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Coisas sobre outras coisas Fernando Burjato
Ver arte costuma ser bom; ler sobre arte, nem sempre. Talvez porque muitos textos pareçam, no começo, falar de arte, e acabem tratando de outra coisa. Aí, lemos e assistimos às palavras se distanciando daquilo que a gente vê nos museus, galerias ou ateliês e indo longe, em busca de ancoragem num conceito filosófico, na política, na psicanálise, na sociologia (de botequim ou não) – fora da presença áspera dos objetos. Por isso, certas obras, menos palpáveis ou, vá lá, conceituais, rendem prosas mais coerentes, mais certeiras: textos ficam mais à vontade com outros textos, sem a distância complicada entre palavra e coisa. Nas entrevistas com artistas, em geral, encontramos mais frescor. Há uma sensação de proximidade com as obras, um pouco da atmosfera de ateliê, coisa que geralmente não há nos textos teóricos. Talvez porque a dinâmica entre perguntas e respostas, as pausas, a aparência de espontaneidade evidenciem o que há de arbitrário e de incompleto em qualquer conversa (e, talvez, o que há de arbitrário e incompleto nas obras de arte, diferentemente do verniz de certeza das teorias). Os diálogos entre Marcel Duchamp e Pierre Cabanne, entre Francis Bacon e David Sylvester 1 já se tornaram referências inevitáveis para os admiradores da arte do século XX e devem ser, se não as mais profundas, ao menos as mais prazerosas leituras sobre esses criadores tão diversos2. Sabor parecido encontramos em publicações que apresentam conversas com Matisse, Jasper Johns, Daniel Buren, Richard Serra, Gerhard Richter 3, assim como os muitos volumes de entrevistas 1 CABANNE, Pierre. Marcel Duchamp: engenheiro do tempo perdido. São Paulo: Perspectiva, 1987. SYLVESTER, David. Entrevistas com Francis Bacon. São Paulo: Cosac Naify, 1998. Há outro livro de entrevistas com o pintor britânico, que também pode ser encontrado em português: MAUBERT, Franck. Conversas com Francis Bacon. Rio de Janeiro: Zahar, 2010. 2 Como, talvez, o melhor livro sobre o cinema de Hitchcock seja o volume de entrevistas a François Truffaut: TRUFFAUT, François. Hitchcock/Truffaut: entrevistas, edição definitiva. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. 3 Cito aqui alguns livros de entrevistas com artistas, alguns em português e outros disponíveis apenas em inglês. Certamente estou esquecendo ou ignorando outros importantes: MATISSE, Henri. Escritos e reflexões sobre arte. São Paulo: Cosac Naify, 2007. BUREN, Daniel; DUARTE, Paulo Sergio (ed.). Daniel Buren: textos e entrevistas escolhidos (1967-2000). Rio de Janeiro: Centro de Arte Hélio Oiticica, 2001. JOHNS, Jasper; VARNEDOE, Kirk (ed.) Writings, sketchbook notes, interviews. Nova York: The Museum of Modern Art, 1996. SERRA, Richard. Writings/interviews. Chicago: University Of Chicago Press, 1994. RICHTER, Gerhard. The daily practice of painting. Chicago: The MIT Press, 1995.
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Coisas sobre outras coisas
realizadas pelo curador suíço Hans Ulrich Obrist 4. O problema em se ouvir as vozes dos artistas não está na inabilidade de muitos deles com o verbo, pois isso também pode ser revelador. Está na armadilha de acreditar no que eles dizem, em pensar que nas suas palavras – mais do que em suas obras – encontraremos suas expressões mais profundas. Para muito longe da pintura de Cézanne já se voou, por se levar tanto a sério sua frase sobre o cilindro, a esfera e o cone5. Considerar a fala de um pintor sobre seus quadros como realidade é o mesmo que afirmar que a imagem que tenho de mim é mais verdadeira do que a que têm meus alunos, meus amigos ou meu dentista. O artista certamente não possui o olhar mais crítico sobre seu próprio trabalho – por lhe faltar distância –, mas, melhor do que qualquer outra pessoa, conhece a história de como tudo foi feito, sabe que material foi processado para que a obra existisse6. E aqui não me refiro apenas ao que é concreto: tinta cerâmica, metal, máquina fotográfica, mas àquilo que circula pelo ateliê: pensamentos, história, a própria vida. É à vida, dedicada à arte, entre o ateliê (ou a galeria) e a rua, que as entrevistas realizadas por Juliana Burigo e Dayana Zdebsky de Cordova, publicadas aqui, mais se referem. São conversas com um crítico, um galerista e sete artistas7 residentes em Curitiba. Há poucas referências a obras específicas, sobