro ter negado a Jesus. A honestidade da Igreja, ao expor os fracassos dos seus heróis, é uma sadia autocrítica. Os san­ tos são, não obstante, pecadores, e o admitem. Nenhum esforço é feito para desculpar a falha de Pedro. O fato de ele ter negado Jesus é exposto plenamente contra o pano de fundo da sua orgulhosa jactância, ao dizer que iria ser leal até a morte. Ele foi perdoado, primeiro por Jesus, e depois pela Igreja. Ele foi aceito, mas não o seu pecado. Colocado na pers­ pectiva da “dádiva-exigência” da graça, o seu pecado foi condenado, mas ele foi perdoado e recebido. Em detalhes menores, as variantes en­ tre os quatro Evangelhos são visíveis, embora a concordância essencial seja cla­ ra. Mateus se refere a duas criadas, e Marcos duas vezes à mesma criada. Am­ bos se referem a os que aB estavam, que interrogaram Pedro. Lucas se refere a uma criada e a dois homens, enquanto João se refere a uma criada, a circuns­ tantes e a um parente do escravo cuja orelha Pedro havia decepado. Mateus e Marcos descrevem Pedro passando do

pátio para o vestíbulo, ou entrada. Lucas e João silenciam acerca de qualquer mu­ dança de local. Há diferenças verbais nas conversas relatadas. Mas, em todos os pontos essenciais, a história é clara. Sob juramento, Pedro negou que conhecesse Jesus, e o fez com uma explosão emocio­ nal, que incluiu a evocação de maldição sobre si mesmo. Mas depois ele chorou amargamente, reconhecendo tanto o seu amor sincero quanto a sua falha. Esta é a melancolia e a segurança dos crentes: viver sob demandas nunca satisfeitas ple­ namente, mas saber-se “aceito, embora não aceitável” (na bela expressão de Paul Tülich). A primeira vez que Pedro negou Jesus foi na forma evasiva: Não sei o que dizes; ou literalmente: “Não sei o que você está dizendo.” A sua segunda resposta foi uma negação categórica, com juramento: Não conheço tal homem. Tal homem havia sido designado como Jesus, o gali­ leu, e depois como Jesus, o nazareno, sendo a primeira vez que esse título é usado desde 2:23. As palavras da pri­ meira criada: Este também, são ambí­ guas. Poderiam querer dizer que ela já havia visto outro discípulo no pátio (cf. João 18:15 e s.) ou o também poderia significar que ele não apenas estava no pátio, mas também era discípulo. Os que ali estavam indicaram a fala (sotaque?) de Pedro como traidora da sua origem galiléia. Pedro repetiu a sua negação, e começou a praguejar e jurar, para provar que não era discípulo (con­ tradizendo as ordenanças de 5:33-37 e 12:33-37). Mateus dá a entender que ele continuou essas declarações por algum tempo, possivelmente para uma pessoa, e depois para outra, usando a palavra co­ meçou, e também os presentes infinitivos que se seguem: praguejar e jurar. Em­ bora o “cantar do galo” fosse um termo técnico, que designava a terceira vigília romana da noite (12 h — 3 h), aqui parece indicar que realmente um galo cantou. 295


11) Julgamento Diante de Pilatos (27: 1-26)

tério p ara os estra n g eiro s. 8 P o r isso tem sido ch am ad o, aq u ele cam p o, a té o dia de hoje, Campo de Sangue. 9 Cum priu-se, e n ­ tão, o que foi dito pelo profeta J er e m ia s: 1) Jesus Entregue a Pilatos (27:1,2) T om aram a s trin ta m o ed a s de p rata, preço 1 Ora, ch egad a a m an h ã, todos os p rin ci­ do que foi ava lia d o , a q u em certos filhos de pais sa cerd o tes e os a n ciã o s do povo e n ­ Israel a v a lia ra m , 10 e d eram -n as pelo c a m ­ traram e m conselho contra J e su s, p ara o po do oleiro, a ss im com o m e ordenou o m ata rem ; 2 e, m aniatando-o, levaram -n o e Senhor. o en tregaram a P ila to s, o governador.

Tendo já decidido levar Jesus à morte, mas, aparentemente, não tendo autori­ dade legal para fazê-lo, os sacerdotes e anciãos entregaram Jesus a Pilatos, o go­ vernador. Pôncio Pilatos fora indicado procurador (governador) da província ro­ mana da Judéia (inclusive Samária) em 26 d.C., e foi chamado de volta a Roma em 36 d.C. Josefo (Antig. 18:3; Guerras 2:9) e Filo (Ad Gai, 38) o retratam como anti-semita e mau governador. Permitindo que se levantasse precon­ ceito judaico contra ele, a sua chamada de volta a Roma é clara evidência de que os romanos não estavam satisfeitos com ele. Ele ofendeu os judeus, uma vez, fazendo entrar soldados em Jerusalém sem antes remover a figura do imperador das suas insígnias (figuras eram consi­ deradas imagens) e, em outra ocasião, por apropriar-se de fundos do Templo para construir um aqueduto. E a sua chamada a Roma foi ocasionada por sua brutalidade em sufocar uma pequena revolta em Samária. Mas o fato de ter ficado dez anos no cargo fala algo em seu favor. (2) O Suicídio de Judas (27:3-10) 3 E ntão Ju d as, aq u ele que o tra íra , vendo que J esu s fora condenado, d evolveu , c o m ­ pungido, a s trinta m oed a s de p rata a o s p rin ­ cipais sa cerd otes e a o s a n cião s, dizendo: 4 P eq u ei, traindo o san gu e in ocen te. R e s ­ ponderam e le s : Que nos im porta? S eja isso lá contigo. 5 E , tendo e le atirado p ara dentro do santuário as m oed as de p rata, retirou-se, e foi en forcar-se. 6 Os prin cip ais sa cerd o tes, pois, tom aram a s m oed a s de p ra ta , e d is se ­ ram : N ão é lícito m etê -la s no cofre das ofertas, porque é preço de san gu e. 7 E , tendo deliberado em conselho, com p raram com ela s o cam po do oleiro, p ara serv ir de c e m i­

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A morte de Judas é registrada só por Mateus, dentre os evangelistas. Lucas conta a história de forma um tanto dife­ rente, em Atos 1:16-20. Em cada men­ ção, Judas é marcado como o traidor. A Igreja sentiu profundamente a traição por parte de alguém que estivera tão pró­ ximo a Jesus. Não se sabe exatamente os motivos que Judas teve para trair Jesus, mas que ele se compungiu, quando viu Jesus condenado, dá alguma base para a teoria de que a sua intenção fora criar uma situação de crise, em que Jesus agisse positivamente, para lançar mão do poder em Jerusalém, tornando-se um Messias político. Se assim foi, esse ato mal dirigido falhou, e Judas cometeu suicídio quando viu que Jesus não luta­ ria, mas submeter-se-ia à execução. Esta é uma interpretação possível, mas, quan­ do muito, é apenas uma hipótese, e altamente precária. Compungido (metamelêtheis) não é o termo normalmente usado para expres­ sar “arrependimento” na linguagem do Novo Testamento, e “remorso” pode ser uma tradução melhor. Judas não experi­ mentou o arrependimento da conversão. Ele conheceu apenas frustração e senti­ mento de culpa, que o levou ao suicídio. Ele pecara contra Jesus e traíra sangue inocente. Os principais sacerdotes e os anciãos se demonstraram ainda piores do que Judas. A sua indiferença para com Judas se expressa em sua resposta sem piedade: Que nos importa? Eles o haviam usádo, e estavam agora prontos para se livrarem dele. Judas jogou a prata no Templo, aparentemente expressando o seu ressen­ timento contra os líderes religiosos que o haviam usado e também um esforço para


se livrar de parte de sua culpa. A única preocupação dos líderes religiosos foi a meticulosa observância da lei cerimonial. Eles estavam dispostos a derramar san­ gue, mas não podiam aceitar preço de sangue para o tesouro do Templo, de forma que o usaram para comprar um campo para enterrar os estrangeiros. Mateus conta a história na linguagem de Zacarias 11:12 e s., influenciado por Jeremias 18:2 e s. e 32:6-15. Isto está de acordo com o seu princípio de enfatizar o cumprimento das Escrituras. Outra vez, é claro que o acontecimento foi crido antes de ser contado na linguagem da Escritura. A imaginação nunca teria cri­ ado a história baseada na obscura passa­ gem de Zacarias e Jeremias, mas essas passagens puderam servir para vestir a história com linguagem bíblica. O pró­ prio fato de a relação entre o texto e o acontecimento parecer forçada argumen­ ta em favor da prioridade da crença sobre o emprego do texto-prova. A igreja primitiva formulou toda a narrativa da paixão na linguagem da Escritura, a única linguagem que se adaptava à histó­ ria, mas foi apenas pelos acontecimentos da vida de Jesus que ela foi capaz de obter uma nova compreensão das Escri­ turas (cf. João 2:22; 12:16), e não que um certo entendimento das Escrituras a te­ nha capacitado, a princípio, a entender os eventos, e certamente ela não inventou as histórias, a fim de criar o “cumpri­ mento” das Escrituras.

m uito se a d m ira v a . 15 Ora, por ocasiã o da festa , c o stu m a v a o governador soltar um preso, escolhendo o povo aq u ele que q u ise s­ se . 16 N e sse tem po tin h am um preso n o ­ tório, cham ado B arrab ás. 17 P ortanto, e s ­ tando o povo reunido, perguntou-lhe P ila to s : Qual q u ereis que v o s solte? B arrab ás, ou J esu s, ch am ad o C risto? 18 P o is sa b ia que por in v eja o h a v ia m en tregad o. 19 E , e s ­ tando e le a ssen ta d o no tribunal, su a m ulher m andou d izer-lhe: N ão te en v o lv a s n a q u es­ tão d e sse ju sto, porque m u ito sofri hoje e m sonho por ca u sa d ele. 20 M as o s principais sacerd otes e o s a n ciã o s p ersu ad iram a s m ultidões a que p ed isse m B arrab ás e fiz e s­ sem m orrer J e su s. 21 O governador, pois, perguntou-lhes: Qual dos dois qu ereis que eu vos solte? E d issera m : B arrab ás. 22 T or­ nou-lhes P ila to s: Que fa r e i então de J esu s, que se ch a m a Cristo? D issera m todos: Seja crucificado. 23 P ila to s, p orém , d isse : P o is que m a l fez e le ? M as e le s cla m a v a m ainda m a is: S eja cru cificad o. 24 Ao v e r P ila to s que n ad a co n seg u ia , m a s, pelo contrário, que o tum ulto au m en ta v a , m andando trazer água, lavou a s m ã o s d iante da m ultidão, dizendo: Sou in ocen te do san gu e d este h o ­ m em ; se ja Isso lá con vosco. 25 E todo o povo respondeu: O seu sa n g u e ca la sobre n ós e sobre n osso s filh os. 26 E ntão lh es soltou B arrab ás; m a s a J e su s m andou a ço ita r, e o entregou p a ra se r crucificad o.

Jesus foi sentenciado à morte por Pi­ latos, o governador romano, sob a acusa-. ção de traição contra n Estado (cf. Luc. 23:2). É claro que a acusação era falsa, e Pilatos não cria nela. À principal culpa deve caber aos principais sacerdotes e anciãos do povo, que, poFHiíêfintes' ra­ zões, fizeram a acusação. Visto que apenas uma acusação política interessariam uma corte rom anã^jKsT™ ^^forçados a (3) Julgamento e Sentença (27:11-26) centralizar as suas acusações nessa área. 11 J esu s, p ois, ficou e m pé d iante do g o ­ ,As multidões eram volúveis, e podiam ser vernador; e e ste Uie perguntou: É s tu o rei m anejadasJaciln^nt^ dos jud eu s? K espondeu-lhe J e su s: É com o Tem-se tornado moda, quase um dog­ dizes. 12 M as, ao ser acu sad o p elos p rin ci­ ma, dizer que a iniciativa para a exe­ pais sa cerd otes e p elos a n ciã o s, nada r e s ­ cução de Jesus foi tomada pelos roma­ pondeu. 13 Perguntou-U ie, en tão, P ila to s: nos, e que a Igreja mudou a culpa para N ão ou ves quantas co isa s te stific a m contra ti? 14 E J esu s não lhe respondeu a u m a os judeus, depois de ter rompido com o pergunta seq u er; de modo que o governador judaísmo. Isto é acusar a Igreja de um crime tremendo, de exonerar o culpado e 51 E duard Lohse, “ Die alttestam entlichen Bezüge im condenar o inocente. Mas essa acusação neutestam ent-lichen Zeugnis vom Tode Jesu C hristi” , é falsa, e está na hora de ser desmas­ Zur Bedentung des Todes Jesu (2^ ed.; Gütersloh: carada. Certamente o anti-semitismo, M ohn, 1967, p. 111 e s. 297


que alimenta passagens como o versí­ culado para minorar o desassossego na­ culo 25, deve ser deplorado, mas o mal cional. Para servir a esse propósito, o do anti-semitismo não pode ser vencido prisioneiro a ser solto deveria merecer negando ou reescrevendo a história. Pau­ simpatias nacionalistas. Barrabás era lo afirma claramente que os judeus “ma­ exatamente um homem assim: um rebel­ taram o Senhor Jesus” (I Tess. 2:14 e s.), de que havia-se levantado em armas con­ e ele não era anti-semita. Os mesmos tra Roma (cf. Mar. 15:7). Notório pode­ Evangelhos que apontam a culpa dos ria ser traduzido “notável” . Há subs­ judeus na crucificação de Jesus também tancial evidência em manuscritos (gre­ exaltam os judeus, Jesus, os profetas, e gos, latinos, siríacos, armênios, georgiaoutros, bem como as escrituras judaicas. nos e patrísticos) de que “Jesus Barra­ A história, como os Evangelhos a nar­ bás” era o seu nome. Orígenes conhecia ram, é crível. Embora a tradição cristã, manuscritos em que ele era chamado através das gerações, tenha tendido mais Jesus, mas rejeitou a versão em bases e mais a exonerar Pilatos da culpa, a preconceituosas, pois, para ele, Barrabás equilibrada história dos Evangelhos, não era digno desse nome. Ê menos pro­ mostrando a sua culpa, bem como algum vável que o nome tenha sido acrescenta­ esforço que ele fez para libertar Jesus, do, do que tirado. não deve ser descartada como ficção. A Se o nome Jesus para Barrabás é ori­ conduta de Pilatos é compreensível, à luz ginal, a pergunta de Pilatos tem propó­ de tudo 0 mais que se conhece sobre ele. sito. Que Jesus queriam eles libertar? Os seus esforços para libertar Jesus po­ Jesus significa salvador (1:21), e cada um dem ser atribuídos, em parte, à justiça deles se oferecia como salvador; ^esus, ò~ romana e à severidade do Imperador Ti­ ^ n s to ) como Salvador dos P ia d o s , e bério para com governadores que maltra­ (Tesus Barrãba^ como um salvador dê. tassem os seus súditos. Pilatos deve ter-se KOTnã7~7rTnumdão, persuadida pelos ressentido da pressão exercida sobre gle principais sacerdotes, escolheu Barra­ pelos líderes judeus. A tensão entre os bás. dignatáriòs ju d eü í eTilatos, por ser pres­ Só Mateus fala a respeito do sonho da sionado a executar um homem inocente, esposa de Pilatos. Ela reconheceu Jesus foi compensada pelo temor de que liber^ como um justo. Pilatos reconheceu que tar Jesus o deixaria à mercê de acusaJesus não era culpado da forma como ções, que poderiam ser feitas contra ele estava sendo acusado. Diante do seu re­ em RoinüTdè ser~clemente para com uma petido apelo, o clamor da turba foi para pessoa acusada de ser rebelde contra o que Jesus fosse crucificado. Â pergunta Estado. de Pilatos: Que mal fez ele? a resposta foi A pergunta de Pilatos a Jesus, s.e ele apenas; Seja crucificado. Pilatos cedeu à era o rei dos judeus, pressupõe acusações pressão, temendo um tumulto. Se ele dos judeus de que Jesus fizera tal decla­ tivesse permitido que um tumulto se for­ ração. A resposta de Jesus: Ê como dizes, masse, teria arriscado a sua posição co­ era um reconhecimento, dando a enten­ mo governador, pois era a sua responsa­ der que mais precisava ser dito, fesus, bilidade de manter a ordem. a.cejtou_oJátulo_deJZrisl0,„mas'^^^ A lavagem das mãos, como ato simsentido p o lí^ q . Ele ficou silençioso bólico, era costume judaico (cf. Deut. diante dos principais sacerdòS seâw i^ 21:6 e s.). Pilatos tentou eximir-se, mas, ciãos do povo, porque , sabia que nada indubitavelmente, ele era criminalmente que ele dissesse mudaria as decisões já culpado, por ter abdicado de sua autori­ tomadas por eles. dade e permitido a execução de alguém A soltura de um prisioneiro por oca­ que verificara estar sem culpa. O seu ato sião da Páscoa era um ato político cal­ ritual e o seu protesto de que era inocente 298


não removeram nem um pouco a sua culpa. Fazer com que Jesus fosse açoi­ tado fazia parte do costume romano, quando uma pessoa era crucificada. Era um cruel açoitamento com chicote de couro, tendo nas pontas pedaços de osso e metal. Mateus viu claramente os sofrimentos da nação, inclusive a destruição de Jeru­ salém, como conseqüência da rejeição de Jesus. Pode-se demonstrar que foi ver” [“dade que as guerras fatais com Roma I resultaram do fato de os judeus terem j seguido o tipo de messianismo que Jesus_ I rejeitou. O versículo 25 infelizmente tem sido usado no anti-semitismo, e tal uso deve ser deplorado. Jesus foi crucificado por romanos, mediante a iniciativa dos judeus, mas nem todos os judeus da época apoiaram o crime; e os judeus hodiernos não são mais culpados do que qualquer outro povo. Jesus morreu por^ causa dos pecados db mundõT ^ e n as d6sjú3ii^7~~ 2. A Crucificação (27:27-56)

dados viam Jesus apenas como um im­ postor, que se julgava rei dos judeus. Eles apenas escarneceram dele pela sua aparente fraqueza. O manto escarlate era, provavelmente, uma capa de solda­ do. A coroa (stephanon) era uma imi­ tação de um a coroa de vencedor. Uma cana servia de cetro. A enorme zomba­ ria foi ainda aumentada pelas honras burlescas, aclamando-o como rei dos ju­ deus. Eles deram vazão a uma ira indisfarçada, quando, cuspindo nele, da­ vam-lhe com a cana repetidamente na cabeça. Os soldados estavam ridicularizando a idéia de que uma pessoa como Jesus pudesse ser rei. O critério deles de poder era completamente diferente. Pilatos fora reservado, mas este também parecia admirado de que uma pessoa como Jesus pudesse ser considerado como rei. M a­ teus nos faz ver que exatamente esse, tão desprezado e sem aparência real, é de fato o rei dos judeus e de todos nós. 2) Jesus Crucificado (27:32-44)

32 Ao sa írem , encontraram um h om em cireneu, ch am ad o Sim ão, a quem ob rig a ­ ram a le v a r a cruz de J esu s. 33 Quando ch eg a ra m a o lu gar cham ado G ólgota, que 27 N isso os soldados do governador l e ­ quer dizer lu gar da C aveira, 34 d eram -lh e a varam J esu s ao pretório, e reu n iram e m beber vinho m isturado com fe l; m a s ele, tom o d ele toda a coorte. 2% E , despindo-o, provando-o, n ão quis beber. 35 E n tão, depois vestiram -lhe u m m anto e sc a r la te ; 29 e , t e ­ de o cru cifica rem , rep artiram a s v e ste s d e ­ cendo u m a coroa de espinhos, p u seram -lha le, lançando so rtes (p ara que se cu m p risse o na cab eça, e n a m ão d ireita u m a can a e, que foi dito p elo p rofeta: R ep artiram entre ajoelhando-se diante d ele, o e sca rn ecia m , si a s m in h as v e ste s, e sobre a m inha túnica dizendo: S alve, rei dos judeus! 30 E , cu sp in ­ deitaram so r te s). 36 E , sen tad os, a li o g u a r­ do nele, tiraram -lhe a can a, e d avam -lhe davam . 37 P u seram -lh e por c im a da ca b eça com e la na ca b eça . 31 D epois de o terem a sua a cu sa çã o e scrita : E ST E É JE S U S , O escarn ecido, d espiram -lh e o m an to, p u se ­ R E I DOS JU D E U S. 38 E ntão foram c ru cifi­ ram -lhe a s su a s v e ste s, e levaram -n o p ara cados com e le d ois sa ltea d o res, um à d irei­ ser crucificado. ta, e outro à esq u erd a. 39 E os que ia m passando b la sfem a v a m d ele, m eneando a A zombaria contra Jesus, levada a cab eça 40 e dizendo: Tu, que d estróis o efeito pelos soldados de Pilatos, não deve santuário e em três d ia s o reed ifica s, salvata-te a ti m esm o ; se é s F ilh o de D eu s, d esce ser confundida com a dos servos de Cai­ da cruz. 41 D e igu a l m odo ta m b ém o s prin ­ fás (26:67 e s.). Os soldados faziam, cipais sa cerd o tes, com os escrib a s e a n ­ provavelmente, parte de uma corte des­ ciãos, escarn ecen d o, d iziam : 42 A outros tacada para a Palestina. O pretório era a salvou; a si m esm o não pode sa lv a r. R ei de Israel é e le ; d e sç a a g o ra da cruz, e crereresidência oficial do governador, quando m os n ele; 43 confiou e m D eu s, livre-o ele em Jerusalém, estando o seu quartel- agora, se lh e quer b e m ; porque d isse: Sou general permanente em Cesaréia. Os sol­ FUho de D eu s. 44 O m esm o lhe la n ça ra m em

1) Jesus Escarnecido Pelos Soldados (27:27-31)

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rosto tam b ém os saltead o res que co m e le foram crucificados.

Era costume o condenado carregar a viga transversal da cruz (patibulum), e não a viga vertical; e parece que Jesus a carregou, até que cambaleou, aparente­ mente exausto devido ao açoitamento (cf. João 19:17). Simão de Cirene foi constrangido pelos romanos a levar a viga da cruz pelo resto do caminho. Marcos 15:21 o identifica como “pai de Alexandre e de Rufo” , aparentemente cristãos bem conhecidos quando Marcos escreveu (cf. Rom. 16:13). É digno de nota que o ímpeto para o grande avivamento e esforço missionário em Antioquia da Síria aconteceu através de “ho­ mens de Chipre e Cirene” (At. 11:20). Embora não se possa encontrar essa co­ nexão, é bem possível que Simão, o cireneu, se tenha tornado um discípulo, e tenha introduzido o cristianismo em Ci­ rene, que se tornou um a grande força por detrás do avivamento que lançou Barna­ bé e Paulo em uma vasta campanha missionária (At. 13:1-3). Gólgota é o correspondente aramaico de caveira ou cabeça. Provavelmente de­ signava uma colina em forma de caveira, e não um velho cemitério, pois, nesse caso, estariam ali esqueletos, e não ape­ nas caveiras. A localização não é conhe­ cida. Hebreus 13:12 destaca o fato de Jesus ter sofrido “fora da porta” . Não é provável que a atual Igreja do Santo Se­ pulcro marque esse local. O “Jardim do Túmulo” ou “Calvário de Gordon” , sem dúvida, apresenta uma topografia seme­ lhante à descrita nos Evangelhos, mas, se é ou não o verdadeiro lugar da crucifi­ cação e do sepultamento de Jesus, não pode ser provado. Era costume dar à pessoa que ia ser crucificada um narcótico, para minorar a dor. Jesus recusou a mistura de vinho e fel(cholês), uma bebida amarga de certa espécie (cf. Sal. 69:21). Por que Jesus a recusou, não é revelado, embora seja bem plausível a sua resolução de conser­ var a consciência até o fim. 300

As mãos de Jesus foram pregadas à cruz (haste horizontal), e aparentemente os seus pés foram pregados à haste ver­ tical, pois havia cicatrizes de pregos em suas mãos (João 20:25) e aparentemente também em seus pés (Luc. 24:39; Sal. 22:16). Os pés da pessoa crucificada ficavam, provavelmente, apenas cerca de um metro acima do solo, fazendo com que fosse fácil os espectadores verem a vítima e lhe falarem. Os evangelhos mantêm, grande restrição quanto aos sofrimentos físicos de Jesus na cruz, dan­ do muito mais atenção à dureza de cora­ ção daqueles que zombavam dele e ao sentimento de total abandono que Jesus teve, ao sofrer sozinho. “Os eternos valo­ res da cruz não estão em suas torturas físicas” (McNeile, p. 418). A tortura física tem sido sofrida por muitas pes­ soas. Nenhum outro sofreu como Jesus: o homem sem pecado, que levou os peca­ dos do mundo. Por costume, as roupas da vítima per­ tenciam aos executores. Eles lançaram sortes, para saber com quem ficariam os despojos. Os soldados o guardavam, pa­ ra impedir que amigos do condenado o resgatassem da cruz. A epígrafe sobre a cabeça de Jesus é bem significativa, embora não saibamos as suas exatas palavras (cf. Mar. 15:26; Luc. 23:38; João 19:19). De qualquer forma, a essência do título era o rei dos judeus. Isto, provavelmente, representou a maneira de Pilatos revidar contra os principais sacerdotes e anciãos, mas tam­ bém representou a acusação formal pela qual os romanos executaram Jesus: o de alta traição. Aquela epígrafe, involunta­ riamente, proclamava a verdadeira iden­ tidade de Jesus como o rei dos judeus, embora ele fosse muito mais do que isso. A execução de dois salteadores, provavel­ mente conspiradores, ajudou a enfatizar a acusação de que Jesus aspirara ser um Messias político, acusação em que nem judeus nem romanos tinham base sufi­ ciente para crer.


o escárnio dos que iam passando, bem como dos principais sacerdotes, com os escribas e anciãos, baseava-se em uma mistura de verdade e erro, distorção de coisas que Jesus havia dito, e do que ele era. Apesar de todas as distorções, verda­ des básicas transparecem. Jesus havia falado da destruição do Templo e da sua reconstrução de forma nova e significati­ va. O clamor por um sinal dramático, como uma milagrosa descida da cruz, faz eco a pedidos anteriores de sinais messiâ­ nicos, logo em seguida ao seu batismo (cf. 4:6 e s.). O próprio âmago do evangelho trans­ parece através dos insultos dos principais sacerdotes, escribas e anciãos. Era profundamente verdade, de forma nâo per­ cebida pelos seus atormentadores, que Jesus não podia salvar-se a si mesmo se queria salvar os outros. O mais profundo princípio na vida e na morte de Jesus foi de que a salvação é baseada na doação da vida, e não em se tomá-la ou guardá-la. Se Jesus tivesse preferido salvar-se a si mesmo, não teria feito nada mais do que abraçar o caminho egocêntrico que havia afetado a humanidade desde Adão até agora. A maior mentira de todas é que alguém pode encontrar a vida “salvandoa” . A maior verdade de todas é que encontra-se vida apenas dando-a, entre­ gando-a (cf. 16:24 e s.; João 12:24 e s.; Rom. 6:3-11; Gál. 2:20). Outro tributo básico feito a Jesus, que pretendia ser escárnio e sarcasmo, mas era profundamente verdadeiro, foi de que ele confíou em Deus. Esta confiança caracterizou a vida de Jesus do começo ao fim. Até na morte, da qual pensou recuar, a sua confiança foi em Deus. Ele apoiou-se pesadamente em seus discípu­ los, e ansiou por seu sustento e com­ preensão, mas só no Pai ele encontrou esse sustento e compreensão. Se lhe quer bem, isto é, “se ele deseja tê-lo” , foi pronunciado com um amargo sarcasmo. Indesejável aos homens, eles presumiam que Deus também iria rejeitá-lo. Mal sabiam eles que aquele que estava sendo

tão desprezado entre os homens não era apenas desejado pelo Pai, mas era o “FUho amado” do Pai. 3) A Morte de Jesus (27:45-56) 45 E , d esd e a hora se x ta , houve tre v a s sobre tod a a terra, a té a hora nona. 46 C erca da hora nona, bradou J esu s e m a lta voz, dizendo: E li, E li, la m á sa b a cta n i; isto é, D eus m eu . D eu s m eu , por que m e d esa m p a ­ raste? 47 A lgim s dos que a li esta v a m , ou­ vindo isso , d izia m : E le ch a m a por E lia s. 48 E logo correu um d eles, tom ou u m a e s ­ ponja, ensopou-a e m v in a g re e , pondo-a nu­ m a ca n a , d ava-lh e de b eb er. 49 Os outros, porém , d issera m : D eix a , v eja m o s se E lia s v em salvá-lo. 50 D e n ovo bradou J e su s com grande voz, e en tregou o esp írito. 51 E eis que o v éu do santuário se rasgou e m dois, de alto a b a ix o ; a terra trem eu , a s p ed ras se fenderam , 52 os sep u lcros se ab riram , e m uitos corpos de san tos que tinham d orm i­ do foram ressu scita d o s; 53 e , saindo dos sepulcros, depois da ressu rreiçã o d ele, e n ­ traram na cid ad e sa n ta , e ap a recera m a m uitos. 54 Ora, o centurião e os que com ele guardavam a J esu s, vendo o terrem oto e as coisas que a co n tecia m , tiv era m grande t e ­ m or, e d issera m ; V erd ad eiram en te e ste era filho de D eu s. 55 T am b ém e sta v a m ali, olhando de lon ge, m u ita s m u lh eres que t i­ nham segu id o J esu s d esd e a G aliléia p a ra o servir; 56 en tre a s q u ais se a ch a v a m M aria M adalena, M aria, m ã e de T iago e de J o sé , e a m ãe dos filhos d e Zebedeu.

“Que Cristo morreu por nossos pe­ cados, segundo as Escrituras” é a afir­ mação que pertence à mais primitiva pregação cristã conhecida, sendo prépaulina (I Cor. 15:3). Os primeiros cris­ tãos consideravam a morte de Jesus como salvadora, e a interpretavam pelas Es­ crituras, bem como as Escrituras por ela. Eles a viam não como um drama ence­ nado sobre um palco, mas como uma verdadeira morte, seguida por uma ver­ dadeira ressurreição, não salvadora au­ tomaticamente, mas salvadora para aqueles que pela fé recebem o Cristo vivo em suas vidas, como uma presença trans­ formadora e redentora. Salmos 22 transparece nesse parágrafo e em grande parte da narrativa da pai­ xão. Ele deve ser lido totalmente, e recor­ dado, enquanto se lê o relato que Mateus 301


faz da crucificação. Muitas das suas de­ clarações são expressas, ou, na verdade, recitadas. Este salmo estava na mente de Jesus, e parte da sua linguagem foi ex­ pressa por seus lábios. As pequenas por­ ções do salmo são melhor entendidas à luz de todo o salmo, que é o quadro de uma pessoa abandonada, sitiada e que tinha inabalável confiança na bondade de Deus e em seu domínio final sobre todas as nações. O salmo primeiramente descreve uma pessoa sofrendo sozinha. Esta descrição é seguida de louvor a Deus pelo seu ato de libertação, primeiramente em favor daquele indivíduo, e depois estendido, como um ato de libertação, em favor de toda a humanidade e para todo o sem­ pre. É um cântico de louvor acerca do rompimento do reino de Deus mediante um poderoso ato de libertação. A sexta e a nona horas representam a marcação judaica do tempo, contado desde o nascer do sol até o ocaso, isto é, do meio-dia até três horas da tarde. A terra significa a Judéia. As trevas não foram devidas a um eclipse, pois isso não seria possível durante a lua cheia do tempo da Páscoa. Outros fenômenos na­ turais podem estar sendo mencionados, como uma tempestade ou “ siroco” ne­ gro, mas os Sinópticos parecem dizer que até a natureza deu testemunho da magni­ tude do acontecimento que se desenrola­ va no Gólgota. Mateus e Marcos registram apenas uma frase de Jesus na cruz. Lucas regis­ tra três outras (23:34,43,46) e João ou­ tras três (19:26 e s., 28,30), mas a linda e amorosa oração, pedindo o perdão dos seus inimigos, em Lucas 23:34, parece ser uma adição, feita pelos escribas, ao texto de Lucas. Não pode haver dúvidas de que o brado registrado por Marcos e Mateus remonta a Jesus, embora perma52 H arm ut Gese, em um seminário em Tübingen, em 1967-68, dem onstrou o extenso im pacto d a form a a ra ­ m aica de Salmos 22 sobre a com preensão dos cristãos primitivos acerca d a m orte de Jesus e d a Ceia do Senhor.

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neça alguma incerteza quanto à sua for­ ma lingüística. Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste? é um a tradução aramaica de Salmos 22:1, exceto que Mateus apre­ senta o hebraico Eli (“Deus meu”),_enquanto Marcos grafa o aramaico Eloi. No entanto, os manuscritos diferem em Mateus, mas Êli é provavelmente corre­ to. Um Targum aramaico de Salmos 22:1 também tem a forma Êli, usada por Mateus. A esta forma pode-se mais facil­ mente atribuir a sua confusão com Elias, feita pelos que ali estavam. A versão de Mateus, incluindo a tradução grega do aramaico, é independente de Marcos. Seja qual tenha sido a forma original, o brado remonta a Jesus, e antes disso, a Salmos 22:1. Não podemos sondar a profundidade do brado de Jesus. Tem sido freqüente­ mente observado que Salmos 22 contém um brado de desespero, que acaba em uma nota triunfal, e este pode ser um indício quanto ao seu significado para Jesus. Kasemann insiste que este brado não deve ser compreendido como expres­ são de dúvida, mas como evidência de que Jesus morreu como viveu: com a palavra de Deus nos lábios, e com uma confiança inabalável nAquele que é o único socorro permanente. Broadus pode estar perto da verdade, quando diz: “ Se se perguntasse como ele podia sentir-se abandonado, precisaría­ mos lembrar que uma alma humana, bem como um corpo humano estavam ali sofrendo, uma alma humana pensando e sentindo com limitações humanas (Mar. 13:32), em nada diferente, psicologica­ mente, de outras almas devotas, quando passaram por tristezas grandes e extre­ mas” (p. 574). O Filho de Deus era também verda­ deiramente humano, e estava sendo asso­ berbado pela sua solidão; todavia, a sua fé em Deus era afirmada no próprio 53 E m st K äsem ann, "D ie G egenw art Christi: Das K reuz” , C hristus U nter U ns (2^ ed.; S tuttgart: KreuzVeriag, 1967), p . 6.


brado de solidão. Deus nâo deu as costas a Jesus, como afirma certa teologia. Deus nunca esteve mais perto do que no Gól­ gota, quando Jesus se entregou em com­ pleta obediência à vontade do Pai (cf. Argyle, p. 215). Deus estava ali! “Deus estava em Cristo reconciliando consigo o mundo” (II Cor. 5:19). Possivelmente, o único ato de bondade para com Jesus, enquanto ele estava na cruz, partiu de um soldado romano. A pessoa não identificada que lhe ofereceu vinagre (vinho azedo), era, provavelmen­ te, um soldado. Contudo, a declaração pode ser um eco de Salmos 69:21, e pre­ tenda representar a oferta de vinagre a alguém que estava com sede, como um sadismo ainda maior. Outros foram mo­ vidos apenas por curiosidade, esperando para ver se Elias iria vir libertar Jesus. Que Jesus não morreu de lenta exaustão, como costumava acontecer com os que ' sofriam a crucificação, é evidenciado pe­ lo fato de que ele teve forças para bradar com grande voz pouco antes de morrer. João registra que Jesus morreu com um brado triunfante: “Está consumado!” Mateus diz que Jesus entregou o espírito, possivelmente enfatizando, ao dizer isto, um ato voluntário. Os crucificados, al­ gumas vezes, viviam dias antes de mor­ rer. O fato de Jesus ter falecido dentro de poucas horas foi uma surpresa para to­ dos. Dentre os portentos que cercaram a morte e a ressurreição de Jesus, os dois mais importantes foram o fato de o véu do santuário ter-se rasgado e a ressurrei­ ção de muitos corpos de santos. Havia dois véus no templo: um antes do san­ tuário, e outro antes do santo dos santos. Embora a referência possa ser a qualquer um dos dois, é mais provável que o véu fosse o principal, o que ficava diante do santo dos santos. O fato de ele ter sido rasgado de alto a baixo dá a enten­ der que foi um ato divino, e não humano. Este simbolismo deve ser considerado, com duas maiores possibilidades. Pode ser considerado como julgamento sobre o

Templo, porque Israel havia rejeitado Jesus (cf. Hummel, p. 83 e s.). A inter­ pretação, geralmente seguida, é de que agora o santo dos santos está aberto para todos os homens, e não apenas para o sumo sacerdote, uma vez por ano; por­ que em Jesus Cristo todos os homens têm acesso direto à presença de Deus (cf. Ef. 2:18; Heb. 9:1-14; 10:19-22). Mateus pode ter considerado o fato de o véu ter-se rasgado tanto como julgamento sobre Israel, quanto como a substituição do santo dos santos por Jesus Cristo. Isto concordaria com as palavras de Jesus acerca da edificação de um novo templo no lugar do velho. A terra tremeu, as pedras se fenderam. Tais fatos devem ser, provavelmente, en­ tendidos como apontando para o signifi­ cado cósmico da morte de Jesus (cf. Rom. 8:19-23). Dois pontos podem ser enfatizados a respeito da ressurreição dos mortos. Pri­ meiro, que muitos corpos (sõmata) foram ressuscitados. Ressurreição é mais do que imortalidade. A idéia da imortali­ dade é uma opinião amplamente esposa­ da de que a alma, ou espírito, é o ver­ dadeiro eu, e que o corpo é o seu túmulo ou prisão, do qual é liberta pela morte. Na doutrina bíblica da criação, p corpo pertence essencialmente ao que o homem é, isto é, à sua personalidade, e a^morte é considerada como a inimiga a^ser ^ e struída (I Cor. 15:26), e não a am ^ a que liberta a alma do corpo. Na doutrina pagã da imortalidade não há lugar para o corpo. Nà douffinã bíblica da ressurreição o corpo é incluído na redenção. Ê '^claro qúe “corpo” (sõma), em grego, como em português, é algumas vezes usado referindo-se à pessoa toda. Mas a ressvuTeiçã^o ^ m p re significa toda a peísonalidáâe, inclusivê^çprgo_ "■'©■'següíTdo^cíií^ em relação à ressur­ reição de muitos corpos, é que eles saí­ ram dos sepulcros e apareceram depois da ressurreição dele, isto é, de Jesus. A preocupação de Mateus era, prova­ velmente, afirmar a prioridade de Jesus 303


estavam perto da cruz, a uma distância na ressurreição; que ele é “as primícias dos que dormem” (I Cor. 15:20) ou “o em que podiam falar com Jesus. Mateus menciona que as mulheres estavam primogênito dentre os mortos” (Col. olhando de longe, provavelmente nâo 1:18). Os santos dificilmente podiam ser para repreendê-las por estarem distan­ outros que não os israelitas que haviam morrido e sido sepultados perto de Jeru­ tes, mas para dar-lhes o crédito de pelo menos terem estado vendo a crucifica­ salém. ção. Possivelmente ele as viu como pes­ A gramática grega deixa aberta a soas que autenticaram a tradição (cf. questão da reação do centurião (oficial Johnson, p. 611). que comandava cem soldados) e de seus companheiros. Tiveram grande temor é uma tradução exata; e visto que não há 3. O Sepultamento de Jesus (27:57-66) artigo acompanhando a palavra “filho” , a frase poderia ser traduzida um filho de 1) O Sepultamento (27:57-61) Deus, isto é, um herói, segundo o pen­ 57 Ao cair da tard e, v eio u m h om em rico samento pagão deles. Embora gramati­ de A rim atéia, ch am ad o J o sé, que tam b ém calmente possível, todavia, esta tradução era discípulo de J esu s. 58 E sse foi a P ila to s e pediu o corpo de J e su s. E ntão P ila to s m a n ­ é improvável. A frase grega é literalmen­ dou que lhe fo sse en tregu e. 59 E J o sé , to ­ te “Filho de Deus” (theou huios), e o m ando o corpo, envolveu-o num pano lim po, artigo grego não é requerido para definir de Unho, 60 e depositou-o no seu sepulcro a frase. O reconhecimento da^divindade novo, que h a v ia aberto em roch a; e, rod an ­ de Jesus Cristo, no Evangelho..de.Matêiis,»„ do u m a grande ped ra p a ra a porta do sep u l­ cro, retirou -se. 61 M as a ch a v a m -se a li M a­ h^o depende desse v^ers^lo. e deve ser ria M adalena e a outra M aria, sen tad as obsérvado que, no paralelo em Lucas, o defronte do sep u lcro. centurião diz apenas que “este homem Não apenas era costume judaico sepul­ era justo” (23:47). Todavia, é bem prová­ tar o falecido no mesmo dia da morte, vel que Mateus pretendesse contrastar os gentios aclamando Jesus como filho de mas também a Lei requeria que o corpo Deus com os sacerdotes e anciãos zom­ da pessoa que fosse crucificada fosse sepultada no mesmo dia (Deut. 21:22 e bando dele, bem como dramatizar o fato de que o humilde e desprezado crucifi­ s.). Tanto Marcos como Lucas especifi­ cado é, na verdade, Filho de Deus (Loh­ cam que era sexta-feira, pouco antes do sábado, e esta seria uma razão adicional se, Die Geschichte, p. 102). para um apressado sepultamento de Je­ Todos os três Sinópticos registram que certas mulheres, que haviam seguido Je­ sus (cf. João 19:31). Cair da tarde signi­ fica a aproximação do sábado, que co­ sus desde a Galiléia, testemunharam a meçava ao pôr-do-sol. crucificação, de longe. Tanto Mateus José de Arimatéia é mencionado, nos como Marcos incluem Maria Madalena. quatro Evangelhos, como a pessoa que A citada por Mateus como Maria, mãe sepultou Jesus. Marcos o conhecia como de Tiago e de José é, provavelmente, a “ilustre membro do sinédrio” . Ele não o mesma citada por Marcos como “Maria, chama de discípulo, mas diz que ele mãe de Tiago, o Menor, e de José” . “esperava o reino de Deus” (15:43). Lu­ A mãe dos fílhos de Zebedeu, em Ma­ teus, provavelmente é a mesma “Salo­ cas adiciona que ele era “homem bom e mé” em Marcos. Lucas nâo fornece no­ justo” e que não havia consentido nos propósitos e atos do conselho (23:50-51). mes, referindo-se, em higar disso, aos Mateus o chama de discípulo de Jesus, e “conhecidos” de Jesus e às mulheres que o haviam seguido desde a GalUéia. João João acrescenta: “embora oculto por me­ do dos judeus” (19:38). Só Mateus diz (19:25 e s.) registra que a mãe de Jesus, a que José era rico. irmã de sua mãe, e o “discípulo amado” 304


Sendo homem proeminente e rico, ele teve acesso a Pilatos com o mínimo de risco. O seu maior risco seria ofender os seus colegas judeus. Envolvendo o corpo em pano limpo, de linho, ele estava observando um costume rabínico. João acrescenta que Nicodemos trouxe as es­ peciarias costumeiras para o sepultamen­ to (19:39). Embora fosse de Arimatéia (possivelmente a Ramataim-zofim de I Sam. 1:1). José havia-se mudado para Jerusalém, pois havia preparado um se­ pulcro para si. Os sepulcros eram aber­ tos em rocha, como o de José, ou im­ provisados em cavernas. Quer o sepulta­ mento de Jesus no túmulo de José fosse temporário ou permanente, José não te­ ria permissão para usá-lo para sepultar os seus familiares, pois a lei rabínica proibia que se sepultasse membro da família em túmulo onde um homem exe­ cutado tivesse sido sepultado. A grande pedra que foi rolada para a porta do sepulcro era chata e circular. Um sulco ou trincheira servia como tri­ lho, pelo qual ela era rolada. Pedras as­ sim podem ainda ser vistas em Jerusa­ lém, no Jardim do Túmulo e no Túmulo dos Reis. Maria Madalena e a outra Maria, possivelmente “ Maria, mãe de José” (Mat. 15:47), assistiram ao sepul­ tamento. Nenhuma menção é feita aos doze ou à família de Jesus. 2) A Guarda do Sepulcro (27:62-66) 62 N o dia segu in te, isto é , o d ia depois da preparação, reun iram -se os prin cip ais s a ­ cerdotes e os fa riseu s p erante P ila to s, 63 e d isseram : Senhor, lem bram o-nos de que aquele em b u steiro, quando ain d a vivo, a fir ­ m ou: D epois de tr ê s d ias ressu rg irei. 64 M anda, pois, que o sepulcro seja guardado com segu ran ça até o terceiro d ia ; para não suceder que, vindo os d iscíp u los, o fu rtem e digam ao povo: R essu rgiu dos m ortos; e a ssim o últim o em b u ste se r á pior do que o prim eiro. 65 D isse-lh es P ila to s : T endes u m a guarda; ide, tom ai-o segu ro, com o en ten ­ deis. 66 F oram , p ois, e to m a r a m segu ro o sepulcro, selando a ped ra, e deixando a li a guarda.

Preparação (paraskeué) designava o dia imediatamente anterior ao sábado, e veio a significar sexta-feira, como no grego moderno. O dia seguinte seria o sá­ bado. Por que Mateus evita chamá-lo de sábado, não está claro. Muito debate continua até hoje quanto à autenticidade da história de Mateus, mas dois fatores importantes emergem, seja cõmõTõf que sejam avaliados. Tanto judeus como cristãos criam que ojtúmulo em que Jesus fora sepultado foi encontra^^ do vazio. Os judeus diziam que o corpo fora roubacío, ' i ^ s cristãos, que Jesus ressuscitara, mas nenhuln~dos dois gru­ pos assegurava que o corpo permanecera no túmulo. Um segundo fator importante é que, tanto para ju deus como para cristãos, a ressurreição significava, n^essariamente, a volta do corpo à vida. Õ Íúmulo vazio não provava, e não podia provar, a ressurreição. Tudo que um túmulo vazio, necessariamente, provava era que ele es­ tava vazio. A fé cristã repousa sobre-,o aparecimento do Senhor vivg..ejaão.sobre F a cTTumuIõ~lfãzíõr~Xté os discípulos, a ‘ princípio, creram que o corpo havia sido roubado. Mas, embora o túmulo vazio não provasse a ressurreição, se o corpo tivesse sido achado, nem cristãos nem judeus teriam crido que Jesus havia res­ suscitado. Ressurreição significa “ressur­ reição do corpo” , e não apenas imorta­ lidade, ou “uma sensação da presença de Cristo” , a despeito das tendências modernizadoras, por sofisticadas que sejam. Pode-se crer na história da ressurreição de Jesus, ou descrer, mas “espirituali­ zá-la” é afastar-se d a s ' declarações do Novo Testamento. Os principais sacerdotes e fariseus pe­ diram a Pilatos que o túmulo fosse guar­ dado com segurança até o terceiro dia^ judeus achavam que depois de três lias o corpo teria alcançado um estado de decomposição, e o espírito teria se afastado tanto, que não haveria chances de uma volta à vida. Em outras palavras, depois de três dias o fato da morte estaria 305


estabelecido. O desprezo de Pilatos pelos líderes judeus é expresso na sua curta resposta, sugerindo que eles usassem os guardas do Templo, e recusando, desta forma, uma guarda romana. Um cordel firmado por selos, em ambas as extremi­ dades da pedra, e no próprio sepulcro, garantiria a sua segurança. O último em­ buste temido pelos judeus era a crença na ressurreição de Jesus, sendo o primeiro o de que ele era o Messias. 4. A Ressurreição e os Aparecimentos de Jesus (28:1-20) A ressurreição de Jesus faz parte do próprio fundamento da fé e da procla­ mação cristãos (cf. I Cor. 15:12-19). Ao ^alar de ressurreição, nenhum escritor do Novo Testamento dá a entender simples­ mente uma visão de Cristo, jqu. uma sobrevivência “puramente espiritual” (cf. Cox, p. 166 e s.). Eles,falam de uma ressurreição física, seja qual for que te­ nha sido a transformação daquele corpo. Nenhuma^ distinção aguda foi traçada èntfe o “matirrál" é ^ ‘è^spInüiãI”Tcomo se faz hoje em dia. Há algo com conti­ nuidade, conhecido como “corpo” , que sobrevive às transformações diárias e constantes, ou à substituição constante de sua substância atômica, uma conti­ nuidade do corpo, juntamente com uma descontinuação em sua substância atô­ mica. O mistério desta “continuidade em mudança” física prefigura o mistério su­ premo da ressurreição, mas ressurreição é, necessariamente, ressurreição “físi­ ca” . Os Evangelhos e Paulo alicerçam a fé sobre algo que aconteceu “ no terceiro dia” , e não no segundo ou no quarto. O s' aparecimentos ou manifestações de Jesus foram de forma que puderam ser citadas e enumeradas (cf. I Cor. 15:3-8), come­ çando “no terceiro dia” e terminando no dia da ascensão. _A presença_^e_Cr^o conosco hoje é real, mas não era acerca disso que os escritores do Novo Testa­ mento estavam falando, quando escreve­ ram que ele “foi ressuscitado ao terceiro 306

dia” ou “por derradeiro de todos apare­ ceu também a mim” (I Cor. 15:8). __ 1) Aparece às Mulheres (28:1-10) 1 No fim do sáb ad o, quando já d espontava o prim eiro dia da se m a n a , M aria M adalena e a outra M aria foram v e r o sepulcro. 3 E eis que houvera um grande terrem oto; pois um anjo do Senhor d esc er a do céu e, chegandose , rem overa a pedra e e sta v a sentado sobre ela . 3 O seu a sp ecto era com o um r e lâ m ­ pago, e a s su a s v e ste s b ra n ca s, com o a n eve. 4 E de m edo d ele trem era m os gu ard as, e ficaram com o m ortos. 5 M as o anjo d isse às m ulheres: N ão tem a is v ó s; p ois eu se i que buscais a J e su s, que foi cru cificad o. 6 N ão está aqui, porque ressu rgiu , com o ele d isse. Vinde, v ed e o lu gar onde ja zia ; 7 E ide d ep ressa, e d izei aos se u s d iscíp u los que ressurgiu dos m ortos ; e e is que v a i adiante de vós p ara a G a liléia; a li o v e r e is. E is que vo-lo tenho dito. 8 E , partindo e la s p ressu ­ rosam ente do sep u lcro, com tem or e grande alegria, correram a anunciá-lo aos d iscíp u ­ los. 9 E e is que J esu s lh es veio ao encontro, dizendo: S alve. E e la s , aproxim ando-se, abraçaram -lhe os p és, e o ad oraram . 10 E n ­ tão lh es d isse J e su s : N ão tem a is ; ide dizer a m eu s irm ãos que vão p a ra a GalUéia ; aU m e verão.

Não está claro se Mateus, ao mencio­ nar quando já despontava o primeiro dia da semana, estava falando da noite do sábado, após o pôr-do-sol, ou do domin­ go de manhã. Marcos 16:1 e s., Lucas 24:1 e s. e João 20:1 colocam, inques­ tionavelmente, a visita das mulheres ao túmulo ao romper do dia de domingo. Se Mateus está seguindo Marcos, ele é tam ­ bém guiado por outra fonte. O que emer­ ge de todas as narrativas é que Maria Madalena e pelo menos uma outra mu­ lher visitaram o túmulo depois do sá­ bado, e o encontraram vazio. Em Mateus parece que a pedra não.ipra rglada_da entrada^elo anjo, até a aproxim ^ãp das mulheres. Se ô enfèndermos assim, a pedra não foi rolada para permitir que Jesus saísse, mas para permitir que as mulheres entrassem, ü deIãIHê~dê qu^o anjo estavãsêntado^obre a pedra é pro­ vavelmente adicionado como nota de triunfo. O medo dos guardas é uma


reflexão ulterior da maravilha do aconte­ cimento. A proclamação do anjo às mulheres capta dois elementos, importantes da fé cristâjgnniitiva: a tumba vazia e a res­ surreição: Não está aqui, porque ressur­ giu. Embora a tumba vazia, por si mes­ ma, não convencesse inimigos ou amigos de que Jesus ressuscitara, era um fator importante para inimigos e para amigos, a despeito da tendência moderna para obscurecer esse ponto. As mulheres fo^ i ram convidadas para ver o lugar ondej Jesus jazera. Mas a verdadeira persuasão de que Jesus ressurgira veio apenas devi­ do ao seu aparecimento aos seus segui­ dores (cf. João 20:13-16). A ordem para que as mulheres o con­ tassem aos seus discípulos dá a idéia de que eles ainda estavam em Jerusalém. O fato de que apenas o sábado se pas­ sara desde a crucificação era o motivo parcial de eles ainda não terem retornado à Galiléia. Vai adiante de vós (proagei) poderia ser traduzido “ele vos guia” , dando lugar às manifestações dele em Jerusalém; mas a declaração que se segue parece dar a idéia de que na Galiléia é que eles iriam vê-lo pela primeira vez. ‘^Ir_adiante”, é uma, expressão bíblica üpicajde um pastor guiando ps seus re­ banhos (cf. Mar. 10:32; João 1Ò:4). Qüándo as mulheres correram, com temor e grande alegria, o próprio Jesus veio ao seu encontro. Foi Jesus que veio ao encontro delas, sendo empregado o nome da pessoa que elas haviam conhe­ cido na carne. Jesus e o Senhor ressur' recto eram um e o mesmo para Mateus e os outros escritores neotestamentários. A “ressurreição” não é apenas algo que aconteceu à fé dos discípulos; fora algo que acontecera primeiramente a Jesus. Kasemann o declara muito bem: — “A fé pascoalj o i o alicg-ce do kerygma cristão, jnas não foi a primeira ou única fonte do seu conteúdo. Pelo contrário, foi a fé pascoal que tomou conhecimento do fato de que Deus agiu antes que nos tomássemos crentes, e que testificou do

fato, encerrando a história terrena de Jesus em sua proclamação... não pode­ mos nos descartar da identificação entre o Senhor exaltado e o terreno sem cair em docetismo, e nos privar da possibi­ lidade de traçar uma linha definida entre a fé pascoal da comunidade e o mito” (Essays, p. 34). Jesus saudou as mulheres com um termo ordinário, usado diariamente. Sal­ ve (chairete) poderia ser traduzido: “re­ gozijai-vos” ou simplesmente “oi” . Se isto parece muito mundano, pode pelo menos ajudar a recapitular o fato de que era Jesus, e não um seu sósia do outro mundo, que apareceu às mulheres. Elas abraçaram-lhe os pés (cf. João 20:17) e o adoraram. Diante delas estava alguém em um corpo que podiam tocar, mas elas o reconheciam como alguém a ser adora­ do, ato que é devido somente a Deus. Jesus repete a ordem acerca de um en­ contro na Galiléia, mas muda de “ dis­ cípulo” para o termo ainda mais caloroso irmãos. Ele ainda chamava aqueles que de maneira tão miserável haviam falhado para com ele na sua hora de maior necessidade e sofrimento. 2) Falso Relatório dos Guardas (28:1115) 11 Ora, enquanto e la s ia m , e is que alguns da guarda foram à cid ad e, e con taram aos principais sa cerd o tes tudo quanto h a v ia acontecido. 12 £ , con gregad os e le s com os an ciãos e tendo consultado en tre si, d eram m uito dinheiro a o s soldados, 13 e ordenaram -lhes que d is s e s s e m : V ieram d e noite os seu s d iscip u los e , estan d o nós dorm indo, furtaram -no. 14 E , se isto ch eg a r a o s ou v i­ dos do governador, nós o p ersu ad irem os, e v os liv ra rem o s de cuidado. 15 E ntão e le s, tendo recebido o dinheiro, fizeram com o foram instruídos. E e s s a h istória tem -se divulgado en tre os ju d eu s a té o d ia de hoje.

Parece que os guardas eram soldados romanos, mas Pilatos os havia entregado aos principais sacerdotes e fariseus para cumprirem os propósitos deles. A isto é atribuído o fato de eles o terem relatado aos principais sacerdotes, em vez de fazêlo a Pilatos. O fato de que o assunto pre­ 307


a entender a mesma coisa. Além disso, as cisaria ser esclarecido com o governador dá a entender que os soldados eram de fa­ minúcias são impossíveis de correlacio­ nar, mas o fato básico do aparecimento to romanos, e não guardas do Templo. Os de Jesus aos seus seguidores é solidamen­ principais sacerdotes e anciãos temeriam te atestado nos Sinópticos, João e Paulo. a reação do povo às notícias da tumba O monte na Galiléia não é identificado, vazia. Se o corpo aparecesse, isso resol­ nem quando foi que Jesus designara esta veria o seu problema, mas isso estava como lugar para o seu encontro. além das possibilidades deles. Tudo o Quando os onze viram Jesus, o adora­ que podiam fazer era subornar os sol­ ram; mas alguns duvidaram. A gramá­ dados, para dizer que os discípulos ha­ tica grega não é decisiva quanto à iden­ viam roubado o corpo enquanto eles es­ tidade dos que duvidaram, mas não há tavam dormindo. Soldados a dormir nenhuma sugestão de que os duvidosos eram testemunhas bem fracas do que eram pessoas além dos onze. Lucas regis­ acontecera! tra que os apóstolos descreram do rela­ Os temores dos soldados se relaciona­ tório das mulheres, considerando-o “co­ vam com Pilatos, e não com o povo. Os mo um delírio” (24:11). Ele diz que poderosos sacerdotes e anciãos promete­ mesmo quando Jesus apareceu entre eles, ram persuadir o governador, e livrar os ainda havia “dúvidas” em seus corações, soldados de qualquer problema, se a no­ e eles “ não acreditavam ainda, por causa tícia de que eles haviam falhado no cum­ da alegria” (24:38,41). João fala acerca primento do dever, tendo dormido em da incredulidade de Tomé, que declarou serviço, chegasse aos ouvidos de Pilatos. que não creria, a não ser que pudesse ver Até o dia de hoje refere-se a um perío­ as marcas dos cravos e a ferida no lado de do pouco depois de 70 d.C. A história Jesus (20:24 e s.). A transparente hones­ de que o corpo de Jesus fora roubado por tidade dos Evangelhos é expressa nessas seus discípulos continuou a circular por confissões abertas das dúvidas dos após­ mais um século (cf. Justino Mártir, Diá­ tolos, e dessa forma o fato da ressurrei­ logo com Trypho, 108; e Evangelho de ção e subseqüentes aparecimentos ou Pedro, 11:46-49). O mais do que certo e manifestações de Jesus são fortalecidos. significativo é que judeus e cristãos acei­ taram como fato um túmulo vazio, não ■Os discípulos não esperavam ver Jesus outra vez, e tanto a notícia das suas importa como o explicassem. manifestações como a sua presença entre 3) Comissionamento dos Discipulos eles eram boas demais para serem ver­ (28:16-20) dade. 16 P artiram , pois, os onze discípulos para O relacionamento entre ver e crer é a G aliléia, p ara o m on te que J esu s lhes importante para Mateus, da mesma for­ designara. 17 Quando o v ira m , o adoraram ; ma como é de primordial importância no m as algu n s duvidaram . 18 E , aproxim andoEvangelho de João (cf. 4:48; 6:30; 20:8). se J esu s, falou-lhes, dizendo: F o i-m e dada toda a autoridade no céu e n a terra . 19 As aparições de Jesus tinham valor evi­ Portanto, id e, fazei discípulos de tod as a s denciai (cf. João 20:8) e fazem parte do nações, batizando-os em nom e do P a i, e do testemunho cristão primitivo, mas o fato F ilho, e do E spírito Santo; 20 ensinando-os a de se avistar fisicamente apenas, não observar todas a s co isa s que eu v o s tenho m andado; e e is que eu estou con vosco todos desencadeia a fé. Alguns duvidaram, em­ os d ias, a té a consum ação dos sécu los. bora o estivessem vendo. Os principais sacerdotes entenderam mal o que era fé, Sò Mateus coloca a primeira manifes­ quando sugeriram que Jesus descesse da tação do Jesus ressurrecto aos onze na cruz, dizendo: “para que vejamos e Galiléia (cf. Luc. 24:33-43; João 20:19creiamos” (Mar. 15:32). Ver pode con­ 29), mas Marcos 14:28 e 16:7 podem dar tribuir para crer, mas a opinião mais 308


profunda do Novo Testamento é que, se a pessoa crer, vai ver (cf. João 11:40). Jesus declarou que as maiores bênçãos estão sobre os que “não viram e creram” (João 20:29). É interessante que Mateus, no úl­ timo parágrafo do seu Evangelho, salien­ tou o fato de que o aparecimento físico de Jesus deixou alguns em dúvida. A visão depende mais da fé do que a fé da visão. A Grande Comissão serve como sumá­ rio de temas básicos em Mateus, tanto quanto como uma conclusão dramática e forte. Aquele que fora apresentado como “filho de Davi, filho de Abraão, e colo­ cado em uma genealogia judaica, é de­ clarado, agora, como tendo toda a auto­ ridade no céu e na terra. Crucificado como Rei dos Judeus, ele é na verdade, o soberano sobre todas as nações. As alian­ ças com Abraão e Davi (veja Introdução, p. 63 e 64), com a promessa de um reino universal e eterno, em uma soberania de justiça, são agora cumpridas em Jesus Cristo. Todas as nações devem ser levadas a submeter-se à sua disciplina (ensino e go­ verno). Alguns consideram que ta ethnê se refere aos gentios, e não “às nações” (Hare, p. 148), sustentando que, para Mateus, os judeus estão excluídos como os que irrevogavelmente haviam rejeitado a Jesus (cf. Walker). A ênfase, provavel­ mente, é acerca dos gentios, mas os judeus não são excluídos. O verbo-chave é fazei discipulos, um imperativo em grego. Ide é um particípio que pode ter força imperativa, mas, provavelmente, está subordinado a fazei discípulos. Des­ sa forma, a idéia é “enquanto vão, tra­ gam todas as nações para debaixo da minha disciplina (ensino e governo)” . Jesus quase havia restringido totalmente o seu ministério pessoal às “ ovelhas per­ didas da casa de Israel” , mas agora comissiona os seus discípulos para uma missão mundial. Batizando-os em nome ou “para o nome” (eis to onoma) do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo é imergir em água aqueles que agora vieram para a posses­

são e proteção de Deus, conhecido como Pai, Filho e Espírito Santo. Esta é a mais antiga fórmula trinitariana conhecida, embora ela seja mencionada por implica­ ção nos anteriores escritos de Paulo (cf. I Cor. 12:4-6; II Cor. 13:13). A fórmula mais antiga, usada pela Igreja, parece ter sido “em nome do Senhor Jesus” (cf. At. 2:38; 8:16). Ê significativo que, embora seja aplicada uma fórmula trinitariana, nome está no singular. Embora Deus tenha vindo a ser conhecido como Pai, Filho e Espírito Santo, ele permaneceu como um só Deus. Nome é usado, na Bíblia, como representando a própria pessoa. Ensinando-os inclui instrução, mas es­ sa não é a ênfase. A ordem é ensinar obediência — observar todas as coisas que Jesus mandou. Isto resume a maior ênfase, no Evangelho de Mateus, no re­ quisito que pertence à salvação. A ênfase não está em doutrina ou estudo, mas na própria obediência às ordens de Jesus. O Evangelho de Mateus se encerra com uma nota que soou desde o começo, nas pregações de João Batista (3:2) e de Jesus (4:17) e é mantida através deste Evangelho. Ê o requisito de justiça; a demanda por retidão, colocada num con­ texto escatològico (Strecker, p. 184-88). A consumação dos séculos é a Parousia. Embora futura, a sua força já é sentida através da presença — estou convosco — do Senhor Jesus ressuscitado. Da mesma forma como o irromper do reino dos céus fora uma conclamação para o arrependi­ mento (3:2; 4:17), no fim do Evangelho, toda a autoridade no céu e na terra está por detrás da exigência de obediência às ordens de Jesus. Desta forma, deman­ das éticas e morais (cf. 5:48) são conser­ vadas na máxima evidência durante todo o Evangelho, o que também não deixa nenhuma esperança para a salvação, ex­ ceto para os pecadores que a receberem como a dádiva suprema de Deus (cf. 11:28-30). O livro se encerra com uma belíssima afirmação de certeza, que remonta ao 309


início do Evangelho. Eu estou convosco é um equivalente aproximado de Emanuel, “Deus conosco” (1:23). O Senhor ressur­ recto deu, a seus seguidores, a certeza da sua contínua presença até a consumação dos séculos. Isto significa até que se complete a história, mas a ênfase recai na sua consumação, e não no seu tér­ mino. O Senhor ressurrecto está conosco até que os séculos sejam levados à sua consumação, isto é, até que a história seja levada ao seu alvo. O Evangelho de Mateus termina com a Grande Comissão, mas o seu centro de gravitação com mais freqüência passa despercebido do que é visto. A conclusão do Evangelho de Mateus (v. 18-20) é cristológica, e não antropocêntrica. Quer dizer, o seu foco é Cristo, e não as nações. Não existe tanto a preocupação com um mundo perdido — no que con­ cerne a todo este Evangelho — como um chamado, uma conclamação para que o mundo reconheça o seu Senhor e lhe obedeça. Comissionar discípulos para submeterem as nações à autoridade de Cristo não é ato basicamente soteriológico, (centrado na salvação), mas cristológico. Nesta submissão a Cristo está a salvação do homem. O ponto médio dos versículos 18-20 não é o comissionamento, mas Cristo. Resume o que todo o Evangelho é, e nos apresenta a chave para a sua interpre­ tação (cf. 28:19a, com 10:5 e ss.; 28:19b com 3:11; e 28:20 com 1:23). Isto

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representa o cumprimento de Daniel 7:13 e s., a promessa de domínio ou de um reino glorioso para o Filho do ho­ mem, um reino eterno, ao qual todas as nações se submeterão. Observar a ênfase cristocêntrica da Grande Comissão não é apenas uma questão de exegese correta, mas é deci­ siva para o espírito das missões. Só quan­ do a soteriologia é subordinada à cristologia é que existe verdadeira salvação. O Evangelho é, antes de tudo, uma con­ clamação para que os homens se subme­ tam ao reino de Deus (cf. 10:5 e ss.). Quando missões ou evangelização se tor­ nam a maior preocupação do homem, o resultado final é um egocentrismo re­ ligioso, uma reles sublimação do proble­ ma básico do homem: o pecado. O ho­ mem é salvo apenas quando “se perde” em Cristo, e para ele. O Evangelho de Mateus termina com um comissionamen­ to que interessa não primeiramente à salvação do homem, mas que todas as nações sejam levadas a submeter-se à disciplina de Cristo e ensinadas a obede­ cer a tudo que foi mandado por Aquele a quem toda a autoridade foi dada, e que está conosco (cf. Emanuel em 1:23) sem­ pre: a própria presença de Deus (a Shekinah) sempre presente para levar a cabo o que ele veio fazer. 54 Veja O tto M ichel,. “ D er Abschluss des M atthäusevan­ geliums” , Evangelische Theologie, 10 (1950-51), p. 21


Marcos



Marcos HENRY E. TURLINGTON

Introdução o evangelho de Jesus Cristo estava sendo proclamado durante várias déca­ das, antes que os escritores de Marcos, Lucas, Mateus e João o registrassem. O ministério de Jesus estava virtualmen­ te confinado às minúsculas terras do seu nascimento e infância. Na época em que o primeiro Evangelho foi escrito, havia comunidades da fé em Jesus Cristo espa­ lhadas amplamente por todo o Império Romano. Os doze apóstolos, os cento e vinte de Atos 1:15 e os “mais de quinhentos” que testemunharam a ressurreição (I Cor. 15:6) eram judeus. Pelo menos du­ rante certo tempo, eles continuaram a pensar em si mesmos como hebreus segundo a fé, continuaram a adorar no Templo em Jerusalém e participavam da vida de suas sinagogas. Não aconteceu o mesmo com as igrejas que foram as primeiras a ler os Evange­ lhos: elas cada vez mais se foram sepa­ rando do judaísmo e cada vez mais come­ çaram a ser dirigidas por pessoas de origem gentílica. Embora os costumes dos primeiros missionários fossem o diri­ gir-se primeiramente às sinagogas com o seu testemunho de Jesus, as histórias em Atos e o conteúdo das Epístolas expres­ sam a inevitável predominância de nãojudeus nas igrejas do mundo gentilico. É em conexão com o discipulado e a adoração dessas igrejas que quase todo o Novo Testamento foi escrito. Os Evangelhos foram compostos, por­ tanto, em meio a tensões e interrogações que assaltavam as jovens congregações cristãs. Não era fácil ser fiel a Jesus

Cristo em uma cultura que estava com­ pletamente alheia ao evangelho, e era tanto ignorante como suspeitava da nova fé. As Epístolas geralmente propiciaram orientação ética e doutrinária a essas igrejas, atacando diretamente os seus problemas e interrogações. O senhorio de Cristo era sempre reafirmado, mas pouco de seus atos ou ensinos era citado. A cruz e a ressurreição consistiam exceções (cf.I Cor. 11:23-26; 7:10). Diferentemente das Epístolas, todavia, os Evangelhos focalizavam a figura cen­ tral de Jesus de Nazaré. Quem era Jesus? Por que os judeus não o aceitaram? Deus planejara que assim fosse? O que a vida e a palavra de Jesus significam para nós? Sempre o escritores dos Evangelhos se posicionam do ponto de vista da Páscoa, quanto à vida de Jesus: ele é para eles, como era para as igrejas deles, e como é para nós, o Senhor ressurrecto. Eles escrevem de Jesus de Nazaré, o homem que andou fazendo o bem. Mas está sempre evidente a marca registrada da sua fé: o Jesus de quem eles falam, é Cristo, o Senhor. Eles não escrevem sim­ plesmente porque a história é interes­ sante. Escrevem porque a história é sig­ nificativa — a coisa mais significativa que já aconteceu. Por conseguinte, é plausível indicar uma unidade básica nos Evangelhos. Todos eles afirmam um motivo central: que a vinda de Jesus foi o ponto crítico ou o apogeu da história do mundo. Os quatro escritores dos Evangelhos afir­ mam que em Jesus um a nova ordem foi estabelecida, trazendo vitória sobre o mal, juízo e a inauguração de um novo povo de Deus (cf. Davies, p. 136-46). 313


Durante a maior parte da era cristã, os quatro Evangelhos fòram estudados juntos, dado o pressuposto de que eles simples e independentemente se suple­ mentavam, ao contar a história de Jesus. De tempos em tempos foram escritos comentários acerca de Mateus, Lucas e João, porque porções de material desses Evangelhos não apareciam nos outros. Quase todas as linhas de Marcos deviam ser encontradas em Mateus ou em Lucas. Parecia-lhes não haver razão suficiente para estudar com igual cuidado o Evan­ gelho mais curto e, presumia-se, a menos distintiva narrativa das “vidas de Jesus” . Tudo isto mudou. No começo do século XIX, os estudiosos começaram a aplicar os métodos de crítica literária e histórica ao estudo da Bíblia. Ao invés de se concentrarem nas semelhanças e para­ lelos dos Evangelhos, começaram a notar as diferenças, fazendo perguntas acerca das variações em cronologia e sujeitando os relatos a pontos de vista filosóficos mais recentes. Reconhecendo que os Evangelhos haviam sido escritos algum tempo depois de Jesus ter vivido, os eru­ ditos começaram a se concentrar em des­ cobrir a diferença entre o “Jesus histó­ rico, real” , e o Cristo que mais tarde foi pregado como Senhor. i Para muitos desses eruditos. Marcos — mais do que os outros Evangelhos — parecia ser um registro simples das pala­ vras e dos atos de Jesus. Embora esse julgamento tenha sido superado, outra conclusão, à qual o seu estudo os levou, permaneceu, porque finalmente ficou claro que Marcos havia precedido tanto a Lucas como a Mateus, e tinha sido uma de suas principais fontes. Os estudos das origens cristãs precisavam começàr com Marcos e proceder até os Evangelhos posteriores, mais “teológicos” . Recentemente, o pêndulo dos interes­ ses teológicos osc-lou de maneira diame1 Pa''a um c o m n tá ri > accrca das Oj 1 lõe«^ atuais, veja a excelente obra á f t liu g h Anderson. Josus an d C hristian Origins (Nlw York CHforc; l'í.i>ersiiy Frcss, 1964)-. c tam bém J. M. R .-^ l. .on.

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tralmente oposta, para o “Cristo da fé” , isto é, para a natureza do evangelho como fora proclamado nas primeiras comunidades cristãs. Diferentemente do que o observador casual poderia esperar, todavia, isto em nenhum sentido dimi­ nuiu o interesse em Marcos. O reconhe­ cimento da prioridade de Marcos havia levado a um intenso estudo e dado frutos inesperados. Agora era claro que M ar­ cos, como os outros Evangelhos, não é um mero registro das palavras e dos atos de Jesus. Aqui também se encontra um testamento de fé, uma afirmação da compreensão cristã de “Jesus Cristo, Filho de Deus” (1:1). O estudo do Evangelho Segundo M ar­ cos, portanto, requer muito mais do que um conhecimento do meio ambiente gali­ leu e judaico, no qual Jesus viveu. Pre­ cisamos também procurar entender o que o autor deste livro cria em relação a Jesus. Como cumpriu Jesus o seu ministério? Quem era ele, e como os homens vieram a saber quem ele era? Como ele chegou a ser crucificado? Pre­ cisamos inquirir por que este livro foi escrito, e como o autor procurou cumprir o seu objetivo. As respostas a estas interrogações pre­ cisam ser procuradas, em sua maior parte, no próprio Evangelho. O livro é anônimo; não obstante, precisamos pro­ curar conhecer tanto quanto possível acerca de queni o escreveu. Nada se diz, no livro, a respeito dos leitores a quem ele foi dirigido, ou de suas circunstân­ cias, mas precisamos procurar alguma solução para este problema. Conhecer o quando e onde e quem de um documento é de grande ajuda, ao definir o porquê de sua lavratura.

I. Autoria, o Lugar em Que Foi Escrito, Data Felizmente, as tradições em relação à compilação de Marcos são muito antigas e medianamente consentâneas. A mais antiga delas provém de Papias, Bispo de


Hierápolis, que escreveu em cerca de 140 d.C . Os seus escritos se perderam, mas são mencionados, em pontos perti­ nentes, por Eusébio, historiador eclesiás­ tico do século IV. Embora seja questio­ nável se Papias teve oportunidade de conhecer qualquer dos apóstolos, ele afirma ter registrado cuidadosamente o que os disdpulos deles haviam passado adiante. Papias disse que o ancião João havialhe falado acerca de Marcos: “Marcos, na verdade, tendo sido o intérprete de Pedro, escreveu com exati­ dão, embora não em ordem, tudo o que pudera lembrar ter sido falado ou feito pelo Senhor. Pois ele não ouvira o Senhor. nem era um de seus seguidores, mas de data posterior (como eu disse), de Pedro; costumava adaptar os seus ensinamentos e suas instruções às necessidades (do momento), mas nâo tendo em vista reu­ nir os oráculos dominicais de maneira ordenada; de forma que Marcos não errou em ter escrito algumas coisas, como as recordava. Pois ele tinha um único objetivo em vista: Não omitir nada do que ouvira nem declarar, nesse relato, nada falso.” ^ Todas as antigas referências ao segun­ do Evangelho atribuem a sua autoria a Marcos, e todas afirmam que as infor­ mações, para tanto. Marcos as obtivera de Pedro, o apóstolo. Um prólogo a este Evangelho, escrito no segundo século, referindo-se a Marcos como intérprete de Pedro, afirma que ele escreveu o seu livro na Itália, mas depois da morte de Pedro. O testemunho de Irineu (c. 180 d.C.) é bem semelhante e relaciona o Evangelho com Roma. Clemente de Alexandria (c. 200 d.C.) dá um testemunho similar, exceto supõe que o Evangelho foi escrito durante a vida de Pedro. 3 2 Eusébio, H istória Eclesiástica, III, 39. U m a cuidadosa avaliação da tradição provinda de Papias pode ser en­ contrada em Is a Roman Gospel? de B. W . Bacon (Cam bridge; H arvard University Press, 1919). 3 Taylor (p. 1-8) propicia u m a apresentação conveniente e detalhada das evidências provindas desses e de outros escritores cristãos.

Os cristãos do segundo século criam, portanto, (1) que o Evangelho fora escri­ to por um homem chamado Marcos; (2) que esse Marcos fora discípulo de Pedro e que ele escrevera depois da morte de Pedro (o testemunho de Clemente é o primeiro a dizer o contrário); e (3) que o livro fora composto especialmente para os cristãos de Roma e suas proximidades. A melhor parte das tradições não identifica Marcos claramente, a não ser pelo fato de dizê-lo intérprete de Pedro. Marcos (Marcus) era um nome bem co­ mum entre os romanos, como João ou José entre nós. Não temos certeza de que o Marcos de I Pedro 5:13 é o mesmo que era parente de Barnabé, do qual lemos em Atos. Provavelmente “Babilônia” deveria ser compreendida como Roma, caso em que o versículo está de acordo com a tradição de que Pedro fora conde­ nado à morte durante a perseguição mo­ vida por Nero. O versículo também, nesse caso, ajusta-se bem com a tradição de que Marcos escreveu o seu Evangelho em Roma, depois da morte de Pedro. Gostaríamos muito de ter mais dados biográficos do autor. Alguns estudiosos pensam que ele era o Marcos de Jeru­ salém; outros, como F. C. Grant, em The Interpreter’s Bible, consideram grande a probabilidade de que o autor não tivesse vivido em Jerusalém. Quanto a essa questão, as evidências de que dispomos são imprecisas. Se dever-se-ia concluir que Marcos era o parente de Barnabé e viveu em Jeru­ salém, não se depreende, por isso, que ele fosse também um discípulo do Jesus terreno. O Marcos que conhecemos em Atos provavelmente era um rapaz muito jovem quando saiu de casa para viajar com Barnabé e Paulo (At. 12:25), e isso foi possivelmente quinze anos depois da ressurreição de Jesus. Durante o minis­ tério do Senhor, ele provavelmente era menino pequeno. Devemos também notar que a tradição expressa alguma crítica do segundo Evangelho. Papias disse que Marcos 315


escrevera com exatidão, embora não em ordem. Talvez ele estivesse dando res­ posta a alguém que podia ter menospre­ zado o trabalho de Marcos. E também as diferenças entre a ordem de Marcos e a dos outros Evangelhos, especialmente o de João, eram óbvias; e, no tempo de Papias, Mateus, Lucas e João eram mui­ to mais usados do que Marcos. A conclusão de que Marcos tivesse derivado todo o seu material de Pedro é bem improvável. Dificilmente Marcos teria omitido um incidente, na vida de Jesus, do qual tivesse conhecimento pes­ soal e que se coadunasse com os seus objetivos, só porque não o tivesse rece­ bido de Pedro. Paulo tinha sido influente na igreja em Roma, e não devemos supor que as tradições que ele e seus cooperadores tivessem passado adiante fossem ignoradas na compilação do Evangelho. Esses cooperadores de Paulo provavel­ mente incluíam o próprio autor (Col. 4:10; II Tim. 4:11). Precisamos lembrar que os cristãos do segundo século teriam desejado enfatizar as conexões do autor do Evangelho com um dos doze. Por outro lado, a tradição de que o livro foi escrito em Roma (ou perto dela) é de grande credibilidade; e o foi quando a igreja ali estava experimentando (ou havia passado por) grandes pressões e perseguições. Se não podemos estar certos de outras minúcias a respeito de Marcos, é razoável concluir-se que ele era um discípulo de Pedro e cristão de proeminência na Itália. E, se não puder­ mos supor que todo, ou até mesmo a maioria do material de Marcos, seja petrino, ainda podemos crer que Pedro havia contado, em Roma, muitas histó­ rias acerca de Jesus e que algumas delas são encontradas no Evangelho de M ar­ cos. Não podemos, com absoluta certeza, dar uma data exata como a da compi­ lação de Marcos. Todavia, se foi de Roma e depois da morte de Pedro, ele deve ter sido escrito não antes de 65 d.c. Se foi usado pelos autores de Mateus e 316

Lucas, como geralmente se considera, ele não pode ser muito posterior a 70 d.C.

II. Os Cristãos Romanos e o Objetivo de Marcos Não sabemos quem foi a primeira pes­ soa que levou o evangelho para Roma nem podemos dizer com precisão quando foi estabelecida a igreja naquela cidade. Temos razão para crer que havia cris­ tãos na comunidade judaica de Roma em cerca de 45 d.C., Suetônio registra que o Imperador Claúdio mandou que os ju ­ deus abandonassem a cidade devido aos distúrbios que surgiram por causa de um certo Chcestos (Cl. 25). Priscila e Ãqüila fugiram de Roma em conexão com esse édito, e parece provável que eles já fos­ sem cristãos (At. 18:2). A comunidade cristã, na cidade impe­ rial, não foi, todavia, destruída, e veio a ter apreciável número de adeptos gen­ tios. A Epístola de Paulo aos Romanos deve ser datada por volta de 55 d.C. e não podia ter sido escrita apenas a cristãos judeus (cf. especialmente Rom. 9 — 11). No fim daquela década Paulo havia sido levado prisioneiro para Roma. No cami­ nho, ele encontrou cristãos em Putéoli, e outros, de Roma, fòram até a Praça de Ãpio e às Três Vendas, para encontrar-se com o apóstolo (At. 28:13-15). Então, ele pregou em Roma, “com toda a liberda­ de, sem impedimento algum” , durante dois anos, embora, durante todo esse tempo, ele fosse conservado em custódia, às suas próprias expensas (28:30 e s.). A conexão de Pedro com a igreja em Roma é menos certa. A tradição de I Clemente e Inácio (30 a 50 anos após o suposto martírio de Pedro), mais a refe­ rência criptica feita a “ Babilônia” , em I Pedro 5:13, sustentam a conclusão de que Pedro esteve em Roma, e, provavel­ mente, foi condenado à morte nessa cidade, por Nero. Não há registro da presença de Pedro em Roma por nenhum período extenso, certamente não quando Paulo escreveu a sua epístola a essa igreja, ou enquanto Paulo estava lá.


A primeira grande perseguição contra os cristãos, no mundo gentilico, teve lugar em 64 d.C., quando Roma foi destruída por um terrível incêndio. Os rumores eram de que o Imperador Nero em pessoa havia ordenado que se ateasse fogo a Roma, para dar espaço ao seu programa de edificações. Tácito nos informa que ele desviou esses rumores de sua pessoa, culpando “ a turba chamada ‘chrestianos’” (Anais, XV, 44). A des­ crição que Tácito faz dos cristãos ex­ pressa a ignorância generalizada acerca das suas doutrinas, mas, por outro lado, o seu número crescera suficientemente para chamar a atenção. A perseguição em si foi violenta. Alguns cristãos foram vestidos de peles de animais selvagens, para que os cães os atacassem. Outros foram crucificados e, ainda outros, se lhes atearam fogo nos jardins de Nero. Não sabemos como Marcos escapou, mas a comunidade cristã sobreviveu à tragédia. Se o Evangelho de Marcos foi escrito nessa época, como cremos, ele é, em certo sentido, como diz S. A. Cartledge, “um produto do reinado de Nero” . Em primeiro lugar, a morte de Paulo, Pedro e outros capazes e maduros líderes cristãos, ameaçava criar um vácuo no conhecimento íntimo da igreja acerca da vida e da obra de Jesus. A primeira geração de cristãos havia, virtualmente, sido extinta, quer por morte natural quer por martírio. O seu legado do conheci­ mento de Jesus não podia se perder. É razoável presumir-se que Marcos reuniu as histórias escritas de Jesus que encon­ trou, juntamente com as tradições que ele já conhecia tão bem, parcialmente com o objetivo de preservá-las. Todavia, o Evangelho de Marcos não é uma simples coleção de histórias acerca de Jesus. Ele contém pontos de vista particulares e interesses característicos. 4 Veja o seu artigo acerca de “ Nero” , no In terp reter’s D ictionary of tlie Bible (Nashville; A bingdon, 1962), 111, 537 e s.

que foram de interesse específico dos cristãos dos seus dias. O fim do mundo não viera com a perseguição que eles haviam sofrido. E não veio também com a terrível carnificina, resultante da revol­ ta dos judeus, iniciada em 66 d.C., ter­ minando com a destruição de Jerusalém, em 70 d.C., embora grande foco de resis­ tência persistisse em Masada até 73 d.C. Devido à redação de Marcos 13:14-20, alguns estudiosos pensam que Marcos só foi escrito depois que o Templo fora des­ truído, mas isso é incerto. O que é evi­ dente é que o pensamento cristão acerca das últimas coisas se havia intensificado, e o seu maior interesse se focalizava nas tradições apocalípticas figurativas, como as registradas em Marcos 13. Mais do que tudo, o Evangelho de Marcos foi escrito de forma que servisse para fortalecer e guiar os discípulos da época de Marcos, em sua condição de tristeza e dúvida, de perigo e persegui­ ção. Isto é claramente visto na exortação ao discipulado, à autonegação e a toma­ rem a sua cruz (8:34). Esta é a preo­ cupação de todo o livro. Os crentes pre­ cisam seguir a Jesus. O Evangelho de Marcos, portanto, trata de Jesus como exemplo para os seus discípulos. Entretanto, como isso seria inadequado se Jesus tivesse sido mera­ mente um bom exemplo de uma boa moral para a vida! Marcos fala de Jesus de forma a lembrar, aos seus contem­ porâneos, a identidade de Jesus como o forte Filho de Deus, da confrontação de Jesus com toda sorte de poder maligno que assedia o homem, do triunfo de Jesus sobre tudo o que a humanidade cega e pervertida podia fazer contra ele. Os discípulos da época de Marcos eram homens cujos amigos se haviam tornado mártires e que viviam em uma sociedade hostil à sua dedicação cristã. Pode ser que eles perguntassem: Por que é necessário que um homem morra por causa de sua fé? Marcos lhes res­ ponde, lutando com as perguntas prio­ ritárias para um discípulo: O que dizer 317


acerca de Jesus? Por que ele precisou morrer? Não há dúvida de que esse problema havia ocupado a mente de Marcos, e, por meio do arranjo e apresentação do Evangelho, ele oferece três respostas discernidoras. Suas respostas levam em conta o caráter de Jesus, a natureza do mal nas vidas dos homens, e o propósito de Deus em seu Filho. Jesus foi condenado à morte por causa da ira e dureza de coração irracionais que ele encontrou nos líderes judaicos. Ele foi crucificado porque os homens são maus a esse ponto, e porque o mal é dessa forma cauterizante e insubmisso. Jesus morreu também porque ele era grande no único sentido em que os seus discípulos podiam ser grandes. Ele foi um bom servo dos homens que neces­ sitavam dele. Ele foi a espécie de servo que deu “sua vida em resgate de muitos” (10:45). Finalmente, mas não separadamente das outras respostas, Jesus morreu por­ que era da vontade de Deus. Isto tinha que acontecer. Deus mandou o tipo de Filho que ele era ao tipo de mundo que este é. Requereu-se do Filho do homem que ele sofresse e fosse morto. Mas a necessidade de sua morte é sempre liga­ da, em Marcos, com o resultado inevitá­ vel da vitória: a morte será vencida, ele ressuscitará (cf. especialmente 8:31; 9:31; 10:33 es.). Aqui, para os cristãos romanos, bem como para nós, há exemplo, desafio, certeza e esperança. Aqui há conforto e forças para o seu dia-a-dia, aqui há compreensão do poder do pecado, aqui há promessa de vitória. Aqui, outra vez, há o convite de Jesus: segue-me. .

III. Conteúdo e Estrutura Quando Marcos começou a planejar o seu relato acerca de Jesus, tanto quanto conhecemos, ele não tinha um esboço para seguir nem qualquer material es­ crito extenso. Parte do valor do Evange318

Iho é o fato de ter servido como fonte da maior importância para Mateus e Lucas. Marcos é o primeiro homem, ao que sabemos, — visto que, provavelmente, ninguém se lhe antecipou — a escrever uma narrativa de maior vulto acerca do ministério de Jesus. ^ Um exame do livro todo dâ, antes de tudo, a impressão de uma série de inci­ dentes que foram ligados entre si para formar um livro. Os parágrafos de M ar­ cos não começam com a mesma fórmula, todas as vezes, mas existe uma certa semelhança em sua simples transição de uma história para outra (cf. 1:16,21,29, 35,40; 2:1,13,18,23; 3:1; 4:1). Ê razoável concordar com os estudio­ sos modernos, de maneira genérica, em que as histórias de Jesus circularam pri­ meiramente em forma oral e em unida­ des autônomas. Ã época de Marcos, algumas dessas histórias já se encontra­ vam em forma escrita. O tamanho dessas historietas, em separado, varia sufici­ entemente, de forma que, como afirma H.A. Guy, teoricamente, cada uma delas podia ser registrada em uma folha sepa­ rada de papiro. Uma coleção dessas folhas, então, formou o material que Marcos tinha à sua disposição. ® Todavia, a sempre lembrada voz de um apóstolo, ou a parábola freqüente­ mente repetida, aplicada, pelo mestre cristão, à congregação, também devem ter sido entesouradas. A referência de Paulo às “ tradições” e ao fato de elas terem sido transmitidas (I Cor. 11:2,23) é mais naturalmente compreendida se pensarmos nelas como orais. Embora 5 Inúm eras teorias têm sido apresentadas, sugerindo que houve um Evangelho palestino (Ui-Markus) que prece­ deu o autógrafo que estam os considerando. Supõe-se que esse livro fosse bem simples em teologia e narrativa, e tenha sido expandido e editado p a ra as igrejas do m undo gentílico. C ontudo, a m aioria dos eruditoS hoje explica os dados de M arcos e a inter-relação dos Sinóp­ ticos de o utra form a. Cf. S.E. Johnson, The Interpre­ ter’s Bible, V II, 236 e ss., e o artigo de Ray Summers, neste Comentário. 6 Origin of tlie Gospel of Marli (New York; H arper & Bros., 1955).


Marcos tivesse sido compilado mais de uma década depois, é bem improvável que cada incidente tivesse sido colocado em forma escrita. Algumas histórias provavelmente foram registradas por Marcos sem que houvesse nenhuma fonte escrita por detrás delas. Esta conclusão é fortalecida por uma comparação de narrativas. Algumas são tão vívidas, em minúcias, que elas bem podem ter vindo diretamente de uma testemunha ocular como Pedro (cf. 1:16-20; 1:35-38; 4:35-40; 5:21-43; 9:2-8; 14:66-72). Em alguns dos outros casos, só um número bem limitado de pessoas poderia ter narrado o incidente, e Simão Pedro, um dos que pertencia ao círculo mais íntimo de apóstolos, estava presente em cada ocasião. Pode ser que algumas vezes Marcos tenha contado a história com as suas próprias palavras. Em outras narrativas, parece que temos as palavras da própria testemunha, fosse ou não Marcos o primeiro a registrá-las. Outras partes do material de Marcos são dadas em forma bem polida, mas com poucas das minúcias que são carac­ terísticas da testemunha ocular. Exem­ plos são: 2:18-20; 3:31-35; 11:27-33; 12:18-34). Os mestres e evangelistas de­ vem ter repetido essas narrativas desde o Pentecostes. Algumas vezes, palavras de interpretação foram adicionadas, o que podemos entender como interpretação para os cristãos primitivos. De que outra forma alguém entenderia a cláusula parentética: “Assim declarou puros todos os alimentos” (7:19)? Cf. também 2:28, que podia ser interpretado dessa forma, porém que as traduções que temos dão a impressão de que foram palavras de Jesus, como é tradicional­ mente considerado; e note a discussão que fazemos neste volume acerca da interpretação do semeador (4:13-20). É indubitavelmente verdade que a missão e a mensagem de Jesus, como nosso Se­ nhor sem dúvida, pretendera e como o Espírito Santo o dirigiu, foi identificada com a missão e a mensagem da igreja.

Seria errado chegar-se à conclusão de que Marcos recebeu todo o material que lhe serviu de fonte em unidades bem curtas. O bloco do ensino parabólico em 4:1-34, o “pequeno apocalipse” do capí­ tulo 13 e a sucessão de histórias, no relato da paixão, provavelmente lhe foram passadas quase na forma em que ele as transmite a nós. A opinião gené­ rica, entre os eruditos do Novo Testa­ mento, hoje em dia, é que os incidentes da narrativa da paixão foram os primei­ ros a ser reunidos em um só relato. A simples verdade que precisamos ter em mente é que Marcos não escreveu em um vácuo. Ele foi participante e herdeiro da vida e da missão do povo de Deus nos seus dias. Provavelmente, não existe um único incidente, em todo o Evangelho, que Marcos não tenha narrado pessoal­ mente, por amor do seu Senhor, de quem ele era testemunha. Temos dito que é razoável supor-se que uma das razões para a compilação do Evangelho tenha sido preservar mui­ tas das narrativas que a primeira geração de pregadores cristãos tinha sido capaz de contar tão vividamente, baseada em suã experiência pessoal. Mas as esperan­ ças ulteriores de Marcos, de servir às necessidades dos seus condiscípulos, influenciaram a ordem e a apresentação de toda a narrativa. O estilo de Marcos, ao reunir os vários relatos que faz, é, algumas vezes, tosco, mas sempre breve e objetivo. Lucas e Mateus eram homens mais capazes no que concerne à capacidade literária. Não obstante, os materiais em Marcos são certamente reunidos de forma não alea­ tória. Eles são coerentes, e convergem para o clímax: o da crucificação de Jesus. Roy Harrisville, em seu atraente livrinho The Miracle of Marli (Minneapolis: Augsburg; 1967), trata todo o Evangelho como um sermão acerca da morte de Cristo. Ao fazê-lo, ele seguiu parcial­ mente a WilU Marxsen. Marxsen tam­ bém considera o livro como um sermão em que a história de Jesus e a situação 319


dos discípulos se tornaram contempo­ râneas. Quer o Evangelho de Marcos tenha sido um sermão, quer não, ele certamente tem algumas características de um sermão e inclui todas as facetas do bem conhecido kerygma (a primitiva proclamação do evangelho) de C. H. Dodd, embora o seu conteúdo seja cons­ tituído, primordialmente, de aconte­ cimentos da vida de Jesus. Talvez Marcos tenha começado com a narrativa da paixão e arranjado os seus materiais daquele acontecimento apo­ teótico, de trás para a frente, até o começo do ministério do Senhor. Em qualquer caso, o Evangelho, depois de terminado, se constitui, naturalmente, de duas (ou talvez três) divisões prin­ cipais. Além disso, uma introdução inclui a expectação profética, culminan­ do em João Batista, e uma conclusão testifica acerca do túmulo vazio e do Senhor ressurrecto. A primeira divisão (1:14 - 8:30) apre­ senta Jesus, o forte Filho de Deus, em quem o reino de Deus estava se aproxi­ mando. Ele derrota os inimigos que afastam o homem de Deus, e o homem da sua melhor forma. Mas ao redor de Jesus permanecera uma certa medida de mistério, de forma que os seus atoá acarretaram confUto (2:1 - 3:6), ele não sendo adequadamente compreen­ dido (4:1-34) e freqüentemente sendo rejeitado, sofrendo oposição. Con­ tudo, os seus discípulos chegaram final­ mente à conclusão franca, expressa por Pedro: “Tu és o Cristo” (8:29). Esta confissão serve como ponto de partida para Marcos enfatizar o tema de Jesus, franco e repetido, de que o Filho do homem precisa sofrer. Este tema tem o seu prelúdio por toda a primeira meta­ de do Evangelho, e mais obviamente na ira dos inimigos de Jesus e suas conspi­ rações contra ele (3:1-6,22). Note-se tam­ bém as passagens que se relacionam com João Batista (1:14; 6:14-29). Mas a morte de Jesus é, antes de tudo, prevista pelas constantes referências à cegueira moral e 320

espiritual e à lentidão intelectual dos homens (cf. especialmente 3:5; 4:10-12; 6 :6). Os discípulos compartilham, com os outros homens, uma certa medida dessa dureza de coração; e um deles, o traidor, nunca a venceu. A segunda metade do Evangelho trata do caminho da cruz, não apenas física e geograficamente, mas espiritualmente também. Jesus é impehdo, por divina necessidade, para uma confrontação com o mal e a dureza de homens alienados. Igualado constantemente ao tema do conflito e sofrimento pelo Filho do ho­ mem é o encorajamento que Jesus dá a um discipulado segundo o mesmo padrão (8:31 - 9:1; 9:30-37; 10:32-45). A luta entre Jesus e as autoridades religiosas cresce em intensidade. As declarações de Jesus acerca de si mesmo se tornam cada vez mais claras e cada vez mais fazem objeção ao estilo de vida e à posição daqueles homens. A culminância do ministério de Jesus é narrada minuciosamente nos capítulos 14 -15. No fim, dificuldades de monta se levantaram para os doze. Judas traiu Jesus; Pedro negou-o; três não consegui­ ram vigiar com ele durante a experiência nojardim e “ todos os discípulos” fugiram por ocasião da sua prisão. As mulheres que foram as testemunhas primeiras da sua ressurreição estavam terrificadas (16:8). Fazendo uma análise equilibrada da situação para discípulos de sua época, Marcos descreveu (sem aplicação aberta) algumas das armadilhas que se colocam no caminho de crentes de fé e coragem, em qualquer época. A certeza de que Jesus era, e declarava ser, o Cristo, o Filho de Deus, faz parte do evento apoteótico divino. Veja espe­ cialmente a sua resposta á acusação do sumo sacerdote (14:61 e s.). Jesus morreu como Messias, o Rei de Israel, ma§ mor­ reu com esse título num sentido zombe­ teiro, no pensamento das pessoas que deviam estar dispostas a recebê-lo como tal. Por outro lado, o oficial do exército, representante de Roma, que testemu­


mente por esse título (note, contudo, 1:3 e 7:28). Esses títulos que foram aplicados a Jesus esIaõ7Tõ3râ~èles, de acordo com o ponto de vista de Marcos, envolvidos em um certo mistério. Todo leitor vai entender, desde-^r^nHcípio, quem era Jesus; da mesma forma também o entendem os poderes que têm discernimento além do humano. Os demônios o reconhecem e o chamam com títulos apropriados, embora o poder de Jesus seja maior do que o deles (1:24, 34; 3:27; 5:7). Mas Jesus proíbe os demônios de torná-lo conhecido. Quanto ao homem, envol­ vido e endurecido em seu pecado e ce­ IV. Idéias Teológicas gueira, muitas vezes não reconhece Embora o Evangelho de Marcos não Jesus, e se opõe a ele com crescente seja orientado na direção de idéias teo­ tenacidade. Alguns homens ouvem, mas lógicas, de uma forma mais elaborada e muitos não. sistemática, o^ conteiído ,do_Jüvxcx--é-Q Nenhum, dos principais nomes aplica­ âmago da fé cristã e da Mensagem do dos a Jesus, em Marcos, devia ser neces­ Cristo. A tese de Marcos pode ser declasariamente claro e esclarecedor para o ' fãTda resumidamente: em Jesus Cristo, o seu auditório. O que teria significado Filho de Deus, o reino de Deus esmerado “Filho de Deus” para os galileus? Um se aproximou.~p.ara trazen_salvacão ao_ homem piedoso? Um homem que tinha o homem. Embora o próprio poder de poder de Deus expressando-se em si? Deus estivesse ativo nele, na realização Teria significado — blasfêmia das blas­ da sua obra, era-lhe necessário, na luta, fêmias! — genuína divindade? Jesus derrotar as forças inimigas do mal que chamou a si mesmo de “Filho do hoassaltam o homem, fazendo-o sofrer e niêtn'” . O que significavT“ü s iT o m è Y ' morrer. Contudo, há esperança, pois o “Simplesmente homem? Este é o signifi­ homem pode olhar para o futuro, para cado e m / ^ e q u i d ^ Significaria que _o^ aquele glorioso dia final, quando Jesus -Õ r iâ -C Q m - g lá i voltará em poder e juízo, e reunirá os ria? Este é o significado em{b a n ie p Mas seus discípulos vigilantes que o esperam. identificou o Filho do hon lomem com Claro que nem a cruz levou o Filho de alguém„aue precisava sofrer e morrer. Deus a um fim, pois ele ressuscitou do “Cristo” j r a um título que Jesus aceitou, túmulo! mas não perfïïîtiîTqûe o ulásse: que Verificando-se este sumário, torna-se esíê~nõme signiíi2ãvã"para Pedro, em óbvio que a teologia de Marcos é primor­ 8:29, dificilmente podia ser o que Jesus dialmente cristológica. Quem eraj^esus2-, concebia como o seu papel. OslBtulos que lhe sãò dados são consi­ O mistério da identidade de Jesus é derados em lugares apropriados, no unTIKina importante em Marcos. Em corpo do comentário. Os mais impor­ 1901, William Wrede chegou à conclu­ tantes são: Filho de Deus (cf. 1:1, 11; são, estudando Marcos, de que o minis­ 14:61; 15:39); Filho do homem (cf. tério de Jesus não havia sido considerado 2:10; 8:31; 13:26); e Cristo ou Messias como messiânico senão apenas depois da (8:29). Marcos considera Jesus como sua ressurreição. A maioria dos estudan­ Senhor, mas não o chama caracteristicates de Marcos, depois de Wrede, têm nhou a cena, reconheceu Jesus em sua morte como sendo realmente o Filho de Deus (15:39). Marcos não se detém no tema da res­ surreição. É o acontecimento que de­ monstra a vitória de Jesus sobre o pior que o homem pode fazer. Mas a obra culrriinante do Filho de Deus, o evento terrível, mas necessário, foi a morte na cruz. A ressurreição foi o sinal que asse­ gurava o fato de que a poderosa obra de Deus fora feita, que os homens haviam tido razão em crer em Jesus e ser seus discípulos (16:1-8).

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assumido posições contrárias a ele (R. Bultmann é uma notável exceção), con­ tudo, chegando a conclusões diferentes. ^ A posição assumida neste trabalho é de que o mistério Ha—iden±idade_de Jesus, juntamente com a dureza ou cegueira dos seus contemporâneos, explicãva, para Marcos e para os seus leitores, p õ r ^ e tantas pessoas não haviam crido oúr seguido a „ Jesu^ Sobretudo, uma siixiação semelhante à da época de M ar­ cos acontece hoje, com as mesmas conse­ qüências: só os crentes entendem o ver­ dadeiro significado de Jesus, e sabem quem ele realmente é. A expressão “teino de Deus” não é usada freqüentemente em Marcos. Não teria grande significado para os cristãos em Roma, exceto no contexto da sua herança judaica. Aqui, outra vez, a dis­ cussão desse conceito foi feita no corpo do comentário (cf. especialmente 1:15). O estudante precisa ter em mente que o conceito de reino era sempre escatológico, em algum sentido, algo ao mesmo tempo significativo e último. Marcos cria que o reino de Deus era muito real e ativo em Jesus, e, em forma derivada, em seus discípulos (ver. 6:7). Portanto, o re^u^iá foi inaugurado. Contudo, Marcos tam'^ é m espirãvã^m a Parousia, uma vinda triunfal no füHro,~^prõ^Blmente (no pensamento dele), em futuro próximo, embora nem o Filho conhecesse a hora (13:32). Marcos não liga diretamente a idéia da segunda vinda com a ressurrei­ ção. O fato de que ele possa tê-lo feito em um epílogo, agora perdido, é incerto, bem como especulativo.

V. o Texto de Marcos Os modernos estudantes da Bíblia são recipientes de uma notável herança de 7 P ara um a pesquisa dos pontos de vista acerca desta questão, veja J. M . Robinson (Cap. 1) e, pelo mesmo autor, “ The R ecent D ebate òn the ‘Nevi^ Q uest’” , Jour­ nal of Bible and Religion, XXX, 3 (1962), p. 198-208. Veja tam bém o excelente artigo p or L. S. Hay, com o qual me encontro em substancial acordo: “ M ark ’s U se of the M essianic Secret” , Journal of the American Aca­ demy of Religion, XXXV, 1 (1967), p. 16-27.

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pesquisa erudita, nos atuais textos críti­ cos do Novo Testamento. Há compara­ tivamente poucas questões textuais de grande interesse, neste Evangelho, e, onde for apropriado, essas questões serão abordadas no tratamento do texto. O único problema textual de monta com que nos precisamos preocupar, a este ponto, refere-se ao epílogo do livro. Marcos 16:9-20 é definidamente uma adição posterior, embora tenha sido feita por um escritor cristão consagrado, que fez grandemente apropriações dos outros três escritores de Evangelhos canônicos. Um antigo texto armênio atribui o epílogo ao presbítero Aristion. Esses versículos não se encontram nos manuscritos melhores e mais antigos de Marcos, e o mais bem informado erudito cristão da antiguidade, Eusébio (c. 325), nos fala que nos melhores e mais antigos manuscritos que ele conhecia, a conclu­ são do Evangelho era: “porque temiam” (16:8). Depois de examinar cuidadosamente as evidências, B. H. Streeter chegou à conclusão de que Marcos não viveu para terminar o Evangelho (tendo sofrido martírio durante o reinado de Nero?) ou que o Evangelho foi, logo no princípio, mutilado e perdido o seu epílogo origi­ n al.» Alguns (por ex.: E. Lohmeyer, R. H. Lightfoot, W. C. Allen) têm argumenta­ do que o texto original deveria terminar em 16:8, tendo Jesus ressuscitado, mas estando ainda bem presentes no coração dos seus seguidores o medo e a admira­ ção. Todavia, não há paralelo, na antiga literatura, de um livro terminar, como o original grego de Marco 16:8, com uma conjunção como gar (pois, porque). Sobretudo, este Evangelho obviamente pretendia exaltar o forte Filho de Deus, que Marcos e seus leitores criam que ainda havia de vir “em nuvens com gran­ de poder e glória” . É incrível, como diz 8 The F o u r Gospels (ed. rev.; London: M acm illan, 1930), p. 3 3 8 -4 4 .


Taylor, que Marcos pretendesse uma conclusão dessas para o seu trabalho. O epílogo original perdeu-se, deve supor-se, logo depois que foi escrito. Talvez, como sugere Streeter, o fim do rolo foi rasgado, de alguma forma, em conexão com a perseguição dos cristãos em Roma. Todavia, se tudo o que resta do trabalho original de Marcos acaba em 16:8, mesmo assim temos o seu teste­ munho da realidade da ressurreição de nosso Senhor.

VI. Plano e Limitações do Co­ mentário O COMENTÁRIO do qual este estudo de Marcos faz parte destina-se a minis­ tros e estudantes leigos que estejam mui­ to desejosos de conhecer o significado da revelação bíblica. Ele não se destina principalmente ao estudo acadêmico, mas a interpretação, instrução e teste­ munho. No entanto, o estudo contemporâneo de Marcos tem tantas facetas que são de interesse significativo para o estu­ dante sério da Bíblia, que a tarefa de escrever um comentário parece grande demais. Em uma obra deste porte, a pessoa é forçada a escolher entre as ênfases possíveis. Pode-se concentrar-se, por exemplo, nas questões referentes à história de Jesus: Se Marcos escreveu uma geração depois da crucificação, até que ponto o retrato que ele faz de Jesus concorda com a vida de Jesus da forma como os seus contemporâneos galileus o haviam visto? Ou, pode-se trabalhar, através do texto de Marcos, estudando o desenvolvimento da fé cristã e do pensa­ mento cristão primitivos como são ex­ pressos nas narrativas do Evangelho. Este estudo dá a maior parte das suas atenções ao significado do Evangelho a Marcos e aos seus contemporâneos. Como é que eles entendiam a vida e as palavras de Jesus, quando as receberam? Tentei, não obstante, chamar a atenção, quer no texto, quer em "notas de rodapé,

para algumas das alusões mais revela­ doras e para algumas das questões ainda em discussão por eruditos que têm abor­ dado Marcos de outra forma. As limitações presentes em um comen­ tário não são todas elas, da escolha do autor, nem de desígnio particular suge­ rido pelos editores, nem de espaço e nem, quem sabe, são devidas a competência do escritor. O Estudo da Escritura, e especificamente de Marcos, é uma disci­ plina contínua. Cada década deste século trouxe novas interrogações, ou questões antigas feitas de maneira nova e produ­ tiva. 9

Esboço do Evangelho I. O Começo das Boas-novas (1:1-13) 1. A Nota-chave (1:1) 2. João e Jesus (1:2-11) 1) A Expectativa Profética (1: 2,3) 2) João, o Batizador( 1:4-8) 3) O Batismo de Jesus (1:9-11) 3. A Tentação de Jesus (1:12,13) II. O Ministério de Jesus: Mistério e Revelação (1:14-8:30) 1. O Começo do Ministério Galileu (1:14-3:6) 1) Sumário dos Ensinos de Jesus(1:14,15) 2) A Vocação dos Primeiros Discípulos (1:16-20) 3) O Novo Ensino e Fama Ime­ diata (1:21-45) 9 E m conexão a isto, um exem plo comum nos estudos de M arcos é o dado por Best. Ele não pergunta: O que Jesus ensinou? ou; O que o próprio Jesus pensava do significado de sua vida e de sua m orte? Ele pergunta, sim: “ O que M arcos diz ter sido realizado pela vida, morte e ressurreição de Jesus, o C risto?” (p. ix). Ele exam ina o que cham a de “ su tu ras” de “ adições expli­ cativas” de M arcos e a seleção de m ateriais que M arcos fez. Os métodos utilizados por hom ens como H . Conzelm ann, J. M . Robinson e outros têm m uito a ver com Best, e certam ente propiciarão m uita visão nova nos anos futuros. P a ra um a pesquisa acerca dos pontos de vista e tendências atuais, cf. A nderson e C. E. Braaten, New Directions in Tlieology Todaj', Vol. II, “ History and H erm eneutics” (P hiladelphia: W estm inster Press, 1966).

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4) Controvérsias com os Escri­ bas (2:l-3:6)

15) O Reconhecimento do Cristo (8:27-30)

2. O Ministério em Expansão e a Instrução dos Doze (3:7-5:43) 1) As Multidões Junto ao Lago (3:7-12) 2) A Indicação dos Doze (3:1319) 3) Acusações Contra Jesus de Loucura ou Poder Demonía­ co (3:20-30) 4) A Verdadeira Família de Jesus (3:31-35) 5) Instrução Através de Pará­ bolas (4:1-34) 6) Instrução Através de Obras Poderosas (4:35-5:43)

III. O Caminho Para a Cruz: O Cristo Secreto e o Filho do Homem Reve­ lado (8:31-13:37) 1. A Paixão Esperada e o Significa­ do de Discipulado (8:31-10:52) 1) O Filho do Homem Sofrerá (I) (8:31-33) 2) A Difícil Escolha do Disci­ pulado (8:34-9:1) 3) A Transfiguração (9:2-8) 4) A Volta de Elias e a Ressur­ reição do Filho do Homem (9:9-13) 5) A Cura de um Menino Epilé­ ptico (9:14-29) 6) O Filho do Homem Sofrerá (II) (9:30-32) 7) A Verdadeira Grandeza no Discipulado (9:33-37) 8) A Inclusividade do Discipu­ lado (9:38-41) 9) A Necessidade de Discipula­ do Fiel (9:42-50) 10) A Pergunta Acerca do Divòrcio( 10 :l- 12) 11) Crianças São Abençoadas (10:13-16) 12) O Perigo das Riquezas Para o Discipulado (10:17-31) 13) O Filho do Homem Sofrerá (III) (10:32-34) 14) Ambição Egoística Versus Grande Discipulado (10:3545) 15) A Cura de Bartimeu (10:4652)

3. Reieição e Reconhecimento do Cristo (6:1-8:30) 1) Incredulidade e Rejeição na Terra Natal ( 6 :1 -6 a) 2) Ministério Através dos Doze (6:6b-13) 3) A Consideração de Herodes Acerca de Jesus, e a Morte de João Batista (6:14-29) 4) A Volta dos Doze e a Ali­ mentação de Cinco Mil ( 6 : 30-44) 5) Andando Sobre as Âguás (6:45-52) 6) As Curas em Genezaré ( 6 : 53-56) 7) Lavagem Ritual: Manda-, mento e Tradição (7:1-13) 8) A Natureza da Verdadeira Contaminação (7:14-23) 9) A Cura da Menina Gentia (7:24-30) 10) A Cura do Surdo-mudo (7: 31-37) 11) A Alimentação de Quatro Mil (8:1-10) 12) Os Fariseus Pedem um Sinal dos Céus (8:11-13) 13) Advertência aos Discípulos Contra Endurecer o Cora­ ção (8:14-21) 14) A Cura de um Cego(8:22-26) 324

2. A Chegada a Jerusalém e o Con­ flito com os Líderes Religiosos (11:1-12:44) 1) As Declarações de Jesus em Atos Parabólicos (11:1-19) 2) Encorajamento à Fé e à Ver­ dadeira Oração (11:20-25) (26) 3) Contra-ataque a Jesus e Sua Defesa (11:27-12:27)


4) A Pergunta Acerca do Prin­ cipal Mandamento (12:2834) 5) A Pergunta Acerca do Rela­ cionamento de Davi com o Cristo (12:35-37) 6) Contraste na Mordomia: Os Escribas e a Viúva Pobre (12:38-44) 3. O Discurso Apocalíptico: A Im­ portância de Discipulado Vigi­ lante (13:1-37) 1) A Predição da Destruição do Templo e a Pergunta dos Discípulos (13:1-4) 2) Advertências Contra Falsos Cristos, Grandes Perturba­ ções e Tribulações Angustio­ sas Para os Discipulos (13: 5-13) 3) A Época Terrível do Sacrilé­ gio Desolador ( 13:14-23) 4) A Vinda Triunfal do Filho do homem (13:24-27) 5) A Necessidade de Percepção Alerta (13:28-37) IV. Culminação do Ministério; Morte na Cruz e Ressurreição do Túmulo (14:1-16:20) 1. Conspiração Contra Jesus (14: 1, 2)

2. A Unção em Betânia (14:3-9) 3. A Tradição de Judas (14:10,11) 4. A Preparação Para a Páscoa (14:12-16) 5. A Refeição Pascal ( 14:17-25) 1) Profecia Acerca da Tradição (14:17-21) 2) O Pão e o Cálice (14:22-25) 6 . A Profecia Acerca da Negação (14:26-31) 7. A Agonia e Oração no Getsêma­ ne (14:32-42) 8 . A Prisão de Jesus (14:43-52) 9. A Audiência Diante do Sumo Sacerdote (14:53-65) 10. Pedro Nega Jesus (14:66-72)

11. O Julgamento Diante de Pilatos (15:1-15) 1) A Pergunta do Governador (15:1-5) 2) A Libertação de Barrabás e o Sentenciamento de Jesus (15:6-15) 12. O Tormento Zombeteiro Pelos Soldados (15:16-20) 13. A Crucificação de Jesus (15:2132) 14. A Morte de Jesus (15:33-41) 15. O Sepultamento por José (15: 42-47) 16. O Túmulo Vazio e o Anúncio da Ressurreição (16:1-8) 17. Epílogo Extenso: As Aparições Pós-ressurreição e a Ascenção (16:9-20)

Bibliografia Selecionada Faz-se referência, no texto, a algumas monografias, introduções e obras de referência que foram consultadas. Bi­ bliografias mais compreensivas são dadas nos livros mencionados por V. Taylor, E. Best e C. E. B. Granfield. BEST, ERNEST. The Temptation and the Passion: The Markan Soteriology. Cambridge: University Press, 1965. BRANSCOMB, B. H. Gospel of Mark (“Moffatt New Testament Commen­ tary”). New York: Harper & Bros., n. d. BRATCHER, R. G. e E. A. NIDA. Translator’s Handbook on the Gospel of Mark. Leiden: E. J. Brill, 1961. BURKILL, T. A. Mysterious Revelation: an Examination of the Phillsophy of St. Mark’s Gospel. Ithaca: Cornell University Press, 1963. CARRINGTON, PHILIP. According to Mark. Cambridge: University Press, 1960. CRANFIELD, C. E. B. Gospel Accor­ ding to Mark (“Cambridge Greek Testament Commentary”). Cambrid­ ge: University Press, 1966. 325


DAVIES, W. D. Invitation to the New Testament. Garden City, New York; Doubleday & Co., 1966. FARRER, AUSTIN. A Study in St. Mark. New York; Oxford University Press, 1952. GRANT, F. C. Gospel According to St. Mark (“The Interpreter’s Bible” , Vol. VII). Nashville: Abingdon Press, 1951. JOHNSON, S. E. Gospel According to Mark. (“Black’s New Testament Commentaries”). London: Adam and Charles Black, 1960. LIGHTFOOT, R. H. The Gospel Mes­ sage of St. Mark. Oxford: Oxford University Press, 1962. MAJOR, H. D. A., T. W. MANSON e C. J. WRIGHT. The Mission and Message of Jesus. New York: E. P. Dutton & Co., 1938.

MINEAR, PAUL S. Gospei According to Mark. (“Layman’s Bible Commen­ tary” , XVII). Richmond: John Knox Press, 1957. MOULE, C. F. D. The Gospei Accor­ ding to Mark (“Cambridge Bible Commentary on NEB”). Cambridge: University Press, 1965. NINEHAM, D. E. Saint Mark (“Pelican Gospel Commentaries”). Baltimore: Penguin Books, 1963. RAWLINSON, A. E. J. St. Mark. 7» ed. London: Methuen & Co., 1949. ROBINSON, J. M. The Problem of His­ tory in Mark (“ Studies in Biblical Theology” , n« 21) Naperville, 111.; Alec R. Allenson, 1957. TAYLOR, VINCENT. The Gospel Ac­ cording to Mark. 2® ed. New York: St. M artin’s Press, 1966.

Comentário Sobre o Texto I. o Começo das Boas-novas (1:1-13) 1. A Nota-chave (1:1) 1 P rin cíp io do evan gelh o de J esu s C risto, Filho de D eus.

O título “O Evangelho Segundo M ar­ cos” , como o dos outros Evangelhos, foi adicionado ao livro durante o segundo século, e dá evidências da crença da igreja daquela época acerca de sua ori­ gem. No entanto, os Evangelhos são anô­ nimos, e a palavra “evangelho” era ante­ riormente aplicada não a uma forma de literatura, mas à atividade de Deus, atra­ vés de Jesus. O primeiro versículo não é meramente um título. Ê uma nota-chave para o livro, como um todo. Austin Farrer chama essas palavras iniciais de “uma semente, da qual crescerão as sentenças seguin­ tes” . 326

Em Marcos, a palavra de Deus em João Batista é considerada o começo da ação divina expressa plenamente em Jesus. Em Lucas, João é considerado o último profeta da velha era. Lucas viria a dizer: “A lei e os profetas vigoraram até João; desde então é anunciado o evan­ gelho do reino de Deus” (16:16). Lucas chega a falar da prisão de João, antes de dizer que Jesus fora batizado (3:18-22). No entanto. Marcos trata o ministério de João mais de perto, como uma fase intro­ dutória do evangelho. É até possível tra­ duzir: “Princípio do evangelho... foi João, obatizador.” No uso primitivo entre os gregos, “evangelho” significava a recompensa dada a uma pessoa por dar boas-novas. No primeiro século, todavia, foi aplicada às boas-novas propriamente ditas. Bem pode ser que os cristãos de Roma esti­ vessem familiarizados com a maneira como os devotos do imperador usavam a


palavra no culto a ele. Uma inscrição em Priene (datada de 9 a.C.) fala acerca do aniversário do deus (o Imperador Augus­ to) como propiciando “evangelhos” ao mundo. No entanto, Marcos estava escrevendo a cristãos, e a palavra evangelho tinha uma conotação especial para os segui­ dores de Jesus. O significado precisa ser considerado à luz do Velho Testamento e das expectações de Israel. O grande pro­ feta do Exílio, algumas vezes chamado Segundo Isaías, trouxe uma mensagem de esperança para o povo. Ele previu o fim do cativeiro, a volta do povo, e final­ mente uma nova era. Nessa nova era, Deus seria vitorioso sobre os inimigos de Israel e o seu reinado seria estabelecido na terra. Um mensageiro viria, arauto de boas-novas, para predizer o aconteci­ mento. Veja especialmente Isaías 40: 1-11 e 52:7-10. Quando a palavra evangelho foi apli­ cada à ação de Deus em Jesus, signifi­ cava que a vitória decisiva e há tempos esperada, sobre os inimigos de Deus, havia sido realizada. Jesus havia cumpri­ do as esperanças de Israel, e uma nova era havia raiado. As boas-novas eram que Deus havia visitado o mundo em Jesus, para derrotar os inimigos de Deus, o poder do mal e estabelecer o seu gover­ no divino. O contraste entre as boas-novas da salvação de Deus em Jesus, e as boasnovas ou benefícios do imperador devia ser muito vivido para os cristãos que vi­ viam em Roma, sob o governo de Nero. Mas é de se duvidar muito que o cristão romano da sétima década d.C. tivesse sequer sonhado chamar qualquer coisa daquela época de boas-novas! Para os cristãos em geral, e para Marcos em particular, o termo evangelho tinha um significado característico. Era aplicado exclusivamente à vida e à obra de Jesus. Breves resumos do Evangelho devem ser encontrados em vários dos discursos de Atos, especialmente os de Pedro e Paulo. Uma análise do conteúdo de Atos

10:34-43, por exemplo, quase propicia um esboço aceitável de Marcos. Deus, que havia prometido ajuda mediante o testemunho dos profetas, enviara as boas-novas de paz a Israel através de Jesus. Ele fora ungido por Deus e andara fazendo o bem e vencendo poderes do mal. No entanto, foi condenado à morte. Mas Deus o ressuscitou dentre os mortos, e ele apareceu aos seus seguidores como Senhor ressuscitado e como aquele apon­ tado por Deus para julgar toda a huma­ nidade. As palavras Jesus (o Senhor salva) e Cristo (o ungido), usadas neste versículo de abertura, se tornaram, para Marcos, simplesmente os nomes próprios pelos quais a Igreja fala de seu Senhor. Alguns dos manuscritos mais antigos não incluem as palavras Filho de Deus. É impossível saber se elas estavam presen­ tes no original. Contudo, são singular­ mente apropriadas para o Evangelho de Marcos. Em adição ao reconhecimento dele pelos poderes demoníacos (cf. 3:11; 5:7), o centurião romano confessa Jesus como “ o Filho de Deus” (15:39). A voz do próprio Deus chama Jesus de seu Filho, tanto por ocasião do seu batismo, ( 1 : 11 ), como por ocasião da transfigura­ ção (9:7). Embora, em Marcos, Jesus não use esse título a respeito de si mesmo, a fraseologia em 12:6, 13:32 e 14:61 e s. é aproximada. Para Marcos, o Fiiho de Deus descreve essencialmente quem é Jesus: o pode­ roso, de quem emana o poder de Deus, o verdadeiro, a quem eles precisam ouvir, o sofredor, que foi obediente ao Pai ao ponto de morrer na cruz (12:1-11; 14:36). 2. João e Jesus (1:2-11) 1) A Expectativa Profética (1:2,3) % Conform e e stá escr ito no profeta I s a ía s : £ i s que envio an te a tua fa c e o m eu m e n sa ­ geiro, que h á de prep arar o teu ca m in h o ; 3 Voz do que cla m a no d e se r to : P rep arai o cam inho do Senhor, en d ireitai a s su a s v e r e d a s;

327


Para os cristãos, a vinda de Cristo a este mundo foi (como permanece até agora) o acontecimento decisivo da histó­ ria. Se de fato Jesus era o Filho de Deus, a sua vinda não poderia ter sido um acidente. Quem era o Deus de quem Jesus era o Filho? Todos os cristãos desse período primitivo o identificavam, como o pró­ prio Jesus o fazia, com o Deus de Israel, o Doador da Lei, o Deus cuja mensagem os profetas haviam transmitido. Como seguidores de Jesus, os cristãos criam serem o verdadeiro Israel, os herdeiros das promessas divinas. Coerentemente, eles sondavam as Escrituras não apenas procurando orientação, mas também passagens que confirmassem ou ilumi­ nassem o lugar e a obra de Jesus no propósito divino. Juntamente com a igreja primitiva, da qual ele fazia parte. Marcos cria que João Batista era parte integrante do pla­ no sagrado. João fora um mensageiro enviado para anunciar a vinda de alguém maior do que ele mesmo e para preparar o povo para o ministério desse alguém. É desta maneira que o ministério de João foi interpretado, e as passagens bíblicas que confirmavam esta conclusão eram facilmente discernidas e mencionadas. As citações de nosso texto são de Malaquias 3:1 e Isaías 40:3. ^°_A primeira delas é quase idêntica a Êxodo 23:20 (leia “ mensageiro” , em lugar de “anjo” ; as palavras são as mesmas tanto no he­ braico como no grego). Entre os hebreus, os escritos dos profetas eram conside­ rados possuídos de autoridade, como comentários ou interpretações da Lei de Moisés. Talvez o uso mais antigo destas passagens em conjunto tenha sido feito

10 A versão d a IBB é certam en te.co rreta ao g rafar “ no profeta Isaías” , em vez de “ nos profetas” (em o u tra tradução). A evidência textual é conclusiva. Se a passa­ gem em M alaquias foi inserida p o r u m copista d a antiguidade, ou se foi tirad a p o r M arcos de u m a cole­ ção de passagens do V .T ., em que o versículo em ques­ tão já estivesse ligado a Is. 40:3, é coisa incerta.

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por judeus cristãos, expressando a sua fé, enquanto adoravam nas sinagogas. “ Em Êxodo, o mensageiro deve ir adi­ ante de Israel, mas em Malaquias, diante do Senhor Deus mesmo. Semelhante­ mente, em Isaías 40, “o caminho do Senhor” é o caminho de Deus. Quando Marcos afirma que João cumpriu essas profecias, está dizendo claramente que identifica Jesus como o Senhor de quem o profeta falara. 2) João, o Batizador (1:4-8) 4 a ssim a p a receu João, o B a tista , no deserto, p regan d o o b a tism o de arrep en d i­ m ento p ara rem issã o dos p eca d o s. 5 E sa ia m a ter co m ele tod a a terra d a Ju d éia, e todos os m orad ores de J e ru sa lé m ; e e ra m batizados por e le no rio Jordão, con fessan d o os seu s p eca d o s. 6 O ra, João u sa v a u m a v e ste de p êlos de ca m elo , e u m cinto de couro e m torno de se u s lom b os, e co m ia gafanhotos e m e l sU vestre. 7 E p reg a v a , dizen d o: Após m im v e m a q u ele que é m a is poderoso do que eu , d e q u em não sou digno d e, inclinando-m e, d esa ta r a co rreia d^is a lp a rca s. 8 E u v o s b a tizei e m á g u a; e le, porém , v o s b atizará no E sp írito Santo.

Para os cristãos, e talvez para o pró­ prio profeta, a obra primordial de João era ser o precursor de alguém maior do que ele mesmo. Não obstante, ele era uma figura religiosa poderosa e influente por si mesmo. O dilema dos principais sacerdotes e escribas, em Marcos 11:2733, reflete a estima em que João era tido. Depois de sua morte, os seus discípulos continuaram a proclamar a sua mensa11 Os essênios da com unidade m onástica de Q um ran criam que eles estavam cum prindo a profecia de Isaías 40, ao preparar, no deserto, o cam inho do Senhor. Cf. IQ S V III, 12-15 Q um ran estava n a m argem do deserto do qual João saiu p a ra pregar. H á semelhanças entre João e o povo dos Rolos do M ar M orto, m as não temos evidências diretas de contato entre am bos. As com parações são instrutivas. Os essênios tam bém p ra ­ ticavam abluçôes, mas, diferentem ente deles, João saiu pregando p a ra o povo e conclam ando-os a se subm e­ terem a um batism o de arrependim ento. A ênfase de Joâo era vida correta e julgam ento im inente; os essênios estavam grandem ente preocupados com a pureza ritual. D a m esm a form a, Joâo não procurou estabele­ cer u m a com unidade m onástica, em bora fosse ascético e rejeitasse frontalm ente os m étodos das instituições reUgiosas de sua época.


gem de arrependimento, e a batizar. Aparentemente, os seus seguidores eram numerosos e se espalharam grande­ mente. João era conhecido como o Batista (batizador). Embora as lavagens cerimo­ niais repetidas fossem praticadas entre os judeus, o paralelo mais intimo da ação de João era o batismo de gentios, quando se submetiam à fé judaica. Nenhuma con­ fissão de pecados era requerida dos pro­ sélitos que se submetiam a esse batismo, e o batismo deles também não significava arrependimento. Os prosélitos recebiam, sim, cuidadosa instruções acerca dos mandamentos judeus, e se obrigavam a observar as leis e os costumes religiosos judaicos. João veio como profeta de Deus, re­ querendo obediência e arrependimento por parte do povo de Deus. Marcos não nos revela muito de sua mensagem. De acordo com Lucas- 3:7-14 (cf. Mat. 3:7-10), o arrependimento a que ele con­ clamava o povo abrangia tanto elemen­ tos positivos quanto negativos, em ma­ neiras bem práticas. Os homens não podem roubar nem extorquir dos seus semelhantes. Devem repartir com os necessitados de comida ou roupa. O mal que está neles faz parte de sua herança, mas eles continuam a envenenar a socie­ dade com as suas vidas e atitudes (são uma “raça de víboras” ). O juízo vem de Deus, e eles precisam mudar de senhor, e dedicar as suas vidas a um meio de vida diferente, piedoso. O batismo significava, portanto, uma confissão pública de pecado e uma decla­ ração visível de que a pessoa pretendia viver uma nova vida. Visto ser um men­ sageiro de Deus, a conclamação de João para o arrependimento faz parte da ordem divina para o povo. Assim tam12 Paulo batizou alguns dos discípulos de Joao em Éfeso (A t. 19:1-6), e Apoio conhecia anteriorm ente apenas o batism o de JcEo (A t. 18:25). Veja C. H. Kraeling, John the B aptist (New Y ork: Scribner, 1951), e C harles H . H . Scobie, John th e B aptist (Philadelphia; Fortress, 1964).

bém a promessa de que aqueles que se arrependerem genuinamente serão per­ doados. A imersão no rio não realiza nem o arrependimento nem o perdão; mas o batismo significa e afirma ambos. “Batizar” significa mergulhar, imer­ gir. Precisamente como isso devia ter sido feito, não podemos ter certeza. No batis­ mo do. prosélito judeu, os candidatos se imergiam a si mesmos (cf. Mishnah, Pesahim 8 :8). O verbo que expressa eram por ele batizados pode significar que eles estavam batizando-se a si mesmos na presença do profeta. Mas a linguagem, aqui, como em outras partes, favorece à interpretação de que o próprio João administrava o batismo. Não precisamos considerar literalmen­ te a declaração de que todos os mora­ dores se submeteram ao batismo de João. Marcos deseja que compreendamos que a pregação de João foi grandemente efi­ ciente, que ele causou um forte impacto sobre as multidões. A sua roupa e a sua dieta de deserto eram reminiscentes do profeta Elias, que vestia-se “ de pêlos, e com os lombos cingidos dum cinto de couro” (II Reis 1:8). Vivendo de maneira tão simples, João dramatizava o desprezo que sentia pela vida luxuosa e pela extravagância de alguns dos seus contemporâneos ricos. Ele foi ridicularizado por isso (Mat. 11:18; Luc. 7:33), mas deve ter tocado cordas sensíveis na vida de muitos dos seus concidadãos. As práticas ascéticas como as de João são, muitas vezes, uma forma de eficiente protesto contra o luxo grosseiro de pessoas insensíveis. Como o demonstra o claro exemplo de Jesus, por outro lado, extremos de auto-negação, na vida diária, muitas vezes não se constituem, por si mesmos, em maneiras corretas de viver a vida cristã. Várias espécies de gafanhotos eram comestíveis, e a Lei permitia o seu uso como comida (Lev. 11:22). A dieta de João pode não se ter limitado a gafanho­ tos e mel silvestre, mas o deserto só per­ 329


mitia uma pequena variedade de dieta Deus e eles serão o meu povo” (31:33). para quem nele habitasse. A vitória final, de acordo com a palavra A única parte da mensagem de João de João, dependia da entrada do poder que Marcos repete é a que se refere dire­ de Deus na vida de homens arrependi­ tamente a Jesus. Embora o povo pensasse dos. João não podia propiciar essa vitó­ que João era grande, ele estava anun­ ria; aquele que vinha o faria. ciando a vinda de outro, muito superior a 3) O Batismo de Jesus (1:9-11) si mesmo. Este seria tão grande que João 9 E a co n teceu n a q u eles d ia s que v eio disse não ser digno de servi-lo nas tarefas J e su s de N azaré d a G aliléia, e foi b atizado mais humildes. João no Jordão. 10 E logo, quando sa ía João disse: Aquele que está para vir por da ág u a , viu o s céu s se ab rirem , e o E sp ír i­ é mais poderoso do que eu. Jesus será o to, qual p om b a, a d esc e r sobre e le ; 11 e “forte” , tão poderoso, que Satanás e ouviu-se dos céu s e sta v o z: Tu é s m eu FUho todas as forças do mal serão incapazes de a m a d o ; e m ti m e com prazo. resistir à sua autoridade e poder. O Naqueles dias, isto é, mais ou menos Evangelho de Marcos é, de fato, o Evan­ na época em que João estava falando dele gelho do forte Filho de Deus, que “ amar­ ra o valente” (3:27) e toma para si aque­ e do batismo vindouro com o Espírito Santo, velo Jesus de Nazaré. Marcos les a quem o mal havia dominado. Ele nada fala de Belém, nada da infância de chegará a repartir com os doze a “auto­ Jesus, nada do fato de ter ele descendido ridade” de si mesmo, para libertar os de Davi (mas cf. 12:35-37). Mais tarde, homens do jugo dos males (morais ou na verdade, ele o identifica como “o car­ físicos) que os escravizam (3:15; 6:7,13). pinteiro” e cita nomes de membros de O .serviço de João aos homens era sua família (6:2,3). A narrativa de Mar-"* limitado, embora a sua mensagem fosse COS, a respeito da obra de Deus, em seu de Deus. Ele conclamava os homens a Filho, começa aqui, junto ao Jordão.___ ) uma dedicação à vida piedosa, mas a sua Não há nada de especial acerca da ênfase estava sobre o esforço e empreen­ maneira como Jesus foi batizado. Marcos dimentos humanos. O que era necessário descreve que o batismo teve lugar no era aquele poder de Deus que João não Jordão (literalmente, “ dentro do”) e diz podia dar. A mensagem de João era que que ele saia da água. E visível que o ba­ Deus estava para dar aos homens essa tismo de João era somente por imersão. ajuda divina. Aquele que estava para vir Não a forma, mas a experiência de Jesus,' os batizaria com o ou no Espírito Santo. O derramamento do Espírito Santo de > por ocasião do batismo, foi peculiar. Por que foi Jesus ^ tiz a d o ? Marcos Deus era esperado nos últimos tempos absolutamente não levanta a questão. O (cf. Joel 2:28 e s.; At. 2:17 e s.; Ez. 36: 26 e s.; Is. 44:3). Os cristãos provavel­ fato de aquele que conclamava o povo ao arrependimento de pecados dever batizar mente devem ter pensado no Pentecostes, aquele Redentor sem pecado pode ter e certamente na presença do Espirito sido um problema para alguns cristãos Santo neles. Os paralelos em Lucas 3:16 primitivos (cf. Mat. 3:15). De acordo e Mateus 3:11 acrescentam que Jesus iria batizar também “com fogo” . Mas M ar­ com Marcos, Jesus certamente cria que o batismo de João provinha de Deus cos se contenta em enfatizar o poder de (11:30) e queria identificar-se com o pro^ Deus, que propicia vitória ao homem, I feta do deserto. O fato de Jesus ter-se interiormente, e não o juízo divino. O que distingue a nova aliança da unido a “ toda a terra da Judéia. e todos os moradores de Jerusalém” (v. 5) em ser velha é o que foi predito por Jeremias: batizado é igualmente verdadeiro e apro­ “Porei a minhai»}ei no seu interior, e a priado. Num sentido bem real, ele estava escreverei no seu coração; e eu serei o seu 330


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se identificando com o povo que viera salvar. A diferença entre o batismo de outros e o batismo de Jesus está nos eventos^especiais que o cercaram. Devido à vinda do~ E spirito e à voz dos céus, Jesus foi iden­ tificado expressamente com o próprio Deus. —~ Os acontecimentos característicos por ocasião do batismo e da tentação de Jesus não eram algo totalmente estranho às expectativas dos iudeus. Encontra-se flagrante semelhança com Marcos na lite ra tu ra h eb raica contem porânea, especialmente em passagens que falam dos últimos dias e do triunfo de Deus sobre o mal. Quando Jesus saiu da água, viu os céus se abrirem. Isto não é meramente a separação de nuvens literais, ou da atmosfera azul. Na expressão idiomática hebraica, o trono de Deus fica muito acima dos'céus mais elevados, na luz macessível. Assim sendo, é de uma fis­ sura nos céus que as poderosas palavras de Deus e os seus atos milagrosos teriam de vir. A frase significa que todo o mun­ do de poder espiritual e verdade estava desvendado diante de Jesus. O Espírito que desceu dos céus é, sem dúvida, o Espírito de Deus. Ele desceu sobre Jesus em forma de pomba. Marcos não indica, como o faz Lucas (cf. tam­ bém João 1:32), que o acontecimento seria visível a outras _g^ o a s . T^ivêz~o significado da frase quãl pomba seja apenas que ele veio gentil ou calmamen13 Por exemplo, T estam ento de Levi 18:1-12: “ E n tão o Senhor levantará um novo sacerdote. E a ele todas as palavras do Senhor serão reveladas; e ele executará juízo sobre a te rra d u ran te u m a m ultidão de d ias... Os céus serão abertos, e do tem plo de glória descerá sobre ele santificação, com a voz do Pai como se estives­ se vindo de A braão p a ra Isaq u e... Em seu sacerdócio os gentios serão... ilum inados através da graça do Senhor: No seu sacerdócio o pecado terá fim, e o iniquo cessará de p raticar o m al... E ele ab rirá as portas do paraiso, e removerá a espada am eaçadora contra A dão. E ele dará aos santos de com er da árvore da vida, e o espírito de santidade estará sobre eles. E Beliar será am arrad o p or ele.” R. H . Charles, The Apocrypha and Pseudepigrapha of the Old Testament (O xford: C larendon, 1913), II, p. 3 1 4 e s.

te, mas bem pode haver uma alusão à história da criação em Qênesis 1:2. Ali, somos informados que oE spírk^S^D eu^ “pairava sobre” a face" das águas. Cer-"' "^tamente os cristãos da geração de Marcos sabiam que, pelo poder do Filho de Deus, cheio do Espirito, uma “ nova cria­ ção” viera à existência (cf. II Cor. 5:17). Através dos céus ^ e rto s . gomo os~ rabis o concebiam,' Deus podia falar. M ü á mêrisagem divina seria ouvida na terra apenas como o eco de uma voz (ou, como eles o expressavam, “filha de uma voz”). Esse eco de uma voz era, algumas vezes, identificado com a voz do Espírito Santo (Rawlinson). Geralmente, como aqui, as palavras da voz eram tiradas das Escrituras (cf. o evento similar em Mar. 9:7). Tu és meu Filho amado é um eco de Salmos 2:7. Estas palavras indicam que Deus está coroando o seu Rei, que reina­ rá sobre todas as nações e reis da terra. Talvez a palavra amado tenha se tornado um nome messiânico (cf. Ef. 1:6). Ou, pode ser, como tem sido sugerido por alguns eruditos, que a palavra amado aqui signifique único ou peculiar, e a frase seria equivalente ao “Filho unigênito” de João 1:14 e 3:16. Em ti me comprazo são palavras que fazem eco a Isaías 42:1. Nessa passagem, é ao servo do Senhor que se dirigiam essas palavras. A promessa divina de um ""dia melhor, de justiça e paz, deveria vir através do sofrimento desse Servo esco­ lhido. __ Nenhuma das cláusulas da voz que ecoou é uma citação precisa da passagem mencionada. A linguagem tem íntimas afinidades também com outras frases veterotestamentárias (cL Gên. 22Í2; Is. 44:2). Como Taylor notou, Jesus não é chamado aqui de “Cristo” , mas em termos não menos hebraicos que expressam um relacionamento novo e vital com o Deus Pai. Como o descreveu Marcos, a experi­ ência batismal foi. paraJesus. uma pala­ vra de certeza concernente à sua filiação 331


para com Deus, uma unção para a sua tarefa divinamente ordenada, um investi­ mento de poder para realizar a tarefa que íhe fora dada para realizar. A tarefa incluía a derrota de toda forma de mal, que assedia o homem interior ou exteri­ ormente. Também incluía a morte de Jesusí em obediência à vontade divina, e a plena aceitação, por parte de Jesus, do seu papel de homem, vivendo entre ho­ mens obcecados e maus. Para os leitores de Marcos, era especificamente uma palavra que lhes dava a certeza de aue o Filho de Deus havia vindo, e que o batismo deles-era de fato com o Poder do Espirito Santo, que repousara sobre Jesus. ~

mandou o seu Filho para um mundo de tranqüilidade e paz, interior ou exterior. Era necessário que os poderes do mal fossem derrotados. Aqui no deserto, tra­ dicionalmente retiro de demônios, a batalha é travada. Quarenta dias é pro­ vavelmente uma expressão figurativa significando um considerável período de tempo. Lembramo-nos de Moisés e Elias (cf. Êx. 34:28; I Reis 19:8). Contudo, para eles era um período com Deus, e não com o príncipe do mal.

Marcos não nos conta em muitas pala­ vras qual foi o resultado da batalha de Jesus com Satanás, pelo menos não neste ponto. Emest Best argumenta persua­ sivamente que Marcos no-lo fala mais 3. A Tentação de Jesus (1:12,13) tarde, na parábola em que o homem 12 Im ed iatam en te o E sp írito o im peliu forte (Jesus) já amarrou o valente (Sata­ para o d eserto. 13 E e ste v e no d eserto qu a­ nás), e agora está despojando a sua casa renta d ia s, sendo tentado por S a ta n á s; e s t a ­ (3:27). A luta com essas forças que se v a entre a s fe r a s, e os an jos o serv ia m . opõem ao homem (não necessariamente O relato da tentação, em Marcos, é moralmente, mas incluindo elementos de extremamente breve. Em Mateus e em possessão demoníaca, enfermidade e Lucas, Jesus é retratado resistindo aos discordância) continua através de todo o apelos de Satanás para fazer a sua tarefa ministério de Jesus. Best afirma que (em de maneiras que seriam atraentes para os Marcos) a guerra com Satanás foi deci­ homens do mundo, mas grosseiramente dida na experiência da tentação no deser­ inadequadas para o seu propósito espiri­ to, que Belial (outro nome de Satanás) tual. Todavia, em cada uma das narra- , foi amarrado ali e que a autoridade sobre tivas sinópticas, as experiências do batis­ os vassalos de Satanás foi então esta­ mo e da tentação estão intimamente belecida. relacionadas. Imediatamente o Espirito o impeliu. Não obstante, Best considera que a maior parte do problema do mal com que O verbo é forte, e enfatiza o controle exercido em Jesus pelo Espírito, que Jesus tem que lutar (ainda de acordo com Marcos) é como sendo de homem para havia vindo sobre ele de maneira tão homem, ou dentro do próprio homem, e notável. É o mesmo verbo usado para nos não com o príncipe do mal. Certamente é dizer que Jesus “expulsou muitos demô­ verdade que as histórias acerca de expul­ nios” (1:34). Marcos está declarando que foi pela são de demônios diminuem numerica­ vontade de Deus que Jesus foi testado mente, e os encontros de Jesus com os sem demora. O fato de o período difícil males morais do homem dominam os ter vindo imediatamente após a sua expe­ últimos capítulos. A cruz é julgamento riência maravilhosa e confortante do especialmente contra esses males morais. batismo propiciava tanibém advertência Do lado positivo, o sangue de Jesus é e encorajamento aos cristãos novos que derramado por outros, e a sua vida os leva, com alegria e perdão, para a nova lessem este livro. Por que seria que o Espírito de Deus comunidade, formada de acordo com o impeliu Jesus para esse conflito? Deus não seu ensino e a sua autonegação. 332


Quer sejamos capazes ou não de acei­ tar o divórcio que Best estabelece entre Satanás, como tentador, e o espírito do próprio homem, como autor do mal, estamos seguramente certos, ao concluir­ mos com ele, que no deserto, impelido pelo* Espírito, Jesus estabeleceu conclu­ sivamente a sua vitória sobre Satanás. Desde então o reinado de Deus aproxi­ mou-se na pessoa de Jesus. A presença de feras pode simplesmen­ te enfatizar a solidão e os perigos do deserto. E também, algumas vezes, as feras eram associadas com poderes ma­ lignos. Contudo, talvez a referência a feras tenha sido feita devido à impor­ tância decisiva desse período, no pro­ pósito de Deus, porque uma vitória cós­ mica havia sido ganha. Será que os ho­ mens podiam ousar esperar que por fim o tempo de paz, há tanto esperado, estava chegando? Veja, por exemplo, essa espe­ rança expressa em Isaías 11:6-9: “Mo­ rará o lobo com o cordeiro, e o leopardo com o cabrito se deitará... Não se fará mal nem dano algum em todo o meu santo monte.” Nos relatos mais longos acerca da ten­ tação, é a voz do tentador que faz lem­ brar Salmos 91:11,12. Deus não havia prometido, ao seu escolhido, que os seus anjos iriam protegê-lo? Aqui, em Marcos de maneira bem diferente, é afirmado que os anjos de Deus já estavam aten­ dendo às suas necessidades e o prote­ giam. Incidentalmente, no versículo 14, do mesmo salmo, há uma promessa de vitória sobre o leão e a serpente venenosa. Nestas primeiras sentenças. Marcos não deixa dúvidas quanto à identidade de Jesus. Qualquer leitor entenderá que ele era, na verdade, o Filho de Deus, cheio do Espírito Santo. O próprio Jesus obtivera vitória sobre os poderes existen-

14 Best (p. 18-23) faz u m a análise bem instrutiva do livro The Problem of History in Mark, de Robinson. Em contraste com Best, Robinson considera todo o Evan­ gelho de M arcos em term os d a lu ta cósmica entre o Espírito e Satanás.

tes, e, pelo batismo daquele Espírito, ele estende esse triunfo ao homem. Por outro lado, tanto Marcos como os seus leitores sabem muito bem que Jesus andou como homem entre os ho­ mens, e que não era fácil reconhecê-lo como o Cristo de Deus. Na apresentação feita por Marcos, do ministério de Jesus, vai ser visto que os discípulos só perce­ beram a verdadeira identidade de Jesus com o passar do tempo. Para muitos, e especialmente para os líderes religiosos judaicos, a verdade permaneceu enco­ berta. Para eles, o fato de que Jesus era de fato o Messias permaneceu um misté­ rio impenetrável e inaceitável.

II. O Ministério de Jesus: Mis­ tério e Revelação (1:14— 8:30) 1. O Começo do Ministério Galileu (1:14—3:6) 1) Sumário dos Ensinos de Jesus (1:14, 15) 14 Ora, depois que João foi en tregu e, veio J esu s p ara a G a liléia, p regando o e v a n ­ gelho de D eu s 15 e dizendo: O tem p o está cum prido, e é ch egad o o reino de D eu s; A r­ rep en d ei-vos, e cred e no ev a n g elh o .

O q u a rto E v m i^ ^ o fala de um ministério paiQído"BeJoão e Jesus na Judéia (3:2 2 -3 0 jr^ l^ r^ s parte do pressuposto de que os sfeusl^ores sabem o que aconT « ^ a a Joãoj^ e retem a descrição desse acontecimento até 6:14-297“ expf^^TrvefBãTfõi entregue dá a entender que João node ter sido traído, pois é o mesmo verbo usado para indicar o ato de Judas (14:18,21). Marcos não menciona as palavras de Jesus: “Bemaventurados sois vós, quando vos... per­ seguirem... porque assim perseguiram aos profetas que foram antes de vós” (Mat. 5:11,12; cf. Luc. 6:22,23). Con­ tudo, o profeta João sofreu dessa forma; e da mesma forma Jesus. Marcos, provavelmente, jgretende que os sèüs~1éitofês~^pênsinr^ João como precursor, não apenas do ministério de 333


Jesus, mas também dos seus sofrimentõs. 1^ — — _ Se a composição do livro em estudo tem" como pano de fundo a perseguição riMvida por Nero contra os cristãos, como cremos, então os seus primeiros leitores pensariam duas vezes acerca dos perigos de sua dedicação espiritual pessoal. Não tinham dignos precedentes os seus sofri­ mentos? Marcos trata a obra de João como-, encerrada. O Cristo havia vindo; a obra dê João é termiiiada. E conio se Deus ‘fiv ê ssé ^ d o fim a um capítulo em sua obra na história, e agora começasse a época apoteótica. O cenário da maior parte do ministério de JesuiT a GalilélãTMarcos não~nõi'lêTO ãJ^azaré, de p rin c íi^ , como o faz Lucas (cf. Mat. 4:13). A não ser pela excursão de Jesus à “ região de Tiro e de Sidom” (7:24), a narrativa de Marcos até 9:50 se centraliza, narrando a obra de Jesus, na Galiléia propriamente dita, ou em outros distritos vizinhos, às margens do Mar da Galiléia. Jesus veio pregando o Evangelho de Deus. A pregação de João fora plena de advertências', ^crâio seTõrã~üma palãvr^ dFAinos 7 anunciando o tempo do juízo. Cf. Amós 5:18-20: “Ai de vós que dese­ jais o dia do Senhor!... Não será, pois, o dia do Senhor trevas e não luz?” Mas Jesus trouxe boas-novas, a respeito (te DeusTAlüa proclãmãçãõ7êz~sõãTã~nota alegre de Isaías 52:7: “Quão formosos sobre os montes são os pés do que anuncia as boas-novas, que proclama a paz, que anuncia coisas boas, que proclama a salvação, que diz a Sião: O teu Deus reina!” ^u^^sjeram^^as^boa^ovas ÿ Jesu^ A essência do que ele ensinóu e do que IS V ejaH . D . Knigge; “ The M eaning of M a rk ” , Interp re­ tation, Vol. 22, N» 1 0aneiro,-1968) p. 68 e s. Ele está persuadido de que M arcos, tan to aq u i como em outros lugares (em sua inserção d a história d a m orte de João no cap. 6 e, ainda m ais enigm aticam ente, em 3:6; 8:28; 9:11-13), m isturou o destino do B atista com o de lesus, e orientou, desde o início, a história de Jesus em dire­ ção à sua paixão.

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ele fez, e mesmo de quem ele é, resumese rieste versículo. O tempo está cumprido, isto é, a hora decisiva da ação salvadora de Deus, na história, chegou agora. Tempo significa a ocasião c j^ a ou adequada. Em Gálatas 4:4 —1‘a^lenifa3e^dosTêmpo^ — uma palavradTferénteéusada, JieTreqüentemente se refere a tempo cronológico. Contudo, a compreensão d e .^ Íà rc^ 7 \ como a de Paulo, era de que o~témpo certo era o estágio divinamente escolhi# è“^íép arad o lía hist&Iã~conffiiua do' Tíõmem. ~ O reino de Deus significa o reinado de Deus, a soberania divina. j) m um-sentido, o governo de Deus era considerado éferno^ absoluto. Tudo e todos pertencem a Deus, em última análise. Como cantava o judeu devoto: “Do Senhor é a terra e a sua plenitude; o mundo e aque­ les que nele habitam” (Sal. 24:1; cf. 47:7; e todo o Salmo 2). Todavia, Satanás era considerado como o prmcipe deste mundo, e pensa­ va-se que as nacoes e p o v o s estavam si^ ito s aõ~seiii^der. Era perfeitajnente. clarõ~qüê'õ~í^nad6^ X vohtad ^ e D e^ eram freqüentemente ignorados ^ so friam oposiçãõrQirándo será que o mal vai ser derrotaddjTe^^^o^'gOv^^ aBefíãmêníeesíãBere'cT3o?~Esse^^ o 3Iã~3rT3èüC~inten3íaíírbs hebreus; o “Depois” das esperanças de Joel (2:28), a era da nova aliança da profecia de Jere­ mias (31:31-34). Assim sendo, a palavra de Jesus pre- ^ cisã”s S entendida como escatológica relacionando-se com a vitória ímai de Deus. Ele diz: o reinado de Deus é chegado, literalmente: /^cí^gou~pêr t o ^ O que era vago e indistinto à distância invadiu o nosso campo visual. O verbo não diz exatamente que o reino veio e está plenamente realizado agora.CSTTi. Dodd^vai longe demais em insistir que o

"verEo^ignifica^^^chego y ^ M as cTtíFmnío' de Deus está agora tao perto que os poderes do mal são derrotados com


sucesso, e o reinado de Deus é visto clara­ mente em seu Filho. Seria natural os discípulos (bem como os cristãos das igrejas primitivas), que haviam aceito este ensino de Jesus, cre­ rem que o fim de todas as coisas estava próximo. Mas as palavras de Jesus e de Marcos não vão até esse ponto. A proclamação diz que a nova ordem de Deus irrompeu ae maneira~Srenflicatiya na. Kistória. na pessoa de Jesus. Não obs­ tante, a velha_ortog^ainda não passou, e a luta continua. Ainda se ouve soar uma conclamação ao arrependimento: arrependei-vos, e crede. Davies ilustra muito claramente este ponto, relembrando um incidente da Segunda Guerra Mundial. Ao voltar a pé para casa, vindo da igreja, certo domin­ go, um amigo saudou-o com as noticias de que Hitler havia invadido a Rússia. “E então” , respondeu Davies, “os alia­ dos venceram a guerra” . Como sabemos, a luta continuou por muitos meses; mas’ algo decisivo para a vitória aliada acon­ teceu quando Hitler aventurou-se a lutar em dois “fronts” . Da mesma forma, embora ninguém saiba quando a luta acabará, algo final e decisivo aconteceu para o homem na vida e na obra de Jesus (Davies, p. 162). Arrependei-vos, e crede no evangelho. Ambos os verbos pedem ação contínua. O arrependimento e a fé requeridos não são apenas acontecimentos isolados, mas atitude e característica duradouras. Crer no evangelho reflete a expressão idiomática aramaica, e deve ser enten­ dido simplesmente como crer, aceitar e viver pelo evangelho (cf. 1 : 1). Arrependei-vos significa a mudança dos pensamentos de uma pessoa, e, natu­ ralmente, a volta do mal para o que é bom..A palavra de Jesus tem muita con­ sonância com a de João. No entanto, neste contexto, ela tem um significado especial. O reino de Deus não é uma coisa distante; é uma realidade, que se aproximou do homem. Arrepender-se não é ato separado de crer nessas boas-

novas; significa abrir o ser para um Rei diferente, aceitar a soberania de Deus em sua vida, e deixar as boas-novas do poder divino, real, sobre todo o mal, serem o motivo da fé pela qual vivamos. 2) A Vocação dos Primeiros Discipulos (1:16-20) 16 E , andando junto do m ar da Galiléia, viu a Simão, e a André, irmão de Simão, os quais lançavam as redes ao m ar, pois eram pescadores. 17 D isse-lhes Jesus: Vinde após mim, e eu farei que vos torneis pescadores de homens. 18 Então eles, deixando im edia­ tamente a s suas redes, o seguiram .l9 E ele, passando um pouco adiante, viu Tiago, filho de Zebedeu, e João, seu irmão, que estavam no barco, consertando as redes, 20 e logo os chamou; eles, deixando seu pai Zebedeu no barco com os em pregados, o seguiram.

Nunca se pode entender que o reinado de Deus exista em um vácuo. Falar no reinado de Deus no mundo implica na existência de um povo vivendo em fé e submissão a esse reinado. Se, em Jesus, o divino reinado aproximou-se e deve cla­ ramente colocar-se em evidência, e se Jesus está apelando aos homens para se abrirem ao reinado de Deus, é inteira­ mente apropriado que Marcos fale, em seguida, acerca de alguns recrutas notá­ veis. No Evangelho de João, somos informa­ dos que alguns dos discípulos de Jesus haviam seguido anteriormente João Ba­ tista. Entre eles, estava, certamente, André, e a história é que ele falou pri­ meiramente a Simão acerca de Jesus (João 1:35-42). Não precisamos supor, consentaneamente, que este parágrafo em Marcos narra o primeiro contato de Jesus com esses homens. É claro que os leitores de Marcos não precisarão de apresentação com relação aos nomes deles. Simão, claro, é o apóstolo conhe­ cido como Pedro (3:16). O Mar da Galiléia tem cerca de doze quilômetros de largura, e vinte, de com­ primento. A sua água doce abunda em peixes até o dia de hoje. Os irmãos esta­ vam lançando uma rede circular, traba­ 335


lhando na profissão com que ganhavam a vida. A vocação de Jesus foi forte e exigente, semelhante a uma ordem militar. A na­ tureza pessoal do chamado. Vinde após mim, seria especialmente apropriada para discípulos de um Joâo aprisionado; o seu líder profético não está mais aqui, e aquele que é mais poderoso do que ele, reclama a sua lealdade. O antigo uso da metáfora para se falar de “apanhar” homens era geralmente usado com a idéia de apanhá-los em uma armadilha ou de arrastá-los à corte, para julgamento (ex.; Jer. 16:16; Hab. 1;1517). Aqui (como em Lucas 5:10) o cha­ mado para o discipulado está ligado com um convite para ajudar Jesus na tarefa de capturar homens, tirando-os dos poderes do mal e do juízo, para que eles também possam regozijar-se por causa do novo domínio de Deus sobre as suas vidas. A tarefa primordial dos mestres ju ­ daicos era estudar e meditar na lei de Moisés. Depois disso, eles eram exorta­ dos a “ darem treinamento a muitos dis­ cipulos” para passarem adiante os seus conhecimentos e práticas tradicionais. Os discípulos de Jesus foram chamados para participar, juntamente com o seu = Mestre, da tarefa de levar homens para o reino de Deus. A reação dos pescadores foi imediata. Deixaram o seu velho oficio, e se torna­ ram discípulos. O verbo seguiram era amplamente usado para descrever a acei­ tação do convite de Jesus para aprende­ rem os seus métodos e ouvir os seus en­ sinos (cf. Luc. 9:57-62). A vocação desses dois pares de irmãos bem pode ter sido lembrada por Marcos devido às pregações de Pedro. As refe­ rências ao ato de lançar e remendar as redes são bem vividas; da mesma forma, a nota acerca de Zebedeu e os empre­ gados. Mas a colocação da história bem no começo do ministério de Jesus é bem característica de Marcos. O fato de os filhos terem abandonado o negócio de seu pai, deixando-o apenas 336

com os empregados, aponta tanto para a urgência da vocação de Jesus como para a dedicação radical requerida da parte dos discípulos. É dada ênfase deliberada ao sacrifício pessoal que isso acarretava. 3) O Novo Ensino e Fama Imediata (1:21-45) (1) Ensino e Cura em uma Sinagoga (21-28) 31 Entraram em Cafarnaum; e, logo no sábado, indo ele à sinagoga, pôs-se a en si­ nar. 22 E m aravilhavam -se da sua doutrina, porque os ensinava com o tendo autoridade, e não com o os escribas. 2S Ora, estava na sinagoga um homem possesso dum espírito imundo, o qual gritou: 24 Que tem os nós contigo, Jesus, nazareno? V ieste destruirnos? Bem sei quem és: o Santo de Deus. 23 Mas Jesus o repreendeu, dizendo: Cala-te, e sai dele. 26 Então o espirito Imundo, convulsionando-o e clamando com grande voz, saiu dele. 27 E todos se m aravilharam , a ponto de perguntarem entre si, dizendo: Que é isto? Um a nova doutrina com autoridade! Fois ele ordena os espíritos imundos, e eles lhe obedecem! 28 E logo correu a sua fam a por toda a região da Galiléia.

Com os quatro discípulos que escolhe­ ra para estar com ele, Jesus começou o seu ministério na sinagoga de Cafar­ naum. Cafarnaum era localizada no lugar conhecido como Tell Hum, hoje em dia, na margem noroeste do Mar da Galiléia. Era aparentemente a terra natal de Simão e André (v. 29), e talvez de outros dos doze. Ruínas de uma sina­ goga foram indentificadas em Tell Hum, mas reconheceu-se que ela data de cerca de um século ou mais após o ministério de Jesus. As sinagogas da época de Jesus eram primariamente centros de instrução. No sábado as reuniões constavam de leitura dos rolos sagrados da Bíblia he­ braica, com uma interpretação, bem livre, na língua aramaica, falada pelo povo. Eram também pronunciadas pre­ ces e bênçãos, e talvez um salmo. A pregação era feita por qualquer homem competente presente. Ele seria convi­ dado a falar pelo presidente da sinagoga


(algumas vezes mais do que uma pessoa compartilhava dessa função), que era responsável por dirigir o culto e a adora­ ção. Não se oferecia sacrifícios e nem o serviço de um sacerdote era requerido na sinagoga. (Os sacerdotes ministravam no Templo em Jerusalém, considerado, pelos judeus devotos, como o único lugar adequado para a plena adoração a Deus.) Não era estranho que Jesus, um he­ breu franco, já considerado como mes­ tre, fosse convidado para ensinar na sina­ goga. Da mesma forma, não devemos supor que as coisas que Jesus ensinou, tomadas uma a uma, fossem de admirar para os hebreus devotos. Paralelos dé muitos dos ensinos de Jesus podem ser encontrados nas palavras dos grandes rabis. Não obstante, as pessoas maravilha-, vam-se da sua doutrina. Se elas ficaram admiradas com o que ele ensinou, foi porque ele disse que ò reino de Deus estava próximo (v. 15). A afirmação ê clara na cura do homem possesso de espírito imundo. Mas provavelmente devemos entender que eles ficaram admi­ rados porque ele falou “como tendo autoridade, e não como os escribas” . Os escribas eram homens treinados no conhecimento do Velho Testamento e suas interpretações. Em um dialeto, esse título é bem parafraseado como “aque­ les que conheciam os métodos dos ju ­ deus” (Bratcher e Nida). Os escribas documentavam de modo característico, os seus ensinos com as tradições passa­ das de geração em geração. Como o fa­ moso escriba Hillel, Jesus freqüentemen­ te apelava para as Escrituras; veja, por exemplo, 2:25,26. E, ainda, Jesus não hesitava em ir além das palavras do Velho Testamento, ou da costumeiras interpretações que se lhes davam. M a­ teus 5:17-48 é um claro exemplo da sua 16 A reunião n a sinagoga dos cultos de a d o ra çío prim itivas. N ada a esse em o Novo T estam ento,

foi, n aturalm ente, precursora realizados nas reuniões cristãs respeito é descrito em detalhes m as cf. I Cor. 14:26-33.

independência e da sua confiança de que a verdade de Deus estava sendo dita em seus ensinos. Marcos não apresenta nenhuma ilus­ tração do ensino de Jesus na sinagoga, a não ser a cura de um homem possesso dum espirito imundo. Parece que não se pretende fazer nenhuma distinção entre pessoas possessas de demônios (v. 32) e de espíritos imundos. Algumas vezes espíritos imundos separam o homem tanto de Deus como do povo de Deus. Pensava-se em um espírito imundo como um poder hostil ao homem e ao governo de Deus, possuindo um homem, para qüe não fosse a pessoa que Deus preten­ dia que ele fosse. A luta cósmica fora travada. A pessoa aflita — ou, pelo contrário, a aflição que estava dentro dela — gritou: “ Por que te estás intrometendo conosco, Jesus de Nazaré?” (Rawlinson). O espírito imun­ do se identificou com todo o mundo demoníaco. Só por uma percepção além da humana, podia alguém reconhecer Jesus e ser capaz de dizer: Bem sei quem és: o Santo de Deus. Cria-se, comumente, que, se alguém soubesse o nome do poder demoníaco, podia exorcizá-lo. Será que o espírito estava tentando essa tática ao inverso, dizendo quem era Jesus? Na verdade, Jesus viera para destruir os poderes que conservavam o homem alienado de Deus e dos seus semelhantes. Porém ele não confiava em fórmulas ou nomes especiais para expulsar demônios (mas cf. 5:8-10). A sua vitória sobre eles acontecia simplesmente com uma ordem. Cala-te (literalmente, sê amordaçado) e sai dele, ordenou ele. O espírito saiu, não sem uma última luta, e o homem ficou evidentemente são. A assembléia ficou maravilhada, na­ turalmente. O que estava acontecendo entre eles? Quem era esse Jesus? Ali estava uma nova doutrina, carimbada 17 U m a discussão breve e penetrante, das narrativas de exorcismo em M arcos, encontra-se em J. M . Robinson, p. 33-42.

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com autoridade. Provavelmente as pala­ vras com autoridade deviam ser lidas com a exclamação precedente. Os leito­ res de Marcos iriam entender que a nova doutrina não era simplesmente um mé­ todo para expulsar demônios. Era que o reino de Deus se havia manifestado em Jesus. Sem mais discussão, Marcos simples­ mente relata que a fama de Jesus come­ çou a se espalhar ampla e imediata­ mente. (2) A Cura na Casa de Simão e um Mi­ nistério Crescente (1:29-39) 29 Em seguida, saiu da sinagoga e foi a casa de Simão e André, com Tiago e João. 30 A sogra de Simão estava de cam a, com febre, e logo lhe falaram a respeito dela. Então Jesus, chegando-se e tomando-a pela mão, a levantou; e a febre a deixou, e ela os servia. 32 Sendo já tarde, tendo-se posto o sol, traziam-lhe todos os enferm os e os endem oninhados; 33 e toda a cidade estava reunida à porta; 34 e ele curou m uitos doen­ tes atacados de diversas m oléstias, e expul­ sou muitos dem ônios; m as não perm itia que os demônios falassem , porque o conhe­ ciam . 35 De m adrugada, ainda bem escuro, levantou-se, saiu e foi a um lugar deserto, e ali orava. 36 Foram , pois, Simão, e seus companheiros procurá-lo; 37 quando o en ­ contraram, disseram -lhe: Todos te buscam. 38 R«spondeu-lhes Jesus: Vamos a outras partes, às povoações vizinhas, para que eu pregue ali tam bém ; pois para isso é que vim . 39 Foi, então, por toda a Galiléia, pre­ gando nas sinagogas deles e expulsando os demônios.

Os eVentos descritos em 21-34 aconteram num dia de sábado. Para os judeus, o fim do dia não era à meia-noite, mas ao pôr-do-sol. O povo, naturalmente, pen­ sava em Jesus como alguém que obser­ vava os escrúpulos religiosos, e por isso não trouxe os seus doentes a ele enquanto o sábado não findou. Simão e André aparentemente mora­ vam juntos, em Cafarnaum. Seria aquela uma casa típica — um cômodo, com chão batido? Talvez os irmãos tivessem contado a Jesus que a anciã estava doen­ te, antes de ele entrar na sua habitação, e provavelmente eles esperavam que Jesus 338

a ajudasse. Ê claro que o discipulado não havia acarretado nenhuma rejeição abso­ luta da família, das suas relações ou suas responsabilidades. A senhora estava de cama com febre. Não sabemos de que natureza era aquela febre. Brascomb sugere que essa mulher e muitas outras pessoas curadas por Jesus estavam sofrendo de histeria. Quem pode diagnosticar exatamente uma enfermi­ dade antiga, sem dados mais acurados do que o que nos é apresentado aqui? Em Lucas 4:38,39 somos informados de que ela estava “com muita febre” , e que Jesus “repreendeu” a febre — como se fosse um demônio que ele estivesse expul­ sando. Mas, aparentemente, Lucas esta­ va interpretando a narrativa de Marcos. Tomando-a pela mão é semelhante a uma expressão idiomática aramaica que significa que ele a curou. O fato de que ela os servia a refeição vespertina não é evidência de que Simão era viúvo (cf. I Cor. 9:5), mas uma expressão de sua gratidão, e (para os leitores) prova de sua cura. No fim desse dia memorável, a multi­ dão veio. Se ele tinha curado uma do­ ente, não poderia curar todos os seus doentes? A fila se formou e continuou a crescer, podemos imaginar. Se toda a cidade é um exagero, provavelmente é menor exagero do que a hipérbole de 1:5 (“todos os moradores de Jerusalém”). Aqueles que não tinham enfermos, fo­ ram para ver. Uma das maiores ênfases de Marcos, nesta seção, é a fama de Jesus, que se multiplicava rapidamente (cf. 1:37,45). Marcos geralmente faz distinção entre os que estavam doentes atacados de di­ versas moléstias e os endemoninhados. No grego, estar doente é tradução da figura bem vivida: “ter (algo) m al.” Diferentemente de Mateus, que omite regularmente as frases acerca do fato de demônios terem reconhecido a Jesus, Marcos afirma intencionalmente que Jesus não permitia que os espíritos imun­ dos o identificassem publicamente. Será


que Jesus queria guardar segredo acerca do seu messianismo? Ou será que ele rejeitava tal identificação, devido à sua fonte? Parece claro que, durante o seu ministério, Jesus não se referiu explicita e publicamente a si mesmo como o Cris­ to. Ele sabia quem era e exercia os poderes que lhe haviam sido dados, mas rejeitava o uso do título de Messias ou Cristo. O segredo messiânico, se ele pode ser assim chamado adequadamente, tem a sua contrapartida, em Marcos, com uma espécie de revelação progressiva da iden­ tidade de Jesus. O próprio Senhor com­ preendeu a sua fiUação, por ocasião do batismo. O mundo demoníaco compre­ endeu a sua natureza peculiar (o “Santo de Deus” , 1:24) na experiência da tenta­ ção e nesses triunfos sobre espíritos imundos que controlavam pessoas. Se­ gue-se (embora com algumas limitações) a revelação aos discípulos, especialmente a Pedro (8:29) e aos que com ele estavam por ocasião da transfiguração (9:7). O próprio Jesus, por fim, desvenda a ver­ dade acerca de si mesmo diante da corte judaica (14:61,62). Finalmente, o centu­ rião romano tem a capacidade de discer­ nir algo da sua verdadeira natureza, na hora em que Jesus morre: ele é verdadei­ ramente o “Filho de Deus” (15:39). Jesus encontrava tempo para orar. O retrato que Marcos pinta de Jesus é de um homem ocupado e incapaz de esca­ par, durante o dia, às longas e cansa­ tivas exigências do povo necessitado. Apesar de vitorioso sobre Satanás e seus vassalos, curando toda espécie de enfer­ midade, Jesus era um homem que neces­ sitava de oração. Seria, nessa época, a sua principal preocupação a de não ser conhecido simplesmente como curador e exorcizador? 18 Veja C urtis Beach, The Gospel of M ark (New York: H arper, 1959), p. 46. Ele indica como os outros Evan­ gelhos nâo têm conceito com parável de um “ segredo messiânico” nem que esse conhecim ento é negado a vários grupos. Em Lucas, contudo, os demônios tam ­ bém são proibidos de falar.

Os discípulos estavam entusiasmados com a popularidade imediata de Jesus, e gostariam que o seu Mestre tirasse todas as vantagens possíveis dessa situação. Talvez haja algum indício de orgulho bairrista, que presumia que Jesus devia ou podia fixar residência em Cafarnaum. Foram procurá-lo, ou, literalmente, “caçá-lo” , para levá-lo de volta à multi­ dão. O chamado de Jesus era amplo demais para ser confinado a uma cidade apenas. Marcos deseja que os seus leitores pen­ sem na fama crescente de Jesus, mas não precisamos supor que ele pensava que Jesus foi para outras cidades apenas para escapar à pressão das multidões. A única pregação de Jesus, descrita até aqui, é o sumário de abertura em 1:15. Ele pro­ clamou que o tempo de Deus, há tanto esperado, havia chegado, e que os ho­ mens deviam arrepender-se e crer. A expulsão de demônios era evidência da verdade de sua proclamação: um poder mais alto estava presente em Jesus. (3) A Purificação de um Leproso (1:4045) 40 E veio a ele um leproso que, de joelhos, lhe rogava, dizendo: Se quiseres, bem podes tornar-me limpo. 41 Jesus, pois, com pade­ cido dele, estendendo a m ão, tocou-o e disselhe: Quero; sê limpo. 42 Im ediatam ente desapareceu dele a lepra, e ficou limpo. 43 e Jesus, advertindo-o severam ente, logo o despediu, 44 dizendo-lhe: Olha, não digas nada a ninguém; m as vai, m ostra-te ao sacerdote e oferece pela tua purificação o que Moisés determinou, para lhes servir de testem unho. 45 E le, porém, saindo dali, começou a publicar o caso por toda parte e a divulgá-lo, de modo que Jesus já não podia entrar abertam ente numa cidade, m as conservava-se fora, em lugares desertos; e de todos os lados iam ter com ele.

As instruções da Lei concernentes à lepra são dadas em Levítico 13 e 14. Hoje, a palavra lepra é usada especifica­ mente em relação à doença de Hansen, mas, na Lei, a descrição de sintomas é aplicável a várias doenças da pele. A lepra não era considerada como irreme­ diavelmente incurável. Cuidadosas ins­ 339


truções eram dadas aos sacerdotes para determinar se a doença imunda fora curada. Os sacerdotes eram responsáveis pelo diagnóstico, bem como pela decla­ ração da purificação. A lepra, em si, era um espetáculo que suscitava compaixão. A Lei ordenava quanto a quem a contraisse: “Também as vestes do leproso, em quem está a praga, serão rasgadas; ele ficará com a cabeça descoberta e de cabelo solto, mas cobrirá o bigode, e clamará: Imundo, imundo. Por todos os dias em que a praga estiver nele, será imundo; imundo é; habitará só; a sua habitação será fora do arraial” (Lev. 13:45,46). Proscritos da família e dos vizinhos, excluídos da socie­ dade e, conseqüentemente, do trabalho e da adoração, os leprosos eram um grupo social miserável. O que tal tratamento acarretava ao espírito de uma pessoa podia ser algo trágico. Talvez a ingrati­ dão dos nove leprosos de Lucas 17:17 seja compreensível, pois podia não haver, em seus espíritos, saúde suficiente para que eles tivessem a capacidade de ser gratos. O leproso ajoelhou-se, não adorando, mas rogando. Ele não duvidava da capa­ cidade de Jesus para curá-lo. Ele não duvidava que qualquer homem — ou o próprio Deus — se interessasse pela sua condição. Jesus ficou compadecido dele, desse miserável pária. A resposta que ele deu com a mão foi tão amável quanto a sua palavra: ele tocou-o. Mediante este pequeno ato, Jesus se identificou com o leproso; fê-lo participante da contami19 Brascomb (p. 37-40) indica que certas sinagogas ti­ nham cabanas especiais p a ra os que sofriam de lepra, e que eles não eram proibidos de e n tra r nas cidades não m uradas. P o r outro lado, u m a opinião rabínica (não m encionada ou ap o iad a p o r M arcos) era que a lepra era um a form a de punição de D eus, pelos piores pecados. 20 Alguns m anuscritos antigos grafam “ enfurecido” , em vez de “ movido de com paixão.” Se essa versão for cor­ reta, como pode ser, Jesus podia estar dirigindo a sua ira contra os costum es que freqüentem ente, sem p ieda­ de e com dureza de coração, com peliam um ser h u m a­ no a viver em tais circunstâncias.

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nação ritual desse homem. Por tradição e pela lei, esse homem estava proibido de entrar numa casa como a de Simão, para pedir ajuda, ou de tocar alguém como Jesus, ao longo da estrada. Mas Jesus o tocou, e proferiu palavras curadoras. A palavra imediatamente é usada freqüente e abundantemente por M ar­ cos, e não podemos forçar o seu sentido de modo demasiadamente literal. Jesus seguiu o ensinamento da Lei, requerendo que o homem se apresentasse diante de um sacerdote, para ser examinado e para oferecer a dádiva prescrita, um teste­ munho ou prova de que a cura fora completa. Marcos sustenta a espécie de liberdade, em relação à Lei, que Paulo advoga em Gálatas e Romanos. A dis­ cussão dos próximos dois capítulos torna claro este ponto. Mas ele também con­ cordava que “ a lei é santa, e o manda­ mento santo, justo e bom” (Rom. 7:12). 0 verbo advertindo-o severamente é muito forte, e freqüentemente indica ira ou discordância violenta. Não precisa­ mos supor que, pelo fato de Jesus ter tido compaixão dele, o homem era “ digno” ou de qualquer forma um modelo de gratidão. Contudo, a exigência que Jesus fez para o suplicante curado foi apenas de silêncio, pelo menos até que ele fosse pronunciado puro de maneira apropria­ da e legal. A ordem não foi obedecida. O homem acrescentou a sua voz ao crescente cla­ mor acerca de Jesus. Agora, o ex-leproso podia ir a qualquer parte, entrar e sair das cidades livremente. Mas aquele que o havia curado não podia entrar aberta­ mente numa cidade, sem imediatamente ser comprimido pelas multidões. Embora ele costumeiramente ficasse fora das cidades, o povo vinha a ele de todos os lados. 4) Controvérsias com os Escribas (2:13:6) (1) O Paralítico: Perdoar e Curar (2:1-12) 1 Alguns dias depois, entrou Jesus outra vez em Cafarnaum, e soube-se que ele esta


va em casa. % Ajuntaram-se, pois, muitos, a Cafarnaum uma sede de um ministério ponto de não caberem nem m esm o diante gffileuj^a casa era a de Simão Pedro (cf. da porta; e ele lhes anunciava a palavra. 1:29); e a história desta cura era remi­ 3 Nisso vieram alguns a trazer-lhe um para­ niscência das pregações do apóstolo. lítico, carregado por quatro; 4 e, não poden­ do aproxim ar-se dele, por causa da m ulti­ Como é vívida a descrição da multidão, descobriram o telhado onde estava e, dão! A pequena casa ficou apinhada, e ã~ fazendo uma abertura, baixaram o leito em porta transbordando de pessoas: não que jazia o paralítico. 5 E Jesus, vendo-lhes havia lugar em parte alguma. Jesus lhes a fé, disse ao paralítico: FUho, perdoados anunciava a palavra. Marcos ainda não são os teus pecados. 6 Ora, estavam ali sentados alguns dos escribq,s, que arrazoa­ deu nerlhum exemplo do ensino de Jesus, vam em seus corações, dizendo: 7 Por que a não ser a declaração sumaría'êm'T:T3r” fala assim este homem? Ele blasfem a. Como é que as condições de um ho­ Quem pode perdoar pecados senão um só, mem paralítico pôde chamar a atenção que é Deus? 8 Mas Jesus logo percebeu em seu espírito que eles assim arrazoavam de Jesus? Quatro homens haviam carre­ dentro de si, e perguntou-lhes: Por que ar­ gado o paralítico até a casa. Outros (por razoais desse modo em vossos corações? exemplo, os seus pais) bem podem ter ido 9 Qual é m ais fácil? dizer ao paralítico:. com eles; esta é a interpretação natural Perdoados estão os teus pecad os; ou d izer: Levanta-te, toma o teu leito, e anda? 10 Ora, da linguagem usada. Mas a entrada esta­ para que saibais que o Filho do homem tem va bloqueada. sobre a terra autoridade para perdoar Sem dúvida, a casa tinha a escada pecados (disse ao paralítico), 11 a ti te digo, externa, que levava a um teto plano, levanta-te, tom a o teu leito, e vai para tua ■ como era comum nas habitações palesti­ casa. 12 Então ele se levantou e, tomando logo o leito, saiu à vista de todos; de modo nas. A construção do teto era, provavel­ que todos pasm avam e glorificavam a Deus, mente, feita de vigas, que atravessavam o dizendo: Nunca vim os coisa sem elhante.

Até este ponto, Marcos contou histó­ rias que demonstraram a crescenteJama, de Jesus e a atração aue ele exercia sobre grandes multidões. Não há mudança a este respeito: pelo contrário, Jesus con­ tinuou a atrair as multidões. Mas^agora principia uma nova e forte nota, discor'3ãnte~e crescente em ira. Jesus comeca a enfrentar a oposição frontaL-dos lideres judeus, especialmente dos mestres religiosos oil escribas. O primeiro incidente, destas narrati­ vas de conflito, fala da cura de um homem paralisado. Entremeado com o milagre da cura, encontra-se uma aguda disputa acerca do direito que Jesus tinha de perdoar pecados. Marcos com a declaração de que Jesus “já não podia entrar abertamente numa cidade” (1:45), dá a entender que ele sorrateiramente voltou a Cafarnaum, depois do intervalo de alguns dias. Ele estava em casa: esta tradução é provavel­ mente correta. Desta frase é possível, mas não certo, concluir que: Jesus fez de

espaço entre as paredes, com caibros e peças menores de madeira formando um piso entre elas. Isto era coberto com uma espécie de esteira e saibro endurecido. (Lucas 5:19 presume uma espécie dife­ rente de construção, com que, provavel­ mente, ele estava mais familiarizado.) Abrir um buraco no teto não devia ser coisa difícil de fazer, e nem a tarefa de consertar o rombo seria grande. Podemos presumir que a multidão em bako se abriu, formando uma clareira, devido à chuva de entulho que descia sobre ela. O paralítico fora trazido a Jesus na esperança de que seria curado. Cura e perdão estão, nos relatos dos Evange-

IKÕQréqueliten^ntexelaeiojti^^ cificamente com a fé. Da mesma forma, nêm”sêmprê~ã~Te7 mencionada é a da pessoa que precisa da cura (compare 7:24-30 e 9:14-29). Perdoados são os teus pecados. Esta é uma palavra estranha de Jesus, compa­ rada com as dos outros incidentes de cura. Ela é tão inesperada e diferente das dos relatos das suas outras curas, que 341


muitas pessoas chegaram à conclusão de que os versículos 5-10 constituíam uma história diferente. Se isto é verdade, como pode ser, a razâo para se unirem as duas histórias seria o interesse das comu­ nidades cristãs primitivas no exemplo e na autoridade do Mestre, como podiam ser aplicados às necessidades contem­ porâneas agudas. "*'T)e acordo com o ponto de vista hebrai­ co geralmente aceito, a pessoa precisava buscar o perdão divino antes de poder esperar ser curada. Dizia-se até qüe nin-' guém se levantava do seu leito de enfer­ midade enquanto os seus pecados não fossem perdoados. Todavia, nâo existe indicação de que a cura operada por Jesus o fosse nessa base. •"^ O s rabis criam que Deus era perdoador e misericordioso. Eles sustentavam que (1) só Deus podia perdoar e que (2) Deus perdõãnãTqüãl^er nomem que se entristecesse verdadeiramente pelo seu pecado, que o confessasse e se afastasse dele, a fim de agir de acordo com a justiça de Deus. Contudo, eles espera­ vam que-houvessg evidências desse arre­ pendimento. João, o Batis^farpãTéceter p rg fs a ô ^ ê acordo com este princípio (cf. Luc. 3:10-15), porém Marcos não nos apresenta exemplos da pregação de Joâo Batista acerca do arrependimento. Os guardiães dos ensinamentos religiosos'^ceitáyeis kvaram a mal as palavras déT esu^ Eí^õüsãfá reivindicar as prer;^ _rõpíírai'3elD ’eus. A reivindicação inata da palavra de Jesus era que através dele Deus estava falando e agindo. Aqui não havia nenhum profeta falando: Veio a mim a palavra do Senhor. Aqui estava alguém falando como se a sua própria 21 Cf. especialm ente Taylor, p. 191 e s., e Rawlinson, p. 25. F. C. G ran t, em The In te rp reter’s Bible, falando acerca de M arcos, concorda, mas confessa que sem 5-10 a história perde a sua qualidade dram ática. W il­ liam M anson, Jesus the M essiah (Philadelphia: W est­ m inster, 1946), p. 66-68, sugere que Jesus perdoou os pecados do homem de acordo com a história original (que séria 1-5, 12), e que a sua paralisia foi curada como resultado do perdào. Acerca da questão d a dou­ trina rabínica do perdão, veja G. F. M oore, Judaism, I, 500-20.

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voz fosse a voz de Deus, perdoando um pecador sem nem esperar evidências do seu arrependimento. ' Para os escribas^ isso era blasfêmia. Essa palavra comumente se refere à linguagem abusiva ou caluniosa em gêratT Aqui os escribas criam que Jesus havia assumido erradamente o que pertencia a Deus, e, portanto, havia falado de ma-_ neira blasfema. O que poderia ser mais calunio^ do que um homem falar como se a autoridade, que é exclusivamente de Deus, pertencesse realmente a ele? Marcos queria que soubéssemos que Jesus tinha autoridade divina, e também poder ^õbre o m ün^_ demon^^ e a prerrogativa de curar a b reclia^nffê'' Deus e o homem. Mas ele queria que os seus leitores também entendessem gue os mestres religiosos do povo jud aico jaò ~ percebiam a natureza verdadeira de Jesus tíêm^podiam aceitar as suas reivin­ dicações. Este motivo literário é freqüen­ te na apresentação feita por Marcos; a sua expressão mais compreensiva está em 4:10-12. A total reprovação dos escribas foj m u d ^ jn a ^ Jesu^peixebem‘y "suficlente para reconhecer a si^a objeção. A süâ rêspõsíãTòi também uma pergunta: Qual é mais fácil? dizer que esse homem está perdoado, ou curá-lo? A questão era de natureza retórica. Se as palavras nada mais eram do que sons vazios, miragens para encorajar e depois reprimir o espírito de um homem, claro que seria mais fácil dizer: Você está perdoado. Mas este nâo era o caso pois Jesus usou palavras verdadeiras e reais para expressar a sua intenção de amar aquele homem! De qualquer forma este relató é muito diferente das narrativas costumeiras de curas operadas por Jesus. Em outra parte, Jesus recusou-se a dar sinais ao povo, a fim de provar quem era ele, e que tinha direito de agir e falar como fazia (Mat. 12:38-42; Luc. 11:29; cf. Mar. 8:11,12). Aqui a cura do homem se torna a prova da autoridade de Jesus para


perdoar pecados. Contudo, a narrativa O povo ficou pasmado. O verbo é da história, desta forma, seria mais forte muito forte. É o mesmo traduzido em 3:21: “Ele está fora de si.” Como real­ no sentido de pregaria verdade.a iesReito de Jesus. Certamente os discípulos consi- / mente havia acontecido o que eles esta­ deravam os milagres .como provas da ‘ vam vendo? Marcos insiste em que elès glorificavam a Deus, mas não dá a enten­ identidade de Jesus. Certamente também a palavra de^iierdão, está em perfeita f der que percebiam as reivindicações de consonância com a natureza de Jesus. J Jesus com clareza. Jesus, aqui, chama a si mesmo de o (2) O Coletor de Impostos: Buscar e Filho do homem. O uso deste título bem Ajudar (2:13-17) pode ser entendido como significando 13 Outra vez saiu Jesus para a beira do meramente “homem” como pessoa m ar; e toda a multidão ia ter com ele, e ele comum (cf. Ez. 2:1; 3:1). Mas Marcos os ensinava. 14 Quando ia passando, viu a entendia que esse título significava__p_„ Levi, filho de Alfeu, sentado na coletoria, e Filhq_ do homem celestial, mencionado disse-lhe: Segue-me. E ele, levantando-se, o seguiu. 15 Ora, estando Jesus à m esa em em Daniel 7:13-28. Em Marcos, o Filho casa de Levi, estavam tam bém ali reclina­ do homem virá com as nuvens do céu, dos com ele e seus discípulos muitos publipara executar julgamento (8:38), e, canos e pecadores; pois eram em grande durante o seu ministério na terra, tem a número e o seguiam . 16 Vendo os escribas plena autoridade de Deus para perdoar e dos fariseus que com ia com os publicanos para lançar culpa. Em 14:62, a resposta * e pecadores, perguntavam aos discípulos: de Jesus ao sumo sacerdote identifica o Por que é que ele com e com os publicanos e pecadores? 17 Jesus, porém, ouvindo isso, Filho do lionicm com “O Cristo, o filho disse-lhes: Não necessitam de m édico os do Deus bendito” . sãos, m as, sim , os enferm os; eu não vim chamar justos, m as pecadores. Portanto, não para os cristãos primi­ tivos, mas para as multidões que ouviam A história da vocação dos primeiros Jesus, a expressão Filho do homem con­ quatro discípulos (1:16-20) tem um notá­ tinha um certo mistério. Eles deviam vel número de paralelos com a vocação ficar confusos com o uso que Jesus fazia de Levi, o coletor de impostos. Uma deste título, descrevendo a si mesmo, i Ô maior parte das vezes que Marcõsl declaração em meio ao ensino de Jesus, \ menciona este título, ele o faz em relação i um lugar na Galiléia, o convite e a resposta, todos são semelhantes. com o ensino de Jesus de que ele precisa Há uma diferença marcante. Os pri­ i sofrer, será rejeitado e morto, e ressuscimeiros homens eram discípulos mais i tará (8:31; 9:31; 10:33,45; 14:21,41). ^No que tange à pajxãade^ Jesii?, os ante~ convenientes, do ponto de vista dos relicedentes fornecidos pelo Velho Testa­ 'gíõscrslüdéüs. É verdade que eles eram mento são mais próximos, se considera­ pessoas comuns. Não guardavam a lei de maneira completa, nem conheciam todos mos o do Servo Sofredor em Isaías 40 os seus requisitos. O fato de eles colhe­ 66, do que as passagens acerca do Filho rem grãos no sábado era, provavelmente, do homem em Daniel. força do hábito, e não uma violação deli­ A autoridade de Jesus para perdoar berada (2:23). pecados foi assinalada pela ,cura do parairtico. O homem curado levantou-se, Por outro lado, o CQl£.tai:.d£Jmpostos era considerado como grosseiramente apanhou a sua maca e a multidão abriu irfêwrente e inconveniente nara um dijalas para ele ir embora. Nada mais é dito acerca dos escribas, nesse ponto; Marcos ^puTacIo pledoso.^ O fato de Jesus convi­ dar tal pessoa para se tornar um discí­ está amontoando tensão em direção ao pulo íntimo era um desvio agudo do clímax de ira de 3:6, onde uma conspi­ padrão de conduta aceito. rata para destruir Jesus tem início. 343


Levi, filho de Alfeu,_^idenli£Í£ajdD^ no jto s devam excluir essa idéia. IndubitaEyar^elho de Mateus, como sendo ^T^lmente, muitas dessas pessoas eram ãquele__Mateus_ qug era um dos doze (cf. desonestas e corruptas. Mas a inimizade 9:9; 10:3). Marcos, aparentemente,_nâQr mais amarga por parte dos escribas e cnntám RssjTTnformaçâo, pois inclui fariseus, acontecia porque as tais pes­ Tãteus (mas não Levi), na sua lista (em soas ignoravam a sinagopa, beni como a 3:16-19), e de forma alguma identifica os Lei mosaica e a sua interpretação, e pordois. Tiago, filho de Alfeu, é também que^ogDCTavam^om estrangeiros opresoutro dos apóstolos, mas Marcos não dá ,sores e pagãos. Pará õ judeu ortodoxo, nenhuma idéia de qualquer parentesco eías eram pessoas que diziam em seus com Levi, nem o Evangelho de Mateus. corações: “Não há Deus” (Sal. 14:1). Algumas dessas dúvidas têm de ficar sem Os escribas e fariseus eram os mestres resposta. judaicos que subscreviam o põntõ~3e A coletoria, provavelmente, coletava vista do partidõ~fãnsêur^iÍê~pãrtido era os impostos dos que transportavam mer­ o mais influTnte ^ritré o povo judeu da cadorias de Cafarnaum e para lá. Os época de Jesus, embora o sacerdócio coletores estavam servindo ao_g(aLemo-de principal da época se identificasse com os Herodes-^Anfipas. tetrarca daquela re­ saduceus. O partido dos fariseus surgiu gião. A tradução “publicanos” é aplica­ no segundo século a.C. Eles eram os da mais exa:tamerít^a ^^^"cã r g o dSfedescendentes espirituais do po vo conhe­ rente e mais importante, pois publicani cido como Hasidim. aue havia ajudado, eram os homens aos quais ós coletores de. com sucesso, a revolta dos Macabeus e impostos estavam obrigados. É evidente que se posicionava em j[avor da obser­ que freqüentemente usufruíam de vanta­ vância estrTtaUrileLdfiJáoisés e contra gens desonestas, verificando-se a prega­ ^ualg^ej transigência com outras influção de João (Luc. 3:12,13) e a confissão ências religiosãs^ de Zaqueu (Luc. 19:8). Em geral, a influência farisaica per­ Quando Levi, levantando-se. s c p u í u manecia dominante nas sinagogas, e a Jesus, da mesma forma como Simão e todo o Novo Testamento reflete as contíAndré, ele não ignorou a sua casa, a sua família-SZÃs seus vêlHõT^níifios. CÕ n^ ■ nuas dificuldades entre as nascentes dou Jesus à sua casa (pelo menos o texto SgunTlIrileãs~sé^ tornaram crentes em de Lucas o dá a entender assim; Marcos Cristo, mas achavam muito difícil aceitar é ambíguo), os outros discípulos e muitas os gentios, os coletores de impostos, ou pessoas que tinham algo em comum com pecadores, em base de igualdade, com ele. Muitos desses coletores e pecadores, genuíno amor fraternal e sem tentar fazêinforma-nos Marcos, estavam em meio los observar estritamente a lei veteroàs multidões que cercavam Jesus. A testamentária (veja especialmente At. palavra seguiam afirma claramente um 15:5 e ss., Gál. 2:11 e ss. e At. 10:44-48). relacionamento dei-discíimlos.p,ara com o. Mestre. Os fariseus criam que a vontade de A palavra pecadores, quando hgada à Deus fora expressa plenamente na Lei, palavra “coletores de impostos” , nrova-' da maneira como eles a interpretavam. velmente significava simplesmente pesTratavam os coletores-de impQstos.-R os soas irreligiosas, pessoas que ignoravam pecadores cornolpárias religiosos, e não W^víõlàvãm^cõifstantemente os regula­ podiam entender por aue Jesus comia mentos religiosos dos judeus ortodoxos. rom tais pessoas. Contudo, eles também ' ênfase dada à palavra, aqui, não é em diriam: Deus perdoará a qualquer dessas relação à moral, embora nem a palavra pessoas que se arrepender. Para eles, o nem os hábitos dos coletores dos imposarrependimento significava evidência de 344


transformação e adesão aos regulamen­ tos da Lei. Qual é, portanto, a diferença entre os seus conceitos e as boas-novas que Jesus veio pregando? A. M. Hunter o expres­ sou claramente: “A coisa nova, no cris­ tianismo, não é a doutrina de que Deus salva òs pecadores. Nenhum judeu a negaria. É a declaração de que ‘Deus ama e salva tais pessoas como pecadoras, sem esperar que elas se tornem justas e merecedoras de salvação’.” De acordo com o seu ponto de vista, os escribas não podiam deixar de pergun­ tar: Por que é que ele come com os pu­ blicanos e pecadores? Se, como eles diziam, o homem deve obediência a Deus, sem questionar, e se, como ensina claramente o Velho Testa­ mento, as ordens de Deus incluem o dízimo e a purificação ritual, como podia um homem verdadeiro e piedoso comer na casa de Levi? Comer com publicanos acarretava o risco de comer aUmento que fora (de acordo com a Lei) preparado impropriamente, e/ou do qual não havia sido pago o dízimo. Sobretudo, eles con­ sideravam que contato íntimo com aque­ les pecadores podia afetar os seus dese­ jos, e até um fariseu podia ser tentado a ser como os homens que ignoravam a vontade de Deus. A conduta e a defesa de Jesus expres­ sam um ponto de vista muito diferente a respeito do chamado e da misericórdia de Deus. O Deus do Senhor Jesus se opõe ao “ostracismo social e religioso” (Brans­ comb), que era inerente ao modo de vida dos fariseus. Não importa quanto o ho­ mem possa ser secular ou mau, nem por isso ele está fora do interesse de Deus e da necessidade do governo de Deus. O convite de Jesus era feito aos pecadores. O reino, que agora estava próximo em Jesus, certamente também era para eles. Tenha a questão sido expressa aberta­ mente ou não, os escribas precisam in22 The Gospel A ccording to S t. M ark (New York: Collier, 1962), p. 41 e s.

quirir: Quem pensa ele que é, ao tratar a L£Í tão superficialmente e os se;is pre­ ceitos como moralmente insignificantes? A resposta de Jesus, à sua interrogação não confessa, não foi meramente o esta­ belecimento de um novo princípio moral ou uma nova interpretação dos propó­ sitos divinos. Quando ele se identificou como um médico para os enfermos, e disse: Eu vim chamar... pecadores, estava dando expressão a uma nova situação, que proviera da providência de Deus. O tempo estava cumprido. O reino se aproximara. A vocação de pecadores fazia parte das boas-novas da obra do Rei, mandado por Deus, para redimilos do poder do mal. Quando Jesus disse que não veio cha­ mar justos, não devemos supor que ele estava louvando os escribas, dizendo que eles eram justos. Havia ironia no uso que éle fez dessa palavra. Para ele, era o mais grosseiro mal-entendido, a respeito da misericórdia de Deus, lançar no ostra­ cismo homens que eram considerados como pecadores ou supor que Deus havia cessado de cuidar deles. (3) O Costume de Jejuar: Roupa Nova e Vinho Novo (2:18-22) 18 Ora, os discipulos de João e os fariseus estavam jejuando; e foram perguntar-lhe: Por que jejuam os discípulos de João e os dos fariseus, m as os teus discípulos não jejuam? 19 Bespondeu-lhes Jesus: Podem, porventura, jejuar os convidados à s núp­ cias, enquanto está com eles o noivo? En­ quanto têm consigo o noivo não podem jejuar; 20 dias virão, porém , em que lhes será tirado o noivo; n esses dias, sim , hão de jejuar. 21 Ninguém cose remendo de pano

23 N ineham (p. 97 e s.) discorda, e insiste em considerar a frase literalm ente. Ele pensa que as palavras podem ser “ um com entário da igreja prim itiva, referindo-se à vida de Jesus” . Ele destaca que som ente uns poucos dos “ju stos” da nação ju d aica (fariseus, escribas, etc,) se torn aram cristãos, enquanto os seguidores de Cristo eram especialm ente pessoas cham adas de “ pecado­ ras” . Todavia, os registros evangélicos m ostram que Jesus comeu tam bém em casas de fariseus e que ele ensinava regularm ente nas sinagogas, onde as idéias daqueles eram dom inantes. Ele certam ente tam bém os considerava necessitados d a sua mensagem e do seu poder.

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novo e m vestid o velh o; do contrário, o r e ­ m endo n ovo tira p arte do velh o, e to m a -se m aior a rotura. ZZ E nin gu ém d eita vinho novo e m odres v e lh o s ; do contrário, o vinho novo rom perá os od res, e p erder-se-á o vinho e tam b ém os odres; m a s d eita-se vinho novo em odres n ovos.

O jejum era para ser observado, segun­ do a prescrição da Lei, apenas uma vez por ano, no Dia da Expiação (Lev. 16: 29,30). Entre os judeus mais religiosos, o costume estava muito mais em evidência. Na parábola do fariseu e do publicano, Jesus incluiu, entre as palavras orgulho­ sas da jactância do fariseu, estas: “Jejuo duas vezes por semana.” Da conexão original do jejum com o Dia da Expiação, é óbvio que o jejum era considerado como expressão de tristeza pelo pecado. O costume foi seguido tam­ bém por muitas pessoas durante perío­ dos de lamentações. Marcos não apre­ senta detalhes do contexto deste inci­ dente, mas um período especial de jejum aparentemente estava se processando. Alguns comentaristas sugerem que os discípulos de João (no contexto original) estavam jejuando devido à prisão ou à morte (narrada mais tarde) do seu mes­ tre. Mas é bem provável que os discípulos de João estivessem seguindo os costumes dos fariseus. Em parte nenhuma Jesus requer dos seus seguidores que eles jejuem. Ele de­ nunciou o uso do jejum como exibição pública de piedade, e instruiu os seus discípulos que, sempre que jejuassem, estivessem certo de que estavam sendo motivados por um propósito divino (Mat. 6:16-18). Talvez os cristãos a quem Marcos esta­ va escrevendo jejuassem ocasionalmente. A palavra final, no versículo 20, nesses dias, sim, hão de jejuar, pode expressar o costume corrente nas igrejas que ele co­ nhecia. Sabemos que os cristãos do co­ meço do segundo século praticavam o jejum. Na Didache (ou Ensinamentos dos Doze Apóstolos), os cristãos são ins­ truídos a jejuar, bem como a orar pelos 346

seus inimigos, e a jejuar também em conexão com o batismo. O espírito do ensino de Jesus certamente perde-se, contudo, na advertência ulterior da Didache para não se jejuar às segundas e às quintas-feiras, com os hipócritas (isto é, os judeus), mas nas quartas e sextasfeiras! A expressão discípulos dos fariseus é estranha pois os fariseus comuns não tinham discípulos, mas só os seus mes­ tres. Parece melhor entender a expressão como significando as pessoas que se­ guiam a prática farisaica de jejuar, quer fossem, quer não, membros do partido. A questão apresentada a Jesus tinha por fim saber por que os seus discípulos não seguiam aquele bem estabelecido costume religioso de sua época. O ataque foi dirigido contra os seus discípulos, tendo sido ainda mais feroz por esta razão. Foi como se eles dissessem: “ O que você faz pode não ser da nossa conta, mas como é que você tem coragem de orientar os seus discípulos em hábitos tão descuidados?” A resposta de Jesus foi uma parábola, usando a figura das festi­ vidades prolongadas que precediam a um casamento. Época de casamento é uma época de alegria. Seria completa­ mente inadequado lamentar-se e jejuar em uma ocasião assim. Claro que nor­ malmente os convidados para o casa­ mento também não iriam se lamentar . depois do casamento! Todavia, o noivo que estava com eles, nesse caso, era o próprio Jesus. Seja qual for o contexto original, certamente este é o significado aqui. O rei davídico é algumas vezes retratado como noivo (veja especialmente Salmos 45). Os leitores de Marcos talvez entenderiam a alusão desta maneira. Eles certamente também entenderiam as palavras: dias virão, po­ rém, em que lhes será tirado o noivo. Elas foram cumpridas em sua morte. O Rei veio anunciando perdão de pecados, aceitação no reino de Deus, boas-novas; virá um dia de expiação, uma época de tristeza, um tempo quando o Rei mor­


rerá “por nossos pecados, segundo as Escrituras” (I Cor. 15:3). As duas parábolas que se seguem, nos versículos 21 e 22 , falam do problema mais amplo suscitado pela pergunta do versículo 18. Por que os seguidores de Jesus.não observavam os costumes reli­ giosos dos seus contemporâneos? A res­ posta de Jesus foi de que a sua nova mensagem era vibrante demais e dife­ rente das outras, para se adaptar aos velhos padrões ou instituições vigentes. Ele não apenas condenou o que era velho, mas tratou-o como algo que passa­ ra do período de utilidade. Pano novo não pode ser um remendo satisfatório para uma roUpa rasgada, que, sendo velha, já foi lavada muitas vezes. Jesus não fez nada mais do que isso: ele veio pregando que o reino de Deus estava próximo, e com isso não pretendia simplesmente remendar as instituições existentes. A continuidade de Jesus com a velha aliança não consistia em concordância com os seus padrões de expressão. A continuidade está presente na natureza do Deus que se revelou através de Israel e que procura a liberta­ ção, do homem, do cativeiro do pecado, levando-o a expressar lealdade a. ele (Deus). Os odres eram feitos de peles inteiras de cabras. Vazilhas semelhantes são ainda usadas hoje em dia. O animal era esfolado a partir do pescoço, cortandose-lhe as pernas. As aberturas eram costuradas, e a pele era conveniente­ mente curtida. Naturalmente, as peles velhas se tornavam quebradiças, e arre­ bentavam-se sob a pressão da fermenta­ ção. A palavra de Jesus é como vinho novo; as tradições judaicas, tão rígidas e mecânicas, eram como odres endure­ cidos. Os dois não são compatíveis. Quando Jesus contou essas parábolas pela primeira vez, elas podiam aplicar-se a costumes como o de jejuar e a vários mandamentos da lei oral, inclusive talvez a alguns aspectos da observância do sábado. Na época de Marcos, os cristãos

podiam entendê-las também aplicandoas a assuntos como a circuncisão, a proi­ bição de se comer certos alimentos, a adoração do Templo, ou a proibição de se adorar com cristãos não-judeus. A veracidade destas parábolas não pode ser limitada a outros tempos e cir­ cunstâncias. A natureza da mensagem de Jesus requer odres novos em cada gera­ ção. Estas parábolas afirmam que não há nada intocável nos costumes ou na tradi­ ção, ou na estrutura de uma igreja ins­ titucional. Nada deve ser tão sagrado que impeça o perdão de um Deus misericor­ dioso ou restrinja a prática do amor cristão para com o próximo. A fraseologia dessas parábolas faz da sua mensagem uma advertência. “A moral dessas parábolas” , diz Brans­ comb, “parece ser mais o dano que o ,novo acarreta ao velho do que o oposto” . Assim, se tentarmos fazer a vocação e a liberdade de Jesus caber em nossos ve­ lhos padrões e instituições, não apenas perderemos de vista o que Jesus iria fazer por nós, mas também destruiremos o que tínhamos antes. Ê verdade que a roupa velha e o odre usado haviam já servido, na natureza das coisas, por seu razoável tempo de utilidade. Mas ninguém pode tornar-se um verdadeiro discípulo se ten­ tar também apegar-se à sua velha vida (8:34,35). Observância do Sábado: A Necessído Homem e o Propósito de ®TDeus (2:23-28) * ' «>23 E su ced eu p a ssa r e le n um d ia de sá b a ­ do p e la s s e a r a s ; e o se u s d iscíp u los, c a m i­ nhando, co m eça ra m a colh er e sp ig a s. 24 E os fa riseu s lh e p e r g u n ta ra m : Olha, por que estã o fazendo no sábado o que n ão é lícito? 25 R espondeu-lhes e l e : A ca so nunca le s te s o que fez D a v i quando se viu e m n ecessid a d e e te v e fom e, e le e seu s com panheiros? 26 Como entrou n a c a sa d e D eu s, no tem p o do sum o sacerd o te A biatar, e com eu dos p ã es da proposição, dos q u ais não e ra lícito c o ­ m er sen ã o a o s sa cerd o tes, e deu ta m b ém a o s com panheiros? 27 E p r o sseg u iu : O sá b a ­ do foi feito por ca u sa do h o m em , e n ão o h om em por ca u sa do sáb ad o. 28 P e lo que o F ilh o do h o m em a té do sáb ad o é Senhor.

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Para o judaísmo, muito mais signifi­ cativo do que o jejum, era a observância do sábado. A santidade desse dia remon­ tava à obra criativa de Deus (Gên. 2:1-3), e a ordem para guardar o sábado é um dos Dez Mandamentos (Êx. 20: 8 - 11 ).

Q que a Lei escrita requeria como observancia do sábado era expresso em termos bem genéricos. Havia regras deta­ lhadas, interpretanda-a. Lei, tornando claro o que era e o que não era uma violação. Essas regras faziam par Lei oral, tradições sagradas p ãs^d as ao ^Dvtratravés" dos escribas. Os próprios èscribas reconheciam esse fato. Na Mishnah, codificação dessas tradições^ compilada no s^ègündo século, confessase que as regras acerca da observância do sábado são “como montanhas dependu­ radas em um fio de cabelo” , porque o ensino pertinente na Lei é tão escasso e as regras são tão numerosas. A observância do sábado havia sido mantida pelo povo judeu com custos ele­ vados. No segundo século a.C., piedosos judeus, na defesa de sua fé, se recusaram a empunhar armas no sábado, ate para se protegerem (T~MãcIBeiife 2: 32-38). A guarda do sábado se tomou ato^ rdigiosô, bem cõmo pafriotico. As pena-' lidades por sua violaçao eram muito se­ veras: excomunhão da comunidade de Israel ou até a morte (Êx. 31:14), em­ bora não estejamos certos de quão fre­ qüentemente a punição da pena capital foi executada. Èm época anterior ã r 70 d.C. violadores do sábado podiam \ fazer as pazes com a Lei, por meio de um \ sacrifício como oferta pelo pecado. -------Na lei oral havia 39 espécies de trabaIhos proibidosjio sabadoTconr^Talm iI“ ti^ ãõ ^ é^ g u larh en fo s“para cada uma. Embora o número seja demasiado e o fardo de observá-los pareça intolerável para os ouvidos modernos, é verdade que, para grande parte do povo judeu, a ob­ servância do sábado era um costume §legre. C^jejum (sinal de lamentação) era proibi3o nõsábadc). Todavia; pãfa butras* 348

pessoas dentee^o povo hebraico — os p'õssess^ de demônios (1:23), pessoas afligidas como o homem que tinha a mão mirrada (3:1), os famintos, os miserá­ veis, os necessitados e, até certo ponto, aqueles que eram classificados como pecadores” — o dia de sábado_di£ldljmente teria significado descanso e ação dé graças. Ao os discípulos irem caminhando (por um trilho, pois as palavras não dão a entender que eles pisaram descuidada­ mente a seara), apanharam um pouco de grãos de trigo ou cevada para comer. A ^ i_ e^ressam ente perimtia jsso^ (veja Dêüt. 23 :25^ pois não havia nenhum da­ no real à colheita e a Lei freqüentemente fazia provisões especiais para os pobres ou os que estivessem necessitados. Toda­ via, ao apanhar os grãos no sábado, eles êsfávam ^o th en d ò ” . uma das 39^sg£cies de trabalho proibido no dia sagrado. Ao esfregar lia mâolT ^rão co faÍdort>ara descSca-ioT^^s esfavam viòiariao uma segunda regra, pois isso era uma forma de “debulhar” . Para os judeus devotados à sua nação e à sua herança cultural e religiosa, o ato dos discípulos fora irres­ ponsável e irreverente, porque era con­ trário à maneira como entendiam o sábado. Jesus defendeu os seus discípulos. fazendo reterêncíã~ão ato de D avi, que havia levado os seus homens a comer o pão que havia sido oferecido em sacrifí­ cio e que era reservado aos sacerdotes (I Sam. 21:1-6). Q sumo sacerd^ e . n e ^ época, era ('Aimeleqüe) e não (^biatarT Não existe explicação inteirameníê"sãSfatória para essa discrepância. Pode ter sido um erro de um dos primeiros copis-^ tas, pois o nome 3e Abiatar erá mais conhecido do que o de seu pai. O objeto da analogia bíblica é que a ]^ i fora legitimamente quebrada^^or^^ amoTde Tidmêhs ém situação de nècessidade. Davf riaô efrâía em lazê^io; da mesma íorm a, nem os discípulos famin­ tos. A Lei devia, segundo o ponto de vistá de Jesus, ser útil e redentora para o


homem, e nâo restringir a sua alegria e sentimènto de reajiz^çâo. O ensino a respeito do sábado fora dado por amor ao homem. O homem, em suas neces­ sidades, não pode ser defraudado devido à adesão a uma lei que tinha o objetivo estipulado por Deus de servir e ajudar o

expressão, em geral, o título Filho do homem refere^e^apenas a Jesus, como o Daniel (cf. acima acerca de 2:10). Portanto, precisamos concluir que, de acordo com a forma de Marcos compreender, Jesus reivindicou para si próprio, como Filho h o ^ m . ____________ — do hómem_antoridade sobre o sábado^ T ^TTlC lM a n sõ n ^ cha que Jesus e seus da mesma form a^om õ reclamara autori­ discípulos estavam empenhados na obra dade para perdoar pecados, ao curar o ( - 7^ ' missionária 3Freino, e não simplesmente paralítico (2:7-10). ■ “dando uma voltinha no sábado à tar­ Podemos, ainda mais, julgar que o de” . Ele confia que Jesus não quebrou o POVO das igreias primitivas, para quem sábado levianamente, “masj o r q u e ‘os ^ Marcos escreveu, achava apoio, nesta négocias do Rei exigiam,pressa’: porque ! declaração, para se afastar das^obser- \ *oTerviço^Ícr Reino de Deus e a guerra I vâncias do sábado do povo judeu, e tam- ■■ Icontra o reino de Satanás precisava contibém liberdade para concentrar a sua ■nuar, sem solução de continuidade; por­ adoração no primeiro dia da sè^rnana. Há que os negócios para os quais Deus o unia alusão específica ao dia do Senhor jhavia enviado eram os negócios mais em o Novo Testamento (Apoc. 1:10), íimportantes do mundo” . j mas a primeira rejeição clara e absoluta 1 Não podemos saber se os comentários do sábado, em favor de uma observância de Jesus, nos versículos 27 e 28, foram do dia do'Senhor, encontra-se na Epístofeitos em conejcao com este incideíite em la aos Magnesianos, de Inácio (c^ 110 particular.íJayíS ^ensa que essas paladTc7jr~FreqÜentemente, naqueles pri­ vras foram MÍcionadas à narrativa por­ meiros dias, a observância do dia do que sg jek d o jiam também com o sába­ Senhor foi feita segim lo o p a ^ ão d do. Rawlinson^ensa que o versículo 28 ensinamento dõsescribas ac^rc^~ag~saé mãiJ^Bem^ompreendido como adíçãõ” Bã3ó,“'e não se'^ndõ 5 ^Í5 írifo dos ensiinterpretativa cristã (cf. Mar. 7:9). nam enfos^^^ s i ^ . Transferir jas regras Certamente o versículo 27 é üma decla­ acerca d ^ s á bado p a r a ^ ^ a do ~5^KÕr ração apropriada comcT prmcípio geral é semelMnte — e por isso r e j e r ^ ^ ’^ - ^ ^ da verdade expressa no uso que Jesus faz colocar vinho novo em odres velhos. Se da passagem acerca de Davi: O sábado o Filho do homem é Senhor do sábado, foi feito por causa do homem, e não o não é também Senhor do seu próprio homem por causa do sábado. Ele resume dia? uma atitude dinâmica em relação às ÍK (5) Observância do Sábado: Fazer o Bem práticas reUgiosas. e Salvar a Vida (3:1-6) O verso final vai além disto, e afirma o senhorio do Filho do homem sobre o 1 Outra v ez entrou n u m a sin a g o g a, e sá6ado7”Fílho do Eòmem, neste con- ’ e sta v a a li u m h om em que tinha u m a das m ãos atrofiad a. 2 E ob servavam -n o p ara têxtõTirà^ época de Jesus, seria entendido v er se no sáb ad o cu raria o h om em , a fim de como falando simplesmente de um ho­ o a cu sa rem . 3 E d isse J e su s ao h o m em que mem, ou de um homem representativo. tinha a m ã o a trofiad a: L evan ta-te e v em Mas para os cristãos primitivos e de para o m eio . 4 E n tão lh es perguntou: É lícito no sábado fa zer b em , ou fa zer m al? acordo com ^T ísõ^qüê^arcos fãz'^êssã 24 M ajor, M anson, e W right, p. 481 e s. P ara discussão mais m inuciosa acerca do sábado, veja o artigo de J. M orgenstem , “ S ab b ath ” , em The Interpreter’s Dictionai7 of the Bible, IV, 1 3 5 -4 1 .

sa lv a r a vid a, ou m a ta r? E le s, p orém , se ca la ra m . 5 E , olhando e m redor p ara e le s com in d ign ação, condoendo-se da dureza dos seu s co ra çõ es, d isse a o h om em : E ste n ­ de a tua m ã o . E le a esten d eu , e lh e foi resta-

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b elecid a. 6 E os fa riseu s, saindo dali, en tra ­ ram logo em conselho co m o s herodianos contra e le , para o m a ta rem .

Quem eram eles? O sujeito não tem antecedente claro, mas, devido ao pro­ pósito expresso (a fim de o acusarem), estamos seguramente corretos se o enten­ No parágrafo precedente, foi afirmado dermos como referente aos fariseus (cf. que ( 1 ) as leis do sábado precisam ser consideradas como secundárias em rela­ V. 6) e seus associados. Eles estavam, na verdade, observando Jesus, esperando ção às necessidades do homem, e que, (2) como Filho do homem, Jesus tinha que ele fosse curar no sábado e se pre­ plena autoridade sobre o sábado. Mas judicar, quebrando a lei. A cura no sábado era considerada haviam sido os discípulos, e não Jesus, legal apenas quando a própria vida esta­ que desafiaram as leis acerca do sábado, colhendo os grãos. Agora, os ofendidos va em perigo. De outra forma, requeriase, dos médicos, que confinassem os seus fariseus procuravam evidências claras de culpa no próprio Jesus. Quando chegou o serviços aos outros seis dias (cf. Luc. 13:14). sábado, Jesus outra vez entrou numa O interesse desta história está centra­ sinagoga. Talvez a sinagoga em Cafar­ lizado em três pontos: O primeiro é, sem naum seja a mencionada; mas não há dúvida, a cura daquele infeliz. O segun­ artigo definido neste texto, segundo alguns dos melhores manuscritos. Tay­ do é mais específico: Jesus ensinou que é lor, provavelmente, está certo ao inter­ correto fazer-se o bem no sábado. O terceiro, contudo, constitui a ênfase prin­ pretar a frase como paralela à nossa cipal. A oposição a Jesus, tão forte, ao expressão idiomática: Ele foi à igreja. Talvez o homem que tinha uma das mãos ponto de pôr em perigo a sua vida, surgiu atrofiada havia ido à sinagoga, esperan­ por causa da dureza dos corações dos do ver Jesus e receber ajuda dele. Não o homens. Eles estavam cegos para as podemos saber. É também plausível que boas-novas; estavam irremediavelmente cativos nas rotinas das suas próprias 0 homem fosse regularmente àquela mentes e na dureza e maUgnidade dos sinagoga. Não temos razão para supor seus corações. que essa pessoa afligida fazia parte dos Nenhuma interrogação foi feita acerca planos vingadores dos homens hostis a de Jesus poder ou não curar aquele ho­ Jesus. De acordo com o Evangelho aos He­ mem. Levanta-te e vem para o meio, breus, esse homem fora pedreiro (cons­ ordenou ele; e depois: Estende a tua mão. trutor de casas de pedra). “Eu era pe­ A mão foi restaurada. Diferentemente dreiro, ganhando a vida com minhas ■das histórias anteriores de curas, con­ tudo, não houve palavras de louvor a mãos; peço-te, Jesus, que me restaures a Deus, nenhuma administração por parte minha saúde, para que eu não precise mendigar torpemente o meu alimen­ da multidão, nem alegria expressa — apenas a fria e calculada hostilidade dos to.” 25 E observavam-no. O verbo é parti­ inimigos de Jesus. O que foi que Jesus ensinou, ao curar cularmente vivido, e pode conter a cono­ aquele homem no sábado? Fazer o bem, tação de observar com motivos ulteriores ao invés de prejudicar, e salvar a vida, e maliciosos. De qualquer maneira, eles em vez de matar? Swete e Rawlinson o estavam observando bem atentamente. consideram toda a história, e racioci­ nam, de acordo com o versículo 6 , que 25 M. R. Jam es, The Âppocrj>phal N . T . (O xford: C la­ rendon, 1945), p. 4 e s. A palavra “ atrofiada” (no Jesus estava acusando os seus inimigos de 1, e n ão no v. 3) é, devido à lorm a, um particípio quebrar o sábado, e não ele mesmo. Não passivo perfeito, e o seu uso dá a entender que o defeito estavam eles conspirando para preju­ não existia quando ele nascera (a m ão “ se havia to m a ­ do atrofiad a” ). dicar, e até para matar? V.

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Jesus havia perdido a calma. Nem de­ Contudo, da maneira como a história é vemos ignorar a sua identificação conos­ contada, o ensinamento de Jesus é sim­ co, como seres humanos. Porém, que f plesmente que fazer o bem não pode ser contra a lei de Deus, nem mesmo no /palavra é mais apropriada do que “indig-/ nação” , para descrever o que Jesus deve/ sábado. Mais do que isso, deixar passar a ter sentido dentro de si, por causa daí oportunidade de fazer o bem é, em si indiferença esclerótica, mas pejada de) mesmo, um mal — não seria isso fazer o justiça própria do homem em relação ao mal? (Cf. Tiago 4:17). Ê verdade que a seu semelhante? 1 vida daquele homem não parecia estar A palavra indignação precisa ser en­ correndo perigo; mas o seu meio de vida tendida em conexão com as seguintes e o seu senso de utilidade certamente palavras: Jesus, condoendo-se da dureza estavam sendo prejudicados. O que quer dizer salvar a vida, se não redimir um dos seus corações. De acordo com a pas­ sagem em Romanos 1:18-32, a ira (ou homem para ter uma existência cheia de indignação) de Deus segue este padrão: significado? Os circunstantes reagiram para com (1) os homens conheciam a Deus, não Jesus apenas com o silêncio. As suas obstante, não o honraram, mas seguiram perguntas não sugeriram nenhuma res­ os seus próprios pensamentos obstina­ posta que eles estivessem dispostos a dar dos; (2) isto resultou em pensamentos e as suas próprias perguntas permane­ fúteis: “ o seu coração insensato se obs­ ceram exasperantemente sem resposta. cureceu” (v. 21); (3) Deus os entregou a Será que este homem se considera acima si mesmos, às suas opções, à sua baixeza; de Moisés e da lei de Deus? Com que (4) eles receberam “em si mesmos a direito ousa ele ignorar a lei e o costume devida recompensa do seu erro” (v. 27); do santo sábado? Será que qualquer e, (5) finalmente, não importa o que homem que deliberadamente quebra o anteriormente eles considerassem cor­ sábado não merece a inimizade de todos reto, eles chegaram a aprovar cegamente os homens tementes a Deus? o mal (v. 32). Esta descrição das opera­ Jesus fitou os olhos hostis ao redor ções da ira de Deus é também uma des­ de si com indignação. Este é o único crição da natureza dos corações dos lugar, nos Evangelhos, em que este senti­ homens. Quando os antigos falavam do cora­ mento é atribuído a Jesus. ‘‘In^ignacãoj^ ção, estavam-se referindo à sede do en­ (a palavra grega usada é idêntica) _é mencionada em conexão com o iuízo tendimento. Dureza etimologicamente futuro (ou o seu sinônimo “ira” : Mat. vem do verbo que significa petrificar. 3:7; Luc. 3:7; cf. Luc. 21:23) e também Mas J. A. Robinson, em seu Commen­ tary on Ephesians (p. 264-74), mostrou em termos daquela morte em vida pre­ sente no homem que rejeita o senhorio de que dureza de coração deve ser entendido Jesus (João 3:36). A ira de Deus, como como cegueira intelectual. E, ainda descrita em Romanos 1:18—2:11, é uma mais, é aquele tipo de cegueira que, realidade presente, e culmina em ruína errada, porém repetidamente, clama: futura; não é. todavia, uma emoção Nós vemos, nós vemos! (cf. João 9:40,41). pessoal, mas um princípio moral em O ministério da identidade de Jesus funcionamento no homem e no mundo. permanece oculto dessas pessoas, por ~ Mateus e Lucas, que seguem a narra­ causa, exatamente, dessa dureza de cora­ tiva feita por Marcos, neste ponto, dei­ ção (veja Mar. 4:10-12). Esta cegueira xam de lado a palavra indignação, está no âmago da luta do Filho de Deus aparentemente porque não estavam com todos os poderes do mal. Até os dispostos a atribuir esta emoção a Jesus discípulos não estavam totalmente isen­ (Taylor). Não precisamos supor que tos (8:17). 351


Em 2:1—3:6, Marcos narra cinco his­ tórias de conflito entre Jesus e os escribas farisaicos. Em cada caso, a oposição a Jesus se baseava em uma incapacidade fundamental, por parte deles de discernir quem era Jesus, que nele o reino de Deus viera, e que ele realmente era o soberano sobre a Lei e os costumes reverenciados. Se 3:6 é final da história da cura operada por Jesus no sábado, é também a con­ clusão da seção toda. No que concernfe a Marcos, foi a dureza de coração deles, a sua cegueira, que os levou a se opor a Jesus até a morte. Os fariseus saíram da sinagoga e entraram logo em conselho com os herodianos, contra Jesus. Não sabemos precisamente quem eram os herodianos. Podiam ser influentes partidários de Herodes Antipas, mas, se assim fosse, estes não estariam normalmente aliados aos fariseus. Contudo, como nota Taylor, hostilidades comuns criam estranhas uniões. O antigo historiador judeu Josefo se referiu a “homens que eram zelosos pelos interesses de Herodes” , mas se este foi um grupo contínuo e específico, após a morte desse rei (o Herodes mencionado faleceu em 4 a.C.), não há provas. 2. O Ministério em Expansão e a Instru­ ção dos Doze (3:7—5:43) 1) As Multidões Junto ao Lago (3:7-12) 7 J esu s, porém , se retirou, co m o s seu s discípulos, p ara a b eira do m a r ; e u m a grande m ultidão dos da GalUéia o segu iu ; ta m b ém da Ju d éia, 8 e de J er u sa lé m , da Idum éia e de a lé m do Jordão, e d a s reg iõ es do Tiro e de Sidom , gran d es m u ltid ões, ou­ vindo fa la r de tudo quanto fa zia , v ie r a m ter com e le . 9 R ecom en dou , p ois, a s e u s d is c i­ pulos, que se lh e p rep ara sse u m barquinho, por c a u sa d a m u ltid ão, p a ra que não o a p e r ­ ta s se ; 10 porque tinh a curado a m u itos, de m odo que todos quantos tin h am a lg u m m a l arrojavam -se a e le p ara lh e to ca rem . 11 E os esp íritos im undos, quando o v ia m , p ro s­ travam -se d iante d ele e c la m a v a m , d izen ­ do: Tu é s o F ilh o de D eu s. 12 E ele lh es ad vertia com in sistên c ia que não o d essem a conhecer.

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O desenvolvimento da história do evangelho feito por Marcos tem muitas facetas, que se sobrepõem umas com as outras, de forma que nenhum esboço que tentarmos será inteiramente satisfatório. O que precisa constantemente estar na mente do leitor é o primeiro sumário da pregação de Jesus: chegou a hora deci­ siva da história, pois o reino de Deus está próximo, na pessoa de Jesus (1:14,15). As motivações da primeira seção (1: 14—3:6) — a autoridade manifesta de Jesus, a sua fama crescente e a oposição, que se endurecia cada vez mais — con­ tinuam sem moderação nos capítulos seguintes. Como o descreve Rawlinson: “Quanto mais os escribas se opunham ao nosso Senhor, mais o povo afluía para ele.” Na seção que se inicia com 3:7, o mi­ nistério na Galiléia chega ao seu ápice. Muito mais do ensinamento de Jesus é registrado, tanto em resposta aos seus inimigos, como nas parábolas. Os doze, de maneira especial, começaram a com­ preender mais claramente quem era Jesus. Contudo, a cega hostilidade dos escribas crescia e a superficial compreen jãó aas multidões se tornava cada vez íríais evidente. A multidão que o seguia vinha agora de uma região muito mais vasta do que fora sugerido anteriormente. A fama de Jesus se havia espalhado. Agora os que o seguiam não eram apenas galileus, mas gente da Judéia e de Jerusalém (cf. a descrição da multidão que afluiu ao Batista em 1:5). Eles vinham também da Iduméia, terra dos Herodes, que ficava ao sul da Judéia. Os idumeus nem sem­ pre eram reconhecidos como verdadeiros judeus, porque os seus antepassados haviam sido forçados pelo rei macabeu João Hircano a aceitar a circuncisão e a fé judaica (c. 110 a.C.). Parte d a ‘multi­ dão veio de além do Jordão, isto é, da Peréia, a leste, e outras pessoas, das regiões de Tiro e de Sidom, terras que ficavam ao norte. Nada se diz da Samária. Johnson sugere que (diferentemente


embora reconheça a ênfase que Marcos de Lucas e de João) Marcos não conhecia qualquer missão samaritana. Mas parece dá à homenagem prestada por eles a que a descrição de Marcos apenas pre­ Jesus. Mas parece perfeitamente claro tendia descrever a multidão como enor­ que Marcos considerava os seus gritos me, e dizer que ela incluía pessoas vindas como testemunho genuíno da divindade de longe. de Jesus, que estava em guerra contra Erp atendimento ao pedido de Jesus, eles e contra seu chefe, como está claro os seus discípulos prepararam um bote em 3:20-30. O poder deles é um sintoma pequeno, para o uso dele, de forma que do mal que escraviza os homens, e só o poder de Deus, com quem eles estavam tivesse um pouco de alívio da pressão das identificando Jesus, era capaz de vencêmultidões. Os doentes e enfermos estavam ansio­ los. Carrington insiste que Jesus não aceitava “as opiniões populares acerca de sos por lhe tocarem. Veja 1:40-41, onde Jesus tocou o leproso; e a história da possessão de demônios” . Pelo contrário, mulher que tocou nas vestes de Jesus todas as evidências mostram que Jesus (5:24-34). Na passagem paralela, em nuHca deu a entender que estava que­ Lucas (6:19), a explicação é que “ saía ' rendo corrigir esses pontos de vista, mas dele poder” . Outro sumário de Marcos sempre exerceu o seu ministério dentro (6:53-56) expressa a mesma compreensão do ponto de vista do mundo do primeiro acerca das curas que ele realizava: o povo século (cf. Carrington, p. 80 e s.). trazia os seus enfermos “nas praças, e 2) A Indicação dos Doze (3:13-19). rogavam-lhe que os deixasse tocar ao 13 D ep ois subiu a o m on te, e cham ou a si menos na orla do seu manto; e todos os os que e le m e sm o q u eria; e v ier a m a ele. que a tocavam ficavam curados” . 14 E n tão designou doze p ara que e stiv e sse m A palavra traduzida como mal, no com e le , e os m a n d a sse a p reg a r; 15 e para versículo 10 (“enfermidade” , na Versão que tiv e sse m au torid ad e de ex p u lsa r os d e ­ m ônios. 16 D esign ou , p ois, os doze, a s a b e r ; Atualizada da SBB), é de uma raiz que Sim ão, a q u em pôs o n om e de P ed ro; 17 significa açoitar ou flagelar. No Velho T iago, filho de Z ebedeu, e João, irm ão de Testamento em grego, ela algumas vezes T iago, a o s quais pôs o n om e de B oan erges, se referia a sofrimentos enviados por que sig n ifica ; F ilh o s do trovão; 18 André, F ilip e, B artolom eu , M ateu s, T om é, T iago, Deus. Mas então a palavra se havia tornado designação genérica para enfer­ fiUio de A lfeu, T adeu, S im ão, o cananeu, 19 e Judas Isca rio tes, aq u ele que o traiu. midades, e não há indícios de que a sua ocorrência fosse causada por qualquer O treinamento e preparo dos doze é punição divina. Pelo contrário, Jesus um fato importante nos quatro Evan­ estava constantemente em guerra contra gelhos. Para os escritores sinópticos, um essas aflições humanas. Os espíritos imundos, da mesma for­ clímax no desenvolvimento dos discí­ ma como anteriormente, reconheciam pulos foi atingido em Cesaréia de Filipe, Jesus e sucumbiam diante da sua auto­ quando eles confessaram Jesus como o ridade (veja a discussão acerca de 1 : Cristo (cf. 8:27-30; Mat. 16:13-20; Luc. 23-26,34). O nome que eles anterior­ 9:18-22; em João 6:66-71, note seme­ mente haviam dado a Jesus era o de o lhanças com as passagens sinópticas). Santo de Deus. Agora eles caíam diante O trabalho de Jesus, em ensinar os seus da autoridade daquele que eles identi­ seguidores, continuou depois desse acon­ ficaram como o Filho de Deus. Ê de se tecimento. De fato, Lucas diz que as ins­ duvidar que Marcos pretendesse fazer truções de Jesus foram consideráveis e qualquer distinção entre os dois títulos. importantes, durante as suas manifes­ Carrington recusa-se a “levar a sério tações após a ressurreição (Luc. 24:32, a ‘teologia’ dessas almas dementes” . 44-49; cf. Atos 1:3). 353


De acordo com Marcos, Jesus já havia chama esse uso da palavra de “ tradução chamado certos homens para discípulos grego” . Certamente ele expressa a ori­ (1:16-20; 2:13,14). Agora ele relata a gem palestiniana do material usado por vocação dos doze homens que ocupariam Marcos, não importa se ele está escre­ um lugar especial na companhia de vendo na distante Itália. Jesus. Por que doze? A maior parte dos co­ Subiu ao monte. Esta é, provavelmen­ mentaristas concorda que o número foi te a melhor tradução, pois o texto grego escolhido para corresponder às doze diz literalmente “ o monte” . Essa decla­ tribos de Israel. Johnson adverte-nos que ração é mais do que uma nota geográfica esse número pode ser coincidência, ao casual: os cumes de montanhas são tra­ invés de proposital. Mas não há dúvida dicionalmente cenários para atos divinos de que a igreja primitiva considerava e solenes. O Monte Sinai é apenas o mais esses homens como líderes simbólicos do conhecido dentre muitos exemplos; com­ novo Israel (cf. Mat. 19:28; Luc. 22: pare a revelação da pessoa de Deus no 30). A escolha de doze também tem Monte Carmelo, em resposta â oração de paralelo no Manual de Disciplina da Elias. Nineham nos faz lembrar, com comunidade de Q um ran(lQ S 8:1). muita correção, o “envolvimento de As razões apresentadas para o fato de nosso Senhor nos padrões de pensa­ Jesus ter chamado os doze são duas. mento de sua época” . Algo significativo Primeiro que tudo, ele queria que eles estava para acontecer, algo de impor­ estivessem com ele. A maneira de pensar tância para os propósitos divinos. Lucas de Jesus, a sua compreensão da atitude 6:12 torna esse ponto ainda mais explí­ de Deus para com o homem pecador, a cito, ao nos dizer que Jesus orou a noite sua compaixão, enfim, todo o seu caráter toda, antes de escolher os doze. estava em agudo contraste com o dos Jesus convidou os que ele mesmo que­ líderes religiosos de sua época. Mas ria. A iniciativa não coube aos discí­ homens como esses discípulos tinham pulos, mas ao Mestre. O versículo 13 nos muita dificuldade em apagar as velhas relembra que precisamos pensar em influências de sua mente e entrar nos muitos mais discípulos do que o círculo métodos de Jesus de maneira plena. De mais íntimo que Jesus estava para esco-' qualquer forma, isso não foi conseguido lher. Os doze serão os seus associados, antes do Calvário. O progresso que os mais achegados; podemos supor que os discípulos fizeram enquanto Jesus estava outros estavam na sua companhia com na terra seria, sem dúvida, bem menor, freqüência, mas não continuamente. se eles não vivessem com ele tão constan­ A tradução antiga, “nomeou” , tem temente. conotações em português que não exis­ Em segundo lugar, Jesus queria que tem em grego. Designou... doze. O esses homens partilhassem de sua mis­ próprio verbo não é a palavra usual para são. Eles tornaram possível uma pro­ “indicar” , mas é encontrado freqüente­ pagação mais ampla de sua mensagem. mente com este sentido, na tradução O evangelho que eles pregaram incluiu grega do Velho Testamento.. Taylor evidências amplas de que o reinado de Deus chegara ao homem, e que esse reino 26 Alguns dos nossos m elhores e m ais antigos manuscritos adicionam “ a quem ele cham ou apóstolo” , e A Bíblia na Linguagem de Hoje, da SBB, e a T rad u ção Novo M un­ do seguem esse texto. Todavia; a m aior parte dos co­ m entaristas crê que tais palavras foram acrescentadas por um copista prim itivo, que as tom ou em prestadas de Lucas 6:13. O verbo “ ser enviado” , no versiculo 14, tem a mesm a raiz, m as denota apenas u m a função, e nào um oficio.

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27 F arrer (p. 79-81) indica que Levi nâo foi incluído entre OS doze (cf. M ar. 2:13 e s.), d a mesm a form a como o antigo Levi não era u m a das doze tribos, mas a décimaterceira. Os filhos de José, E fraim e M anassés eram contados com os seus tios. Contudo, o grau de corres­ pondência e tipologia sobre o qual F a rrer insiste não teve aceitação geral.


divino estava vencendo as forças malig­ quem Filipe trouxera a Jesus (cf. João nas, que alienavam o homem de sua ver­ 1:43 e ss.). O nome é dado incompleta­ dadeira personalidade. Como era verda­ mente; mas ele é costumeiramente apre­ de em relação ao seu Mestre, uma inse­ sentado juntamente com Filipe (não parável porção da pregação dos discí­ juntos em Atos 1:13). Com relação ao pulos consistiu de expulsão de demônios, próprio Filipe, temos poucas informa­ mediante a autoridade do seu Rei. O ções, a não ser pelas referências traum á­ primeiro registro que Marcos faz do fato ticas de João 6:5-7; 12:21 e s.; 14:8 e s. de eles terem sido enviados está em 6:7; Mateus é identificado, no primeiro ele se refere a eles como “apóstolos” , Evangelho, com o Levi de Marcos 2:14, em 6:30. embora o nosso Evangelho de Marcos A hsta dos doze que se segue também é não apresente indicação de tal identi­ apresentada em Mateus 10:2-4, Lucas ficação. Tomé significa gêmeo, da mes­ 6:14-16 e Atos 1:13 e ss. O primeiro ma forma como a palavra Dídimo (João mencionado é sempre Simão, a quem 11:16). Ele é lembrado especialmente Jesus pôs o nome de Pedro. O nome pela sua insistência em ver o Senhor grego traduzido como Pedro (como o seu ressurrecto pessoalmente (João 20: equivalente aramaico traduzido como 24-28). Há cristãos na índia, hoje em Cefas — cf. João 1:42; Gál. 1:18), sig­ dia, que afirmam que a conversão dos nifica pedra, e é um tributo à força de seus antepassados remontam a Tomé. caráter que ele iria possuir. O nome de Tiago, filho de Alfeu é Tiago e João (cf. 1:19) também rece- ' dado em forma mais longa, para distinberam um apelido: Boanerges, que Mar­ gui-lo de Tiago, filho de Zebedeu. Seria cos traduz como filhos do trovão. Tem ele irmão de “Levi, filho de Alfeu” sido sugerido que Marcos 9:38 e Lucas (2:14)? Era a Maria de 15:40 sua mãe? 9:54 demonstram o quanto esse nome era Simplesmente não podemos ter certeza. apropriado; mas, esse caso, o nome, A respeito de Tadeu (alguns manuscritos diferentemente de Pedro, teria sido apli­ grafam Lebeu) sabemos ainda menos. O cado a eles devido a limitações do seu seu nome é apresentado como “Judas, amor cristão. Simplesmente não temos informações suficientes para tirar quais­ filho de Tiago” , em Lucas 6:16 e Atos 1:13. quer conclusões definitivas. Os discípulos, em sua maioria, são, Visto que Simão foi chamado o cana­ para nós, apenas nomes, porque sabe­ neu, temos aqui uma substancial suges­ mos tão pouco acerca de suas vidas de­ tão quanto ao seu caráter. Os cananeus pois da ressurreição de Jesus, e de sua eram zelotes (cf. Luc. 6:15; At. 1:13). contribuição para a causa do evangelho! Até que ponto estava desenvolvido esse Isto bem pode ter sido verdade também partido, na terceira década do primeiro em relação aos escritores dos Evange­ século, não somos capazes de dizer. Os lhos. As tradições posteriores acerca do zelotes advogavam revolta armada contra seu trabalho podem ter alguma base os dominadores romanos, e conseguiram histórica, mas temos registros muito suscitar um fervor nacionalista a tal pon­ pequenos acerca desses homens, no Novo to que os judeus palestinos se uniram em Testamento propriamente dito. André rebeUão contra Roma, em 66 d.C. É era irmão de Simão (1:16); pouco sabe­ claro que Jesus advertiu contra esse es­ mos acerca desse homem simpático, pírito, em passagens como Lucas 13:1-5. exceto quanto às breves referências em Barrabás também era um homem com 13:3 e em João 1:40,41; 6 :8 ; 12:22. violento fervor nacionalista (15:7). Ho­ Bartolomeu (filho de Tolmai) é geral­ mens como esses eram muito simpáticos mente identificado com Natanael, a aos cananeus. O fato de Jesus ter con355


'^seguido alistar e transformar Simão foi uma realização notável. Judas, o traidor, era chamado Iscay \ ^riotes. Algumas pessoas têm tentado li' ^ g a r e s s e sobrenome com os sicários, “hoL Si mens-punhal” ou assassinos, que eram H ^ l |u m a espécie de ala esquerda do partido I ^^^zelote. Mais freqüentemente, a palavra '|£ tem sido interpretada como “ homem de ^ sKerioth” , cidade da Judéia. Se isto é p í;^\correto. Judas era o único dos doze que ^ 'Iç -g n ã o era galileu. Marcos não interpreta £ I | o nome, e Dalman acha que é bem plauè ^ ^ ^sível que qualquer significado específico ^ ? |d e Iscariotes já era desconhecido para o j s é evangelista.

A expressão grega não faz distinção tão claramente como o português, entre “ca­ sa” e “lar” . A multidão veio outra vez, para estar com Jesus. Encheu o lugar, e não saía, de forma que não havia maneira possível de se preparar e comer uma refeição naque­ la casa. Além dos doze, aquelas pessoas formavam o primeiro grupo presente em 3:20-35. Elas jiaviam sido atraídas pelas suas palavras e atos e estavam ansiosas por ouvi-lo mais. Não é necessário suporse que todos haviam-se tornado discípu­ los. O segundo grupo envolvido na história era o povo de Jesus. Os seus (literal­ mente, os que estavam do seu lado) f 3) Acusações Contra Jesus de Loucura vieram para levá-lo, porque haviam con­ ^ /íS ou Poder Demoníaco (3:20-30) cluído que ele está fora de si. Em outras 20 D epois entrou nu m a ca sa . E afluiu ou- ocasiões que Marcos usa esta expressão, ela é figurativa: veja 2:12; 5:42; 6:51. £ tra vez a m ultidão, de tal m odo que nem podiam com er. 21 Quando os se u s ouviram Quem eram as pessoas que faziam esse isso, saíram para o p ren d er; porque d iz ia m : julgamento de Jesus? A frase traduzida ^ E le e stá fora de si. SSSS E os escrib a s que como os seus era usada para referir-se .tinham descido de J eru sa lém d iziam : E le às pessoas da família de alguém, a um ^ está p o ssesso de B elzebu; e: É p elo príncipe grupo mais amplo, incluindo a família, S ,^dos dem ônios que exp u lsa os dem ôn ios. 23 E ntão J esu s os cham ou e lh es d isse por aos seus seguidores, ou enviados ou agen­ p aráb olas: Como pode S atan ás exp u lsar S a ­ tes. Em vista da acusação que fizeram tanás? 24 P ois, se u m reino se dividir contra contra Jesus, os discípulos certamente si m esm o, tal reino não pode su b sistir; 25 estavam excluídos. Além do mais, eles (>iou, se um a c a sa se dividir contra si m e sm a , L t a l c a sa não poderá su b sistir; 36 e , se Savieram para o prender; isso os seus se­ ^ .^ ’S ta n á s se tem levantado contra si m esm o, guidores não teriam desejado fazer. A ' e está dividido, tam pouco pode e le subsis- ' única maneira razoável de entender essas tir; an tes tem fim . 27 P o is nin gu ém pode. palavras é que a família de Jesus, e entrar n a c a sa do valen te e roubar-lhe os também talvez alguns vizinhos, que o bens, se prim eiro não am a rra r o va len te; e então lhe saq u eará a ca sa . 28 E m verhaviam conhecido desde a infância, ;>■%"dade v o s d ig o : Todos os p ecad os serão p er ­ criam que ele estava sendo atacado por doados a o s filhos dos h om en s, b em com o algum êxtase religioso, colocando-se em todas a s b la sfêm ia s que proferirem ; 29 m a s perigo, e precisava de sua proteção. Pa­ aquele que b la sfem a r contra o E spirito San­ to nunca m a is terá perdão, m a s se r á réu de rece claro, lendo-se 3:31, que Marcos pecado e tem o . 30 Porquanto e le s diziam : pretendia que os seus leitores pensassem E stá p o ssesso de um espírito im im do. isso, pois, conforme afirma este versícu­ Como o expressa a Harmony of the lo, sua mãe e irmãos chegaram e tenta­ Gospels de A. T. Robertson, os eventos vam chamá-lo para fora da multidão. de Marcos 3:20—5:20 foram narrados têm achado que “ diziam ” é impessoal, e deve como se tivessem acontecido em um só 28 Alguns referir-se a pessoas diferentes dos amigos e parentes dia. Depois de ter escolhido os doze, de Jesus (Streeter); ou que o texto foi adulterado, e que a acusação de loucura deve ser a tribuída aos Jesus voltou para casa. Compare 2:1 e "escribas e os outros” (E. Lohmeyer, F. C. G rant). também 1:29; possivelmente o lugar é a M as Joâo 7:5 tam bém afirm a que os irm ãos de Jesus casa de Simão e André, em Cafarnaum. não criam . Tudo o que este incidente dá a entender.

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Embora fosse errada ou apologética a palavra dos seus parentes, ela não era maliciosa ou hostil. Acusar Jesus de estar ligado ao Diabo era assunto completa­ mente diferente. É como a diferença entre dizer: Ele está doente, mas vai ficar bom; ou dizer: Ele está criminalmente insano, e nos destruirá, se não nos livrar­ mos dele. Os escribas que tinham descido de Je­ rusalém podem ter vindo à Galiléia para encorajar os seus compatriotas do norte a fazer valer a Lei. Provavelmente eles eram fariseus, e estavam perturbados pelas palavras e obras de Jesus registra­ das por Marcos 2:1—3:6. Johnson nos faz lembrar que na época de Jesus os fariseus ainda não haviam estabelecido o seu controle sobre os judeus da Galiléia. Este fato parcialmente explica por quemuitos galileus apoiavam continuamente o Senhor. Belzebu era o nome de um príncipe das forças malignas, que só é menciona­ do nesse passo das Escrituras. Essa pa­ lavra significa senhor da habitação (tra­ dução literal do aramaico) ou, mais pro­ vavelmente, senhor do esterco. Se “se­ nhor da habitação” é correto, pode ter havido, originalmente, um jogo de pala­ vras na resposta de Jesus, no versículo 27: Jesus seria o verdadeiro “senhor da casa” , que substituiria o “senhor” falso e maligno. Porém os leitores de Marcos, seguindo o grego, dificilmente o teriam entendido assim. Nas placas de Ras Shamra (c. 1400 a.C.) um dos deuses é chamado “Zebul, baal da terra” . “Beelzebub” (não encontrado nos nossos me­ lhores e mais antigos manuscritos) signi­ fica “senhor das moscas” , e era deus de Ecrom (II Reis 1:2). Aparentemente, os hebreus relegavam os deuses dos estran­ geiros ao seu redor à condição de .demô­ nios. como diz Taylor, é que p a ra com os amigos de Jesus (segundo a cam e) “ um a profunda preocupação pes­ soal p o r Jesus é com binada com u m a falta de sim­ p atia por seus alvos e propósitos” . As outras n a rra ­ tivas nâo incluem essa acusação feita pelos amigos de Jesus (cf. M at. 12:22 e ss.; Luc. 11:14-26).

Ser possesso de Belzebu significava que o demônio que tinha aquele nome havia dominado o corpo de um homem, bem como a sua vontade, e estava al­ cançando os seus objetivos malignos através desse mortal. Se se traduzir: “Ele possui Belzebu” , a acusação será de que Jesus havia ganho controle sobre esse poder demoníaco, e, portanto, era capaz de realizar obras notáveis (porém funda­ mentalmente más).^"^ Jesus foi acusado de estar formando uma liga criminosa com Satanás, e, portanto, de estar inclinado a levar à completa ruína as pessoas que ele, na realidade, queria orientar ou aju­ dar. Se ele expulsa demônios, diziam eles, só pode ser mediante um poder maior, isto é, por um espírito maligno poderoso, para causar maiores tragédias na vida dos mortais afetados. A resposta de Jesus foi dada por pará­ bolas. O uso que Marcos (e os Sinópticos) faz deste termo provém do seu paralelo hebraico e abrange não apenas compa­ rações e histórias ilustrativas, porém má­ ximas, sarcasmos e provérbios (veja 4:2, 10-13). O problema certamente nem sempre era se os ensinamentos de Jesus eram suficientemente lúcidos, mas se os homens aceitavam dentro de si mesmos o que ele ensinava. A primeira parte da resposta de Jesus (v. 23-26) tratava das falsas pressuposi­ ções deles a respeito de Satanás. Por mau que possa ser o príncipe dos demônios, certamente ele não é estúpido, como eles aparentemente o consideravam. Por que iria Satanás guerrear contra si mesmo? interrogou Jesus. Se partimos do fato de 29 Johnson, p. 81. Cf. as traduções inglesas King James (“ Ele tem Beelzebub” ) e The English Version ( “Ele tem Beelzehul nele”). Taylor nâo faz essa distinção; contudo, ele pensa que M arcos fez diferença entre Beelzebul (Belzebu) e o príncipe dos demônios (p. 238). Em nenhum a parte da literatu ra ju d aica Beelzebul é apresentado como um dos nomes de Satanás. M as as fontes de que M arcos se serviu provavelmente retive­ ram um paralelism o hebraico, e tanto M ateus como Lucas identificaram Belzebu como o príncipe dos de­ m ônios (M at. 12:24; Luc. 11:15). Além do m ais, a resposta de Jesus, nos versículos seguintes, refere-se diretam ente a Satanás.

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que o príncipe dos demônios tem um reino, ou uma casa de governo com mui­ tos vassalos, certamente ele não incenti­ varia revolução entre os seus súditos. Se fosse para Satanás perder contra si mes­ mo seu grande poder, ele estaria pro­ curando a sua própria destruição. Por­ tanto, Jesus, que de fato havia estado expulsando demônios, não podia logica­ mente ser acusado de coalisãó com eles! A segunda parte da resposta de Jesus era uma enérgica declaração de que o poder do Espírito de Deus estava ope­ rando através de nosso Senhor. Em Lu­ cas 11 :20 , esse fato é expresso desta for­ ma: “Mas, se é pelo dedo de Deus que eu expulso os demônios, logo é chegado a vós o reino de Deus.” Marcos simples­ mente narra a parábola expressiva a res­ peito de saquear a casa do valente. Da mesma forma como a maioria das parábolas que Jesus usou, esta foi empre­ gada para expressar uma idéia convin­ centemente. Nenhuma pessoa de força física comum se abalançaria a forçar entrada em uma casa ocupada por um gigante musculoso. Só um homem capaz de controlar decisivamente o ocupante ousaria fazê-lo. Nenhuma outra pessoa conseguiria pilhar essa casa com sucesso. Isso é tudo: que a ilustração prove o que deseja expressar! Não havia necessidade de acrescentar que alguém mais forte do que Satanás chegara, ou dizer (aprovei­ tando-se outra vez da primeira parte da resposta de Jesus) que os poderes do mal estão sendo derrotados. O homem, que se encontrava desde há muito tempo sob o domínio do mal, tem um novo sobera­ no! A expulsão de forças demoníacas fazia parte da essência das boas-novas de Je­ sus. O reino de Deus está próximo nele, e os homens precisam voltar-se com fé para o novo soberano (1:15). Ê meridianamente claro, nesta passa­ gem, como em outras partes, que o Jesus terreno aceitou um ponto de vista, acer­ ca de Satanás e do seu reino, que era 358

contemporâneo com o seu ministério. Taylor é bem convincente em seu argu­ mento de que esta crença não era sim­ plesmente uma acomodação às idéias correntes, mas uma condição necessária para uma verdadeira encarnação. “ O cristão moderno” , escreve ele, “não é obrigado a esposar os mesmos pontos de vista. A sua atitude acerca da doutrina de Satanás será determinada pela sua filosofia do mal e a sua interpretação do fato da vida e da experiência religiosa” (p. 239). As primeiras duas partes da resposta de Jesus à acusação contra ele feita, de ter aliança com Satanás, demoliram a acusação e reafirmaram uma aliança mais poderosa (divina) como a verdadei­ ra explanação de sua conduta. A terceira parte (28-30) era a condenação mais se­ vera das pessoas que haviam feito um julgamento tão maligno. Se estes versí­ culos existissem como discurso separado de Jesus, como muitos comentadores mo­ dernos pensam, mesmo assim seriam apropriados para este contexto. Mas o pronunciamento é registrado em um con­ texto diferente em Lucas 12:10. Em verdade vos digo são palavras usa­ das para introduzir as declarações mais solenes de Jesus. A expressão era ca­ racterística de Jesus, ocorrendo cerca de 70 vezes (de alguma forma) nos Evange­ lhos, e em nenhuma outra parte do Novo Testamento. Como os estudiosos geral­ mente têm observado, essa expressão chamava especial atenção para as pala­ vras enfáticas que se seguiam. No en­ tanto, mais importante do que isso, era a declaração inata nessas palavras: Jesus tinha o direito de falar, pois ele possuía a verdade. Mas os julgamentos de Jesus que costumeiramente eram marcados por essa frase eram julgamentos que podiam ser conhecidos apenas pelo pró­ prio Deus, que é a Sabedoria absoluta. O advérbio em verdade é uma tradução de “ amém” . Em Apocalipse 3:14, o nos­ so Senhor ressurrecto é mencionado co­ mo “o Amém” , que é explicado como


Desta forma, pecado eterno pode signifi­ “a testemunha fiel e verdadeira, o prin­ car um pecado que excede o tempo, ou cípio da criação de Deus’’. pode significar, como sugere Johnson, Tdão^^gj^gu^ declarou Jesus, é um pecado que faz com que o homem notável em seu alcance. Todos os peca­ permaneça culpado “enquanto esta era dos e todas as blasfêmias não alienam, 9urar’\^M as. a segunda interpretação necessariamente, os homens do Deus mi­ âilui alinguagem de Jesus, que é, excluí­ sericordioso de maneira permanente. O da esta interpretação, forte e enérgica, e verbo traduzido como “ serão perdoados” Taylor certamente está correto quando rsignifica remir, cancelar e, neste contex­ declara que este pecado é descrito como to, colocar de lado todos os obstáculos a uma perfeita comunhão. B k s ^ ^ a s “barreira permanente” , levantada pelo homem, entre ele mesmo e Deus. eram palavras caluniosas oii índecenfés Quando proferidas contra os filhos dos if Branscomÿ aponta para palavras pahomens — e devemos entender esta ex­ raïelas na'Mîshnah, relacionando as pespressão como incluindo Jesus, o Filho do soas que são excluídas do mundo futuro; Homem (cf. LÍic. 12:107”^ podem ser iSqueles^'^F nFgâjET ressu rreiç^ ! apagadas pela misericórdia divina. Devedos mortos, os que negam ser a Lei de ( se entender, certamente, que muitos dei­ f Moisés provinda de Deus e os que são / xariam de reconhecer a dignidade de heréticos. Isso não deve, diz ele, ser' alguém que “esvaziou-se” e foi achadO considerado como uma “Hmitação fixa “semelhante aos homens” (Fil. 2:7 e s.). da graça divina” , mas como “advertênBlasfêmia contra o Espírito Santo, ã a contra uma cõnfSnça exagerada na contudo, está em uma categoria dife-^ ^ a ç a ^ n a misericórdia 5ê^~èuFn P a rente. O homem que a profere é réu Ymesma forma, crê ele. Jesus^falou em de pecado eterno: nunca mais terá per­ hipérbole. Ele queria apenas enfatizar dão. No versículo 30, Marcos tornou que a blasfêmia contra o Espírito Santo clara a sua interpretação desta blasfêmia era um mal terrível, e mereceria a maior específica: era atribuir os atos bons e l condenação por p a r t ^ ^ Deus. "redentores de ajuda e cura, executados .r^Este^íntefpreteçãò é possível, mas não pelo poder do Espírito, à agência de inteiramente plausível. O contraste entre Belzebu. Como o expressauohnsõn^ sigpecados peráe”T T u a força. Além do "nificava “atribuir a Satanás o que talvez? mais, nenhuma palavra de explicação se >seja o maior dom do Espírito Santo, o de 1 segue. Compare a palavra figurativa de , libertar aqueles que são presas do poder j Marcos 10:25; o versículo 27 torna claro satânico” . A pessoa que assim age não as limitações da declaração de Jesus. Um apenas rejeita os valores morais, mas os camelo não pode atravessar o fundo de inverte. E como se dissesse, em seu cora­ uma agulha, mas pela ajuda de Deus um ção: “Mal, para mim você é bem!” rico pode entrar no reino. Certamente é verdade que uma opi­ Não obstante, os Evangelhos constan­ nião satânica como essa deva bloquear temente enfatizam a possibilidade de ar­ inteiramente qualquer esperança de co­ rependimento e o amplo alcance da mi­ munhão com Deus. Contudo, existe al­ sericórdia de Deus. O ato dos escribasT guma discordância entre ( 1) o significado ao dizer que Jesus “está possesso de da palavra traduzida como eterno e ( 2) se Belzebu” , era suficiente para condenáJesus falou literalmente ou em hipérbole. los por toda a eternidade? Isto é difícil dê" O substantivo do qual deriva a palavra crer. De fato, Jesus continuou a tra B ^ “eterno” pode significar (além de idéias fflaftom os fariseus e escribas através de correlatas) todo o tempo por vir, isto é, a todo o seu ministério. eternidade, ou um segmento de tempo, ' Se não enfraquecermos a verdade des-'^ como a era presente (Arndt e Gingrich). tas palavras e, não obstante, tivermos, 359


em mente, o grande poder do perdãoA divino, como é cm^^podemos entenderj Jsso? O p e c ^ o identificado dificilmente pode ser apenas qualquer palavra inju­ riosa ou irada contra a obra do Espíri!õ ~ ^ ^ e u s — em'Jê~sus ou através de qualquer homem guiado pelo Espírito. As pessoas que cometem esses males muitas vezes são, certamente, atraídas para o caminho de nosso Senhor e são capazes de arrependimento. O pecado contra o Espírito que acar-~ reta alienação permanente não pode ser apenas um ato ou uma série de atos, mas uma perversão da personalidade, que nega inteiramente e desafia os valo­ res morais e pensa caracteristicamente no bem como mal e na luz como trevas. *T) fato de os escribas identificarem Jes\ís~ com Satanás era, certamente, evidência de que as suas atitudes estavam pelo menos indicando esse perigo espiritual n êlê^ E ra melhor que eles fossem adver­ tidos: as suas vidas estavam trilhando um caminho em que eles poderiam se tomar tão terrivelmente perdidos e ema­ ranhados, que nunca mais conseguiriam voltar para o caminho verdadeiro e de vida.

rn

4) A Verdadeira Família de Jesus (3:3135) 31 C hegaram então su a m ã e e se u s ir ­ m ãos e , ficando d a p arte de fora, m an d a­ ram cham á-lo. 312 E a m ultidão e sta v a se n ­ tada ao redor d ele, e d isse r a m -lh e : E is que tua m ã e e teu s irm ãos estão lá fora e te procuram . 33 B espondeu-lhes J e su s, d izen ­ do: Quem é m inha m ã e e m eu s irm ãos? 34 E , olhando em redor p ara os que e sta v a m sentados à roda de si, d is s e : E is aqui m inha m ãe e m eu s ir m ã o s! 35 P o is aq u ele que fizer a vontade de D eu s, e ss e é m eu irmã;0 , irm ã e m ãe.

Marcos colocou aqui a história de Je­ sus e sua verdadeira família devido às acusações que citara no versículo 21 , e é bem apropriada para a sua mensagem. Ao concluir a resposta de Jesus às acusa­ ções feitas contra ele, Marcos queria, corretamente, enfatizar, para os seus lei­ 360

tores, a divina filiação de Jesus e a na­ tureza da verdadeira irmandade que está na própria essência do discipulado. Todavia, é bem provável que 3:31-35 tenha sido uma unidade à parte da nar­ rativa evangélica. Que M aria estava en­ tre os “ amigos” do versículo 21 é uma conclusão improvável e desnecessária, como o entendo. É verdade que Marcos não apresenta nenhuma evidência de que sabia algo acerca do nascimento virgi­ nal, mas esta passagem não pode ser usada como evidência de que a mãe de Jesus se opunha à sua missão. Maria é mencionada em 6:3, mas apenas neste parágrafo ela aparece diretamente na narrativa de Marcos. A explicação melhor e mais simples da identidade dos irmãos de Jesus é que eles eram filhos de José e Maria, e mais jovens do que Jesus. A idéia de que eles eram filhos de José em um casamento anterior remonta pelo menos ao apócrifo Evangelho de Pedro (c. 140-150 d.C.). No fim do século IV, Jerônimo insistiu na hipótese de que eles eram primos, tradução possível, mas não provável, da palavra “irmãos” usada aqui em 6:3. O fato de que o marido e pai de fa­ mília não é mencionado durante o minis­ tério de Jesus sugere que José havia fale­ cido alguns anos antes. Os membros da família de Jesus man­ daram chamá-lo. Estas palavras signifi­ cam que eles pediram para ver e falar com Jesus. O arranjo que Marcos fez ligou o pedido deles com o temor cheio de preocupação dos “ seus” amigos de que ele estivesse “fora de si” . A mul­ tidão que estava ao redor de Jesus apa­ rentemente incluía os seus discípulos, mas pode ter abrangido muito bem mui­ tas pessoas apenas curiosas. Podemos presumir que não temos aqui um relato completo do que aconteceu. Não há ra­ zão para supor, por exemplo, que Jesus se recusou a ver os seus parentes consangüíneos. A mensagem que os cristãos da era apostólica em geral e os leitores de Marcos em particular precisavam ouvir


não se relacionava com o que Jesus disse à sua mãe e a seus irmãos, mas com a pergunta e a resposta que Marcos regis­ trou nos versículos 34 e seguinte. Quem é a verdadeira família de Jesus? Marcos acabou de esclarecer que Jesus dissera ter um relacionamento íntimo com Deus e que o poder que ele tinha para fazer o bem vinha de Deus. Marcos não se refere freqüentemente a Deus como Pai, quando se refere aos discípu­ los (mas cf. 11:25), nem inclui frases como “para que vos tomeis filhos do vosso Pai que está nos céus” (Mat. 5:45). A maneira como ele entende os ensina­ mentos de Jesus, no entanto, é idêntica à dos outros Evangelhos, neste ponto. A verdadeira família de Deus inclui todos os que se identificam com Jesus, fazendo a “vontade de Deus” . Deixaram eles pai ou mãe, para fazera vontade de Deus? Nesse caso, com cer­ teza eles são família de Jesus. Não pre­ cisam temer isolamento: a sua família se multiplicou (10:29,30), e são pais, e irmãos, e irmãs de Jesus, e, por isso, uns dos outros. Afinal de contas, isso é que é o reino de Deus. Não é uma idéia abs­ trata, nem uma crença teológica fixa. Como o expressa Branscomb, o refaiado de Deus, como Jesus o concebeu, centra­ liza-se em uma “comunhão pessoal com homens e mulheres que fazem a vontade de Deus” . 5) Instrução Através de Parábolas (4:134) (1) A Parábola do Semeador (4:1-9) 1 Outra vez com eçou a en sin ar à b eira do m ar. £ reuniu-se a e le tão grande m u l­ tidão que e le entrou num b arco e sentouse n ele, sobre o m ar; e todo o p ovo e sta v a em terra junto do m ar. 2 E ntão lh es e n si­ nava m u itas co isa s por p aráb olas, e lh es dizia, no seu ensin o: 3 Ouvi: E is que o s e ­ m eador saiu a se m e a r ; 4 e a co n teceu que, quando se m e a v a , u m a p arte d a sem en te caiu à b eira do cam inho, e v iera m a s a v e s e a com eram . 5 Outra ca iu no solo p ed reg o ­ so, onde não h a v ia m u ita terra ; e logo n a s ­ ceu, porque n ão tinha terra profunda; 6

m a s, saindo o sol, q u eim o u -se; e , porque não tinha raiz, seco u -se. 7 E outra caiu entre espinhos; e c r e sc er a m o s esp in h os, e a su fo ­ caram ; e não deu fruto. 8 M as outras c a í­ ram e m b oa terra , e, vingando e crescen d o davam fruto; e um grão produzia trinta, outro se sse n ta e outro c e m . 9 E d isse-lh es: Quem tem ouvidos para ouvir, ou ça.

Marcos preferia registrar os atos, em vez de os discursos de Jesus. Não obs­ tante, ele agmpou algumas parábolas de Jesus em 4:1-34. Não podemos ter cer­ teza se este material chegou a Marcos como uma unidade. Ê improvável que os ambientes mencionados sejam os origi­ nais, em cada uma dessas parábolas. No entanto, temos toda a razão para supor que: (1) Jesus freqüentemente ensinava à beira do mar; (2) as multidões muitas vezes eram tão grandes que ele ensinava de um barco, tendo o povo próximo dele, em terra; (3) as multidões abrangiam os curiosos e os ocasionais, os hostis e os amigos; e (4) o seu método característico de ensino era a parábola. Como já notamos, algumas das pará­ bolas são expressivas, provocantes ilus­ trações, que dão argumentos ou escla­ recem uma idéia da maneira mais breve possível (ex.: 2:21,22). O termo parábola tem sentido suficientemente amplo para incluir a metáfora e o dito figurado, mas é mais freqüentemente aplicado ao símile expandido (o grão de mostarda, o fer­ mento), à história simples (o semeador, a semente que cresceu secretamente), ou ao conto de duração plena (o bom samaritano, o filho pródigo). A maior parte do tempo, o significado da parábola deve ter sido óbvio. Algumas vezes, contudo, a idéia de Jesus era mais sutil, e pode ter sido perdida de vista completamente por homens cujo proce­ dimento e pensamentos eram mui dife­ rentes dos de Jesus, e rígidos ou pro­ gramados demais para permitir novas idéias. Marcos recebeu as parábolas no con­ texto de sua própria vida. Ele as repetiu para o seu auditório, a fim de retratar para este os ensinos do Senhor ressusci­ 361


tado. Os leitores de Marcos não viviam na Galiléia, e por isso não estavam fa­ miliarizados diretamente com o fariseu, o zelote, o escriba, ou outros que regu­ larmente haviam ouvido as palavras de Jesus. As verdades das parábolas perma­ neceram vívidas para o auditório de M ar­ cos, e também permanecem vividas para nós, até hoje em dia. Mas apenas oca­ sionalmente o argumento agudo, o gume devastadoramente cortante da história original, ferem com igual força as pes­ soas que vivem tão distantes — no espaço e no tempo — do ambiente cotidiano de Jesus. No entanto, não adianta tentar inter­ pretar as parábolas, sem lembrar cons­ tantemente que os homens mataram Je­ sus porque não suportavam o que ele fazia e ensinava. Os seus ensinamentos mais expressivos, e os seus argumentos mais irrespondíveis foram expressos em parábolas. O mais claro exemplo disto está em Marcos 12:1-12, onde os inimi­ gos de Jesus queriam prendê-lo, “pois perceberam que contra eles proferira es­ sa parábola” . A ordem Ouvi! é muito importante para a Mensagem de Marcos, no capítu­ lo 4. O verbo significa não apenas ouvir, mas agir — dar ouvidos ao que se ouviu. Veja o versículo 9; se os ouvidos são feitos para ouvir, os homens precisam usá-los com esse objetivo. A história do semeador pode parecer estranha para o moderno cultivador de trigo ou de cevada. Contudo, da bolsa de couro, dependurada ao pescoço, o se­ meador galileu semeava antes de arar a terra. Ele semeava... à beira do cami­ nho e onde estavam os espinhos, porque esperava trabalhar a terra naqueles lu­ gares, mais tarde. O solo pedregoso (a Palestina tem abundância de pedras!) era aquele em que o solo rochoso (gra­ nito) estava coberto por uma fina cama30 Cf. J. Jeremias, The P arables of Jesus, tr. por S. H. Hooke (New York; Scribner, 1955), 9 e s.

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da de solo. O semeador não desperdi­ çava descuidadamente a sua semente. No lugar em que os aldeões haviam compactado com os pés o solo, através do campo, formando um caminho, as sementes ficavam mais expostas, e era menos provável que elas fossem cober­ tas pela terra. A porcentagem perdida para as aves, que buscavam o seu susten­ to, seria bem alta. Aquecidas pelo sol, e também pelo seu calor refletido da rocha escondida pouco abaixo da super­ fície, algumas sementes desafortunadas germinavam rapidamente, mas não po­ diam produzir raízes permanentes que permitissem à planta alcançar a maturi­ dade. O que a princípio parecia tão cheio de promessas, simplesmente murchava. Outra semente caiu entre espinhos. Aparentemente, os espinhos que haviam crescido anteriormente, nesse campo, haviam sido cortados e queimados. Ao invés de serem erradicados, cresceram de novo, mais fortes e mais perturbado­ res do que nunca. Na época em que o trigo ou cevada cresceu também cresce­ ram esses espinhos indesejados. Não ha­ verá colheita aqui! O verbo sufocaram é muito forte, e a descrição exata. ^ A maior parte da semente caiu, como era o objetivo do fazendeiro, em boa terra. A narrativa que Marcos faz dessa parábola o torna bem claro, embora nem Mateus nem Lucas tenham o cuidado de fazê-lo. Nos primeiros três casos, uma forma singular de semente é usada, que a tradução da IBB traduz uma parte e outra (parte); mas no versículo 8 uma forma plural foi usada. Foi traduzida como outras, inadequadamente, embora somente uma paráfrase poderia fazer o contraste se tornar claro. Essas semen­ tes eram de fato produtivas, algumas produzindo uma boa colheita — trinta; algumas produzindo uma grande colhei­ ta — sessenta; e algumas produzindo uma excepcional colheita — cem. Da forma como a parábola está, e ainda sem levar em consideração a inter­ pretação dada em 13-20, qual era o seu


significado? Jeremias insiste que a pa­ rábola deve ter tido, originalmente, um sentido escatològico. A vinda do reino é comparada a uma colheita: a despeito das aves famintas, dos espinhos e do mau tempo, com toda a frustração, Deus terá a sua grande colheita — e a hora dela se aproxima. T. W. Manson (Teachings o£ Jesus, p. 76) crê que a parábola visa explicar o ensino parabólico. O resultado da semea­ dura não depende da semente, mas do solo em que ela se aloja. Assim, a eficiência -das-parábolas^ depende não dãs p^ábolas em si, mas_Jo_caráíet dos^ue, "ouvem Jesus falar._ Esta interpretação concorda com as declarações feitas em 4:10-12 e é apropriada à explicação am­ pliada em 13-20. Mas o ponto culmi-, nante da parábola, de uma grande co­ lheita, é minimizado. Rawlinson e Menzies afirmam que a parábola fala da experiência do própnõ Jêsus, ao proclamar ãs boas-novas, acer­ ca do reino. Nem todos o ouviram, e houve desânimo da parte de muitos, mas houve também suficiente reação e com­ preensão, para tom ar a sua obra digna do investimento de sua vida. Desta for­ ma, o propósito da parábola seria incluhuma advertência aos seus ouvintes, mas objetivaria principalmente encorajá-los em seu discipulado. Esta última interpretação reconhece que os discípulos, mesmo que ouvissem com muita atenção, não teriam pensado facilmente em significados tão expandi­ dos, de pássaros, solo pedrogoso ou es­ pinhos, como são apresentados em 1320. Porém esses elementos dramáticos na história refletem ^ ^ x p e n ê n d a s ^ Jesm e apontam para a necessidade de uma audição aberta e *seqüiõsã”(v^ 9 ) ." ^ ^ i ferentes solos e a^om js^sa de uma gran­ de colíífiítá, a despeiïo de algumas períãs, essas são as duas características -^ centrais da história~ Na prim eirá,‘ M ’ a(ívertência, na segunda, esperança. Da maneira como a história é contada, a ênfase é claramente dirigida em direção à

esperança, com a própria advertência propiciando algum encorajamento e con­ vite. (2) O Entendimento da Parábola (4:1020) 10 Quando se achou só, os que e sta v a m ao redor d ele, com os doze, hiterrogaram -no a cerca da paráb ola. 11 E e le lh es d isse: A vós é confiado o m istério do reino de D eus, m a s aos de fora tudo se lh e s diz por parábolas; IZ p ara que vendo, v e ja m , e não perceb am ; e ouvindo, o u ça m , e não en ten ­ dam ; para que não se con vertam e seja m perdoados. 13 D isse-lh es ain d a: N ão p e r c e ­ b eis e sta parábola? com o pois enten d ereis todas a s p aráb olas? 14 O sem ead or se m e ia a palavra. 15 E os que e stã o junto do cam inho são a q u eles em quem a p alavra é sem ea d a m as, tendo-a e le s ouvido, v e m logo Sata nás e tira a p a la v ra que n eles fo i sem ea d a 16 Do m esm o m odo, a q u eles que foram se m eados nos lu g a res p ed regosos são o s que ouvindo a p a la v ra , im ed ia ta m en te co m ale gria a receb em ; 17 m a s n ã o têm raiz em si m e sm o s, a n tes sã o d e pouca duração depois, sobrevindo tribulação ou p ersegu i ção, por ca u sa d a p a la v ra , logo se esca n d a lizam . 18 Outros ain d a são a q u eles que fo ram sem ea d o s en tre o s esp in h os; e ste s são os que ou vem a p a la v r a ; 19 m a s o s cuidados do m undo, a sed u çáo d a s riq u ezas e a co ­ b iça d o u t r a s c o u s a s , e n t r a n d o , s u f o c E im a palavra, e e la fic a infrutífera. 20 A queles outros que foram sem ea d o s e m b oa terra são os que ou vem a p a la v ra e a receb em , e dão fruto, a trin ta, a se sse n ta , e a c e m , por um .

A Função das Parábolas (4:10-12) — A cena mudou. Jesus não estava mais se dirigindo à multidão toda, mas apenas aos que estavam ao redor dele, com os doze. As circunstâncias eram informais, e deve ter sido natural fazer perguntas ulteriores, suscitadas pelos ensinamentos de Jesus. O povo da época de Marcos provavel­ mente requeria alguma explicação acerca da razão por que tantas pessoas não con­ seguiam reconhecer e ouvir o Mestre, que elas reconheciam como Senhor. Mas a questão não devia ser nova. Os primeiros discípulos deviam perceber intensamente a rejeição que Jesus sofria por parte de muitos. 363


Se os discipulos entenderam, em certa pessoas que eram hostis a Jesus, mas também as descritas no versículo 14 e s. proporção, o ensinamento da parábola, como sugerimos, pode ser que eles te­ Para elas, tudo era dito em parábolas. nham inquirido acerca dos que rejeita­ A tentação para traduzir essa palavra vam o verdadeiro discipulado. Marcos como “enigmas” , neste caso, é muito diz que eles interrogaram Jesus acerca grande. A palavra hebraica correspon­ das parábolas (conforme a maioria das dente algumas vezes tinha esta acepção. traduções em português, embora a tra­ A dificuldade é que a interpretação dução da IBB grafe “ da parábola”), não natural das palavras que se seguem é que apenas a do semeador, mas também as Jesus contou as parábolas a fim de ocul­ outras. A discussão do significado da tar a verdade, e não para tomá-la lúcida. parábola do semeador (13-20) é uma A palavra grega traduzida como “para elucidação ulterior da resposta de Jesus que” geralmente denota propósito, e al­ em 4:11,12. Estas palavras de Jesus bem gumas vezes resultado. podiam ter sido aplicadas originalmente Que sorte de soluções foram oferecidas ao ensino dele como um todo, conforme para este problema? Alguns estudiosos crêem Taylor e outros, e não apenas às têm argumentado que esta declaração de parábolas. Jesus se relacionava com seu ministério A palavra mistério é encontrada fre­ de ensino, mas que Marcos, colocando-a qüentemente nos escritos de Paulo. Ali, neste contexto, fê-la referir-se ao pro­ ela representa algo que outrora não era pósito das parábolas (T. W. Manson, claro, mas agora se tomou conhecido, Taylor). Outros argumentaram que uma devido a um ato de Deus. Assim sendo, solução fora atribuída a uma interpreta­ para Paulo, as boas-novas são que Deus estava, em Cristo, reconciliando o mun­ ção errada de Marcos da palavra tra­ duzida como “para que” . Por exemplo, do consigo mesmo — isto é um mistério, Hunter acusa Marcos de traduzir mal que Deus agora tornou conhecido para o seu povo. Da mesma forma também é uma palavra aramaica e insiste que ele deveria ter usado um pronome relativo, sanada a divisão havida entre judeus e , em vez dela. Desta forma, Hunter con­ gentios, quando ambos os povos vêm clui que aqui Jesus estava dizendo que o à cmz; a inclusão de ambos é um maravi­ método parabólico era necessário para a lhoso mistério de Deus, um segredo agomultidão, que (e não “para que” “ de roa revelado (cf. Rom. 11:25; Ef. 1:9; modo que” ou “a fim de que”) tinha 3:3,9; I Cor. 4:1; IT im . 3:9). falta de percepção espiritual. Em parte nenhuma em o Novo Testa mento o termo segredo corresponde ao Por que essas objeções ao significado mais natural do texto? Esses emditos conhecimento esotérico ou aos rituais das chamadas religiões de mistério do Impé­ estão certos em sua premissa: o objetivo das parábolas certamente não era ocultar rio Romano. a verdade. Jesus não praticou a sabedoria Aqui em Marcos, o mistério é o do proverbial de “homens que sabem a for­ reino de Deus. Aos seguidores de Jesus, ma de envolver em névoa as coisas que cujos ouvidos estão abertos e que íhe dão dizem” . Teria Jesus calcado a verdade ouvidos (v. 9; cf. v. 12), Deus tem dado uma medida de percepção e de obediên­ em termos ininteligíveis para as mentes cia ao reino de Deus. No caso deles. Deus fechadas e maliciosas, para que eles fos­ os estava ajudando a aceitar plenamente sem instigados a uma oposição violenta? a divina soberania e a viver nessa fé. Pelo contrário, da mesma forma como o O que era verdade para os discípulos, propósito da lâmpada é dar luz (v. 21), nâo era verdadeiro no caso dos de fora. Jesus tinha, necessariamente, um motivo Esse termo devia incluir nâo apenas as positivo em seus ensinamentos. 364


Contudo, o que aconteceu durante os ensinos de Jesus? Os homens o ouviam, mas não lhe davam ouvidos. Escutavam as suas palavras, mas não percebiam que elas eram necessariamente de Deus, e não de Satanás (3:20-30). O evangelho conclamava à fé e ao arrependimento, mas aqueles homens não estavam dispos­ tos a aceitar o fato de que eram necessi­ tados ou a fazer a necessária entrega. Os argumentos e as advertências de Jesus eram muito fortes em parábolas. Toda­ via, o resultado que devia esperar-se, devido à pecaminosidade do homem e a sua “dureza de coração” (cf. 3:5), era que muitos não se submeteriam volunta­ riamente à soberania de Deus. Esta experiência de Jesus tem parale­ los teológicos próximos nas cartas de. Paulo. Quando descreveu a ira de Deus, o apóstolo apontou para o fato de que o' homem deliberadamente voltou-se para o seu próprio caminho, e ignorou o que sabia acerca de Deus. Deus não o forçou a sair do seu caminho, mas entregou-o ao seu próprio mal, e permitiu que o mal percorresse o seu curso trágico e total na vida (cf. Rom. 1:18-32). Em Romanos 9-11, Faraó e a nação de Israel são descritos como vítimas da ira divina, pes­ soas a quem Deus entregou às suas pró­ prias escolhas rebeldes. No entanto, Pau­ lo diz que o objetivo de Deus, em tudo isto, ainda era a misericórdia: “Porque Deus encerrou a todos debaixo da deso­ bediência, a fim de usar de misericórdia para com todos” — isto é, cada passo, na ladeira da ruína, é, da parte de Deus, um chamado ao arrependimento e à acei­ tação do seu perdão (Rom. 11:32). O objetivo das parábolas era chamar os homens ao arrependimento e ao disci­ pulado. Este também era o resultado para todos os que abriam a mente para as boas-novas, ou, para expressá-lo dife­ rentemente, para aqueles a quem Deus dera vidas receptivas. Para os de fora, de certa forma, o propósito era o mesmo: tomar claro, corrigir, convidar. Mas o resultado (a conjunção, no v. 12, é mais

bem expressa para nós desta forma) foi um crescente espírito de rejeição e anta­ gonismo. As palavras de Jesus são muito próxi­ mas às de Isaías 6:9,10, que são mencio­ nadas neste contexto em Mateus 13:14, 15. Precisamos lembrar que as Escrituras falam, algumas vezes, que Deus endu­ receu, o coração de um Faraó ou (como aqui) fechou os ouvidos do homem. Con­ tudo, Deus não inicia a pecaminosidade. Ele simplesmente entrega um homem à sua própria desobediência e suas conse­ qüências (Rom. 1:24,26,28). Embora Jesus tenha feito aquelas pes­ soas verem claramente, elas ainda não percebiam. Por claro que fosse o ensino de Jesus, elas ainda não entendiam. Elas nâo estavam dispostas a se converter, reconhecendo a sua necessidade e erro, e aceitando o perdão divino que Jesus oferecia. Neste curto parágrafo. Marcos expres­ sou algo da maneira como entendia as razões pelas quais os homens nâo se­ guiam a Jesus. Até mesmo os discípulos continuaram a necessitar de explicações e orientações adicionais. Eles somente conseguiram chegar a ver quem era Je­ sus, e qual era o significado esplendoroso dele, pouco a pouco. Não obstante, eles estavam abertos para a verdade, e Jesus foi capaz de, gradualmente, transmitirlhes o mistério do reino de Deus. Para as suas mentes, mais acessíveis, ele conti­ nuou acrescentando verdades (cf. 4:33, 34). Para os outros, o mistério do reino permaneceu oculto. A interpretação da Parábola do Se­ meador (4:13-20) — Na explanação da parábola, só Marcos registra que Jesus repreendeu os seus discípulos por sua falta de entendimento. Lucas simples­ mente registra a explicação (8:11); Ma­ teus, porém (13:16 e s.), contrasta a mente aberta, alerta e discemidora dos discípulos com a obstinada incompreen­ são dos outros. A lentidão, até dos pró­ prios discípulos, em discernir o ensina­ mento de Jesus, serve a um a função 365


especial em Marcos. Ela sublinha o senso de mistério acerca da identidade de Je­ sus. Os leitores de Marcos, embora es­ tivessem cônscios do senhorio divino, fo­ ram levados a ver como os discípulos -reconheceram o Messias pouco a pouco e como muitas pessoas nunca discerniram quem era Jesus. A interpretação da parábola em 14-20 deve ter sido pregada nas igrejas primi­ tivas, e, como diz Rawlinson, certamente parece ser “a maneira como a parábola era aplicada correntemente, quando Marcos foi escrito, mais do que uma pa­ lavra autêntica de Jesus” . Por outro lado, o relato bíblico desta parábola e do seu significado a têm protegido das inter­ pretações descontroladas e absurdas que outras parábolas têm sofrido, para as quais não se registra nenhuma aplicação. Devemos presumir que Jesus costu­ meiramente discutia os seus próprios en­ sinos, inclusive as parábolas, com os seus discípulos. Não é este um indício de um bom ensinamento? Por outro lado, não precisamos presumir que a discussão se­ ria limitada apenas à idéia original de uma parábola. Na interpretação do se­ meador, em 14-20, mais ênfase é dada ao caráter do ouvinte e às tentações de que ele é presa do que à promessa da colhei­ ta e ao significado do trabalho que não obtém completo sucesso. Se há dúvidas de que a discussão de Jesus acerca da parábola foi preservada exatamente da maneira como ele a fizera, ainda não há nada aqui que não poderia ter sido oriun­ do do que ele realmente dissera e apro­ priadamente aplicado de maneiras novas entre os primitivos cristãos. Para Jesus, a palavra era que o reino se havia aproximado dos homens (1:15). Para o homem que o conhecia como Se­ nhor ressurrecto, a palavra era que Deus havia visitado o seu povo em Jesus, o Cristo, e o estava reconciliando consigo mesmo, através daquele Senhor crucifi­ cado e ressurrecto. Cf. Atos 8:4: “No entanto, os que foram dispersos iam por toda parte, anunciando a palavra.” O 366

próprio semeador não é identificado com Jesus especificamente; ele é qualquer pregador das boas-novas. A identificação da semente com a pa­ lavra não é seguida com precisão. Em geral, a semente e/ou os solos em que ela cai representam quatro classes de pes­ soas que ouvem os mensageiros de Deus. Satanás (cf. 1:13; 3:23) é o príncipe do mal, o poder que se levanta contra Deus. O nome é aramaico e, juntamente com vários outros (por ex., Belial, Sammael), é um dos títulos do Diabo. O padrão alegórico não é forçado, e, se Satanás é igualado às aves, não está claro. O que está claro é que tais pessoas são aquelas cuja receptividade para com a palavra é como a de uma trilha batida para com a semente que nela cai. Muito antes que a palavra de Deus possa penetrar nas suas mentes endurecidas e desinteressadas, Satanás a roubará das suas consciências. No versículo 16, a semente é identifi­ cada não com a palavra do evangelho, mas com pessoas que ouviram as boasnovas. A semente semeada em solo sem profundidade, tendo rochas no fundo, pode germinar, mas não terá raízes su­ ficientes. Da mesma forma, os homens podem assentir abertamente ao evange­ lho, e parecer serem promissores cida­ dãos do reino de Deus, e, no entanto, estarem totalmente despreparados para as conseqüências. A sua fé é de pouca duração, isto é, dura apenas o tempo em que tudo é fácil e alegre. Todavia, dentre as realidades da vida em Cristo, vem a tribula^o; essa palavra significa pressão — a situação difícil que acontece quando se é pego em um es­ premedor. Essas pessoas não conseguem suportar as pressões. A força do reino não está nelas. A perseguição vem tam­ bém, como veio sobre Jesus e como ele avisou que viria contra os seus discípulos. Perseguição significa tormento; o verbo do qual essa palavra deriva significa acossar, ir ao encalço de alguém. A causa das pressões e do tormento se desvanece, se a pessoa dá as costas aos


padrões ordinários da vida ao seu redor, abraçando a causa da própria palavra. Cada cristão a quem Marcos estava es­ crevendo deveria estar pensando nas difi­ culdades, no ridículo, na rejeição, no perigo que precisava suportar, se seguis­ se a Cristo fielmente. Algumas pessoas simplesmente não estavam dispostas a fazê-lo, e o seu cometimento deu lugar às pressões. O verbo escandalizam é derivado de um substantivo que significava a isca colocada em uma armadilha. O verbo significa armar laço (aqui passivo, cair na armadilha) ou tropeçar. Em qualquer caso, o resultado é como parafraseia certa versão inglesa (TEV): “Assim, quando perturbação ou perseguição vem por causa da mensagem, eles desistem imediatamente.” Outros ouvintes da mensagem são co­ mo semente semeada entre os espinhos. Essas pessoas tentam servir a Deus e a “Mamom” , e isso não pode ser feito (Mat. 6:24). São como o homem que “lança mão do arado e olha para trás” (Luc. 9:62). Os cuidados do mundo são as ansieda­ des e preocupações da era atual. “Cui­ dados” sugere uma mente torcida em diferentes direções. As duas frases que se seguem não devem ser divorciadas desta; na verdade, elas são comentários desta. A sedução das riquezas é característica do mundo, da época e do ambiente em que o homem vive. O português não tem uma palavra paralela à grega, pois se­ dução pode ser traduzido adequadamen­ te como engano ou prazer. Quando esta palavra é usada, o prazer é do tipo que acarreta em pecado. Arndt e Gingrich sugerem que traduzamos aqui “ a sedu­ ção que vem das riquezas’’. Na tradição hebraico-cristã, diferente­ mente do budismo, desejo não é neces­ sariamente mau, e a palavra que desig­ na desejo é algumas vezes usada no me­ lhor sentido (cf. Luc. 22:15; I Tess. 2:17). Mas essa palavra é também usada (como verbo) na tradução grega do man­

damento: “Não cobiçarás.” Os discípu­ los de Jesus precisam ter alvos diferentes, isto é, devem ser “o seu reino e a sua justiça” (Mat. 6:33), em vez da preo­ cupação do mundo com suas riquezas e outras coisas. Esta última frase é tão geral, que inclui todo tipo de desejo que é alheio ou inimigo do evangelho. Quando os interesses e alvos que não estão sujeitos à palavra vão entrando na vida dos que foram atraídos pelas rei­ vindicações do evangelho, perturbam es­ tas últimas, o resultado sendo trágico. O que poderia vingar é sufocado, e a palavra não produz nenhum fruto. Como essa advertência deve ter sido apropriada para a igreja primitiva! Nenhuma igreja poderá cumprir a sua vocação, se os seus membros enamorarem com a vida e com os alvos de sucesso da sociedade em que ela existe. Aqueles outros que foram semeados em boa terra são os que... dão fruto. Esta discussão do significado da parábo­ la centralizou-se na semente que se per­ dera, que são as pessoas cujos olhos não viam e cujos ouvidos não ouviam. Não obstante, há aqueles que reagem positi­ vamente à palavra, e coisas maravilhosas acontecem através deles. A palavra-cha­ ve, no versículo 20, é recebem. No versí­ culo 16, alguns recebem a palavra com alegria, isto é, agarram a mensagem, deliciados com as suas promessas. A pa­ lavra recebem dá a entender que a pessoa crê e dá boas-vindas à palavra, de forma que a entende e se submete à sua orienta­ ção. Só em tais pessoas os ensinamentos de Jesus têm cumprimento. (3) Dizeres Parabólicos: Lâmpada, Me­ dida (4:21-25) 21 D isse-lh es m a is: V em porventura a candeia para se m eter debaixo do alq u eire, ou debaixo d a ca m a ? não é a n tes p ara se colocar no velad or? 22 P orque n ad a e stá encoberto sen ão p ara se r m a n ifesto ; e nada foi escondido sen ão p ara v ir à luz. 23 Se algu ém tem ouvidos p a ra ouvir, ou ça. 24 T am bém lh es d isse : A tendei ao que ou v is. Com a m edida com que m ed is vo s m ed irão a

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vós, e ainda se v o s a crescen ta rá . 25 P o is ao que tem , ser-lhe-á dado; e ao que não tem , até aquUo que tem ser-lhe-á tirado.

Não podemos saber se estes dizeres acerca da lâmpada e da medida estavam no contexto das fontes de que Marcos se serviu. Mateus (5:15; 7:2) incluiu, com aplicações algo diferentes, as palavras de 4:21,24. Veja também a passagem para­ lela em Lucas 8:16-18, e as palavras muito semelhantes em Lucas 12:2,3. Marcos pode ter sido herdeiro de uma coleção escrita das palavras de Jesus, independente de Q, que a maior parte dos estudiosos crê tenha sido a principal fonte utilizada por Mateus e Lucas. ■ O significado destas palavras, em M ar­ cos, como o dos versículos anteriores, trata da receptividade e da compreensão das palavras de Jesus. No contexto da vida de Jesus, da forma como é registra­ da aqui, a referência específica foi ao entendimento das parábolas e ao segredo ou mistério do reino de Deus. No versículo 21, há realmente duas perguntas; a primeira pede insistente­ mente a resposta não, e a segunda, com a mesma insistência, exige a resposta sim. Se parafrasearmos um pouco, leremos: “Uma lâmpada é trazida para ser colo­ cada debaixo de um tacho? Claro que não, certo? Ela é trazida para ser colo­ cada em um candeeiro, não é? Como lâmpada possivelmente devemos enten­ der as simples lâmpadas de barro da­ quela época, das quais muitos exempla­ res foram conservados. O alqueire era um vaso de medidas que continha quase exatamente oito litros. Como cama (pa­ lavra diferente da padiola de 2:4) pode­ mos entender o sofá em que eles se recli­ navam durante as refeições. O velador era provavelmente um pequeno rebordo na parede, com esse objetivo. A tradução inglesa “candle” (vela), na Versão do Rei Tiago, reflete a prática existente na In­ glaterra do século XVII, e não os cos­ tumes da Galiléia no primeiro século. Qual é, portanto, a aplicação da pará­ bola? O propósito divino, no ministério 368

de Jesus, não deve ser considerado como o de confusão ou ignorância mais profun­ da para os homens. Da mesma forma como o objetivo da lâmpada é iluminar, a razão dominante para os ensinamentos de Jesus é esclarecer. Embora seja verda­ deiro o que é dito nos versículos 11 e 12, e sejam quais forem os resultados ime­ diatos da palavra e do ministério de Jesus, as realidades não podem permane­ cer para sempre escondidas. Ê verdade que o reino de Deus é um segredo, um mistério, oculto de muitas pessoas du­ rante certo tempo. Mas nunca seria ocul­ to, a não ser para ser manifesto. A pala­ vra senão é tradução de uma conjunção adversativa muito forte, juntamente com uma conjunção que exprime objetivo; o significado é: “ não por outra razão, mas apenas com este objetivo” . Alguns intérpretes traduzem o verbo do versículo 21 pelo seu significado mais comum de “vir” . Uma lâmpada vem? é o estranho resultado em português. Mas Johnson, por exemplo, acha que a frase deve ser entendida assim, e que os leitores de Marcos deveriam pensar na vinda final de Jesus. Contudo, é certo lexicamente e contextualmente traduzir este verbo como “é trazida” , e entender que Marcos estava pensando no minis­ tério de Jesus. Pode ser que originalmen­ te Jesus estivesse falando da lei e da forma como ela se tom ara escondida por detrás das interpretações dos escribas, a despeito do seu objetivo divino. Neste caso, a aplicação de Marcos seria bem diferente, mas, ainda assim, estaria em perfeita consonância com o que Jesus havia ensinado, e com o que o evangelho significava para a geração de Marcos. A repetição da exortação (v. 9) para se ouvir atentamente, com entendimento, essas palavras indica outra vez a‘ im­ portância do que foi dito. Atendei ao que ouvis significa: Pres­ tem atenção no que vocês estão ouvin­ do! A advertência não é contra ouvir outras coisas, mas objetiva uma com­


preensão mais profunda das palavras que lhes estão sendo ditas. O contexto da palavra de Jesus, no versículo 24, torna a frase mais difícil do que a de Mateus 7:2, onde ela se aplica ao julgamento de outras pessoas. Taylor chama isto de “conexão antinatural” , que Marcos deve ter tirado de uma coleção de palavras. Da forma como está aqui, esta frase provavelmente signi­ fica: “O que você consegue e faz (ba­ seado na sua reação à palavra) será a medida do que receberá; e você receberá bênçãos e responsabilidades adicionais” (Cf. Swete e Cranfield). Ou a aplicação do versículo pode referir-se apenas ao ensino: se um seguidor de Jesus ouve com compreensão, ser-lhe-á dada maior per­ cepção (Johnson). Hunter chama a palavra paradoxal do versículo 25 de “parábola dos talentos (Mat. 25:14-30) em miniatura” . O verbo tem pode significar tanto possui como está adquirindo. Se um homem continua reagindo positivamente aos métodos e palavras de Jesus, lhe é dado cada vez mais. Se não, a sua mente vai-se en­ durecendo, e a ira de Deus (cf. acima, 4:11,12) começa a operar, e a percepção espiritual limitada que ele outrora tivera acaba por perder-se. Note como esta lição se compara de maneira bem aproxi­ mada com os versículos 15-19. (4) A Parábola da Semente Que Cresceu Secretamente (4:26-29) 2601886 tam b ém : O reino de D eu s é a ssim com o se um h om em la n ça sse sem en te á terra, 27 e dorm isse e se lev a n ta sse de noite e de d ia, e a sem en te b rotasse e c r e sc e sse , sem e le sab er com o. 28 A terra por s i m esm a produz fruto, prim eiro a erv a , depois a e sp i­ ga, e por últim o o grão cheio n a esp ig a . 29 M as a ssim que o fruto am a d u recer, logo lhe m ete a fo ice, porque é ch egad a a ceifa .

O reino de Deus não é comparado com um homem, ou uma semente, ou o cres­ cimento, ou a ceifa ou a foice, mas com esta história como uma unidade. O tema da história é o que Johnson chamou de “paciência com adiamento” . Da mesma

forma que a semente semeada não pode ser forçada a chegar rapidamente à épo­ ca da colheita, e, no entanto, de forma misteriosa, avança para o objetivo para o qual foi feita e plantada, o reino de Deus está próxihio, e o seu propósito avança para o cumprimento. Mas ne­ nhum homem possui o poder para deter­ minar o tempo dessa colheita, pois ela èstá nas hiãos de Deus. A opinião comum, no século XIX, era de que esta parábola afirmava a evo­ lução gradual, mas inevitável, do reino. Esta interpretação dependia fortemente da palavra grega que podia ser transliterada na portuguesa “automática” , e que a versão da IBB usou sem ele saber como. Todavia, a promessa feita na pa­ rábola é apenas da vitória final de Deus; não há promessa de progresso inevitável • para todo o mundo. Pelo fato de os teólogos do começo do século XX se terem concentrado em escatologia, muitos deles interpretaram esta parábola com ênfase quase exclusiva na ceifa; a idéia principal, então, se tornou que o reino logo irromperá sobre nós. O versículo 29 menciona parcialmente Joel 3:13, em que a linguagem e a ênfase são dadas à justiça triunfante de Deus. Os leitores de Marcos, vivendo intranqüilos na Roma de Nero, certamente devem ter entesourado esta esperança. A citação de Joel nos dá indícios de um contexto apropriado para a parábola durante a vida de Jesus. Alguns dentre os seus ouvintes entusiásticos estavam an­ siosos por realizar a vontade de Deus apressadamente, e em nome de Deus lutar e vencer o inimigo. Um dos doze escolhidos por Jesus era um zelote (veja acima o comentário acerca de 3:18^ O contexto de Joel 3 inclui palavras que facilmente seriam mencionadas por esses impacientes defensores de uma violência “santa (!)” . Para homens violentos, que pensavam colocar a ira de Deus a serviço dele mesmo, a parábola de Jesus era uma repreensão. O reino é diferente do espí­ 369


rito fanático de um zelote. Não se pode forçar o reino; pode-se apenas viver de acordo com os seus métodos, e compar­ tilhar a maneira pessoal de se entender o domínio de Deus. O resultado final cabe a Deus. Os seus tempos e estações estão além do nosso alcance. A parábola também afirmava o que era declarado em 1:15; que o reino se havia aproximado dos homens em Jesus. Como isso podia ser verdade, e como o curso que Jesus escolheu na sua vida podia realizar o triunfo de Deus, era um mistério (o homem “ não sabe como”). Mas a natureza do reino provém da providência de Deus (a tena por si mes­ ma produz), e os homens precisam de­ pender pacientemente de Deus. No entanto, havia, na parábola, para os zelotes e para os leitores de Marcos tanto quanto há para nós, certa ênfase quanto a realização. Juntamente com a correção das idéias dos zelotes, Jesus certamente chamou homens para o dis­ cipulado, oferecendo dificuldades, conclamando-os à paciência, oferecendo aju­ da. Deve ter havido uma identificação do tempo da semeadura com a época da pregação do Batista, acerca do arrepen­ dimento, de forma que a época da co-^ lheita já lhes havia chegado. Neste caso, as palavras de Lucas 10:2 (Mat. 9:37; cf. João 4:35-38) seriam bem consentâneas: “Na verdade, a seara é grande, mas os trabalhadores são poucos; rogai, pois, ao Senhor da seara que mande trabalha­ dores para a sua seara.” (5) A Parábola do Grão de Mostarda (4:30-32) u

30 D isse ainda: A que a ssem elh a rem o s o reino de D eus? ou com que paráb ola o r e ­ presentarem os? 3 1 É com o u m grão de m o s­ tarda que, quando se sem e ia , é a m enor de todas a s sem en tes que há n a terra ; 32 m a s, tendo sido sem ead o, c r e sc e e fa z-se a m aior de todas a s h ortaliças e cria gran d es ram os, de tal m odo que a s a v e s do céu podem aninhar-se à su a som bra.

A planta de mostarda, que surge da pequenina semente mencionada por Je­ 370

sus, é identificada como a sinapis nigra. Algumas vezes ela cresce como planta selvagem, naquela região, e, quando é cultivada, pode atingir uma altura de até 4 metros. Embora seja uma erva ou ar­ busto, por causa do seu tamanho, ela pode ter sido chamada descuidadamente de árvore (Luc. 13:19) com ramos (Mat. 13:32), propiciando sombra com a sua folhagem. A fórmula com que a parábola começa (v. 30) é muito semelhante às palavras usadas por outros mestres judeus da épo­ ca de Jesus, quando apresentavam as suas parábolas. Como na parábola pre­ cedente, precisamos entender que esse sí­ mile fala de algo (e não de tudo) acerca do reino: não devemos tentar igualar o reino com semente ou planta ou aves. J. Jeremias sugere adequadamente que devemos traduzir: “Tal como o caso do grão de mostarda é o caso do Reino.” O contraste, apresentado nesta pará­ bola, entre o minúsculo começo (a se­ mente) e o tremendo crescimento (o enor­ me arbusto) é importantíssimo para o significado da parábola. Embora a se­ mente não seja literalmente a menor de todas as sementes que há na terra, o seu tamanho e o da planta da qual ela vem toma a hipérbole inteiramente correta. Os discípulos não deviam ficar ansiosos devido ao seu número insignificante ou posição social. Quem poderia adivinhar o tamanho dâ planta de mostarda con­ siderando a sua semente? C. H. Dodd cria que a ênfase na pequenez da semente não se originara de Jesus, embora devesse constar do mate­ rial que Marcos estava usando. Ele insis­ tia que a idéia dominante originalmente era “a de crescimento até um ponto em que a árvore possa abrigar aves” . Uma árvore que abrigasse aves simbolizava a proteção dada a povos tributários por um grande império. A alusão a passagens do Velho Testamento parece clara, neste ponto (cf. Dan. 4:10-12; Ez. 17:22 e s.; 31:6). Dodd concluiu que a parábola afirma que em Jesus o reino, juntamente


com suas bênçãos, se tornou disponível a todos os homens. O reino chegou, diz ele: “as aves estão afluindo, para en­ contrar abrigo na sombra da árvore.” Contudo, da forma como a parábola consta em Marcos, o contraste entre se­ mente e, planta é, certamente, primário, e não há dúvidas de que o texto origi­ nal de Marcos falava da pequenez da semente. Não obstante, é verdade que as alusões claras ao alcance amplo e in­ clusivo do reino também fazem parte da parábola. Isto teria sido correto em rela­ ção aos primeiros discípulos de Jesus e também em relação aos leitores de M ar­ cos. Portanto, para as afligidas congrega­ ções de Marcos, a parábola deve ter falado de promessas sendo cumpridas, e não de promessas já plenamente atingi­ das. Eles eram ainda pequenos no mun­ do, e precisavam esperar de Deus o cum­ primento dos seus objetivos. Contudo, Jesus, o Senhor deles, era de fato Rei dos reis, e não era verdade que eles haviam encontrado refúgio e lar debaixo do seu senhorio salvador? Mais do que isso, esta parábola também não sugeria que havia lugar para todos os homens e todas as nações, no reino? Aqui havia encoraja­ mento para uma atitude de resistência paciente e zelo missionário. (6) Sumário: Instruções Especiais Para

os Discípulos (4:33,34) 33 E com m u itas p aráb olas ta is lh es d i­ rigia a p alavra, conform e podiam co m p re­ ender. 34 E sem p aráb olas não lh es fa la v a ; m as e m particular ex p lica v a tudo a seu s discípulos.

Estes dois versículos são, obviamente, obra do escritor do Evangelho. Por esta razão, eles revelam mais explicitamente do que quaisquer palavras anteriores co­ mo Marcos entendia o uso que Jesus fazia das parábolas. Devemos notar quatro pontos salientes. 31 The P arables of th e Khigdoiii (London; Nisbet, 1946), p. 190 e s. P a ra um sum ário de o u tras opiniões, cf. Taylor, p. 269.

Primeiro: Jesus usava parábolas para falar a palavra a todos. Como já nota­ mos, para os leitores de Marcos, a pala­ vra devia significar todo o evangelho, in­ clusive a morte e a ressurreição de Jesus, a proclamação da vitória de Deus sobre todos os poderes do mal. Este conceito da palavra não representa mudança alguma do seu significado primitivo, exceto a mudança inevitável operada pelos even­ tos ulteriores e apoteóticos que foram a obra de Deus em Cristo. A palavra era ainda a mensagem do governo de Deus, era tudo o que Jesus, Filho de Deus, sobre quem o Espírito havia descido, ha­ via ensinado e feito. A palavra continuou a ser a prometida libertação dos poderes do mal, operada por Deus, chamando os homens ao arrependimento e à fé. . Segundo; As parábolas narradas eram exemplos da espécie de parábolas que Jesus usava. Não sabemos quantas dessas parábolas Marcos poderia ter registrado, mas ele sabia que Jesus havia contado muitas delas. Essas parábolas abrangiam instrução, advertência aguda e exorta­ ção; estavam dentro do contexto palesti­ no de Jesus, e eram dirigidas, em pri­ meiro lugar, aos seus ouvintes como um todo. Parece significativo que as parábo­ las escolhidas pelo evangelista, para este capítulo, dêem todas uma ênfase especial na disseminação da evangelho (Rawlin­ son). Terceiro: As parábolas foram pronun­ ciadas na medida em que os auditórios de Jesus podiam compreender. É impos­ sível supor que Jesus deliberadamente pretendia confundir as mentes da maio­ ria dos seus ouvintes, falando em pará­ bolas. Precisamos entender a controver­ tida passagem acima, em 4:10-12, de acordo com o versículo 33: se as pessoas que faziam parte do auditório de Jesus não o compÃ-eendessem, a responsabili­ dade era delas; a opinião bíblica de que a maneira como elas ouviam estava dentro do propósito de Deus, dependia do con­ ceito de uma vontade permissiva tanto quanto causativa. Devido à vontade de 371


Deus, num sentido permissivo, um ho­ mem pode ser entregue à sua própria desobediência e mal. Veja 4:10-12, onde se discute a ira de Deus. No entanto, outros intérpretes algu­ mas vezes oferecem explicações diferen­ tes. Branscomb, por exemplo, pensa que o versículo 33 deve ter sido “ o final do documento original usado por Marcos” . Ele diz que o versículo 33 concorda com os versículos 2 e 9, ,mas que os versículos 11 e 34 representam um ponto de vista diferente — o de Marcos! Quarto: Jesus estava perfeitamente cônscio de que o reino permanecia um mistério para muitos. Contudo, para aqueles que eram receptivos a ele, tinha o costume de expor todos os seus ensina­ mentos em maiores minúcias. Dá-se a entender que os próprios discípulos de forma alguma eram perfeitos em sua receptividade (cf. acima v. 13). E, na história imediatamente seguinte, Jesus repreendeu os discípulos pela natureza raquítica de sua fé. 6) Instrução Através de Obras Poderosas (4:35-5:43) (1) Tempestade Acalmada (4:35-41) 35 N aqu ele d ia, quando já era tard e, disselhes : P a sse m o s para o outro lad o. 36 E e l e s ,' deiicando a m ultidão, o lev a ra m con sigo, a ssim com o esta v a , no b arco; e h a v ia com ele tam b ém outros b arcos. 37 E se levantou grande tem p estad e de ven to, e a s ondas batiam dentro do barco, de m odo que já se enchia. 38 E le, porém , esta v a na popa, dor­ mindo sobre a alm ofad a; e despertaram -no, e lhe p ergu n taram : M estre, não se te dá que pereçam os? 39 E e le , levantando-se r e ­ preendeu o ven to, e d isse a o m a r: C ala-te, aquieta-te. E cessou o vento, e fez-se grande bonança. 40 E ntão lh es perguntou: P or que sois a ssim tím idos? Ainda não ten d es fé? 42 E nch eram -se de grande tem or, e diziam uns aos outros: Quem , porventura, é este , que a té o vento e o m ar lh e obed ecem ?

Através desta narrativa. Marcos apre­ senta um interesse óbvio nos milagres realizados por Jesus. Até este ponto, contudo, a narrativa dos milagres havia 372

sido menos minuciosa, e a ênfase dada a alguma lição particular ou declaração de Jesus. Veja, por exemplo, 2:10-12 e 3:2-5. Todavia, ao contar os quatro mi­ lagres desta seção, Jesus é apresentado como o homem que tem mais poder do que todos os outros homens, como o operador de obras boas e poderosas, além de toda a concepção humana. A instrução que foi dada aos doze, através dessas atividades de Jesus, tinha a natureza de um desafio à sua fé no seu Mestre. O movimento da narrativa se dá em direção à confissão de 8:29. A narra­ tiva repetida dos milagres deve ter sido também um estímulo à confiança para os cristãos contemporâneos de Marcos: cer­ tamente aquele que havia demonstrado poder sobre os elementos, demônios, do­ ença e morte, era digno da sua dedicação em meio aos perigos que eles enfrenta­ vam. A narrativa de Jesus acalmando a tem­ pestade é incomumente vivida e detalha­ da. Marcos liga o tempo bem intima­ mente com o que havia acontecido ante­ riormente. Se não contássemos com no­ tas como as dos versículos 10 e 34, facil­ mente poderíamos supor que Jesus havia ensinado do barco, o dia todo. Em qual­ quer caso, guando lá era tarde (isto é, depois do ocaso, mas antes de escurecer). Jesus propôs que eles atravessassem~o lago, da margem galiléia para o lado oriental, isto é, da Peréia. Marcos não diz expUcitalnen^^qilêéiêslizeram isso a fim de se afastarem da multidão, mas esta pode ter sido uma das razões. Outra sugestão é aue Jesus deseiava pregar em regiões ainda não visitada£(cf7l:38). O barco e m ~ q u e 'je ^ e s tiv e ra ensi­ nando bem provavelmente era um dos barcos de pesca. Nenhum deles era granj e . De baixo caíado e variando em ta­ manho, todos esses barcos eram suficien­ temente pequenos para serem arrastados para a praia do lago. Se Jesus e todos os doze estivessem a bordo, o barco certa­ mente devia estar cheio, dentro de sua capacidade.


mindo e o verbo levantando-se ordina­ Eles o levaram consigo, assim como riamente denota acão duradoura, e pÒ3ê estava, isto é, sem que ele descesse à querer dizer que Jesus estava tão tran­ praia (Swete). A princípio, alguns dentre qüilo. dorm ihdõrãüê~êles tiveram difia multidão não foram deixados para trás, culdades em despertado. pois outros barcos foram juntos. O que aconteceu no caso desses outros barcos, Levantando-se, Jesus repreendeu o não temos como saber. A nota adiciona vento. Ele falou também aó mar; Cala-te, aquièta-ter Mais literálínênter embora um detalhe vívido à história, mas nada mais. Taylor persuasivamente insiste em ^ e n o s suave, estas palavras poderiam ser assim traduzidas: “R ^ e cam esse baru-, que este detalhe, juntamente com a hora lho! Seja como se vdcee^vesse amordaprecisa apontada e a referência à almo­ ç ^ o ! ” As palavras “repr^ n d e u ” e “seja fada, o fato de que a viagem fofa feita amorjgçado” são os mesmos verbos usapor sugestão de Jesus e de que ele não oo sp am ^ á^ crev er a expulsão de um descera à praia, e especialmente a enér­ demôfuò por Jesusj em ÍT S T Ã q c j^ a n gica repreensão velada no fato de seus discípulos o terem acordado (v. 38), re­ J ^ u ^ o ^ n to cessou, e a^calni|_se^ flete a natureza primitiva da história e albflü ppr sjpbre o m ar . então ^ u s virou-se para os discí­ oferece alguma base para a possibilidade de que ela originou-se com o apóstolo pulos. Compare os paralelos em Mateus Pedro. 8:26 e Lucas 8:25, que não são tão As ratadas de vento aue sobrevêm ao • agudos ou fortes como a narrativa de 1 ^ 0 da Galiléia são freqüentemente s u ^ Marcos. A fé que os discípulos não de­ monstraram é a aue teria dado respostas bltãTe fortes. Na margem leste, as mon­ ao seu medo: significa confiança em tanhas se levantam abruptamente a uma Deus, certeza de ajuda e segurança. altura de seiscentos metros acima da superfície do lago. Quando o vêntõ~^ É impossível que tal fé não estivesse canalizado, através das ravinas que des­ ligada com a própria pessoa de Jesus, no que concernia a Marcos e a seus leitores. cem desses píncaros, o perigo que corre Visto que Jesus estava ainda em serviço, um pequeno bote de pesca superlotado é fazendo o que Deus o mandara fazer, e o realmente grande. Quando isto acontepoder do divino Espírito estava sobre ele, ceu aos discípufòs. eles devem ter posto as forças da natureza certamente não em acão toda a sua pericia. e comecaseriam capazes de destruí-lo. , A geração ram a tirar a água do barco com todas as seguinte tirou, desta história, encoraja­ vasilhas qüèeiicõiitraram roii^ depres­ mento e esperança para enfrentar os seus sa possível, mas ain3ã~ãssinr as altas próprios perigos, como seguidores de Je-. ondas e o vento os levaram S T ra iâ rd õ sus. desastre. ?ara os doze, a questão da identidade E. onde estava Jesus? L á a t ó s ^ j a ^ ^^a^_^lQn:^nd^ enquantcT^udoaqulí^ de Jesus, suscitada anteriormente, e ain­ da não completamente resolvida, o foi acontecia! Mateus e Lucas amenizam o grito dos discípulos, de forma que não de novo por esse milagre. Se até o vento parece que eles estão repreendendo Je­ e o m ar eram-lhe obedientes, e (presumia-se) as obras da natureza nada mais sus (Mat. 8:25; Luc. 8:24). Mas a narra; são do que veículos do poder divino, ti^^ d e Marcos, da qual os outros apaentão, quem era Jesus? Quer tenha Jesus reníémente'lê~aproveitaram, apresenta os discípulos se queixando. ) ( o ^ ^ n e m ^ usado os seus poderes extraordinários para persuadir os homens a crer nele, 'li^ o r to , (^iaiid o estaD ^s_ ^^ quer se tenha recusado a fazê-lo, o im­ ^ jàu fm g^ ^ sseT u in ^ n ^ T d íêm ^ ^ pacto deles sobre as pessoas que o rodea­ irritação, talvez até de ira. tempo vam era certamente um incitamento a l^ a d o g~õ~partidmõ faaduzi^com o dor­ 373


uma confissão de fé. Os discípulos foram repreendidos por sua falta de fé em Deus. Mas o acalmamento da tempes­ tade deve ter despertado fé no próprio Jesus, como agente do poder divino. As interrogações acerca da historici­ dade deste relato têm sido muitas, e as soluções propostas lêm sido imaginosas, embora algumas vezes forçadas. Por exemplo, tem sido sugerido que duas passagens dos Salmos (89:9; 106:9) de­ ram, aos crédulos cristãos primitivos, a idéia de que Jesus deve ter acalmado uma das tempestades da natureza. As narrâtivas acerca de outros milagres na natu­ reza, em fontes contemporâneas, algu­ mas vezes têm sido citadas, embora os paralelos não sejam convincentes (uma delas sugere a história de Jonas). Todavia, o verdadeiro problema não está na historicidade da narrativa de Marcos. A questão básica é teológica. Como diz Taylor: “Depende de nossa interpretação da maneira da encarnação em sua manifestação histórica.” Mesmo que nos seja difícil pensar em alguém dirigindo-se ao vento e ao mar, como Jesus o fez, a confiança de Jesus em que a natureza de fato era um veículo do poder e da providência divina era perfeitamente natural para ele. Indubitavelmente, a história foi contada em linguagem popu­ lar, e em formas de pensamento contem­ porâneas. Mas não era inevitável que his­ tórias miraculosas se multiplicassem ao redor do nome de uma grande figura religiosa; nenhuma história dessas foi contada acerca de João Batista, na Bíblia ou em outros escritos. Podemos tão-somente concordar com Rawlinson, que os contemporâneos e íntimos de Jesus certa­ mente criam que ele operava milagres. Quem é capaz de discernir as limitações ou as possibilidades sugeridas pela en­ carnação? Em sua palavra de remate acerca dos discípulos, Marcos diz que eles enche­ ram-se de grande temor. Literalmente, em uma expressão idiomática, certamen­ te influenciada pelo aramaico, “eles te­ 374

meram um grande temor” . E então, em seguida ao milagre, eles começaram a perguntar-se mutuamente quem era Je­ sus. Para eles, aquela maravilha estava abrindo as suas mentes para a verdade de que Jesus era o Cristo e (como eles finalmente iriam recoiihecer) o Senhor de tudo. (2) A Cura do Endemoninhado Geraseno (5:1-20) 1 C hegaram en tão ao outro lado do m ar, à terra dos g era sen o s. 2 E , logo que J esu s saíra do b arco, lh e v e io ao encontro, dos sepulcros, u m hom em co m esp írito im undo, 3 o qual tinha a su a m orad a n os sep u lcros; e n em ain d a com c a d eia s p odia alg u ém prendê-lo; 4 porque, tendo sido m u ita s v e zes preso com grilh ões e c a d eia s, a s ca d eia s foram por e le feita s e m p ed a ço s, e os g ri­ lhões e m m ig a lh a s ; e nin gu ém o podia do­ m ar; 5 e sem p re, d e d ia e d e n oite, an d ava p elos sep u lcro s e p elos m on tes, gritando, e ferindo-se co m p ed ras. 6 V endo, p o is, de longe a J e su s, correu e adorou-o; 7 e , c la ­ m ando co m grande vozT ^ isse : Que tenho eu contigo, J e su s, FUho do D eu s A ltíssim o? conjuro-te por D eu s que n ão m e atorm en tes. 8 P o is J esu s lh e d izia: Sai d esse h om em , espírito im undo. 9 E perguntou-lhe: Qual é o teu nom e? R espondeu-lhe e le : L egião é o m eu n om e, porque som os m u itos. 10 E rogava-lhe m u ito que não os e n v ia sse para fora d a reg iã o . 11 O ra, an d ava a li pastando no m on te u m a grande m an ad a de porcos. 12 B ogaram -Ihe, pois, os dem ônios, dizendo : M anda-nos p a ra aq u eles p orcos, p ara que entrem os n e le s. 13 E e le lho p erm itiu . Sain­ do, en tão, 0 8 esp írito s im undos, en traram nos p orcos; e precipitou-se a m a n a d a , que era de uns dois m il, p elo despenhadeiro do m ar, onde todos se a fogaram . 14 N isso fu giram a q u eles que os a p a sc e n ­ tavam , e o an u n ciaram na cid ad e e nos cam pos; e m u itos foram v e r o que e r a aq u i­ lo que tinha acon tecid o. 15 C hegando-se a J esu s, v ira m o endem oninhado, o que tivera a leg iã o , sen tad o, v estid o , e e m perfeito juízo; e tem e r a m . 16 E o s que tin h am visto aquilo con taram -lh es com o h a v ia a co n teci­ do ao endem oninhado, e a c e r c a d os porcos. 17 E ntão co m eça ra m a rogar-lhe que se reti­ rasse dos se u s term os. 18 E , entrando ele no barco, rogaVa-lhe o que fora en d em on i­ nhado que o d eix a sse esta r com e le . 19 J e ­ sus, porém , n ão lho perm itiu , m a s disseUie: V ai p ara tu a c a sa , p a ra os teu s, e anund a -lh e s o quanto o Senhor te fez , e com o


teve m isericórd ia de ti. 20 £ l e se retirou, pois, e com eçou a publicar e m D ecáp olis tudo quanto lh e fizera J esu s; e todos se adm iravam .

A narrativa de Marcos é muito mais vívida e detalhada do que os paralelos em Lucas 8:26-39 e Mateus 8:28-34. Mateus apresenta dois endemoninhados ferozes, em vez de um, e identifica o lugar como o país dos gadarenos, em vez de gerasenos. Ambas eram cidades de Decápolis (v. 20), mas(^6érasa/hoje chamada Jerash) ficava a StTquiIometros, espadara 9 quilômetros do lago. Ruina§~Iníuto mais próximas do lago, chamadas Khersa, foram descobertas, e podem ter sido o distrito ligado a Gadara. A transliteração pode ser a responsável por algumas va­ riações de grafia. Não temos razão para presumir que Marcos conhecia minucio­ samente os limites geográficos daquele território; se ele era de Jerusalém, era improvável que tivesse tido ocasião de viajar através de Decápolis. A história, da forma como é contada, pode ser dividida em quatro partes. Em 1-10 o homem e seu encontro inicial com Jesus são descritos. Em 11-13 vemos o estranho relato acerca dos demônios e os porcos. O que aconteceu com os que apascentavam os porcos é mostrado a se­ guir (14-17), e finalmente o homem cura­ do, embora desejando ir com Jesus, é enviado de volta para o seu povo (18-20). Quando Jesus e seus discípulos desce­ ram em terra, estavam em um território predominantemente gentio. Certamente os que apascentavam os porcos não eram judeus, e provavelmente o pobre ende­ moninhado era também gentio. Contu­ do, Marcos não menciona esse fato. Aquele homem vivia nos sepulcros, que eram cômodos escavados em barran­ cos, para servirem de túmulos, ou geral­ mente usados com esse objetivo (em tem­ pos anteriores ou contemporâneos). Criase p o p u la rn ^ te que os^cemitériòs~ a F ^ ã m ^ ^ ÍC T ^ ^ ^ ^ ^ ^ ^ Õ s ^ ô r“ demomos. Mas esse^õmem vivia íá~ ísolado^do seu povo e de toda a sociedade, porque era

violento e completamente indomável. Haviam tentado controlá-lo, mas ele era incomumente forte e nâo havia poupado o seu próprio corpo, a fim de quebrar fossem quais fossem os elos com que haviam tentado amarrá-lo. No versículo 3, as palavras traduzidas como nem ainda com cadeias podia al­ guém prendê-lo contêm três fortes ne­ gativas gregas, tão fortes e expressivas como se possa imaginar. Como ele pu­ dera fazer em pedaços as cadeias, e os grilhões, em migalhas, deve ter sido uma coisa notável e horrorosa de se presenciar ou mesmo ouvir. No versículo 4, a palavra domar é usada normalmente em relação a ani­ mais selvagens. Dia e noite não faziam diferença para ele, pois o ouviam gritar a qualquer hora e em qualquer lugar, , e ele estava constantemente ferido e cor­ tado, devido ao que fazia contra si mes­ mo. Marcos usou o tempo imperfeito dos verbos gritar e ferir, para acentuar a miséria sem fim desse homem. Se tivéssemos apenas o versículo 2, poderíamos supor que esse homem veio ao encontro de Jesus antagonicamente, pois algumas vezes esse verbo é usado dessa forma. Porém, no versículo 6, so­ mos informados de que ele correu e adorou-o. Se entendermos a conjunção pois do versículo 8 como explicando os dois versículos precedentes, podemos compreender por que ele fizera aquilo. Até um hgm^em selvagem é uma^ criança i à sua moda. Ele deve ter pensado, na sua ' condição de demente, que, prostrando-se : I diante de Jesus, pedindo-lhe para que , I ^ não se intromete^e, identificando-o i como Jésus, Filho do Deus Altíssimo, ; \ e pedindo, em nome de Deus, que não o , j atormentasse, talvez Jesus o deixasse (cf. 1 os paralelos das^ãI^H s"'d^endem oni'^nhadoem 1:24). Jesus estivera dizendo (o verbo é im­ perfeito) ao espírito imundo: Sai desse homem. Porém a profunda _perturbação daquele homem não foi banida facilmen­ te. "Assim, Jesus começou a perguntar375


lhe (outra vez o verbo é imperfeito, e dá a àfé (veja, acima, o comentário acerca de entender repetição): Qual é o teu nome? 1:23 e s. e 3:11). A resposta do homem e do espírito imun­ Os porcos que cobriam as colinas pró­ do nâo são separadas. Precisamos lem­ ximas deviam ser uma preocupação espe­ brar que, de acordo com a compreensão cial para o possesso de demônios. „S^á do povo do primeiro século, acerca da que ele, de alguma f o m a ^ ^ i c ó t k ^ ^ â trágica condição desse homemi_a_dtmô^ conexão entre eles é a sua enfermidade? nio o controlava e falava j o r sua boca. KIãrcor^Õ^aYênten3êrlstõrElê’Ma Se o exorcista conhecesse o nome do apenas dos demônios e de seu pedido demônio, cria-se que então podia contro­ (através da pobre alma que dominavam), lar o demônio. Talvez o endemoninhado para que lhes fosse permitido entrar nos tentasse derrotar Jesus,,„Jem^onstoiula. porcos. Marcos também não diz q u ^ que“cõhhecia o nome dele! (v. 7). Por- (jesus os mandou entrar na manada, mas ________ ' _____ _1_ 11__________ •xS__ A tânîôrprOTlvêlminie’T ^ n f ia n ç a desse I1apenas que ele lho permitiu. A condtF" lomem em Jesus seria ajudada pelo fato \ m õ , devido ao que aconteceu aos suí­ nosso Senhor chamar pelo nome o [ nos, foi que eles se tomaram possuídos lemônio que o possuía. / por aqueles demônios. Será que o ho­ O nome legião representava muitos, mem endemoninhado, em um último ato pois uma legião romana consistia de cer­ desenfreado, deu vasão de maneira selva­ ca de seis mil homens. Tendo revelado o gem à sua raiva contra os (odiados) por­ seu nome, o (s) espírito (s) imundo (sVcncos, e os fez debandar? Teriam os apasmeçou (aram )AJ3£dir,misericórdia. Mofcentadores ficado igualmente amedron­ tados com esse, homem notoriamente f â í f ê s t ^ r provavelmente, correto em ^.traduzir desta forma o versículo 10: “Eler? forte e descontrolado? lhe rogaram insistentemente que nâo o ^ A história abunda em dificuldades, e mandasse para fora do país.” O verbo nem todas as nossas interrogações podem ~rogaram permite um sujeito singular ou ser respondidas. O que temos é um relato neutro plural; e as palavras para demô­ do que aconteceu, feito por homens que nio e espírito são ambas neutras. falavam na forma de pensamento do pri­ Os sintomas das pessoas endemoni­ meiro século. Os intérpretes modernos nhadas descritas nos EvangÜESItêm frédeste acontecimento precisam tirar as qüentemente sido examinados, procuran­ suas conclusões baseados no que crêem do-se semelhanças com desordens msí}acerca do reino demoníaco, e de como tais conhecidas hoje em dia. Contudo, os' interpretam a encarnação. E precário detalhes fornecidos são dificilmente a d e -. concluir, por exemplo,^ue.^Íesus^nem-S£ quados para um diagnóstico cuidadoso unportou com os porcos: nosso Senhor feito por médicos modernos. Neste caso, ní&smò afirmou queTDeus* se preocupa tem sido sugerido que os versículos 3-5 até pelos pardais (Luc. 12:6). Por outro descrevem “o estágio maníaco de uma, lado, as referências de Jesus ao cuidado psicose maníacq-dêipressiva’’.~D^ fato, ,o que Deus tem pelas formas inferiores de líõimem era hiperativo, destmidor, inca­ vida são regularmente aplicadas para paz de se controlar ou de se submeter a enfatizar a sua preocupação exuberante controle. pelo homem (çf. Mat. 6:26). Em qualquer caso, Jesus não rejeitou, Quando as pessoas que apasceiitavam mediante a sua escolha de palavras, ou aqueles porcos, ao fugir, contaram o que de qualquer outra forma perceptível, a havia acontecido, o povo acorreu, para linguagem e as pressuposições das pes­ ver pessoalmente (v. 14). Podemos supor soas que procurava ajudar. Fazê-lo, seria que os apascentadores haviam fugido, atitude confusa, e provavelmente teria sem ver o que finalmente acontecera ao atrapalhado o caminho delas em direção endemoninhado, sobre quem, a princí­ 376


pio, eles devem ter lançado a culpa pela ria um problema para ele. A ordem de perda dos suínos (o v. 16 não dá a Jesus fora que o homem contasse o que o entender, necessariamente, que eles tes­ Senhor (isto é. Deus) lhe havia feito. Mas temunharam toda a cena). Porém, tal o homem, de acordo com Marcos, não desastre não havia acontecido antes de fez distinção entre os atos de Deus e os de Jesus e seus discípulos entrarem em cena, Jesüsr Á*enfás^missionária ni e, por isso, é fácil concluir-se que a asso­ \~pSSÍ^apãraí?!êIfõrêr3rMarcos. Porém o foco da história não é a disse­ ciação destes çQm p habitante dos túmulo s íi^ ia precipitado todos os aconteçiminação da fama de Jesus, mas o próprio mentos.~~^ milagre. Embora nada semelhante a 4:41 Nem mesmo a perda dos porcos era tão | seja expresso, a história in d ic a o p o d er_ incrível quanto a mudança que tiv e r ^ incomum. divino, aue fEIã1FTesus.~A lugar na vida do endemoninhado. M ar­ narfãtiva de Marcos progride em direção cos usa tempos de verbo gregos, no ver­ à pergunta de Jesus em 8:29: “Mas vós, sículo 15, de maneira incomumente víquem dizeis que eu sou?” vida. O povo vê, o homem que fora (3) A Cura da Mulher Hemorrágica endemoninhado. agorãT sentado calma(5:21-34) mente; ele se vestira, e estava agora em Z1 Tendo J e su s p assad o de novo no barco pleno e contínuo controle de suas facul­ para o outro lado, ajuntou-se a e le u m a dades, embora tivesse estado sob o con­ grande m ultidão; e e le e sta v a à b eira do trole de um a legião — e ficaram com m ar. 22 Chegou u m dos ch efes da sin agoga, medo. Ali estava presente um pnder tra-, cham ado Jairo e , logo que viu a J esu s, mãtido. que.eles não entendiam. Se eles lançou-se-lhe a o s p és, 23 e lh e ro ga va com instíincia, dizendo: M inha fUbinha e stá n as nao tivessem ficado tão an ^ ro n ta d o s, ú ltim a s; rogo-te que v en h a s e lh e im ponhas teriam atacado os i n t ^ o s , especialmena s m ã o s p a ra que sa re e v iv a . 24 J esu s foi te aquele através de cujo poder aquela com e le , e segu ia-o u m a grande m ultidão, coisa incrível tinha acontecido. Mas o seiT que o a p erta v a . 25 Ora, certa m ulher, que havia doze an os p a d ecia de u m a h em orra­ nhedo tomou-os suplicantes, e eles apegia, 26 e que tin h a sofrido b a sta n te à s m ãos I nas rogaram-lhe que fosse embora. de m uitos m éd ico s, e despendido tudo quan­ A cena final da história mostra o ho­ to p ossuía, sem n ad a a p roveitar, an tes indo mem que fora cnrado (18:7.nV Da mesma a pior, 27 tendo ouvido fa la r a resp eito de forma como os seus concidadãos, ele, se J esu s, v eio por d etrás, en tre a m ultidão, e tocou-lhe o m an to; 28 porque dizia: Se tomou suplicante: mas ele estava pedintão-som ente tocar-lhe a s v e ste s, fica rei do que se lhe permitisse juntar-se ao curada. 29 E Im ed iatam en te cesso u a su a pugilo de discípulos. Jesus recusou-o, hem orragia; e sentiu no corpo esta r já cu ra ­ e mandou-o de volta ao seu próprio povo, da do seu m a l. 30 E logo J esu s, percebendo em si m esm o que sa íra d ele poder, virou-se para falar como ele experimentara a mi­ n o m eio da m u ltid ão e perguntou: Quem m e sericórdia de Deus. Para os teus (v. 19) a s v e ste s? 31 R esponderam -lhe os seria “o teu (povo)” , uma expressão mais . tocou seus d iscíp u lo s: V ês que a m ultidão te a p e r ­ abrangente do que a família e os amieos ta, e p e rg u n ta s: Q uem m e tocou? 32 M as ele íntimos. Decifflolis era originalmente olhava em redor, p ara v er a que isto fizera. 33 E ntão a m ulher, a tem orizad a e trêm u la, uma liga deliez cidades, a leste da Galicônscia do que n ela se h a v ia operado, v eio e léia e d ^ prostrou-se d ian te d ele, e declarou-lhe toda Por que as instruções de Jesus para a verdade. 34 D isse-lh e ele : FUha, a tua fé te esse homem foram tão diferentes das salvou; vai-te e m paz, e fica liv re d esse teu m al. dadas à pessoa curada em 1:44 não está explícito (cf. também 3:12 e 5:43). Visto que o ministério de Jesus era exercido, Os primitivos versículos desta seção geralmente, em uma região diferente, a são uma introdução para a narrativa de fama nesse novo território não constitui­ duas obras milagrosas. Ambas as histó­ 377


rias estão interligadas de maneira carac­ usado é outra vez o imperfeito descritivo, de que Marcos gosta tanto. Eles conti­ terística, e provavelmente vieram às nuaram a pressioná-lo, ou apertavam-no mãos de Marcos dessa forma. Como nas duas narrativas precedentes, o interesse a cada passo e de todos qs lados. Na multidão, uma(s^ n d a ]buplicante se focaliza nos milagres propriamente BTEsTe, conseqüentemente, nn pnrier de _ se aproximou de Jesus, com um propó­ sito único. A sua doença era a sua com­ Jesus sobre a doença e a morte. Ê dada também uma acentuada ênfase à fé como panheira de longos anos, e a sua exis­ presente ou necessária (v. 34-36), e o tência devia ser miserável, Além do des­ coÍTíras^entre~õ~que aconteceu (ou não conforto, aquela doença especificamente aconteceu) em Nazaré é previsto (cf. 6:1a tomava cerimonialmente impura. A 6). As narrativas paralelas são Mateus Lei dizia: “ Se uma mulher tiver um fluxo 9:18-26 e Lucas 8:40-56. de sangue por muitos dias fora do tempo Depois de atravessar o mar, Jesus es­ da sua impureza, ou quando tiver fluxo tava outra vez nas familiares redondezas de sangue por mais tempo do que a sua da Galiléia. As multidões rapidamente se impureza, por todos os dias do fluxo da aglomeraram ao redor dele outra vez, em sua imundícia será como nos dias da sua impureza; imunda será” (Lev. 15:25). contraste com os moradores da margem leste do lago, que haviam ficado com E considerava-se que essa impurez;a era medo da sua presença. Aqui os atos de cónIágibsaT (Jrélãiõ que M ircõs faz, de Jesus eram bem conhecidos, e a esperansú¥ büscã~ionga e patética, procurando çg"aê~recebèr~^uda atraíra duas pes- cura junto de muitos médicos, e a sua ~sõãs~perturbadas, que clamaram a ele. redução a condições físicas piores, e a ~~(XpHtfiéirà)3essas pessoas é identifica­ completa pureza, é muito vivido. Compa­ re Lucas 8:43, onde a narrativa é mais de da como um dos chefes da sinagoga. O seu nome era Jairo (embora Taylor natureza médica. pense que essa identificação seja uma Ela tocou-lhe o manto (Mateus e Lucas dizem “ a orla do seu manto” ). Ela fez adição feita por algum escriba, de Lucas 8:41). Um chefe da sinagoga era natural­ isso porque ouvira falar das curas que mente uma pessoa muito proeminente na Jesus operara (v. 27), e porque participa­ congregação, embora a sua liderança fos­ va da antiga opinião de que a própria se mais administrativa do que espiritual; pessoa daquele qué~curava era poderosa, Jairo prostrou-se aos pés de Jesus e e^gueji sua roupa, ou até a sua sombra começou a implorar-lhe em favor de sua podiam ^ervir como portadores do seu f i l h i n h a (diminutiva, no original). A for­ poder. Pará exemplos do Novo Testa­ mento, note os incidentes de Atos 5:15 e ma diminutiva provavelmente denotasse 19:12.Quando ela conseguira, com su™ afeição, e acentuasse os rogos de ajuda; cesso, abrir caminho através da multidão ocorre em o Novo Testamento apenas aqui e nas circunstâncias similares de e chegar suficientemente perto para tocar na roupa de Jesus, sentiu que a hemorra­ 7:25. JJm a pessoa doente é descrita c o i^ gia cessara, e que o seu corpo finalmente a lg u é m j i^ ‘ te n lr a i5 I Í ü 5 3 ^ ^ r iI I I ® )i^ a menininha “está (com sua enfermida­ foracurado. Se a mulher esperara manter-se no de) nas últimas (fases)” . Será que Jesus anonimato, fracassou. Ê mais provável não pode ir e impor as mãos sobre ela, roga Jairo, para que sare e viva (como no que üãTnao tivesse pensado em nada mais do que o seu objetivo já alcançado, V. 34, o verbo usadò é o mesmo que freqüentemente é traduzido “ ser salvo”)? ro iv e ria haver judeus ortodoxos por per~ Jesus deu nova direção aos seus passos, \to, que se teriam ressentido dessa mupara ir com Jairo, e a multidão o aper­ \lher imunda, e por isso isolada, que punha em perigo a condição aceitável tava. O verbo é muito forte, e o tempo 378


deles. Porém ela devia saber que Jesus estava incomumente disposto a atender pessoas de quem os seus mais rígidos compatriotas se afastavam: leprosos, coiletores de impostos, pecadores... Marcos nos diz que Jesus voltou-se imediatamente para descobrir quem o havia tocado, porque percebera em si mesmo que saíia dele poder. De acordo com o uso bíblico, a palavra aqui tra­ duzida como poder geralmente designa alguma obra poderosa, que manifeste a atividade de Deus (cf. 6:2,5; 9:39, em versões em que ela é assim traduzida), ou, por outro lado, o poder ativo de um Deus^ivo e pessoal. A fé que está por "tletrás deste versículo d e m ra que na pes­ soa de Jesus habitava o poder de Deus sobre as doenças que afligem o homem. O Espírito de Deus desceu sobre Jesus (1:10). Agora, como em outras ocasiões, desde então, na verdade, saíra dele po­ der. Freqüentemente tem sido dito que a abrupta resposta dos discípulos a Jesus reflete a natureza prímWvã^áTnarrativa de Marcos (cf. 4:38). Ela também testi­ fica da natureza compreensiva da encar­ nação e das limitações da fé dos dhcípulos ernjeu Mestre, a êssàliltura. Jesus não sabia quem havia procurado ajuda dele (v. 32), embora intuitivamente hou­ vesse percebido que alguém o havia feito (v. 30).CCalvinq a c h a v a ^ e Jesus já^^abia, quem era' elâ, e que ele fizera aquela pergunta apenas para levá-la a confessar a sua fé. Mas esse acontecimento é e x ^ plicado mais naturalmente pelo desejo de ^ Jesus de afastar a fé imperfeita dela de i qualquer superstição enfraquecedora a; respeito de sua roupa, para levá-la a uma dedicação mais pessoal a ele. A mulher foi agradecida e cora,josa. Contar toda a verdade diante dá muTH^ dão atenta, inclusive a confissão de que ela tornara Jesus cerimonialmente impuro, de acordo com a lei, requeria coragem. Porém a sua incontrolável expe­ riência foi ficar atemorizada e trêmula, porque percebeu o_que havia acontecido

ao seu corpo. Esta é pelo menos a explicação de MaFc^õs: cônscia do que nela se havia operado. O relato de Lucas é dife­ rente (cf. 8:47). Jesus aceitou^a explicacão da mulher, e também â" ela mesma.. Filha certainente não deve ser interpretado literalmente; não oBsíãníèT^dê^sê^To” em termos de uma_açeitaçâw_j)lena família de Jesjjs (3l35),„0 significado de fé não deve ser resumido a uma atitude inteiramente dependente da mente da mulher. Como diz Taylor, a fé do Novo Testamento constantemente retira, a sua força e conteúdo, do seu objeto. A fé em Deus, embora seja um empreendimento do espirito humano, tqm a^reafêjjpdei^^^ r5sá^atrãves'gin5^ ra ç ã o diviriá7cf. 9:24; TT-TÍ). a confiança dessa mulher foi bem-vinda pelo poder presente e operante,através de Jesus. Vai-te em paz era a expressão hebraica costumeira para despedidas. Talvez Je­ sus quisesse que fosse entendida a rica herança do paralelo hebraico; nesse caso, paz significa integridade, saúde, em vez 3é simplesmèniFãüs&^ ã de luta. Aque­ le adeus devia ser uma resposta tranqüilizadora para os temores e tremores dessa mulher. Nida traduz em dialeto Shilluk: “Vai-te com doçura interior” , e em Tzeltal: “Vai-te e assenta-te em teu coração.” (4) A Cura da FUha de Jairo (5:35-43) 35 E nquanto e le ain d a fa la v a , ch eg a ra m , p esso a s da c a sa do c h efe da sin agoga, a quem d issera m : A tua filh a já m orreu ; por que ain d a in com od as o M estre? 36 O que percebendo J e su s, d isse ao ch efe da sin a g o ­ ga: N ão te m a s, cré so m en te. 37 E não p e r­ m itiu que nin gu ém o a co m p a n h a sse, senão Pedro, T iago e João, irm ão de T iago. 38 Quando ch eg a ra m a c a sa do ch efe da sin a ­ goga, viu J esu s um alvoroço, e os que ch o ­ ravam e fa zia m grande pranto. 39 E , e n ­ trando, d isse -lh e s: P or que fa ze is alvoroço e chorais? a m en in a não m orreu, m a s dor­ m e. 40 E ria m -se d ele; p o r é m .e le , tendo feito sair a todos, tom ou consigo o pai e a m á« da m en in a, e os que com e le v iera m , e entrou onde a m en in a e sta v a . 41 E , tom ando a m ão da m en in a, d isse-lh e: T allta, cum i, que, traduzido, é : M enina, a ti te digo, le ­

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vanta-te. 42 Im ed iatam en te a m en in a se le ­ vantou, e p ôs-se a an dar, p ois tinha doze anos. £ logo foram tom ados de grande e s ­ panto. 43 E n tão ordenou-lhes ex p r e ssa m e n ­ te que n in gu ém o so u b esse; e m andou que lhe d e sse m de com er.

Antes que Jesus tivesse terminado de falar com a mulher curada da hemorra­ gia (talvez a interrupção tivesse apressa­ do a sua despedida), alguém da casa de Jairo irrompeu por entre a multidão, para contar ao pai angustiado que a sua filha havia falecido: Visto que obviamer.te nada há que alguém possa fazer agora, por que ainda incomodas o Mestre? Mas o poder de Deus em Jesus, está Marcos para dizer, não se acomodava a esse tipo de resignação. O governo de Deus, que se fizera próximo em Jesus (1:15) e que é mais poderoso do que tempestades, hos­ tes de demônios ou doença maligna, tem controle também sobre a morte. A idéia de que a menina não havia morrido, mas estava em coma, tem raízes no ponto de vista filosófico de que a ressurreição de um corpo já morto é contrária à natureza da realidade. O fato de Jesus ter negado a morte dela (v. 39) tem sido usado para sustentar esse ponto de vista, como de fato essa declaração particular permite fazer. Compare ás narrativas paralelas em Mateus 9:24 e Lucas 8:52. Não podemos ser dogmáticos nesse ponto. Porém precisamos reconhe­ cer que Jesus não falou como médico,, nem como especialista em diagnósticos; ele falou como o Filho em quem o poder de Deus era perfeitamente manifesto. Os escritores dos Evangelhos certamente criam que Jesus podia ressuscitar e de fato ressuscitava os mortos. Dificilmente Jesus teria deixado de ou­ vir a mensagem vinda da casa do chefe da sinagoga. A palavra traduzida como per32 Veja A. R ichardson, T he iVüracle-Storles of th e G os­ pels (London, SCM, 1941),• R. H. Fuller, Interpreting the M iracles (Philadelphia: W estm inster, 1963); D. S. C airns,T he T ru th T h a t R ebels (London: SCM, 1954); e o breve e excelente sum ário em Cranfield, M arli, p. 82-86.

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cebendo, na versão da IBB, pode tam­ bém significar “ouvindo de passagem” , e Lucas (8:50) assim a entendeu. Não temas, cré somente pode ser assim para­ fraseado; “Pare de ficar amedrontado, continue apenas confiando.” João 14:1 é paralelo íntimo; veja também Marcos 6:50. A maior parte da turba fora mandada embora, e só os três discípulos que pare­ ciam formar uma espécie de círculo mais íntimo de Jesus tiveram permissão de continuar com ele, bem como o pai e a mãe da menina. Esta decisão deve ter sido tomada para permitir-lhes andar mais depressa, ou talvez para evitar pu­ blicidade (cf. v. 43). As pessoas que se encontravam na casa estavam lamentando em altas vozes, de acordo com o costume da época. Pro­ vavelmente algumas delas eram carpidei­ ras profissionais, quer tivessem sido, quer não, empregadas para aquele ob­ jetivo. Na Mishnah até as pessoas mais pobres eram encorajadas a usar pelo menos dois flautistas e uma “carpidei­ ra” . Quando Jesus lhes disse que a crian­ ça não morreu, mas dorme, a sua reação foi de zombaria, de risadas escamecedoras (a forma do verbo descreve zombaria repetida ou contínua). O que Jesus quis dizer, ao afirmar que a menina estava dormindo? Queria ele dizer exatamente isso, de que, embora do ponto de vista humano ela pudesse estar morta, ele iria ressuscitá-la, e, portanto, a sua morte nao teria sido mais perma­ nente do que um sono? O problema é complicado pelo uso costumeiro do verbo dormir para descrever a morte (I Tess. 5:10; João 11:4,11-14; também na LXX; Dan. 12:2; Deut. 31:16). Claro que os leitores de Marcos se recordariam de sua esperança, até mesmo na presença da morte. Os carpidores zombeteh-os foram pos­ tos para fora da casa, e apenas os três discípulos e os pais da menina testemu­ nharam o que aconteceu. Talita cumi é transliterado do aramaico, e simples­


mente significa, como nos diz Marcos, Menina (ou ovelha), levanta-te. O uso de palavras estrangeiras era comum em his­ tórias de milagres dos tempos antigos, como o têm notado R. Bultmann, M. Dibelius e outros. Mas, quando Marcos as usa aqui e em outros lugares, ele parece, o faz mais para exprimir a ori­ gem aramaica da narrativa do que para fazer qualquer referência especial às curas realizadas (3:17; 7:11; 14:36). A menina reagiu à ordem de Jesus, levantando-se e pôs-se a andar. A nota concernente à sua idade serve apenas para nos informar que não era um bebê, e que por isso sabia andar. A preocupa­ ção de nosso Senhor pela necessidade que a menina tinha de alimento tinha o propósito de levar, o grupo de pessoas que estava na sala, de volta à realidade terrena. Talvez também o simples ato de alimentar a menina iria ajudá-los a se acalmarem e a obedecer à severa ordem que Jesus dera, de não saírem contando o milagre a todo mundo. De qualquer forma, quem iria entender o que aconte­ cera, a não ser homens cujas mentes estivessem abertas, e que tivessem chega­ do àfé? (veja 4:10-12; 5:36). 3. Rejeição e Reconhecimento do Cristo (6:1-8:30) 1) Incredulidade e Rejeição na Terra Natal(6:l-6a) 1 Saiu J esu s dali, e foi p ara a su a terra, e os seu s discíp u los o seg u ira m . 2 Ora, c h e ­ gando o sábado, com eçou a en sin ar n a sin a ­ goga; e m u itos, ao ouvi-lo, se m a ra v ilh a ­ vam , dizendo: D onde lh e v ê m e sta s co isa s? e que sabed oria é e s ta que lh e é dada? e com o se fa zem ta is m ila g r es por su a s m ãos? 3 N ão é e ste o carpinteiro, filho de M aria, irm ão de T iago, de J o sé , de Ju d as e de Sim ão? e não estã o aqui en tre nós su a s irm ãs? E escan d alizava m -se d ele. i E ntã« Jesus lh es d izia: U m profeta não fic a sem hom ^ senão n a su a terr a , en tre os seu s p arentes, e n a su a própria c a sa . S E não podia fazer a li nenhum m ila g re, a não ser curar algu n s poucos en ferm os, ünpondoIhes a s m ã o s. 6 E adm lrou-se d a in cred u li­ dade d eles.

A instrução dos doze, dada por Jesus, continua através da seção seguinte. Po­ rém a ênfase de Marcos vai-se mudando cada vez mais para a pergunta: Quem pensam os homens que Jesus é? A n fe s"^ clím ãF ^lS cõnS cnnM itÕ rêm 8:27-30, Marcos descreve como Jesus e João foram rejeitados, como as multidões se mafavP Iharam, inas, na verdade, não percebe­ ram, como Jesus separou as suas pers­ pectivas das dos mestres judaicos, e como os discípulos eram tardios em compreen­ der, porém finalmente reconheceram o Messias. Não existe nenhuma solução abrupta de continuidade na narrativa, seja gramaticalmente (ela começa: “ Saiu Jesus dali...” ) seja na preocupação de Marcos com os milagres (v. 2) de Jesus, seja com a fé ou a incredulidade do homem (v. 6). Entende-se como a sua terra (de Jesus) a sua “ cidade natal” . Marcos sabia que ela era Nazaré (1:9,24). Talvez ele tenha usado o termo menos preciso porque, escrevendo para cristãos romanos, dese­ java dar a entender a rejeição de Jesus pela maior parte do povo judeu. O fato de Jesus ter usado este termo no que é citado no versículo 4 também deve ter influenciado a escolha que Marcos fez de usâ-lo. No relato de Lucas, Jesus visitou Naza­ ré logo no começo do seu ministério, e o que ele leu e falou na sinagoga ali serviu como um tema definido para a sua obra e como um todo (4:16-30). Robertson pensa que Jesus estava dando aos nazarenos^outoa q ^ ftu riiagaê'^^ iy o u v i-lo e_ àrêita-lo. Õ padrão de admiração e rejeiçãó“ ofensõra é comum a ambos, e a ordem em que os acontecimentos são contados nos Evangelhos varia grande­ ---mente. Jesus dirigira-se à sint^oga e estava ensinando ali. Marcos não fala de novo do fato de Jesus usar a sinagoga como centro do seu trabalho (cf. 1:21; 1:39; 3:1). A reação .dos cidadãos de Nazaré foi primeiramente de admiração (v. 2), e 381


depois de indignação (v. 3), e é resumida o irônico paralelo estabelecido com os na palavra incredulidade (v. 6). Como seus próprios sentimentos é tremenda­ esse homem de aparência comum, de um mente evidente. lar comum, podia ser o agente de sabe­ Somente aqui os irmãos de Jesus são doria e milagres tão incomuns? Sabedo­ mencionados nominalmente (e em M a­ ria e poder (“milagres” é tradução da teus 13:55). Não sabemos o nome de palavra “poderes” ; cf. 5:30), correspon­ nenhuma de suas irmãs. Acerca de Tiago dem a palavras e atos na linguagem e de Judas temos informações mais re­ bíblica, e são especialmente aplicáveis a centes : f í í a ^ foi um dos primeiros lídeuma direção e atividade divinas. Veja a res da igreja em Jerusalém (Gál. 1:19), descrição de sabedoria em Provérbios e duasTi⥓carS F ïïo Novo Testamento 8:12-31. Sabedoria e poder estão ligados foram creditadas a esses dois irmãos. Os na descrição da raiz de Jessé (Is. 11:2), e “irmãos do Senhor” são também men­ do MessIarnos"sãÍmos de Salomão (17: cionados por Paulo, como fazendo tra­ 24 e s.), livro não-cãnonSõT^ P a i^ tchabalho missionário (I Cor. 9:5). Veja os mou Cristo de poder e sabedoria de Deus comentários sobre 3:31. (I Cor. 1:24). r O povo de Nazaré escandalizava-se" dele, isto é, era incapaz de crer que Deus Jesus íoi^ham ado de filho de Maria. podia estar enTãçao no rneiõ deles, par­ Se esta é a redação correta, isto bem ticularmente através de alguém tão hu­ pode ter sido uma observação insultuosa milde por origem. Para um paralelo insdos homens de Nazare. como que a dizer: trutivo, do »uso deste verbo, veja Mateus Quem foi o pai dele? Marcos, porém, ■■ não sugere que ele entendêraãTfãsê^dütã* 11:6 . As palavras de Jesus comparam a sua Tõmía, e a explicação comum de que José experiência com "a dos" profetas, Como estava morto pode ser adequada. Matêus, con1íido7*chãiná Jesüs^e “fjlho do escreveu João (1:11): “Veio para o que era seu, e os seus não o receberam.”^ c ^ in te ir o ” , descrição hebraica mais A sua obra foi limitada no meio do seu nafural‘~mesmo que José já tivesse fale­ próprio povo, devido à sua incapacidade cido. Johnson e Taylor, baseados em al­ ou falta de disposição em confiar n e l e . __ gumas evidências ponderáveis, conside­ A narrativa de Marcos é notável por ram que o texto original de Marcos tin h a ' sua sinceridade, ao afirmar que Jesus correspondências com Mateus. não podia fazer ali nenhum milagre, A palavra traduzida como carpinteiro exceto curar umas poucas pessoas, e que era aplicada a qualquer artesão. No se­ ele ficou suroreso com a oposição gmeu) gundo século, Justino M ártir escreveu povo lhe fazia. A fé da pessoa que estava que Jesus fazia “obras de carpinteiro” , senHo cüráM não era a fonte d o ^ ^ ^ S S e fazia arados e jugos. É totalmente. Jesus. O p ^ ^ ^ prm sãvFestar no próprio provável que Jesus tenha trabalhado çpm Jesus. A m ^ n a , enr5:3Í-43, não podeJoséTlnas apenas nesta passagem, em n a ter fé anterior (cf. 9:14-29). Burkill todo o Novo Testamento, ele é especifica­ pensa que Marcos 6:5,6 não se relaciona­ mente descrito como carpinteiro; e como va primordialmente com o poder sobre­ acabou de ser notado, o texto correto natural de Jesus como tal, mas tinha o pode ter sido: “filho do carpinteiro” . A objeto de ilustrar as privações que resul­ idéia de Marcos ainda é mais clara: para tam da falta de fé. Da mesma forma, ele o povo de Nazaré, Jesus pode ter parecidjj sugere que o relato de Marcos deve a sua incomumente dotado, mas a i ü a f i i r ^ ç a forma à decepção de muitos cristãosda era inteiramente comum. Pode ser que era primitiva, ao testificar aos judeus. eles tivessem ficado ofendidos com a CòntudorTayíor provavelmente está cer­ perguntfi de Natanael: “Po.de. ^ Y ftr çoisa coi to, ao considerar as dificuldades desses mas boa vinda de Nazaré?” (João 1:46), m bga^vui 382


versículos como marcas da autenticidade das fontes usadãFpor Marcos 2) Ministério Através dos Doze (6:6b13) £ m segu id a p ercorria a s a ld eia s circunvizinhas, ensinando. 7 E cham ou a s i os doze, e com eçou a enviá-ios a dois e dois, e d ava-lh es poder sobre os esp íritos im undos; 8 ordenou-lhes que nada le v a s se m para o cam in h o, senão apenas u m bordão; n em pão, n em alforje, nem dinheiro no cinto; 9 m a s que fo ssem calçados de sa n d á lia s, e que n ão v e stisse m duas tú n icas. 10 D izia-lh es m a is : Onde quer que entrardes n um a ca sa , fic a i n e la a té sa ir ­ des daquele lu gar. 11 E se qualquer lu gar não v o s receb er, n em o s h om en s vos ou vi­ rem , saindo daU, sacu d i o pó que estiv er debaixo dos v o sso s p és, e m testem unho co n ­ tra e le s. 12 E ntão sa íra m e p reg a ra m que todos se arrep en d essem ; 13 e ex p u lsa v a m m uitos dem ônios, e u n g ia m m u ito s en fer­ m os com ó le o ; e os cu ravam .

O treinamento a que Jesus submeteu os doze agora chegara ao ponto em que ele podia enviá-los para disseminar os seus ensinamentos. Ele continuou a tra­ balhar, em pessoa, de aldeia em aldeia, mas a voz dos discípulos podia multi­ plicar o seu ministério. De acordo com 3:14, parte do seu objetivo, em escolher os doze, fora para que ele os pudesse mandar pregar e compartilhar, da ma­ neira desejada, a sua autoridade sobre todos os poderes do mal. Dizer que Jesus começou a enviar os seus discípulos significa apenas que ele não o fizera antes. Se eles todos saíram ao mesmo tempo, não está claro. Veja o versículo 30: Havia ele marcado um de­ terminado tempo para a sua volta, ou se manteve informado do seu progresso? Em qualquer caso, parece que Jesus sempre os enviou em pares (cf. Luc. 10:1), e a igreja primitiva seguiu este costume tam ­ bém (Paulo e Barnabé, Bamabé e M ar­ cos, Paulo e Silas). Mestres religiosos itinerantes não eram estranhos à cena oriental daquela época. Os pregadores pagãos, equipados com alfoije, bordão e quase nada mais, viaja­ vam por toda parte, pregando as suas

mensagens. Semelhantemente, pares de judeus eram enviados, mas normalmente eles eram enviados como coletores de es­ molas. Os discípulos, porém, foram proi­ bidos de pedir esmolas; nâo deviam levar alfoije (esta palavra é usada para desig­ nar a bolsa de mendicância dos pregado­ res itinerantes) nem ter dinheiro no cin­ to. As moedas eram normalmente carre­ gadas no cinturão masculino; a palavra usada para dinheiro aqui significa cobre ou bronze, portanto, moedas de menor valor. Eles podiam levar um bordão (para proteção?) e deviam ir calçados de san­ dálias. Esses dois itens eram negados aos discípulos, de acordo com Mateus 10:10 e Lucas 9:3. Taylor e Cranfield estão entre os intérpretes recentes que acham que a versão mais exigente é mais original, mas, para os que habitavam a parte ocidental do império, as pessoas para quem Marcos escreveu, isso seria difícil de entender. Eles não deviam vestir duas túnicas. Túnica era a camisa usada imediatamen­ te sobre a pele. Os relatos paralelos simplesmente os proíbem de levar ou­ tra túnica, para trocar. A hospitalidade era considerada como dever entre o povo hebraico, e pode-se considerar normal o fato de que os discí­ pulos receberiam comida e alojamento. Contudo, eles não deveriam ficar pro­ curando alojamentos mais confortáveis do que haviam conseguido, para se mu­ darem! Os discípulos deviam procurar um auditório de todas formas apropria­ das, mas não deviam impor-se, ou a mensagem que pregavam, a ninguém. Sacudir o pó que estiver debaixo dos vossos pés era um ato simbólico. Signifi­ cava que o lugar não havia recebido a palavra de Deus, que era ímpio, fosse ou não, por herança, um a cidade judaica (Swete, T. W. Manson). Não era uma maldição; o símbolo tinha a natureza de uma advertência. Era em testemunho contra eles; Moffatt traduz “ como uma advertência a eles” . Compare a instrução 383


dada ao vigia, em Ezequiel 33:1-9; e note ações semelhantes em Atos 13:51 e 18:6. (Uma versão inglesa (KJV) apresenta uma cláusula adicional acerca de Sodoma e Gomorra, mas ela é original em Mateus 10:15 e Lucas 10:12, e não em Marcos.) Por que deu Jesus tais instruções aos seus discípulos? Uma razão óbvia, tam ­ bém aplicável na época de Marcos, é que Jesus sabia que os homens podiam cau­ sar má reputação ao evangelho, tirando vantagens das oportunidades de lucro. As ordens de Jesus não se coadunavam com o nível de vida da classe média; requeriam frugalidade. Os seus missio­ nários não podem ser ambiciosos ou ávi­ dos. O Ensino dos Doze Apóstolos ex­ pressa como essas instruções precisavam ser levadas a sério. “Que todo apóstolo, quando chegar a ti, seja recebido como o Senhor; mas ele nâo ficará mais do que um dia, ou, se necessário, igualmente um segundo; mas se ficar três dias, é falso profeta. E quan­ do o apóstolo partir, que nâo receba nada, exceto pâo, até que encontre abri­ go; mas, se pedir dinheiro, é falso pro­ feta.” 33 Devemos também notar que as ordeiis de Jesus também continham um a nota de urgência. Os arautos deviam levar ape­ nas as coisas meramente essenciais, sem quaisquer preparativos anteriores e sem nenhuma bagagem que os retardasse. Deviam viajar sem bagagem pesada, pa­ rar pouco e apressar-se para encontrar pessoas receptivas à mensagem. Na sua missão, os discípulos pregaram arrependimento (cf. comentário sobre 1:15), e, através das suas mãos, a pre­ sença do poder divino se manifestou em curas. O tempo dos verbos usados dá a entender que a expulsão de demônios e 33 A tradução é de J. B. Lightfoot, em T he Apostolic Father, (London; M acm illan, 1926), p . 233. 34 A urgência evidente nas instruções de Jesus näo foi enfatizada p o r M arcos. A interpretação de Schweitzer, acerca do m inistério de Jesus, baseava-se grandem ente n a sua teoria de que Jesus esperava u m a irrupção

384

os atos de cura ocorreram de tempos em tempos. O azeite de oliva era largamente usado na prática medicinal daquela época. Pa­ ra com os discípulos, a unção com óleo era, provavelmente, também um ato reli­ gioso simbólico. Milagres posteriores fo­ ram feitos “em nome de Jesus” (At. 3:6). Veja, contudo, as instruções dadas em Tiago 5:14, quando oração e unção com óleo são ligadas ao ministério de cura da igreja. A unção com óleo nâo é mencio­ nada em outras partes do Novo Testa­ mento, exceto na parábola do bom samaritano(Luc. 10:34). 3) A Considerado de Herodes Acerca de Jesus, e a Morte de João Batista (6:14-29) 14 E soube d isso o r e i H erodes (porque o nom e de J esu s se tornara c é le b r e ), d isse: João, o B a tista , ressu scito u dos m ortos; e por isso e ste s p od eres m ila g ro so s operam n ele. 15 M as outros d iziam : É E lia s. E ainda outros d iziam : É p rofeta com o u m dos p ro­ fetas. 16 H erodes, porém , ouvindo isso , d i­ zia: É João, a q u ele a quem eu m an d ei d e ­ golar; e le ressu scitou . 17 Porquanto o pró­ prio H erodes m an d ara prender a João, e encerrá-lo m an iatad o no cá r ce r e , por c a u ­ sa de H erodias, m ulher de seu irm ão F i­ lipe; porque ele se h a v ia c a sa d o com ela . 18 P o is João dizia a H e r o d e s: N ão te é licito ter a m ulher de teu irm ã o . 19 P o r isso H ero­ dias lhe gu ard ava rancor, e qu eria m atá-lo, m a s não podia; ZO porque H erodes te m ia a João, sabendo que era v arão ju sto e santo, e o gu ard ava e m seg u ra n ça ; e , ao ouvi-lo, fica v a m uito p erp lexo, contudo de boa m enapocalíptica de seu reino, a vinda de um Filho do hom em celestial. O seu versículo-chave era M ateus 10:23; “ Não acabareis de percorrer as cidades de Is­ rael antes que venha o Filho do hom em .” Estas pala­ vras não constam em M arcos; o paralelo mais próxi­ mo é 8:38—9 :1.Taylor acha que Schweitzer estava certo, em chegar à conclusão de que Jesus alterou a sua compreensão do reino e do papel do Filho do hom em , a essa altura, em bora a m aneira de Taylor com preender o conceito de Jesus, acerca do reino, seja bem diferente. “ U m a crise estava im inente” , es­ creve ele. “ E ra o lim iar de eventos já esperados... (Isto não era) um simples passeio evangelístico... Eles eram arautos do rápido advento do reino de D eus.” l if e and Mliiistiy of Jesns (New Y ork: A bingdon, 1955), p. 114. Porém , em seu com entário, Taylor reconhece que, no relato de M arcos, a missão dos doze é apenas um a extensão do m inistério didático, deJesus(p.302).


te o escu ta v a . 21 Chegando, p orém , u m dia oportuno quando H erodes no seu a n iv e r sá ­ rio n atalicio ofereceu um banquete aos grandes da su a corte, a o s tributos m ilita ­ res e a o s p rin cip ais d a G aliléia, 22 entrou a fillia da m e sm a H erodias e , dançando, agradou a H erodes e a o s co n v iv a s. E ntão o rei d isse à jo v em : P ed e-m e o que q u iseres, e eu to d arei. 23 E jurou-lhe, d izen d o : Tudo o que m e p ed ires te d a rei, a in d a que se ja m etad e do m eu reino. 24 Tendo e la saíd o, perguntou à su a m á«: Que pedirei? E la respondeu: A ca b eça de João, o B a tista . 25 E tom an do logo com p r e ssa à p resen ça do rei, pediu, dizendo: Quero que im ed ia ta ­ m ente m e d ês num prato a c a b eça d e João, o B a tista . 26 Ora, en tristeceu -se m uito o r e i; todavia, por ca u sa dos seu s ju ram en tos, e por ca u sa dos que esta v a m à m e sa , não lha quis n egar. 27 O rei, pois, en viou logo um soldado d a su a guarda com ord em de trazer a cab eça de João. E ntão e le fo i e o degolou no cá rcere, 28 e trouxe a c a b eça num prato e a deu á jo v em , e a jo v em a d eu à su a m ã e. 29 Quando os se u s discipulos ou viram isso , vieram , tom aram o seu corpo e o p u seram num sepulcro.

Á divulgação da conclamação de Jesus ao arrependimento, através da pregação dos disdpulos, juntamente com os mila­ gres que acompanhavam a sua obra pro­ piciaram fama muito maior ao próprio Jesus. Uma das pessoas que então deu atenção a ele foi o rei Herodes. Esse governante era Herodes Antipas, tetrarca da Galiléia e da Peréia de 4 a.C. a 39 d.C. Ele era filho de Herodes, o Grande (Mat. 2:1), e Maltace. Com Jo­ sefo aprendemos que a sua ambição pelo titulo de “ rei” levou-o, finalmente, ao banimento para a Gália, juntamente com Herodias. As especulações acerca de Jesus, de quem poderia ser ele, eram o assunto por toda parte. Os discípulos pregavam a mensagem de Jesus, mas eles (ainda) não o chamavam de Cristo. Não obstante, 6:14 antecipa a confissão dos discípulos, feita em 8:27-30. Precisamos ter em men­ te que Jesus nâo afirmou abertamente, às multidões que o rodeavam, a sua identi­ dade específica. A conclusão medrosa de Herodes foi que João, o homem que ele condenara à

morte, devia ter voltado à vida. A. Loisy não cria que Herodes fosse tão supers­ ticioso assim, mas que ele provavelmente queria dizer, com essas palavras, que Jesus iria acarretar ao seu reino a mesma espécie de turbação que João havia cau­ sado. João e Jesus eram líderes popula­ res, clamando por mudanças (arrependi­ mento) e falando do reino de Deus (pa­ lavras que por si mesmas podiam estar, ou nâo, fomentando rebelião). Josefo re­ latou que João foi condenado à morte por razões políticas. Publicamente, Anti­ pas certamente deveria ter apresentado essas razões, em vez de apresentar o problema pessoal ao qual Marcos atribui os motivos para que ele mandasse dece­ par a cabeça de João. Herodias estivera casada primeira­ mente com um meio-irmão de Antipas, cujo nome era Filipe. Este Filipe não deve ser confundido com o neto de Hero­ des, o Grande, Filipe II, que naquela época era tetrarca da Ituréia, Traconitis e Gaulonitis. Filipe II mais tarde se casou com Salomé, filha de Herodias. A própria Herodias era neta de Herodes, o Grande; o seu pai era meio-irmão de Antipas e de Filipe I, que havia sido condenado à morte por seu desconfiado pai. 35 A fim de se casar com Herodes (que já era esposa de seu irmão), Herodes Anti­ pas divorciou-se da sua primeira esposa, que era filha de Aretas IV, de Nabatéia. Posteriormente esse ato ocasionou uma guerra, e Herodes foi decisivamente derrotado (36 d.C.). O julgamento da po­ pulaça foi que Deus estava castigando Herodes por seu pecado de m atar João. João o Batista, talvez em resposta às interrogações da plebe, a princípio, havia 35 Um bom e breve relato sobre os relacionam entos da fam üia de H erodes encontra-se no Bible D ictionaij de M . U nger (Chicago; Moody, 1957), p. 470-79. A n arração que Josefo faz d a m orte de João, o Ba­ tista, encontra-se em Antig., XV III, v. Os problem as históricos ainda não estâo totalm ente resolvidos, por causa das limitações dos registros antigos. O relato de M arcos parece ser a explanação popular dos acon­ tecimentos. V q a tam bém o artigo de Sm ith, n a p . 1.

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denunciado o casamento de Herodes co­ mo atentado contra a Lei de Deus (cf. Lev. 18:16; 20:21). A narrativa não parece indevidamente dura para com Herodes. Reflete o seu temor e o seu interesse na religião. Mas Herodes era também sujeito a outras pressões, que se faziam sentir contra ele, quer da parte de sua esposa, quer das opiniões dos que pensavam que ele era fraco, quer das promessas descuidadas que fazia. A irada Herodias gostaria de ter condenado João à morte muito mais cedo. O texto é bem claro: ela lhe guar­ dava rancor e queria matá-lo. Contudo, ela não tinha poderes para ordenar a sua execução. Herodes sabia que João era varão justo e santo, e estava constante­ mente protegendo-o, e até ouvindo-o. Josefo diz que a prisão de João ficava em Maqueros, fortaleza edificada no alto de uma ravina, próxima à margem orien­ tal do M ar Morto. Tem sido sugerido que a detenção perto de Tiberíades estaria mais de acordo com a narrativa que Marcos faz da festa e da execução, bem como os interesses do próprio Herodes em ouvir João (Rawlinson, Johnson, Tay­ lor). As evidências são inadequadas para qualquer conclusão final. Herodes Scava muito perplexo com João (a tradução antiga da IBB segue um texto menos confirmado: “fazia muitas coisas”). O sentido da narrativa de M ar­ cos é de que Herodes gostava de ouvir João, mas, sempre que o fazia, ficava muito perturbado. Herodes não conse­ guia encontrar meio de permanecer o que era e como era, e ao mesmo tempo transformar-se da forma que João deve ter-lhe sugerido. A oportunidade, havia muito, ambi­ cionada por Herodes chegou no dia do aniversário de Herodes, quando o tetrar­ ca deu uma grande festa para toda a aris­ tocracia do seu território (v. 21). O fato da filha de Herodias dançar diante da­ quela assembléia, que devia já ter bebido muito vinho, é evidência da completa corrupção da corte de Herodes. Johnson 386

sugere que Salomé devia ter nascido em cerca de 10 d.C., e que já devia estar casada com o seu tio, Filipe II, que era muito mais velho do que ela. O voto feito por Antipas, à moça (v. 23), deve ter sido pronunciado em voz alta, sob a influência da bebida, e in­ centivado pelos deleites concupiscentes dos convivas. Há boa confirmação tex­ tual para a redação de que ele repetida­ mente expressou a sua promessa a ela (a versão inglesa TEV diz: “ com muitos votos”); em qualquer caso, a palavra juramentos, no versículo 26, está no plu­ ral. A moça passou a promessa à sua mãe, e Herodias, que tinha já tudo o que o dinheiro podia lhe comprar, queria, mais do que tudo, ficar livre do seu inimigo intrometido — João, o Batista. Não era aquela a língua venenosa que fazia com que a consciência do seu marido não parasse de sangrar, e a vida dela conti­ nuasse perturbada? Agora, antes que o seu fraco marido mudasse de idéia, ela queria que João fosse decapitado. Bem pode ter sido, como permite imaginar a narrativa de Marcos, que os horrendos detalhes do pedido tenham sido adicio­ nados por Salomé: “Quero que imediata­ mente (diante desta assembléia?) me dês, num prato a cabeça de João, o Batista” ! Agora Herodes se entristece, por ter feito um juramento assim, mas era mais fácil aceder ao pedido dela do que deson­ rar o seu voto diante de seus hóspedes. Compare a situação de Pilatos em 15:615. Pode ser que Marcos tenha apresen­ tado esta história com tantos detalhes, em parte, devido a este paralelo. O que a moça pediu foi feito, e a festa deve ter sido interrompida, em seu espí­ rito de deboche descuidado, pela cena grotesca. Marcos apenas nos conta que a moça tomou o presente, que havia pedi­ do, e o entregou à sua mãe. E depois ele acrescenta que os discípulos de João vie­ ram e deram ao corpo do seu mestre sepultura condigna. (Acerca dos discípu­


los de João, a essa altura, pouco sabe­ mos cf. 1:5; 2:18; João 3:22-4:3.) 4) A Volta dos Doze e a Alimentação de Cinco Mil (6:30-44) 30 R euniram -se o s ap óstolos co m J e su s e contaram -lhe tudo o que tin h am feito e ens i n ^ o . 31 Ao que ele lh es d isse : Vinde v ó s, à p árte, para u m lu gar d eserto, e d esca n sa i um pouco. P orque era m m u itos o s que v i­ nham e ia m , e não tinliam tem po n em p ara com er. 32 R etiraram -se, p o is, no b arco, p a ­ ra um lu gar deserto, à p a rte. 33 M uitos, porém , os v ira m p artir, e os r e co n h e c er a m ; e para lá correram a p é, de todas a s cid ad es, e ali ch egaram prim eiro do que e le s. 34 E Jesu s, ao d esem b arcar, viu u m a grande m ultidão e com p ad eceu -se d e le s, porque eram com o ovelh as que não tê m p astor; e com eçou a en sinar-lhes m u ita s co isa s. 35 E stando a hora já m uito ad ian tad a, a p ro x i­ m aram -se d ele seu s discípulos e d issera m : O lu gar é d eserto, e a hora já e stá m uito adiantada; 36 despede-os, p ara que vão aos sítios e à s a ld eia s e m redor, e com p rem , para si o que com er. 37 E le , porém , lh es respondeu: D ai-lhes v ó s de co m er. E ntão eles lhe p ergun taram : H avem os d e ir c o m ­ prar duzentos denários de pão e dar-lhes de com er? 38 Ao que e le lh es d isse: Quantos pães tendes? Id e v er. E , tendo-se in form a­ do, responderam : Cinco p ã es e dois p eix es. 39 E ntão lh es ordenou que a todos fizessem reclinar-se, e m grupos, sobre a relv a verd e. 40 E reclin aram -se em grupos de cem e de cinqüenta. 41 E , tom ando os cin co p ã es e os dois p e ix e s, e erguendo o s olh os ao céu , os abençoou; partiu os p ã es e o s en treg a v a a seu s discípulos para lhos serv irem ; tam BSm repartiu o s dois p e ix e s por tod os. 42 E todos com eram e se fartaram . 43 E m s e ­ guida, recolheram doze c e sto s ch eios dos pedaços de pão e de p eix e. 44 Ora, o s que com eram os p ã es eram cinco m il hom ens.

O restante de Marcos 6 é narrado como uma unidade bem monolítica, co­ mo se nem Jesus nem os seus discípulos tivessem tido oportunidade sequer de dormir. Podemos presumir que Mateus, que estava seguindo a ordem de Marcos neste ponto, estava parcialmente correto em presumir que a retirada de Jesus da Galiléia, neste ponto, era para sair do território de Herodes (Mat. 14:13; cf. Luc. 13:31). Porém, a única razão que Marcos dá explicitamente é que Jesus esperava ter um pouco de descanso e um

período de tempo calmo com os doze. De acordo com a ordem do material apre­ sentado por Marcos, Jesus, neste sentido, não teve sucesso, pois a multidão que os seguiu foi de cinco mil homens (6:44), e os cansados discípulos ainda estavam ba­ talhando contra os ventos do lago “pela quarta vigília da noite” (6:48). Marcos começa com a volta dos doze, a quem ele aqui, e só aqui, chama de apóstolos. Durante o tempo de Jesus, esse nome devia significar “missioná­ rios” (Rawlinson), mas os leitores de Marcos facilmente teriam pensado na responsabilidade e autoridade de sua po­ sição, tempos depois, na igreja primitiva. Quando os discípulos relataram tudo o que tinham feito e ensinado, Jesus deve ter desejado a oportunidade de instruílos ainda mais, baseando-se na expe­ riência deles. Eles estavam famintos e cansados; depois de se terem envolvido com as multidões, a quem o seu ensina­ mento devia ter entusiasmado, é bem provável que eles ficassem alegres em ver um lugar deserto. A palavra aqui usada é comumente traduzida como “deserto” , mas esta palavra significa também desa­ bitado. Eles estavam procurando um lu­ gar isolado, onde a erva verde da pri­ mavera devia ser convidativa (cf. v. 39). Lucas relata que eles foram a Betsaida (isto é, Betsaida Júlia), mas faz também presumir um lugar em campo aberto (9:10-12). Como o faziam freqüentemente, eles viajaram de barco. Todavia, o lago não é tão grande para que a sua direção nâo pudesse ser adivinhada pelo povo que estava em terra. Muitos deles reconhe­ ceram a direção, e foram caminhando ao redor do lago, espalhando a notícia da presença de Jesus. Marcos nos conta que para lá correram a pé, de todas as cida­ des, e chegaram antes de Jesus e os doze. Uma pessoa menos digna devia ter ficado exasperada — talvez os discípulos ficas­ sem — mas o registro de Marcos relata a reação de Jesus como sendo de compai­ xão. 387


o povo que havia seguido Jesus não havia pensado no cansaço dele (ou de seus discípulos). A compaixão de Jesus originou-se do fato de ele considerar por que eles haviam vindo. Não eram eles como ovelhas isem pastor? (cf. Mat. 9: 36). Um pastor teria conservado o seu rebanho unido, levado às águas e pasto e protegido (cf. Sal. 23). O povo necessi­ tava de um senso de unidade, carecia de objetivo, de liderança que não o explo­ rasse e que o guiasse devidamente. A alimentação dos cinco mil é o único milagre de Jesus registrado nos quatro Evangelhos (cf. Mat. 14:13-21; Luc. 9: 10-17; João 6:5-13). Exceto em João, onde o discurso pronunciado se baseia no significado deste grande sinal, nenhum ensinamento é registrado, a não ser o que o próprio milagre dá a entender. Mas certamente algo do significado dado por João ao “sinal” fora pretendido por M ar­ cos, para os seus leitores. Quando o dia estava chegando ao fim, os discípulos interromperam o ensino, que já estava se processando por tanto tempo, e sugeriram que a multidão fosse dispersa para os povoados vizinhos, para procurar comida para si. Dai-lhes vós (o pronome é enfático) de comer (v. 37). Que podiam fazer eles? A fim de com­ prar pão para tão grande multidão, eles . precisariam de duzentos denários. O de­ nário era uma moeda romana de prata, que valia cerca de trinta cruzeiros. Esta importância é ilusória para nós, que vi­ vemos uma cultura diferente: um denário representava o salário de um dia de um trabalhador (cf. Mat. 20:2). O grupo de discípulos certamente não possuía tal soma. A discussão referente ao pão necessá­ rio e ao seu custo é nada mais do que o “pano de amostra” para o acontecimento principal que estava para seguir-se. A narrativa de João declara abertamente que Jesus sabia o que deveria fazer (6:6). João também é o único escritor a men­ cionar Filipe e André nominalmente, e a dizer que os cinco pães e os dois peixes 388

foram providenciados por um rapaz da multidão. Os Sinópticos não são explí­ citos neste ponto, mas, sem outra infor­ mação, poderíamos presumir que esse pão e esse peixe era tudo o que havia na provisão dos discípulos (v. 38). Com este pouquinho de comida à sua disposição (os peixes deviam ser peque­ nos, e estar prontos para comer), Jesus instruiu a multidão a reclinar-se, em gru­ pos, sobre a relva verde. A palavra usada designa a posição dos convivas em uma mesa de banquete romano. Eles se divi­ diram em grupos de cinqüenta e cem, de forma que pareciam “canteiros” em meio à relva verdejante. Então, Jesus, tomando o pão e o peixe, e erguendo os olhos ao céu... O verbo aqui denota um ato de oração, especial­ mente de agradecimento. Isso nos faz lembrar a bênção judaica: “ Bendito és tu, ó Senhor, nosso Deus, Rei do mundo, que fazes a terra produzir pão.” Assim, Jesus abençoou os pães e os partiu para a distribuição ao povo, pelos discípulos. Os dois peixes foram semelhantemente divi­ didos por todos. A redação do versículo 41 é de seme­ lhança tão grande com a de 14:22 que Marcos obviamente está pensando no que aconteceu mais tarde, por ocasião da instituição da Ceia do Senhor. E todos comeram e se fartaram. O ver­ bo é o mesmo de Mateus 5:6, mas aqui significa que a fome física da multidão foi satisfeita plenamente. O fato de M ar­ cos (e os outros) não terem entendido essa palavra de alguma forma figurada é en­ fatizado pela quantidade que sobrou. Aqueles cestos eram feitos de vime, e variavam em tamanho e uso; é usada uma palavra diferente para designar ces­ tos, quando os quatro mil foram alimen­ tados (8:8). A natureza e significado deste acon­ tecimento têm sido amplamente deba­ tidos. Fato interessante é que nada se diz da admiração ou êxtase da multidão. Mas este silêncio não significa que a sua


admiração não foi suscitada. Por que, por exemplo, Jesus compeliu os discípu­ los a irem embora, “enquanto ele despe­ dia a multidão” (v. 45)? Mesmo que uma multidão tão grande não tivesse tido oportunidade de observar bem o que acontecera, os discípulos certamente o haviam visto. Não é o relato de João mais razoável, ao dizer que a multidão dese­ java que Jesus aceitasse o papel de rei? (cf. 6:14,15.) Não é provável que os discípulos tenham encorajado essa aclamáção, talvez até liderando a multidão na sua errada interpretação de que tipo de Rei-Messias estava no propósito de Deus? E ainda, o significado da história, para Marcos e seus leitores, é encontrado mais provavelmente no ensinamento en­ trevisto no acontecimento do que no mi­ lagre em si. As explanações desta passagem podem , ser divididas em quatro grupos (cf. M a­ jor, Manson e Wright, p. 90 e s.). O primeiro grupo considera essa his­ tória como puro mito, criado pelos cren­ tes primitivos, talvez imitando a multi­ plicação de alimento feita pelo profeta Eliseu (cf. II Reis 4:42-44). Os contrastes em quantidade de comida e o número de pessoas que comeram iriam, decerto, apontar para o maior poder de Jesus. O segundo grupo considera a história como uma alegoria. Os cinco pães são a Lei (cinco livros), enquanto o peixe re­ presenta as seções da Bíblia hebraica — os Profetas e os Escritos. Mas o povo está faminto, até que Jesus venha com ali­ mento adequado. Outros têm alegorizado a passagem de acordo com o que Major chama de “Evangelho do Socialis­ ta Cristão” : Jesus primeiro alimentou as necessidades morais e espirituais dos ho­ mens, e, então, mais do que satisfez as suas necessidades econômicas. Esses mé­ todos alegóricos freqüentemente estabe­ lecem uma verdade, mas quem pode seriamente crer que Marcos pretendia que a sua narrativa fosse tratada dessa forma? Não obstante, em João, Jesus se compara com o maná celestial (6:51).

O terceiro grupo de intérpretes aceita a narrativa como histórica, mas, por causa da sua opinião acerca das leis da natu­ reza e da encarnação, não crê que o pão e os peixes foram de fato multiplicados. A. Schweitzer e W. Sanday, por exem­ plo, pensam que toda a história é verda­ deira, exceto uma pequena particulari­ dade: que todos tiveram o suficiente para comer! Tem sido sugerido que o milagre está no fato de que Jesus, pela sua ação, induziu todos para compartilharem o que tinham, de forma que houve o su­ ficiente para todos; ou que Jesus, pela força da sua personalidade, baniu as dores físicas da fome das pessoas que participaram, mesmo que tenha sido de bocados pequenos. Finalmente, a interpretação tradicio­ nal da narrativa como milagre é ainda aceita por muitos. Cranfield, por exem­ plo, adota este ponto de vista, embora creia que apenas os discípulos percebe­ ram o que aconteceu. Ele enfatiza a sim­ plicidade do farnel propiciado por Jesus, e indica que a sua frugalidade tem muito a ver com o maná divinamente provido no deserto (Núm. 11:6 e s.), mas não com a festa escatológica descrita por Isaías (25:6). Precisamos lembrar que a Bíblia dos leitores de Marcos era o Velho Testamen­ to e que o grande acontecimento do Velho Testamento era o Êxodo — a li­ bertação do povo de Deus do cativeiro. O povo judaico tradicionalmente espera­ va que o Redentor vindouro providen­ ciasse de novo maná para os seus. Certamente o milagre teria passado a sig­ nificar, para os cristãos, que o Redentor tinha, na verdade, vindo de Deus, e que as promessas de libertação deviam se cumprir. Está de pleno acordo com isto que Marcos também pensou na Ültima Ceia, 36 Cf. C ranfield, p . 222. Passagens de apoio, no Velho Testam ento, são Ex. 16, I Reis 17:8-16, e II Reis 4:42-44. Cf. tam bém II B aruque 29:8, e a Mekilta acerca de Êxodo 16:25 (citada por Cranfield): “ Não achareis (isto é, o m aná) nesta era, m as o achareis na era vindoura.”

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da maneira como foi instituída, e como os cristãos primitivos dela participavam. Os paralelos, em palavras e em aconte­ cimentos, entre 6:40-42 e 14:18-32, estão muito próximos, para se supor diferente­ mente. De acordo com as circunstâncias em que viviam os cristãos aos quais M ar­ cos se dirigia, certamente eles traçariam um paralelo entre Jesus e seus convivas na refeição no deserto e a grata comu­ nhão à mesa que eles celebravam uns com os outros e com o Senhor ressur­ recto, quando observavam a refeição eu­ carística. As catacumbas contêm afres­ cos cristãos bem primitivos, em que pão e peixe são símbolos da Ceia do Senhor. Os mosaicos mostrando peixes, preserva­ dos no lugar tradicional do milagre, são outro exemplo (mas posterior). Em nossa interpretação desta passa­ gem, não nos é requerido que creiamos que os discípulos entenderam o significa­ do do milagre como Marcos esperava que os seus leitores o entendessem. Somos informados especificamente que eles não o entenderam, pois ainda estavam sob a influência inflexível dos seus conceitos religiosos anteriores (v. 52). Os contem­ porâneos de Marcos não eram assim ta­ canhos, e estavam sempre cônscios do que mais tarde aconteceu a Jesus. Os ' doze ainda estavam lutando, não tendo ainda reconhecido Jesus. O relato de Marcos nos oferece tanto mistério como revelação, ao mesmo tempo. 5) Andando Sobre as Àguas (6:45-52) 4S Logo em seg u id a obrigou o s se u s d is c i­ pulos a entrar no barco e p a ssa r a d ian te, para o outro lado, a B etsa id a , enquanto ele despedia a m ultidão. 46 E , tendo-a d e sp e­ dido, foi ao m onte p ara orar. 47 C hegada a tardinha, e sta v a o barco no m eio do m a r, e e le sozinho e m terra. 48 E , vendo-os fa tig a ­ dos a rem ar, porque o vento lh e s e ra co n ­ trário, p ela quarta v ig ília da n o ite, foi ter com e le, andando sobre- o m a r; e queria p assar-lhes a d ia n te ; 49 e le s , p orém , ao vê-lo andando sobre o m ar, p en sa ra m que era um fan tasm a, e gritaram ; 30 porque todos o v i­ ram e se a ssu sta ra m ; m a s e le im ed ia ta ­ m ente falou com e le s e d isse-lh es: Tende

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ânim o; sou eu ; não te m a is. 51 E subiu p ara junto d e le s no barco, e o vento c esso u ; e fica ra m , no se u íntim o, gran d em en te p a s­ m ados; SSt p ois não tin h am com preendido o m ila g re dos p ã es, a n tes o se u coração esta v a endurecido.

As notas geográficas, nesta seção e na precedente, com os paralelos nas outras narrativas, são difíceis de serem seguidas com qualquer precisão. Se os discípulos deviam ir para o outro lado, a Betsaida, e se Lucas 9:10 é levado a sério, então Jesus e os seus discípulos devem ter che­ gado à praia antes do que planejavam, talvez porque viam a multidão seguindoos. Betsaida é, provavelmente, BetsaidaJúlia, a leste do rio (Jordão) que corre para o sul, desembocando no mar da Galiléia. Genezaré (v. 53) era o nome de uma pequena planície, perto de Cafarnaum. Precisavam eles “atravessar” o mar, para chegar lá? João 6:17, em contraste com Marcos 6:45, diz que os discípulos foram, do lugar onde os cinco mil foram alimentados, diretamente para Cafamaum. O arranjo do material usado por M ar­ cos é cuidadoso e proposital, afirmando, aos seus leitores, o significado de Jesus. Em 4:1-41, o Jesus que ensinou os se­ gredos do reino é Senhor da tempestade. Em 6:34, Jesus, o mestre e pastor, ali­ menta o seu povo e anda sobre as águas: não é ele o Senhor do espaço e do tempo e de todos os elementos? Se os discípulos ainda não compreendiam (v. 52), os lei­ tores de Marcos podiam se regozijar por causa da plenitude de fé que lhes sobre­ viera. Como foi sugerido acima, Jesus, apa­ rentemente, achou necessário compelir os seus discípulos a irem embora, de forma que ele pudesse despedir os cinco mil. Contudo, essa inferência é tirada da narrativa de João e das circunstâncias descritas. Marcos relata apenas que Je­ sus despediu a multidão, e que, tendo-a despedido (a multidão ou os discípulos; o grego é ambíguo), foi ao monte para orar.


Estando a hora já muito adiantada: A última parte do versículo 48 é pe­ até alimentar as cinco mil pessoas, já era culiar a Marcos: ele queria passar-lhes tarde (v. 35). (Cf. v. 48.) A quarta vigília adiante. A conclusão natural é que ele o da noite não começava antes das três teria feito se os discípulos não o tivessem horas da manhã. O vento, no mar, devia visto e se assustado. Talvez este era ape­ ter dado muito trabalho aos discípulos. nas o que parecia ser o caso, do ponto de Fatigados é tradução de um verbo cujo vista dos discípulos. É uma passagem significado costumeiro é torturados ou difícil. Moffat traduz: “Ele poderia têatormentados. Desta forma, Bratcher su­ los ultrapassado” , e Swete oferece várias gere: “Eles estavam cansados de rem ar.” sugestões, inclusive: “Ele estava a ponto Quando os discípulos viram Jesus, ele de passar por eles.” estava andando sobre o mar. A raciona­ De todas as narrativas das obra^podelização de que ele estava apenas em água rosas de Jesus, esta è uma das mais d i^ rasa, ou que ele apenas parecia estar an­ fíceis de explicar. Os nossos Evangelhos^ dando sobre as águas, certamente não hão retratam Jesus como um operador de está de acordo com o que Marcos escre­ maravilhas, fazendo milagres sem ne­ veu. E, se removermos este detalhe d a ' nhuma razão significativa ou aparente. história, não resta nenhuma razão para O que ele fazia ajudava às pessoas que a narrativa. estavam necessitadas, ou pelo menos en­ De acordo com Marcos, o aconteci­ sinava algo de modo bem marcante. mento foi mais espantoso do que instruti­ de nosso Mestre, ao vo, para os discípulos. Eles pensaram fazer esse milagre, nao é clàro. Seria que era um fantasma, e gritaram, pois se apenas para aumentar a fé dos 3íscípuassustaram e fícaram grandemente pas­ lo s ^ J — mados. A palavra usada para fantasma é Taiyez a história fosse popular jn tr e os_ bem diferente de “espírito” , como tra­ leitores romanos de Marcos, e eles já a duzem outras versões. estivessem interpretando de modo dema­ Quando o que eles supunham ser uma siadamente figurado. Rawlinsoípsugere aparição falou, os discípulos pensaram que deve ter parecido aos cristãos de que estavam fora de si. Ficaram... pas­ Roma, depois que Pedro, Pauío e outros mados (v. 51) traduz uma forma des­ deles foram martirizados, que até o vento critiva imperfeita do verbo usado pelos lhes era contrário, que eles haviam sido “amigos” de Jesus (3:21). Tanto o que abandonados, com poucas Esperanças, acontecera durante a multiplicação dos l^õníudo, o seu Senhor veio a eles, na pães como esta estranha aparição de hora mais escura da sua noite, e lhes deu Jesus eram contrários a qualquer expli­ encorajamento, mediante a sua presen­ cação racional que eles fossem capazes ça, tão real nos seus corações. de dar. A primeira palavra de Jesus aos seus A dureza de coração atribuída aos discípulos, logõ que lhes falou, foi: Ten­ fariseus hostis, em 3:5, e “ aos de fora” , de ânimò; sou eu. O verbo “ ter ânimo” em 4:10-12, foi, de certa forma, com­ encontra-se também em 10:49 e João partilhada também pelos discípulos (v. 16:33: “Tende bom ânimo.” Em Atos 52). Veja 8:17, e também a reação de 23:11, o verbo “tem bom ânimo” é uma Pedro, depois da sua confissão de Cristo, palavra do Senhor que veio a Paulo em ao ensino de Jesus acerca do Filho do uma noite de tristeza. homem (8:29-31). Neste respeito, a apre­ Sou eu, literalmente “eu sou” , não sentação de Marcos difere de modo m ar­ significa nada mais do que as palavras cante da de Mateus 14:32,33. Também é portuguesas querem dizer. Mas é bem apenas em Mateus que temos a história possível que Marcos pretenBesse que os de Pedro andando sobre as águas. seus leitores identificassem Jesus com o 391


Senhor, o divino EU SOU de Êxodo 3:14. Essa expressão ocorre freqüente­ mente em João, e com tonalidades teo­ lógicas (cf. 6:35; 8:12; 10:7; 11:25; 14:6). Marcos usa esta expressão duas outras vezes (13:6 e 14:62). 6) As Coras em Genezaré (6:53-56) 53 E , term inada a tr a v e ssia , ch eg a ra m à terra em G enezaré, e aU atra ca ra m . 51 Logo que d esem b arcaram , o povo recon h eceu a J esu s; 55 e , correndo e le s por toda aq u ela região, co m eça ram a le v a r nos leito s os que se a ch a v a m en ferm os, p ara onde ouviam dizer que e le esta v a . 56 Onde quer, pois, que entrava, fosse n as a ld eia s, n a s cid ad es ou nos cam p os, a p resen tava m os en ferm os n as praças, e rogavam -lhe que os d eix a sse tocar ao m enos a orla do seu m a n to ; e todos os que a tocavam fica v a m curados.

Este parágrafo apresenta um sumário e uma transição. Como em 317-12, as curas não são descritas em minúcias, mas são semelhantes às já apresentadas. O período de tg^mpj} implícito é indefinido, e Genezaré é apenas o lugar em que Hês chegaram à terra; não localidade em que se demoraram. O povo trazia os seus enfermos a Jesus para onde ouviam dizer que ele estava: ...nas aldeias, nas cidades ou nos campos — uma combinação que não omite nenhuma coleção de habita­ ções (Swete). Nada é mencionado, neste sumário, acerca de endemoninhados ou de ressurreição de mortos. A orla do seu manto era, provavel­ mente, a borla azul usada por todo judeu devoto, do sexo masculino, nas fímbrias do seu manto. Isto é requerido em Nú­ meros 15:37-41 (cf. Deut. 22:12), para fazer o povo de Deus se lembrar da sua responsabilidade de obedecer aos man­ damentos do Senhor. O fato de os judeus terem enfatizado exageradamente esses ‘ símbolos provavelmente resultou na mes­ ma sorte de desobediência expressa em 7:9-13. As curas que foram operadas” quando os doentes tocara^m a sua roupa | devem ter sido semelhantes à da mulher j hemorrágica (5:25-34). -J '' O entusiasmo das multidões galiléias estava em agudo contraste com o espírito 392

hostil dos austeros fariseus e mestres (escribas) a quem elas costumavam ou­ vir. Jesus tinha que quebrar o jugo da tradição dos escribas nos seus próprios discípulos, tarefa essa que não foLlácU (7:17,18). Mesmo depoi^de ser um evan­ gelista de sucesso/^ Pedfôltinha escrúpu­ los de comer com os gentios (Gál. 2:11 es). ^ 7) Lavagem Ritual: Mandamento e Tra­ dição (7:1-13) 1 F o ra m ter com Jesu^Sos ; f a r is e i ^ e alguns dos e sc r ib a slv in d o s de J era sa lém , 2 e rep araràm que algu n s dos^seus díscí'pM o^^pm iam pão co m a s m ã o s im pürãs, isto é, por la v a r. 3 P o is os fa riseu s, e todos os judeus, guardando a tradiçã o dos anciãos, não co m em sem la v a r a s m ã o s c u i­ dadosam ente; 4 e , quando v o ltam do m e r ­ cado, se não se p u ^ ic a r e m , não co m em . *E m u itas outras co isa s há que receb era m para o b servar, com o a la v a g e m d e con os. de jarros e de v a so s de b ron ze. 5 P ergu n taram lhe, pois, os fa riseu s e os escrib a s: P or que não an d am os teu s d iscip u los con for­ m e à trad ição dos a n ciã o s, m a s co m em o pão com a s m ã o s por la v a r? 6 R espondeulhes: B em profetizou Isa ía s a c e r c a de vós, liip ó c n tã s, com o está escritoT " E ste povo honra-m e co m os lá b io s; o seu coração, porém , e stá lon ge de m im ; 7 m a s e m vão m e ad oram , ensinando doutrinas que são p receitos de hom ens. 8 Vós d eix a is o m an d am en to de D eus, e vos^ j> e]^ is à t r a i ç ã o dos homensT 9 D i s ­ se-lhes ainda: B em sa b eis rejeita r b m a n d a ­ m ento de D eu s, para guardardes a v o ssa tradição. 10 P o is M oisés d isse: Honra a teu p a i e a tu a m ã e ; e : Quem m a ld isser ao pai ou à m ã e , certa m en te m orrerá. 11 M as v ó s diz»is: Se u m h om em d isser a seu pai ou à su a m ã e : Aquilo que p od erias ap ro­ veitar de m im é Corbã, isto é , oferta ao Senhor, IZ não m a is lh e p erm itis fazer co isa algu m a por seu pai ou por su a m ã e , 13 in ­ validando, a ssim , a p a la v ra de D eu s p ela v o ssa trad ição que v ó s tra n sm itistes; ta m ­ bém m u ita s outras co isa s sem elh a n tes f a ­ zeis.

Marcos não apresenta uma conexão clara entre esta seção e a precedente. Ele começa com a simples aditiva e, que a Versão Revista e Atualizada da SBB traduz como ora, e a Versão IBB sim­


plesmente ignora. Esta seção faz uma descrição completa da situação precária de Jesus, em seu ministério. Rejeitado em Nazaré (6:1-6), relacionado, pelos líderes políticos, com João, a quem eles haviam condenado à morte (6:14-29), e ainda suportando a fé raquítica e a men­ te insensível dos seus discípulos (6:4552), ele agora se confronta com a opo­ sição aberta dos líderes religiosos judeus.

1-16; o que ali se aplicava aos sacerdo­ tes, veio a aplicar-se a todo o povo santo. A palavra traduzida como impuras significa comum, ou, no contexto religio­ so judaico, o oposto de santo, isto é, profano ou impuro, no que concerne à adoração de Deus. Os versículos 3 e 4 são explanações para os gentios, embora não saibamos se eles foram compostos originalmente por Marcos ou se já estavam presentes na Os fariseus e escribas eram os oponen­ fonte que ele usou. No versículo 3, a tes de Jesus, na série de controvérsias palavra que significa “com os punhos” é registradas em 2:l-3:6, e muitas das suas omitida da tradução. Não sabemos se ela atitudes já foram notadas. A posição bá­ significa que eles se esfregavam bem, sica deles, com respeito à Lei escrita, era que ela havia sido divinamente dada a ■ ou se purificavam lavando-se até os pu­ nhos. Talvez o significado era que uma Moisés; mas essa também era a sua mancheia de água era o suficiente. Há opinião acerca da tradição dos anciãos outras redações sugeridas, algumas anti­ (v. 3). A Mislinali ensina que Moisés gas, mas nenhuma com testemunho su­ recebeu a tradição no Sinai, e que ela foi ficiente. No versículo 4, a palavra puri­ transmitida, sem ser desfigurada, pelos ficarem é citada em antigos manuscritos profetas aos “ homens da Grande Sinago­ como “batizarem” , e a palavra usada ga” , e assim por diante, através de mes­ para a lavagem de copos e outros uten­ tres ou anciãos autorizados (Aboth 1:1). sílios é, de fato, a usada para batizar ou A tradição mandava que os escribas “fi­ mergulhar. zessem uma cerca ao redor da lei” , e A pergunta dos fariseus, no versículo assim a tradição cresceu, incluindo ins­ 5, é respondida em três partes. As duas truções específicas acerca de quase todas primeiras são dadas diretamente aos as ações humanas. A premissa dos es­ hostis líderes judaicos (v. 6-8 e 9-13), e a cribas, e o seu procedimento, dessa for­ terceira ao povo, com explicação adicio­ ma, colocam as tradições orais quase em nal para os seus discípulos (v. 14-23). pé de igualdade com a própria Lei. Por que os discipulos de Jesus não Sobretudo, este tratamento deu à Lei um andam conforme à tradição dos anciãos? aspecto legalista, de forma que começou Porque, responde Jesus, a observância a ser enfatizada a “letra” , e não o “espí­ das tradições era uma forma de louvor rito” dela. externo, a Deus, sem nenhuma dedica­ Os discípulos foram pegos em uma ção do coração a uma pura adoração. infração da lei oral: estavam comendo As tradições, na verdade, não são de com as mãos impuras. O que os fariseus Deus, mas são preceitos de homens e são tinham em mente não eram métodos inúteis, em vão, no que concerne à puri­ modernos sanitários. Todos os judeus ficação de um homem diante de Deus. (isto é, os rigorosos observadores das Esta é a substância da primeira respos­ tradições) lavavam as mãos quando che­ ta de Jesus, mas a sua agudeza se encon­ gavam do mercado, porque podiam ter tra na maneira como ele arremessa Con­ estado em contato com pessoas ou coi­ tra os seus inimigos as palavras do profe­ sas ritualmente impuras. Nessas circuns­ ta e depois acusa os acusadores de aban­ tâncias, eles eram obrigados a lavar de si donarem os próprios mandamentos de o que era profano, e se purificarem. A Deus. No versículo 6, o advérbio bem tradição oral estava ligada com Lev. 22: poderia ser assim traduzido: “Como Isaí393


as falou bem de vocês, hipócritas!” Que ironia! (A primeira palavra de Jesus no versículo 9 é idêntica.) Será que eles estavam cônscios de sua hipocrisia? De qualquer forma, os escri­ bas estavam convidando os homens a manter um relacionamento apropriado com Deus, mediante regras externas. Portanto, a sua orientação era contrária à realidade — nenhum homem vai a Deus por esses meios — e os seus atos eram realmente o que Isaías 29:13 des­ creve. A citação é muito parecida com a redação da Bíblia Grega (LXX), sendo que a Hebraica (cf. Isaías) é algo dife­ rente. Ainda assim, como o indicam A. S. Peake, Taylor e outros, a mesma condenação pode ser oriunda do texto hebraico: os homens haviam aprendido a sua religião devido à rotina, e não tinham interesse inteligente na sua fé. Para guardardes a vossa tradição; se o mandamento de Deus é rejeitado tendo em vista esse objetivo, então é óbvio que a tradição é meramente humana, e opos­ ta aos propósitos de Deus. Jesus cita um exemplo, embora adicione que há muitas outras coisas semelhantes que eles fa­ zem. A lei de Moisés é citada em relação, à responsabilidade de alguém para com seus pais, de honrá-los e de não falar mal deles. (Cf. Êx. 20:12, Deut. 5:16, e Ex. 21:17; Lev. 20:9; Marcos de novo seguiu a LXX.) Em seguida, Jesus indica a regra tradicional de Corbã. A própria palavra significa, como diz Marcos, dádiva, mas a nossa versão corretamente entendeu significar oferta ao Senhor, e particular­ mente uma oferta feita no Templo. De acordo com Josefo (Contra Apion, I, 22), Corbã era uma forma de juramento ju ­ daico. O próprio Jesus citou a tradição de que um voto que era feito “pela oferta que está sobre o altar” era especialmente compulsório (Mat. 23:18). Não era Deus mais importante do que as obrigações fi­ liais? Não temos condições para reconstruir precisamente as situações com seguran­ 394

ça, mas o resultado geral é claro. Pode ser que Jesus se estivesse referindo a um incidente particular e bem conhecido. Aparentemente, um homem podia exi­ mir-se de sustentar os seus pais (e de obedecer às instruções de Deus) jurando fazer uma oferta para o tesouro do Tem­ plo. Contudo, os arranjos para isso po­ diam incluir a cláusula de que a renda da oferta, ou o uso do dinheiro em si, per­ manecesse com o doador. Desta forma, ele seria capaz de usar o seu dinheiro para si mesmo, e de fugir às obrigações que tinha para com seus pais, e, ao mesmo tempo, seria amplamente louva­ do por sua generosidade e por sua pie­ dade! Isso podia até tornar-se uma ques­ tão de pressão religiosa, para que os seus pais renunciassem aos seus direitos e se juntassem ao louvor. Jesus percebera, indubitavelmente, que a contaminação religiosa é moral e espiritual, e que o cumprimento da tra­ dição dos escribas nunca poderia cum­ prir a verdadeira justiça (Mat. 5:20; cf. também Paulo, em I Cor. 13:1-3). Tra­ dições como a de Corbã permitiam que um homem erigisse uma parede religiosa contra a sua responsabilidade moral. Eles invalidavam, assim, a palavra de Deus. Algumas das regulamentações dadas na literatura rabínica sugerem que as tradições judaicas eram mais severas nos dias de Jesus do que um século, ou mais, depois. C. G. Montefiore sustenta, com alguma razão, que os rabis da Mishnah e do Talmude estão do lado de Jesus, em relação a Corbã, e que eles seguem esse mesmo argumento. É possível que o le­ gado feito por Jesus tivesse causado al­ gum impacto substancial sobre a lideran­ ça religiosa judaica que se lhe opunha? È bom lembrar que a vitalidade espiri­ tual da Lei nem sempre estava perdida, no que tangia a todo mestre judaico. A linguagem forte, usada nesta seção e na seguinte, bem podem expressar não apenas a situação que Jesus estava en­ frentando, mas também o contínuo atrito


entre igreja e sinagoga, nos dias de M ar­ um homem de Deus. Só o que vem de cos. A videira da tradição judaica pode dentro do homem pode marcá-lo como contaminado, e impedir a sua verdadeira ter sido cortada pelas raízes, devido à adoração. ênfase, dada por Jesus, às coisas interio­ Rawlinson pensa que Jesus queria di­ res e espirituais, mas longo tempo se zer apenas que “as poluições interiores passou antes de seus tentáculos endureci­ são mais sérias que as externas” . Ele dos serem arrancados do povo, que dizia indica que a mente hebraica não pensa­ ■ser os verdadeiros herdeiros de Israel. va em termos de graus comparativos, Questões acerca de impureza e incircunmas apenas em termos de branco ou cisão e observância de dias especiais não preto, e nunca cinza. Conseqüentemen­ desapareceram automaticamente, como te, pela sua ênfase desordenada em evitar o revelam Atos 15 e 22, Gálatas 2 e 5 e Colossenses 3 (cf. também Romanos 14:5 poluições cerimoniais vindas do exterior, os escribas corriam o perigo de distor­ e s.). É totalmente provável que parte do material de cada um dos Evangelhos cer o seu próprio julgamento moral e dar tenha sido preservado e amplamente usa- . atenção pequena demais às contamina­ ções do pecado. do, exatamente por causa deste proble­ ma. O que Rawlinson diz é bem verdade, e está de acordo com as palavras de Jesus, 8 ) A Natureza da Verdadeira Contami­ por exemplo, em Mateus 5:17-20 e 23:23 nação (7:14-23) e s. Porém, a sua interpretação é certa­ mente inadequada quanto às palavras de 14 E , cham ando a si outra v ez a m ultidão, Jesus aos seus discípulos no versículo d isse-lhes: O uvi-m e, v ó s todos, e entendei. 15 N ada h á fora do hom em que, entrando 18 e s.: tudo o que de fora entra no nele, p ossa con tam in á-lo; m a s o que sa i do homem não o pode contaminar, visto hom em , isso é que o con tam in a. 16 (Se a l­ esta ser uma declaração absoluta, e cer­ guém te m ouvidos para ouvir, o u ça .) 17 Detamente Marcos a entende de maneira ]M >is, quando deixou a m ultidão e entrou e m ca sa , os se u s discíp ulos o in terrogaram absoluta. A sua conclusão parentética, a cerca d a parábola. 18 R espondeu-lhes e le : no versículo 19, torna esse ponto bem A ssim tam b ém v ó s e sta is se m entender? claro. N ão com preen deis que tudo o que de fora Note como Marcos continua a sua entra no hom em não o pode contam inar, ênfase na lentidão dos discípulos em per­ 19 porque não lh e en tra no coração, m a s no ventre, e é lançado fora? A ssim d e c la ­ ceber em profundidade a natureza e o rou puros todos os alim en to s. 20 E p r o sse ­ ensino de Jesus. O uso da palavra pará­ guiu: O que sa i do h om em , isso é que o bola, aqui, é quase equivalente a “ensi­ contam ina. 21 P o is é do interior, do coração namento figurado” ou “dito enigmático” dos h om ens, que p rocedem os m a u s p e n sa ­ e (cf., acima, comentário a 4:2, 10-12). m entos, a s p rostitu ições, os fu rtos, os h o ­ m icídios, os ad u ltérios, 22 a cob iça, a s m alO ensino de Jesus que se segue é apre­ dades, o dolo, a lib ertin agem , a in v eja , a sentado de maneira simples e clara, e b la sfêm ia , a soberba, a in sen sa tez; 23 tod as deve ter sido bem útil na instrução de esta s m á s co isa s p roced em de dentro e co n ­ novos crentes. Expande e aplica o princí­ tam inam o h om em . pio exarado no versículo 15. Nada há fora do homem que, entrando A redação do versículo 19 parece tão nele, possa contaminá-lo, seja contato abrupta, que a nossa versão temperou-a com pessoas más ou coisas profanas. O para os leitores modernos. Mas Jesus e os verbo contaminar é, em sua raiz, a mes­ seus contemporâneos podiam falar dos ma palavra traduzida como o adjetivo processos naturais sem se escandalizar. O impuras no versículo 2, e o seu significa­ texto grego diz que a comida ingerida do é o mesmo. Nada que provenha de não tem nada a ver com o coração (isto é, fonte externa pode por si mesmo separar a mente e o pensamento) de um homem; 395


passa meramente através do seu ventre e é lançado fora. Portanto, conclui Mar­ cos, temos a autoridade de Jesus para dizer que a comida que ingerimos ou rejeitamos nem nos recomenda nem nos desqualifica diante de Deus. O que, então, indica que um homem está contaminado? Apenas o que sai do liomem — o que ele é, na sua mente, no seu íntimo, no seu coração. Nenhum mal do mundo, real ou suposto, levanta um muro entre uma pessoa e Deus, a não ser o mal que está dentro da própria pessoa (v. 23). Pensamentos (v. 21) é tradução de uma palavra que inclui tanto o que se pensa como o que se planeja fazer. Maus pensamentos, portanto, abrange toda a lista de doze pecados que se segue. Brat­ cher divide essa lista em duas partes. Os primeiros seis pecados estão na forma plural, no original, e se referem a “atos” malignos que têm sua fonte no intimo do homem. Os outros seis estão no singular, e se referem a vícios alimentados pelo espírito do próprio homem. Mas alguns desses termos parecem referir-se tanto a atos como a atitudes. Não há nenhuma lista comparável de pecados apresentada em qualquer um ■ dos Evangelhos, exceto a lista resumida apresentada em Mateus 15:19, que derivou-se de Marcos. Somente três desses termos são usados em outras passagens, por Marcos (liomicídios, 15:7; dolo, 14: 1; e blasfêmia em 3:28). Precisa-se pro­ curar passagens como I Pedro 4:3; Ro­ manos 1:29-31; Gálatas 5:19-21 para achar algo comparável em o Novo Testa­ mento. No entanto, a lista pode não ser de origem paulina (ou da época cristã'' gentílica), como diz Taylor, pois onze dos termos são encontrados na LXX, e existe uma lista semelhante no Manual dos Discípulos (IQS 4:9:11). Fornicação deve ser um termo mais inclusivo do que adultério, e pode referirse a toda sorte de vícios sexuais. Cobiça denota avareza ou ganância, e provavel­ mente aqui significa “ ato de cupidez” ou 396

até “ ações de concupiscência” (Cran­ field). Essa palavra é freqüentemente associada a violações sexuais. Moffatt a traduz como concupiscência, aqui. Maldades é um termo genérico que designa toda sorte de atos malignos. Dolo, traduzido “à traição” em 14:1, é sinônimo de astúcia ou traição. Liberti­ nagem é devassidão — algo chocante para a decência pública, aberto e vergo­ nhoso, em sua malignidade. Inveja é tra­ dução de duas palavras que significam, literalmente, olho mau. Mas a idéia não é de alguém que exerça “mau olhado” sobre outra pessoa. Veja Mateus 20:15, onde “É mau o teu •olho porque eu sou bom?” significa: “Você tem inveja da minha generosidade?” (aqui a palavra foi traduzida literalmente). É o espírito ambicioso, avarento, que é condenado. Blasfêmia é a palavra original (3:28), embora não esteja claro se aqui se refere primeiramente à atitude da pessoa para com Deus ou se para com o homem. Soberba (encontra-se somente aqui, em todo o NT, embora o adjetivo esteja pre­ sente em Lucas 1:51, Rom. 1:30, II Tim. 3:2, Tiago 4:6 e I Ped. 5:5) combina as idéias de arrogância insolente ou autocentralização. Insensatez é a alienação do homem que rejeita qualquer reverên­ cia a Deus e ao juízo moral razoável (veja a descrição do insensato em Salmos 14). No versículo 1-23 é óbvio que Jesus desafiou a autoridade da lei oral. O que não deve ser menosprezado é o fato de que ele também desafiou a letra da Lei escrita. Os preceitos referentes à alimen­ tação não eram meramente orais, e os primeiros cristãos gentios entenderam claramente que Jesus os havia libertado desses regulamentos (v. 19). Deve-se per­ ceber que Jesus declarou ser autoridade sobre a própria Lei. Da mesma forma como é Senhor do sábado (2:28), ele também é Senhor de todas as leis referen­ tes à impureza. Jesus enfatizou a moralidade de um espírito humano livre, submisso aos pro­ pósitos de Deus. Ele não rebaixa os


ensinamentos acerca de moral, como o indica o catálogo de pecados que estamos estudando. Da mesma forma, ele nunca trata superficialmente a Lei. Pelo contrá­ rio, como o analisou Cranfield, Jesus fala como alguém que sabe ser, ele mesmo, “o fim da lei” (Rom. 10:4), aquele em quem as Escrituras se cumprem. As implicações dos ensinos de Jesus não foram plenamente compreendidas pelos discípulos, de imediato, como o confirma a posterior experiência de Pe­ dro (At. 10). Mas isso também faz parte do mistério de Jesus — quem ele era e é, e o que significa, para o homem, o reino de Deus, que se tornou próximo na pes­ soa dele. 9) A Cura da Menina Gentia (7:24-30) 24 L evantando-se d ali, foi p ara a s regiões de Tiro e Sidom . E , entrando num a c a sa , não queria que ninguém o so u b esse, m a s não pôde ocultar-se; 35 porque logo, certa m ulher, cu ja filh a esta v a p o sse ssa de um espírito im undo, ouvindo fa la r d ele, v eio e prostrou-se-Ihe a o s p és; 26 (ora, a m ulher era g reg a , de origem siro -fen ícia ) e ro g a ­ va-lhe que ex p u lsa sse d e su a filh a o d em ô ­ nio. 2 7 B espondeu-lhe J esu s: D e ix a que p r i­ m eiro se fartem os filh o s; porque não é bom tom ar o pão dos filhos e lan çá-lo aos c a ­ chorrinhos. 28 E la , porém , rep licou , e d is s e : Sim , Senhor; m a s ta m b ém os cachorrinhos debaixo da m e sa com em d a s m ig a lh a s dos filhos. 29 E ntão e le lhe d isse: P or e s s a p a la ­ vra, v a i; o dem ônio já sa iu de tu a filha. 30 E , voltando e la para c a sa , achou a m e n i­ na deitada sobre a ca m a , e que o dem ônio já h a v ia saído.

Jesus foi para as regiões de Tiro e Sidom, isto é, para o norte, longe da Galiléia. Como o indica Rawlinson, do texto, não temos razões para presumir que Jesus fugiu da Galiléia, para não ser preso, embora não haja dúvidas de que os seus inimigos bem que gostariam de tê-lo feito. Talvez ele procurasse um tem­ po e um lugar de mais intimidade com os seus discípulos; ou, talvez, estivesse ape­ nas buscando uma oportunidade de al­ gum descanso das pressões estrénuas e fatigantes das multidões, das perguntas

hostis e dos que procuravam ajuda (cf. 6:31). Marcos apenas diz que Jesus teria preferido ficar anônimo, mas a sua fama se espalhara tanto, que ele não pôde ocultar-se. Não sabemos por quanto tempo ele jornadeou, tampouco podemos ter certe­ za de que Marcos colocou esses acon­ tecimentos em ordem cronológica. Quan­ do consideramos o contexto da história, em Marcos, no entanto, notamos facil­ mente a mudança da missão de nosso Senhor a judeus para um ministério a não-judeus. Verificamos a alimentação de cinco mil pessoas, um ministério de cura na Galiléia e a pergunta acerca de contaminação. Agora se nos apresentam duas histórias de curas entre gentios, e a alimentação de quatro mil, aparente­ mente em território estranho aos judeus. Outro elo que liga esta seção com a controvérsia precedente não deve ser me­ nosprezado, pois deveria ser especial­ mente óbvio para o auditório de Marcos. A história acerca da contaminação apa­ rentemente relaciona-se estritamente com a tradição e a lei dos judeus. Con­ tudo, todos os gentios sabiam que, de acordo com a mesma tradição judaica, o contato com os gentios podia ser tão po­ luente como qualquer outra “ impureza” que alguém pudesse apanhar no merca­ do. Note-se também os paralelos com a experiência de Pedro registrada em Atos 10: primeiro, a consciência de que o ali­ mento não determina a condição do ho­ mem para com Deus; em seguida, a com­ preensão de que Deus não demonstra parcialidade devido a antecedentes ra­ ciais ou culturais. Dentre as pessoas mais desesperadas por ajuda, e das quais Jesus não pôde ocultar-se, estava uma mãe ciya filha (v. 25) estava possessa de um espirito imundo. A natureza da aflição dessa criança não é absolutamente discutida: a ênfase de Marcos é colocada inteiramen­ te sobre quem era a mulher, e na reação de Jesus às suas importunadoras palavras de humildade e fé. Ela era de origem 397


siro-fenícia, isto é, síria, e não cartagi­ nesa. Ela é chamada de grega, que aqui pode referir-se à sua religião, ou à lin­ guagem que costumava usar. A passagem paralela, em Mateus (15: 21-28), chama-a de “cananéia” . Embora isso não seja uma contradição de termos, os relatos variam tão grandemente que é razoável supor-se que Mateus recebera a história de outra fonte, em adição a Marcos. Mateus está seguindo a ordem de Marcos, nesta seção, mas dá muito mais ênfase à relutância de Jesus (se essa é a palavra correta) em ajudar a mulher, e também à reação dos discípulos. Precisamos lembrar que a história con­ tada por Marcos foi escrita primeiramen­ te para cristãos gentios, que tinham mui­ to em comum com essa mulher. Era ób­ vio, para eles, o fato de que Jesus tra­ balhou primordialmente entre judeus; só nesta história Marcos narra uma cura operada por Jesus em uma pessoa cla­ ramente designada como gentia. (Cf. Mat. 8:5-13 e Lucas 7:1-10; Lucas não repete esta história seguindo Marcos, talvez por causa da aparente dureza de Jesus ao falar com a mulher gentia.) Marcos, aparentemente, confia que os seus leitores aceitarão as posições que pensamos ser a joanina e a paulina. O evangelho “é o poder de Deus para sal­ vação de todo aquele que crê; primeiro do judeu, e também do grego” (Rom. 1:16; cf. João 4:22 e s.). Deixa que primeiro se fartem os fílhos. A palavra primeiro corresponde à decla­ ração de Paulo citada acima, porque a designação fillios, aqui, deve referir-se ao povo judeu. Esta designação é comum no Velho Testamento (cf. Êx. 4:22; Deut. 14:1; Os. 1:10; Is. 1:2; 63:8) e na literatura judaica em geral, inclusive nos apócrifos (Sabedoria de Salomão 16:21) e na Mislmah (Aboth 3:20: Querido é Is­ rael, que é chamado os filhos de Deus”). Se filhos se refere, como deve referirse, a Israel, então cachorrinhos deve re­ ferir-se aos gentios. Geralmente é conhe­ 398

cido, de eruditos judeus e gentios, em geral, que o povo judeu ocasionalmente se referia aos gentios como “cães” . De fato, Jesus usa o diminutivo cachorri­ nhos, e dessa forma atenua a sua dureza. Johnson aponta para a evidência de que os diminutivos eram usados livremente no grego daquele período, e acha que por isso a figura permanece dura e severa. Contudo, os cães do quintal ou da rua não teriam sido convidados à mesa dos filhos. A réplica da mulher parece dar a entender que ela entende que os cachor­ rinhos são familiares, de estimação. A resposta da mulher — até os ca­ chorrinhos comem das migalhas — é compreensiva, até engenhosa. Mostra que ela não ficara ofendida com a res­ posta de Jesus. Da mesma forma, os gentios não devem ficar ofendidos pelo fato de Deus, em seus caminhos miste­ riosos, ter preferido ser conhecido na história através de uma nação em par­ ticular. Nem devem eles ficar ressentidos pelo fato de que Jesus viera dentre os judeus, e ministrara primordialmente a eles. Porque, do mesmo modo, é verdade que desta forma também outros povos se tomaram herdeiros da ajuda de Deus. Como diz Cranfield, a mulher simples­ mente apelou para a bondade de Jesus, de maneira incondicional. O seu Sim, Senhor pode ter significado apenas uma forma de tratamento cerimonioso, mas ■para o povo cristão significa mais: ex­ pressa a confissão cristã básica de Jesus como Senhor. No curso dos esforços dos modernos estudiosos, para recuperar o Jesus histó­ rico (em contraposição ao Cristo da fé), tem sido sugerido que a resposta da mulher a Jesus foi para ele uma revelação do Pai, de que a sua missão era mais ampla do que apenas aos judeus (assim Bacon; cf. Johnson, p. 137). Mas não há evidência de que o curso do ministério de Jesus foi de fato alterado, para trabalhar diretamente entre outras nações. Ele continuou a viver e a trabalhar princi­ palmente entre o povo de Israel.


Por essa palavra: Jesus reconheceu e deu as boas-vindas à fé daquela mulher, e, portanto (por significa por causa de), afirmou a ela que a sua filha havia sido liberta da sua aflição demoníaca. Taylor aceita essa redação como provavelmente significando que Marcos cria que uma cura foi operada por Jesus, mas acha que essas palavras devem referir-se apenas a uma “percepção telepática” do que esta­ va acontecendo à distância. Todavia, a maneira como Marcos compreendia o poder de Jesus para controlar forças de­ moníacas é bem consentânea com a in­ terpretação natural deste acontecimento como milagre. 10) A Cura do Surdo-Mudo (7:31-37) 31 Tendo J esu s partido d a s reg iõ es de Tiro, foi por Sidom a té o m a r da G aliléia, passando p e la s reg iõ es de D ecá p o lis. 32 E trouxeram-ltae um surdo, que fa la v a d ificil­ m ente; e rogaram -lhe que p u sesse a m ão sobre e le . 33 J esu s, p ois, tirou-o de en tre a m ultidão, à p arte, m eteu -lh e o s dedos nos ouvidos e , cuspindo, tocou-lhe n a língua; 34 e , erguendo o s olhos ao cé u , suspirou e d isse: E fa tá , isto é , A bre-te. 35 E abriram -se-lhe os ouvidos, a p risão d a lín gu a se desfez, e fa la v a p erfeita m en te. 36 E ntão lhes ordenou J esu s que a nin gu ém o d is se s­ sem : m a s, quanto m a is lho proibia, tanto m ais o d ivu lgavam . 37 E se m a ra v ilh a v a m sobrem aneira, dizendo: Tudo te m feito bem ; faz até os surdos ouvir e os m udos falar.

Então Jesus (o grego começa com “e depois”) partiu do território de Tiro, e foi por Sidom até o mar da Galiléia. Marcos diz que ele foi passando pelas regiões de Decápolis, ou que “entrou” nelas (Arndt e Gingrich), que abrangem o leste, até o sul da Galiléia e do seu lago (cf. 5:1,20). Decápolis era, como notamos anterior­ mente, um território predominantemente não-judaico; mas não conhecemos exatamente as suas fronteiras. Na verda­ de, Marcos não é claro a respeito de Jesus ter permanecido ou não em território gentilico, embora dê a impressão de que sim. Sidom fica a trinta quilômetros ao norte de Tiro, e a descrição dá a entender uma jornada circular (cf. Mat. 15:29).

Foi trazido a Jesus um homem que era surdo e falava dificilmente. É interes­ sante notar como freqüentemente tercei­ ros trazem pessoas necessitadas a Jesus. A frase falava difícilmente é tradução de uma única palavra grega, bem rara, pois ocorre apenas uma vez em o Novo Tes­ tamento. Ela se encontra no Velho Testa­ mento, apenas em Isaías 35:6 (LXX), onde há uma promessa da ajuda vindou­ ra de Deus para o seu povo: “Então o coxo saltará como o cervo, e a língua do mudo cantará de alegria.” Talvez se pre­ tenda uma alusão a essa passagem. De qualquer forma, a cura é um sinal da vitória de Deus sobre o outro inimigo da realização pessoal do homem, e outra evidência de que o reino de Deus invadiu este mundo confuso na pessoa de Jesus (cf. Is. 29:18 e Sabedoria de Salomão 10:21).

Jesus curou esse homem à parte, em­ bora aparentemente os discípulos e os amigos do homem estivessem presentes (tirou-o de entre a multidão, e lhes or­ denou Jesus que a ninguém o dissessem). Jesus estava ainda tentando manter uma aparência de privacidade, e ainda estava cônscio de que a natureza do seu mes­ sianismo não havia sido aceita, e nem se tomado clara. Os circunstantes se mara­ vilhavam sobremaneira, e o louvavam sem reservas. A triste verdade era que eles não conheciam aquele a quem esta­ vam louvando. Na cura propriamente dita, Jesus usa um método que arrebata a nossa aten­ ção. Não é o fato de colocar os dedos nos ouvidos do homem, e de tocar a língua dele com a sua saliva tão eloqüente como uma palavra tão tangível como uma con­ clamação para a fé que ele podia ofere­ cer? Ele suspirou, ou gemeu: esta parece ser uma descrição da sua oração, pois ele conhece bem a miserável condição do ho­ mem. Arndt e Gingrich acham que o verbo usado aqui é “uma expressão de poder pronto para agir” . A única palavra de Jesus foi em aramaico, e Marcos a traduz como Abre-te. 399


Os paralelos entre esta narrativa e outros antigos relatos de curas têm sido notados com freqüência. Johnson ressal­ ta que o uso de saliva, o gemido, ou suspiro, de quem cura, e uma palavra misteriosa, na linguagem original do curador, têm contrapartida em outras histórias antigas de milagres (cf. João 9:6 e s.). Contudo, o suspiro de Jesus é dado em conjunção com o fato de ele erguer os olhos ao céu, isto é, em oração. Como o apresenta Taylor, “só o amor pelas coisas bizarras” descobriria, nesse suspiro de Jesus, qualquer coisa alheia à sua pro­ funda compaixão pela vítima. No versículo 37, Jesus é louvado por fazer bem todas as coisas: faz até os surdos ouvo- e os mudos falar. O fraseado torna mais provável a compreensão deste incidente como alusão ao cumprimento da prometida ajuda da parte de Deus. Além disso, aponta rigorosamente para a mente fechada dos discípulos, notada outra vez em 8:14-21. Pode-se também notar os paralelos entre as curas dos sen­ tidos — o ouvido com a voz, e os olhos (8:22-26) — e a abertura das mentes dos discípulos para entenderem quem é Jesus (8:29). 11) A Alimentação de Quatro Mil (8: 1- 10) 1 N aq u eles d ias, havendo de novo u m a grande m u ltid ão, e não tendo o que com er, cham ou J esu s os d iscip u los e d isse-lh es: 2 Tenho com paixão da m ultidão, porque já faz três dias que e le s estã o co m ig o , e não têm o que com er. 3 Se eu os m an d ar e m jeju m p ara su a s c a sa s, d esfa lecerã o no c a ­ m inho; e algun s d eles v iera m de lon ge. 4 E seus discipulos lhe resp o n d era m : Donde p o ­ derá alg u ém satisfazê-lo s de pão aqui no deserto? 3 P erguntou-lhes J e su s: Quantos pã«s tend es? K esponderam : S ete. 6 Logo m andou ao povo que se se n ta sse no chão; e , tom ando os sete p ães e havendo dado g r a ­ ças, partiu-os e os en treg a v a a seu s d iscíp u ­ los para que os d istrib u íssem : e e le s os distribuíram p ela m u ltid ão. 7 T inham ta m ­ bém a l g ^ s p eixin hos, os qu ais e le a b en ­ çoou, e m andou que e ste s ta m b ém fo ssem distribuídos. 8 C om eram , p ois, e se fa r ta ­ ram ; e dos p ed aços que so b eja v a m le v a n ­ taram se te a lco fa s. 9 Ora, era m c e rc a de

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quatro m il h om en s. E J esu s o s despediu. 10 E , entrando logo no barco com os se u s discípulos, fo i p ara a s reg iõ e s de D alm anuta.

Naqueles dias (cf. 1:9) é uma nota cro­ nológica bem indefinida; da mesma for­ ma, a grande multidão também não é especificamente identificada, e o lugar (no deserto) é igualmente impreciso. As minúcias desta narrativa são em menor número e menos vividas do que no caso em que cinco mil haviam sido alimenta­ dos ( “lugar deserto” , “grupos de cem e de cinqüenta” , “grupos” ou canteiros, etc.). Marcos não nos diz que a multidão era gentia, embora aparentemente quei­ ra dar essa impressão; a história está em um “contexto gentilico” , começando em 7:24. As diferenças entre as histórias de 8:110 e 6:32-44 devem ser notadas. Entre elas, na alimentação das cinco mil pes­ soas, Jesus tivera compaixão, mas por­ que as pessoas eram como ovelhas sem pastor, e não simplesmente porque não tinham nada para comer. Todos os even­ tos no caso dos cinco mil ocorreram em um único dia; aqui, a multidão estivera seguindo a Jesus fazia três dias. Em vez de cinco pães e dois peixinhos, temos sete pães e alguns peixinhos (igualmente prontos para ser comidos). Antes, houve­ ra doze cestos e sobras, agora havia sete, e a palavra não é cestos, é “alcofas” . (Esta palavra usualmente significa cesta para vegetais, e é também usada para designar o veículo da escapada de Paulo por sobre o muro de Damasco — (cf. At. 9:25). Não obstante todas essas diferenças, as histórias continuam sendo muito se­ melhantes. Muitos estudiosos têm con­ siderado as duas narrativas uma “ dupli­ cata” , isto é, duas narrativas variantes do mesmo incidente. Esta conclusão é alcançada com diferentes argumentos subsidiários, mas depende basicamente de um ponto. Como, perguntam eles, poderiam os discípulos ter sido testemu­ nhas da alimentação de cinco mil pes­


soas, e depois fazer o tipo de pergunta atribuída a eles no versículo 4? Isto, argumenta-se persuasivamente, é psicologi­ camente ininteligível. Se Jesus alimentou uma multidão mediante a multiplicação de pão, podia fazê-lo outra vez. Contudo, as diferenças entre as narra­ tivas parecem indicar claramente que Marcos as recebera e empregara como dois incidentes separados. Se as histórias não são duplicata uma da outra, preci­ samos julgar que vieram a Marcos atra­ vés de duas linhas diferentes da tradição cristã de ensino, e eram contadas sem se fazer referência uma à outra. Provavel­ mente a pergunta dos discipulos, no ver­ sículo 4, que representava geralmente as perspectivas deles, teria sido incluída nesta história, narrada independente­ mente, para enfatizar ainda mais a gran­ deza do poder de Jesus. Essas histórias presumivelmente eram usadas da mesma forma durante a pregação. Por que, então. Marcos não notou a impropriedade da pergunta, dos discípu­ los, em sua narrativa contínua, e não a modificou? Primeiro, porque tendia a usar as suas fontes da maneira como chegavam a ele, com modificações ape­ nas suficientes para permitir uma certa medida de continuidade; e, segundo, por causa do seu próprio desejo de apontar para a dureza de coração e falta de percepção dos discípulos, e a sua vagarosidade em perceber quem era Jesus. Como já deve ser perfeitamente claro agora, esta é uma motivação forte em Marcos (cf. 8:14-21). Quem é que enten­ de quem é Jesus e pode crer nele como o Cristo e como o Filho de Deus? Como isso foi difícil para os discípulos, e como foi difícil para a Igreja! E foi impossível para aqueles (isto é, escribas e fariseus) cujo coração permanecia endurecido! As palavras e implicações desta passa­ gem têm, em grande parte, sido notadas na história anterior, em 6:32-44. No ver­ sículo 6, como em 14:23, temos uma palavra traduzida como havendo dado graças. O significado é parcialmente

idêntico e parcialmente suplementar ao do verbo abençoou do versículo 7 (tam ­ bém em 6:41 e 14:22).* O fato de que Jesus abençoou (os peixinhos) significa que ele abençoou (ou bendisse) a Deus por eles. Veja I Corín­ tios 10:16, que deve ser interpretado assim: “o cálice da bênção, pelo qual abençoamos o nome de Deus” (Cran­ field). Aqui de novo temos uma refeição de comunhão, com insinuações e pala­ vras que levariam os leitores de Marcos imediatamente a pensar na Ceia do Se­ nhor da maneira como Marcos a vai re­ gistrar e como eles regularmente a obser­ vavam em comunhão, ação de graças e fé. Se o ato de alimentar as cinco mil pessoas pode ser entendido como um convite de Jesus para o povo judeu, para , que participe da sua comunhão, partici­ pando da sua própria vida, o ato de ali­ mentar as quatro mil pessoas deve ser entendido como o convite de Jesus in­ cluindo os gentios igualmente, em plena comunhão e vida divinamente comparti­ lhada. Assim pensa Bacon e, hesitante­ mente, Rawlinson. Marcos não faz ne­ nhuma afirmação direta acerca das ca­ racterísticas raciais da multidão; talvez ele não as soubesse. A coisa de que ele estava certo era que tanto judeus como gentios receberam a provisão de Deus em Jesus Cristo. Da mesma forma. Marcos colocou esta história num contexto gentí­ lico, e ela complementa a história de 6:32-44. Se Marcos associou ou não as doze cestas cheias de restos com a nação judai­ ca, e as sete alcofas cheias, aqui men­ cionadas, com o número total das outras nações é incerto. (Se sete é simbólico, significa plenitude.) O uso de números, no simbolismo, era tão comum entre os judeus (cf. Apoc. 1:4,12) que esse núme­ ro deve ter sido pregado como simbó­ lico, quando esta história foi contada nas (*) É im portante n otar que em português tem os três palavras com o mesmo significado: bendizer, benzer e abençoar. — N ota do tradutor.

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O espírito farisaico foi expresso, nessa ocasião, pelo desejo deles de discutir e experimentar Jesus. Se realmente ele era de Deus, pediam eles, que o provasse com um sinal do céu. As passagens pa­ ralelas (Luc. 11:29-32; 12:54-56; Mat. 16:1-4; 12:38-42) são, aparentemente, de linhas diferentes de tradição (isto é, da fonte chamada Q). Indubitavelmente, esta sorte de exigência pode ter sido re­ petida. Tanto Mateus como Lucas dizem que nenhum sinal será dado, “a não ser o sinal do profeta Jonas” . Mas Lucas inter­ preta, este sinal, de forma a significar a pregação de arrependimento (11:32), en­ 12) Os Fariseus Pedem um Sinal do Céu quanto Mateus pensa também, com os seus irmãos de fé, na ressurreição do (8:11-13) Filho do homem (12:40). 11 Saíram o s fa riseu s e co m eça ra m a A pregação fundamental de Jesus era discutir com e le , pedindo-lhe um sinal do que o reino de Deus estava próximo. céu, p ara o exp erim en ta rem . IZ E le , s u s ­ Muitos judeus devotos, influenciados por pirando profundam ente e m sen esp írito , d is­ tradição apocalíptica, estavam esperan­ se: P or que pede e sta g era çã o um sinal? E m verd ade vo s digo que a e sta gera çã o não do que essa vitória escatológica de Deus será dado sin al algu m . 13 E , deixando-os, fosse anunciada por sinais sobrenaturais. tom ou a em b arcar e foi p ara o outro lado. Um sinal de Jesus teria requerido alguma Se observarmos o paralelismo existente evidência certa da presença e do poder de na ordem de Marcos, então, da mesma Deus, uma prova clara da sua identidade forma como 6:32-44 corresponde a 8:1-9, como agente de Deus. Mas Jesus repe­ 6:45-56 se ajusta a 8:10 e 7:1-23 corres­ tidamente se recusou a realizar qualquer ponde a este parágrafo. Depois, 7:24-30 , obra poderosa meramente para provar (o pão dos filhos) se emparelha com quem era. ^7 8:14-21 (o fermento dos fariseus), e fi­ As cegas mentes farisaicas deviam ter nalmente a cura do surdo-mudo, em continuado a atribuir as obras de Jesus a 7:31-37, corresponde à cura do cego em Belzebu (3:22). Os discípulos ainda es­ 8:22-26. Temos todas as razões para peravam sinais no futuro (13:4). A verda­ supor que o arranjo de Marcos foi feito deira razão por que nenhum sinal podia por ele mesmo e por desígnio próprio. ser dado a esta geração era a futilidade Um dos resultados tem sido uma ênfase das suas ações. Se, como o registra Lucas na inclusão dos gentios, juntamente com (16:31), o povo não ouvira a Moisés e os os judeus. O presente parágrafo, embora breve, 37 Acerca do significado dos sinais, nos Evangelhos e na remonta a uma ilustração da cegueira igreja prim itiva, veja a nota no Com entário de Raw­ completa e impenetrável dos líderes reli­ linson (p. 257 e s.). Ele afirm a que, n a igreja p ri­ giosos judaicos. Os discípulos precisam mitiva, os dois “ sinais” m ais enfatizados eram<a res­ surreição e a observância da Ceia do Senhor, e corre­ não apenas ser defendidos, quando as­ tam ente indica a sua sem elhança quanto ao significa­ saltados pelos pontos dè vista dos escri­ do. Ele crê que esta é a razâo p a ra M ateus ter in­ bas acerca da Lei; precisam tomar cui­ terpretado o “ sinal de Jonas” como ressurreição, e que o significado da palavra, em M arcos, nesta passagem dado com o que este espírito e o espí­ e n a seguinte (cf. 8:17-21), é que os hom ens deveriam rito de um Herodes podem fazer dentro ter entendido o sinal por ocasião da alim entação das multidões. deles (8:15). igrejas primitivas. Todavia, precisamos nos guardar da tendência de interpretar, no texto, mais do que o escritor evangé­ lico pretendia dizer. Depois da refeição, Jesus os despediu, e atravessou o mar, com os seus discí­ pulos, para as regiões de Dalmanuta. Supomos que esse lugar ficava na Gali­ léia, do lado oeste do lago, oposto à região de Decápolis (v. 13). Contudo, até agora não encontramos nenhuma identi­ ficação positiva de lugar nenhum com este nome; talvez futuras pesquisas ar­ queológicas venham a dar-nos alguma informação definida.

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profetas, também não se arrependeria, ainda que um dos mortos ressuscitasse. Esta geração deve ser entendida neste contexto, não incluindo todo mundo, mas referindo-se àqueles cujo espírito e atitudes eram como as dos fariseus. Tão fixos ,e pervertidos de mente eram eles, que, em qualquer caso, não teriam reco­ nhecido um sinal. Veja “esta geração” em 8:38 e 9:19; também em Mateus 11:16 e Atos 2:40. No entanto, até os discípulos ainda estavam infectados, até certo ponto, pelo mesmo espírito, como o parágrafo seguinte novamente mostrará. 13) Advertência aos Discípulos Contra Endurecer o Coração (8:14-21) 14 Ora, e le s se esq u ecera m de lev a r pão, e no b arco não tinh am consigo sen ão um pão. 15 E J esu s ordenou-lhes, dizendo: Olhai, guardai-vos do ferm en to dos fariseu s 6 do ferm ento de H erodes. 16 P e lo que ele s arrazoavam entre si porque não tin h am pão. 17 E J esu s, percebendo isso , d isse-lh es: Por que arrazoais por não terd es pão? não c o m ­ preendeis ainda, n em en ten d eis? ten d es o vosso co ração endurecido? 18 Tendo olhos, não ved es? e , tendo ouvidos, n ão ouvis? e não v o s lem b rais? 19 Quando p arti os cinco pães p ara os cinco m il, quantos cesto s cheios de p eca ço s lev a n ta stes? R esp on d eram -lh e: D oze. 20 E quando parti os sete para os quatro m il, quantas a lco fa s ch eia s de p ed aços lev a n ta stes? R esponderam -lhe: Sete. 21 E e le lh es d isse: N ão enten d eis ainda?

Este parágrafo é intimamente relacio­ nado por Marcos com o incidente prece­ dente, na mente de Jesus, se não na dos discípulos. Parece que logo que eles en­ traram no barco (v. 13), os discípulos esqueceram tudo acerca das exigências que os fariseus haviam acabado de fazer do seu Mestre, e passaram a devotar a sua atenção à comida. Eles se esquece­ ram de levar pão. Jesus tentou desviar as suas mentes dos ansiosos lamentos quanto ao pão, adver­ tindo os seus seguidores contra o fer­ mento dos fariseus e o fermento de He­ rodes. Que cegueira e crueldade podia

produzir a sua atitude mental! Fermento é quase sempre, quando usado figurati­ vamente, empregado com conotações ne­ gativas: permeia toda a massa, espalhan­ do os seus tentáculos corruptores por toda parte e refazendo o caráter da mas­ sa (I Cor. 5:6; Gál. 5:9; Luc. 12:1; Mat. 16:6,11,12). Se os fariseus eram corrom­ pidos, em sua percepção moral, devido ao seu vício de legalismo, Herodes era igualmente cego, devido à sua inclinação para o mundanismo (6:14 e ss.). O seu caráter fez dele um adúltero e homicida, muito embora demonstrasse algum inte­ resse nos ensinos de João. Os herodianos e fariseus são reunidos também em 3:6. Ordenou-lhes. O verbo grego é forte, e o seu tempo é vividamente descritivo: “ele continuou estabelecendo isso como uma ordem” ; “ele repetidamente enfati,zou esta advertência” . Contudo, os discí­ pulos estavam tão preocupados com os seus próprios problemas (e, provavel­ mente, com a quem culpar por eles!) que nem prestavam atenção ao ensino de Jesus. Há um problema textual, no ver­ sículo 16, e o verdadeiro significado bem pode ser: Eles estavam discutindo uns com os outros porque (ou: sobre a razão por que) não tinham pão. Jesus retorquiu à sua insensibilidade: Não compreendeis? Está o vosso coração, como o dos fariseus, endurecido? O ver­ sículo 18 faz lembrar 4:10-12, e é clara­ mente uma alusão a Isaías 6:9 e s. (cf. Jer. 5:21; Ez. 12:2). A recordação das duas grandes refei­ ções que Jesus havia servido dificilmente tinha a intenção de prometer aos discí­ pulos uma refeição, sempre que eles se queixassem de fome. A idéia é, pelo contrário, qüe eles não ficariam tão preo­ cupados com as suas frustrações e ansie­ dades, se se lembrassem e entendessem o que Jesus havia feito (Cranfield). Se ago­ ra eles eram incapazes de ouvi-lo, decerto não haviam compreendido a mensagem de Jesus naqueles dois acontecimentos (como, naturalmente, os leitores de M ar­ cos compreenderam). 403


Ao alimentar as duas multidões, Jesus se havia oferecido como verdadeiro guia e mestre (pastor). Ele havia ido além do legalismo, no que tange à contaminação (a segunda refeição foi com gentios); havia, com ação de graças e bênção divi­ na, partido o pão com todos, em santa comunhão. Embora a predição franca da morte e ressurreição do Filho do homem ainda não tivesse sido expressa (8:31), todo leitor cristão entenderá que, em sentido muito real, “ sinais” já haviam sido dados acerca do que iria acontecer e do que significavam as suas refeições santas e comemorativas, como oportuni­ dade para comunhão. Talvez também Marcos tivesse a intenção de que os seus leitores considerassem com certa medida de simpatia como era difícil para os discí­ pulos chegar à plenitude da fé e da com­ preensão. Contudo, como o expressa o Evangelho de João, o próprio Jesus era o “pão vivo” , e, quem quer que comesse desse pão, nunca teria fome, nem morre­ ria (6:47-51). Não compreendeis ainda? Redigida como está, a pergunta de Jesus requer a resposta sim. Não obstante, de fato ainda não há resposta da parte dos discípulos, embora a confissão de Pedro agora não demore em vir. 14) A Cura de um Cego (8:22-26) 22 Entálo chegaram a B etsa id a . E tro u x e­ ram -lhe um ceg o , e rogaram -lhe que o to c a s­ se. 23 J esu s, pois, tom ou o cego p ela m ão,.e o levou p ara fora d a a ld eia ; e , cuspindo-lhe nos olhos, e im pondo-lhe a s m ã o s, pergu n ­ tou-lhe : V ês algu m a coisa ? 24 E , levantando os olhos, d isse: E stou vendo os h om en s; porque com o árvores o s vejo andando. 25 E ntão tom ou a pôr-lhe a s m ã o s sobre os olhos: e e le , olhando aten ta m en te, ficou r e s ­ tabelecido, pois já v ia nitid am en te todas a s coisas. 26 D epois o m andou p a ra c a sa , d i­ zendo : M as não en tres n a a ld eia.

Tendo atravessado o làgo, chegaram a Betsaida. Para comentários sobre o lu­ gar, cf. 6:45. Da mesma forma como o homem surdo-mudo (7:31-36), este cego foi trazido a Jesus por amigos, que roga­ 404

ram a Jesus que o tocasse. Outra vez, Jesus tirou esse homem do meio da mul­ tidão (para fora da aldeia, cf. 7:33) e outra vez usou meios físicos contemporâ­ neos para edificar a fé e a confiança na pessoa afligida (cuspindo-lhe nos olhos, e impondo-lhe as mãos). Mediante o contexto, é impossível ima­ ginar Marcos contando esta história para dar a entender simplesmente que Jesus teve compaixão de um cego. Não preci­ samos ter dúvida de que Jesus se preo­ cupou com um homem que não tinha a vista física. Mas o tema corrente é dos discípulos, que ainda não entendiam (v. 21). Este milagre não constitui apenas a cura de um pobre cego: é também uma parábola do que Jesus estava fazendo pelos discípulos. Filhos da sua própria época, afligidos pela cegueira dos distor­ cidos fariseus, ou do mundano Herodes, os olhos da mente dos discípulos precisa­ vam ser abertos. A cegueira é retirada por etapas. Pri­ meiramente, a pessoa que está sendo curada vê os homens; mas eles são como árvores — ainda indistintamente, embo­ ra já visíveis. Devem ser homens, pois (diferentemente das árvores) estão an­ dando. Finalmente, quando Jesus, pela segunda vez, tomou a pôr-lhe as mãos sobre os olhos, o homem, olhando aten­ tamente (uma palavra um pouco mais forte do que levantando ele os olhos, no V. 24, embora da mesma raiz), ficou res­ tabelecido (como o homem da mão atro­ fiada, em 3:5). Agora plenamente cura­ do, ele podia ver nitidamente todas as coisas; não apenas os “homens” mas todos os objetos. Só neste caso temos um registro de que Jesus, ao curar, requereu dois tratamen­ tos. Grant sugere que nem Mateus Jiem Lucas incluem esta história, porque a vista do homem não foi curada de uma só vez. Talvez ele esteja certo em sua supo­ sição, embora isto dificilmente possa ser considerado fatal em relação à exatidão do relato. Em qualquer caso, o paralelo


com a lentidão dos discípulos em enten­ der é muito apropriado. Desde o começo eles não haviam entendido quem era Jesus: a- identidade dele não lhes pare­ ceu “como árvore andando” ? Agora Marcos preparou o palco para os acontecimentos seguintes de sua nar­ rativa. Pedro terá uma visão parcial, pela qual reconhecerá Jesus como o Cristo, mas não entenderá que o Cristo precisa sofrer. Depois, terá lugar a experiência da transfiguração (9:2-8), alargando a sua visão. Porém, em Marcos, a visão dos discípulos nunca é completamente clara, pelo menos não antes da ressurreição. Com o epílogo do livro terminando em 16:8, a ressurreição se tornou realidade, mas a visão dos discípulos ainda não está completa. É inteiramente provável que o epílogo original (da mesma forma como 16:9-20, que acrescentamos, o faz até certo ponto) fala, de certa maneira, da fé cheia de confiança dos discípulos. 15) O Reconhecimento do Cristo (8: 27-30) 27 £ saiu J esu s com os se u s discípulos para a s a ld eia s de C esaréia de F ilip e, e no cam inho interrogou os d iscíp u los, dizendo: Quem dizem os h om en s que eu sou? 28 R esponderam -lhe e le s: U ns d izem : João, o B atista; outros: E lia s; e a in d a outros: A lgum dos p rofetas. 39 E n tão lh es pergun­ tou: M as vós, quem dizeis que eu sou? R e s ­ pondendo, P edro lhe d is s e : Tu é s o C risto. 30 E ordenou-lhes J e su s que a n in gu ém d is se s­ sem aquilo a resp eito d ele.

Esta breve seção e a próxima (v. 31-33) consistem nos parágrafos da mais signi­ ficativa transição em Marcos. Estão divididos em esboço aqui, porque a pri­ meira metade de Marcos alcança o seu clímax na confissão de que Jesus é o Cristo. Por outro lado, a confissão feita por Pedro propiciou a Jesus a necessária ocasião para interpretar, para os discí­ pulos, a natureza do seu próprio papel como o Filho do homem sofredor. ^8 38 A com preensão de Jesus acerca de si mesmo am plam ente discutida p or eruditos, nos anos e as opiniões tem variado grandem ente. U m vista extrem ado e negativo é esposado por

tem sido recentes, ponto de R. Bult-

As aldeias de Cesaréia de Filipe. Jesus havia levado os seus discípulos outra vez para se afastarem da Galiléia, provavel­ mente na esperança de conseguir algum tempo para estar a sós com eles. Eles, aparentemente, não foram à cidade, mas ficaram nas regiões esparsamente habi­ tadas, das redondezas, não distantes do Monte Hermom e das fontes do Jordão. Cesaréia de Filipe, aumentada e tendo recebido esse nome de Herodes Filipe, em honra a Tibério César, era anterior­ mente chamada Panéias, por causa da famosa gruta próxima, em que o deus Pã era reverenciado. O contraste entre o culto pagão e o reconhecimento de Jesus como o Cristo de Deus é agudo. É tenta­ dor imaginar que a discussão acerca de outras crenças religiosas ofereceram a ocasião original para a pergunta de Jesus: Quem dizem os homens que eu sou? A pergunta em si, todavia, era básica em relação às esperanças que Jesus tinha em relação aos seus discí­ pulos. Ele queria que eles o reconheces­ sem como o Cristo e compreendessem como ele mesmo entendia o seu papel como tal. Deve ter havido considerável espe­ culação acerca da identidade de Jesus e do papel que ele desempenhava (cf. m ann, que rejeita a confissão de Pedro e a subseqüente descrição de Jesus acerca de si mesmo, dizendo que não têm bases históricas; ele sustenta que essas sao idéias cristãs e que nasceram apenas no contexto da experi­ ência da Páscoa que os discípulos tiveram . M as opi­ niões eruditas mais recentes são mais otim istas e reco­ nhecem um a base histórica por detrás d a narrativa do Evangelho. Podemos presum ir que, no ato da tran s­ missão da tradição, e n a pregação dela, houve consi­ derável liberdade e variedade, como o ilustram as diferenças entre os Evangelhos Sinópticos (M at. 16: 13-23; Luc. 9:18-22). O Evangelho de João não apre­ senta um clímax com parável p a ra o m inistério de Jesus (m as cf. 6:66-71). Acerca das interrogações feitas nesta passagem , veja Taylor, p. 374 e s.; e, p a ra um a discussão mais com pleta, veja: R. H . Fuller, The Mis° sion and Achievement of Jesus (London: SCM, 1954); J. W . Bowman. The Intention of Jesus (Philadelphia: W estm inster, 1943); M . Dibelius, Jesus (Philadelphia: W estm inster, 1949); G . B ornkam m , Jesus of Nazareth (New York: H arper, 1960); T. W . M anson, The Ser­ vant Messiah (C am bridge: University Press, 1961); e W illiam M anson, Jesus The Messiah (Philadelphia: W estm inster Press, 1946).

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6:14-16). João, o Batista e Elias são identificados em 9:11-13; veja o comen­ tário acerca dessa passagem. O uso dos seus nomes para identificar Jesus signi­ fica, pelo menos, que havia excitamento messiânico, pois esperava-se que Elias preparasse o caminho do Messias, e João dissera estar cumprindo a profecia de Isaías 40:3,4. Mas o conceito a respeito de Jesus como um desses profetas ou como outro profeta não identificado nominalmente está longe do conceito que ele tinha de si mesmo ou desejava que seus discípulos tivessem. A questão agora era apresentada abruptamente aos discípulos: E quanto a vós (o pronome é bem enfático: a mul­ tidão não o conhece), quem dizeis que eu sou? Pedro foi quem respondeu: Tu és o Cristo. Jesus aparentemente aceitou este título, mas não o usou, e proibiu os discípulos de fazê-lo (v. 30). A palavra Cristo significa “ungido” e é tradução do termo aramaico “Messias” . O que signi­ ficava essa confissão? No Velho Testamento, pessoas que eram especialmente consagradas a uma tarefa especial, e consideradas divina­ mente escolhidas e dotadas para a sua realização, freqüentemente eram ungi­ das com óleo. Isto acontecia com sacer­ dotes e reis, e também, ocasionalmente, com profetas (cf. I Reis 19:16; Is. 61:1 e ss.). É usado acerca do líder gentio Ciro (Is. 45:1), de Israel como um todo e dos patriarcas, embora o seu uso sèja figurativo: eles não foram realmente ungidos, mas consagrados por Deus para uma determinada tarefa. As expectações de Israel parecem ter sido especialmente um ungido, um Mes­ sias, que seria o governante ideal, um novo Davi. Ele governaria para Deus, restauraria a grandeza de Israel e estabe­ leceria os caminhos de Deus. Algumas das passagens pertinentes se encontram nos Salmos (ex.: 2; 78; 89), outras nos profetas (Is. 9; 11; 49; Ageu 2; Zac. 4; etc.). É natural que algumas palavras de predição sejam mais específicas e mais 406

claras do que outras. Esta esperança de Israel continuou pelos tempos do Novo Testamento. (Cf. especialmente Salmos de Salomão 17:23-29; 18:1-10; e a expec­ tativa tanto de um sacerdote-messias como de um rei-messias no Manual de Disciplina de Qumram, 9:11). Algumas vezes é uma esperança terrena, mas sem­ pre há o triunfo de Deus, através do seu Cristo. Parece claro que estas expectativas de um Cristo davídico seja dominante na confissão de Pedro. Marcos, pelo menos costumeiramente, fala em termos conso­ antes com esta idéia (cf. 10:47; 11:9,10; 12:35) e a previsão que os discípulos faziam de grandeza no reino (9:33-37 e 10:35-45). As objeções de Pedro à interpretação que Jesus fez de si mesmo como Filho do homem sofredor surgem, porque^ de acordo com a sua interpre­ tação, o Cristo (davídico) devia governar vitoriosamente — e não ser morto (v. 31 e 32). Não obstante, Pedro ter chamado Jesus de o Cristo deve ter significado para ele mais do que o fato de Jesus ser des­ cendente de Davi segundo a linhagem judaica, ou que ele seria rei de Israel. O Cristo davídico era o escolhido de Deus (o seu ungido), e faria a obra escolhida para que Deus o consagrara. Ele iria restaurar o povo escolhido de Deus ao grande destino que Deus escolhera para este. Seria o governante ideal, e a sua vinda marcaria uma verdadeira inau­ guração do reino de Deus. Há uma nota de vitória esperada, vinda de Deus, uma nota de finalidade escatológica, uma nota de admiração e solenidade nessa confissão. A maneira como Jesus en­ tendia a sua própria natureza e missão está de pleno acordo com tudo isto. Mas ele sabia que não seria um rei do <tipo do primeiro Davi. Os discípulos devem ter sido pouco espertos e lentos para compreender. Mas um, dentre eles, agora fazia ouvir os seus pensamentos. O fato de que os outros estavam de acordo, embora permane­


cessem em silêncio solene, é evidente na ordem de Jesus a todos eles, que a nin­ guém dissessem aquilo a respeito dele. Foi necessária essa ordem. Quando chegou a hora do julgamento, Jesus foi acusado de ter dito ser “o rei dos judeus” (15:2',12,18).

usado muito mais freqüentemente na segunda metade do Evangelho (12 vezes). Como o nome Cristo, Filho do homem é um termo que tem chamado muito a atenção dos estudiosos do Novo Testa­ mento. Como o indica a nota de 2:10, o conceito de Marcos tem muita ligação com o filho do homem celestial, mencio­ III. O Caminho Para a Cruz: O nado em Daniel 7:13-28. Ainda assim, o Cristo Secreto e o Filho do significado do nome é visto “por espelho, obscuramente” , porque em Daniel o Homem Revelado filho do homem é uma figura vitoriosa. (8:31—13:37) Todavia, não precisamos nos voltar 1. A Paixão Esperada e o Significado de para a última parte de Isaías, para en­ contrar a nota de sofrimento pela causa Discipulado (8:31—10:52) de Deus. Em Daniel, aquele que é “como um filho do homem” representava o ver­ 1) O Filho do Homem Sofrerá (I) (8: 31-33) dadeiro povo de Deus, “os santos do . Altíssimo” (7:18,22). As forças do mal — 31 C om eçou então a en sin ar-lh es que era quatro reis, a quarta besta, o chifre — n ecessário que o F ilh o do h o m em p a d ecesse ‘derrotaram os santos completamente, e m uitas co isa s, que fo sse rejeitad o pelos an ciãos e principais sacerd o tes e p elos e s ­ estes se tornaram mártires, mas não cribas, que fo sse m orto, e que depois de três negaram a sua fé. Contudo, a sua leal­ dias r essu rg isse. 32 E isso dizia a b erta m en ­ dade até a morte lhes propiciou vitória te. Ao que P ed ro, tom ando-o à p arte, c o m e ­ final e duradoura, no reino de Deus, e é o çou a repreendê-lo. 33 M as e le , virando-se “filho do homem” que tem domínio e olhando para se u s d iscíp u los, repreendeu a P edro, dizendo: P a ra trás de m im . S ata­ nessa glória eterna (Moule). É fora de nás; porque não cuidas d as c o isa s que são qualquer dúvida que os cristãos primi­ de D eu s, m a s, sim , das que sã o dos hom ens. tivos identificavam Jesus com o Servo de A conclusão dos discípulos, de que Deus Sofredor em Isaías 40 — 66, mas Jesus era o Cristo esperado, era conclu­ a visão de Daniel 7, que originalmente são a que eles podiam ter chegado cres­ se relacionava a hebreus fiéis, durante os cendo em percepção espiritual — mas anos aparentemente sem esperanças da veja Mateus 16:17 e a recomendação que revolta dos Macabeus, também teve Jesus faz de Simão. Que era inevitável cumprimento final em Jesus, o verda­ que Jesus fosse rejeitado e morto, e que deiro Filho do homem. ele ressurgisse, era uma conclusão com­ Se Jesus era o Cristo, então, como pletamente alheia à sua maneira de Pedro reconheceu, era a figura-chave no pensar. Por isso, Jesus começou então a reino de Deus. Mas Jesus agora diz que o ensinar-lhes. De acordo com a narrativa seu domínio precisa ser estabelecido não de Marcos, Jesus repetiu três vezes e pela força militar ou pelas realizações abertamente esta advertência acerca do humanas, mas pela sua obediência e destino que ia ter (8:31-33; 9:30-32; lealdade a Deus, até a cruz. Submissão 10:32-34); não obstante, eles tinham tão completa à vontade de Deus sempre dificuldade, ainda, em conciliar este levanta suspeitas, ameaça, ira, vingança conceito com a confissão que haviam (cf. as experiências dos discípulos em feito de Jesus como o Cristo. Atos 4:1-22; 5:17-39; 6:8—7:60; 8:3). filho do homem, como nome que Era inevitável que acontecesse no caso de Jesus dá a si mesmo, encontra-se duas Jesus, embora o propósito de Deus de­ vesse ser cumprido através dele. De fato. vezes anteriormente (2:10,28); será 407


já estava acontecendo (3:1-6,22; 6:1-6; 7:1-13; 8:11-13). O que o homem leal a Deus faz nessas circunstâncias? Transige com a oposição adotando os seus métodos ou expecta­ tivas? Protege a sua própria vida, modi­ ficando aquilo que ele é e o que faz em favor do “status quo” ? Esta foi uma das tentações que Jesus sofreu, de acordo tanto com Mateus 4:8-10 como com Lucas 4:5-8. Uma dessas tentações agora aparece em Pedro, embora ele não tivesse compreendido as implicações da sua posição, quando começou a repreendê-lo ^esus), por prever os seus sofrimentos. Não obstante, Jesus sabia muito bem que qualquer transigência para com as forças de um ponto de vista mundano iriam derrotar os propósitos de Deus nele. Ele já sabia como era difícil tirar dos discípulos aquele padrão de pensa­ mento (8:14-21); iria ele apagar tal dis­ tinção agora? Não, ele não podia, em­ bora pudesse ver bem claramente que o caminho de Deus levaria a conflito e morte. A voz de Satanás tentava outra vez, na repreensão de Pedro; ele não cuidava das coisas que são de Deus, mas, sim, das que são dos homens. A profecia de que o Filho do homem , ressurgiria também fazia parte da ma­ neira de Jesus compreender o caminho de Deus para a vitória. Taylor duvida que Jesus tivesse sido tão explícito, quanto à sua ressurreição, quanto o fora quanto à sua morte, mas reconhece que Jesus também deve ter falado em termos de “vitória” e “exaltação” . Mateus 16:21 e Lucas 9:22 modificam depois de três dias para o mais preciso “no terceiro dia” . Quando Jesus o disse, o significado era “uma expressão indefinida de um curto período de tempo” . 39 C ranfield, p. 278. Alguns estudiosos duvidam que Jesus tenha faládo tão claram ente acerca da morte, ressurreição e vinda do Filho do hom em como nestes versículos e em outros ( 9 :3 1 e s .; 1 0 :3 3 e s.; 1 3 :2 6 e s.). Talvez essas palavras não rem ontem a Jesus, na form a em que estão agora; contudo, podem ser autênticas redações do que ele disse: Além das obras citadas, acerca d a com preensão de Jesus sobre de si mesmo, cf.

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2) A DifícU Escolha do Discipulado (8: 3 4 -9 :1 ) 34 E , cham ando a si a m ultidão com os d iscípulos, d isse-lh es: Se a lg u ém quer vir após m im , n egu e-se a si m esm o , tom e a sua cruz, e sig a -m e. 35 P o is q u em q u iser sa lv a r a sua vid a , perdê-la-á; m a s quem p erd er a su a vid a por am or de m im e do evan gelh o, salvá-la-á. 36 P o is que a p roveita a o h om em ganhar o m undo inteiro e perder a su a vida? 37 Ou que daria o h om em e m tro ca d a sua vida? 38 P orquanto, qualquer que, entre esta gei'ação ad ú ltera e p ecad ora, se e n v e r ­ gonhar d e m im e d as m in h as p a la v ra s, ta m ­ b ém d ele se en vergon h ará o F ilh o do ho­ m em quando v ie r na g lória de seu P a i com os santos anjos. 1 D isse-lh es m a is : E m verd ad e, v o s digo que, dos que aqui estã o , algu n s h á que de m odo nenhum p rovarão a m o rte a té que v eja m o reino de D eu s já ch egad o com poder.

Jesus não tentou mostrar, a si mesmo, que escolhera o caminho da cruz por causa dos benefícios que isso iria pro­ piciar, mas porque era a vontade do Pai. Era o caminho “do lado de Deus” (v. 33). Embora ele seja o Cristo, o Filho do homem, os seus discípulos — e quem quer que venha a tomar-se discípulo seu — precisam escolher o mesmo cami­ nho da cruz. O fato de que Jesus chamou a si a multidão com os discipulos provavel­ mente indica que as palavras que se seguem tinham um contexto diferente (ou estavam separadas) quando Marcos as recebera. Aparentemente, Jesus esti­ vera com os doze apenas, antes disso, e tomou somente três deles consigo, em 9:2-8. Por outro lado, no que concerne ao ensinamento de Jesus, Marcos de­ monstrou profunda percepção, ao esco­ lher a ordem que segue neste ponto. Não para os doze apenas, mas para discí­ pulos na sua época e em todas as épocas. H. M. Teeple, “ The Origin of the Son of M an Christology” , JBL 84 (1965), p. 213-50; E. Schweizer, “ The Son of M an ” , JBL 79 (1960), p . 119*29. E m qualquer caso, é certo que M arcos pensa em Jesus como o Filho do hom em que sofreu, e como o Filho do hom em exal­ tado, cuja vinda eles esperavam.


os rigorosos princípios estabelecidos com o exemplo de Jesus são os passos neces­ sários para a vida vitoriosa. Os requisitos indispensáveis do verda­ deiro discipulado são dois. Primeiro, negue-se a si mesmo. A idéia básica desta palavra (não é meramente uma exorta­ ção: é uma ordem) é simplesmente dizer não! “Negar-se a si mesmo é repudiar não apenas os seus pecados, mas o seu eu; é dar as costas à idolatria do egocen­ trismo” (Cranfield). Esta não é a espé­ cie de “autonegação” pela qual uma pessoa decide abandonar o fumo ou o cinema por um dado período de tempo; requer submissão a um novo Rei, na vida da pessoa, substituindo o egoísmo inato às nossas pessoas. Cf. a discussão sobre “arrepender-se” em 1:15. O segundo requisito é gêmeo do pri­ meiro: tome a sua cruz. Para o judeu da época de Jesus ou para o romano do tempo de Nero, a cruz não era apenas um fardo ou problema; era um instrumento de tortura. Exigia-se que a vítima carre­ gasse a sua própria cruz para o lugar de sua execução. Portanto, tomar a sua cruz exige uma dedicação absoluta, até a morte. Siga-me significa, por causa da forma do verbo, faça, de seguir o meu exemplo, o seu hábito. Ê uma ordem acessória, mais do que um terceiro requisito. Abrange e interpreta os outros dois, que explicam o que significa ser um discí­ pulo. Segue-me é a palavra que Marcos usa costumeiramente em conexão com o discipulado (cf. 1:17, 18, 20; 2:14). “Quem cuida da sua própria segurança está perdido; mas se alguém se conside­ rar perdido, por amor de mim e do evangelho, está salvo.” É desta forma eloqüente que a NEB (New English Bible) traduz o versículo 35. Se as perspec­ tivas morais e espirituais de uma pessoa estão sujeitas a mudar, por causa dos temores ou por causa das pressões exte­ riores, não há saúde permanente nessa pessoa. No entanto, não adianta nenhu­

ma espécie de auto-abandono, a não ser aquele que encontra uma nova e deter­ minante dedicação. O que é esta dedi­ cação? É uma entrega total a Jesus (não apenas como o Cristo, mas como o Filho do homem, com a sua lealdade à von­ tade de Deus) e dedicação às boas-novas, que são verdadeiras por causa da obe­ diência e vitória dele. É exagerado o preço deste discipu­ lado? Não, porque o homem que tenta salvar-se pode ganhar o mundo inteiro; porém, em última análise, a sua vida não é salva, mas perdida. A palavra tradu­ zida como vida, nos versículos 35-37, é sempre a mesma no original, embora outras traduções usem “alma” , algumas vezes. Aqui ela significa o próprio ho­ mem, o seu ser, o que ele realmente é. Claro que as pressuposições subjacentes pão que só o que o homem realmente é permanecerá, e que Deus, que, em últi­ ma análise, está na direção, receberá para si mesmo aqueles que são genuina­ mente seus. Como João o expressou: “Têm a vida eterna” (embora João 3:36 use uma outra palavra para “vida”). Negar-se a si mesmo não é desprezar a própria vida. É a única forma de chegar ao alvo do completo significado e reali­ zação da vida. Alguém pode se envergonhar de Jesus, nesta geração dominada pelo mal? Se dependesse de Simão, seria Jesus cruci­ ficado (v. 32)? Se dependesse de João e Tiago, não haveria lugares de honra no reino do Senhor (10:35-40)? Iriam, algu­ mas pessoas de Roma, chamadas cristãs, então sofrendo pressões, negar a sua lealdade a Jesus? Então, de acordo com a natureza do discipulado e da vida, elas iriam perder a sua vida, como o revelará o tempo do juízo (quando o Filho do homem vier). O dilema está diante dos homens: a pessoa escolhe negar-se a si mesma e andar no caminho do Filho do homem ou transige com esta geração adúltera e pecadora, e fica irremediavel­ mente perdida, tentando preservar a sua vida vazia. 409


Marcos deve ter sido o responsável de colocar 9:1 neste contexto; porém tanto Mateus como Lucas seguem esta ordem aqui, encontrada, embora com algumas notáveis variações editoriais (Mat. 16:28; Luc. 9:27). O significado deste versiculo é suficientemente claro em um respeito: alguns na multidão ou entre os discipulos (v. 34) ainda estariam vivos neste mundo para ver o reino de Deus já chegado (na forma de participio perfeito) com poder. Mas quando eles iriam ver este grande evento cumprido — se de fato o viram — é coisa muito discutida. Entre as mais notáveis e úteis suges­ tões acerca do significado desta passa­ gem, mencionaremos apenas quatro. (1) Algumas pessoas pensam que esta passagem se refere à vinda final do Filho do homem em glória. Todavia, esta profecia ainda não havia se cumprido, pelo menos literalmente, à época de Marcos, embora algumas pessoas que estavam presentes, quando Jesus a pro­ nunciara, ainda estivessem vivas. Sobre­ tudo, Jesus declarou não saber o tempo da Parousia (13:32). (2) A referência é à verdade de que o reino de Deus já veio, e que finalmente algumas das pessoas presentes perceberiam a verdade. É o que se chama de . “escatologia realizada” . Mas veja a nota sobre 1:14 e s. (3) A referência é à transfiguração (9:2-8). Esta é uma interpretação antiga e que conta com muito apoio. O que os três discípulos viram foi uma espécie de “première” da ressurreição e da glória do Cristo. Talvez isto seja o que Marcos tinha em mente, ao colocar essas pala­ vras nesse ponto. (4) A referência é ao triunfo do Filho do homem sobre a cruz, com sua vergo­ nha e morte. Não é este, sem dúvida, o acontecimento central- no estabeleci­ mento do reino de Cristo? Não é neces­ sário supor que Jesus já prevesse todos os aspectos das experiências dos discí­ pulos durante a ressurreição e os acon­ 410

tecimentos que se seguiram, no Pente­ costes; mas nunca o poder de Deus foi manifestado mais completamente do que nesse período. É provável que as sugestões dos nú­ meros (1), (3) e (4) tivessem os seus defensores entre os leitores de Marcos desde o princípio. Mas isso é o mesmo que dizer que permaneceu um certo mis­ tério a respeito de Jesus, mesmo para a Igreja. E, sobretudo, estas quatro suges­ tões, e muitas outras que são oferecidas, reconhecem que algo final e decisivo aconteceu ou está para acontecer em Jesus. Ele mesmo, como o Cristo e o Filho do homem, não é simplesmente um nome importante em uma história continuada. Ele é, de acordo com a pro­ vidência de Deus, uma figura escatoló­ gica. “Havendo Deus antigamente falado muitas vezes, e de muitas maneiras... nestes últimos dias a nós nos falou pelo Filho” (Heb. 1:1 e s.). 3) A Transfiguração (9:-2-8) 2 Seis d ias depois tom ou J esu s consigo a Pedro, a T iago, e a João, e os levou à parte sós, a um alto m onte; e foi transfigurado diante d eles; 3 a s su a s v e ste s to m a ra m -se resp lan d ecen tes, e x trem a m en te b ran cas, tã is com o nenlium lavan d eiro sobre a terra a s poderia branquear. 4 E apareceu -lh es E lia s com M oisés, e fa la v a m co m J e su s. 5 Pedro, tom ando a P a la v ra , d isse a J esu s: M estre, bom é e sta rm o s aqui; fa ça m o s, pois, três cab an as, u m a p ara ti, outra para M oisés, e outra p ara E lia s. 6 P o is não sab ia o que h a v ia de dizer, porque fica ra m a tem o ­ rizados. 7 N isto v eio u m a n u vem , que os cobriu, e d ela sa iu u m a voz que d izia: E ste é o m eu FUho am ad o; a e le ouvi. 8 De repente, tendo olhado e m redor, não v iram m a is a nin gu ém con sigo, sen ão só a J esu s.

Seis dias depois; esta é a única nota cronológica precisa, dada por Marcos, fora da narrativa da paixão (cf. 14:1). Desta forma, ele ligou cuidadosarnente a confissão de Pedro, a previsão de Jesus acerca do seu sofrimento e glória, e talvez também 9:1 com este parágrafo. Os três discípulos que ele tomou con­ sigo são os mesmos que foram focaliza­


dos especialmente em 5:37. São os três cuja dificuldade em aceitar a perspectiva de Cristo como sofredor é especialmente notada (Pedro, 8:32; Tiago e João, 10:35 e ss.). Marcos enfatiza que Jesus deu um jeito para estar a sós com estes três. Q alto monte é, provavelmente, não o tradicional Monte Tabor, que não é alto nem fica perto de Cesaréia de Filipe (8:27). Pode ter sido o Monte Hermon, ou um dos seus contrafortes, ou outro dos picos elevados a sudeste da cidade. Foi transfigurado diante deles. O verbo é usado para descrever a transfor­ mação que está para acontecer no caráter do crente (Rom. 12:2), e também (II Cor. 3:18) parece falar da glória refletida do Senhor, que se diz “transfigurar-nos” à sua própria imagem. Aqui, parte do que os discípulos viram é descrita no versí­ culo 3: as suas vestes tornaram-se res­ plandecentes, extremamente brancas, além da capacidade do homem de bran­ quear. Ê estranho que Marcos nem se­ quer tenta descrever a face de Jesus (cf. Ex. 34:29, onde a face de Moisés é descrita depois de ele ter estado com Deus). Não se pode deixar de crer que Marcos considera a transfiguração uma espécie de prévia, da exaltação do Filho do homem, para os três discípulos. Apareceu, então, aos discípulos, Elias com Moisés. No relato de Lucas (9:2836), somos informados que eles falaram com Jesus acerca da morte dele e dá-se a impressão de que essa experiência foi, pelo menos parcialmente, para confir­ mar a Jesus o que ele compreendia acerca do seu papel como Filho do homem sofredor. Em Marcos, todavia, a experi­ ência parece ter sido dada especialmente por amor aos discípulos. Elias representa os profetas; Moisés, a Lei que Deus dera a Israel. A experi­ ência da transfiguração, portanto, afir­ ma a continuidade da obra de Jesus com aqueles que haviam sido os porta-vozes de Deus em tempos passados. Talvez Marcos tenha dado prioridade a Elias

(cf. Mateus e Lucas) por causa da sua identificação, pelo menos quanto ao papel, com João Batista (cf. abaixo, V. 13). Como o será o Filho do homem, antes que muito tempo se passe, o Batis­ ta já havia sido morto por causa da sua leal obediência a Deus. Idéias modernas acerca do que acon­ teceu, exatamente, variam grandemente. Algumas pessoas têm considerado o evento todo sem base histórica, devendo a sua existência a uma espécie de arte teológica dos cristãos primitivos, e sendo puramente simbólico na apresentação da fé. Outros o consideram uma história da ressurreição transposta para a vida de Jesus. Outros, ainda, pensam que é uma narrativa correta do evento em si, e que a verdadeira forma de Jesus foi dessa ma­ neira revelada a discípulos escolhidos. Alguns pensam que a narrativa é his­ tórica, mas a experiência em si foi na forma de uma visão. Detalhes, como o dos seis dias, os nomes dos discípulos, e a ênfase sobre solidão e lugar são explicados mais ra­ zoavelmente se aceitarmos a narrativa como histórica. Quanto entendeu M ar­ cos ter sido uma visão, e quanto uma realidade tangível, quem pode dizer? O verbo aparece (v. 4) e o súbito desapareci­ mento de Moisés e Elias (v. 8) dão força ao conceito de visão (cf. Mat. 17:9). No entanto, a história é primariamente teológica, em seu impacto. A nuvem certamente significava, para Marcos e seus leitores (como para os três discí­ pulos, certamente, depois que conside­ raram o assunto), a própria presença e orientação de Deus. A nuvem também servia para velar a glória divina (cf. Êx. 13:21 e s.; 14:19 s.; Núm. 9:15—23). Até o verbo cobriu é encontrado nesta conexão em Êxodo 40:35. Da mesma forma como Moisés “en­ trou na nuvem” , para subir à montanha, a fim de buscar a direção direta de Deus, uma voz divina saiu da nuvem para instruir os discípulos (cf. a nota sobre 1:11, onde a voz é dirigida a Jesus). 411


Talvez também seja pretendida uma previsão da revelação do Filho do ho­ mem (Mar. 13:26; 14:62; At. 1:9-11). Este é o meu Fflho amado. Jesus é mais do que “ o Cristo” (8:29). Os dis­ cipulos precisam reconhecer que Jesus é o Filho do próprio Deus. A ele ouvi, isto é, ouvi-o e obedecei-lhe, pois ele inter­ pretará correta e legitimamente o seu Pai divino. Portanto, neste contexto, a res­ ponsabilidade especifica da voz divina é reafirmar a correção da interpretação de Jesus acerca de si mesmo e do que signi­ fica segui-lo. Ela confirma a palavra de Jesus ao chamar-se de Filho do homem, e prevê a tragédia e a exaltação que estão por vir. De fato, Pedro não sabia o que havia de dizer (v. 6). Mestre é tradução de “Rabi” , título que dificilmente seria escolhido, se outras pessoas tivessem composto esta história mais tarde. Pro­ vavelmente, devemos entender bom é estarmos aqui, como dizendo que os três discipulos podiam ministrar às necessi­ dades de Jesus e dos seus notáveis hós­ pedes. Pedro ofereceu os seus serviços para providenciar algum abrigo. Da maneira como Marcos conta essa história, a sugeStão de Pedro pode reve­ lar um ansioso espirito de serviço, mas ■ também reforça uma motivação carac­ terística de todo o Evangelho: os disci­ pulos estão aprendendo, mas têm uma dificuldade tremenda em entender quem é Jesus. Por outro lado, os leitores de Marcos têm outra vez uma afirmação sem peias de que Jesus é o Filho de Deus. 4) A Volta de Elias e a Ressurreição do Filho do Homem (9:9-13) 9 E nquanto d escia m do m onte, ordenoulh es que a ninguém con ta ssem o que tinham visto, a té que o F ilh o do h om em ressu rg isse dentre os m ortos. 10 E e le s gu ard aram o c&ao e m segred o, indagando en tre si o que seria o ressu rgir dentre os m ortos. 11 E ntão lhe p erg u n ta ra m : P or que d izem os escrib a s que é n ecessá rio que E lia s ven h a p r im e i­ ro? 12 R espondeu-lhes J esu s: N a verd ad e, E lia s h a v ia de vir prim eiro, a restaurar todas a s c o is a s ; e com o é que e stá escrito

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a c e rc a do F ilh o d» h o m em que ele d ev a p ad ecer m u ito e se r aviltad o? 13 D igo-vos, p orém , que E lia s já v eio , e fizeram -lhe tudo quanto q u iseram , com o d ele e stá escrito.

Se os três discípulos que estiveram lá não tivessem compreendido claramente a importância do que haviam visto na transfiguração, os outros nâo se benefi­ ciariam muito com o fato de eles a nar­ rarem. Por isso, Jesus ordenou-lhes que a ninguém contassem, até a época em que a grande experiência teria mais signifi­ cado para todos. O Filho do homem é outra vez identificado como alguém que deve sofrer, e alguém que será exaltado. Os discípulos obedeceram a Jesus, não disseminando as suas versões pessoais acerca do que acontecera. Contudo, as suas indagações continuaram. As pala­ vras de Jesus, mais a experiência na montanha, devem tê-los impedido de se contentarem com o conceito de Jesus como o Cristo da maneira como haviam esperado. Mas, aparentemente, eles ainda eram incapazes de se satisfazerem em suas mentes acerca da maneira como as suas palavras sobre ressurgir dentre os mortos deviam ser interpretadas. Sobretudo, os escribas ensinavam que Elias havia de vir primeiro que o Messias (cf. Mal. 4:5,6). Estavam eles errados, visto que o Messias já viera? Ou, como Jesus podia ser o que manifestou-se na transfiguração, visto que Elias ainda não havia preparado o caminho? A resposta de Jesus foi que os escribas estavam certos em suas expectativas, mas que Elias já tinha vindo, e os homens haviam feito com ele o que (endurecidos de coração, e sob o controle do mal) quiseram. Note, outra vez, o paralelo de Marcos entre o destino de João Batista e o de Jesus. Em Mateus 17:13, a identi­ ficação de João como Elias é feita. As passagens bíblicas mencioiiadas por Jesus, no versículo 12, mostrando que o Filho do homem iria passar por sofrimentos, devem ter incluído Isaías 49:7 e 53:3, onde o mesmo verbo (ser aviltado) ocorre, ou na LXX ou em outra


tradução grega antiga. Talvez Salmos 22:6 e 123:3 também foram menciona­ dos; e Jesus deve ter falado de Daniel 7 com alguns detalhes. Marcos não nos a.juda muito neste assunto. Talvez os cristãos para quem ele estava escrevendo já tiyessem coleções de passagens do Velho Testamento que entendiam como referindo-se a Jesus. 5) A Cura de um Menino Epilético (9: 14-29) 14 Quando ch egaram aonde e sta v a m os discípulos, v ira m ao redor d eles u m a gran ­ de m ultidão, e algu n s escr ib a s a discu tirem com e le s. 15 E logo toda a m ultidão, vendo a Jesu s, ficou gran dem en te surpreendida; e, correndo todos p ara e le , o sau d avam . 16 P erguntou e le a o s escrib a s: Que é que d is­ cutis com eles? 17 R «spondeu-lhe um dentre a m ultidão: M estre, eu te trouxe m eu filho, que tem um espírito m udo; 18 e este , onde quer que o apanha, convulsiona-o, de m odo que e le esp u m a, ran ge os d en tes, e v a i d efi­ nhando ; e eu p edi a o s te u s discípulos que o ex p u lsa ssem , e não pu deram . 19 Ao que J esu s lh es respondeu: Ó gera çã o incrédula! até quando esta rei convosco? a té quando vos hei de suportar? T razei-m o. 20 E ntão lho trouxeram ; e quando e le viu a J esu s, o espírito im ed iatam en te o con vu lsion ou ; e o endem oninhado, caindo por terra , revolviase, espum ando. 21 E perguntou J esu s a o pai dele: Há quanto tem p o sucede-lhe isto? R espondeu ele: D esd e a in fân cia; 23 e m u i­ tas v ezes o tem lançado no fogo, e na águ a, para o destruir; m a s se podes fazer algu m a coisa, tem com paixão de nós e ajuda-nos. 23 Ao que lhe d isse J e s u s : Se podes I — tudo é p o ssív el ao que cr ê . 24 Im ed iatam en te o pai do m enino, clam ando (co m lá g rim a s) d is s e : Creio! Ajuda a m üiha incredulidade. 25 E J esu s, vendo que a m ultid ão, correndo, se aglom erava, repreendeu o esp írito im undo, dizendo: E spírito m udo e surdo, eu te orde­ no: Sai d ele, e nunca m a is en tres n ele. 26 E ele, gritando, e agitando-o m uito, sa iu ; e ficou o m enino com o m orto, de m odo que a m aior p arte dizia: M orreu. 27 M as J esu s, tom ando-o p ela m ão, o ergu eu ; e e le ficou em p é. 28 E quando entrou e m c a sa , seu s discípulos lhe pergu n taram à p a r te : Por que não pudem os nós expulsá-lo? 29 R espondeulh es: E sta ca sta não sa i de m odo algu m , salvo á força de oração (e je ju m ).

Os relatos paralelos de Mateus 17: 14-21 e Lucas 9:37-43 são muito mais

curtos do que o de Marcos. A história é tão minuciosa, em Marcos, que foi suge­ rido que esta é uma das narrativas que Marcos recebeu diretamente de Pedro. A conexão, no versiculo 14, indica que Marcos considerava que aqui a ordem de eventos que ele seguiu era cronológica. Os outros discípulos estavam rodeados por uma multidão, e escribas estavam a discutir com eles, talvez acerca do poder do exorcismo ou dos processos necessá­ rios para tentar ajudar o menino que lhes havia sido trazido. A multidão e, pode­ mos presumir, os discipulos, também ficaram surpresos em ver Jesus. Grande­ mente surpreendida é normalmente uma expressão mais forte do que simplesmen­ te surpreendida, mas não temos nenhu­ ma evidência de que o semblante de Jesus ainda estivesse afetado pela transfigu,ração — o versículo 19 indica o contrário. A pergunta de Jesus, feita no versículo 16, pode ter sido dirigida aos nove discí­ pulos, ou até aos escribas, mas foi res­ pondida pelo homem cuja desgraça pre­ cipitara toda a celeuma. Ele trouxe o seu filho a Jesus, e, não sendo capaz de encontrar o Mestre em pessoa, havia pedido que os seus discipulos o ajudas­ sem. De fato, em ocasiões anteriores, os discípulos haviam “expulsado demô­ nios” (6:13), mas desta vez foram inca­ pazes de fazê-lo. Teriam eles ficado sur­ presos com o seu fracasso? (cf. o versí­ culo 28). A aflição do menino parece claramente ter sido epilepsia, e Mateus 17:15 assim chama a enfermidade. Em Marcos, o pai descreve o problema do seu filho como provindo de um espirito mudo, isto é, que não fala, de forma que é como uma pessoa surdo-muda (cf. v. 17,25). O problema se repete freqüentemente, e faz com que o menino caia, algumas vezes, em lugares que põem em perigo a sua própria vida (v. 22). Ele espuma, range os dentes, e vai definhando (NT: a tra­ dução inglesa acrescenta: e se torna rí­ gido) — todos estes são sintomas de epilepsia. 413


Gíeração incrédula enfatiza falta de fé, e não falta de confiança. Provavelmente devemos entender a exclamação de Jesus como sendo dirigida à multidão como um todo, embora alguns pensem que é confi­ nada aos discípulos (cf. 6:6). O trata­ mento que Marcos dá à narrativa nos encoraja a pensar quanto da paciência de Jesus havia sido provada pela mente fechada do homem e sua vagarosidade em crer nele. A conversa de Jesus com o pai do menino centraliza-se também na questão de fé e poder. Os discípulos não puderam (estavam sem “poder” para) ajudar (v. 18), e o pai, desanimado com o fracasso deles e com a degeneração das tentativas de ajuda, em discussão, de um tipo ou de outro (v. 14), rogou: Se podes fazer alguma coisa... iuuda-nos (v. 22). O homem também pertencia à geração que não pode ou não quer crer. Marcos e os seus leitores prevêem que o forte Filho do homem exercerá a sua autoridade com­ provada sobre o poder que oprime o garoto. Jesus repetiu a frase do pai: Se podes! Desta forma, ele estava conclamando fé da parte do pai, e também foi desta forma que o pai o entendeu. Creio! gritou ele; ajuda a minha incredulidade! Como esta confissão reflete bem as dificuldades que cada homem tem em crer em Deus! A vida de fé não é uma experiência tranqüila, sem dúvidas e sem turbação. ' E isto é especialmente evidente em épo­ cas de crise pessoal. Tudo é possível ao que crê (v. 23). Isto provavelmente não significa que, com fé, a pessoa pode fazer o que quiser; mas, como diz Rawlinson, significa que o homem que tem fé não estabelece limites ao poder de Deus. Nesta história, a im­ plicação clara é que a fé dos discípulos também estava vacilando (v. 28). Com a sua fé Umitada, eles haviam deixado de estar em verdadeira comunhão com o Espírito de Deus, e, portanto, com o seu poder (v. 29). 414

A multidão estava aumentando rapi­ damente (v. 25). Jesus queria ajudar o menino afligido, mas não queria fazer mais exibição pública do seu poder do que necessário. Ele ordenou ao espírito que saísse, e que deixasse o menino defi­ nitivamente. A doença do garoto mos­ trou a sua violência pela última vez, mas isto fez com que a sua cura se tornasse mais óbvia para todos. Nunca podemos menosprezar a impor­ tância do ensinamento de Marcos acerca da compaixão de Jesus, como é mostrado outra vez nesta história. Mas devemos notar especialmente que a ênfase de Marcos, além dela, continua a ser dada ao poder de Jesus, e, conseqüentemente, à sua autoridade peculiar e às limitações da fé dos discípulos. No versículo 29, muitos manuscritos antigos, embora não os mais dignos de confiança, adicionam “jejum” como um requisito, juntamente com a oração, para a realização de obras de cura como a em questão. A sua inclusão deve refletir a prática de muitos cristãos primitivos devotos (cf. a nota acerca de 2:18 e ss. e também At. 13:2; 14:23). Todavia, Jesus certamente não encorajou os seus discí­ pulos a jejuar durante o seu ministério. As palavras adicionais devem ter sido acrescentadas (mas dificilmente omiti­ das) por um dos primeiros copistas, influenciado pela prática contemporâ­ nea. O texto da IBB coloca essa adição entre colchetes. Nâo há nenhuma evi­ dência de que Jesus tenha ensinado, em parte alguma, que hábitos ascéticos encorajam ou resultam em poder espi­ ritual. 6) O Filho do Homem Sofrerá (II) (9: 30-32) 30 D ep ois, tendo partido dali, p a ssa v a m p ela G aliléia, e e le não queria que ninguém o so u b e sse ; 31 porque en sin a v a a seu s d isc í­ pulos, e lh es dizia: O F ilh o do h om em será en tregu e n a s m ã o s dos h om en s, que o m a ­ tarão; e m orto e le , d ep ois d e três d ias r e s ­ surgirá. SZ M as e le s não en tendiam e sta p alavra, e te m ia m interrogá-lo.


Dali... pela Galiléia; a jornada, de acordo com Marcos, toma a direção do sudeste, de volta ao território em que Jesus passara a maior parte do seu minis­ tério e em que ele e os seus discípulos eram bem mais conhecidos. Provavel­ mente devido ao fato de que ele estava se concentrando nas instruções que estava dando aos seus discípulos, ele estava tentando fazer com que a sua presença se conservasse secreta. Para a previsão de Jesus, acerca de sua paixão, veja acima o comentário a 8:31 e s. Há uma terceira declaração seme­ lhante em 10:32-34. Talvez a maneira de Marcos redigir o ensino de Jesus nas três passagens tenha-se derivado de uma única tradição. Mas é bem razoável pre­ sumir-se que Jesus continuou instruindo os seus discípulos a respeito do seu papel e do resultado que dele se esperava. A expressão verbal será entregue é especialmente interessante. É a mesma que descrevera a prisão de João Batista (cf. acima comentário a 1:14) e a traição de Jesus por Judas (14:10). É usada também acerca da transmissão de tra­ dições (I Cor. 11:2), de arriscar a própria vida (At. 15:26), ou de se recomendar uma pessoa à graça de Deus para a realização de determinada tarefa (At. 14:26). Embora traduzida, na versão da IBB, como no futuro, o verbo aqui está no presente, e descreve mais provavel­ mente algo que já está acontecendo. Deus já está entregando o Filho do ho­ mem nas mãos dos homens (de coração endurecido). A morte de Jesus tem sua origem em Deus, que enviou o seu Filho ao mundo, mas a causa da sua morte deve ser encontrada na natureza dos homens em meio aos quais ele viveu. Os discípulos não entendiam (cf. 4:13; 6:52; 8:17-21; 9:10). Tanto este verbo como o seguinte (temiam) estão na forma imperfeita, e descrevem a situação contí­ nua entre os seguidores de Jesus. Talvez o que eles temiam era serem repreendi­ dos outra vez por serem mentalmente fechados; mas aparentemente eles não

podiam ajustar os seus pensamentos à idéia de que o Cristo precisava morrer ou que o sofrimento levava à vitória. 7) A Verdadeira Grandeza no Discipula­ do (9:33-37) 33 Chegaram a Cafarnaum. E , estando ele em casa, perguntou-lhes: Que estáveis discutindo pelo caminho? 34 Mas eles se calaram , porque pelo caminho haviam d is­ cutido entre si qual deles era o maior. 35 E ele, sentando-se, chamou os doze e lhes disse : Se alguém quiser ser o primeiro, será o derradeiro de todos e o servo de todos. 36 Então tomou uma criança, pô-la no meio deles e, abraçando-a, disse-lhes: 37 Qual­ quer que em m eu nome receber uma destas crianças, a m im m e recebe; e qualquer que m e recebe a m im , recebe não a m im m as àquele que m e enviou.

Cada uma das predições da paixão é seguida imediatamente por uma seção de ensinamentos de Jesus acerca da nature^ za do discipulado. Nestes versículos (e em 10:35-45) o assunto é a grandeza no feino, pois o problema era a ambição êgõcenfnca que ainda estava presente nos discípulos. Eles estavam tendo muita dificuldade em aceitar a idéia de que o Messias de Deus iria ser humilhado pelos seus inimigos; e mais ainda, que ele seria exaltado e triunfante pelo caminho da cruz. Talvez a casa em Cafarnaum seja outra vez a casa de Simão e André (1:29). Quando Jesus perguntou qual fora a natureza da discussão dos discípulos pelo caminho, ninguém estava disposto a falar. Pelo menos eles reconheceram que as~iüas motivações estavám~suiHtãs~a~ repreensão dërèTElëi"sehtando-se, o que p resü ïïm ï^ n ^ n h â^ eito apenas porque haviam terminado a viagem. Alguns estudiosos, porém, pensam que ele esta­ va seguindo o costume dos mestres: de se assentar enquanto estivesse ensinando (cf. Mat. 5:1). A palavra primeiro era usada freqüen­ temente para designar ordem ou posição, e significava mais proeminente ou maïs" importanlëT^AIgiimsdosescribas hebreus ocasionalmente falavam algo semelhante 415


às palavras de Jesus aqui. Hillel, por exemplo, costumava dizer: “Aquele que exalta (ou procura exaltar) o seu nome, destrói o seu nome” (Mishnali, Aboth 1:13). Mas esse ensinamento, para Jesus, é central em relação às suas perspectivas e ao seu espírito. Q jtem ^éffli^de no jd n g ?^ N ão o h o m en iq u e"'aesq a'^ser'' chéfe, mas o homem que não tem ne­ nhuma preocupação egoística para o seu progresso pessoal, e é servo até do mais humilde dos seus semelhantes. Se interpretarmos os versículos 36 e 37 neste contexto, como Marcos aparente­ mente o fez, então ser o derradeiro de todos e o servo de todos seria ilustrado pelo cuidado e pelo ministério até para com uma criança. Receber uma criança em nome de Jesus provavelmente signi­ ficava receber e ajudar a ele, porque seria isso que Jesus faria por uma pessoa ima­ tura e incapaz de encontrar as respostas para a sua necessidade. A criança é um interesse de Jesus; por isso, deve ser do interesse de todos os discípulos. Expres­ sar o cuidado pela criança, portanto, é também receber Jesus. Quando se faz isto, se está abraçando a humildade e a característica do serviço de Jesus, “o homem que se entregou pelos outros” , e, assim, se está recebendo também o Pai (aquele que me enviou), conforme a vida de quem o caráter de Jesus é moldadò. Talvez as palavras de Jesus em 9:33-50 tenham chegado a Marcos em unidades separadas. Mais provavelmente elas podem ter sido reunidas como ferramen­ ta de catequese. Como bem notou Johnson, o tema de toda a seção é os “pequeninos” . Nos versículos 33-37 há crianças; nos versículos 38-41 há aqueles que, embora não sejam discípulos com discernimento, usam o nome de Jesus com reverência e procuram servir às pes­ soas que estão necessitadas; e, nos versí­ culos 42-50, há aqueles cuja pequenez ou fraqueza faz deles presa fácil para a tentação. A frase em meu nome (ou algo bem semelhante) é repetida nestas passa­ gens, e pode ser um recurso mnemónico. 416

8) A Inclusividade do Discipulado (9: 38-41) 38 D isse-lhe João: M estre, vim os um ho­ m em que em teu nome expulsava demônios, e nós lho proibimos, porque não nos se ­ guia. 39 Jesus, porém, respondeu: Não lho proibais; porque ninguém há que faça m ila­ gre em m eu nome, e possa logo depois falar m al de m im ; 40 pois quem não é contra nós, é por nós. 41 Portanto, qualquer que vos der a beber um copo de água em m eu nome, porque sois de Cristo, em verdade vos digo que de modo algum perderá a sua recom ­ pensa.

Foi João, um dos três que haviam testemunhado a transfiguração, um dos dois que são especificamente menciona­ dos como sendo invejosos de posições elevadas (10:35 e ss.) e um dos dois que desejava queimar um a vila samaritana não hospitaleira (Luc. 9:54), que, cheio de justiça própria, disse a Jesus que haviam proibido um homem de usar o nome de Jesus. Proibimos é uma forma imperfeita; eles tentaram impedir o homem de usar o nome de Jesus, mas ele provavelmente continuou usando-o. O homem aqui descrito poderia ter sido chamado de mágico, ou alguém grande, que procurava expulsar demô­ nios usando todo nome que sabia ser eficiente em seu exorcismo. Os papiros sobre magia apresentam muitas fórmulas usadas por essas pessoas, e a longa lista de “divindades” freqüentemente incluí­ am o Deus de Israel, ou Abraão, Isaque e Jacó; ocasionalmente o nome de Jesus também aparece (cf. Luc. 11:19; At. 8:9 e ss.; 13:6 e ss.; 19:13 e ss.). Jesus rejeitou abruptamente o espírito de intolerância de João. Não lho proibais significa: Vocês estão errados; parem de impedi-lo. Por quê? Porque embora ele agora não seja um dos nossos, a sua mente está pelo menos disposta favora­ velmente aberta; se um milagre (palavra usada para os atos de Jesus) for feito em meu nome, o homem que o usou certa­ mente não terá pressa em falar mal de mim. Tal homem não tomou nenhuma posição hostil como a dos escribas (3:22).


Até agora ele é nosso amigo, e devemos aceitá-lo dessa forma. É difícil entender como alguns intér­ pretes (inclusive Nineham) podem atri­ buir a origem desta história à igreja pri­ mitiva. Quem não é contra nós, é por nós, está perfeitamente de acordo com o espírito de Jesus, mas a tentação, entre cristãos imaturos, no primeiro século como hoje, tem sido sempre no sentido de exclusividade e intolerância. Em Lucas 11:23 (cf. Mat. 12:30) Jesus é mencionado como apresentando, apa­ rentemente, o oposto desta posição tole­ rante. Contudo, embora os homens não tivessem chegado, ainda, a uma decisão final em relação a Jesus, o Mestre estava disposto a tratá-los como pessoas que podiam, com a mente aberta, se tomar seus seguidores. Por outro lado, quando tem que ser feita uma decisão a respeito de Jesus, as pessoas que decidem ficar neutras ou agnósticas são igualmente alinhadas com os que estão contra Jesus. A idéia, no versículo 41, como está neste contexto, é que a pessoa que pra­ ticar nem que seja o menor ato de ama­ bilidade para com o povo de Deus des­ cobrirá que Deus honra e valoriza essa amostra de fé e caráter cristão (Mat. 10:42 tem estas palavras em um contexto diferente). Porque sois de Cristo; literalmente, porque sois portador do nome de Cristo; não é improvável que Jesus tivesse usado esse título acerca de si mesmo? Cf. acima, o comentário a 8:27-30. Há alguma evidência de “em meu nome” ser o texto original. Se o nome Cristo foi usado aqui por Jesus, provavelmente ele estava citando o nome que o exor­ cista usara para designá-lo. Diferentemente da probabilidade dos versículos 38-40, a pessoa recomendada no versículo 41 é mencionada no sentido de ajudar a alguém pertencente à comu­ nidade cristã. Isto era especialmente significativo para os cristãos romanos, para cujos amigos cada gesto de apoio podia acarretar alguma ameaça de repre­

sália. Através do Novo Testamento, recomenda-se aos cristãos que façam o bem a todas as pessoas, mas existe uma obrigação especial de cuidar dos que pertencem à comunidade cristã (cf. Mat. 5:43-48; João 15:12-17; Gál. 6:9,10). 9) A Necessidade de Discipulado Fiel (9:42-50) 42 IVIas qualquer que fizer tropeçar um destes pequeninos que crêem em m im , melhor lhe fora que se lhe pendurasse ao pescoço uma pedra de moinho, e que fosse lançado no m ar. 43 E se a tua mão te fizer tropeçar, corta-a; m elhor é entrares na vida aleijado, do que, tendo duas m ãos, ires para o inferno, para o fogo que nunca se apaga. 44 (onde o seu verm e não morre, e o fogo não se apaga). 45 Ou, se o teu pé te fizer tropeçar, . corta-o; m elhor é entrares coxo na vida, do que, tendo dois pés, seres lançado no inferno. 46 (onde o seu verm e não morre, e o fogo não se apaga.) 47 Ou, se o teu olho te fizer tropeçar, lança-o fora; m elhor é entrares no reino de Deus com um só olho, do que, tendo dois olhos, seres lançado no inferno, 48 onde o seu verm e não m orre, e o fogo não se apa­ ga. 49 Porque cada um será salgado com fogo. 50 Bom é o sal ; m as, se o sal se tornar insípido, com que o haveis de temperar? Tende sal em vós m esm os, e guardai a paz uns com os outros.

Para a conexão das várias partes deste parágrafo com os versículos precedentes, veja a nota final acerca dos versículos 33-37. O escopo fundamental do todo, tão importante para os leitores de M ar­ cos, relaciona-se com a enorme impor­ tância de ser-se fiel no discipulado. O verbo fizer tropeçar é traduzido como “escandalizar” em 4:17 e 6:3 (veja as notas a eles). Um destes pequeninos podia referir-se a crianças, quando Jesus falou da primeira vez (assim pensam T. W. Manson, Nineham), mas essa expressão também é apropriadamente aplicável a crentes fracos ou imaturos (Rom. 14 e 15; I Cor. 8 - 10; 3:1 e ss.) O erro é tentar alguém, levando-o a fazer o que ele acha mau, e não em fazer algo que escandalize alguém, porque não aprova aquele ato. 417


Uma pedra de moinho é literalmente uma “mó de burro” , isto é, pedra de moinho tão grande que precisava ser virada por um burro (em vez da menor, que geralmente era virada por uma mulher). Amarrar uma pessoa a uma pedra assim e lançá-la em águas pro­ fundas era uma forma romana de pena capital. O significado do versículo 42, portanto, é que era melhor morrer afogado do que levar crentes símplices, a caminhos que destruam a sua saúde espiritual. Mais do que isto, um homem precisa guardar-se de fazer compromissos, embora agradáveis, que o alienem do verdadeiro discipulado. Se a tua mão... o teu pé... e se o teu olho te fizer tropeçar; se o que pensas fazer, ou os lugares que pensas freqüentar, ou as coisas que ambicionas possuir (ver “inveja” em 7:22, palavra que é tradução de “ olho mau”) te seduzirem a um caminho que se afasta do caminho da cruz, precisa ser feito o sacrifício que for necessário. Este não é um mandamento de mutilação do corpo. Mas não pode haver dois senhores na vida; ou você se nega a si mesmo e aceita um novo senhor (“segue-me”) ou você perde a vida. (Cf., acima, o comentário acerca de 8:34 e s., e também a nota acerca do significado de “ arre­ pender-se” , em 1:15.) Inferno, com o seu fogo que nunca se apaga, é a “Gehena” , e não meramente o Hades, que significaria apenas a habi­ tação dos mortos. Historicamente, Geena era um vale a oeste de Jerusalém. Usado em tempos remotos por adora­ dores de Moloque como lugar em que os seus filhos ou filhas eram oferecidos em sacrifício, esse vale foi profanado duran­ te as reformas religiosas do rei Josias (II Reis 23:10; cf. Jer. 7:31; 19:5 e s.; 32:35). Desde essa época, ele foi usado como lixeira para toda espécie de refugo. Portanto, ele era corretamente descrito como lugar onde os vermes se alimenta­ vam e se multiplicavam continuamente 418

(o seu verme não morre) e onde o fogo sempre ardia (o fogo não se apaga). Da mesma forma como se pensava no céu sempre nos termos mais belos e maravilhosos (cf. Apoc. 21:1 — 22:5), assim também a imaginação descrevendo o destino dos ímpios era comparavelmente horrível: o inferno era como a Greena. (Em nossos melhores manuscri­ tos, os v. 44 e 46 são omitidos; mas em qualquer caso, eles são idênticos ao v. 48. Há também redações variantes no v. 49, mas a nossa versão segue o texto mais digno de confiança.) A conexão entre os versículos 49 e 50 com o precedente parece quase inteira­ mente verbal, fogo sendo a palavra chave. Taylor está certo em rejeitar a sugestão de que o versículo 49 significa que os fogos da Geena tinham o objetivo apenas de purificação. A idéia expressa por La grange é ainda mais especulativa e menos possível: ele pensa que o versículo 49 indica que o fogo na Geena preserva os ocupantes ímpios que jáforam , e que des­ ta forma o seu terrível castigo continuará. É muito mais provável que as palavras cada um será salgado com fogo fosse entendida com o significado de que os discipulos precisariam ser “temperados e purificados” ou “preservados” (salgados poderia ser usado para qualquer destas figuras) através da perseguição e do sofrimento que precisariam suportar. No versículo 50, sal se tornou figura de boas qualidades da vida, que a “tempe­ ram” . O sal puro nunca perde a sua força, mas as pessoas que falaram do sal desta forma não reconheciam que o cloreto de sódio que elas usavam podia ser misturado com sais menos solúveis, que eram semelhantes aparentemente. Nestas circunstâncias, o que parecia ser sal podia se tornar não mais útil para salgar as coisas; e naturalmente não havia forma de temperar alimentos com ele, outra vez, com sucesso. Os discípulos deviam nutrir as coisas que tornavam a vida boa e agradável. As ambições egoístas dos discípulos, em


33-37, e o espírito exclusivo, expresso por João no versículo 38, não são bons tem­ peros para a vida. Jesus, aparentemente, queria dizer: Se possuirdes sal em vós mesmos, como os discípulos devem pos­ suir, tereis as qualidades da vida que produzem a paz uns com os outros. Arribas as ordens são lineares: continue lutando pelas qualidades do sal, e desta forma, continue trabalhando para criar uma comunhão sadia entre os irmãos. 10) A Pergunta Acerca do Divórcio ( 10 : 1 - 12)

1 Levantando-se Jesus, partiu dali para os termos da Judéia, e para além do Jordão; e de novo as multidões se reuniram em tomo dele; e tomou a ensiná-las, como tinha por costume. 3 Então se aproxim aram dele alguns fariseus e, para o experim entarem , lhe per­ guntaram : É licito ao homem repudiar sua mulher? 3 Ele, porém, respondeu-lhes: Que ■ vos ordenou M oisés? 4 Replicaram eles; Moisés permitiu escrever carta de divórcio, e repudiar a mulher. 5 Disse-lhes Jesus: Pela dureza dos vossos corações ele vos deixou escrito este mandamento. 6 Mas d es­ de o princípio da criação, Deus os fez ho­ m em e mulher. 7 Por isso deixará o homem a seu pai e a sua m ãe (e unir-se-á à sua mulher) 8 e serão os dois uma só carne. 9 Portanto, o que Deus ajuntou, não o separe o homem. 10 Em casa os discípulos interrogaram-no de novo sobre isso. Ao que lhes respondeu: Qualquer que repudiar sua mulher e casar com outra, com ete adultério contra e la ; 13 e se ela repudiar seu marido e casar com outro, com ete adultério.

Além do Jordão significa o território a leste do rio, aparentemente o sul da_ Peréia. O local original deve ter sido durante uma jornada entre a Judéia e a Galiléia. Contudo, no diagrama de M ar­ cos, Jesus está se aproximando cada vez mais do tempo e do lugar de sua morte. A questão proposta pelos fariseus (cf., acima, o comentário a 2:16; 7:1) referiase ao divórcio. Em Mateus 19:3, a forma da pergunta é algo diferente: “Ê lícito ao homem repudiar sua mulher por qual­ quer motivo?” Os seguidores de dois grandes rabis, Shammai e Hillel, tinham

opiniões extrem am ente divergentes acerca deste assunto. Os seguidores de Shammai eram muito rigorosos em inter­ pretar Deuteronômio 24:1-4; para eles, “coisa vergonhosa” podia significar apenas ato de indecência. Os discípulos de Hillel eram muito menos rigorosos, dando como pretextos coisas como des­ cuidada preparação de refeições ou alguma outra qualidade insatisfatória em uma esposa. Mas nem Shammai nem Hillel encorajavam o divórcio; era uma questão de interpretação da Escritura. A pergunta pode ter sido feita original­ mente na forma em que é citada por Mateus, porque realmente não havia dúvida se na verdade a lei permitia o divórcio. Todavia, o interesse de Marcos e seus leitores nâo estava na discussão rabínica, mas no ensinamento de Jesus acerca da vontade de Deus. Ê lícito? deve ser en­ tendido com o significado de “Está de acordo com as instruções de Deus?” Em qualquer caso, a pergunta respondia não é se o divórcio (ou novo casamento) é legal, mas se está de acordo com o propósito divino. Moisés permitiu; o nome de Moisés era virtualmente um título para coleção de livros bíblicos desde Gênesis até Deutero­ nômio. Sob o código mosaico, um ho­ mem podia repudiar a mulher, embora não se falasse nada de uma esposa repu­ diar o seu marido. A esposa que estava sendo posta de lado tinha direito a uma carta de divórcio, que indicava o seu novo estado civil. A lei obviamente era uma tentativa de promover alguma ordem e restrição na sociedade à qual foi dada. A resposta de Jesus dirige-se direta­ mente ao âmago do assunto. A razão para a lei era suficientemente adequada. Dureza de coração, como Jesus a descre­ ve, significava que o povo estava resol­ vido a fazer o que pensava e desejava; estava cego, e não queria aprender qual era a vontade de Deus para eles. A palavra grega traduzida por esta expres­ 419


são particular (dureza de coração) ocorre I Coríntios 7:10-15, mas Paulo não a apenas aqui (cf. Mat. 19:8) e em 16:14, trata como lei compulsória para situa­ em o Novo Testamento, mas a idéia, ções matrimoniais não-cristãs. Ele insiste como temos visto, é central em Marcos que qualquer cônjuge cristão sempre se (Veja 3:5; 8:17). portará de maneira apropriadamente No entanto, só porque uma lei é ne­ cristã, e procurará fortalecer, e não cessária e apropriada sob as nossas cir­ destruir o laço conjugal. cunstâncias humanas, não se segue que Com o elevado ideal que Jesus esta­ as suas provisões são o que Deus deseja belecera diante deles, os discipulos inter­ para o homem. Citando passagens perti­ rogaram-no de novo sobre isso. (Cf. Mat. nentes da narrativa da criação, em 19:10: “ Se tal é a condição do homem Gênesis 1 e 2, Jesus tirou a conclusão de relativamente á mulher, não convém que a instituição do matrimônio estava casar.”) Jesus simplesmente reforçou as no propósito de Deus; que na relação suas palavras anteriores. Ele provavel­ marital um novo lar era estabelecido, mente presumia que uma pessoa divor­ com uma nova unidade; e que não estava ciada presumivelmente iria casar-se de de acordo com o propósito de Deus que novo. Para a maioria das mulheres que uma relação tão sagrada fosse rompida eram divorciadas havia pouca opção, a pelas criaturas de Deus. nâo ser entrar no casamento de novo Este é um ensinamento absoluto. O (Johnson), e o marido que se tivesse fato de que podemos ter falhas no casa­ divorciado de sua mulher geralmente mento por causa de imaturidade ou fal­ tomava outra. Todavia, diz Jesus, este sas informações ou alguma outra razão divórcio e novo casamento arruinam a nunca pode fazer as falhas se tornarem união anterior, e não correspondem ao uma coisa boa nem mudar o propósito de ideal presente no propósito de Deus. Deus para o casamento. Como na pri­ Neste ponto, não temos nenhuma pa­ mitiva sociedade hebraica, no curso de lavra de Jesus acerca das muitas inter­ nossa existência humana, o divórcio rogações que se levantaram em nossa algumas vezes pode ser o menor de dois cultura moderna. Podemos estar certos males. Dureza de coração não é um de que o caráter divino, oferecendo per­ pecado confinado à antiguidade. dão e restauração, continua á disposição As leis podem e devem ajudar a edifi-. daqueles que fracassaram no casamento. car uma sociedade ordeira e a estabelecer De acordo com a lei rabínica judaica, a justiça. Mas nenhuma lei, mosaica ou um homem podia cometer adultério moderna, pode nos elevar ao pleno pro­ . contra outro . homem casado, ou uma pósito de Deus para a vida. Nem deve­ esposa podia cometer adultério contra o mos entender os ensinos de Jesus como seu marido. Mas a condição da mulher “lei” em qualquer sentido rígido. É uma era tão inferior que um marido infiel não exortação a buscar a vontade de Deus, era considerado adúltero em relação á mas não é legalismo. É o ideal expresso sua própria esposa. (Alguns manuscri­ no propósito de Deus, como Jesus o inter­ tos, e a sua redação é aceita por Taylor preta: fidelidade vitalícia e exclusiva. e outros, grafam a mulher “deixando” , Em Mateus 5:32 e 19:9 a infidehdade é ao invés de “divorciando” o seu marido, tratada como razão legítima para o di­ e, no entanto, casando-se com outro. vórcio. Porém o mal é também sinto­ O casamento de Herodias com Heíodes mático de dureza de coração, e é especi­ Antipas — cf. acima, o comentário sobre ficamente aquela espécie de ato que, pela 6:17 — é sugerido como exemplo espe­ sua própria natureza, arruina a união cífico deste caso.) no casamento. A palavra de Marcos (não Nos versículos 11 e 12, Jesus fala de a de Mateus) é a citada por Paulo em homem e mulher em termos idênticos; 420


não se dá a entender diferença de condi­ ção no versículo 6 (cf. Gál. 3:28). O assunto não é imposto aqui, mas é claro que os primitivos cristãos, baseando-se nos ensinos de seu Mestre, outorgavam às esposas uma condição bem mais pri­ vilegiada do que a que lhes era dada no judaísmo. 11) Crianças São Abençoadas (10:13-16) 13 £ n tã o lhe traziam a lg u m a s cria n ça s, para que a s to c a sse ; m a s os d iscíp u los os repreend eram . 14 J esu s, p orém , vendo isto, indignou-se e d isse-lh es: D eix a i v ir a m im a s crian ças, e nào a s im p eça is, porque de ta is é o reino de D eu s. 15 £ m verd ad e vos digo que qualquer que não receb er o reino d e D eu s com o crian ça, de m a n eira a lgu m a entrará n ele. 16 E , tom ando-as nos se u s b raços, a s abençoou, pondo a s m ã o s sobre ela s.

Traziam algumas crianças. Não é apresentado nenhum elo de conexão com a narrativa precedente; o sujeito oculto “eles” é impessoal, e certamente incluía pais ^ amigos, bem como mães. A palavra usada para crianças seria apro­ priada para qualquer delas, até cerca de doze anos de idade. O propósito de pedir a Jesus que as tocasse devia ser para obter a sua bênção. (Veja Taylor, que cita Gênesis 48:14, e se refere a paralelos modernos.) Os discípulos parece terem suposto que Jesus não gostaria de desperdiçar o seu tempo com criancinhas, e repreenderam as pessoas que as haviam trazido, por estarem se aproveitando do Mestre. Jesus, indignou-se — palavra forte, tão forte que nenhum paralelo a repete (Mat. 19:13-15; Luc. 18:15-17). É a única vez que essa palavra é usada acerca de Jesus; veja comentário acerca de indignação em 3:5. Não as impeçais, ou melhor, parem de impedi-las. O verbo impedir é freqüen­ temente encontrado em contextos batis­ mais em o Novo Testamento (cf. At. 8:36; 10:47; 11:17). Mateus 3:14 apre­ senta uma forma variante desta palavra.

Mas não temos razão para supor que Marcos (e muito menos Jesus) pretendia a aplicação deste incidente como que aprovando o batismo de crianças. No entanto, Jesus convidou as crianças a si. Marcos e seus leitores deviam enten­ der como a mim era apropriado: Não era Jesus o Rei do reino? Deixai-os trazer as crianças a Jesus, porque de tais é o reino. O reino não pertence aos pode­ rosos, aos fortes, aos influentes; pertence aos fracos, aos insignificantes, aos sem importância. Essas palavras não devem ser inter­ pretadas como querendo dizer que o reino consiste de crianças (ou, de fracos e miseráveis). Mas ninguém pode entrar no reino se não o receber como criança. Será que alguém pode adquirir por seus esforços um lugar no reino? O ensino de Jesus aqui é paralelo em significado ao de Mateus 11:25 e s. e á Beatitude acerca dos pobres de espírito (Mat. 5:3). (Cf. I Cor. 1:26 e ss.) Marcos, como o resto do Novo Testamento, sustenta que o favor do reino de Deus é um dom, e não algo que é dado como recompensa ou mérito. Jesus fez mais do que lhe fora pedido. Ele tomou as crianças nos seus braços, as abençoou, pondo as mãos sobre elas de acordo com o costume de quem pede o favor de Deus sobre uma pessoa. O verbo de maneira nenhuma entrará é usado com o duplo negativo grego, que é muito forte. O significado não é que há dois reinos, um presente aqui, e outro vindouro; mas que, a não ser que se receba o reino como alguém necessitado, como quem não pode merecer as suas bênçãos, nunca, de maneira alguma, se entrará nele. Para expressá-lo com outra frase de Marcos: não se pode entrar no reino com o coração endurecido — uma cegueira intelectual e moral orgulhosa. Pelo contrário, precisa-se ser uma pessoa humilde, pronta a aprender, e principal­ mente, a aceitar o reino. O reino não pode ser forçado (4:26-29), e não depen­ de de riqueza ou condição social (10: 17-31). 421


12) O Perigo das Riquezas Para o Disci­ pulado (10:17-31) 17 Ora, ao sa ir para se pôr a cam inho, correu p a ra e le u m hom em , o qual se a jo e ­ lhou d ian te d ele e lhe p ergu n tou : B om M es­ tre, que h ei de fazer p a ra h erdar a vid a e tem a ? 18 R espondeu-lhe J e su s: P or que m e ch a m a s bom ? nin gu ém é b om , senão um , que é D eus. 19 Sab es os m an d am en tos: N ão m a ta rá s; não ad u ltera rá s; não furtará s; n ão dirás fa lso testem u n h o; a ninguém d efrau d arás; honra a teu p ai e a tu a m ã e. 20 E le, p orém , lh e replicou: M estre, tudo isso tenho guardado d esd e a rainha ju ven tu d e. 21 E J esu s, olhando p ara e le , o am ou e lhe d isse: U m a co isa te fa lta : v a i, ven d e tudo quanto ten s, e dá-o a o s pobres, e terá s um tesouro no céu; e v e m , seg u e-m e. 22 M as ele, p esaroso d esta p alav ra , retirou-se tris- ^ te, porque p ossu ía m u itos bens. 23 E n tão J e su s, olhando e m redor, d isse aos seu s d iscíp u los: Quão d ificilm en te e n ­ trarão no reino de D eu s os que tê m rique­ zas! 24 E o s discípulos se m aravilh aram d estas su a s p a la v ra s; m a s J esu s, tom ando a fa la r, d isse-lh es: F ilh o s, quão difícil é (para o s que confiam n a s riq u ezas) entrar no reino de D e u s ! 25 É m a is fá cil um cam elo p assar pelo fundo de u m a ag u lh a , do que entrar u m rico no reino de D eu s. 26 Com isso e le s fica ra m sob rem an eira m aravilh ad os, dizendo entre si: Q uem pode, en tão, ser salvo? 27 J esu s, fixando os olhos n ele s, r e s ­ pondeu: P a ra o s hom ens é im p o ssív el, m a s não p ara D eu s; porque para D eu s tudo é p ossível. 28 P ed ro com eço u a dizer-lhe: E is que nós d eixam os tudo e te seg u im o s. 29 R espondeu J e s u s : E m verd ad e v o s digo que ' ninguém h á, que tenha deixado ca sa , ou irm ãos, ou irm ã s, ou m ã e , ou pai, ou filh os, ou cam p os, por am or de m im e do ev a n g e ­ lho, 30 que não receb a ce m v e z e s tanto, já neste tem p o, em c a sa s , e irm ãos, e irm ã s, e m ã es, e filhos, e cam p os, com p erseg u içõ es; e no m undo vindouro a v id a e te m a . 31 M as m uitos que são p rim eiros serão ú ltim os; e m uitos que são últim os serã o p rim eiros.

Correu... um homem... e se iúoclhou. A história em Marcos não nos informa que ele era jovem (v. 20; cf. Mat. 19: 16-22) ou que ele era chefe (Luc. 18:1824). Não era costume se ajoelhar diante de um rabi; portanto, o ato foi de alguma reverência. Dirigir-se a alguém como Bom Mestre era muito incomum. Aquele homem deve ter usado bom de alguma forma lisonjeira. A resposta de Jesus 422

repete a mesma palavra, com referência óbvia a atributos morais; e só Deus é bom (perfeito) nesse sentido. Seja qual tenha sido a intenção origi­ nal desse homem, ao dirigir-se a Jesus como bom. Marcos e seus leitores facil­ mente teriam aplicado essa palavra ao Senhor ressurrecto sem hesitação. Há alguns eruditos, contudo, que pensam que pretendia-se algum contraste entre a “bondade absoluta” de Deus, e a de Jesus (Taylor, Rawlinson, H. R. Mackintosh). As palavras permitem esta inter­ pretação, e passagens como Hebreus 4:15; 5:8, são citadas para apoiar este conceito. Em nenhum outro lugar. Marcos sugere qualquer limitação ou falta de bondade em Jesus, e é desne­ cessário entender assim esta passagem. Os leitores de Marcos deviam ter enten­ dido que o Filho de Deus era como Deus, e isso incluiria a plena bondade moral. O homem estava procurando a vida eterna. No Evangelho de João, ter a vida eterna é virtualmente equivalente a en­ trar no reino de Deus; mas ele se refere à qualidade de vida que é eterna, por causa de sua própria natureza. Nos lábios do homem que abordou Jesus, contudo, significava herdar (isto é, adquirir) parti­ cipação na era vindoura. Assim também o versículo 30. Jesus respondeu citando grande parte da segunda metade do Decálogo. Um outro mandamento é acrescentado: A ninguém defraudarás, talvez como ênfase especial a uma fase de Não furta­ rás, ou em lugar de “Não cobiçarás” . Isto era especialmente apropriado para homens ricos, cujas oportunidades para privar ou defraudar (algumas vezes legal­ mente) pessoas menos afortunadas eram consideráveis. O verbo era usado, por exemplo, acerca da retenção de salários de empregados, ou da não devolução de bens ou dinheiro no tempo aprazado. Não há implicações de que a segunda parte dos Mandamentos seja mais impor­ tante do que a primeira; todos eles eram


considerados provindos de Deus e origi­ nários da sua vontade. O homem ficou desapontado com a resposta de Jesus. Não era a mesma coisa que lhe haviam dito, e até na mesma linguagem? As profundezas do signifi­ cado dos Mandamentos ele nunca havia sondado; ele era, provavelmente, mais bisonho do que desonesto, ao dizer que os havia guardado desde a juventude. Os rabis criam que o homem possuía a capacidade de guardar todos os M anda­ mentos de Deus (Cranfield, Strack e Billerbeck). Mas Jesus requeria uma justiça que fosse interna, bem como externamente obediente, de forma a o próprio ser do homem estar de acordò com a vontade e o caráter do Pai Celes­ tial (Mat. 5:17-48). De qualquer forma, a resposta de Jesus — intencionalmente, podemos* supor — provocou o homem a falar mais. Ele devia ter vindo a Jesus porque o fato de guardar as leis o tornava inadequado e sem segurança no que se referia aos assuntos eternos. Não havia nada mais para ele? Jesus o amou; provavelmente devemos entender este verbo (agapao) no sentido de incluir aqui alguma idéia de atração e afeição (Assim pensam Taylor, Bratcher, J. Moffatt, mas não Granfield; Mateus e Lucas omitem esta palavra). Contudo, o significado básico desta palavra está certamente presente: é aquela espécie de amor que, a despeito de afeição ou mere­ cim ento, p ro cu ra deliberadam ente ajudar, satisfazer às necessidades de outrem. É uma qualidade essencial que Jesus estabeleceu para os crentes, e é esperada em relação não apenas a Deus, e ao próximo, mas até ao inimigo (Mar. 12:28-34; Mat. 5:43 e s.). Uma coisa te falta. Jesus não lhe diz exatamente qual é essa coisa, mas diz-lhe o que é necessário para essa coisa, no caso dele, se tornar realidade. Tudo quanto tens, disse Jesus, está entre ti e o resultado de tua busca. Não o retenhas:

vende-o, e dá-o aos pobres. É como o Evangelho de Marcos tem estado a dizer: Deus toma nota do ato bondoso e al­ truísta de um homem (9:41), e algumas vezes o homem precisa desfazer-se do que lhe é mais caro, se quiser entrar no reino (9:43,45,47). Obviamente, Jesus entendeu que esse homem era uma vítima dos conceitos de sucesso e da “boa vida” e de segurança que prevaleciam na sua época (Sem dúvida, há idéias paralelas na cultura moderna). O que mais significava para ele, aquilo em que ele confiava para ter segurança, o tipo de vida de que ele gostava e achava confortável o haviam isolado da entrega verdadeira e absoluta a Deus. Como poderia ele irromper para um novo caminho? Como poderia chegar a confiar genuinamente em Deus? EraIhe necessário desfazer-se das coisas que impediam uma fé inabalável, e começar de novo, seguindo a Jesus. Um tesouro no céu é uma expressão judaica, mas não deve ser entendida como algo adquirido por meios próprios nem como alguma riqueza especial. Nos ensinos de Jesus, esta frase é colocada em contraposição com a transitoriedade e a falsa segurança das riquezas desta vida (cf. Mat. 6:19 e ss.). Tesouro no céu se refere simplesmente às coisas que Deus acha importantes. O versículo 22a é traduzido idiomati­ camente em vossa versão; o verbo signi­ fica que ele ficou melancólico, ou (menos provável) que ele ficou chocado com o que Jesus disse. O fato de que o homem retirou-se triste é o único raio de espe­ rança nesta história, mas oferece apenas uma esperança fugaz. Será que ele iria ser transformado? A razão por ele se afastar permaneceu dominante em sua pessoa: possuía muitos bens. Só aqui, em todos os Evangelhos, uma ordem de Jesus para alguém segui-lo é claramente rejeitada. O resto da conversa é com os discí­ pulos, mas está intimamente relacionada 423


com o problema suscitado pela inquiri­ Ele qualifica a sua própria palavra, ção do homem e sua riqueza. O povo dizendo que realmente não é impossível judeu considerava a riqueza como sinal para Deus (v. 27), mas ele deve ter arre­ da bênção de Deus. Mas Jesus reconhe­ batado com êxito a atenção dos seus dis­ ceu plenamente como é difícil um ho­ cípulos com esta hipérbole. Pelo menos, mem buscar humildemente o caminho de isto é parte do que pode ser inferido da Deus, e deixar a sua vida ser determi­ resposta de Pedro no versículo 28. nada pela vontade de Deus, se ele tem Qual, pois, é a recompensa daqueles outros valores mais tangíveis e em que que satisfazem as qualificações e se tor­ aprendeu a confiar. Não é de se admirar nam discípulos? Esta devia ter sido a que os discípulos se maravilharam com pergunta prática dos doze, mas era uma as palavras de Jesus, pois eles eram pergunta que não diminuía em interesse ainda, em demasia, discípulos de sua para os cristãos primitivos. É possível cultura judaica, e não percebiam plena­ que a redação da resposta de Jesus tenha mente todos os contrastes entre a sua sido ligeiramente alterada, por causa da herança cultural e os ensinos de Jesus. experiência dos cristãos primitivos: por A reação de Jesus para com a perple­ amor de mim e do evangelho (v. 29) e xidade dos discípulos foi, antes de tudo, com perseguições estão de acordo com os a de ampliar o alcance das suas palavras ensinos de Jesus em geral, embora sejam no versículo 23: é difícU, para qualquer especialmente apropriados para os leito­ pessoa, entrar no reino. As palavras res de Marcos (cf. Mat. 19:29; Luc. “para os que confiam nas riquezas” não 18:29 es.). estão em nossos melhores manuscritos. Mas é especialmente difícil para aqueles As recompensas do discipulado haverá para quem a riqueza tem sido um fator tanto neste tempo quanto no mundo ponderável na vida. vindouro. No presente a recompensa Para enfatizar mais essa verdade, encontra-se na família de Deus, uma Jesus recorreu à mais forte espécie de com unidade de com partilham ento. hipérbole. O camelo era o maior animal Comparado com o que a pessoa é e tem, comumente visto naquela terra, e o fun­ . o novo relacionamento na família de do de uma agulha o buraco menor de que X)eus é superior a cem vezes tanto. eles comumente falavam. Claro que Depois desta era, o verdadeiro discípulo nenhum camelo podia realmente passar receberá o que aquele homem rico estava pelo fundo de uma agulha; Jesus estava buscando (v. 17): a vida eterna. dizendo: é impossível um rico entrar no A declaração acerca de primeiros que reino. Mas o “ impossível” é figura dada serão últimos e últimos que serão pri­ não para ser entendida literalmente, mas meiros encontra-se também em outros para enfatizar o quanto é difícil! "*0 contextos (Mat. 20:16; Luc. 13:30). Ela dá a entender que haverá algumas sur­ presas quanto às recompensas eternas (os 40 Cf. W . O . E. Oesterley (tr.), The Sayings of the Jewish Fathers, (London; S .P .C .K ., 1919), p. 53, que cita um julgamentos do homem — como por M idrash (Shir R abba, v. 2) que apresenta m etáfora exemplo, o de Pedro — são afetados sem elhante: “A bre p a ra mim um a p o rta de arrependi­ naturalmente por considerações terre­ m ento tão grande quanto o fundo de u m a agulha, e eu abrirei p a ra vós portões abertos, suficientes p a ra car­ nas). Grant sugere que os leitores perse­ ruagens e cavalos.” A tradução, “co rd a” (em vez de guidos de Marcos podiam pensar em si camelo) depende de um a hipotética alteração do texto. mesmos como estando “entre os últimos A cham ada p o rta “ fundo de agulha” , que dizem ter sido um a en trad a pequena, ab erta depois de caída a a ser chamados” , e aqui encontraram noite, suficiente p a ra p assar apenas um cam elo sem encorajamento para crer que alguns de­ cargo, e de joelhos, é u m a ficção fantasiosa da ima­ ginação do século XV (G ran t, Taylor). les podiam ser dos primeiros no reino. 424


13) O FUho do Homem Sofrerá (III) (10:32-34) 32 Ora, esta v a m a cam inho, subindo para Jeru salém ; e J esu s ia ad ian te d eles, e e le s se m a ra v ilh a v a m e o seg u ia m a tem o riza ­ dos. D e novo tom ou consigo os doze e c o m e ­ çou a contar-lhes a s co isa s que h a v ia m de lhe sobrevir. 33 dizendo: E is que subim os a J eru sa lém , e o F ilho do h om em será e n ­ tregue a o s principais sa cerd o tes e a o s escrib as; e e le s o condenarão à m orte, e o entregarão ao s g e n tio s; 34 e hão de escarnecé-lo e cuspir n ele, e açoitá-lo, e m atá-lo; e depois de três d ias ressu rgirá.

Está é a terceira predição da paixão; cf. as notas acerca de 8:31-33 e 9:30-32 (As passagens paralelas são Mat. 20:1719 e Lucas 18:31-34). Sendo a última, esta é mais específica e detalhada. A história do que realmente aconteceu em Jerusalém era, naturalmente, bem conhecida de todos os cristãos do primei-^ ro século, e comentadores recentes pen­ sam que o conhecimento que tinham da paixão, depois que ela aconteceu, influ­ enciou consideravelmente a repetição das palavras proféticas de Jesus. Cranfield, contudo, nos adverte, com razão, contra a tendência de atribuirmos apressada­ mente a autoria deste parágrafo à mente criativa dos cristãos primitivos. Na ver­ dade, Jesus previu a sua morte, e as minúcias apresentadas seriam comuns no caso de uma sentença capital. Mais do que antes, nessa ocasião Jesus parece ser ativo em fazer acontecer o seu triste destino (Nineham). Ele ia adiante deles em direção à cidade, cujos líderes, predissera ele, iriam condená-lo à morte. Eles se maravilhavam, refere-se, provavel­ mente, aos doze. Os que o seguiam é um grupo maior, mas o verbo, provavelmen­ te, dá a entender alguma medida de discipulado; eles ficaram atemorizados pelo curso dos acontecimentos e pelo resoluto caminhar de Jesus. As minúcias apresentadas nos versí­ culos 33 e 34 têm alguns paralelos no Antigo Testamento (cf. especialmente Is. 50:6 e Sal. 22). Marcos devia ter conhecimento dessas passagens. Toda­

via, Minear está provavelmente mais próximo da intenção de Marcos, quando descreve estes versículos como descrição do batismo com que Jesus iria ser bati­ zado (v. 38). O que iria acontecer a Jesus fazia parte da essência do que significava ser grande no reino de Deus. Note, outra vez, como é íntima a relação entre cada uma das predições de Jesus acerca do seu sofrimento e a sua conclamação a um discipulado pleno e obediente. 14) Ambição Egoística Versus Grande Discipulado (10:35-45) 35 N isso ap roxim aram -se d ele T iago e João, filh os de Zebedeu, dizendo-lhe: M es­ tre, q u erem os que nos fa ç a s o que te p ed i­ m os. 36 E le , p ois, lh es perguntou: Que quereis que eu vos fa ça ? 37 R esponderam -lhe: Concede que n a tu a g lória nos sen tem o s, um à tua d ireita , e outro á tua esq u erd a. 38 M as J esu s lh e s d isse: N ão sa b e is o que p edis; podeis beb er o c á lic e que eu bebo, e ser b atizados no b a tism o e m que eu sou b a tiza ­ do? 39 E lhe resp on d eram : P od em os. M as J esu s lh es d isse: O c á lic e que eu bebo, hav eis de bebé-lo, e no b atism o e m que eu sou batizado, h a v e is de se r b a tiza d o s; 40 m a s o sen tar-se à m in h a d ireita , ou ã m in h a e s ­ querda, n ão m e p erten ce concedê-lo; m a s isso é p a ra aq u eles a q u em e stá reservad o. 41 E ouvindo isso os dez, co m eça ra m a indignar-se contra T iago e João. 42 E ntão J esu s cham ou-os p ara junto de si e lh es d isse: S ab eis que os que são reconhecidos com o govern ad ores dos gen tios, d eles se a ssen h o reia m , e que sobre e le s os seu s grapd es e x e r c e m autoridade. 43 M as en tre vós nãiO se r á a ss im ; a n tes, qualquer que entre vós q u iser to m a r-se grande, se r á e ss e o que vos sirv a ; 44 e qualquer que entre vós quiser ser o p rim eiro, se r á serv o de todos. 45 P o is tam b ém o Filh o do h o m em não v eio p ara ser servid o, m a s para serv ir, e p ara dar a sua vida e m resg a te de m u itos.

Tiago e João criam que Jesus era o Cristo, e esperavam a sua exaltação (9:2-8); porém, como Marcos narra a história, eles ainda eram desgraçada­ mente incapazes de apreender o signi­ ficado do papel de servo de Jesus (cf. 9:33-37). Ainda absorvidos pelos padrões de grandeza que tinham em vista desde a infância, eles pediram os dois lugares de honra (assentos, ou tronos, um à direita 425


3j 1 ' ^ - Ê^.cN3 e '3 ^ J r ^ 4 ^ < ^ o C ^ , /d o rei, e outro a esque; viesse em poder. Na tua glória deve refe­ rir-se à glória messiânica de Jesus, como em 8:38 (cf. Mat. 20:21). Todavia, a glória de Jesus ainda é compatível, na mente dos discípulos, com um reino semelhante aos deste mundo. O seu pedido é, em algo, paralelo a um pedido para ser nomeado Ministro da Guerra e Ministro da Fazenda no gabinete presi­ dencial. A resposta de Jesus foi primeiramente para Tiago e João (v. 38-40), e, posterior­ mente, à indignação dos outros discípu­ los (v. 42-45). Grandeza, no reino de Jesus, requer que eles bebam o seu cálice e se submetam ao seu batísmo. Beber o cálice de alguém significa suportar a sorte dessa pessoa e aceitar o seu destino; a figura do cálice foi usada algumas vezes com a conotação de alegria (Sal. 23:5; 116:13), mas também, como aqui, de sofrimento (Is. 51:17-22; Sal. 75:8 e s.; Jer. 25:15). Batismo também foi usado figuradamente, especialmente falando de turbações e sofrimentos que sobrevêm a uma pessoa ou cidade (Moulton e Milligan citam exemplos encontrados em papiros). Para os leitores de Marcos, referências ao significado do batismo cristão e à Ceia do Senhor eram inevitá­ veis. O cálice é o que Jesus já está bebendo, e o batismo é o que também já está sendo experimentado; esta é a interpretação mais natural das formas verbais. (Assim pensam Taylor; mas muitos, inclusive Cranfield, Bratcher e Lagrange, pensam que elas se referem apenas ao que logo está para acontecer.) O cálice não será esgotado enquanto não for bebido na cruz. E o batismo de Jesus, realizado por João, era o ritual de iniciacão, que m ar­ cava a dedicação de Jesus à sua obra, como o forte Filho de Deus (cf. notas sobre 1:9-11). A tarefa iniciada não será acabada enquanto o mundo, em conflito com a liberdade e integridade expressas no Filho, não fizer o pior, matando Jesus. 426

r«w-#í?“0í.e,ef{?)’yvfv -a» sabiam o que pediam; o sofrimento não seria confinado a Jesus. Poderiam eles agüentar e ser fiéis? Eles replicaram: Podemos. Na verdade, Tiago foi morto como apóstolo de Cristo (At. 12:2). Uma tradição diz que João foi martirizado como o seu irmão. Mas a evidência mais decisiva é de que João ainda estivesse vivo quando Marcos foi escrito, e, como velho, viveu pacificamente em Éfeso. Não precisamos supor que Jesus, ao falar de cálice e batismo, referiu-se sim­ plesmente ao martírio. O cálice e o batis­ mo do crente acarretam a negação do eu, e o ato de tomar a sua cruz; isto é, ele deve estar disposto a seguir a Jesus sem reservas (cf. o comentário sobre 8:34 e s.). Algumas vezes o destino de um cren­ te, através do qual ele deve demonstrar a sua fé, pode ser mais difícil do que a própria morte. O uso que Marcos faz das figuras do batismo e do cálice, reflete a profunda seriedade com que as duas ordenanças sagradas foram recebidas pelos cristãos romanos (cf. Paulo, em Rom. 6:3). Eles estavam bem cônscios do que a sua dedi­ cação poderia lhes custar. No versículo 40, Jesus diz aos seus dois apóstolos que, de qualquer forma, não tinha autoridade para conceder-lhes o que haviam pedido. Ê para aqueles a quem está reservado significa que a prer­ rogativa pertence a Deus. A indignação dos dez era de se espe­ rar. Provavelmente eles tinham iguais ambições de posição. Jesus aproveitou-se da oportunidade para ensinar-lhes de novo qual é o caminho da grandeza no seu reino. Não é o caminho do povo que não reverencia nem segue a Deus, isto é, os gentios. Os que são reconheci­ dos como governadores não significa que de fato não governem sobre os outros, da maneira como os homens consideram o governo; mas Jesus não considera a sua posição como grande, ou o seu poder como capaz de libertá-los. Eles contro­ lam os outros, e acham que este fato os

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Ma -ít t ^ ^1:oma^o como homens de estatura Contudo, a ênfase de Marcos permanece - - j superior. sobre Jesus como _2 Servo exemplar. -------------------------------- ^^ ^ Para os seguidores de Jesus, não sera^^ F. J. Taylor considera que o versículo P a s s im . O grande será o que vos sirva, |_45 resume o caráter e objetivo do minis- ^ V o primeiro. ^ . e------:— o servo de todos. O que é^». tério de Jesus. Aqui Jesus afirma, diz ele, ^ sinal de grandeza não é o exercício d e ^ ( 1) que o sacrifício de si mesmo era delipoder, mas o espírito e prática de servir > berado e voluntário; ( 2) que o que ele fez ao próximo. ^ re q u e ria a sua vida; (3) que era feito por o. exemplo supremo é Jesus. A suaJ:§ muitos algo que eles não podiam fazer, dedicação foi a uma vida de ministério | mas que era necessário que tivessem altruísta. O Fillio do liomem não veio esperança; e (4) que o que foi feito foi por para ser grande como os homens consi- í muitos (isto é, por homens, sem nenhu­ ^ deram a grandeza; pelo contrário, ele I ma parcialidade; a palavra não exclui a ^ ^ queria não ser servido, mas servir. O idéia de todos) . ‘*1 ^ s-, fro + •kj *. S, m sc., rvW(A'=^> ^ supremo exemplo de serviço dado por <* Jesus foi aTÍoação de sua vida, e desta ^ 15) A Cura de Bartimeu (10:46-52) r ^ ^ fo rm a ele serviu de resgate de m uitos.'^ 46 D ep ois ch eg a ram a / j e r i c ó j E , ao ê í^ de Jerico , co m seu s d iscíp u los e um ^ A palavra resgate ocorre nos Evange-----a grande m ultidão, e sta v a sentad' junto do ^ I ^ lhos apenas aqui e no paralelo de M ateus.^ cam inho u m m en d igo c e g o .^ la r tim e u ^ filh o ^ 5. ' ^ (20:28), embora palavras gregas cognaT im eu. 47 EstêT^iuàndõ ouvm que e r a ^ V —^ tas (traduzidas como redimir, r e d e esusT) n oç nazareno, ã o ,^ m ae ç ò ü, ST^ 4 :> P redentor) sejam comuns na Bíblia grega. ^ dizendo l^jesus.^l^ ih ird e jjã v i) te^* Um resgate era o preço de libertação ^ Prisão de mim ! 48 E miiLtos. o repreem ^ ‘i" um escravo. N o ^ ^ o _ O I Antigo Testamento, especialmente quan -3 ^ d e ^ S ^ ! 49^ l ã 5 : ^ i g : ^ ^ s ^ f ^ s g rfa g " ' ^ 'è^do Deus é considerado o Redentor, a ^H^Chamaio. E 'chãmãrWíiTocêgo, dizendo-. nÍ! ênfase não está no preço pago, mas na_|({l**e: Tem bom ânimo; levanta-te. f^ei^ te ^ liberdade e restauração ao favor divino, | J ^ um salto se le v antou e foi ter c o m ^fesusT]

0 salvou . E im e^ atam giijie recuperou a ^ t a , ^ ^ ^ O ià h r « T T c ú « y ilír i/1 />

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Faraó, quando Israel foi remido da escravidão, e, da mesma forma, Jesus-S 0 / Jerieó fica ao norte do Mar Morto, e do ^ não pagou nada a nenhum poder do mal, ^ „lado oeste do rio Jordão. Ê, ao que sabepara resgatar a humanidade. A figura^ [-^mos, o local mais antigo continuamente ^ não pode ser empregada desta forma. ' l habitado, como o têm certificado as esca- T A palavra assevera apenas que a dádiva iívações dos anos recentes. Era uma boal que Jesus fez de si próprio é um veículo Ç'Icidade durante o ministério de Jesus, de redenção. ^ tí i m a principal estrada p^raTjerusaïénp^ Ä ® O resgate é de muitos. Esta preposiçã(^"pcomeçãra_________ . ___aqui. ..__ ^•'pcomeçava a sua ascenção 1, h- O^geralmente- significa “em lugar de” , i ^ embora algumas vezes seja usada no-^ 2 ^ e m ! em a . R ichardson, X he.lo-^f, á 7i § sentido de “em favor de” . A l i n g u agicalg W orbook of the Bible (New York; M acm illan, -3 0 1951), p. 185-87. A literatura acerca deste versículo e aqui tinha conotações sacrificiais para os as interrogações levantadas d a expiação,. ^ 0 ^ f h, hebreus, e a preposição dá a entender . . ,aqui, acerca . ^ 1 sao volumosas. Veja especialm ente J. Knox, The D eath ^ que Jesus tez por muitos algo que eles ^ 1 ^ «f C hrist: The Cross in NT History an d F aith (New não podiam fazer para si ou por si mes‘ ^— .------ ^ Sacrifice (London; M acm illan, 1937); J. Denney, The ^ ^ mos. A frase, como o diz Rawlinson, D eath of Christ, ed. Rev. p e r R. V. G. Tasker (Lon•'»3 -=C S^resume o pensamento de Isaías 53. don: Tyndale, 1951).^ Q

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Bartimeu significa filho de Timeu. Será^ue o^seujipmejoi lembrado porque ele se tornou um p ro em in en ^ ^ i^ íjjS p (t,_S2X (TMarcos^os revela o nome d e íe lcf. Mat. 20:29-34; Luc. 18:35-43). Provavelmente todos os cegos da terra haviam ouvido falar de^Jesus de Nazarét^ Seja o que for_que tenhSnrcõncTíudaJg outros, ( bartim eu^creu aue ele era o esperadoTlVlessi^.l pois dirigiu-se a ele como sendo o Filho de Davi. Esta é a primeira vez que^êsu^aceita essa identi-, ficação sem repreender a pessoa que a expressa, ou sem ^m ãT niunção aò silêncio. Este incidente é uma previsão de que CTésus^^jentrará em fjerusalém lcomoCMess iã |( l l : l - l l ) ^ Comovo caso das crianças (10:13-j^6). muil5s~'torErãm~silCTcia^ j Hartimeu \ e p ro te g e r0 ^ u ^ ou a si mesmos?) contra ‘i ^ n ^ ç ã o . O povo deve ter pensado que ele estava apenas pedindo esmolas. Em qualquer caso, o homem foi persis­ tente, e ^FesusViandoü chamá-lo. Tantos detalhes aêvem expressar uma reminis­ cência pessoal, t^vez déCPedroJi As palavras d^èsjjsjy L tu aM te salvou, mostram a reaçã^o dõ(Mestrè)à confiança pessoal desse homem. Esta é a última história antes dê(Jesug p n trárjm (Jerusa-l Tem, è focaliza o l í r i c o d^Jesus^^mTãvor das muitas pessoas por quem está dando a vida (v. 45). O mendigo cego é uma dessas pessoas, e as palavras te salvou são bem exatas, expressando bem o originai. É possível que para Marcos a narrativa não seja apei^ üjustórica, mas uma parábola do queO%Sus faz por aque­ les que acham tão^difícinêr (cf. 4:10-12). e, no entanto, colocam a sua fé nele. 2. A Chegada a Jerusalém e o Conflito com os Líderes Religiosos (11:1— 12:44) 1) As Declarações de Jesus em Atos Parabólicos U 1:1-19) (1)A Entrada Triunfal em Jerusalém ( 11 : 1 - 11 ) 1 Ora, quando se a p ro x im a v a m de J eru ­ sa lém , de B etfagé e de B etâ n ia , junto do

428

M onte d a s O liveiras, en viou J e su s dois dos seu s discípulos % e d isse-lh es: Ide à ald eia que e stá defronte de v ó s; e logo que n ela entrard es, en con trareis p reso um jum entínho, em que a in d a nin gu ém m ontou; despreendei-o e trazei-o. 3 E , se alg u ém vos perguntar: P or que fa z e is isso ? respondei: O Senhor p recisa d ele , e logo to m a rá a enviá-lo p ara aq u i. i F o ra m , p ois, e a c h a ­ ram o jum entinho p reso ao portão do lado de fora na rua, e o d esp ren d eram . 5 E alguns dos que ali e sta v a m lh es p ergu n taram : Que fa zeis, desprendendo o jum entinho? 6 K«sponderam com o J esu s lh es tinha m a n d a d o ; e lho d eix a ra m lev a r. 7 E n tão trou xeram a J esu s o jum entinho e la n ça ra m sobre e le os seu s m a n to s; e J e su s m ontou n ele. 8 M uitos tam b ém esten d era m pelo cam inho os seu s m an tos, e outros, ra m a g en s que tinham cortado nos cam p os. 9 E tanto o s que o p r e ­ ced ia m com o os que o seg u ia m , c la m a v a m : H osana! bendito o que v e m em nom e do Senhor! 10 B endito o reino que v e m , o reino de n osso pai D a v i! H osana n as a ltu r a s! 11 Tendo J esu s entrado e m J eru sa lém , foi ao tem plo; e tendo observado tudo e m r e ­ dor, com o já fo sse tard e, sa iu para B etãn ia, com os doze.

Tanto por injunções ao silêncio quanto falando de si mesmo em outros termos, Jesus havia tentado abafar comentários acerca de si como o Cristo, o Filho de Davi, o Rei de Israel. Ele não permitiu que as vozes dos endemoninhados conti­ nuassem a identificá-lo (3:11 e s.), e advertiu os seus discípulos para não usarem o título “Cristo” (8:29 e s.). Agora, quando o seu ministério está chegando ao fim, o que ele prevê clara­ mente, ele deliberadamente provoca a multidão em sua especulação acerca dele. É difícil interpretar a entrada de Jesus em Jerusalém de outra maneira que não um ato simbólico, uma parábola drama­ tizada, pela qual ele afirmou a sua iden­ tidade. Jesus entrou em Jerusalém não como o Cristo-Rei que muitos espera­ vam, mas de uma forma que estava de acordo com a sua compreensão pessoal do seu papel. Ele é “chefe” ou “Rei” ou “Messias” , mas sempre servo, um homem de paz, manso e humilde. Por­ que a sua ação não era de forma alguma


uma concentração de agitadores políti­ cos, os oficiais romanos parecem não terem nem prestado atenção a ela. M ar­ cos nem seguer faz menção da oposição de alguns valentões religiosos (cf. Luc. 19:39-44). As interrogações acerca da identidade de Jesus já deviam estar grassando entre os adoradores que estavam na cidade. Se até um mendigo cego estava cha­ mando Jesus de Filho de Davi, podemos estar certos de que outras pessoas esta­ vam entusiasmadas com a possibilidade de que Jesus fosse o Rei vindouro. Lucas 19:11 assevera que alguns esperavam que o reino “se havia de manifestar ime­ diatamente” . Os mais próximos paralelos da ativi­ dade de Jesus, em sua vinda a Jerusalém, encontram-se em Zacarias 9—14. Desde o princípio do seu ministério, Jesu s. havia-se identificado com os propósitos do Deus de Moisés e dos profetas. M ar­ cos não menciona Zacarias aqui, como o fazem os outros evangelistas. Não obs­ tante, Jesus parece ter-se identificado deliberadamente com grande parte dessa profecia, e neste sentido ofereceu-se como seu cumprimento, e, por isso, como rei de Israel. Embora os cristãos primitivos devam ter chegado a entender a entrada, o ato de Jesus não foi de fato uma reivindica­ ção imediatamente clara e insofismável de que era o Cristo. Ele, pessoalmente, disse pouco, e a sua ação não é mencio­ nada nos relatos dos seus julgamentos, que se seguem. Precisamos entender esse seu ato como parábola ou símbolo. “Os de fora” e até os seus discípulos não o entenderam claram ente (cf. M ar. 4:10-13; João 12:16).

42 Cf. R. G rant, A Historical Introduction to the NT (New Y ork; H arp er, 1963). p . 305 e s. G ra n t T am bém pensa que Jesus, como os seus discípulos, esperava que o reino viesse quando ele entrasse em Jerusalém . M as esta, de qu alq u er form a, é u m a conclusão desneces­ sária, e está certam ente errad a, se Jesus estava preven­ do o seu sofrim ento e m orte.

Betânia fica a sudeste de Jerusalém, mais longe da cidade do que- o subúrbio de Betfagé, que, de acordo com fontes judaicas, estava à distância da jornada de um sábado. Aparentemente, Jesus mandou de Betânia buscar o jumenti­ nho. A descrição em que ainda nii^uém montou pode sugerir a um estudante cristão das Escrituras, um animal sacri­ ficial, bu pelo menos um animal adequa­ do para um objetivo santo (cf. Núm. 19:2; Deut. 21:3). Mas pode ter sido originalmente o único animal disponível. Jesus enviou dois dos seus discípulos para buscar o jumentinho, com instru­ ções para dizer a quaisquer inquisitores: O Senhor precisa dele. Seria impossível o cristão pertencente a uma igreja cristã não pensar em Jesus como seu Senhor ressurrecto e exaltado, na época em que estas palavras foram escritas. Mas a palavra grega traduzida como Senhor significa também proprietário ou mestre, e é difícil crer que (se realmente falavase grego) os circunstantes tenham en­ tendido essa palavra em referência à divindade, ou mesmo a Jesus. Os relatos paralelos, especialmente Lucas 19:31 e s., mostram que foram os “proprietá­ rios” (a palavra equivale a “ os senho­ res”) que perguntaram: “Por que o des­ prendeis?” As conclusões mais prováveis a serem tiradas são; (1) que Jesus havia combi­ nado com o proprietário o empréstimo do jumento, e havia sugerido uma espécie de senha de identificação (o dono podia ser um amigo que comumente andasse na companhia de Jesus); (2) que Marcos está pensando em Jesus como Senhor, não considerando a simples questão histórica. O resto da instrução de Jesus aos seus discípulos (logo tornará a enviálo para aqui) varia grandemente nas nar­ rativas: Lucas o omite e Mateus muda completamente o seu significado. Os discípulos prepararam o jumen­ tinho para ser montado, lançando sobre ele os seus mantos, aparentemente em lugar de uma sela. A homenagem pres­ 429


tada a Jesus, neste ato, é reminiscente de II Reis 9:13, em que homenagens reais foram prestadas a Jeú. As ramagens (essa palavra é também aplicada a col­ chões que são feitos de palha, folhas, etc.) foram encontradas nos campos pró­ ximos, e as estenderam pelo caminho, também em honra de Jesus. Ramos de palmeiras são mencionados apenas em João 12:13, mas a narrativa aqui em Marcos também faz recordar o triunfo de Simão, grande herói Macabeu, que en­ trou na cidadela de Jerusalém “com louvor e ramos de palmeiras” (I Mac. 13:51). Tanto os que o precediam como os que o seguiam; a multidão é uma só, todos rodeando e aclamando Jesus. Hosana literalmente era um grito pedindo ajuda, e em Salmos 118:25 (cf. II Sam. 14:4; II Reis 6:26) ela é corretamente tradu­ zida como “salva” . Mas Salmos 118 era cantado na Festa dos Tabernáculos e na Páscoa, e assim podia ser usado popu­ larmente como um grito de boas-vindas e aclamação para o povo que entrava no Templo. Os leitores de Marcos provavel­ mente entenderam Hosana simplesmente como “ Salve!” ou como alguma palavra de louvor. Se aqui ela é mais do que uma palavra de louvor ou ação de graças,devemos entendê-la com o significado de “Deus o salve” , no versículo 9, e “Deus no céu o salve” , no versículo 10 (assim o entendem C. C. Torrey e Taylor). Bendito o que vem em nome do Senhor. O Senhor aqui significa Deus. A linha é de Salmos 118:26 (LXX), e ele pode ter sido aclamado antifonicamente com a linha seguinte: Bendito o reino que vem, o reino de nosso pai Davi! Ê bem natural entender o que vem como um título messiânico (cf. Mat. 11:3; mas certamente ele não era úsado costumeiramente). De qualquer forma, estas pala­ vras da multidão prenunciam a vitória messiânica. No entanto, permanece óbvia que a multidão não compreendia a 430

natureza do papel de Jesus como Filho do homem sofredor. Cavalgando o jumentinho, não como um guerreiro conquistador, mas como um homem de paz, Jesus entrou na cida­ de. Tanto Mateus como Lucas o vêem purificando o Templo logo depois, porém Marcos simplesmente diz que ele foi ao templo; e tendo observado tudo em redor... Depois, saiu da cidade, a fim de passar a noite em Betânia, com seus discípulos. (2) A Figueira Amaldiçoada (11:12-14) 12 N o dia seg u in te, depois de sa írem de B etãn ia, tev e fom e, 13 e , avistan d o de longe u m a fig u eira que tinlia follias, foi v er se , porventura, a ch a ria n ela a lg u m a co isa ; e, chegando a e la , nada achou sen ão folhas, porque não e r a tem p o de fig o s. 14 E J esu s, falando, d isse à fig u eira : N u n ca m a is com a a lgu ém fruto de ti. E se u s discíp u los ou v i­ ram isso .

Este é o único “milagre de maldição” atribuído a Jesus nos Evangelhos canô­ nicos. Ã primeira vista, parece, ele, tão fora do caráter de Jesus, que muitas pes­ soas o comparam às estórias dos Evan­ gelhos apócrifos. (Nestes “Evangelhos” mencionados, há até estórias do menino Jesus amaldiçoando os que agiram cruel­ mente, de forma que eles morrem — ato totalmente estranho ao caráter de Jesus, como o conhecemos pelos livros canôni­ cos.) Alguns eruditos acham que esta história não foi nenhum milagre, mas que foi a história de um milagre criada provavelmente da parábola de Lucas 13:6-9 (Johnson, J. Weiss, Branscomb e Taylor). Marcos certamente julga esta narra­ tiva histórica — os detalhes apresenta­ dos são precisos demais para supor-se de outra forma — mas o seu significado era, para ele, simbólico. Neste parágrafo, ele se relaciona com o fato de o povo de Deus não ter reconhecido o Filho de Deus e seu Rei, e, desta forma, com a sua inutiüdade para os propósitos de Deus. Nos versículos 20-25, Marcos também liga a narração com oração, fé e perdão.


No dia seguinte; devia ser segundasatisfazer o seu próprio desejo de lucro; feira. Precisamos ter em mente que nem e, visto que Israel, como povo de Deus, todas as palavras ou incidentes registra­ era freqüentemente mencionado como dos nas narrativas da paixão tiveram uma planta, árvore ou videira (a pará­ lugar na ordem dada, e talvez nem acon­ bola de Jesus em Lucas 13:6-9 compara teceram na última semana ou época da Israel com uma figueira; veja, mais paixão. Por exemplo, em Lucas e Mateus adiante, o comentário a Marcos 12:1-12), o Templo foi purificado no domingo, e, é muito razoável concluir-se que aquela em João, em época anterior do minis­ árvore sugeriu, para Jesus, um Israel que tério de Jesus; mas, em Marcos, Jesus o não dava o fruto que devia produzir. fez na segunda-feira. A entrada em Pois o chamado povo de Deus, endure­ Jerusalém (11:1-11) pode, na verdade, cido de coração, não reconheceria o forte ter acontecido em outra festa. Mas, para Filho de Deus. Não atenderia ou daria iodos os autores evangélicos, o seu sen­ ouvidos à sua mensagem. tido é mais bem expresso em conexão A figueira não dava aparência de com a morte de Jesus, pois ele morreu saúde e utilidade, assim como Jerusalém como o Rei da paz, rejeitado por Israel. com o seu Templo, o centro da adoração Era, provavelmente, de manhã, e Jesus de Jeová. De fato, a vida religiosa de voltava de Betânia para Jerusalém. Tal­ Israel era estéril e insensível. Não era vez ele tenha sentido vontade de comer, Israel como a figueira? Então, que mor­ ao ver a fígueira que tinha folhas. A ‘ ra! Ele tinha perdido a sua liderança sensação de fome não dependeu de ser ou religiosa. não tempo de figos, que não amadu­ (3) A Purificação do Templo (11:15-19) recem em Jerusalém antes de junho. Não 15 C hegaram , pois, a J eru sa lém . E , obstante, Jesus procurou ver se acharia E ntrando e le no T em plo, com eçou a ex p u l­ nela alguma coisa para comer, mas não sa r os que a li v en d ia m e co m p ravam ; e havia nada. derribou a s m e sa s dos c a m b ista s, e a s c a ­ E então Jesus, estando os seus discí­ d eiras dos que ven d iam p om b as; 16 e não con sen tia que nin gu ém a tr a v e ssa sse o te m ­ pulos a ouvir, falou à árvore: Nunca mais plo levan d o qualquer u ten sü io; 17 e en sin a ­ coma alguém fruto de tl. No versículo 20, v a , dizendo-lhes: N ão e stá escrito: A m inha vemos que, quando os discípulos torna­ c a sa se r á ch a m a d a c a sa de oração p ara ram a ver aquela árvore, ela “ tinha seca­ todas a s n ações? V ós, porém , a ten d es feito do desde as raízes” . covil de sa ltea d o res. 18 Ora, o s principais sa cerd o tes e os escrib a s ou viram isto , e Nada mais é dito nesse ponto. Porém, procu ravam um m odo de o m a tar; p ois o visto que o acontecimento anterior mos­ tem ia m , porque tod a a m u ltid ão se m a r a ­ trava Jesus se oferecendo como Rei da v ilh a v a da su a d ou trin a: 19 Ao ca ir da tarde, paz, mas sendo mal compreendido; e, sa íra m d a cid aâe. visto que o evento seguinte mostra Jesus Somente em Jerusalém, no Templo, purificando o Templo das pessoas que criam os fiéis judeus que Deus podia ser haviam usurpado o lugar do seu legítimo adorado de maneira apropriada. Ali, Ocupante, e mudado o objetivo do Tem­ mas não nas suas sinagogas, eles podiam plo de cumprir o desejo de Deus para oferecer os sacrifícios prescritos pela Lei. Ali, mas não na Galiléia ou outros cen­ 43 As dificuldades desta fase da história são ilustradas por tros distantes da vida judaica, o sacer­ C arrington, p, 237, que a princípio julgou este evento dócio servia e dirigia a adoração dos como acontecendo d u ran te a Festa dos Tabernáculos, e devotos. que a frase “ nào era tem po de figos” fora um a adiçào de M arcos. “ A gora não me sinto m uito feliz com esta Não há dúvidas de que uma adoração sugestão” , escreve ele. “ E stava M arcos explicando a verdadeira e sincera era prestada no açào de Jesus n a história, ou tratan d o de um a dificul­ dade que era cau sad a pela colocação da h istória?” Templo; as histórias de Lucas 1 e 2, 431


referentes ao humilde sacerdote Zaca­ rias e aos devotos Simeão e Ana, são bons exemplos. Obviamente, caravanas de adoradores, como a que incluía Jesus e sua família, vinham, por diversas razões, adorar em Jerusalém. Os mestres judai­ cos, no Templo, davam atenção aos me­ ninos judeus, que vinham assediando-os com perguntas (Luc. 2:41-50). Contudo, a autoridade sobre o Templo e suas rendas cabia ao sumo sacerdote e seus ajudantes sacerdotais. Eles e suas famílias não eram fariseus, mas saduceus (cf. o comentário sobre 12:18-27). Eles alimentavam-se bem no cocho dos pro­ ventos do Templo, mas não eram louva­ dos por sua generosidade ou bondade. De acordo com Josefo, só alguns anos depois da morte de Jesus foi que os líde­ res sacerdotais lançaram mão de todos os dízimos, alguns dos sacerdotes mais pobres ficaram à míngua (Antiguidades, XX, 8:8; 9:2). Dos essênios de Qumran, bem como dos escritos rabínicos, temos evidências da opinião generalizada do povo de que os saduceus cobravam preços extorsivos pelas pombas vendidas para sacrifício e geralmente abusavam dos propósitos do Templo, devido às suas práticas ambiciosas. A purificação do Templo, executada por Jesus, é o seu mais claro ato para­ bólico. Os seus feitos são paralelos aos atos simbólicos dos grandes profetas: Isaías andou nu e descalço, para drama­ tizar a mensagem de Deus (Is. 20:1-6); Ezequiel rapou o cabelo e a barba, e os dividiu e usou dramaticamente para expressar a palavra de Deus (Ez. 5:1-12); e o cristão Âgabo amarrou Paulo com o seu cinto, como uma advertência divina (At. 21:11 e s.). Jesus não seria tão bisonho, ao ponto de supor que o tráfico comercial no Templo iria parar só por causa de sua atitude. E também, o seu ato profético dificilmente teria sido pos­ sível, se a multidão que havia invadido o Templo não tivesse tanta simpatia por Jesus e não estivesse ouvindo atenta­ 432

mente, e se maravilhava da sua doutrina (v. 18). O que foi que Jesus fez? Ele começou expulsando os que ali vendiam e compra­ vam, isto é, os empenhados em vender e comprar as vítimas sacrificiais maiores, e o óleo, sal e vinho. Ele derribou as mesas dos cambistas; o dinheiro grego ou romano comum não podia ser usado em cone'xãò cõínT^aHoração, e por isso os pere­ grinos aW íaíh trõ c ^ o seu dinheiro por moedas judias pi^ tírias. Permitia-se que oslSoBreTusassem pombas para os seus sacrifícios. Da mesma forma que os*, outros mercadoxes que serviam aos sacer- ! dotes saduceus, qs vendedores de pom- j bas também estavam transformando o lular^santo em um mero centro de* compras. Não sabemos por quanto tempo, mas enquanto ficou lá, naquele dia, parece que jesus tomou posse total do pátio dos gentios, _onde aquele comércio gerãl-~ mente era feito. E não consentia que ninguém atravessasse o templo, levando qualquer utensüio. Esta proibição certa­ mente teve a aprovação dos devotos, pois o uso do Templo como atalho ou rota comum era uma negação da sua santi­ dade. Jesus não fazia objeções ao uso do Templo como centro da adoração de Jeová. Ele objetava ao seu abuso e mau uso, e especialmente ao comercialismo e materialismo, que eram tão espalha­ fatosos ali. Os ensinos de Jesus centralizaram-se nas palavras de dois profetas. De Isaías 56:7, ele lembrou o povo: A minha casa será chamada casa de oração para todas as nações. Nações é a mesma palavra que gentios; o único lugar em que os estran­ geiros podiam adorar, nos recintos do Templo, havia sido entupido com toda sorte de coisas estranhas à verdadeira adoração. Jeremias havia profetizado contra a fal­ sa adoração no Templo, e a falsa suposi­ ção de que Deus iria protegê-lo da destrui­ ção. Da mesma forma como os homens haviam dele feito, naquela época, um


covil de salteadores, assim também, Jesus acusa, vocês o fizeram de novo (cf. Jer. 7:1-15). A palavra para salteadores é muito forte, significando não apenas ladrões, mas bandoleiros bandidos. Se o Templo havia-se transformado em um covil de salteadores, então eles não apenas o haviam poluído, roubando-o dos que vinham para adorar. Com efeito, eles haviam roubado a própria casa de Deus, fazendo dela a sua própria casa de crimes. Através do seu ato, o que foi que Jesus disse ao povo? Que ele estava reclaman3õ~õ'~Tem^b para o seu Proprieiário legítimo. Que a verdadeira adoração de Deus só pode acontecer quando dela são purgados o materialismo e o comercia­ lismo. Que o Deus dos profetas fala com autoridade no Nazareno que está no meio deles. Da mesma forma como ele é 0 Senhor do sábado, também é Senhor do Templo. Os principais sacerdotes e os escribas ouviram Jesus e começaram a procurar (esta é a idéia do verbo procuravam) uma forma de se livrarem dele. Eles o temiam como ameaça à sua autoridade e meio de vida. Mas eles não queriam problemas públicos, especialmente com a multidão de adoradores que se apinhava na cidade e propiciava a sua renda. Por isso, eles resolveram dar tempo ao tempo. Mas o que aconteceu por ocasião deste inciden­ te, sem dúvida, foi a base para que eles acusassem Jesus durante o seu julgamen­ to (cf. 14:58). 2) Encoriyamento à Fé e à Verdadeira Oração (11:20-26) 30 Quando p a ssa v a m n a m an h ã segu in te, viram que a figu eira tinha seca d o d esd e a s ra íze s. 21 E n tão P ed ro , lem brando-se, d isse: Olha, M estre, secou -se a figu eira que am a ld iço a ste. 22 R «spondeu-lhes J esu s: Tende fé em D eu s. 33 E m v erd ad e vos digo que qualquer que d isser a e ste m on te : E rguete no m ar, e não duvidar e m seu coração, m as crer que se fará aquilo que diz, a ssim lhe será feito. 24 P or isso v o s digo que tudo o que pedirdes em oração, cred e que o r e c e ­ b ereis, e té-lo-eis. 25 Quando estiv erd es

orando, perdoai, se ten d es a lg u m a coisa contra a lg u ém , para que tam b ém vo sso P a i, que e stá no céu , vos p erdoe a s v o ssa s ofen ­ sa s. 26 (M as, se vós não perdoardes, ta m ­ b ém v o sso P a i, que e stá no céu , não vos perdoará a s v o ssa s o fen sa s.)

Nenhuma explicação acerca da mal­ dição lançada por Jesus sobre a figueira é dada por Marcos, em 11:12-14. Só depois que a árvore realmente secou, foi que os discípulos fizeram interrogações. Mas seria errado ligar as palavras de Jesus em 20-25 apenas com a figueira, e não com os de certa forma correlatos significados da entrada dele em Jeru­ salém, montado em um jumento, e o fato de ter purificado o Templo. Em Marcos, esses atos de Jesus falam de verdades básicas: Israel rejeitou o Rei e os cami­ nhos de Deus, e a sua liderança reli­ giosa perversamente transformou o cen­ tro da adoração a Deus. Mudança da parte de Deus precisa ocorrer. O fato de Deus usar a liderança religiosa judaica não é eterno, mas temporal; não perma­ nente, mas moribundo; não necessário, mas condicional. Estes conceitos podem ser expressos cruelmente e em termos históricos sim­ ples. Nas seções seguintes, eles são refor­ çados e expressos mais claramente. Todavia, segundo o pensamento cristão, fazem parte da própria essência da na­ tureza e do propósito de Deus, ao ele declarar a sua realeza em Jesus Cristo, o Filho do homem. Exprimindo idéias através de atos simbólicos, Jesus preten­ dia (da mesma forma como através das palavras e parábolas, anteriormente), expressar mais verdades que fossem apreendidas plena e imediatamente. Isto, pelo menos, é verdade em relação à apresentação que Marcos faz: os cristãos que lerem compreenderão mais facil­ mente e adequadamente, porque abriuse-lhes a percepção da plena identidade de Jesus. De acordo com o versículo 20, a con­ versa de Jesus com os seus discípulos teve lugar na manhã seguinte, quando volta­ 433


vam a Jerusalém (v. 27). A figueira que Alguns intérpretes consideram o ar­ Jesus havia amaldiçoado (as palavras da ranjo das palavras de Jesus, feito por maldição estão no v. 14) havia morrido, Marcos, neste parágrafo, coisa artificial, e os discípulos presumiram uma relação e a exortação à fé, inadequada. Mas, se causal. É claro que eles haviam estado a estamos quase corretos na maneira como pensar na perigosa invasão do Templo, entendemos o simbolismo, as palavras levada a efeito por Jesus no dia anterior, aqui são bem apropriadas. Marcos, pro­ e no fato de que eles estavam voltando. O vavelmente, anexou estas palavras umas que iria acontecer? A Jesus? A eles? E as outras e a estes atos simbólicos de até ao Templo? Jesus. Não há razão para questionar a sua autenticidade, e elas eram perti­ Tende fé em Deus, encorajou-os Jesus. O poder que pertence aos princi­ nentes às necessidades dos doze, naquela pais sacerdotes de Israel e aos líderes do época, e também às necessidades dos Templo (ou até às autoridades romanas) cristãos romanos. é terreno e não insuperável; eles não Este ensino de Jesus acerca da oração e precisavam desesperar. Como isso era fé não fica isolado, e não pode ser inter­ apropriado para as necessidades dos lei­ pretado de forma a dar a entender que tores de Marcos! Minear sugere que a todas as orações de fé são respondidas “implacável hostilidade” dos líderes nos termos que o homem de fé proferir. judaicos, nas sinagogas de Roma, foi a Veja a oração do próprio Jesus no Getbarreira mais difícil para o evangelho sêmane (Mar. 14:35 e s.); ele não teria que eles precisaram enfrentar. reconhecido a resposta à sua oração Oração é uma expressão de fé. A como uma falha de sua fé ou de Deus; figura de um monte sendo lançado no mas, por outro lado, ele também não mar é uma maneira hiperbólica e carac­ desejava a cruz. teristicamente judaica de dizer que as O maior teste da verdadeira fé, em tarefas aparentemente impossíveis não tempos de dificuldade, é se o espírito de são difíceis demais para Deus e para perdão está presente. Quando estiverdes aqueles que confiam genuinamente nele. orando é tradução de uma expressão que Pedro e os outros discípulos não preci­ , literalmente significa “ quando vos savam desesperar por causa das confron­ puserdes de pé orando” , que era a pos­ tações e dos perigos vindouros: tudo o tura usual dos judeus e também dos que um homem pedir em oração. Deus gregos, quando oravam (Johnson; cf. lhe dará. Crede que o recebereis signi­ Mat. 6:5; Luc. 18:11). O ensinamento de fica “ tende fé que Qá) o tendes recebi­ que o perdão de Deus requer que o do” . Isto quer dizer; Deus já está con­ homem perdoe aqueles que o prejudi­ vosco (cf. Mat. 7:7 e s.; Luc. 11:9 e s.). caram não aparece apenas nos ensinos de Um milagre que faz com que uma Jesus, mas também na literatura judaica. figueira seque e morra é dificilmente um Por exemplo. Eclesiástico 28:2 diz: exemplo da fé para a qual Jesus encoraja “perdoa o teu próximo... e então, quan­ os discípulos. Mas o seu significado, do orares, os teus pecados serão perdoa­ como o da purificação do Templo' recla­ dos” (Cf. também Testamento de Gad, ma confiança em Deus. O que a fé 6:3-7; acerca do perdão, cf. o comentário consegue pelo poder de Deus não é a sobre 2:5). realização de uma maldição, mas a deNo versículo 25, a expressão vosso frontação com a realidade. Pode a con­ Pai.., no céu é peculiar a Marcos. Jesus fiança em Deus por parte dos discípulos, ocasionalmente referiu-se a Deus como suportar o que está acontecendo à lide­ seu Pai (8:38; 13:32; 14:36), mas esta é a rança religiosa de Israel e o que a velha única passagem, em Marcos, em que liderança vai fazer a Jesus? presume-se que os discípulos devem pen­ 434


sar em Deus como Pai deles que está no céu. Esta sentença pode expressar, como sugere Rawlinson, que a Oração Dominical era usada em Roma na época em que este Evangelho foi escrito, e que estava na forma apresentada por M a­ teus. O versículo 26 não se encontra nos melhores textos de Marcos, mas é origi­ nal em Mateus 6:15. 3) Contra-Ataque a lesus, e Sua Defesa (11:27-12:27) (1) A Questão da Autoridade (11:27-33) 27 V ieram de novo a J eru sa lém . E , an d an ­ do J esu s pelo tem plo, ap roxim aram -se dele os principais sa cerd o tes, os escr ib a s e os anciãos, 28 que lhe p ergu n taram : Com que autoridade fa zes tu e sta s co isa s? ou quem te deu autoridade para fazê-las? 29 R esp on ­ deu-lhes J e s u s : E u vos perguntarei u m a coisa; respondei-m e, pois, e eu v o s d irei com que autoridade faço e sta s co isa s. 30 O' b atism o de João er a do céu , ou dos hom ens? resp ond ei-m e. 31 Ao que e le s arrazoavam entre si: Se d isserm os: Do céu , e le dirá: E ntão por que não o crestes? 32 M as d ire­ m os, p orventura: D os h om en s? — É que tem iam o povo; porque todos verd a d eira ­ m ente tinh am a João com o p rofeta. 33 R e s ­ ponderam , p ois, a J esu s: N ão sa b em o s. R eplicou-lhes e le : N em eu v o s digo com que autoridade fa ço e sta s co isa s.

Quando Jesus purificou o Templo, em­ bora fosse um ato profético (cf., acima, 11:15-19), fora também um ato arbitrá­ rio. As autoridades reconhecidas na casa de Deus eram os homens que Deus havia nomeado desde a antiguidade. Mesmo que Jesus estivesse certo em relação à corrupção que havia no uso do lugar santo, será que ele supunha que cabia a ele o privilégio ou atribuição legal de julgar e controlar a conduta das pes­ soas no Templo de Deus? Estava ele colocando-se acima das palavras da lei de Moisés, que havia atribuído essa autori­ dade aos filhos de Arão? A suprema corte do povo judaico, cha­ mada Sinédrio, era composta dos prin­ cipais sacerdotes, os escribas e os an­ ciãos (quer fariseus, quer saduceus).

Veja, abaixo, 14:53. Uma delegação re­ presentativa — dificilmente toda a corte de setenta pessoas — encontrou-se com Jesus no Templo, para examinar as suas credenciais. É inteiramente provável que os motivos dos inquisitores fossem va­ riegados, pois os proventos dos negócios efetuados no Templo eram mais elevados em tempos de festa, e Jesus havia in­ terrompido o seu curso normal. Mas a pergunta propriamente dita era religiosa: Que tipo de autoridade possuía Jesus, e quem lhe dera o direito de agir como agira? Da forma como Jesus fizera várias vezes anteriormente (2:9,19,25 e s.; 3:4; 10:3), ele replicou com uma pergunta. Johnson nota que ele podia ter replicado como o antigo profeta Amós, ao sacer­ dote encarregado de Betei, que Deus o havia enviado. Da maneira como foi, Jesus apelou (ao perguntar) à autorida­ de do profeta João Batista. O povo, pe­ lo menos, havia reconhecido a pala­ vra e os atos de João como vindos de Deus. O que diziam, a este respeito, as autoridades religiosas? O batismo de João era do céu, isto é, algo que Deus lhe mandara fazer — ou era meramente algo de João, idéia humana? As marcas do profeta faziam-se sentir na vida de João. Será que Jesus não ostentava, de maneira ainda mais inegável, as marcas da auto­ ridade genuína e divina, em sua própria pessoa? O debate entre os distintos delegados deve ter sido acompanhado divertida­ mente pelos seguidores de Jesus. Eles nunca haviam meditado na pergunta que Jesus acabara de lhes fazer, mas estavam expressando a sua subserviência ao apoio popular e, por outro lado, ao seu orgulho pessoal. Eles tentaram espicaçar Jesus, para que desse a resposta que eles de­ viam dar. Concluíram que a coisa menos danosa que podiam fazer era dizer: Não sabemos. Afinal de contas, eles não ha­ viam aceito João como profeta, e, por outro lado, não queriam que a multidão de adoradores se irasse com eles. Quem 435


podia dizer o que aquele tipo de mul­ tidão podia fazer em seguida? Aquele povo podia perturbar outra vez os negó­ cios que se faziam no pátio dos gentios! No entanto, quando os líderes religio­ sos confessaram a sua incapacidade de julgar se João era de Deus ou não, será que também não confessaram a sua falta de capacidade para servir de juizes para questões como essa? Não fazia parte essencial do seu chamado para guiar o povo de Deus? e para levar o povo a Deus? Como podiam eles fazer aquilo, se não eram capazes de dizer se Deus estava operando em um profeta? Jesus recusouse a dizer-lhes de onde vinha a sua auto­ ridade, porque por suas próprias pala­ vras eles admitiram que lhes faltava a percepção para reconhecer os profetas de Deus, quando eles apareciam. (2) A Parábola dos Lavradores Maus ( 12 :1- 12) I E ntão com eçou J esu s a falar-lh es por p arábolas. U m h om em plantou u m a vinha, cercou-a com u m a seb e, cavou um la g a r , e edificou um a to r r e ; d epois arrendou-a a uns lavradores, e ausentou-se do p a is. 2 N o te m ­ po próprio, enviou um serv o a o s lavrad ores, para que d eles r e c eb esse do fruto da vinha. 3 M as e ste s, apoderando-se d e le , o e sp a n ­ caram e o m and aram em b ora de m ã o s v a ­ zias. 4 E tom ou a enviar-lh es outro serv o , e a e ste feriram na ca b eç a e o u ltrajaram . 5 E ntão enviou ainda outro, e a e ste m a ta ­ ram ; e a outros m u itos, dos q u áis a uns e s ­ pan caram e a outros m a ta ra m . 6 Ora, ti­ nha e le ainda u m , o seu filho a m a d o ; a este lhes enviou por últim o, dizendo: A m eu f i­ lho terão resp eito. 7 M as a q u eles lavrad o­ res d issera m en tre si: E ste é o herdeiro; vinde, m atem o-lo, e a h eran ça se r á n o ssa . 8 E , agarrando-o, o m a ta ra m , e o lan çaram fora d a vinha. 9 Que fará , p ois o senhor da vinha? V irá e d estru irá o s la v ra d o res, e dará a vinha a outros. 10 N unca le ste s e sta escritu ra: A pedra que os ed ificad ores rejeitara m , e ss a foi posta com o p ed ra a n g u la r; II p elo Senhor foi feito isso , e é m a ra v ilh o ­ so a o s nossos olhos? 12 P rocu ravam então prendê-lo, m a s t e ­ m eram a m u ltid ão, p ois p erceb eram que contra e le s proferira e s s a p aráb ola; e , deixando-o, se retiraram .

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Esta seção é ligada intimamente por Marcos com os versículos precedentes. Precisamos lembrar que as divisões em capítulos e versículos, que usamos, só foram aceitas mais de mil anos depois que Marcos escreveu. Esta parábola é dirigida aos representantes da religião estabelecida, que haviam respondido a Jesus tão cuidadosa, mas tão insensata­ mente. Não se questiona (como em 4:1012) se esses homens entenderam Jesus; pelo contrário, eles perceberam que con­ tra eles proferira essa parábola (v. 12). No versículo 1, as alusões a Isaías 5:1-7 são indisfarçáveis. Ali a vinha tão cuida­ dosamente cuidada eram a “casa de Is­ rael” e os “homens de Judá” , e o pró­ prio Senhor era o proprietário e prove­ dor. A sebe, como o próprio nome diz, era uma cerca viva, formada de arbustos; a torre, talvez uma cabana coberta de folhas, em lugar elevado. O objetivo de ambas era proteger a vinha de animais selvagens ou saqueadores, e a torre não consistia apenas em um ponto de obser­ vação, mas um abrigo para os lavrado­ res. O lagar era uma espécie de tanque no qual o suco era filtrado, enquanto as uvas eram pisadas. Os lavradores ou arrendatários geral­ mente arrendavam a vinha por uma por­ centagem da colheita. Nesse caso eram considerados, sem dúvida, homens ex­ perimentados como vinhateiros. O pro­ prietário ausentou-se do pais; esta frase traduz uma só palavra, e pode significar simplesmente que ele empreendeu uma jornada (assim pensam Moulton, Milligan e Bratcher). As outras partes da história tomam provável o fato de que ele vivia em outra parte do império. Naturalmente o proprietário esperava receber um retorno legítimo, e por isso mandou buscar a sua porcentagem no tempo próprio. Mas os lavradores não cumpriram o contrato que haviam feito. Chegaram a m altratar os mensageiros do proprietário, e de maneira progressiva­ mente cruel e má. M ataram o terceiro


servo (v. 5). Algumas pessoas pensam que o versículo 5b é uma adição poste­ rior à história, pois os cristãos, ao con­ tá-la, recordavam quantas vezes o Se­ nhor havia advertido o seu povo (cf. Heb. 11:32-40). Deve-se admitir que o versí­ culo 5b não é tão realista como o resto da história, ou como Jesus geralmente con­ tava as suas parábolas. Mas uma pará­ bola não está amarrada absolutamente por realismo histórico; ela se obriga pelo seu objetivo, por mais incomuns que sejam as suas minúcias. É, sem dúvida, verdade ser pouco provável que um pai mande o seu filho fazer um trabalho tão perigoso (v. 6). Depois, o proprietário mandou o seu filho amado, supondo que ele imporia respeito aos maus arrendatários. Os lei­ tores de Marcos não perderiam a identi­ ficação do filho amado com Jesus, que fora identificado como Filho amado de Deus, nas ocasiões do batismo (1:11) e da transfiguração (9:7). Os principais sacer­ dotes ou escribas não deveriam fazer esta conexão precisa, e amado pode ter sido acrescentado à história por prega­ dores cristãos, para ajudar os ouvintes a interpretar a parábola. Parece-nos despropositada a idéia dos arrendatários, de que eles pudessem tor­ nar-se donos da vmha matando o herdeko. Jeremias mostra que uma grande parte das terras altas da Galiléia era propriedade de latifundiários estrangei­ ros. Ele chama a nossa atenção para úma lei, pela qual a propriedade de um prosélito que morresse sem deixar testamen­ to seria considerada propriedade sem dono; e quem quer que estivesse ocupan­ do a propriedade na época tinha prio­ ridade para ser proprietário dela. Ele pensa que os arrendatários presumiram, quando o Filho chegou, que o proprietá­ rio (que havia sido um ilustre ausente estrangeiro) já havia morrido. 44 O p. c it., p. 58-60; cf. D odd, p . 125-32; m as D . O. Via, T heP arab les(P h ilad elp h ia: Fortress, 1967), p. 132-36, discorda, e segue W . M ichaelis, em sustentar simples­ m ente que 0 proprietário, “ p o r u m a razão nao ap re­ sentada” , foi incapaz de voltar p a ra a sua propriedade.

Que fará, pois, o senhor...? (esta pa­ lavra, como em português, no original é idêntica a “Senhor” — cf., acima, 11:3). Mateus 21:41 apresenta o auditório res­ pondendo à pergunta, e fazendo assim, a aplicação inicial da parábola. De qual­ quer forma, a resposta precisava ser que aqueles arrendatários mereciam o pior, e seriam inteiramente destruídos. Todos os Evangelhos Sinópticos inter­ pretam esta parábola, de certa forma, alegoricamente. Da forma como ela che­ gou a nós, todavia, os elementos da his­ tória (sebe, lagar, torre) fazem parte do realismo da história: não são alegóricos. Por que não teria Jesus aludido a uma famosa passagem como Isaías 5:1-7, com o inevitável resultado de que a hierar­ quia religiosa presente entendesse que o aguilhão da história estava voltado con­ tra eles? Quanto ao fato de Jesus ter identificado os líderes religiosos com aqueles que haviam apedrejado os profe­ tas, compare Mateus 23:29-37. Ê razoá­ vel concluir-se que a referência da pará­ bola aos lideres religiosos, aos mensagei­ ros da parte de Deus, e a si mesmo como o último e significativamente superior mensageiro, fossem intencionais, por parte de Jesus, e assim foram enten­ didas pelo seu auditório. Mais tarde, os mestres da igreja iriam muito naturalmente, como disse Dodd, pingar os ii e cortar os tt da aplicação original. O povo cristão iria pensar pri­ meiramente no que esse povo havia feito para o amado Filho de Deus, e que ele, a pedra rejeitada, foi posta como pedra angular (v. 10). Mas a ênfase da história original deve ter sido na iniqüidade cres­ cente e inteiramente incorrigível dos la­ vradores; os líderes religiosos estavam rejeitando todas as limitações que lhes podiam ser impostas pelo Deus a quem supostamente serviam e de quem era o Templo e a adoração que nele se fazia. Eles mataram o herdeiro e o lançaram fora da vinha. Por implicação, portanto, Jesus res­ pondeu à sua pergunta original em 11: 437


28. A sua autoridade vem de Deus, mas eles são tão grosseiramente ímpios que não a reconhecem. Tentam roubar para si mesmos tudo o que pertence a Deus. E ainda mais, não lhes importa quantos seres humanos possam ser pisados no processo do seu triunfo. Não obstante, o Senhor vai agir à sua moda, eles serão destruídos, e (como os cristãos entende­ ram o cumprimento de Salmos 118:10, 11) Jesus iria ainda reinar. Sim, os dis­ cípulos iriam cantar: Pelo Senhor foi feito isso, e é maravilhoso aos nossos olhos. Procuravam então prendê-lo. O quan­ to desta vez a tentativa foi direta, é difícil dizer. O verbo procuraram significa “es­ tavam fazendo a tentativa” ou, talvez, “estavam para tentar” prendê-lo. Mas porque eles não queriam tumulto, e ti­ nham medo do que a multidão podia fazer, se retiraram, e deram tempo ao tempo. Não deve supor-se que a mul­ tidão abraçou o ensinamento de Jesus como um todo, especialmente o referente à humildade e à grandeza, ou de se tomar a sua cruz. Mas a multidão no Templo obviamente gostou muito da sua capacidade e coragem de opor-se e con­ fundir os ricos e hipócritas representan­ tes da religião estabelecida. (3) A Questão de Pagar Impostos a César (12:13-17) 13 E n viaram -lh e então algu n s dos fa riseu s e dos herodianos, para que o ap a n h a ssem em a lg u m a p alavra. 14 A proxim ando-se, pois, d isseram -lh e: M estre, sa b em o s que é s verdadeiro, e que de ninguém se te dá; porque não olh as à a p arên cia dos hom ens, m as en sin as segundo a v erd ad e o cam inho de D e u s ; é lícito dar tributo a C ésar, ou não? D arem os, ou não d arem os? 15 M as J esu s, percebendo a h ipocrisia d ele s, respondeulhes : P or que m e exp erim en ta is? T razei-m e um denário p ara que eu o v e ja . 16 E e le s lho trouxeram . Perguntou-lhes J esu s: D e quem é esta im a g e m e in scrição? R esp on d eram -lhe: D e C ésar. 17 D isse-lh es J esu s: D ai, pois, a C ésar o que é de C ésar, e a D eu s o que é de D eu s. E a d m ira v a m -se d ele.

Alguns fariseus e possivelmente alguns herodianos se contavam entre os mem­ 438

bros do Sinédrio. O sujeito de enviaram, no que tange à sintaxe, pode ser im­ pessoal. Em vista de 11:27-33 e 12:12, contudo, é natural entender que Marcos queria dizer que eles foram enviados pelos líderes religiosos judeus. Se isto é verdade, o plano para prender Jesus fora cuidadosamente ensaiado, e eles espera­ vam que a resposta dele lhes daria a desejada oportunidade para a sua prisão (v. 12). Para fariseus, veja 2:16 e 7:1 e ss.; para herodianos, veja os comentários sobre 3:6 e 8:15. Tanto fariseus como herodianos ti­ nham tendências nacionalistas, embora nenhum dos dois grupos fosse tão radi­ cal como os zelotes, que mais tarde ins­ tigaram a revolta judaica contra Roma. Eles não eram aliados naturais. Os he­ rodianos deviam estar interessados em substituir os governadores romanos (co­ mo Pilatos) por um dos Herodes (por herança idumeus; mas os idumeus ha­ viam sido forçados a aceitar a circuncisão e se tornarem judeus, mais de um sé­ culo antes). O governo romano teria con­ tinuado, mas menos diretamente, e com um rei ou tetrarca mais aceitável para o povo judeu. As diferenças dos fariseus com Jesus, como tem sido ilustrado, de­ viam-se à sua posição autoritária com respeito à lei de Moisés e aos costumes que eles seguiam. Embora Marcos não o assevere, os herodianos deviam considerar um líder do calibre de Jesus como uma ameaça para as suas esperanças. Marcos havia mencionado os dois grupos em conjunto, anteriormente (3:6), mas é uma suposi­ ção razoável que os líderes saduceus do Sinédrio tenham, nessa ocasião, encora­ jado a união deles. O verbo apanhassem nos papiros signi­ fica pegar ou agarrar caçando ou-pes­ cando (Moulton e Milligan). As palavras dirigidas a Jesus foram, no que se refe­ ria aos interrogadores, mera bajulação, e não um cumprimento. Mas o desígnio deles, obviamente, era impedir Jesus de se evadir das suas perguntas. Se ele é


verdadeiro, e se de ninguém se te dá (forma arcaica do verbo importar-se, isto é, ele não fica ansioso a respeito do que alguém vá falar de sua resposta), eles podem confiar que a resposta dele será franca e honesta. Ele não terá medo de ensinar segando a verdade o caminlio de Deus quanto a esse assunto. Da mesma forma como Jesus fizera no Templo (11: 29-31), eles provavelmente fizeram ques­ tão que a multidão ouvisse a pergunta, quando eles a fizeram: estavam tentando tomar impossível Jesus evitar o anzol escondido na pergunta que fizeram. A pergunta propriamente dita era as­ tuciosa, pois suscitava todo o fervor re­ ligioso e nacionalista da multidão contra ■ os opressores estrangeiros e pagãos de Roma. Ê licito? significa: “Está de acor­ do com o caminho de Deus?” (Cf. 10:2, onde o mesmo verbo é usado.) Tributo aqui pode ser um termo genérico, mas a sua aplicação mais específica era a um tipo de imposto censitário, que era par­ ticularmente odioso aos gmpos naciona­ listas. César era Tibério, imperador que nenhum judeu considerava um homem reto ou bom. O povo de Deus, por leal­ dade à sua fé, não devia recusar-se a pagar tributo àquele tipo de governo? Se Jesus respondesse sim, paguem a César, o povo iria rejeitá-lo como covar­ de, como homem que olha à aparência dos homens e teme pelo seu próprio bemestar. Se ele respondesse não, não pa­ guem o tributo, então seria simples fazer com que ele fosse preso pelos romanos. Jesus não apenas não se esquivou à pergunta: chamou dramaticamente a atenção de todos para ela, pedindo um denário de prata. Ele estava para ensinar algo muito importante, e queria que to­ dos ouvissem. O denário, uma moeda de prata, tinha inscrito de um lado (em la­ tim abreviado) Tibérius Caesar Augustus, filho do Divino Augusto; do outro, Pontifex Maximus, ou sumo sacerdote. A imagem gravada de Tibério também estava na moeda. Trazei-me um denário queria dizer (provavelmente muito corre-

tamente, embora Lucas 20:24 não o men­ cione) que nenhum daqueles cuidadosos representantes tinha esse tipo de dinhei­ ro, e que eles precisavam dirigir-se a uma mesa de cambistas para conseguir uma. Dai, pois, a César significa: “devolvam a César” . É uma dívida. Você deve al­ guma lealdade e apoio ao governo cuja moeda usa; a moeda é uma evidência da ordem civil sob a qual você vive. Portan­ to, certamente é lícito — de acordo com o caminho de Deus — dar apoio apropria­ do ao governo civil. Jesus nunca apoiou nenhum partido que advogasse subver­ são violenta do governo civil de sua épo­ ca. Estas palavras estavam em perfeita harmonia com os posteriores dizeres de Paulo (Rom. 13:1-7) e de Pedro (I Ped. 2:13 e s.). As obrigações para com o Estado fazem parte do desígnio de Deus para a humanidade. No entanto, para Jesus, as reivindica­ ções de Deus são totalmente abrangen­ tes. Precisa-se também devolver a Deus o que é de Deus. A lealdade ao Estado, e até a César, é uma dessas coisas. Estas palavras não devem ser interpretadas de forma a dar a idéia de que os mundos da religião e da política possam ser legiti­ mamente divididos ou divorciados. Am­ bos tratam do homem e suas necessida­ des, com problemas de convívio, tanto com a justiça como com a ordem. Por outro lado, nenhum discípulo — e ne­ nhum judeu — poderia ter compreen­ dido estas palavras como permitindo ao homem obedecer a César ou a qualquer outro homem, em oposição a Deus. O discípulo teria sempre que escolher a cmz, antes de desobedecer a Deus. Ele precisa sempre aderir ao primeiro de todos os mandamentos (veja 12:29 e s.), não importa qual for o custo pessoal (cf. IPed. 4:12 e ss.). Os interrogadores admiravam-se dele. O verbo aqui (única ocorrência no NT) é composto pela palavra usada em 5:20, e de significado mais forte. Embora re­ lutantemente, eles devem ter ficado exta­ siados com a sua resposta. Marcos in­ 439


terrompe a história abruptamente, neste ponto, a fim de descrever a abordagem seguinte dos inimigos de Jesus (cf. Luc. 20:26; Mat. 22:22). (4) A Pergunta Acerca da Ressurreição (12:18-27) 18 EntsLo se ap roxim aram d ele algu n s dos saduceus, que d izem não h a v er ressu r r ei­ ção, e lh e p erguntaram , dizendo: 19 M estre, M oisés nos deixou escrito que se m orrer algu ém , deixando m ulher se m d eix a r filh os, o irm ão dele c a se com a m ulher, e su scite d escendên cia ao irm ão. 20 Ora, h a v ia sete irm ãos; o prim eiro casou -se e m orreu sem deixar d escen d ên cia; 21 o segundo casou-se com a viú v a , e m orreu , não deixando d e s ­ cendência ; e d a m e sm a form a, o te r c e ir o ; e a ssim os se te , e não d eixaram d escen d ên ­ cia. 22 D epois de todos, m orreu ta m b ém a m ulher. 23 N a ressu rreiçã o , d e qual d eles será e la esp o sa , p ois os sete por esp o sa a tiveram ? 24 R espondeu-lhes J e su s: P o rv en ­ tura não erra is vós em razão de não co m ­ preenderdes a s E scritu ra s n em o poder de D eus? 25 P orquanto, ao r essu scita rem dos m ortos, nem se ca sa m , n em se dão em c a ­ sam ento; pelo contrário, são com o os anjos nos céu s. 26 Quanto a o s m ortos, porém , serem ressu scita d o s, não le s te s no livro de M oisés, onde se fa la d a sa r ç a , com o D eu s lhe d is s e : E u sou o D eu s de A braão, o D eu s de Isaque e o D eu s de Jacó ? 27 Ora, e le não é D eus de m ortos, m a s de v iv o s. E sta is e m grande erro.

Os principais sacerdotes (11:27) geral­ mente pertenciam a um partido domi‘ nante religioso-político conhecido como dos saduceus. Em Marcos, esse nome só ocorre aqui, e o Evangelho de Lucas, se­ melhantemente, só o usa na passagem paralela (mas cf. at. 4:1; 5:17; 23:6 e ss.). A importância desse partido é muito mais enfatizada em Mateus. João (que geralmente escreve “ os judeus” quando se refere à liderança religiosa de Israel) não menciona o partido dos saduceus. Provavehnente os cristãos romanos esta­ vam familiarizados com esse nome, ape­ nas através das tradições acerca de Jesus que lhes haviam sido ministradas. A natureza da pergunta dos saduceus era, como a da feita pelos fariseus e herodianos, bem hipócrita. Os saduceus perguntaram acerca de um a ressurreí440

ção em que não criam; a pergunta an­ terior fora prefaciada por premissas, às quais os inimigos de Jesus não podiam endossar. A intenção da pergunta dos saduceus não era entender algo acerca da ressur­ reição, mas ilustrar, às expensas de Je­ sus, como era absurda a crença em tal doutrina. Eles pretendiam demonstrar que Jesus não era um mestre digno, e, sim, falível e ignorante, e dessa forma enfiar uma cunha entre Jesus e o seu séquito popular. A oposição dos saduceus era nefasta. Embora Josefo, historiador do primeiro século, mencione corretamente a sua im­ popularidade entre as multidões (Antig. 18:1), eles eram muito ricos, e a sua influência junto a Pilatos devia ser gran­ de. A sua oposição franca e maligna con­ tra Jesus, pelo menos até o ponto que Marcos narra, havia-se solidificado quando ele interferira com o comércio no Templo, que eles controlavam. A abordagem a Jesus foi feita de acor­ do com o estilo e o método rabínico. Jesus foi chamado de Mestre (tradução de “Rabbi”), uma lei de Moisés é citada, um exemplo é dado em que a lei devia aplicar-se e uma pergunta pertinente é feita. A passagem citada é uma versão livre de Deuteronômio 25:5 e ss. A frase “se irmãos morarem juntos” não consta da citação, mas a resposta de Jesus não toma conhecimento deste fato. (A histó­ ria conhecida do VT acerca de casamen­ to de levirato é a de Boaz e Rute; mas cf. também Gên. 38:8. Não há evidência da prática dessa lei na época de Jesus.) A história em si, com o seu sabor humorístico, provavelmente fora usada pelos saduceus anteriormente, para con­ fundir os fariseus. Presumia-se que Jesus cria na ressurreição, como os fariseus. Todavia, a fé em uma ressurreição corpo­ ral não é ensinada explicitamente no Velho Testamento, exceto em passagens que geralmente são consideradas como posteriores (Dan. 12:2; Is. 26:19; cf. 25:8; Jó 19:25-27 e Sal. 73:24 e s. ex­


pressam uma esperança florescente, mas um conceito de ressurreição não está claro). Os saduceus reconheciam como Escrituras plenamente inspiradas apenas os livros de Moisés. Na ressurreição, de qual deles será ela esposa? A doutrina da ressurreição, que é presumida pela pergunta, inclui a pre­ missa de que corpos ressuscitados devem ser os mesmos ou semelhantes aos nossos corpos terrenos, e que as nossas atuais relações humanas continuarão. Talvez a maior parte dos fariseus daquela época cressem assim. II Baruque 50 reflete essa opinião bisonha, e insiste que a terra restaurará o corpo morto, preservado perfeitamente, sem nenhuma mudança em sua forma. Enoque 10:17 promete que os retos viverão até terem gerado milhares de filhos. A resposta de Jesus (1) corrigiu os con­ ceitos falsos acerca da natureza da res­ surreição, apontando (como Paulo fez em I Coríntios 15:35 e ss.). para o poder de Deus de propiciar um corpo diferente e apropriado para a vida da ressurreição; e (2) citou versículos da Lei, que apoia­ vam a idéia da ressurreição. Ao ressuscitarem dos mortos. Portan­ to, Jesus ensinava que haverá uma res­ surreição. Contudo, as relações humanas serão excedidas, e a pergunta dos sadu­ ceus é irrelevante, pois nessa vida eles não se casam. Dizer que eles são como os ai\jos nos céus não propicia uma figura precisa, mas sugere uma comunhão mais ampla e mais maravilhosa na família de Deus. A vida depois da morte não pode ser descrita com palavras ligadas a ima­ gens terrenas, e o poder de Deus é muito maior do que os conceitos humanos de alegria e esperança possam supor. Não lestes? Veja 2:25 e 12:10 para fra­ ses semelhantes. Jesus sempre falava com profundo respeito pelas Escrituras. Onde se fala da sarça é em Êxodo 3:1-6. A pas­ sagem em questão não fala nada direta­ mente acerca da ressurreição, é verdade, mas ali Deus se identificara como o Deus de Abraão, Isaque e Jacó. Se o Deus vivo

era o Deus deles, então os patriarcas também deviam estar vivos. A base para a fé na ressurreição é fé no poder de Deus. O Vivente, que chamou o homem para um relacionamento consigo mesmo, não permite que a morte inter­ rompa esse relacionamento. Pode-se di­ zer que a passagem acerca da sarça não foi escrita para afirmar a vida após a morte. Não obstante, aqui manifestavase a fé que o Deus que havia tido comu­ nhão com os reverenciados patriarcas é um Deus vivo, cujo poder e providência não se desvanecem. Aqui está uma carta de esperança e fé sobre a qual a ressur­ reição de Jesus coloca o selo da segurança responsiva de Deus. A história termina ainda mais abrup­ tamente do que a anterior. Estais em grande erro, disse Jesus. O verbo é apa­ rentemente interpretado como voz mé‘dia: eles estavam se dirigindo comple­ tamente para fora da verdade de Deus. 4) A Pergunta Acerca do Principal Man­ damento (12:28-34) 28 A proxim ou-se d ele u m dos escr ib a s que os ouvira d iscu tir e , p ercebendo que lh es havia respondido b em , perguntou-lhe: Qual é o p rim eiro de todos o s m an d am en tos? 29 R espondeu J esu s: O p rim eiro é : O uve, Israel, o Senhor n osso D eu s é o único S e ­ nhor. 30 A m arás, pois, ao Senhor teu D eu s de todo o teu coração, de toda a tua a lm a , de todo o teu en tendim ento e de tod as a s tuas forças. 31 E o segundo é e ste : A m arás o teu próxim o com o a tl m esm o . N ão h á outro m andam ento m aior do que e s s s e s . 32 Ao que lhe d isse o escrib a : M uito b em , M estre; com verd ad e d isse ste que e le é um , e fora dele não há o u tro ; 33 e que am á-lo de todo o coração, de todo o entendim ento e de tod as a s fo rça s, e a m a r o próxim o com o a si m esm o, é m a is do que todos os holocaustos e sacrifícios. 34 E J esu s, vendo que h a v ia respondido sa b ia m en te, d isse-lh e: N ão e s ­ tás longe do reino de D eu s. E nin gu ém o u sa ­ v a m a is interrogá-lo.

45 Falar de D eus como “vivo” era costum e característico dos hebreus, como o expressam os exemplos do NT: M at. 26:63; R om . 9:26; II Cor. 3:3; 6:16; Heb. 9:31. Em IV M acabeus 7:19 (prim eiro século?), afirm a o escritor hebraico que A braão, Isaque e Jacó não m orre­ ram , m as vivem p a ra Deus.

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A história seguinte, que Marcos narra, acerca de confrontações no Templo, é de um escriba que estivera ouvindo a resposta de Jesus à pergunta anterior. Quer esse fato tenha acontecido ou não, em época diferente, o fato é que Marcos interligou as histórias bem racionalmente (cf. Luc. 10:25-37; mas T. W. Manson insiste que as histórias não formam pa­ ralelo e que falam de duas ocasiões dis­ tintas). O escriba era, aparentemente, um fariseu, pois ficara contente e im­ pressionado com a resposta de Jesus aos saduceus. Precisamos lembrar a tensão e o preconceito zombeteiro que se manifes­ tavam freqüentemente entre esses dois partidos, especialmente quanto à ques­ tão da ressurreição (cf. At. 23:6 e ss.). Percebendo é a mesma palavra de 4: 12; para o advérbio bem, descrevendo a resposta de Jesus, veja o seu uso em 7:6 e note outra vez o versículo 32. Nem a pergunta do escriba, nem o seu espírito, que Jesus recomenda, refletem qualquer animosidade contra Jesus. A pergunta a respeito do mandamento mais importan­ te (isto é, 0 primeiro) ou principal era questão que os próprios escribas deba­ tiam; eles discutiam, geralmente,, que lei era relativamente mais relevante do que as outras. A melhor resposta conhecida, dada por um escriba, é a de Hillel, a üm proséUto em perspectiva: “Aquilo que é odioso para o teu eu, não faça ao teu próximo; esta é toda a lei; o resto é mero comentário.” Rabbi Akiba (segundo sé­ culo) escolhe Levítico 19:18, aquele que Jesus chama de segundo. O estudioso do Novo Testamento não pode se esquecer da ótima quahdade de grande parte dos ensinamentos dos es­ cribas nem que o Velho Testamento era tido em tão alta estima por Jesus. A resposta de Jesus foi ousada e abso­ luta. O primeiro mandamento era aquele com que começava a Shema, e que espe­ rava-se que o hebreu devoto recitasse três vezes por dia (cf. Johnson, p. 203; a Shema incluía Deut. 6:4-9, 11:13-21 e 442

Núm. 15:37-41). Ouve é tradução da palavra hebraica shema. O Senhor nosso Deus é o único Se­ nhor. Esta frase é difícU de traduzir-se, quer do grego, como aqui, quer do he­ braico, na citação original. Note a res­ posta interpretativa do escriba no versí­ culo 32 (cuidadoso, como um bom he­ breu, para não usar os termos Senhor e Deus desnecessariamente). De qualquer forma, a maneira como essas palavras eram entendidas na época não enfatizava apenas que Deus era o Senhor de Israel, mas também um genuíno monoteísmo. Embora a primeira cláusula não seja um mandamento propriamente dito, a obri­ gação para amar a Deus nasce do fato da sua unicidade e do fato de Israel ter sido escolhido por ele em amor-aliança (Cran­ field). O amor a Deus precisa ser supremo. Em o Novo Testamento, a ênfase geral­ mente recai sobre o amor de Deus ao homem, e no amor do homem aos seus semelhantes, de acordo com esta busca divina, altruística e notória pelo homem. Mas desejar genuinamente e buscar a vontade de Deus está de acordo completo com o significado desta palavra, e isso é essencial no ensino de Jesus. Devemos amá-lo, portanto, de (Arndt e Gingrich dizem que a preposição aqui significa a fonte interior de que algo procede) tudo o que somos. O coração é, na maneira hebraica de expressar-se, o centro do pensamento do homem. A alma é considerada como fonte da vontade e dos sentimentos do homem. A palavra traduzida como en­ tendimento pode significar mente ou in­ teligência (é usada também, muitas ve­ zes, para designar coração — e viceversa — mas não ocorre na LXX ou em Deut. 6:5). Forças enfatiza o poder fí­ sico e a personalidade de uma pessoa. A citação não é precisa, mas está bem de acordo com o mandamento original. Es­ sas palavras podem ser citadas separada­ mente, se se quiser, mas o uso dos quatro


termos tinha a intenção de dar a enten­ der: Você precisa amar o Senhor com todo o seu ser, sem reservas. O segundo mandamento (Lev. 19:18) segue exatamente a LXX. O conceito que Jesus fazia de próximo era certamente muito mais amplo do que o de muitos escribas, como o demonstra Lucas 10:2537. A passagem aludida aplicava-se, ori­ ginalmente, aos israelitas e aos estrangei­ ros que peregrinassem entre eles (Lev. 19:34). Não há nenhuma exortação espe­ cial, feita por Jesus, para se amar a si mesmo; ele podia presumir que cuidarse-ia da própria pessoa. Mas o homem precisa amar os outros da mesma forma. O escriba outra vez ficou alegre com a resposta de Jesus, e adicionou a sua pró­ pria convicção de que obediência a esses . mandamentos é muito mais importante para com Deus do que a observância daS ‘ ofertas sacrificiais prescritas, tais como as que eram feitas no Templo. O escriba não estava repudiando o sistema sacrifi­ cial, todavia. Nem os cristãos o fizeram, a princípio, pois depois do Pentecostes eles continuaram a incluir a adoração no Templo entre as suas devoções, por al­ gum tempo. A interrupção e separação aconteceu, em parte, devido à crescente oposição dos líderes judaicos, e, em par­ te, pela ascensão de convicções, como as expressas no discurso de Estêvão (At. 7), no Concílio de Jerusalém (At. 15), em I Pedro e em Hebreus. Jesus falou elogiosamente da resposta do escriba, pois ele respondera sabia­ mente — inteligentemente. Ele tinha uma mente alerta e responsiva, e o seu espírito participava do que Jesus chama­ ra de “bem-aventurado” , em Mateus 5: 3-6. Portanto, ele não estava longe do reino, isto é, parecia preparado para recebê-lo ou para entrar nele. Se o reino se tornara próximo em Jesus (1:15), esse homem, por seu turno, se aproximara do reino. A idéia do reino aqui dificilmente é escatológica, no sentido de que esse homem estaria preparado quando ele

chegasse; tem relação com o nível em que a vontade de Deus é entendida e seguida. Os cristãos romanos reconheceriam a importância do que tinha sido dito e a profundidade do cumprimento feito ao escriba. O versículo 34b pode ter sido acres­ centado por Marcos; Mateus o coloca depois da pergunta (cf. 22:46), e Lucas (que não conta esta história) depois da pergunta dos saduceus (20:40). 5) A Pergunta Acerca do Relacionamen­ to de Davi com o Cristo (12:35-37) 35 P or su a v ez, J e su s, enquanto en sin ava no tem p lo, perguntou: Como é que os e s c r i­ b as dizem que o C risto é filho de D avi? 36 O próprio D a v i falou , m ovido pelo E sp i­ rito S an to: D isse o Senhor ao m eu Sen h or: A ssenta-te à m in h a d ireita, até que eu ponha os teu s in im ig o s debaixo dos teu s p és. 37 D a v i m esm o lhe ch a m a Senhor; com o é ele seu filho? E a grande m u ltid ão o ouvia com prazer.

Se pudéssemos conhecer o contexto original e mais amplo, destes versículos, isso poderia ser útil. A questão da iden­ tidade de Jesus e do seu relacionamento com os profetas e com o Messias deveria ser de grande interesse para o povo, por ocasião da festa, em Jerusalém. A con­ versa, de certa forma, deve ter-se deri­ vado da especulação deles. É improvável que a história tenha sur­ gido de debates cristológicos, levados a efeito na igreja palestina primitiva (como pensa Johnson, seguindo R. Bultmann e J. Weiss), pois a igreja dificilmente pre­ cisava ser convencida de que Jesus era o Cristo, e de descendência davídica. Cran­ field segue a atrativa sugestão de R. P. Gagg (em Theologische zeitschrift, VII, 18-30), de que o que temos é genuíno, mas que uma questão acerca de se Jesus ensinou que o Messias era filho de Davi fazia parte do ataque dos seus oponentes. Talvez eles estivessem tentando levá-lo a se incriminar com os romanos, mediante 443


a sua resposta. Contudo, se a hipótese de Gagg é correta, a pergunta dos oponen­ tes havia sido esquecida. Jesus não aceitou, como temos visto, a expectativa comum do povo judeu a res­ peito do Cristo (cf. 8:29). Da mesma forma, ele não nega, nestes versículos, que é da descendência davídica nem que é o Cristo. Os escribas tinham como doutrina-padrão que o Cristo é filho de Davi. Entre as passagens bíblicas usadas, estão Isaías 9:2-7, 11:1-9, Jeremias 23:5 e s., Eze­ quiel 34:23 e s. e muitas outras. O fato de Jesus ter citado aqui Salmos 110:1 leva a crer que esta passagem também era usa­ da, mas não existe evidência rabínica até duzentos anos depois. (Os eruditos em assuntos rabínicos, H. L. Strack e P. Billerbeck, pensam que assim aconteceu porque os cristãos primitivos a usaram tão freqüentemente, em referência a Je­ sus, que a menção desta passagem foi suprimida.) Se o Cristo era simplesmente um des­ cendente de Davi, podia-se pensar nele como inferior a Davi. Jesus, argumentan­ do à moda rabínica (quer tenha quer não levantado o assunto), citou Salmos 110, mostrando que Davi o chamara de Se­ nhor. Esperava-se que Deus exercesse o seu poder, colocando os teus inimigos debaixo dos teus (do Messias) pés. No salmo hebreu, a primeira palavra para Senhor é o nome de Deus; a segunda é a palavra comum Senhor. O significado é: O Senhor Deus disse a meu Senhor. A LXX e a citação do Novo Testamento dessa passagem não fazem essa distinção claramente, embora a ausência do artigo com o primeiro Senhor dê a entender que ela era assim entendida. Movido pelo Espirito Santo. Esta é uma afirmação clara da inspiração divi­ na do autor do salmo, isto é, que ele falou como profeta ou mensageiro. Mui­ tas pessoas pensam que o salmo, na ver­ dade, foi escrito no segundo século antes de Cristo, com referência a Simão M a­ cabeu; um acróstico do seu nome encon­ 444

tra-se nas linhas iniciais do hebraico, nos primeiros quatro versículos do salmo. Contudo, a autoria davídica dos salmos geralmente foi presumida no primeiro século em Israel. A conversa (temos apenas as palavras de Jesus) interrompe-se abruptamente com a pergunta do versículo 37. Marcos não demonstra nenhum interesse na ge­ nealogia de Jesus, aqui ou em qualquer outra parte. Os cristãos romanos não fo­ ram orientados para ficarem tão interes­ sados na linhagem terrena de Jesus, co­ mo o eram os seus contemporâneos ju­ deus. E Marcos certamente estava corre­ to em sua ênfase de que a verdadeira natureza de Jesus não fora adequada­ mente expressa, ao chamar o Cristo de Filho de Davi. Para Marcos, o Cristo é mais bem descrito como o Filho do Ho­ mem exaltado, e o forte Filho de Deus. 6) Contraste na Mordomia: os Escribas e a Viúva Pobre (12:38-44) 38 E , prosseguindo e le no seu ensino, d is­ se: G ilardai-vos dos esc r ib a s, que go sta m de andar com v e ste s com p rid as, e d as sa u d a ­ ções n as p ra ça s, 39 e dos p rim eiros a ssen to s nas sin a g o g a s, e dos p rim eiros lu g a res nos banquetes, 40 que devoram a s ca sa s d as v iú ­ v a s, e por p retexto fa zem lon gas orações; e stes hão de receb er m uito m aior con d en a­ ção. 41 E , sentando-se J esu s defronte do cofre d as o fertas, ob serv a v a com o a m u lti­ dão la n ça v a dinheiro no cofre; e m u itos ricos d eita v a m m u ito. 43 Vindo, p orém , u m a pobre viú va, lan çou dois lep tos, que v a lia m . um quadrante. 43 E , cham ando e le os seu s discípulos, d isse-lh es: E m v erd ad e v o s digo que e sta pobre v iú v a deu m a is do que todos os que d eita v a m ofertas no c o fr e ; 44 porque todos d eram daquilo que lh es so b r a v a ; m a s e sta , da su a pobreza, deu tudo o que tinha; m esm o todo o seu sustento.

Os escribas e outros oponentes recua­ ram (v. 34), porém “a massa do povo” (Moffatt) continuou a ouvi-lo com delei­ te (v. 37). A denúncia dos escribas é muito ampliada em Mateus 23 (provavel­ mente da fonte Q), mas o auditório e c propósito do autor não eram os de M ar­ cos. Talvez o incidente citado nos versí­ culos 41-44 tenha sido registrado aqui


porque aconteceu nessa época (Lagran­ sacerdotes e escribas que eram hipócri­ ge). De qualquer forma, ele é apropria­ tas e que se opunham a Jesus em qual­ do, porque Marcos queria mostrar o con­ quer caso, seria omitida entre os cristãos traste na adoração e na dedicação entre romanos que liam Marcos.) os escribas que Jesus denunciava e a Devoram as casas das viúvas significa­ viúva a quem louvou. va explorar os seus bens, fosse devido à Guardai-vos dos escribas, disse Jesus; sua posição como líderes religiosos (La­ não de todos eles (esta é a implicação da grange), fosse de outras formas, igual­ sintaxe usada aqui, e 12:28-34 descreve mente gananciosas e más. Casas aqui uma espécie diferente de homem), mas está em lugar de "bens ou fortunas — daqueles que gostam de andar com vestes fosse o que fosse que elas possuíssem. compridas, e das saudações... e dos pri­ E por pretexto pode significar por meiros assentos... e dos primeiros luga­ amor às aparências (Bratcher) ou para res. A vaidade desses homens eruditos, encobrir os seus propósitos malignos tão peritos na lei de Deus, era um sin­ (Gqodspeed). As suas orações eram lon­ toma da sua indignidade. gas, extensas; veja comentário a esse As vestes compridas eram a taOith, respeito nos ensinos de Jesus, em Mateus que supunham-se significar piedade e 6:7. erudição. As saudações, neste caso, sig­ Por causa da sua hipocrisia — porque nificam cumprimentos com deferência; diziam que eram dedicados a Deus e à Jesus estava dizendo que esses homens ■sua lei, mas, na verdade, exploravam gostavam que os outros se encurvassem a sua posição para alimentar a sua vai­ diante deles, e especialmente nãs praças, dade e as suas contas bancárias — hão de onde havia muita gente. Nas sinagogas, receber muito maior condenação no dia os “assentos para pessoas ilustres” era do juízo de Deus. o banco exatamente defronte à arca, que Os líderes religiosos fariseus e sadu­ continha os rolos sagrados. Os primeiros ceus não eram as únicas pessoas presen­ lugares nos banquetes eram os divãs ao tes no Templo. Deus tinha os seus adep­ lado do hospedeiro (cf. Luc. 14:7). tos fiéis. Um desses era uma viúva, cuja Se a vaidade fosse tudo, já seria sufi­ pobreza não era — como a dos escribas que haviam acabado de ser condenados cientemente mau. Mas Jesus asseverou — uma pobreza do espírito. A sua po­ que a sua vaidade se igualava à sua ga­ breza era de coisas materiais. nância. Isto não era verdadeiro, sem dúvida, acerca de alguns dos escribas; os O cofre das ofertas é freqüentemente seus colegas de profissão os advertiam identificado com um dos treze cofres co­ contra este pecado. A Mishnah (Aboth letores, em forma de trombetas, com pe­ 1:13) diz que alguns deles eram culpa­ quenas aberturas, colocados na colunata dos, pois afirma que o homem que serve da Corte das Mulheres. Todavia, esta ex­ a si mesmo, para obter lucro com a pressão podia referir-se a uma sala em Torah, perecerá. Isto era verdadeiro em que os tesouros do Templo eram armaze­ relação também a alguns dos sacerdotes nados, e, nesse caso, precisamos supor inescrupulosos e ricos, e as palavras do algumas formas de depositar as ofertas versículo 40 podem originalmente ter si­ ali. do dirigidas tanto aos principais dos sa­ Em contraste com o tamanho das ofer­ cerdotes como a alguns dos escribas ri­ tas dos homens ricos, uma pobre viúva fez a sua contribuição de dois leptos cos. (O versículo 40 começa com uma interrupção na sintaxe, e talvez tivesse (moedas de cobre). Como viúva pobre, um contexto algo diferente, a princípio. naquela civilização, a mulher não podia Qualquer distinção entre os principais ter muitas esperanças de uma mudança 445


de monta em suas condições financeiras. havia sucedido. Embora os doze não As suas duas moedas de cobre eram tivessem entendido o ensinamento de Je­ lepta, a menor moeda em circulação. sus acerca da sua ressurreição, na época Valiam um quadrante, moeda romana, em que ela aconteceu (9:30-32), o povo com que os leitores de Marcos deviam da igreja inevitavelmente iria pensar e estar familiarizados.O valor sugerido não esperar a vitória ainda maior, por vir, e a era exato, mas dava, aos romanos, uma manifestação do poder de Deus. idéia aproximada. As duas moedas jun­ Sobretudo, os cristãos que estavam tas valiam apenas alguns centavos, na com Marcos já estavam experimentando nossa moeda. a pior espécie de perseguições. Os dis­ Jesus considerou a lição que devia ser cípulos que estavam com Jesus ouviram e aprendida ali como importante, e por mais tarde participaram de experiências isso chamou a atenção de todos para as semelhantes às que Jesus prevê. Mas em suas palavras: Em verdade vos digo. A Roma muita coisa já havia acontecido. oferta da viúva foi maior do que as dá­ Irmão havia entregue irmão, e, por se­ divas magnificentes e valiosas de todos os rem conhecidos pelo nome de cristãos, outros. (Se consideradas literalmente, as ninguém confiava neles, mas todos os palavras de Jesus significam que valia odiavam (cf. 13:12 e s.). Teria sido im­ mais do que todas as outras combina­ possível os que haviam suportado ou es­ das.) tavam suportando os ataques de Nero Como podia ser isso? Porque eles de­ ouvirem estas palavras de Jesus como se ram daquilo que lhes sobrava. Nida indi­ estivessem no ambiente da distante Je­ rusalém. ca duas formas pelas quais as sociedades bíblicas têm traduzido esta frase, em lín­ E, além disso, parte da linguagem de guas que têm vocabulário limitado: “Eles Marcos 13 é apocalíptica, isto é, alta­ deram dinheiro de que não necessita­ mente figurativa, simbólica e mesmo ex­ vam” ou “eles contribuíram com o di­ travagante. Apocalipse significa desvennheiro que lhes sobrava” . A viúva, po­ damento ou revelação e é um termo rém, fez a sua oferta tirando dinheiro do técnico que designa escritos que dizem que necessitava. Nem vã nem avara, ela . oferecer um vislumbre por detrás da cor­ entregou o seu próprio sustento nas mãos tina que vela os propósitos e atividades de Deus. de Deus. Na Bíblia, a maior parte de Daniel e do Apocalipse de João são os 3. O Discurso Apocalíptico: A Impor­ exemplos mais claros. Houve também um sem-número de apocalipses não-bítância de Discipulado Alerta(13:l-37) blicos, e o estilo apocalíptico influenciou O discurso do capítulo 13, freqüente­ livros tão diferentes, como Joel e II Tesmente chamado “O Pequeno Apocalip­ salonicenses. Por comuns que possam ter sido os es­ se” , é o último e mais controvertido bloco critos apocalípticos entre os judeus, a sua de ensinamentos registrado por Marcos. Aqui, é especialmente necessário focali­ linguagem não podia ser tão facilmente zar bem a perspectiva do autor e dos seus entendida por um auditório italiano. No­ leitores, pois a situação deles era muito te a advertência contida no versículo 14 diferente da dos discípulos que ouviram (provavelmente inserido na tradição por Marcos ou um predecessor seu): “Quem Jesus no Monte das Oliveiras. Para os cristãos de Roma, a ressurrei­ lê, entenda.” ção de Jesus não fora um acontecimento Não obstante, o estilo apocalíptico era misterioso, que ainda precisava ser des­ a forma literária em que as confiantes vendado, mas algo maravilhoso, que já expectativas — algumas vezes desespera­ 446


das esperanças — do povo de Deus eram freqüentemente expressas. Marcos 13 en­ cara o futuro: quando vier o FUho do homem nas nuvens, com grande poder e glória, ele ^juntará os seus eleitos (v. 26 e s.). O Senhor ressurrecto não abdicou, e precisamos estar alertas para a sua vinda. Estas promessas eram muito preciosas e significativas para os cristãos, que po­ diam, de outra forma, ficar desespera­ dos. É bem verdade, sem dúvida, que os primitivos cristãos algumas vezes enfati­ zavam demais ou até interpretavam erra­ damente essas esperanças expressas nos escritos apocalípticos. Por exemplo, sa­ bemos que Paulo teve que corrigir uma situação na igreja em Tessalônica, dentre cujos membros alguns haviam chegado a deixar de trabalhar, para ficar esperando o dia do Senhor (II Tess. 2:2 e ss.; 3:6 e ss.). Há mais de um século, T. Coíani ex­ pressou a tese de que Marcos 13 não veio, de forma alguma, de Jesus; que o que tèmos é um sumário das opiniões dos cristãos judeus primitivos; que o do­ cumento do qual este capítulo pode ter sido tirado bem pode ser identificado com um oráculo apocalíptico, mencio­ nado por Eusébio, historiador cristão do quarto século, que foi pronunciado em nome de Jesus, e que advertia os cristãos a fugirem de uma Jerusalém condenada. (Mais recentemente, conclui-se que esse documento foi produzido no tempo do Imperador Calígula (38:42), que ordenou que a sua estátua fosse colocada no Tem­ plo de Jerusalém; assim pensa, por exem­ plo, Johnson, p. 209). Com várias modificações, este ponto de vista foi aceito, em parte ou no seu todo, por muitos estudiosos, desde esse tempo. Alguns deles chegaram à conclu­ são de que esse capítulo contém muitas palavras genuínas de Jesus, mas que Jesus não foi o responsável pelo padrão em que elas chegaram a nós. Outros, ainda, concluíram que estes ensinos che­ garam a Marcos (e dessa forma a nós)

substancialmente na forma como Jesus OSpronunciou.

As principais dificuldades do capítulo, como observou Moule, são duas. Primei­ ra: Podemos nós crer que Jesus, que geralmente falava de forma tão diferente, pensava no futuro em termos de sinais fantásticos nos céus e no fim cataclís­ mico da história em um único evento (13:24-27)? Segunda: O leitor do capí­ tulo não entenderia normalmente que tudo o que foi profetizado iria acontecer naquela geração, há dezenove séculos? Menciona-se, indubitavelmente, que o momento preciso não era conhecido por Jesus (v. 32), mas, se estas eram palavras suas (v. 13,23,30,32 e s.), não estava ele enganado quanto às suas expectações? Com respeito à primeira dificuldade, ela pode ser respondida dizendo-se que a linguagem apocalíptica nunca teve a in­ tenção de ser entendida literalmente. Ela faz .parte mais das figuras exageradas dos “quadrinhos” das revistas modernas (em que uma montanha rochosa simboliza firmeza, e o “Amigo da Onça” o indiví­ duo gozador, etc. — cf. Apoc. 1:20) do que dos símiles ou metáforas normais. Veja, abaixo, o comentário sobre 13:24 e s. A Unguagem apocalíptica propiciava uma forma conveniente de falar de poder expressivo e de atividade além da huma­ na, embora ainda usando palavras de uso comum. Na verdade, seria surpreenden­ te se Jesus não tivesse falado nada acerca da presença invasora de Deus no futuro, e seria igualmente surpreendente se ele nunca tivesse usado linguagem apocalíp­ tica, com que o povo do seu país estava tão familiarizado. Quanto à segunda dificuldade, temos que reconhecer, antes de tudo, que Jesus confessou a sua própria falta de informa­ ções quanto ao dia e à hora (v. 32). O fato de ele não ter previsto que tantos 46 P ara um minucioso histórico desta discussão e um excelente estudo do significado do capítulo, veja G. R. Beasley-Murray, Jesus and the Futiure (London: M ac­ millan, 19S4), e seu Commentaiy on M aik Thirteen (London: M acm illan, 19S7).

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séculos se passariam, como de fato já ' passaram, não deve nos surpreender nem deverá ser um problema para nós. Os profetas viam claramente as tendências morais e espirituais de sua época, e vis­ lumbravam o que devia estar vindo, ine­ xoravelmente, da parte de Deus. Contu­ do, era-lhes característico encaixar o fu­ turo, a fim de trazê-lo para mais perto da realidade atual. Se for objetado que Jesus era mais do que um profeta, isto é algo que julgamos, por fé, ser verdade. Mas também julgamos que nosso Senhor se tomou genuinamente um homem, e Marcos o mencionou dizendo que não sabia o tempo do fim. Ê bem possível que os leitores de M ar­ cos interpretassem este capítulo com o significado de que o fim dos tempos já estava de fato muito próximo. Como aju­ daria a nossa compreensão, se pudésse­ mos ter em mãos tudo o que Jesus falou nessa ocasião, ou em outras ocasiões em que usou linguagem apocalíptica ou fa­ lou das esperanças do homem em Deus! Mas precisamos ter em mente que nem Mateus 24 nem Lucas 21:8-36 seguem Marcos 13 precisamente, e que Pedro usa quase as mesmas palavras de 13:24 e s., para descrever o que aconteceu no Pen­ tecostes (At. 2:19 e s.). Da maneira como está agora, e é possí­ vel que assim chegou a Marcos, este ca­ pítulo, no seu arranjo, segue um padrão apocalíptico, com um começo dos sofri­ mentos (ou dores) (5-13), um tempo de grande tribulação (14-23) e o fim (24-27). No entanto, a característica do capítulo nâo é apocalíptica, mas de advertência, encorajamento e exortação. A escatologia está presente, mas é apenas um veí­ culo para falar de fé e obediência. Dife­ rentemente de outros escritos àpocalípticos, sobretudo não há referência a Sa­ tanás nem se sublinha a destruição das forças malignas nem é feita uma des­ crição prolongada do juízo final. Embora, neste discurso, haja muito pouca coisa que não possa ser plausivelmente atribuída a Jesus, é razoável 448

supor-se que o que está registrado bem pode ter sido falado em diferentes oca­ siões (cf. 9:39-50). É igualmente possí­ vel supormos que os cristãos primitivos devem ter, em alguma ocasião apropria­ da, colocado este capítulo aproximada­ mente na forma em que está, talvez adi­ cionando advertências ou frases explanatórias para esclarecer a linguagem. 1) A Predição da Destruição do Templo e a Pergunta dos Discípulos (13:1-4) 1 Quando sa ía do tem p lo, d isse-lh e um dos seu s d iscíp u los: M estre, olha que p ed ras e que e d ifíc io s! 3 Ao que J esu s lh e d is s e : V ês e stes gran d es ed ifícios? N ão se d eix a rá aqui pedra sobre p ed ra que não se ja derribada. 3 D epois, estan d o e le sentado no M onte das O liveiras, defronte do T em plo, P ed ro, T ia ­ go, João e André perguntaram -lhe em p a r ­ ticular : 4 D ize-nos, quando su ced erão e sta s co isa s, e que sin a l h a v erá quando todas e la s estiv erem p a ra se cum prir?

As pedras das paredes do Templo eram de fato maravilhosas. Os edifícios para os quais os discípulos estavam olhan­ do haviam sido iniciados pelo rei Hero­ des, quase meio século antes (João 2:20). A construção ainda continuava de modo intermitente. Josefo descreveu as lindas pedras brancas, entalhadas e bem ajusta­ das, e disse que mediam vinte e cinco côvados de comprimento, oito de altura e doze de largura. A face leste do santo dos santos estava coberta com placas de ouro. Ao se afastarem, os discípulos, para o monte das Oliveiras, a leste, a vista devia ser magnificente. A resposta de Jesus deve ter sido sur­ preendente. O Templo era o centro da adoração a Deus, para todo o Israel; parecia irracional que destruição com­ pleta poderia sobrevir a lugar tão sagra­ do e aparentemente tão forte. Todavia, a profecia foi quase totalmente cumprida em 70 d.C. Umas poucas pedras, espe­ cialmente as do Muro das Lamentações, podem ainda ser vistas. Contudo, a des­ truição do Templo foi efetuada primeira­ mente pelo fogo, do que nenhuma idéia é dada. Jesus não apresentou um relato


preciso dos acontecimentos, mas previu muito claramente o trágico fim do curso que os líderes judeus estavam seguindo. Quatro dos discípulos, aparentemente puxando Jesus à parte dos outros, perguntaram-lhe acerca das suas palavras. Quando a destruição do Templo suce­ derá? Que sinal haverá, que nos avisará? Em Mateus 24:3, a pergunta é de tal forma transformada, que se diz que os discípulos perguntaram: “Que sinal ha­ verá da tua vinda e do fim do mundo?” (cf. Luc. 21:7). Quando consideramos a resposta de Jesus em Marcos, vemos que ele, na verdade, tratou das duas pergun­ tas. Julgando da narrativa de Marcos, precisamos chegar à conclusão de que, do ponto de vista dos discípulos, a des­ truição do Templo seria um desastre notável, um acontecimento incrível, que presumia-se relacionar-se intimamente com 0 fim do mundo. O infinitivo para se cumprir é tradu­ ção de uma forma verbal composta do substantivo que, em Mateus 24:3, é tra­ duzido como “fim do mundo” . O verbo propriamente dito significa reunir as coi­ sas em uma consumação ou consecução final. Desta forma, a pergunta de Ma­ teus é uma interpretação da de Marcos, dependente não apenas da resposta da­ da, por Jesus, mas também da relação de Marcos, da pergunta original. 2) Advertências Contra Falsos Cristos, Grandes Perturbações e Tribulações Angustiosas Para os Discipulos (13:5-13) 5 E ntão J esu s com eçou a dizer-lhes: A cautelai-vos; ninguém v o s en g a n e; 6 m u i­ tos virão e m m eu n om e, dizendo: Sou eu; e a m uitos en ganarão. 7 Quando, porém , ouvirdes fa la r em guerras e rum ores de guerras, não v o s p erturb eis; forçoso é que a ssim aco n teça ; m a s ainda não é o fim . 8 P ois se levan ta ra n ação contra n a çã o , e reino contra reino; e h av erá terrem otos em d iversos lu gares, e h a verá fo m es. Isso será o princípio d as dores. 9 M as olhai por vós m esm os; po is por m in h a cã ü sa v o s h ão de. entresaL .aa§_su ied 3 5 s" g ~ á g " a n a g o g a s. e sereis açoitad os; tam b ém ser eis iW ad os p e­ rante governad ores e r eis, para lh es servir

de testem u n h o. 10 M as im p orta que p rim ei­ ro o ev a n g elh o se ia pregado en tre todas a s ni,cões. 11 Quando, pois, v o s conduzirem para v o s en tregar, não vo s preocu p eis com o que h a v eis de d iz e r ; m a s, o que vos for dado n aq u ela hora, isso fa la i; porque não sois v ó s que fa la is, m a s, sim , o E spírito Santo. 12 U m irm ã o en treg a rá á m orte a seu irm ão, e u m p a i a seu filh o ; e filhos se levan tarão contra os p a is e os m atarão. 13 E se r e is odiad os de todos por ca u sa do m eu n o m e ; m a s aquele que p ersev era r a té o fim , e s s e se r á salvo.

Respondendo aos seus quatro mais ín­ timos discípulos, Jesus começou com uma advertência para se acautelarem. Através de todo o capítulo, há uma repe­ tida exortação para estarem alerta, para tomareih cuidado com a sua interpre­ tação das palavras e acontecimentos. A ordem final, no discurso, é dada no mesmo tom (cf. v. 37). Jesus considerava grave a possibilidade de que os seus dis­ cípulos fossem ficar desorientados em face das declarações falsas e dos tumul­ tos inesperados e amedrontadores. Haveria um perigo especial, advertiu ele, quando pessoas viessem afirmando falar em meu nome, dizendo: Sou eu! Segundo a sua devida acepção, em meu nome significa apenas “pela minha auto­ ridade” , isto é, alguém que alegraria falar por Jesus (veja, acima, o comen­ tário sobre 9:38 e a história dos sete filhos de Ceva, em Atos 19:13 e ss.). Todavia, a frase acrescentada nos obriga a entender esta declaração como de a pessoa ser o próprio Filho do homem. Para Sou eu, veja, acima, o comentário sobre 6:3 e note também 14:62. Evidência de “falsos cristos” durante o período decorrente entre a ressurreição de Jesus e a época em que Marcos foi escrito, admite-se que é pequena. Não obstante, note a descrição que Simão, o mago, faz de si mesmo em Atos 8:9-11, e também a referência de Gamaliel a Judas e a Teudas (At. 5:33 e ss.). O primeiro pretenso Messias conhecido foi Bar Cochba(132 d.C.). Guerras e rumores (notícias) de guer­ ras freqüentemente eram associados com 449


o fim dos tempos, no apocalipse judaico, da mesma forma como terremotos e fo­ mes. De fato, o uso destas palavras, nas expectativas proféticas, era comum tam­ bém nas primeiras profecias do Velho Testamento. Veja, por exemplo, Isaías 19:2 (“cidade contra cidade, reino contra reino” , embora o oráculo se referisse ao Egito); 8:21 e 14:30 (“fome” ; cf. At. 11:28); 13:13 (terremoto). Compare tam­ bém a posterior descrição dos quatro cavaleiros do Apocalipse de João (6:1-8). Os cristãos romanos deviam pensar em acontecimentos históricos, como os pro­ blemas com a Pátria, a revolta dos judeus (66 d.C.), terremotos na Laodicéia (61 d.C.) e a destruição vulcânica de Pompéia(62d.C.) Quatro frases, nos versículos 7 e s., são de se notar especialmente. Não vos per­ turbeis significa “não fiqueis com me­ do” . Por que não? Porque é certo que essas coisas acontecerão, em vista das inclinações e dos atos dos homens e da maneira de Deus tratar com eles. Portan­ to, forçoso é que assim aconteça; é pre­ ciso que aconteça, da mesma forma co­ mo o sofrimento de Jesus ia acontecer inevitavelmente (cf. o comentário sobre 8:31), e da mesma forma como a ira de Deus inevitavelmente ia se desencadear (cf. o comentário sobre 4:10-12). A frase forçoso é que assim aconteça não deve ser interpretada com o signifi­ cado de que Deus inicia guerras e outras tragédias que desgraçam a humanidade e muito menos como de que não devemos lutar em prol da paz entre as nações. Os discípulos não precisam temer que Deus os tenha abandonado, embora o mundo esteja se solapando ao redor deles ou esteja explodindo. Mas também eles não deviam supor que essas terríveis calami­ dades trarão o fim, porque ainda não é o fim, isto é, a consumação final desta era não depende do tempo ou da ocorrência de alguma tragédia na história, não se dará “a essa altura” . Então, o que são essas coisas? São apenas o princípio das dores. Dores é 450

tradução da palavra correspondente a “trabalho de parto” . Na literatura apocaKptica, esta é, aparentemente, a ex­ pressão técnica para designar “ os terro­ res e tormentos que precedem a vinda da era messiânica” (Bratcher). É uma pala­ vra singularmente adequada para uma descrição tanto de dor como de pro­ messa. Os perigos descritos nos versículos 5-8 eram de pessoas de fora, que, fingidamente, ou acontecimentos que, sorratei­ ramente, podiam enganá-los. Nos versí­ culos 9-13 os discípulos foram advertidos outra vez: olhai por vós mesmos, porque grandes pressões seriam empregadas pa­ ra forçá-los a renunciarem à sua lealdade a Jesus. Entregar significa prender (1:14) ou trair (3:19); esta palavra ocorre três vezes neste parágrafo. Sinédrios eram cortes locais, cada um com vinte e três mem­ bros, localizados em comunidades judai­ cas diferentes que de Jerusalém. Paulo foi açoitado cinco vezes, de acordo com II Coríntios 11:24, possivelmente por or­ dem de cortes assim. Governadores e reis eram autoridades não-judaicas. Marcos usa a palavra rei livremente (Herodes Antipas, na verda­ de, não possuía esse título, embora fosse usado a respeito dele em 6:14), e essa palavra podia referir-se aos governantes herodianos (At. 12:1; 25:13), embora claramente aplicável a Nero. Os governa­ dores abrangiam os procuradores, pro­ cônsules e talvez até magistrados (At. 16:20 e ss.). Sereis levados perante eles significa ser julgados diante deles. Por que isso deveria acontecer? Por minha causa, disse Jesus — frase que aqui significa: por causa da vossa fideli­ dade a mim (cf. 8:35). Porém os propó­ sitos de Deus seriam servidos, mesmo em seus julgamentos e perseguições. Ò que acontecesse seria um testemunho diante deles, quer do poder do evangelho nos discípulos, quer da proclamação das boas-novas propriamente ditas, ou, mais provavelmente, ambas as hipóteses. Tal­


vez também haja uma nota de advertên­ cia: eles podem não crer em vocês, mas vocês terão testificado fielmente diante deles, e terão que responder diante de Deus por isso. É possível juntar á expressão entre todas as nações (isto é, todos os gentios) com o versículo 9. A redação da versão que usamos, contudo, é uma razoável interpretação do texto grego; e, mesmo que a tradução alternativa tenha sido usada. Marcos obviamente entendeu que Jesus ensinara que o evangelho será pre­ gado aos povos gentios. Importa que primeiro o evangellio seja pregado. Talvez primeiro não se refira a tempo, e simplesmente signifique “ mais importante” , de forma que a “principal” necessidade era que o evangelho fosse proclamado. Não obstante, esse advérbio geralmente tem um significado cronoló­ gico em Marcos, e responde bem plausivelmente ao versículo 7: “ainda nâo é o fim” (W. G. Kümmel, Beasley-Murray). O Espírito Santo estará com os discí­ pulos onde quer que eles, sendo servos fiéis, enfrentarem julgamentos e perse­ guição. Portanto, não vos preocupeis, porque ele vos ajudará a testificar. Não vos preocupeis significa: não fiqueis an­ siosamente dividindo a vossa atenção en­ tre a vossa pregação e as ameaças deles acerca do que vos pode acontecer. Esta é uma exortação paralela a “toma a tua cruz” . A dedicação de um discípulo pre­ cisa ser completa, não importa qual seja o custo. E o Espírito de Deus estará com ele, para fortalecer e guiar até as pala­ vras dele. A divisão dentro de famílias será tão grande e tão trágica que discípulos fiéis se verão sendo traídos pelos seus entes mais queridos, mesmo estes sabendo que essa traição pode significar morte. Isto fazia parte das expectativas apocalípticas (Enoque 99:5; II Esdras 6:24; II Baruque 70:6; cf. Miq. 7:6). Tais incidentes indu­ bitavelmente aconteceram, porque as pressões mencionadas nos versículos 9 e s. devem ter sido terríveis. O historiador

romano Tácito descreve os cristãos como pessoas odiosas por causa das suas abo­ minações (cf. outra vez I Pedro 4:12-16). Não sabemos se eles foram perseguidos logo, pelo próprio nome de Jesus, mas sabemos que nâo demorou muito a vir essa perseguição. Todavia, os sofrimentos não seriam nada mais do que “preliminares à gló­ ria” (Beasley-Murray). Ser salvo referese a mais do que à vida física, aqui, embora Johnson assim o confine; pelo contrário, é evidente que a vida física pode ser apagada (v. 12). Ser salvo — neste contexto — significa ter vida, res­ surreição, contínua relação _com_o Se­ nhor. Este termo, em outros exemplos, pode significar a entrega inicial de uma pessoa ao Senhor, ou o seu crescimento na vida cristã, pela graça de Deus. Este versículo não precisa significar que o fim do século virá antes de suas mortes. Perseverar significa permanecer fiel ao nome, não importa ~õ~~ãüê~possa vir; síffliífícã não se “ d ^ i a r ” (Mat. 24:10), mãFdar testêníuríHb, confiando no Espí-_ rito Santo._ 3) A Época Terrível do Sacrilégio Deso­ lador (13:14-23) 14 Ora, quando vós vird es a abom inação d a desolação esta r onde nào d eve esta r (quem lê , en ten d a) então os que e stiv erem na Ju d éia fu jam para os m o n te s; 15 quem estiv er no eirad o não d esça , nem entre para tirar a lg u m a co isa da su a c a s a ; 16 e quem estiv er no cam p o não volte a trá s para b u s­ car a su a ca p a . 17 M as a i d as que e s tiv e ­ rem grávid as, e d as que a m a m en ta rem n a ­ queles d ias! 18 O rai, p ois, p a ra que isto não suceda no inverno; 19 porque naq u eles dias h averá u m a tribulação ta l, qual nunca hou­ ve desde o princípio d a cria çã o , que D eus criou, a té a g o ra , n em ja m a is h a v erá . 20 Se o Senhor n ã o a b rev ia sse a q u eles dias, n in ­ guém se sa lv a ria , m a s e le , por ca u sa dos eleitos que esco lh eu , abreviou aq u eles d ias. 21 E n tão, se a lg u ém v o s d isser: E is aqui o Cristo! ou: E i-lo ali! não a cred iteis. 22 P o r ­ que hão de su rgir fa lso s cristo s e fa lso s profetas, e farão sin a is e prodígios p ara e n ­ ganar, se p o ssív el, a té os escolh id os. 23 F i­ c a i v ó s, pois, de sob reaviso; e is que de a n te ­ m ão v o s tenho dito tudo.

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A abominação da desolação é uma expressão da tradução em grego do apo­ calipse de Daniel. As passagens referidas são Daniel 11:31, 9:27 e 12:11. A ex­ pressão hebraica seria mais bem traduzi­ da como “o horror pavoroso” . Descreve a terrível abominação contra a fé hebrai­ ca e o povo judeu levada a efeito por Antíoco Epifânio, quando ele tentou aca­ bar com a adoração ao Senhor. As suas forças cobriram o altar de Deus com um altar pagão, e sacrificaram came de por­ co ao Zeus Olímpico. Isto foi em 168 a.C., e desencadeou a revolta dos Maca­ beus (I Mac. 1:41-64; a mesma expressão “abominação da desolação” ocorre em 1:54). O que esta expressão significa aqui no versículo 14? Certamente refere-se ao futuro, e não ao passado. Pode referir- se ao anticristo, pois (1) o particípio tradu­ zido como estar está na forma mascuUna, e não neutra (como sacrilégio, abo­ minação), e, provavelmente, refere-se a uma pessoa; e (2) freqüentemente consi­ dera-se que II Tessalonicenses 2:3-10 confirma a identificação da abominação da desolação com o anticristo ou o “ho­ mem da iniquidade” . É difícil decidir até que ponto Marcos aqui entende esta expressão em referên- ■ cia a um evento futuro, escatològico, e. até que ponto ele a Uga à destruição de Jerusalém. Nos versículos 24-27, Jesus, sem dúvida, está se referindo aos tempos do fim; nos versículos 14-23, a maior parte do que é dito aplica-se à destruição do Templo e de Jerusalém. A luta constante e a esperança dos dis­ cípulos (e do apocalipse judaico), toda­ via, dificilmente teria permitido que eles divorciassem um evento tão trágico e simbólico, como a destruição do Templo, da convicção de que Deus interviria, se uma coisa dessas acontecesse. Lucas, es­ crevendo depois da catástrofe, encontra claramente, o cumprimento das palavras de Jesus aqui registradas, na conquista romana e na destruição de Jerusalém (21: 20-24). Cranfield está, provavelmente. 452

certo, ao concluir que, na verdade, Jesus falou do desastre iminente, em alguma relação com os acontecimentos finais, mas que ele deixou “campo para a pos­ sibilidade” de que a iminente destruição do Templo pudesse ser seguida por ou­ tras crises, na história, antes do dia final. Quem lê, entenda, é da autoria óbvia de um intérprete das palavras de Jesus, ou Marcos ou àlgum outro, anterior. Como tem sido indicado, esta frase nâo precisa dar a entender que Marcos 13, como um todo, é interpretado como vin­ do da mesma fonte que todos os outros ensinos de Jesus. É uma exortação para ser-se cuidadoso, para colocar-se a mente para trabalhar acerca deste assunto, pois a frase que se acaba de usar é enigmá­ tica; contém um certo mistério. O que se diz nos versículos restantes (14-20) é especificamente aplicável às tragédias da revolta judaica contra Ro­ ma, em 66-70 d.C. A cidade não oferecia refúgio, e era mais seguro esconder-se nas cavernas das montanhas e dos mon­ tes. Eusébio conta-nos que os cristãos não tentaram encontrar segurança em Jerusalém, mas fugiram e estabeleceram a igreja em Pela. O homem que estiver no eirado, talvez descansando no teto chato, terá tempo apenas para escapar. Ele não deve des­ cer, isto é, arriscar-se, tentando salvar os seus bens. Nem deve o homem que es­ tiver trabalhando no campo (isto é, fora dos muros de sua cidade) tentar voltar para casa, nem que seja para pegar a sua capa, ou manto exterior, que poderia ser necessário durante a noite. Os tempos serão tão difíceis, que será especialmente trágico para a mulher que porventura estiver grávida, ou que tenha um filho que precisa alimentar ao seio (cf. Luc. 23:29). Qualquer estação do ano será difícil, mas ser obrigado a se esconder nos montes no frio do inverno seria insuportável. Essa tribulação será a pior que o mun­ do já experimentou. A descrição pode aplicar-se bem à época da derrota dos


judeus, se a admitirmos como hipérbole. Porém a sua experiência amedrontadora fora predita em profecia, e era apocalíp­ tica também, em conexão com o fim (Veja Jer. 30:7 e Dan. 12:1). Fora tam ­ bém predito que Deus iria cuidar dos seus. Jesus assegura que Deus, por causa dos eleitos que escolheu, já tomou pro­ vidências para que esses dias sejam abreviados (“ amputados”). A promessa é feita no estilo dos profetas: a palavra de Deus é tão certa que pode-se consi­ derá-la como já cumprida. Os eleitos (v. 20 e 22) são o povo escolhido de Deus. O termo não dá a entender que Deus é parcial e tem fa­ voritos, pois a escolha de Deus corres­ ponde, em medida apropriada, à escolha do homem. Eles responderam ao chama­ do de Deus, não para a segurança ou pa­ ra alguma proteção terrena ou eterna, mas para servir à vontade de Deus. Não há nenhuma promessa de proteção con­ tra a dor, ou contra ser levado pelo erro, embora Deus não os esqueça. A vocação de Deus é mais ampla do que a sua elei­ ção, pois a liderança reUgiosa do povo he­ braico, sem dúvida, se considerava cha­ mada (cf. Mat. 21:43). Mas o fato de eles terem-se recusado a assumir o papel de servos da humanidade, sua total rejeição de Jesus e suas atitudes em relação a outros povos (inclusive os romanos) levou à destruição de Jerusalém. Os leitores de Marcos, sem dúvida, identificariam os eleitos, na sua época, com os que haviam respondido afirmativamente ao evange­ lho. O versículo 21 deve ser comparado com Lucas 17:20 e ss., bem como os versículos 5 e 6, acima. Então faz a ligação desse versículo com o que o pre­ cede, embora possa significar “naquele tempo” (isto é, o tempo de 14-20), ou em algum tempo futuro, ou ao tempo que se seguiu imediatamente ao que acaba de ser descrito (cf. Arndt e Gingrich). Como foi indicado acima, o primeiro pretenso “Messias” plenamente caracterizado co­ mo tal, ao que sabemos, foi Bar-Cochba,

cerca de sessenta anos mais tarde. Mas falsos cristos e falsos profetas são termos suficientemente indefinidos para incluir muitos que anunciaram que estavam fa­ lando em nome de Deus. Sinais e prodígios, atos que davam aparência de serem de Deus, ou de exer­ cerem divino poder, seriam realizados por esses embusteiros. Cranfield indica que desta forma os poderes do mal iriam “explorar... a tendência natural dos dis­ cípulos de escapar (às dolorosas dificul­ dades e incertezas da fé) para a confor­ tável segurança do que é visível” . No versículo 23, o pronome vós ocorre duas vezes, no grego, de forma enfática. “Ficai vós Usto é, os quatro discípulos do versículo 3, embora os leitores de M ar­ cos, provavelmente, iriam pensar referirse a eles próprios de sobreaviso; já vos contei todas as coisas de antemão.” Tudo não deve ser forçado, de forma a signifi­ car que Jesus apresentou uma história minuciosa dos eventos futuros. Esta sen­ tença deve ser entendida com o signifi­ cado único de que eles haviam sido avi­ sados plena e adequadamente. 4) A Vinda Triunfal do Filho do Homem (13:24-27) 24 M as n aq u eles d ias, d epois d aquela tr i­ bulação, o sol escu recerá , e a lu a não d ará a sua luz; 25 a s e str e la s cairá« do céu, e os poderes que estã o nos céu s serão abalados. 26 E ntão verão vir o F ilh o do hom em n as nuvens, com grande poder e glória. 27 E logo enviará os seu s an jos, e aju n tará os se u s eleitos, d esd e os quatro ven to s, d esd e a e x ­ trem idade da terra a té a extrem id ad e do céu.

A linguagem e as idéias expressas nes­ tes versículos derivam-se do Velho Testa­ mento. Os escritores apocalípticos, sem dúvida, também empregavam livremente as mesmas fontes e as mesmas figuras. Não podemos supor que, cada vez que uma dada figura de linguagem ocorre, ela se refere ao mesmo acontecimento ou signifique exatamente a mesma coisa; mas o seu uso em outros textos, na ver­ dade, fornece indispensáveis indícios pa­ ra o seu significado. 453


Algumas outras passagens que empre­ gam as frases usadas aqui são Isaías 13:10, 34:4, Amós 8:9, Joel 2:10,30 e s. e Ezequiel 32:7 e s. A fim de verificar a mesma linguagem pictórica utilizada na literatura apocalíptica, cf. I Enoque 80: 2-7, II Esdras 5:4 e ss., Assunção de Moisés 10:5 e Apocalipse 6:12-14. Naqueles dias era uma expressão que geralmente indicava, na fraseologia he­ braica, o fim dos tempos (cf. Jer. 3:16; Zac. 8:23). A cláusula adversativa mas separa este acontecimento do que o pre­ cede, da mesma forma como depois da­ quela tribulação (veja o v. 19). Não obs­ tante, a Unguagem usada não sugeria para o leitor romano que não podia haver conexão entre os acontecimentos espera­ dos de 14-23 e os de 24-27. Veja, adiante, o versículo 29. Não nos é exigido que interpretemos todas as frases figurativas que se seguem, como predições de eventos objetivos. Mas elas afirmam dramaticamente que Deus está sobre todo o seu universo, que as mudanças e o resultado final estão nas suas mãos (quem, a não ser Deus, po­ deria escurecer o sol?). Elas significam que o mal nâo exerce um domínio final (embora nada seja dito diretamente acer­ ca de julgamento), pois o Filho do ho­ mem virá para os seus. Grandes mudanças estarão aconte­ cendo — descritas como o sol sendo ene­ grecido, a lua não brilhando mais, as estrelas caindo. Os poderes que estão nos céus podem referir-se aos espíritos ele­ mentares ou forças elementares, que eram comumente mencionadas como for­ ças que governavam as estrelas, e influen­ ciavam o mundo (cf. Col. 2:8,20; Ef. 6: 12; Rom. 8:38 e s.; Gál. 4:3; 11 Ped. 3:10-12). Contudo, o verbo serão abala­ dos favorece uma interpretação paralela às três primeiras figuras, uma mudança tão dramática que pode ser descrita co­ mo um terremoto nos céus. A vinda do Filho do homem vai ter lugar então. (Porém, não devemos supor que esta é a única vez ou única maneira 454

pela qual os cristãos podem pensar na sua vinda; cf. 8:38-9:1 e as notas que os acompanham.) Ele virá nas nuvens, com grande poder e glória (cf. Dan.7:13 e s., onde grande parte da mesma lingua­ gem é usada). A figura aqui é de uma “pessoa sobre-humana, investida de au­ toridade divina e vestida com luz divi­ na” (Taylor). Nuvens muitas vezes sim­ bolizavam a própria presença de Deus, para quem o homem não podia olhar diretamente (cf. 9:7; e Êx. 16:10; 33:9; Núm. 11:25; mas a figura seria menos dramática em Roma do que em Jerusa­ lém, onde uma nuvem é um fenômeno raro de maio a setembro.) Marcos pensa nesta vinda do Filho do homem como o acontecimento final. Da mesma forma Mateus 24:29-31, mas me­ nos certamente Lucas 21:25-28 (“ ora, quando essas coisas começarem a acon­ tecer, exultai e levantai as vossas cabe­ ças, porque a vossa redenção se apro­ xima” ). Verão é impessoal, e não dá a entender que todos o verão. Mas o efeito será de âmbito mundial. Aqjos (mensa­ geiros com missão divina) serão enviados. Que os seus eleitos seriam dispersos e precisariam ser recolhidos e ajuntados de toda a terra é uma idéia comum ao Velho Testamento (Deut. 30:4; Is. 11:11; Zac. 2:6-12), embora fosse um consolo para os sitiados cristãos de Roma. Os quatro ventos aqui significam sim­ plesmente as quatro direções ou pontos cardeais. Semelhantemente, desde a ex­ tremidade da terra até a extremidade do céu deve significar “ de todas as partes” , embora a primeira frase possa referir-se particularmente a toda a porção de terra a leste da Palestina, e a segunda, aos horizontes do oeste, onde ficam as águas azuis do Mediterrâneo. O que é prometido neste parágrafo não tinha a intenção de mudar o centro de nossa fé desta era para a próxima. Todo o capítulo, com as suas advertências e exortações, é a rejeição de uma religião “do outro mundo” . Todavia, a promessa da vinda triunfante do Filho oferecia ao


povo de Deus esperança e encorajamen­ to. Afirmava que Deus está na direção e que não abandonou o seu povo. Ele vin­ dicará e ajuntará os seus. Seja o que for que os homens façam ao discípulo, em qualquer época, de forma alguma anula­ rá a fé pela qual vivemos e não poderá destruir a esperança pela qual somos sus­ tentados. O Filho reinará! 5) Necessidade de Percepção Alerta (13:28-37) 28 D a fígu eira, pois, aprendei a parábola: Quando já o seu ram o se to m a tenro e brota foUias, sa b eis que e stá próxim o o verão. 29 A ssim tam b ém v ós, quando v ird es su c e ­ derem esta s co isa s, sa b ei que e le e stá p róxi­ m o, m esm o à s portas. 30 E m verd ad e vos digo que nào p assará e sta g era çã o , a té que todas e ss a s co isa s a co n teça m . 31 P a ssa r á o céu e a terra, m a s a s m in h as p a la v ra s não passarão. 32 Quanto, porém , ao dia e à hora, ninguém sab e, nem os anjos no céu n em o Filho, sen ão o P a i. 33Olhai! v ig ia i! porque não sa b eis quando chegará o tem p o. 34 Ê com o se um h om em , devendo via ja r, ao d eixa r a su a ca sa , d esse autoridade aos seu s servo s, a ca d a u m o seu trabalho, e ord en asse ta m b ém ao porteiro que v ig ia sse . 35 V igiai, p ois; porque não sab eis quando virá o senhor da ca sa ; se à tarde, se à m eia-noite, se a o can tar do galo, se pela m a n h ã ; 36 para que, vindo de im p ro­ viso, n ão v o s ach e dorm indo. 37 O que vos digo a v ó s, a todos o d ig o : V igiai.

A seção final do capítulo enfatiza três coisas: (1) os discípulos deviam ser capa­ zes de discernir a vinda desses eventos profetizados, pois eles seriam tão claros como os sinais da chegada da primavera e aconteceriam dentro daquela geração; (2) não obstante, o tempo do fim só o Pai conhece; e (3) os discípulos precisam estar constantemente alerta e prepara­ dos. O que acontece regularmente à figuei­ ra na primavera propicia uma lição (li­ teralmente, “parábola”) para os discípu­ los. Quando ela mostra sinal de renova­ ção, todos sabem que o inverno passou e que o verão está a caminho. Semelhante­ mente, os discípulos deviam ter ânimo. Até as tragédias injustas, cruéis e divi­ soras que ocorrem nada mais são do que

dores de parto de um novo dia, que provém de Deus (veja o v. 8). É verdade, como J. Jeremias e outros têm salientado, que essa parábola pode ter sido dada ori­ ginalmente em um outro contexto, e que as mudanças ocorridas na figueira são mais paralelas aos bons sinais da salva­ ção (ressurreição, pregação do evangelho, disseminação da fé) do que dos horrores que precisavam ser enfrentados. Mas a idéia, para Marcos e seus leitores, é, como diz Beasley-Murray, que os discí­ pulos podiam estar absolutamente certos de que quando vissem acontecer o que Jesus falou. Deus estaria com eles e o verão da sua salvação estaria às portas. Ele está próximo pode ser traduzido “o fim está próximo” ; o sujeito não é espe­ cificado no original. Será que essas coisas, no versículo 29, e todas essas coisas, no versículo 30, se referem a tudo o que foi dito em 5-27, ou apenas aos acontecimentos de 5-23? Ou seja: A frase inclui a vinda do Filho do homem, ou não? Em resposta, preci­ samos observar que os acontecimentos de 24-27, diferentemente aos dos versículos anteriores, são expressos como aconteci­ mentos sucedidos além da terra, ou seja, do fim em si mesmo. Portanto, é bem possível fazer com que essas coisas se re­ firam aos acontecimentos até 5:23, espe­ cificamente. Contudo, seria difícil, em vista dos significados normais e inclusi­ vos de todas essas coisas, não entender que, quando esses acontecimentos visí­ veis ocorrerem, a vinda do Filho do ho­ mem então pode ser esperada a qualquer momento. Algumas pessoas têm dito que esta geração se refere ao povo judeu; a esta espécie de geração, isto é, a homens maus, que perpetrariam horrores como se devia esperar; aos discípulos, a cris­ tãos genericamente; ou à geração (raça) humana como um todo. Beasley-Murray é bem persuasivo em insistir que isto deve ser entendido em seu sentido normal, on seja, que esta geração se refere aos contemporâneos de Jesus. De qualquer 455


forma, parece claro que Jesus considera­ va o cumprimento do seu chamado (in­ clusive a sua morte e ressurreição, a en­ trega que ele fez de sua vida, para resgate de muitos, cf. 10:45) como tornando certos os resultados da história. A sua vinda nas nuvens seria nada mais do que 0 seu triunfo final. Pelo menos nesta passagem, como é registrada em Marcos, Jesus parece en­ caixar todo o futuro em um breve período de tempo. Mas, no versículo 32, ele qua­ lificou a sua própria profecia: o Filho não sabe o dia nem a hora — só o Pai. Mais do que isso, a exortação para vigiar e para fazê-lo esperançosamente é perti­ nente para os cristãos de todas as épocas. Em que realidades permanentes pode o homem estribar-se? Não no céu e a terra, que passarão, mas em Jesus, cuja palavra é certa e eterna (v. 31). O he­ breu — e da mesma forma o cristão — entenderá essa declaração com o signifi­ cado de que a sua palavra é de Deus. Portanto, eles podem depender da pro­ messa da presença do Espírito (13:11) e da providência e do triunfo final de Deus. Contudo, a época desse fim é reservada à providência divina: não per­ tence ao homem, e nem mesmo ao supre- , mo ou mais importante dos representan­ tes de Deus (v. 32). No versículo 33, pela quarta vez neste discurso, encontramos a exortação olhai (cf. 5,9,23). Aqui, ela é reforçada pela 47 Estas palavras do versículo 32 são reconhecidas pela maioria dos eruditos bíblicos como sendo genuinam en­ te de Jesus. Foram naturalm ente usadas por Arius e seus seguidores, indicando a inferioridade do Filho em relação ao Pai, de form a que alguns dos mais ortodoxos do qu arto século negaram a sua autentici­ dade! Em tem pos recentes, muitos eruditos, inclusive A. T. Cadoux, R. B ultm ann e A. Loisy, sugeriram que este versículo nào é original; geralm ente a razào apre­ sentada p ara a sua existência é que ele dava à igreja um a explicação de por que a Parousia nào havia ocor­ rido. M as é mais n atu ral e mais apropriado reconhe­ cer que a realidade d a encarnação “ inclui tal ignorân­ cia da parte de Jesus du ran te a sua vida terren a” (Cranfield). Além disso, a ênfase do versículo nào é quanto ao fato de Jesus nào saber, m as ao fato da ignorância de todo m undo, menos o Pai. P ortanto, é um versículo que acentua a ordem p a ra vigiar. Cf. Beasley-Murray, p. 261-64.

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ordem: vigiai. Esse verbo ocorre apenas aqui em Marcos; o substantivo formado pela mesma raiz é usado por Paulo para descrever as suas noites sem dormir (cf. II Cor. 11:27). O mandamento ulterior para vigiar, nos versículos 35 e 37 é outra palavra, significando “estar alerta” . To­ das essas ordens estão no presente do imperativo; exigem constante vigilância, constante cuidado, constante expectati­ va. A maneira como Marcos entende o ensinamento de Jesus acerca de coisas futuras acentua este ponto de maneira especial. Os discípulos devem viver sem­ pre prevendo dificuldade e pressão, e, ao mesmo tempo, em esperança expectante e confiante no soberano triunfo de Deus. (Muitos manuscritos antigos acrescen­ tam a ordem para orar, no v. 33; isso seria bem apropriado, pois oração é uma expressão de atenção. Cf. 14:38. Não obstante, a evidência favorece o texto seguido pela versão da IBB.) Uma razão para ficar alerta é que os discípulos não sabem quando chegará o tempo. Isto é verdade também quanto ao tempo cronológico, mas a palavra tradu­ zida como tempo, aqui, significa “o tem­ po certo” , a ocasião apropriada que Deus, em sua providência, escolhe. A pe­ quena parábola em 34 e ss. tem paralelos com todas as três histórias, mais longas, em Mateus 25. Todavia, a ênfase aqui é quanto à responsabilidade do porteiro (o guarda do portão), que precisa permane­ cer acordado e pronto. Todos os servos têm um trabalho, isto é, eles têm alguma autoridade e responsabilidade delegadas. Mas uma parte dessa responsabilidade é prontidão constante. As quatro vigílias da noite, de acordo com o sistema romano, são relacionadas no versículo 35. A vigília da tarde era das seis às nove horas da noite; a meia-noite, das nove às doze horas; o cantar do galo, da meia-noite às três horas da manhã; e a manhã (ou alvorada) a vigília das três horas da manhã às seis. As advertências contra relaxamento da prontidão espiritual devem ter sido ne­


cessárias para os cristãos a quem o Evan­ gelho de Marcos foi escrito. No versículo 3, só quatro discípulos dirigiram-se a Jesus, mas a sua resposta a eles não deve ser considerada uma resposta apenas pa­ ra eles. Desta forma. Marcos assegurou aos seus leitores que o que Jesus estava dizendo- era aplicável a todos. A pro­ messa da vinda do Filho e a incerteza deles quanto ao tempo marcado por Deus deviam ser, para eles, encoraja­ mento e incentivo a uma vida cristã fiel, em um mundo perturbado pelo mal.

IV. Culminação do Ministério: Morte na Cruz e Ressurrei­ ção do Túmulo (14:1-16;20) 1. A Conspiração Contra Jesus (14:1,2) 1 Ora, dali a dois d ia s e r a a p á sco a e a festa dos p ã es á z im o s; e os p rin cip ais s a c e r ­ dotes e os escrib a s an d av a m buscando com o prender J esu s à traição, para o m a ta rem . 2 P ois e le s d iziam : N ão durante a festa , para que não h aja tum ulto entre o povo.

No capítulo 13, Marcos registrara a certeza profética, da parte de Jesus, de que Deus é soberano e de que o Filho do homem por fim realizará a plena salva­ ção do seu povo, embora eles precisas­ sem suportar dificuldades tremendas e aflições sem precedentes. Ele agora re­ toma a história da tragédia que já estava para sobrevir aos discípulos — a traição e crucificação de Jesus. Marcos faz ques­ tão que os seus leitores entendam quem é Jesus, e que eles leiam a narrativa de sua morte com a plena compreensão de que ele ainda é e continuará sendo Senhor. O que acontecerá terá lugar por causa da cruel cegueira dos líderes religiosos ju ­ daicos, mas acontecerá dentro do propó­ sito divino para o Filho, Os hebreus consideravam os seus dias de ocaso a ocaso. A Páscoa tinha (e tem) lugar no dia 15 de Nisã, do calendário judaico. Os cordeiros pascoais eram ofe­ recidos no Templo na tarde de 14 de Nisã, e a refeição pascal era preparada e comida naquela mesma noite, que, pelos cálculos judeus, já era o dia seguinte, 15

de Nisã. A Festa dos Pães Ázimos durava de 15 a 21 de Nisã. Fermento, a substância usada na mas­ sa para fazê-la levedar, era geralmente feito de farinha de trigo que havia sido amassada sem sal e guardada até que fermentasse; portanto, ele era providen­ ciado, ordinariamente, da massa feita anteriormente. Ao comer pão ázimo (ou pão sem fermento) durante uma semana, por' ocasião desse festival, o devoto sim­ bolizava o seu rompimento com o pas­ sado, especialmente com o que nele havia de mal, e um novo começo, numa vida piedosa. A Páscoa propriamente dita lembrava ao povo que Deus, em triunfo, havia libertado os seus antepassados da escravidão no Egito, e era um festival de esperança e expectativa de que Deus outra vez iria redimi-los. Dali a dois dias era a páscoa, é inter­ pretado algumas vezes como dois dias completos antes da festa. Mas, conforme a contagem de tempo judaica, se enten­ dermos que a refeição pascal era comida na noite de uma quinta-feira, isto prova­ velmente significa que uma reunião (in­ formal?) dos principais sacerdotes e os escribas teve lugar algures na quartafeira. Quanto a principais sacerdotes e escribas, veja 11:18,27; as palavras “ an­ ciãos” provavelmente seria incluída se Marcos estivesse se referindo ao Sinédrio todo. Estes líderes reUgiosos já estavam bus­ cando uma forma de destruir Jesus. Eles se preparavam para agir á traição (esta é a palavra traduzida como “dolo” , em 7: 22), porque não queriam provocar ne­ nhum distúrbio entre o povo, particular­ mente enquanto a cidade estava apinha­ da de adoradores peregrinos. J. Jeremias provavelmente está correto em interpre­ tar a frase não durante a festa, querendo dizer: não na presença da multidão que havia vindo para a festa. 48 The Eucaristíc Words of Jesus, ed. rev. (New York: Charles Scribner’s, 1966), p. 71 e s. Cf. o uso de “ festa” em Joào 7:11, e, em Lucas 22:6, a expressão “ sem alvoroço” (longe da m ultidão).

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No que concerne a Marcos, esses prindpais sacerdotes e escribas estavam me­ nos preocupados com as violações que eles mesmos possivelmente iriam fazer, de regras criadas pelos escribas (cf. co­ mentário a 14:53 e s.), do que com o ato de se livrarem de Jesus, conquanto nao precipitassem tumulto entre o povo. Vis­ to que eles já estavam buscando como destruir Jesus, podemos entender que provavelmente esperavam poder fazê-lo antes que a festa começasse. Ê desne­ cessário admitir (como o fazem H. B. Swete e A. Plummer) que eles haviam planejado esperar até depois da festa e que a defecção de Judas precipitou, de repente, a ação deles. Do ponto de vista de Marcos, a traição de Judas propiciou apenas a forma para se prender Jesus à traição. 2. AUnçãoemBetánia(14:3-9) 3 E stand o e le em B etân ia, reclin ad o à m esa , em c a sa d e Sim ão, o lep roso, velo um a m ulh er que trazia um v a so de alabastro, cheio de b á lsa m o de nardo puro, de grande preço; e , quebrando o v a so , derramou-lhe sobre a ca b eça o b á lsa m o . 4 M as alguns houve que e m s i m e sm o s se in d ig­ naram e d issera m : P a ra que se fez e ste desperdício do b álsam o? 5 P o is podia ser vendido por m a is de trezen tos denários, que se d arlam a o s pobres. E b ra m a v a m contra ela . 6 J esu s, p orém , d isse : D elx a l-a ; por que. a m olestals? E la praticou u m a b oa a çã o para com igo. 7 P orquanto os p ob res sem p re os ten des con vosco e , quando q u lserd es, p o ­ deis fazer-lhes b em ; a m im , porém , nem sem p re m e ten d es. 8 E la fez o que pôde; anteclpou-se a ungir o m eu corpo p ara a s e ­ pultura. 9 E m verdade v o s digo que, e m todo o m undo, onde quer que for pregado o e v a n ­ gelho, tam b ém o que e la fez se r á contado para m em ória sua.

Considerando-se 11:11 e s. e este pará­ grafo, parece que Jesus e os seus discí­ pulos estavam passando as noites em Be­ tânia. Todavia, Judas guiou o bando ar­ mado para o Getsêmane, no Monte das Oliveiras (14:26-44). Compare Lucas 21: 37: “Ã noite, saindo, pousava no monte chamado das Oliveiras.” Betânia não fica longe desse lugar. Nada mais sabe­ 458

mos acerca de Simão, o leproso. Presu­ mimos que ele era uma das pessoas que o poder de Jesus havia curado. A história narrada em Lucas 7:36-50, embora uma mulher unja a Jesus (isto é, os seus pés), na casa de um homem chamado Simão (nome muito comum), é diferente demais para ser identificada com a narrativa de Marcos. Naquele caso, a mulher é identificada como “uma pecadora” , e a unção foi um sinal de gratidão pelo perdão. Há diferenças também com a história apresentada em João 12:1-8. Ali, o dono da casa não é mencionado, porém M arta serve à mesa e Maria realiza a unção; Maria ungiu os seus pés, enxugou-os com os seus cabelos; mas diz-se que a mulher em Marcos ungiu a cabeça de Jesus. Só Marcos diz que a mulher quebrou o vaso; este era o costume, quando se ungia um corpo para o sepultamento. Contudo, em ambas as narrativas a mulher é criticada pelo seu desperdício do precioso bálsa­ mo; e em ambas Jesus aceita o ato como prevendo o seu sepultamento (v. 8; note que em 16:1 e ss. as mulheres preten­ diam ungir o seu corpo, mas a ressur­ reição já havia ocorrido). João coloca este incidente seis dias antes da Páscoa; aqui em Marcos (como em Mateus, que segue Marcos), é inserido mais tarde. Tanto Marcos como João foram capazes de arranjar o seu material para expressar mais claramente quem é Jesus e o que ele significa para o mundo. Isto é aparente­ mente o que aconteceu neste caso. É um pouco estranho que Marcos não dê o nome da mulher, embora ele afirme que o que ela fez será contado para memória sua. O vaso de alabastro pode ter sido feito de alabastro, ou era um “alabastron” , de algo menos caro; devia ser um “frasco longo, em forma de tubo” (Johnson). Õleo de nardo era extrddo da raiz de uma planta nativa na índia (Nardostachys jatamansi). £ descrito como puro, mas o significado do adjetivo é incerto, e é bem possível que descreva o óleo do


pistachio, amêndoa que era usada como base para perfumes. Ela derramou-lhe sobre a cabeça o bál­ samo. A unção da cabeça não dava a entender, necessariamente, nada mais do que cortesia ou amabilidade (cf. Luc. 7; 46). Mas os leitores de Marcos certamen­ te entenderiam isso como significando mais. Bacon, há mais de meio século, sugeriu que ela queria ungi-lo como o Cristo, e que a resposta de Jesus, no versículo 8, significa que nenhum trono o esperava — só um a morte de mártir. Para os leitores de Marcos, visto que a unção da cabeça freqüentemente signifi­ cava dignidade real, o ato da mulher bem podia afirmar, simbolicamente, Jesus co­ mo o Cristo — o Rei. A reação de alguns dos outros convi­ vas, tão inadequadamente cônscios do significado da pessoa e dos eventos que estavam sucedendo, foi — não é de se admirar — de aborrecimento.O perfume caro, tão caro que podia pagar o salário de um trabalhador durante todo um ano, sendo usado em apenas um curto mo­ mento! Que desperdício! (Para denários, cf. o comentário sobre 6:37.) Em João 12:4 e s.. Judas Iscariotes é identificado como a pessoa que expressou este ponto de vista, e João faz uma reflexão acerca da sua insinceridade. Mateus identifica, os que fizeram objeção, como os discí­ pulos. Jesus defendeu o ato daquela mulher. Claro que era verdade que os pobres poderiam ter usado a ajuda simbolizada por aquele perfume; isto é sempre ver­ dade. Mas aquela mulher pratícou uma boa ação para Jesus; não foi isso uma expressão de amor generoso? E, em vista da ocasião, aquela ação era especialmen­ te adequada, pois ele estava para ser sentenciado à morte. Jesus não iria in­ terpretar a unção como ato referente à dignidade real, mas como antecipação do seu sepultamento. Esta passagem não deve ser interpreta­ da como dando a entender que o cuidado pelos pobres não é importante ou é for­

tuito (isto é, para ser empreendido so­ mente quando for conveniente); mas que ninguém tinha o direito de molestá-la (a expressão grega literalmente significa “criar-lhe dificuldades” ) por ter-se apro­ veitado de um a oportunidade mais signi­ ficativa do que ela mesma podia imagi­ nar. O fato de Jesus ter dito que os pobres estão sempre na sociedade não quer dizer que a pobreza é de Deus, da mesma forma como a guerra, ou qual­ quer outro mal social (cf. 13:7). Pelo contrário, precisamos lutar contra esses males. Este versículo significa que os dis­ cípulos terão a oportunidade e a responsabiUdade de ministrar a pessoas necessi­ tadas. No versículo 9, de novo temos uma afirmação da universalidade do evange­ lho e do imperativo missionário. Muitos comentadores pensam que este versículo necessariamente não veio de Jesus, e, sim, originou-se das convicções da igreja primitiva. Rawlinson pensa que quanto à origem estas palavras podem ser autênti­ cas, “embora a sua redação deva ter sido refeita” na linguagem usada na pregação da igreja primitiva. Muito depende de se cremos que Jesus pensava que o fim esta­ ria muito próximo, e se essas palavras, bem como 13:10, vieram também de Jesus. Está perfeitamente claro que M ar­ cos entende que o evangelho, desde o princípio, era universal. A declaração plenamente apropriada, aqui, de que o ato dessa mulher iria ser contado para memória sua e o característico em ver­ dade vos digo emprestam algum apoio à conclusão de que essa declaração é es­ sencialmente de Jesus, e que a maneira como Marcos a compreendeu estava cor­ reta. 3. A Traição de Judas (14:10,11) 10 E ntão Ju d as Isca rio tes, um dos doze, foi ter com o s p rin cip ais sa cerd o tes, para lhes en tregar J esu s. 11 Ouvindo-o e le s, a le ­ graram -se, e p rom eteram dar-lhe dinheiro. E b u sca v a com o o en treg a ria e m oca siã o oportuna.

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A história da unção, inserida na tradi­ ção neste ponto, por Marcos, talvez tenha interrompido a narrativa da conspirata contra a vida de Jesus. Contudo, pode ser que Jesus, ao repreender os críticos da mulher, tenha desencadeado a ação de Judas. Será que ele entendia, quem sabe mais claramente do que alguns dos ou­ tros discípulos, que Jesus realmente rejei­ tava qualquer conceito de um cristo ter­ reno e realmente esperava morrer? Jun­ tamente com o aguilhão da resposta de Jesus (no v. 6; cf. João 12:4'7), o reco­ nhecimento de que Jesus esperava ser condenado à morte imediatamente pode tê-lo levado a divorciar-se do seu Mestre, e dirigir-se aos principais sacerdotes. A oferta de Judas propiciou aos inimi­ gos de Jesus a esperada oportunidade para prendê-lo sem tumulto (v. 2). Natu­ ralmente, eles alegraram-se, e promete­ ram pagamento por sua ação. Mas é de se duvidar que a sedução do dinheiro fosse por si mesma suficiente para levar Judas a trair Jesus. Marcos simplesmente não dá explicação; Mateus 26:15 apre­ senta Judas inquirindo quanto eles iriam pagar-lhe; Lucas diz que “ Satanás en­ trou nele” e que ele decidira então trair Jesus. Compare João 13:27. Na verdade, conhecemos muito pouco em relação a Judas Iscariotes. Marcos o menciona nominalmente apenas três ve­ zes (cf. 3:19; 14:43). Muitas sugestões têm sido feitas quanto aos motivos de Judas para fazer o que fez. Estava ele tentando forçar a mão de Deus, para revelar o messianismo de Jesus e vindicálo mediante algum milagre? Ou será que Judas estava enganado, crendo que os líderes religiosos não iriam ferir Jesus? Podemos tão-somente especular. Parece razoável que Judas foi, como diz Taylor, “uma vítima da desilusão, da dúvida e do desespero” . 4. A Preparado Para a Páscoa (14:12-16) 12 Ora, no prim eiro dia dos p ã e s ázim os, quando Im olavam a p á sco a , disseram -lh e

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seu s discípulos: Aonde q u eres que v a m o s tezer o s p rep arativos p a ra co m eres a p á s ­ coa? 13 E nviou, pois, d ois dos seu s d is c í­ pulos, e d isse -lh e s: Ide à cid ad e, e v o s sa irá ao encontro u m h om em , levan d o u m c â n ta ­ ro de á g u a ; segu l-o; 14 e , onde e le entrar, dizei a o dono d a c a sa : O M estre m an d a perguntar: Onde e stá o m eu aposento e m que h ei de com er a p á sco a com os m eu s discípulos? 15 E ele v o s m o stra rá u m g ra n ­ de cen ácu lo m obilado e pronto; a í fazei-nos 0 8 p rep arativos. 16 P artindo, p o is, o s d is c í­ pulos, foram à cid ad e, onde a ch a ra m tudo com o e le lh es d issera , e prep araram a p á s ­ coa.

No primeiro dia dos pães ázimos. Se as palavras forem extritamente interpreta­ das, não era o mesmo dia em que eles imolavam a páscoa (cf. o comentário sobre 14:1 e s.). O cordeiro era morto na tarde de 14 de Nisã, e comido naquela mesma noite, que, segundo o calendário judaico, já era 15 de Nisã. Strack e Bil­ lerbeck citam certas evidências de que 14 de Nisã era algumas vezes citado descui­ dadamente entre os judeus, como M ar­ cos o fez aqui: como o primeiro dia dos pães ázimos. Isto seria uma variação natural de uso, particularmente com pes­ soas que viviam em uma sociedade em que os outros pensavam nos dias com término à meia-noite. O versículo 12 claramente indica que Marcos trata a instituição da Ceia do Senhor como tendo ocorrido durante a refeição da Páscoa. Isto está de acordo com os outros Sinópticos, que seguem Marcos, neste ponto, mas em contraste com João, que mostra a morte de Jesus ocorrendo na hora em que o cordeiro da Páscoa era imolado (veja especialmente João 19:14,31). Tanto os Evangelhos Si­ nópticos como João apresentam a refei­ ção na quinta-feira à noite e a ressurrei­ ção no domingo bem cedo, depois que havia passado o sábado. Tem sido fre­ qüentemente notado que a maneira’ de João datar é uma forma de afirmar a verdade teológica de que Jesus é o nosso “cordeiro pascal” e que a sua morte liberta o seu povo da servidão (cf. as palavras de Paulo em I Cor. 5:7). Porém


precisa ser reconhecido que a instituição da Ceia do Senhor, por ocasião da refei­ ção pascal, tem quase igualmente a ca­ pacidade da expressão simbólica seme­ lhante e profunda da fé cristã. Em resposta à pergunta dos discipu­ los, Jesus enviou dois dos seus discípulos (Lucas' 22:8 os identifica como Pedro e João), a fim de prepararem a refeição pascal. Era incomum (embora nâo im­ possível) um homem levando um cântaro de ^ u a (isto é, um vaso de barrò). Visto que isso era trabalho “ de mulher” , os discípulos seriam capazes de identificar o homem com facilidade, e segui-lo até o lugar que Jesus aparentemente já havia reservado. Compare com a narrativa da entrada triunfal em Jerusalém em 11:111; grande parte da redação é a mesma. A impressão é que Jesus havia arranjado antecipadamente tanto o lugar quanto a forma pela qual os seus discípulos po­ deriam localizá-lo, e isso ele fez porque desejava que aquela refeição não fosse perturbada pelos seus inimigos. Johnson e Grant crêem que Jesus pode de fato ter feito esses arranjos, mas que Marcos trata Jesus como tendo “percepção so­ brenatural” . O próprio Marcos simples­ mente narra o que aconteceu; é imprová­ vel que o que Jesus havia feito ou deixado 49 P ara um a discussão m ais com pleta das questões surgi­ das e das soluções propostas, cf. J. Jerem ias, The Eucharbtlc Words of Jesus, p. 1-88. Cf. tam bém , C ran ­ field, p. 420-22, que afirm a que a Ceia do Senhor de fa­ to foi instituída p o r ocasiSo d a refeição da Páscoa. Em contraste. G ran t, no Interpreter’s Bible, V II, 872 e s. e 876 e s., crê ser impossível o julgam ento e a execução de Jesus terem acontecido depois que a Páscoa havia começado. P. C arrington, p. 307-10, pensa que aquela refeição “ foi a refeição p reparatória, n a noite anterior” (Nisã 14), que o ja n ta r em B etânia havia ocorrido em 13 de Nisã e que Jesus m orreu como cordeiro pascoal em 14 de Nisã, de acordo com João 19:14. O u tra hipótese, de que Jesus e seus disdpulos celebraram a Páscoa n a terça-feira à noite, três dias antes d a cru­ cificação, presum e que Jesus seguiu a p rá tic a d a com u­ nidade de Q um ran a este respeito; m as as narrativas que temos acerca de Jesus n ão expressam nenhum a conexão ín tim a dele com os essênios, e o costum e deles em relação aos sacrifícios no Tem plo perm anece um tanto obscuro. O Mannal o f Dliclpline n ão contém nenhum a referência ao Tem plo ou a sacrifício, exceto em expressões figuradas; cf. M . Burrows, The D ead Sea Scrolls (New Yor: Viking, 1955), p. 237 e s.

de fazer antecipadamente tenha sido pre­ servado na narrativa que veio às suas mãos. Todavia, o meu aposento pode ser normalmente entendido como “o aposen­ to que reservei” . Mobilado (“posto”) e pronto significa­ ria apenas que havia tapetes e almofa­ das, talvez uma mesa baixa, e que não estava sendo ocupado com outro objeti­ vo. Por costume religioso, cabia aos mo­ radores de Jerusalém demonstrar hospi­ talidade aos peregrinos que vinham às festas. Isso era verdade particularmente em relação à refeição pascal, que preci­ sava ser comida na própria cidade ou dentro de uma distância prescrita, muito limitada. O quarto ou cômodo propriamente dito é descrito como um cenáculo, isto é, uma sala no andar de cima, e grande, o que era necessário para o grupo que aU ia comer. Tem sido sugerido que esta era a casa de amigos de Jesus (o que é bem provável), e alguns estudiosos têm iden­ tificado esta casa como lar dos pais de João Marcos (o que é puramente espe­ culativo). 5. A Refeição Pascal (14:17-21) 1) A Profecia Acerca da Traição (14:17-21) 17 Ao a n o itecer, ch egou e le co m o s doze. 18 E , quando e sta v a m reclin ad os à m e sa e co m ia m , d isse J esu s: E m verd ad e vos digo que um de v ó s que com igo co m e, h á de trair-m e. 19 Ao que e le s co m eça ra m a entristecer-se e a perguntar-lhe um após o u ­ tro: P orven tu ra sou eu? 20 R espondeu-lhes: É um dos doze, que m e te com igo a máU> no prato. 21 P o is o F ilh o do hom em v a i, con for­ m e e stá escrito a seu resp eito ; m a s a l d a ­ quele por quem o F ilho do h om em é traído! bom seria para e ss e h om em se n ão houvera nascid o.

Ao anoitecer significa depois do pôrdo-sol, e assim, de acordo com a conta­ gem de tempo judaica, agora era 15 de Nisã. A refeição pascal incluía o cordeiro (assado), vinho, pão ázimo (ou asmo), ervas amargas e um molho especial, em que o pão (talvez com ervas) era molha­ 461


do. Essa refeição era normalmente uma ocasião festiva, mas sagrada, com mo­ mentos especiais, em que se bendizia a Deus por ter redimido o povo do Egito; e esperava-se que o cabeça da casa fi­ zesse uma recapitulação da história da nação, durante esse repasto sagrado. Nem a cláusula é um dos doze, nem a que mete comigo a mão no prato iden­ tificaria Judas. Todos eles molhavam o seu bocado de pão no prato comum. Da pergunta dos discípulos e da resposta de Jesus no versículo 20, é perfeitamente claro que Marcos não considera que Je­ sus identificou o traidor para os outros. Compare Lucas 22:23. Mateus 26:25 (a não ser que, como sugere A. H. McNeile, as palavras foram cochichadas), em certo sentido, é um contraste, como João 13:27 seria, se o autor não tivesse declarado expressamente que os outros discípulos não entenderam a alusão. O fato é que os discípulos pareciam estar todos tão atô­ nitos, devido à acusação feita por Jesus, de uma traição iminente, que cada um pensava apenas em se safar de qualquer suspeita. A pergunta Porventura sou eu? mais literalmente é: “Não sou eu, sou?” A res­ posta de Jesus acentua o horror que es­ tariam sentindo com o fato de que um dos associados na comunhão daquela mesa, naquela santa refeição, ia ser cul­ pado de traição. Quanto a o Filho do homem, cf. o comentário sobre 2:10 e 8:31. Vai, ou “vai pelo seu caminho” , descreve, na ex­ pressão de Taylor, “um ato voluntário de ir para casa” . Na providência de Deus para o seu povo, como as (não-especificadas) Escrituras indicam, a mprte de Jesus inevitavelmente aconteceria. Mas isto não quer dizer que ele nâo escolheu voluntariamente seguir o caminho que Deus pretendia para ele. E, da mesma forma, não temos a coragem de chegar à conclusão de que o traidor não tem ne­ nhuma responsabilidade por seu ato. O que aconteceu através de e a Judas, não foi algum destino irresistível e sem retor­ 462

no. Ai não é uma maldição; é, mais aproximadamente, um grito de dor e compaixão. Como era profunda a sua tragédia! Bom seria... se não houvera nascido! A expressão conforme está escrito a seu respeito não é muito inteligível, a não ser que reconheçamos, como Marcos ha­ via afirmado anteriormente (8:31; 9:31; 10:33), que Jesus havia estado a ensinar isto, e havia ligado o seu papel de Filho do homem com o Servo Sofredor de Deus. 2) O Pão e o Cálice (14:22-25) Z2 Enquanto c o m ia m , J esu s tom ou páo, e, abençoando-o, o partiu e deu-lho, dizendo: T om ai; isto é o m eu corpo. 23 E , tom ando um c á lic e , rendeu g ra ça s e deu-lho; e todos beberam d ele. 24 E d isse-lh es: Isto é o m eu san gu e, o san gu e do p acto, que por m u itos é derram ado. 25 E m v erd ad e vo s digo que não beberel m a is do fruto d a vid eira a té aquele dia e m que o b eb er, novo, no reino de D eu s.

Os outros relatos da instituição da Ceia do Senhor são encontrados em M a­ teus 26:26-29, que se baseia em Marcos, I Coríntios 11:23-25, que é muito seme­ lhante e Lucas 22:15-19, que o escritor aparentemente derivou de outra tradi­ ção, pois não segue a ordem de Marcos. (O texto em Lucas é incerto, mas a nossa versão é, provavelmente, correta em se­ guir o texto mais curto, que omite o V. 20.) A ordem de Lucas (primeiro o vinho, depois o pão) foi seguida pelo menos em parte das igrejas primitivas, como o confirma o Didachê, do segundo século (9:1-4). Não podemos ter certeza de qual é a ordem original. Durante uma refeição pascal, na verdade, quatro cá­ lices eram tomados. ^ A narrativa de Marcos é bem clara­ mente palestina, segundo a sua origem (Taylor), e razoavelmente breve. Contém poucas palavras interpretativas, menos 50 J. Jeremias, Ibid., p. 85 e s., registra cuidadosam ente as etapas da Ceia. Se o cálice foi tom ado depois de ser comido o pão, foi o "cálice de bênção” , ou, com menos probabilidade, o cálice do hallel ou “ louvor” .


do que o relato de Paulo, embora o apóstolo tivesse escrito pelo menos uma década anteriormente. Expressões como “que é partido por vós” são freqüente­ mente consideradas como sendo explica­ ção posterior para as igrejas. A inclusão que Lucas e Paulo fazem, de um man­ damento para repetir-se a observân­ cia, é provavelmente também interpreta­ tiva, mas Cranfield acha que Marcos pode ter omitido a expressão porque achava que seria óbvio pensar-se nela. E, quando estavam reclinados à mesa e comiam, isto é, durante o curso prin­ cipal da refeição. Isto ocorreu depois da recordação da redenção anterior, opera­ da por Deus para Israel. Quer a refei­ ção fosse a Páscoa, quer não, precisamos interpretá-la assim aqui, pois Marcos o faz. O cordeiro estava sendo servido du­ rante esse período, e o seu sacrifício devia estar na mente de todos os presentes. O pão devia ser ázimo, ou asmo, provi­ denciado para a refeição (embora a pala­ vra usada para pão nem sempre tenha essa acepção). A bênção deve ter sido semelhante à que é ainda usada no ju ­ daísmo: “Bendito és tu, ó Senhor nosso Deus, rei do mundo, que fizeste a terra produzir pão.” Mas Jesus talvez tenha modificado a bênção para esta ocasião especial, e depois partiu o pão, e deu-lho aos discípulos. Veja o comentário sobre a multiplicação dos pães (6:41). Isto é o meu corpo, explicou Jesus. Isto tem laivos da linguagem dos sacrifícios. Porções da maior parte das ofertas pres­ critas no Velho Testamento eram comi­ das pelos adoradores. Não obstante, ne­ nhuma dessas ofertas era considerada como sendo transformada em uma subs­ tância diferente, quando sacrificada, nem as palavras aqui mencionadas de­ vem ser interpretadas desta forma. Mof­ fatt estava certo em parafrasear: “To­ mem isto; significa o meu corpo.” Jesus está dizendo que aqueles que participas­ sem dos pedaços partidos de pão também deviam participar do poder e do signifi­ cado do seu sacrifício voluntário. Eles

viveriam da forma como ele lhes ensi­ nara, levariam as suas próprias cruzes. Visto que, de acordo com Marcos, Jesus é o único Filho de Deus, que anun­ cia a vitória divina e chama homens re­ dimidos para o reino (1:11,15) e visto que ele também é o Filho do homem que deve, de acordo com o propósito divino, sofrer e ser morto, em seu conflito com o espírito mau, caracterizado pela dureza de coração (8:31 e ss.; 3:5 e s.), precisa­ mos entender o pão (e o cálice, que signi­ fica o sangue da aliança) em termos de participação no reino de Deus. Esta par­ ticipação não pode significar simples­ mente ser salvo em alguma época futura; inclui o reinado de Deus em lugares onde quer que algum tirano ou poder controle a vida humana. E a ênfase singular mais obviamente apresentada, nesta passagém, é a mutuaUdade de sua participa­ ção! eles comeram de um único pão, e todos beberam de um só cálice. Os dis­ cípulos não são meramente homens do reino. São uma comunidade, participan­ tes, em conjunto, do caminho de Cristo. E é a vida de Cristo que eles comparti­ lham e que faz disso uma realidade. O pacto de Israel não era um concerto comum, entre partes iguais. Era uma aliança feita por Deus, e nos termos dele. Ele seria o Deus deles, e eles seriam o seu povo — voluntariamente obedientes aos seus mandamentos. A hnguagem escolhi­ da é muito próxima da de Exodo 24:6-8; cf. também Zacarias 9:11, onde “ sangue do teu pacto” algumas vezes fora identi­ ficado na interpretação judaica com o sangue da circuncisão, e algumas vezes com o do cordeiro pascal. O pacto de que Jesus fala deve ser ra­ tificado ou estabelecido pelo sangue de Jesus, isto é, pela sua morte. Beber do cálice (análogo a ser aspergido com san­ gue em Êx. 24:8) significa participar das obrigações e benefícios do pacto de Jesus. O cálice e o pacto são por muitos; como em 10:45, muitos nâo significa alguns, mas também não todos; significa os que estão presentes, e igualmente muitos ou­ 463


tros. O termo propriamente dito é su­ ficientemente amplo para incluir todos. O versículo 25 é expresso na forma de um voto Nazireu, e com ele Jesus se consagra abertamente à oferta da sua própria vida (Cranfield, K. Barth; cf. João 17:19). O fruto da videira é vinho, como o que eles compartilharam, beben­ do do mesmo copo. O dia mencionado pode ser o período das aparições pósressurreição, ou pode referir-se à festa messiânica (veja, acima, 9:1). Completa­ da a sua obra, eles podem ficar esperan­ do o dia de comunhão e alegria mais pro­ fundas, no reino de Deus. 6. A Profecia Acerca da Negação (14:26-31) 20 E , tendo cantado um hino, sa íra m p ara o M onte das O liveiras. 2^ D isse-lh es então Jesus: Todos v ó s vos esca n d a liza reis; p or­ que escrito e stá : F erirei o p astor, e a s oveUias se dispersarão. 2S T odavia, depois que eu ressu rgir, irei ad ian te de vós p ara a Gallléia. 29 Ao que P edro lh e d isse: Ainda que todos se escan d alizem , nunca, porém , eu . 30 R eplicou-ihe J esu s: E m v erd ad e te digo que hoje, n esta noite, a n tes que o galo cante duas v e zes, três v e zes tu m e n eg a rá s. 31 M as ele rep etia com v e e m ên cia : Ainda que m e seja n ecessá rio m orrer contigo, de m odo algu m te n egarei. A ssim ta m b ém d i­ ziam todos.

Por ocasião do término da Ceia, Jesus e o grupo de discípulos dirigiram-se para o portão da cidade, desceram a ravina do Cedrom, e começaram a subir o Monte das Oliveiras. O hino cantado no fim da refeição pascal era a segunda parte do Hallel, de Salmos 115-18. Jesus estava pensando — nâo poderia ser de outra forma — na sua- morte iminente; na traição de Judas; na in­ suficiência dos seus discípulos, quanto à sua dedicação. Podemos supor que o relato de Marcos, aqui; derivou-se de Pedro. Certamente é inseguro pensar que este parágrafo ou o seguinte, em que os discípulos fracassam ao vigiar com Jesus, teriam sido inventados por uma igreja di­ rigida pelos apóstolos. 464

Os pensamentos de Jesus, outra vez, encontraram expressão em termos de expectativas proféticas do Velho Testa­ mento, especificamente de Zacarias. Nâo tem cabimento admitir-se, como alguns o fazem, que a conexão entre os eventos e as passagens das Escrituras foi aqui um descobrimento posterior dos discípulos, a nâo ser que neguemos que Jesus se consi­ derava como o Filho do homem sofre­ dor, que estava cumprindo os propósitos eternos de Deus. Se ele deliberadamente interpretou-se cumprindo Zacarias 9:9 (cf. Mar. 11:1-11), é natural concluir-se que: (1) ele previra que os discípulos iriam se espalhar, nos termos expressos por Zacarias 13:7 (a citação é algo livre); (2) ele podia também estar pensando nas palavras de Zacarias 13:6, embora com novo significado, dadas as circunstâncias (“as feridas com que fui ferido em casa dos meus amigos”); e (3) ele reconheceu, com Zacarias 13:9, que os discípulos precisavam passar por provas e dificul­ dades antes que a sua dedicação se tor­ nasse adequada. Vós vos escandalizareis é o mesmo verbo que ocorre em 4:17, 6:3 e 9:42,45, 47: todos vão “tropeçar na armadilha” do medo e do desespero. Não obstante, depois que eu ressurgir (cf. 8:31; 9:31; 10:34), irei adiante de vós para a Ga­ liléia. Ir adiante pode significar guiar, andar adiante deles (assim J. Weiss pen­ sa neste contexto, concluindo que esta palavra nâo se cumpriu); ou pode sim­ plesmente significar “precedê-los” , como em 6:45 (veja 16:7). A reação de Pedro foi muito insistente. Estava certo de que Jesus podia contar com ele. Ele não iria se escandalizar (a mesma palavra do v. 27), não impor­ tava o que os outros fizessem; ele mor­ reria com Jesus, até, ele repetia com veemência, em vez de negá-lo (recusar-se a reconhecê-lo). (Pedro não é identifica­ do em 14:47 como o discípulo que co­ meçou a lutar com os oficiais que vieram prender Jesus.) Mas Jesus advertiu-o enfatica e precisamente, que naquele dia


(assim diz uma tradução antiga, com muita base), nesta noite, antes que o galo cante duas vezes, Pedro iria negar que o conhecia. Talvez o canto do galo queira referir-se ao toque da trompa no começo da quarta vigília; mas a explicação mais provável é a corriqueira. O relato de Marcos (que Mateus segue bem de perto, aqui) enfatiza não apenas a defecção de Pedro, mas a fraqueza de todos os discípulos. Não estavam eles ainda afetados por alguma dureza de coração (8:14-21), alguma ambição egoística (10:35-45), algum medo do que as autoridades podiam fazer com eles? É muito mais simples afirmar lealdade e fé do que mantê-las em face das terrí­ veis adversidades. 7. A Agonia e Oração no Getsêmane (14:32-42) 32 EntãLo ch eg a ra m a um lu gar cham ado G etsêm ane, e d isse J esu s a seu s discípulos: Sentai-vos aqui, enquanto eu oro. 33 E levou consigo a P edro, a T iago e a João, e c o m e ­ çou a ter pavor e a a n g u stia r -se; 34 e disselhes : A m inha a lm a e stá triste a té a m o r te ; ficai aqui e v ig ia i. 35 E , adiantando-se um pouco, prostrou-se em terra ; e orava para que, se fo sse p ossível, p a ssa sse d ele aq u ela hora. 36 E d iz ia : Abba, P a i, tudo te é p o ssí­ vel; a fa sta de m im e ste cá lice ; tod avia, não seja o que eu quero, m a s o que tu queres. 37 Voltando, achou-os dorm indo; e d isse a Pedro: Sim ão, dorm es? não p udeste v igiar um a hora? 38 V igiai e orai, p ara que não entreis em ten tação; o esp írito , n a verdade, está pronto, m a s a carn e é fra ca . 39 R etlrou-se de novo e orou, dizendo a s m e sm a s p alavras. 40 E , voltando outra v e z , achou-os dorm indo, porque os se u s olhos e sta v a m ca rreg a d o s; e não sa b iam o que lh e resp on ­ der. 41 Ao voltar p ela terceira v ez, disselhes: D orm i a gora e d esca n sa i. — B a sta ; é chegada a hora. E is que o F ilho do h om em está sendo entregue n a s m ãos dos p eca d o ­ res. i 2 L evan tai-vos, vam o-n os; e is que é chegado aquele que m e trai.

Um dos locais tradicionalmente indi­ cados como o antigo Getsêmane é um pequeno bosque de antigas oliveiras, num declive próximo à ravina do Ce­ drom. Getsêmane provavelmente signifi­ ca “prensa de óleo” . A palavra lugar

significa simplesmente “pedaço de terra” ou campo; é chamado de jardim em João 18:1. A maior parte dos discípulos rece­ beu instrução de ficar em certo ponto (perto da entrada, para impedir ou avisar qualquer interrupção?), enquanto ele orava. Pedro, Tiago e João foram os três dis­ cípulos que pareciam ser os mais íntimos de Jesus, e que participaram, diferente­ mente do grupo maior, de algumas das experiências mais íntimas do seu Senhor (cf. 5:37-43; 9:2-8). Uma vez André esta­ va com eles (cf. 13:3). A experiência no Getsêmane foi inco­ mum. Em nenhum Outro lugar Jesus disse ter passado por tensão emocional como a que experimentou ali. Os infini­ tivos ter pavor e angustiar-se são muito difíceis de traduzir. O primeiro verbo ocorre na literatura da igreja primitiva apenas em Marcos (também em 9:15 e 16:5); dá a entender admiração e cho­ que. O segundo (em outras partes do NT, apenas em Mateus 26:37 e Filipenses 2:26) significa estar com ansiedade, in­ certo quanto ao caminho a seguir. São difíceis as tentativas de traduzir estes sentimentos de Jesus em linguagem atu­ al. Moffatt interpreta “sentir-se aterrado e agitado” ; a TEV inglesa traduz: “Tris­ teza e angústia lhe sobrevieram.” A ver­ são Trinitariana assim: “Espantar-se e angustiar-se.” O fato de que Jesus começou a ficar assim perturbado pode significar que aqui, com apenas três dos seus discípu­ los mais íntimos, ele deu lugar à tensão que fervia dentro dele, prestes a estourar. A minha alma està triste até a morte eram palavras que, esperava-se, expres­ sassem aos seus amigos a profundidade dos seus sentimentos. A minha alma aqui significa o meu próprio ser, toda a minha personalidade. A sua ansiosa tristeza pa­ recia tão terrível que ameaçava destruílo. Se pensamos em Jesus como um ho­ mem forte e sereno durante o seu jul­ gamento e até a sua crucificação, aqui no Getsêmane a cortina da sua própria per­ 465


sonalidade humana foi afastada diante dos seus três discípulos. Marcos (citando Pedro?) não nos per­ mite admitir que os três compreenderam a tristeza dele ou entraram na experiên­ cia de qualquer forma plena. O preço da completa obediência ao seu Pai estava vivido diante de Jesus, o Mestre, e ele precisava pagá-lo até o fim. Deve ter sido mais fácil para Jesus considerar a sua morte à distância, quando, em vezes anteriores (8:31, et al.), ele havia falado do seu sofrimento vindouro. Agora, a terrível prova final lhe sobreviera. Mas os discípulos não poderiam ter dormido, se tivessem sido capazes de se identificar com ele na sua tristeza. Ele ansiou pela presença deles, e pelo conforto que eles podiam lhe propiciar, mas o entendimen­ to deles estava distante demais do dele, para permitir-lhes suprir a necessidade dele. Ficai aqui e vigiai. Com este pedido Jesus estava, provavelmente, procurando alguma medida de companheirismo hu­ mano em sua angústia. Ele avançou ape­ nas uma pequena distância, e depois prostrou-se em terra. Esta era a posição física extrema, em oração. O fato de prostrar-se mostrou, de maneira física, a intensidade com que Jesus buscou as. forças divinas. Aquela hora é um a expressão muito mais comum em João (cf. 2:4; 7:30; 12:23,27; 17:1). Era uma expressão esca­ tológica (Dan. 8:17,19; 11:40, 45, LXX), e neste contexto do Novo Testamento marcou o tempo apropriado para o cum­ primento do destino do Filho do homem. O versículo 35 simplesmente declara, de forma indireta, a oração que Jesus fez no versículo 36. Abba é a palavra aramaica que signi­ fica pai. É de se duvidar que Jesus tenha repetido esse vocativo nas duas línguas. Ê mais provável que o Abba de Jesus tenha sido conservado na memória e no uso dos cristãos primitivos, que em suas orações deviam dizer Abba juntamente 466

com a palavra que em sua própria língua significava pai (aqui, o grego pater; cf. Rom. 8:15; Gál. 4:6). Este cálice signifi­ ca o cálice do sofrimento. Veja, acima, em 10:38 e s.: dois dos três discípulos que estavam nas redondezas haviam sido de­ safiados quanto à sua capacidade de beber o cálice dele. E então Jesus, mesmo em meio à sua tortura pessoal, no Getsêmane, conti­ nuou a pensar em Deus como seu Pai. E a grandeza da sua oração está neste fato: que, apesar da sua ansiedade e do seu desejo de não passar pelos horrores que o esperavam, o seu desejo mais pro­ fundo permaneceu imutável. Sobrepon­ do-se a tudo o mais, a vontade do Pai devia ser cumprida. A obediência a Deus não foi questionada, e também a manei­ ra de Deus agir para com os homens pecadores não foi desafiada, embora essa maneira significasse que o mal na vida dos homens destruiria o Filho do ho­ mem. A resposta à oração de Jesus não veio imediatamente, e a sua oração incessante foi repetida (v. 39). Marcos não faz ne­ nhuma alusão de qualquer resposta que tenha vindo a Jesus, exceto que ele foi capaz de enfrentar com serenidade ini­ gualável os eventos que se seguiram e de suportar a maior parte deles sem a pre­ sença de um amigo humano. Embora leiamos, em outra parte, que Jesus orou durante longos períodos de tempo (Luc. 6:12; cf. Mar. 1:35; 6:46), ele estava inquieto e cheio de profunda emoção, ao orar no Getsêmane. Ele vol­ tou repetidamente aos três discípulos, mas achou-os dormindo. Aparentemen­ te, ele despertou Pedro — aqui chamado Simão, porque naquela hora ele nâo foi uma rocha (Petros) de fortaleza — e fê-lo lembrar de sua fraqueza. Não que Pedro não estivesse falando sério quando se pronunciara anteriormente (cf. 14:29, 31), mas é que ele não conhecia as suas limitações físicas e espirituais. A oração de Jesus e a sua exortação a Pedro têm paralelos íntimos com a Oração Modelo,


que anteriormente Jesus havia ensinado aos seus discípulos (cf. Mat. 6:9-13). Quando novamente Jesus voltou da oração, Simão mais uma vez se havia juntado aos outros, no sono. Eles não sabiam o que lhe responder, o que signi­ fica nâo que Jesus Uies tivesse feito algu­ ma pergunta, mas apenas que eles foram incapazes de corresponder apropriada­ mente à necessidade de Jesus naquela situação. Os tradutores da edição da IBB e de outras Bíblias consideram a primeira parte do versículo 41 como interrogação. Se isso é correto, a pergunta é retórica, ou significa: “Vocês vão dormir para ficar à vontade?” Essas palavras também podem ser lidas como afirmação, ou co­ mo ordem (várias versões). A palavra basta é difícil de interpretar. O verbo grego aqui traduzido era a pala­ vra comumente usada em recibos, signi­ ficando “pago totalmente” . Talvez o sig­ nificado seja que o tempo para o paga­ mento completo havia chegado, pois o endurecimento dos corações, ocasionado pelo pecado, havia alcançado o seu ato final na vida de Jesus. Podemos nos descartar da sugestão de que isso se refere ao fato de ter Judas recebido o dinheiro da traição que executara! Mas ainda é bem provável que esta palavra simplesmente se refira ao fato de eles terem dormido, e os estivesse chamando para acordarem. O Filho do homem está sendo entregue nas mãos de homens que são chamados pecadores. Deve notar-se que a palavra pecadores era ordinariamente aplicada a pessoas que eram descuidadas acerca da observância da Lei (cf. 2:15,17). Moule pensa que pecadores aqui se refere (como realmente, algumas vezes) aos gentios, e fala da ironia do fato de que “aquele que está no próprio âmago da mais verda­ deira lealdade judaica é entregue a gen­ tios” ! Todavia, Marcos já tomou perfei­ tamente claro quem são os verdadeiros protagonistas do mal (cf. especialmente 7:1-23; 12:38-40): embora ele esteja se

referindo, com a palavra pecadores, aqui, a um grupo em particular, ela deve designar os principais sacerdotes e escri­ bas. Eles são gentios apenas no sentido de que nâo conhecem a Deus! 8. A Prisão de Jesus (14:43-52) 43 E logo, enquanto e le ainda fa la v a , c h e ­ gou Ju d as, um dos doze, e co m e le u m a m ultidão com esp a d a s e va ra p a u s, vinda da parte dos p rin cip ais sa cerd o tes, dos e s c r i­ bas e dos a n ciã o s. 44 Ora, o que o traía lh es havia dado um sin a l, dizen d o : A quele que eu beijar, e ss e é ; prendei-o e levai-o com s e ­ gurança. 45 E , logo que chegou, a p roxim an ­ do-se de J esu s, d isse: R abi! E o beijou. 46 Ao que e le s lh e la n ça ra m a s m ã o s, e o p renderam . 47 M as um dos que a li esta v a m , puxando da esp a d a , feriu o serv o do sum o sacerd ote e cortou-lhe u m a orelha. 48 D isselhes J e s u s : S a ístes com esp a d a s e varap au s para m e prender, com o a um saltead or? 49 Todos os d ia s e sta v a con vosco no tem p lo, a en sin ar, e n ão m e p r e n d e ste s; m a s isso é p a ta que se cu m p ram a s E scritu ra s. 50 N is ­ to, todos o d eix a ra m e fu giram . 51 Ora, segu ia-o certo jo v em , envolvido em um len çol, sobre o corpo n u ; e o a g a r ­ raram . 53 M as e le , largan d o o len ço l, fugiu despido.

Talvez alguns dos discípulos que ha­ viam sido deixados à entrada do Get­ sêmane (v. 32) tivessem dado o alarme. Em qualquer caso, o grupo de aprisionadores estava com pressa, temeroso de que aquele que procuravam escapasse. Novamente, Judas é identificado como um dos doze o que, no seu trágico caso, toma-se uma agravante de criminali­ dade. A multidão com espadas e varapaus pode ter sido constituída principalmente de soldados da polícia do Templo (como em Luc. 22:52), que estavam sujeitos aos líderes do Sinédrio (cf. 11:27). Mas havia pelo menos um servo do sumo sacerdote entre eles. A palavra traduzida como espadas pode significar “facas” , e va­ rapaus pode referir-se a qualquer quali­ dade de porrete de madeira. O termo “soldados” , usado em João 18:3 (na ver­ são da IBB, “guardas”), pode dar a entender homens da guarnição romana. 467


A descrição que Marcos faz da multidão chamado de Malco em João 18:10. O fato pode facilmente aplicar-se a qualquer de que Jesus o curou é registrado apenas bando armado reunido às pressas. As em Lucas 22:51. A narrativa de Mateus palavras de Jesus, no versículo 49, seriam (26:51-54) mostra interesse especial em mais consentâneas se o grupo de apriresponder à pergunta se Jesus poderia ter sionadores fosse composto principalmen­ pedido ajuda divina (cf. João 18:5,6). te de membros do Sinédrio e da polícia Não obstante, Marcos deixa que a cena do Templo. do Getsêmane forneça a tônica: o que Sinal significa uma senha pré-combiacontece está de acordo com a vontade nada; essa palavra grega ocorre só neste do Pai. lugar, em o Novo Testamento. O beijo Jesus protestou em termos apropriados era uma forma costumeira de saudação, (e dignos) acerca da forma como foi particularmente de um rabi. (Os cristãos preso. Não estivera se escondendo, mas primitivos eram encorajados a reafirmar todos os dias (a frase dá a entender que a sua comunhão, saudando-se uns aos Jesus estivera em Jerusalém ou perto da outros com um “ósculo santo” ; Rom. cidade mais tempo do que o curto perío­ 16:16; I Cor. 16:20; etc.). Prender é um do que Marcos registra) estivera no tem­ verbo freqüentemente usado para desig­ plo, a ensinar. nar prisão ou detenção. A precaução As escrituras que se cumprem não são expressa na ordem (v. 44) Prendei-o e mencionadas, embora a igreja primitiva, levai-o com segurança foi, aparentemen­ como o sabemos, teria pensado em Isaías te dada com medo de que Jesus pudesse 53 e outras passagens comumente usadas tentar escapar. Desta vez não haveria em conexão com a morte de Jesus. As questionamentos nem discussão (cf. 11: sugestões mais pertinentes são Salmos 27-12:27; João 7:25-31). 41:9 e Zacarias 13:7 (cf. Mar. 14:27). Judas dirigiu-se a Jesus como Rabi, Depois que Jesus foi levado, os discí­ istoé, “Mestre” , e identificou-o, beijanpulos fugiram, deixando-o nas mãos dos do-o. O. verbo beüou, no versículo 45, seus inimigos. A palavra todos é enfática. é composto da palavra do versículo O que lhes teria acontecido, se eles se 44, e algumas vezes tem sido interpreta­ demorassem, é indicado pela tentativa de do como “beijar repetidamente” ou “bei­ prisão do jovem mencionado nos versí­ jar com muita afeição” . Contudo, o pro­ culos 51 e s. Eles não conseguiram apavável significado é que Judas prolongou nhá-lo, mas ele foi capaz de livrar-se do um pouco o ato de beijar, para que o . lençol de linho, pelo qual o estavam sinal pudesse ser percebido por todos, e segurando, e escapar eficazmente. A pa­ eles pudessem estar certos de prender a lavra traduzida como nu provavelmente pessoa certa. Veja II Samuel 20:9 e s. deve ser entendida literalmente, embora para uma saudação hipócrita semelhan­ algumas vezes ela fosse usada ao referirte, de Joabe e Amasa. se a pessoas vestindo apenas roupa de Um dos que ali estavam teria lutado baixo, e por isso não estando decente­ para ajudar Jesus a fugir ou pelo menos a mente vestidas. vingar a indignidade que lhe fora feita. O lençol deixado para trás era de João 18:10 identifica esse homem como linho, mais caro do que a costumeira Pedro, porém Marcos não faz nenhuma coberta de lã. Abandonar uma peça as­ alusão a esse respeito. As palavras dele sim fina, para a maioria das pessoas, era nos permitem pensar que pode ter havido perda não pequena. Era ele membro de alguém que não era discípulo, talvez al­ uma família abastada? Havia ele ouvido guém que tivesse ouvido o que aquela falar da traição, e correra embrulhado turba estava para fazer e procurara im­ apenas nesse lençol, num vão esforço pedi-lo. O servo do sumo sacerdote é para advertir Jesus? Era ele membro do 468


Sinédrio? Ou, como tem sido sugerido freqüentemente, esta é a assinatura ocul­ ta de João Marcos, o autor? (Veja a In­ trodução. Marcos era, provavelmente, menino pequeno nessa época.) Não po­ demos fazer nada mais do que especular. 9. A Audiência Diante do Sumo Sacer­ dote (14:53-65) 33 L evaram J esu s ao sum o sa cerd o te, e ajiuitaram -se todos o s principais sa cerd o ­ tes, os an ciãos e os escrib a s. 54 E Pedro o seguiu de longe até dentro do p átio do sum o sacerdote, e esta v a sentad o com os guardas, aquentando-se ao fogo. 55 Os principais s a ­ cerdotes e todo o sinédrio b u sca v a m te s te ­ munho contra J esu s, p ara o m a ta r, e não o ach avam . 56 P orque contra e le m uitos depunham fa lsa m en te, m a s os testem u n h os não con cordavam . 57 L evan taram -se por fim alguns que depunham fa lsa m en te co n ­ tra e le , dizendo: 58 N ós o ouvim os dizer: E u d estru irei e ste santuário, construído por m ãos d e h om ens, e em três d ia s ed ifica rei outro, não feito por m ã o s de h om en s. 59 E nem a ssim concordava o seu testem unho. 60 L evantou-se então o sum o sacerd ote no m eio e perguntou a J esu s; N ão respondes coisa algu m a? Que é que e ste s depõem co n ­ tra ti? 61 E le , porém , perm an eceu calado, e nada respondeu. T om ou o sum o sacerd ote a interrogá-lo, perguntando-lhe: É s tu o Cristo, o F ilh o do D eus bendito? 6Z R esp on ­ deu J esu s: E u o sou; e v er e is o F ilh o do hom em a ssen tad o à d ireita do P oder e vindo com a s nuvens do céu . 63 E ntão o sum o sacerd ote, rasgando a s su a s v e ste s, d isse: P ara que p recisa m o s ainda d e te ste m u ­ nhas? 64 A cab ais de ouvir a b la sfê m ia ; que vos p arece? E todos o con d en aram com o réu de m orte. 65 E algim s com eça ra m a cuspir nele, e a cobrir-lhe o rosto, e a dar-lhe so co s, e a d izer-lh e: P rofetiza. E os gu ard as r e c e ­ beram -no a b ofetad as.

O sumo sacerdote, nessa época (18-35 d.C.), era Caifás, embora Marcos não mencione o seu nome, e embora o seu sogro, cujo nome era Anás, pareça ter sido considerado semelhantemente como sumo sacerdote, a despeito da sua remo­ ção daquele cargo alguns anos antes (cf. Luc. 3:2; João 18:13,24). O sumo sacer­ dote e setenta e um dos principais sacer­ dotes, os anciãos e os escribas formavam o Sinédrio (cf. com 11:27). As palavras todos, no versículo 53, e todo, no versí­

culo 55, não estão em posição enfática (como “ todos” está no versículo 50), e não precisamos admitir que todos os membros estavam presentes (cf. Luc. 23: 50 e s., embora não seja claramente de­ clarado se José estava presente). Os versículos 53 e 54 são realmente introdução das duas seções restantes des­ te capítulo, respectivamente. Pedro havia fugido com os outros discípulos, mas depois seguira a turba discretamente, para ver o que aconteceria a Jesus. O pa­ lácio do sumo sacerdote havia sido cons­ truído ao redor de um pátio, e Pedro e pelo menos mais um outro discípulo con­ seguiram introduzir-se (cf. João 18:15 e , s.). Ainda era noite, e parecia improvável que ele fosse reconhecido. Aparentemen­ te, ele sentou-se perto demais do fogo! A palavra traduzida como fogo, no ver­ sículo 54, significa “luz” , mas pode sig­ nificar algo como “ao reflexo do fogo” . Só Pedro podia ter contado a história de 66-72. A narrativa do julgamento pro­ priamente dito não é tão vívida nem marcada por minúcias. O Sinédrio significa a corte, o concí­ lio. O procedimento descrito por Marcos tem sido veementemente questionado, porque violava as regras conhecidas, exa­ radas na Mislmah (Sanhedrim, 4-7). En­ tre outras coisas, um julgamento preci­ sava ser processado durante o dia; a sen­ tença só podia ser dada com uma maioria de dois ou mais votos, e não antes do dia seguinte; um julgamento não podia ser realizado em dia de festa ou no dia anterior ao sábado, provisões estas que foram, de acordo com Marcos, ignora­ das. Jesus foi acusado de blasfêmia (v. 64), pelo sumo sacerdote, mas a pena de apedrejamento não podia ser executa­ da, a não ser que o culpado tivesse pro­ nunciado o Nome propriamente dito. Contudo, precisa ser lembrado que as regras da Mishnali foram codificadas no segundo século, e pode ser que nem todas elas estivessem em vigor. Sobretudo, os eruditos rabínicos H. Danby e (em menor proporção) I. Abrahams consideravam 469


que as regras eram “ideais” ou “teóri­ cas” , e não executadas estritamente. O que é descrito em 14:55-64 pode ter sido uma espécie de inquérito judicial, algo similar a uma investigação do grande júri, em vez de julgamento propriamente dito. De qualquer forma, o sinédrio se reuniu de novo após o raiar do dia (15:1). C.G. Montefiore nos faz recordar que sempre temos exemplos de julgamentos ilegais, e que qualquer insignificante e inconsistente forma legal tem sido ade­ quada para os governantes se livrarem de um inimigo temido ou odiado. Finalmen­ te, seja com o que for que o Sinédrio te­ nha concordado, e embora eles tivessem sido descuidados com as suas próprias re­ gras, deram um jeito para que a sentença final fosse pronunciada por Pilatos, e a crucificação foi executada por soldados romanos. O Sinédrio não teve sucesso em conse­ guir evidências satisfatórias para apoiar o seu propósito de destruir a Jesus. O fato de que muitos depunliam falsamente contra Jesus não é de se admirar; as testemunhas sabiam que aqueles homens poderosos queriam livrar-se de Jesus. To­ davia, aparentemente, no decorrer do julgamento, os seus testemunhos se de­ monstraram falhos e não bem ensaiados, e não conseguiram concordar (literal­ mente, “não eram iguais”). Uma acusação que os governantes es­ peravam tornar válida contra Jesus era que ele dissera que podia destruir o velho santuário e substituí-lo por outro, não feito por mãos de homens. A questão aqui é se Jesus havia reivindicado as prerrogativas e o poder do próprio Deus, e, se assim era, havia blasfemado. Algu­ ma literatura contemporânea previa que Deus em pessoa, naquele novo dia que havia de vir, providenciaria um templo glorioso no lugar daquele em que eles 51 Acerca do julgam ento de Jesus, cf. J. Blinzler, The Trial of Jesus (W estm inster, M d.: Newman Press, 1959): P- W inter, O n The T rial of Jesus (Berlin: De G ruyter, 1961). P ara declarações sum árias, cf. S. John­ son, p. 240-44; V. Taylor, p. 644-46.

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adoravam (Jubileus 1:17,27 e s.; Enoque 90:28 e s.). De acordo com Marcos 13, Jesus de fato havia previsto a destruição do Templo, e, embora pudesse ter com­ partilhado de muita tristeza com outros hebreus, por causa das suas ruínas, ele certamente enxergou além daquela tra­ gédia, para a vitória divina e contínua adoração a Deus. Os cristãos para quem Marcos estava escrevendo devem ter-se regozijado com as verdades ocultas nes­ tas acusações (veja João 2:19-22, At. 7:48 e Heb. 9 e 10). O sumo sacerdote foi incapaz de fazer com que Jesus testificasse contra si mes­ mo em relação ao Templo. Em conexão com o silêncio de Jesus, note Isaías 53:7. É claro que Marcos previu que os seus leitores estariam sabendo de muitos as­ suntos (por tradição,como com respeito ao Templo, ou pela Escritura) , nos quais ele não se aprofunda. O bendito era o próprio Deus; esta era uma das formas pelas quais os he­ breus falavam de Deus sem usar o Nome divino. (Cf. as palavras do escriba em 12:32 e s.; em o Novo Testamento a palavra aqui traduzida como “bendito” sempre é usada em relação a Deus.) O Cristo de Davi não era considerado di­ vindade, e dizer-se ser o Cristo não era por si mesmo uma blasfêmia. E também as palavras Filho do Deus bendito não teriam significado, para os principais sacerdotes, um a declaração característi­ ca de divindade, mas apenas que a pes­ soa que dizia isso teria dito ser, de forma notável e escolhida, um servo de Deus. Contudo, para Marcos e seus leitores, essas palavras não teriam sido tão limi­ tadas. Para eles, Jesus era realmente o Cristo, o único e amado Filho de Deus. Ele também era o divino Filho do ho­ mem, que estava assentado á direita do Poder (isto é, Deus, cujo poder é exer­ citado através do Cristo), e que havia de vir com as nuvens do céu (cf. 13:26; 8:38-9:1) Acerca de Filho do homem, veja, acima, também em 2:10 e 8:31;


acerca de Cristo, 8:29; e acerca de Filho de Deus, 1:1,11; 3:11; 9:7; 15:39). Marcos está provavelmente seguindo a tradição da forma como a recebera, e algumas pessoas têm perguntado se o sumo sacerdote teria ligado o Filho do Deus bendito com o Cristo. É difícil estar certo das palavras exatas usadas naquela audiência; provavelmente os discípulos receberam essas informações de um dos servos do sumo sacerdote, ou talvez de algum membro do Sinédrio que se tornou discípulo. Mas não existe dúvida de que, para Marcos, Jesus foi condenado por dizer ser o Cristo e o divino Filho do homem. Quanto às palavras Eu o sou, e a possibilidade de que elas sugerissem, para a comunidade cristã, mais do que uma simples afirmação, veja, acima, 6:50. O sumo sacerdote, rasgando as suas vestes — sinal de tristeza (ele devia estar alegre!) porque ouvira uma blasfêmia. No que concernia a ele, algo irrevogável e terrível havia acontecido, pois Jesus ha­ via ousado dizer mais do que qualquer homem ousava ser e fazer. O Sinédrio concordou imediatamente que ele mere­ cia morrer. Nada se diz de qualquer sentença formal. As horríveis indignidades agora se acumularam sobre Jesus, e foram levadas a efeito, provavelmente, pelos servos e pelos guardas. Todo impulso sádico foi liberado, e Jesus foi cuspido, zombado e esbofeteado. Profetiza, neste contexto, significa: use o seu conhecimento divino para revelar quem o atingiu. 10. Pedro Nega Jesus (14:66-72) 66 Ora, estando P edro em b aixo, no átrio, chegou um a das criad as do sum o sacerd ote 67 e, vendo a P ed ro, que se e sta v a aquentan­ do, encarou-o e d isse: Tu ta m b ém e sta v a s com o nazareno, e s s e J esu s. 68 M as e le o n e ­ gou, dizendo; N ào se i n em com preendo o que d izes. E saiu p ara o alp en d re. 69 E a criada, vendo-o, com eçou de novo a dizer aos que ali esta v a m : E s s e é u m d ele s. 70 M as ele o negou outra v ez. E pouco depois os que ali esta v a m d issera m n ovam en te a P e ­

dro: C ertam ente tu é s um d eles; p ois é s tam bém galileu . 71 E le, p orém , com eçou a praguejar e a ju rar: N ão conheço e s s e h o ­ m em de quem fa la is. 72 N e sse in stan te o g a ­ lo cantou p ela segu n d a v ez. E P edro lem brou-se da p a la v ra que lh e d isse r a J esu s: Antes que o galo can te duas v e z e s, três vezes m e n eg a rá s. E caindo e m si, com eçou a chorar.

De todas as histórias do Evangelho, esta é a que mais evidências tem de ser uma reminiscência de Pedro. Embaixo, no átrio (aparentemente o Sinédrio esta­ va reunido no andar de cima), ele estava esperando, para saber o que iria aconte­ cer a Jesus. A criada (a palavra é apli­ cável tanto a uma escrava quanto a uma criada paga) é identificada em João 18:17 como a que cuidava da porta. Ela era curiosa, e talvez suspeitasse do estranho, e por isso chegou e encarou-o cuidadosa­ mente, à luz da lua e do fogo. Em se­ guida, fez a sua acusação diretamente a Pedro, provavelmente de maneira sufi­ cientemente alta para os que estavam ao seu redor poderem ouvir. O tu é enfá­ tico, e a posição do termo o nazareno toma provável o fato de ela ter pronun­ ciado essas palavras em tom de desprezo (cf. João 1:46; mas cf. também Marcos 16:6). A posição de Pedro era precária. Se ele era realmente a pessoa que no jardim sacara da espada, tinha ainda mais razão para temer por sua segurança. Ele pode ter raciocinado: Em que posso ajudar a Jesus, se eu também for preso? Mas ele provavelmente deixou escapar sem pen­ sar as suas palavras de negação. As suas palavras podem ser traduzidas da forma como estão em nossa tradução, ou po­ dem ser parafraseadas: “Não tenho idéia do que você está falando. O que você quer dizer?” Sei e compreendo provavel­ mente não deveriam ser diferentes aqui, pois a segunda palavra apenas acentua a primeira. Ele se afastou do calor e da luz do fogo, de volta ao alpendre, ou ves­ tíbulo, que dava para o portão. Alguns de nossos manuscritos inserem aqui a nota de que o galo cantou (cf. 14:30,72). 471


A mesma moça veio de novo (Mat. 26:71 pensa em uma empregada diferen­ te; o ponto não é importante, mas a versão de Marcos é psicologicamente mais provável, especialmente se a criada era responsável por guardar a entrada), e desta vez falou aos que ali estavam, acusando Pedro de ser componente do grupo de Jesus. Outra vez ele o negou; o tempo do verbo (diferentemente do v. 68) é linear, e significa que ele continuou dizendo que não conhecia Jesus. De fato, ele falou tanto que os que ali estavam notaram o seu sotaque galileu, e con­ cluíram que a criada devia ter razão. A diferença entre a linguagem de Jerusa­ lém e a da Galiléia era provavelmente algo semelhante à diferença entre a ma­ neira de falar de um paulista e um nor­ destino. Em protesto contra a sua acusação, Pedro começou a praguejar e a jurar, numa tentativa de convencê-los de sua inocência e não-envolvimento. A palavra praguejar é corretamente interpretada pela versão da IBB, e nâo deve ser en­ tendida meramente como linguagem chula. Agora, Pedro havia negado explí­ cita e veementemente qualquer envolvi­ mento com Jesus. Nesse instante o galo cantou pela segunda vez. A evidência dos manuscritos é fortemente em favor da inclusão das palavras pela segunda vez, quer tenha sido a primeira vez no versículo 68, quer não. Havia galos em Jerusalém, e provavelmente estamos cor­ retos a entender esse canto como literal, em vez do soar de um toque militar ro­ mano (cf. 13:35; 14:30). Pedro estivera defendendo-se dos acu­ sadores exteriores, mas agora a memória da advertência de Jesus inundou a sua alma. Ele caiu em si é um esforço para traduzir um particípio cujo significado exato, neste contexto, é enganoso. Pode significar: “ele pensou acerca” (do que havia feito); ou “ele cobriu-se” (a cabeça com o seu manto); ou “ele respondeu” (à situação, isto é, chorando). Mas a maioria dos tradutores recentes, apoia­ 472

dos por referências citadas por Moulton e Milligan, concordam com a versão da IBB. A versão atualizada da SBB diz: “Desatou a chorar.” É um a história tris­ te, mas marcante. Que contraste! Jesus, embora inocen­ te, era condenado por sua própria con­ fissão. Pedro, embora culpado (não de um crime, mas daquilo que a criada afir­ mara) teve condições de permanecer livre devido à sua própria mentira (Minear). Para os cristãos perturbados e ameaça­ dos, em Roma, esta história do fracasso do estimado apóstolo deve ter servido como advertência estimulante e exorta­ ção. 11. O Julgamento Diante de PUatos (15:1-15) 1) A Pergunta do Ck>vemador (15:1-5) 1 Logo d e m anhã tiv e r a m conselho os principais sa cerd o tes c o m o s a n ciã o s, os e s ­ cribas e todo o sin éd rio; e , m aniatando a J esu s, o lev a r a m e o e n tr e ^ r a m a P ila to s. 2 P ila to s lh e perguntou: É s tu o rei dos judeus? R espondeu-lhe J e su s: É com o dix es. 3 E o s prin cip ais sa cerd o tes o a c u sa ­ va m de m u itas c o isa s. 4 T om ou P ila to s a interrogá-lo, dizendo: N ão respondes nada? , Vê quantas a c u sa ç õ e s te fa zem . 5 M as J esu s nada m a is respondeu, de m a n eira que P ila ­ tos se ad m ira v a .

Tendo raiado a manhã, uma reunião formal do Sinédrio podia ser feita mais legitimamente, embora o fato de que estavam no primeiro dia dos Pães Asmos (de acordo com Marcos 14:12, cf. João 18:28) ainda violasse o que sabemos ser uma regra posterior (veja, acima, 14:43 e ss.). Nessa reunião, de acordo com o texto seguido pela versão da IBB, eles tiveram conselho. (A versão atualizada da SBB é menos explícita, pois usa a palavra “amarrando” , em vez de mania­ tando. Importantes evidências apóiam o texto seguido por uma versão inglesa, a NEB: “tendo feito os seus planos... pu­ seram Jesus em cadeias.” A versão da IBB tem o apoio mais sólido, e pode ser


harmonizada mais facilmente com Lucas 22:66-23:1.) O Sinédrio decidiu levar Jesus diante de Pilatos e acusá-lo de fomentar re­ belião. O que para o Sinédrio era blas­ fêmia, podia ser apresentado de forma a soar como sedição para o governador romano, Pilatos era o procurador romano da Judéia no período de 26-36 d.C. Em uma carta de Agripa I, para o Imperador Gaio Calígula, ele foi descrito como in­ flexível, voluntarioso, inexorável, vinga­ dor e cruel, culpado de repetidas exe­ cuções sem julgamento (da mesma forma falou Philo, Embassy to Gaius, 299305). Os relatos dos Evangelhos não são tão severos em relação a Pilatos como Philo, ou mesmo Josefo, que nos conta que Pilatos foi removido do seu cargo por ter mandado m atar de maneira desuma­ na um grupo de samaritanos (Antig., 18,4). Marcos não dá desculpas a ne­ nhum dos envolvidos na morte de Jesus, pela sua culpa, embora enfatize especial­ mente o pecado, ou dureza de coração, verificado no traidor, nos líderes religio­ sos judaicos e até nos discípulos do Se­ nhor — Pedro, que o negou, e os outros discípulos, que fugiram. Mas Pilatos, a multidão que pedia sangue (15:11 e ss.) e os soldados romanos (15:16-20) são tam­ bém tratados como participantes do ul­ traje. A residência de Pilatos era normal­ mente em Cesaréia. Ele viera a Jerusalém durante a Páscoa, quando a cidade es­ tava tão apinhada, presumivelmente pa­ ra manter a ordem. Em Jerusalém, é incerto se ele ficou no palácio de Hero­ des ou na fortaleza de Antônia. A narrativa de Marcos é tão breve, e omite tantos dados, que torna-se óbvio que ele considera os fatos bem conheci­ dos de seus leitores (Taylor). Ele nem se incomoda em dizer, aqui, que Pilatos era governador; presume que todos conhe­ ciam bem a sua identidade. O relato que ele faz do julgamento diante de Pilatos difere consideravelmente do feito por

João, que descreve certa medida de dis­ cussão filosófica entre Jesus e o romano (João 18:28-38). Marcos também não diz nada acerca do fato de Jesus ter sido enviado a Herodes (Luc 23:6-12), nem fala acerca do sonho da mulher de Pila­ tos e da lavagem simbólica de mãos de Pilatos, como o faz Mateus em 27:19,24. Todavia, acerca da acusação feita con­ tra Jesus diante do governador, os Evan­ gelhos estão de acordo. Ele dissera ser Rei dos Judeus. Lucas 23:2 explica isto, dizendo que os principais sacerdotes acusaram Jesus de “perverter a nossa nação” , “proibindo-nos de pagar tributo a César” e dando a si mesmo o nome de “Cristo, um rei” . Marcos meramente acrescenta que eles amontoaram acusa­ ções contra ele (v. 3). A pergunta de Pilatos acerca da acusa­ ção dá ênfase especial ao pronome te. Provavelmente é zombeteiro: Como é ab­ surdo que alguém como tu diga ser Rei dos Judeus! Mas esse pronome pode sim­ plesmente expressar a surpresa de Pila­ tos. Que ironia havia nessa acusação! Jesus é realmente Cristo, o Rei, em sentido espiritual (João 18:36), mas ele recusou submeter-se a qualquer pressão, para es­ tabelecer o seu reinado politicamente (cf. Mar. 6:45; João 6:15). Agora, depois que os líderes religiosos haviam condenado a sua reivindicação à realeza como blas­ fema, o acusaram de tentar ser exata­ mente o tipo de rei que ele se recusara a ser: um inconfidente militar e político. A resposta de Jesus a Pilatos: É como dizes é enganosamente simples. Está mais próxima de um sim do que de um não. Ao mesmo tempo, a resposta provavel­ mente significa: Esta é a tua maneira de dizer quem eu sou, mas não a minha. Jesus não adicionou mais nada, diz-nos Marcos. Nâo é de se admirar que Pilatos tenha reconhecido que o homem que estava diante dele não era um camponês comum, amedrontado (cf. outra vez Is. 53:7). 473


2) A Libertação de Barrabás e o Sentenciamento de Jesus (15:6-15) 6 Ora, por o casião da fe sta costu m ava soltar-lhes um p reso qualquer que e le s p e ­ d issem . 7 E h a v ia um , cliam ad o B arrab ás, preso com outros sed icio so s, o s quais, num m otim , h aviam com etid o u m hom icídio. 8 E a m ultidão subiu e com eçou a p edir o que lhe costu m ava fa zer. 9 Ao que P ila to s lh es perguntou: Q uereis que vos so lte o rei dos judeus? 10 P o is e le sa b ia que por in v eja os principais sacerd o tes lho lia v ia m en tr e g a ­ do. 11 M as os principais sa cerd o tes in cita ­ ram a m ultidão a pedir que lh es so lta sse an tes a B arrab ás. 12 E P ila to s, tom ando a faiar, perguntou-lhes: Que fa r e i então d a ­ quele a quem clu im ais rei dos judeus? 13 N ovam ente cla m a ra m e le s ; C rucifica-o! 14 D isse-lh es P ila to s: M as que m a l fe z ele? Ao que e le s cla m a ra m ainda m a is: C ruci­ fica-o ! 15 E n tão P ila to s, querendo sa tisfa z e r a m u ltidão, soltou-lhes B arrab ás; e , tendo m andado açoitar J esu s, o en tregou para ser crucificado.

Nada sabemos acerca do costume de Pilatos de libertar um preso qualquer durante a festa, exceto com base no que os Evangelhos nos dizem. Barrabás é descrito aqui como estando com outros sediciosos que haviam cometido um ho­ micídio durante um motim. João 18:40 diz que ele “era salteador” , acusação adicional, da qual o bando rebelde pro­ vavelmente era culpado. Pode ser que o seu outro nome fosse “Jesus” , como o indicam certos manuscritos em Mateus 27:16 e s. Será que ele dissera ser um salvador vindo de Deus? Não o sabemos. O que Marcos descreve é a maneira como aconteceu que um homem culpado de insurreição foi liberto, e como Jesus Cristo, inocente como era, foi crucificado como revoltoso. De quem se compunha a multidão que pediu a Pilatos para seguir o seu costume e libertar um prisioneiro? Ê muito im­ provável que se compusesse de galileus (Herodes Antipas goveriiava a Galiléia), e ainda menos provável que fosse a mes­ ma multidão que havia dado as boasvindas a Jesus, ao entrar em Jerusalém (11:8-11). Pelo contrário, pode ser até 474

que fossem amigos de Barrabás, que haviam vindo pedir a sua libertação. Isto seria, como diz Rawlinson, uma “coincidência histórica estranhamente dramática” , mas concorda com o que aconteceu. De qualquer forma, os dis­ cípulos não estavam em evidência em parte alguma; no que tange a Marcos, eles haviam fugido (14:50). Pilatos sugeriu a libertação do Rei dos Judeus. Quer tenha ele usado, quer não, essas palavras cinicamente, os leitores de Marcos outra vez seriam recordados de quem Jesus era e é. Os principais sa­ cerdotes, capitalizando em cima do pro­ pósito original da multidão, ou instigan­ do a idéia, dignaram-se a misturar-se com a populaça, para baldar as aparen­ tes esperanças de Pilatos, de libertar Jesus. E a multidão pediu Barrabás. Pilatos estava certo em reconhecer que os principiús sacerdotes eram motivados, pelo menos em parte, por inveja. Se Jesus não tivesse um tão grande número de seguidores, e se as suas declarações e os seus ensinos não contradissessem os de­ les, os líderes saduceus possivelmente não se teriam juntado aos rabis dos fari­ seus, no intento de levar Jesus à morte. Marcos dá a entender claramente tam ­ bém que o governador gostaria de frus­ trar os objetivos dos principais sacerdo­ tes. Todavia, não há nenhum indício de que os seus esforços foram feitos por amor à justiça. Afinal de contas, me­ diante a sua autoridade judicial, ele po­ deria ter libertado Jesus. A explicação de que ele estava cinicamente tentando jo­ gar a multidão contra os seus líderes religiosos sedentos de sangue é muito inais provável. Não parece que ele se preocupasse com o que aconteceria com Barrabás nem com Jesus. De fato, há uma insinuação de- que Pilatos poderia ter libertado ambos os prisioneiros, se tão-somente a multidão o tivesse pedido (v. 12). O repetido e cres­ cente clamor: Crucifica-o, acabou com tal esperança. (Quanto a crucificar, cf., ababco, sobre 15:22,24.) Uma gentalha


ralé foi satisfeita, um criminoso solto, e Jesus, açoitado e crucificado. O açoitamento era um castigo horrível, infligido aos escravos, algumas vezes a pessoas comuns que habitavam as pro­ víncias, mas nunca a cidadãos romanos (cf. At. 22:25 e ss.). Açoites de couro com pedacinhos de metal ou ossos eram usados, muitas vezes estando a vítima estendida e amarrada a uma pilastra. Era geralmente infligido aos que estavam para ser crucificados. 12. O Tormento Zombeteiro Pelos Sol­ dados (15:16-20) 16 Os sold ad os, pois, levaram -n o p ara d en­ tro, a«;>p átio, que é o pretório, e con vocaram toda a coorte; 17 vestiram -n o d e púrpura e puseram -lhe na ca b eça u m a coroa de e sp i­ nhos que h a viam tecid o ; 18 e co m eça ra m a sau d á-lo: S alve, rei dos ju d eu s! 19 D avam lhe com u m a ca n a na ca b eça , cu sp iam nele e, p ostos de joelh os, o ad oravam . 20 D ep ois de o terem a ssim escarn ecid o , despiram -lhe a púrpura, e lh e p u seram a s v e ste s. E ntão o lev a ra m p ara fora, a fim de o cru c ific a ­ rem .

Os soldados eram os homens de Pila­ tos. Talvez pertencessem à segunda coor­ te romana, como sugere Johnson. Uma unidade militar como essa (batalhão, coorte) era composta normalmente de seiscentos homens isto é, um décimo de uma legião (cf. 5:9), embora, provavel­ mente, apenas um destacamento estives­ se presente naquela ocasião. A palavra pátio, na IBB, é tradução de palácio; este é um significado possível, e o pretório seria entendido como designando o quar­ tel-general, de Pilatos. Tradicionalmen­ te, ele estaria localizado na Torre Antô­ nia, onde as pedras do pavimento, depois das escavações, ainda mostram marcas usadas para os jogos em que se empe­ nhavam as guarnições romanas durante seu ócio, nos quartéis. Contudo, o lugar 52 Cf. Livy, Ab Urbe Condita, 33, 36, que escreve que os escravos revoltosos eram “ açoitados e crucificados” . Josefo, Guerras dos Judeus, 2:14, descreve tratam ento similar dispensado a cidadàos de Jerusalém , pelo pro­ curador Florus. João 19:1 parece colocar o açoitam ento de Jesus antes da prom ulgação d a sentença final.

poderia ter sido o palácio de Herodes (cf., acima, 15:1). Os soldados o vestiram com “trajes reais” , provavelmente usando o pudamentum de algum soldado, uma capa militar escarlate (Rawlinson). A coroa de espinhos provavelmente se parecia com o diadema de louros usado pelos imperadores, mas pode ter pretendido ser um diadema real. A cana pode ter sido usada a princípio como cetro (cf. Mat. 27:29), mas foi-lhe tirada e usada para bater em sua cabeça. Eles zomba­ ram da sua realeza com saudações e re­ petidos gestos de deferência, acentuando o seu desprezo, ao cobri-lo com as suas cuspafadas. Como esta história é irônica! Jesus entra no pátio, é vestido, coroado e até reverenciado como “ rei” , tudo com hu­ mor vulgar e sádico. No entanto, asse­ diado por insultos, ridicularizado e total­ mente humilhado, o Filho do homem sofredor está sendo entronizado como o verdadeiro Rei. Minear sugere que os cristãos da época de Marcos devem ter lido a sua narrativa da paixão “com um olho em Salmos 2” . O próprio Senhor riu-se deles!

53 Philo, In Flaccum, 36-40, descreve a crueldade im agi­ nosa dos alexandrinos, zom bando de H erodes A gripa I, que fora indicado p o r Calígula como rei tributário sobre parte do antigo reino judaico. U sando Carabás, um “ lunático desgraçado, m as dócil, eles o coloca­ ram em um trono improvisado, fizeram -lhe um a coroa de papel, escolheram um tapete como veste real, e um a cana de papiro como cetro. Alguns dos seus jovens colocaram varas no om bro, e fingiram ser um corpo de guardas. Tudo isto foi feito p a ra expressar desprezo pelos judeus, em seu próprio meio, em bora fosse di­ rigido especificamente a Agripa. E sta história antiga, e outras, referindo-se à zom­ baria praticada por ocasião d a Saturnália e d a Sacaea babilónica, têm sido citadas p a ra lançar dúvida sobre a historicidade da n arrativa acerca de B arrabás, ou para aguçar a ironia religiosa, tào eloqüentem ente expressa nela. Cf. a elucidadora nota no Commentary de Taylor (p. 646-48). “ A destreza perícia com que os paralelos são reunidos” , escreve ele, “ nào se com­ p a ra com o valor dos resultados obtidos.” Precisa­ mos concordar com a sua conclusão de que os atos e a zom baria dos soldados estavam de acordo com u m a longa história de práticas similares. A na rra ­ tiva de M arcos é realista, e nâo precisa ser defendida.

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Quando se completaram os preparati­ vos que deviam ser feitos para a cruci­ ficação, os soldados vestiram Jesus de novo com as (suas próprias) vestes. E depois, de acordo com a prática costu­ meira, um centurião com um destaca­ mento de quatro homens o levaram para fora, para executá-lo. 13. A Crucificação de Jesus (15:21-32) 21 E obrigaram certo Sim ão, cireneu, pai de A lexandre e d e R ufo, que por a li p a ssa v a , vindo do cam po, a carregar-lh e a cruz. L evaram -no, p ois, ao lugar do G ólgota, que quer dizer, lu gar da C aveira. 23 E o fer e ­ ciam -lhe vinho m isturad o com m irra; m a s ele não o tom ou. 24 E ntão o cru cifica ra m , e repartiram entre si a s v e ste s d ele, la n ­ çando sortes sobre e la s , p ara v e r o que cad a um lev a ria . 25 E era a hora terceira , quando o cru cificaram . 26 P or cim a d ele esta v a escrito o título da su a a c u sa ç ã o : O R E I DOS JU D E U S. 27 T am bém , com e le , cru c ific a ­ ram dois saltea d o res, um à su a d ireita, e outro à esq u erd a. 28 (E cum priu-se a E s c r i­ tura que diz: E com os m a lfeito res foi co n ­ tado.) 29 E os que ia m p assan do b la sfe m a ­ vam d ele, m eneando a ca b eça e dizendo: Ah! tu que d estróis o san tu ário e e m três dias o reed ifica s, 30 sa lv a -te a ti m esm o , descendo da cruz. 31 D e ig u a l m odo tam b ém os principais sa cerd o tes, com os escrib a s, escam ecen d o-o, d iziam entre si: A outros salvou; a si m esm o não pode sa lv a r; 32 d e s­ ça agora da cruz o C risto, o rei de Isra el, para que v eja m o s e creia m o s. T am b ém os . que com e le foram cru cificad os o in ju ria­ vam ,

A essa altura, aparentemente, Jesus estava fraco demais para carregar a criiz, pelo menos não a distância toda (João 19:17). Pesadas vigas ou mesmo árvores usadas com aquele propósito já deviam estar no lugar da execução. Um senten­ ciado à crucificação devia carregar ape­ nas a parte da cruz que devia ser unida à estaca vertical. Um bloco ou suporte de madeira de alguma espécie, perto da base da estaca vertical, suportava parte do peso do corpo, mas também prolonga­ va o período de intenso sofrimento. Os soldados obrigaram... Simão, cire­ neu, provavelmente um judeu que havia vivido naquele lugar, a realizar a humi476

Ihante tarefa de carregar a barra da cruz em que Jesus iria ser pregado. Obriga­ ram, ou “forçaram ao serviço” , é verbo também usado em Mateus 5:41. Não temos nenhuma razão para admitir que Simão conhecia Jesus antes disso. O fato de seu nome e o de seus dois filhos serem registrados sugere que eles se tomaram membros da comunidade cristã. Mais do que isso, o nome dos filhos dificilmente seria mencionado, desta forma, se eles não fossem bem conhecidos dos leitores de Marcos. Veja Romanos 16:13, onde o Rufo mencionado pode ter sido um des­ ses filhos de Simeão. O lugar da crucificação não é conhe­ cido. O lugar tradicionalmente indicado, dentro da atual Igreja do Santo Sepulcro, provavelmente não é correto (embora a tradição que o apóia date do quarto século), mas as especulações modernas também não têm mais probabilidades de serem corretas (Rawlinson). Gólgota é, como diz Marcos, palavra aramaica, que significa caveira (Calvário deriva-se da tradução latina desta palavra). Talvez o contorno do lugar tivesse alguma seme­ lhança com um a caveira. Era, provavel­ mente, perto de uma das portas da cida­ de, por onde constantemente muitas pes­ soas passavam. Uma execução assim pú­ blica e terrível tinha o objetivo de fazer com que as testemunhas temessem a ira dos seus governantes. Vinho misturado com mirra devia em­ botar os sentidos (e conseqüentemente os sofrimentos), e foi provavelmente ofere­ cido a Jesus por amigos ou simpatizan­ tes, ou pelas mulheres de Jerusalém, que costumeiramente faziam esse obséquio aos condenados, e não pelos soldados. Visto que ele o recusou, presumimos que ele estava evitando qualquer perda de consciência. Então o crucificaram. As mãos da vítima geralmente eram cravadas na bar­ ra transversal da cruz, embora algumas vezes os pés não fossem pregados de maneira semelhante. No caso de Jesus, cf. Lucas 24:39 e s. e João 20:20,25,


embora alguns estudiosos sugiram a in­ fluência de Salmos 22:16, sobre a narra­ tiva, neste ponto. O detalhe de que os soldados encarregados da execução po­ diam tomar para si as possessões do condenado é histórico. Antes de o cru­ cificarem, em verdade, eles repartiram entre si.as vestes dele, lançando sortes sobre elas (cf. Sal. 22:18). A coisa fora feita tão às pressas, que eram ainda 9 horas da manhã, isto é, a hora terceira. A acusação contra o criminoso era cos­ tumeiramente afixada para todos verem. Jesus era culpado, dizia a inscrição, ou seja, o titulo da sua acusação, de ser O Rei dos Judeus. A verdade, o “crime” e a glória, tudo em uma frase inscrita! A alienação e o desprezo que Pilatos sentia para com os principais sacerdotes e líderes dos judeus foram expressos tam ­ bém nestas palavras, pois ele devia saber que eles iriam considerar esta frase como um insulto. (Cf. João 19:18-22. As varia­ ções entre os Evangelhos, na redação da acusação, são insignificantes em muitos aspectos.) Dois salteadores foram crucificados ao mesmo tempo. Marcos não registra ne­ nhuma conversa de Jesus com qualquer deles, exceto para dizer que eles também o ii\juriavam (v. 32). Mateus 27:44 segue Marcos, mas Lucas 23:39-43 diz que pa­ lavras e petição um dos dois expressou; João não registra absolutamente nada da atitude ou palavras dos salteadores. O fato de Marcos ter-nos informado que um deles foi crucificado à sua direita e o outro à esquerda pode ter sido inten­ cional, para lembrar aos seus leitores o pedido de Tiago e João — e a resposta de Jesus (10:37-40). O Rei estava “be­ bendo o seu cálice” , entronizado em uma cruz. Mas a que preço haviam-se colo­ cado de ambos os lados aqueles homens! A grosseira zombaria dos que passa­ vam por ali expressava-se tanto em gestos como em escárnios em voz alta. Me­ neando a cabeça era uma expressão fran­ ca de desdém (cf. Is. 37:22; Sal. 22:7 e especialmente Lam. 1:12 e 2:15, que

possivelmente Marcos tinha em mente). Com a referência à destruição do templo (cf. 14:58), o judeu comum teria con­ siderado tal declaração, que se supunha Jesus fizera, tanto ridícula como blasfe­ ma. No entanto, aqui também, para os leitores cristãos, essas palavras escarnecedoras expressam a profunda verdade, e Jesus (que é o templo no sentido de que nele nos encontramos com Deus) é o verdadeiro rei de Israel, que de fato os teria salvo e até chegou a oferecer-lhes salvação. Marcos os coloca todos juntos: os observadores casuais, os principais sacerdotes, os escribas e os que com ele foram crucificados. Veja Isaías 53:12: “(Ele) foi contado com os transgresso­ res.” (Esta alusão ao VT é citada em alguns manuscritos como o versículo 15: 28; mas não é original aqui, embora o seja em Lucas 22:37.) 14. A Morte de Jesus (15:33-41) 33 E , ch egad a a hora sex ta , houve trev a s sobre toda a terra, até a hora nona. 34 E , à hora nona, bradou J esu s e m a lta voz: E lo í, E loí, la m á sa b actan i? que, traduzido é: D eus m eu , D eu s m eu , por que m e d e sa m ­ p araste? 35 A lguns dos que a li esta v a m , ouvindo isto, d iziam : E is que ch am a por E lia s. 36 Correu um d ele s, ensopou u m a esponja e m v in a g re, e , pondo-a num a cana, dava-lhe de b eb er, dizendo: D eix a i, v e ja ­ m os se E lia s v irá tirá-lo. 37 M as J esu s, dando um grande brado, expirou. 38 E ntão o véu do santuário se rasgou e m dois, de alto a baixo. 39 Ora, o centurião, que esta v a defronte d ele, vendo-o a ss im exp irar, d isse: V erdadeiram ente e ste h om em era filho de D eus. 40 T am b ém a li esta v a m a lg u m a s m u ­ lh eres, olhando de lon ge, en tre e la s M aria M adalena, M aria, m ã e de T iago o M enor e de J o sé, e S a lo m é ; 41 a s quais o seg u ia m e serviam quando e le e sta v a na G aliléia; e m uitas outras que tin h am subido com e le a J eru salém .

As notas cronológicas de Marcos, no dia da crucificação, são bem completas (cf. 15:1,25,33,42). A hora sexta era o meio-dia, e a nona era as 3 horas da tarde. A escuridão não podia ser um eclipse, pois era lua cheia durante a Páscoa. Várias sugestões têm sido feitas, inclusive da possibilidade de um “siroco 477


negro” muito intenso, isto é, uma tem­ pestade de areia (M. Lagrange). A des­ crição de Marcos é tão direta e simples como o resto da sua narrativa acerca da crucificação. E é provável que a escuri­ dão fosse, na compreensão dele, um fe­ nômeno literal, causado sobrenatural­ mente. Muitos eruditos pensam que a escuri­ dão é figurada, com sentido teológico. Certamente era a hora em que as trevas imperavam (cf. Luc. 22:53). Em nenhu­ ma outra parte é mais evidente, ou mais condenatório, o fato de que os homens “amaram antes as trevas que a luz, por­ que as suas obras eram más” (João 3:19). As trevas foram tão apropriadas quanto a inscrição (v. 26) em descrever o signi­ ficado do acontecimento, e nem Marcos nem seus leitores poderiam ou deseja­ riam confinar o significado dele a um mero recital de eventos. As únicas palavras de Jesus na cruz registradas por Marcos (ou Mateus) são de Salmos 22:1. A transliteração, em nosso texto, é predominantemente ara­ maica. A de Mateus, que é mais próxima do hebraico, é mais provavelmente a original, pois Eli soa mais como “Elias” do que Eloí. A própria dificuldade que temos em crer que Deus podia até de­ samparar Jesus é evidência de que o grito de solidão é autêntico. Lucas, e provavel­ mente João, devem ter sentido a mesma dificuldade que sentimos — nenhum dos dois incluiu estas palavras — e, como diz M. Goguel, essa frase está em agudo contraste com a perfeita comunhão que os Evangelhos indicam que era caracte­ rística da relação de Jesus com o Pai. Por que me desamparaste? Como po­ de alguém dizer que, se tivesse forças, Jesus teria expressado a fé triunfante com que termina Salmos 22? Não que ele tenha perdido a fé — M. Dibelius diz abruptamente que ninguém cita as Escri­ turas na oração, quando perdeu a fé! Mas a experiência por que Jesus estava passando fê-lo gritar em completa deso­ lação. Por que, mesmo? Não foi porque a 478

sua completa identificação com o homem pecador, o abandono de si mesmo às pe­ nalidades espirituais e físicas operadas neste mundo pelos males da dureza do coração do homem tivessem irrompido pesadamente sobre ele em sua condição torturante? Não sentia ele que Deus deli­ beradamente o havia abandonado ao seu trágico cálice a que estava destinado (14:36)? Não obstante, nenhum dos leitores de Marcos teria sentido realmente que Deus havia desamparado Jesus (o verbo de­ samparar significa abandonar ou deser­ tar). Pelo contrário, como toda esta nar­ rativa, com sua h-onia e sua triste zom­ baria, torna eloqüentemente claro, o ver­ dadeiro Rei estava fazendo a vontade de Deus. Por sua obediência até mesmo à morte, ele estava oferecendo salvação do pecado e da dureza do coração do homem em troca de uma relação recémestabelecida com Deus. Porém o cami­ nho da salvação nunca pode deixar de passar pelo caminho da cruz (cf., acima, 10:45; e cf. II Cor. 5:21; Gál. 3:13; I Ped. 2:24). Lendas antigas acerca de Elias expres­ sam uma crença popular de que ele fre­ qüentemente veio para ajudar o povo de Deus na sua angústia. Foi um mal-entendido natural daquele grito inespera­ do. O vinagre, ou “vinho azedo” , pode ter sido do que os soldados haviam le­ vado para o seu üso pessoal. Visto que dificilmente os soldados teriam permiti­ do que um espectador desse qualquer coisa a Jesus, talvez tenha sido um dos soldados que chegou uma esponja aos lábios de Jesus. De acordo com Marcos, foi o mesmo homem que disse: Deixai, vejamos se Elias virá tirá-lo. (Contraste-o com Mateus 27:49; mas um dos soldados poderia estar familiarizado com as len­ das judaicas acerca do legendário pro­ feta.) Muitos intérpretes interpretam a ofer­ ta de vinho como um ato de amabilidade rude a Jesus. Mas o texto de Marcos de forma alguma dá a entender isso. Mais


provavelmente as palavras dos que ali estavam, no versículo 35, eram um acrés­ cimo às zombarias, e, colocar aquela esponja diante dos lábios de Jesus, bem pode ter sido a forma pela qual um sol­ dado se juntou à horrível zombaria. As palavras: Deixai, vejamos se Elias virá tirá-lo provavelmente deviam ser traduzi­ das assim: Vejamos se Elias virá. (Assim pensam Moulton e Milligan, Taylor, Johnson, a versão NEB, mas não a TEV; a construção verbal é grego posterior, mas é idêntica com a de Mat. 7:4: “Deixa-me tirar.”) O crucificado que estivesse próximo da morte normalmente estaria fraco demais e exausto para emitir um grande brado. Costumeiramente, o tormento em uma cruz era mais prolongado do que seis horas. “ Intenso sofrimento espiritual de­ via levar o condenado a embolia, se era assim, o que era a causa imediata da morte” (Taylor). Tanto o centurião (v. 39) quanto Pilatos (v. 44) ficaram surpre­ sos por Jesus ter falecido tão depressa. O véu do santuário ficava dependura­ do na entrada do santo dos santos, e era bastante espesso (Êx. 26:31-37). Nesse lugar, o sumo sacerdote devia entrar uma vez por ano, no Dia da Expiação, quando oferecia o sacrifício para remover a culpa do povo (cf. Heb. 9:7 e Lev. 16). Ali, no santo dos santos, considerava-se que a presença de Deus residia. O fato de o véu ser rasgado em dois significava que a morte de Jesus abria o caminho para Deus para todos os homens, livremente. De alto a baixo significava que nenhum homem, mas apenas Deus, é que tornara isso uma realidade. Não temos evidências extrabíblicas de que o véu foi fisicamente rasgado nessa ocasião; quer o evento 54 A sugestão feita por M. Goguel (seguindo R enan), de que dar algo a beber a um hom em que estava sendo crucificado era popularm ente considerado como ato p a ra apressar a sua m orte, é interessante e atrativa, mas evidências demasiado insuficientes a sustentam . Cf. a sua Life c f Jesus, tra d , de O. Wyon (London: Geo. Allen & U nwin, 1958), p. 543 e s. Cf. tam bém Sal. 69:21, ao qual pode te r sido feita um a alusão: “ D eram -m e fel por m antim ento, e, n a m in h a sede, me deram a beber vinagre. ”

tenha sido literal ou simbólico, expressou eloqüentemente a verdade de que Jesus abrira o caminho para o homem se apro­ ximar de Deus. O centurião, que estava supervisionan­ do a execução, deve ter sido movido pelo comportamento de Jesus durante todo o dia. A zombaria do povo que passava, e até dos principais sacerdotes e escribas, que ordinariamente não teriam parado ali, havia se concentrado em Jesus. Ele, todavia, havia suportado o seu sofrimen­ to sem os costumeiros gritos e palavrões. O último brado de Jesus, seguido tão abruptamente por sua morte, levou o centurião a falar. Verdadeiramente este homem era filho de Deus. Tudo o que o texto grego significa é que o centurião pensava que Jesus era realmente um ser humano no­ bre, um homem de qualidades excepcio­ nais, talvez uma pessoa com uma cente­ lha de divindade. Ê por isso que a versão da IBB omite o artigo definido da versão antiga (“era o filho de Deus” ), da mesma ■forma que a versão atualizada da SBB. Contudo, Marcos certamente entendia essas palavras em sentido muito mais profundo. Ele está acabando a sua histó­ ria de Jesus com uma confissão que se en­ caixa com 1:1 e 1:11, e os seus leitores deveriam pensar nas palavras do centu­ rião em termos do que eles mesmos pen­ sariam, ao usá-las. Jesus era, para eles, o forte Filho de Deus. As mulheres que estavam presentes, Marcos agora relaciona, aparentemente fazendo os seus primeiros leitores se re­ cordarem de nomes com os quais esta­ vam familiarizados. A introdução delas aqui serve ao propósito literário de pre­ parar a parte que elas desempenhariam nos acontecimentos que se haviam de seguir. Maria Madalena é mencionada outra vez em 15:47 e 16:1; Magdalena significa que ela era de Madgala. Em Lucas 8:2 (cf. Mar. 16:9) somos infor55 Cf. a n o ta por R. G. B ratcher, em T he Expository Times, Vol. 68, n® 1 (O ct. 1956), p. 27 e s.

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mados que dela “tinham saído sete de­ mônios” . Não obstante, não temos ga­ rantias para identificá-la com a mulher não identificada em Lucas 7:36-50. Outra Maria é identificada como mãe de Tiago o Menor e de José (veja 15:47 e 16:1). Ela é chamada “mulher de Clôpas” em João 19:25 (embora “mulher” seja uma inserção interpretativa no texto em português). Tiago e José devem ter sido nomes bem conhecidos entre os cris­ tãos primitivos, mas nós não sabemos nada ou quase nada acerca deles. Alguns pensam que Tiago é aquele que é chama­ do “filho de Alfeu” em 3:18 (Taylor, Cranfield). A palavra Menor pode ter relação com a estatura, mas a evidência adequada demonstra que a tradução é idiomática. Salomé pode ter sido, para Marcos, um nome incomumente conhecido, ou apenas um nome preservado pela tradi­ ção. Mateus 27:56 não relaciona Salomé, mas, se os relatos forem colocados lado a lado, podemos concluir que ela era a mãe de dois discípulos importantes: Tiago e João. Essas mulheres haviam ministrado a Jesus (e presumivelmente aos seus discí­ pulos) enquanto ele estivera na Galiléia. Veja Lucas 8:1-3, em que se diz que certas mulheres (inclusive Maria M ada­ lena) “ os serviam com os seus bens” . Pouco se diz, nos Evangelhos, acerca do que essas mulheres faziam dia a dia, nias breves palavras como essas sugerem que elas estavam entre os discípulos mais fir­ mes e valiosos de Jesus. 15. O Sepultamento por José (15:42-47) 42 A o ca ir da tard e, com o e ra o. dia da preparação, isto é , a v é sp era do sábado, 43 José de A rim atéia, ilu stre m em b ro do sinédrio, que ta m b ém esp era v a o reino de D eus, cobrando ânim o, foi a P ila to s e pediu o corpo de J esu s. 44 A dm irou-se P ila to s de que já tiv e sse m orrido; e , cham ando o c e n ­ turião, perguntou-lhe se , de fato, h a v ia m o r­ rido. 45 E , depois que o soube do centurião, cedeu o cad áver a J o sé ; 46 o qual, tendo com prado um pano de linho, tirou da cruz o corpo, envolveu-o no pano e o depositou num

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sepulcro ab erto em roch a; e rolou u m a p e ­ dra p ara a porta do sep u lcro. 47 E M aria M adalena e M aria, m ã e de J o sé , o b serv a ­ v a m onde fora posto.

Ao cair da tarde deve ser entendido com o significado de referir-se a tempo não muito anterior ao ocaso, pois o dia da preparação iria terminar nessa hora e começar o sábado (cf., acima, sobre 14: 1,12,17). Taylor sugere que eram cerca de quatro horas da tarde. José é descrito, por Marcos, como na­ tivo da Arimatéia (talvez a “Ramataim” mencionada em I Macabeus 11:34, ci­ dade próxima a Lida) e como ilustre membro do sinédrio. A palavra Uustre foi interpretada, em Mateus 27:57, como “rico” ; na verdade significa “de assegu­ rada posição social” . A palavra traduzi­ da como membro do sinédrio, era apli­ cada, em Roma, aos senadores; mas cf. Lucas 23:50 e s., onde se acrescenta que José “não tinha consentido” com a deci­ são do sinédrio. O fato de que José esperava o reino de Deus deve ter levado os leitores de M ar­ cos a contá-lo como um dos discípulos. A descrição que Mateus faz dele como “discípulo” pode ser, como diz Rawlin­ son, “talvez, exagerada” . Mas cf. João 19:38, onde ele é chamado de seguidor secreto. Marcos considerou que ele, cobrando ânimo (a palavra é “ousando”), pediu, a um homem como Pilatos, o corpo. Não obstante, os romanos nem sempre deixa­ vam os corpos de vítimas crucificadas apodrecendo na cruz. Algumas vezes eles os cediam a parentes ou amigos que os pedissem, para serem sepultados, e, quando lhes eram solicitados, eles até respeitavam os costumes judaicos a este respeito. Deuteronômio 21:22 e s. reque­ ria que os corpos de enforcados fossem enterrados no mesmo dia. Admirou-se Pilatos de que já tivesse morrido. A expressão grega provavel­ mente significa, como na tradução ingle­ sa NEB: “Pilatos ficou surpreso ao ouvir que ele já estava morto.” De qualquer


forma, ele verificou o assunto com o centurião, antes de conceder a José o que ele pedia. A redação alternativa do versí­ culo 44, apresentada na versão inglesa RSV, “se ele já estava morto havia algum tempo” , tem tanta confirmação quanto a versão do texto; e é seguida por outras versões inglesas. O pano de linho (o texto grego não tem palavra para “pano” , mas devia ser exa­ tamente isso, e não uma mortalha ou outro tipo de vestimenta, como possivel­ mente dá-se a entender em 14:51 e s.) foi comprado para o corpo de Jesus. Essa compra deve ter requerido algum esforço especial, ou alguma influência, num dia de Páscoa, mas não teria sido impossí­ vel (Taylor). Provavelmente, alguns dos servos de José ajudaram-no nessa tarefa. João diz que Nicodemos também ajudou, porém Marcos não o menciona e aparentemente nada sabe da mirra e do aloés com que ele contribuiu (cf. João 19:39 e s.). M ar­ cos conta a história como se José não tivesse tido tempo para preparar a unção do corpo, e deixou que a tarefa fosse realizada mais tarde pelas mulheres que assistiram ao sepultamento. 0 sepulcro propriamente dito, descrito como aberto (cavado) em rocha, é espe­ cificamente mencionado por João e Lu­ cas como novo e sem uso. (Em muitos sepulcros havia espaço para vários cor­ pos.) Mateus nos conta que era o sepul­ cro pessoal de José. 16. O Túmulo Vazio e o Anúncio da Ressurreição ( 16:1-8) 1 Ora, p assad o o sábad o, M aria M adalena, M aria, m á e de T iago, e Salom é, com p raram arom as para irem ungi-lo. Z E , no p rim eiro dia da sem a n a , foram ao sepulcro m uito cedo, ao lev a n ta r do so l. 3 E d iziam u m a s às outras: Quem nos revo lve rá a pedra da porta do sepulcro? 4 M as, levan tan d o os olhos, n otaram que a ped ra, que era m uito grande, já e sta v a revolv id a ; 5 e, entrando no sepulcro, vira m um m oço sentado á d ir e i­ ta, vestid o de alvo m an to; e fica ra m a tem o ­ rizadas. 6 E le , porém , lh es d isse: N ão vos atem orizeis; b u scais a J esu s, o nazareno.

que foi c r u c ific a d o ; e le r e ssu r g iu ; não e stá aqui; e is o lu gar onde o p u sera m . 7 M as id e, dizei a se u s d iscíp u lo s, e a P ed ro, que e le v a i adiante de v ó s p ara a G a liléia; a li o v er e is, com o e le vo s d isse . 8 E , saindo e la s, fu giram do sep u lcro, porque e sta v a m p ossu íd as de m edo e a ssom b ro e não d issera m n ad a a n inguém , porque tem ia m .

Passado o sábado, isto é, no sábado à noite, depois do pôr-do-sol, as mulheres compraram aromas para ungir o corpo de Jesus. Os nomes das mulheres foram dados pela primeira vez em 15:40, e pelo menos duas delas haviam testemunhado o sepultamento (15:47). A repetição dos nomes provavelmente expressa a circula­ ção separada e o uso independente das tradições que Marcos agora está seguin­ do. Não ocorreu às devotas senhoras que elas estavam quebrando o sábado para realizar a sua obra de amor. Os aromas comprados eram, provavelmente, óleos perfumados (Taylor), “especiarias e ungüentos” . (Luc. 23:56). As notas cronológicas, no versículo 2, têm sito interpretadas de várias manei­ ras. Muito cedo (excessivamente cedo) é quase tão forte quanto a expressão de 1:35 (“ de madrugada, ainda bem es­ curo”) e mais forte que a de 15:1. Signi­ ficava, geralmente, um tempo anterior à aurora. Não obstante, provavelmente F. C. Burlitt e Rawlinson estão corretos em concluir que Marcos quer dizer algo co­ mo “Na manhã seguinte, tão cedo quan­ to podiam ...” O sepulcro era, provavelmente, cavado em uma face exposta da rocha, e a sua porta devia ser perpendicular ao chão. A pedra que cobria a entrada, se era semelhante a algumas encontradas hoje em dia em Jerusalém, devia ajustar-se a um sulco, de forma que podia ser rolada em frente do sepulcro e efetivamente selar a entrada. Então, com esforço, podia ser rolada para um lado, a fim de admitir outro corpo. Marcos descreve a pedra como muito grande, e isto pode sugerir que o sepulcro também o fosse, por esperar José que a sua própria famí481


lia também fosse sepultada no mesmo lugar (cf. 15:46). Quando descobriram a pedra já revol­ vida, as mulheres entraram no sepulcro propriamente dito. A narrativa de M a­ teus é algo diferente, parcialmente por­ que inclui uma história sobre os soldados da guarda; de acordo com ele, as mu­ lheres nâo entraram no sepulcro. Com­ pare também Lucas 24:3 e João 20:1 e s. A descrição de Marcos acerca do moço não é maneira incomum de descrever um anjo. Pode-se comparar II Macabeus 3: 26,33. Johnson sugere a possibilidade de uma contrapartida no jovem de 14:51 e s., mas ali não temos nem alvo manto nem mulheres atemorizadas. Mateus (28:2) pensa em um “anjo” e Lucas também: “lhes apareceram dois varões em vestes resplandecentes” (24:4). M ar­ cos dá pouca ênfase aos elementos so­ brenaturais desta história, mas diz que as mulheres ficaram atemorizadas. Este verbo é difícil de traduzir: em o Novo Testamento, apenas Marcos o usa (9:15; 14:33; e nos v. 5 e 6, aqui). Marcos dá a entender que elas ficaram extremamente perturbadas, pois o que havia acontecido ia muito além do entendimento delas. O moço disse-lhes que Jesus havia ressuscitado. Portanto, é perfeitamente claro que Marcos sabia disso, e afirmou a doutrina cristã de importância vital de que Jesus havia triunfado sobre o túmu­ lo. O sepulcro está vazio: eis, disse ele às mulheres, o lugar onde o puseram. A mensagem que ele deu às mulheres para transmitirem aos discipulos era que Jesus ia adiante deles para a Galiléia, e que eles ali o veriam, como ele vos disse. Isto concorda com 14:28, mas deixa sem resposta quaisquer interrogações que te­ nhamos acerca das aparições que, de acordo com as nossas outras fontes, aconteceram em Jerusalém ou nas suas vizinhanças. Compare Lucas 24 e João 20, embora João 21 retrate o Senhor res­ surrecto também na Galiléia. Mateus acrescenta detalhes à história de Marcos, mas confirma um encontro de Jesus com 482

os seus discípulos na Galiléia (28:16). Simplesmente não temos dados suficien­ tes e adequados para interpretar as dife­ renças entre as narrativas que foram preservadas nos Evangelhos, em Atos 1:3-11 e em I Coríntios 15:3-11. No en­ tanto, precisamos concluir, devido à re­ dação de Marcos, que os discípulos ainda não haviam deixado as redondezas de Jerusalém. Pedro foi mencionado pessoalmente pelo moço, na mensagem às mulheres. Isto deve ter acontecido porque ele havia negado de maneira tão completa o seu relacionamento com Jesus (14:66-72). Marcos leva os seus leitores, de maneira bem clara, a pensar neste apóstolo como inteiramente restaurado à comunidade: provavelmente no término original do Evangelho, registrava-se um evento que demonstrava este fato. A narrativa escri­ ta mais antiga que temos fala de uma aparição de Jesus a Pedro (I Cor. 15:5). Ali o vereis. E. Lohmeyer tem dito que este verbo se refere especialmente à Pa­ rousia, e nâo às aparições pós-ressurreição; e também que Galiléia (e não Jeru­ salém) é para Marcos a terra do cum­ primento escatològico. Mas o verbo tra­ duzido como vereis é comum, e é difícil concordar que ele se tenha tomado um termo técnico usado em conexão com a vinda final de Jesus. Da mesma forma, o suposto significado de GalUéia, para Marcos (isto é, como o lugar para onde Jesus viria de novo), não é afirmado de nenhuma forma mais claramente pelas evidências. É melhor concluirmos que Marcos só ficou sabendo de aparecimentos ou ma­ nifestações de Jesus na Galiléia (assim pensa Taylor); ou então, que (em um tér­ mino original) ele afirmou uma aparição pessoal de Jesus na Judéia, talvez a Pe­ dro ou a Maria Madalena. Este inciden­ te, assim, seguir-se-ia logicamente à des­ crição das mulheres que fugiram, e que não disseram nada a ninguém. É difícil crer que Marcos teria termi­ nado o seu Evangelho com essa cláusula:


porque temiam. O seu livro fala do forte Filho de Deus, que era inteiramente su­ jeito à vontade do Pai, que terminou a obra do Pai e que virá com as nuvens do céu. A última cláusula deixa muita coisa sem afirmação, inacabada. 17. Epílogo Extenso: As Aparições PósRessurreição e a Ascenção ( 16:9-20) (9 Ora, havendo J esu s ressu rgid o cedo no prim eiro dia d a sem a n a , a p a receu p rim ei­ ram ente a M aria M adalena, da qual tinha expulsado sete dem ôn ios. 10 F o i e la an u n ­ ciá-lo a o s que haviam andado com e le , os quais esta v a m tristes e chorando; 11 e ou­ vindo e le s que v iv ia , e que tinha sido visto por e la , não o crera m . 12 D epois d isso m a n i­ festou-se sob outra form a a dois d eles que iam de cam inho p ara o cam p o, 13 os quais foram anunciá-lo a o s outros; m a s n em a e stes d eram crédito. 14 P or últim o, então, a p areceu a o s onze, estando e le s reclin ad os à m esa , e lançoulhes em rosto a su a incredulidade e dureza de c o ta çã o , por não h a v erem dado crédito aos que o tinham visto já ressurgido. 15 E! d isse-lhes: Ide por todo o m undo, e p regai o evangelho a toda criatura. 16 Quem crer e for batizado será salvo ; m a s quem não crer será condenado. 17 E e ste s sin a is a co m p a ­ nharão a o s que crerem : e m m eu nom e e x ­ pulsarão d em ônios; falarão n ovas lín gu as; 18 p egarão em serp en tes; e , se b eb erem algum a co isa m ortífera, n ão lh es fa rá dano algum ; e porão a s m ãos sobre os en ferm os, e e stes serão curados. 19 Ora, o Senhor, depois de lh es ter falado, foi recebido no céu , e assen tou -se á d ireita de D eu s. 20 E le s, p ois, saindo, p regaram por tod a p arte, cooperando com e le s o S e­ nhor, e confirm ando a p ala v ra com os sin ais que os acom p an h av am .)

A respeito do problema textual, veja a Introdução. Estes versículos têm gran­ de afinidade com as outras narrativas canônicas, especialmente com Lucas. Porque a sua composição é posterior e foi escrita por mão diferente que a de M ar­ cos, o estudante das aparições pós-ressurreição desejará normalmente concentrar-se nos finais registrados nos outros Evangelhos. Os versículos 9-11 têm um paralelo bem próximo em Lucas 24:10 e s. Al­ guém desejará comparar também M a­ teus 28:8-10 e João 20:14-18. Os versí­

culos 12 e s. resumem a notável história da aparição de Jesus aos dois descoroçoados discípulos que caminhavam pe­ nosamente para Emaús; porém aqui te­ mos apenas um a afirmação prosaica; na­ da da vivida narrativa de Lucas (24:1335). O versículo 14 (apareceu aos onze) está, talvez, mais próximo de Lucas do que dos outros Evangelhos, embora to­ dos eles (e também I Coríntios 15) falem das manifestações aos discípulos origi­ nais. Nenhuma nota cronológica é apre­ sentada, nem os lugares são menciona­ dos. A incredulidade e dureza de coração mencionadas são temas apropriados a Marcos (cf. 3:5; 6:6; 10:5). O elemento de narração no apareci­ mento aos onze é muito esparso. Mais atenção é dedicada às injunções do Se­ nhor a eles. Nos versículos 15 e s., temos palavras paralelas à Grande Comissão de Mateus 28:19 e s. Marcos, porém, apre­ senta pregai (isto é, “proclamai”) o evan­ gelho, enquanto Mateus usa um verbo que significa “fazer discípulos” ; também Mateus grafa “ todas as nações” , ou “to­ dos os gentios” , enquanto Marcos diz a toda criatura. Os fatos de chegar a crer e ser bati­ zado eram regularmente ligados, no pen­ samento dos cristãos, desde o começo. Veja, por exemplo, Atos 2:38-41 e 8:3638, inclusive a confissão adicional no V. 37; e 16:31-33. Isto não significava que o ato da imersão era considerado como essencial para a salvação; mas o teste­ munho e confissão que o batismo expres­ savam eram (e são) parte da própria essência da fé cristã. Para comentários acerca da tragédia da incredulidade, cf. João 3:18,36 e 20:22-31. Cria-se que sinais acompanhavam a obra de Deus no mundo, particularmen­ te a feita através dos apóstolos (At. 4:16, 30; 5:12; Rom. 15:18 e s.; II Cor. 12:12). Veja João 14:12: “ ...fará (obras) maiores do que estas; porque eu vou para o Pai.” O sinal de falar em línguas era freqüen­ temente evidência da vinda do Espírito, 483


conforme a narrativa em Atos; compare também I Coríntios 14:22. Expulsar de­ mônios já fazia parte da experiência dos discípulos (6:13). Pegarão em serpentes não era coisa característica dos cristãos primitivos, pe­ lo menos tanto quanto sabemos. Não obstante, o apóstolo Paulo, de acordo com Atos 28:2-6, foi picado por uma ví­ bora; e, como ele não sofreu nada, o incidente foi considerado pelo povo de Malta como um sinal de divindade. Lu­ cas 10:19 pode ter sido considerado figu­ radamente, mas pelo compilador de Marcos 16:9-20 aquele versículo deve ter sido lido de maneira bem literal. O ato de beber venenos mortais sem efeitos ne­ gativos não é mencionado em o Novo Testamento. Eusébio (III, 39) atribui a Papias (segundo século) a história de que Justo Barsabás bebeu veneno, e este nâo lhe causou nenhum dano. Escritores co­ mo Tiago também prevêem milagres de cura (Tiago 5:14 e s.), e os doze já haviam experimentado a alegria deste ministério (Mar. 6:13). Com o versículo 19, compare Lucas 24:50 e s., inclusive as palavras acres­ centadas “e foi elevado ao céu” . Atos 1:9-11 também apresenta um relato da ascenção. O fato de que Jesus estava à

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direita de Deus foi confirmado por Estê­ vão, o mártir (At. 7:56). Veja também Salmos 110:1 e as suas citações pelos es­ critores do Novo Testamento (Mat. 22: 44; Mar. 12:36; Luc. 20:42 e s.; Heb. 1:13). Eles, pois, saindo, provavelmente o fi­ zeram de Jerusalém, pois o autor não prestou quase nenhuma atenção a 16:18. Clemente de Roma, em cerca de 95 d.C., diz que os apóstolos “pregaram por todas as partes” , depois de receberem segurança, mediante a ressurreição de Jesus e a vinda do Espírito Santo (Carta aos Coríntios. 42). O fato de que o l^nhor continuamente estava trabalhando com eles (o tempo do verbo é linear) fazia parte da fé do autor desta reverente adição ao Evangelho. Um término mais curto, que ocorre em alguns poucos manuscritos, é também registrado à margem da edição RSV, in­ glesa. Ele é igualmente reverente, e igualmente reflete a fé dos cristãos que compartilhavam da dedicação de Marcos a Jesus Cristo, nosso Senhor. 56 T radução desse térm ino m ais curto, incluído n a versão RSV, em inglês: “M as eles relataram brevemente a Pedro e aos que estavam com ele tudo o que lhes tin h a sido dito. E depois disto, Jesus mesmo enviou, por meio deles, do leste ao oeste, a sagrada e im pe­ recível proclam ação da salvação eterna."




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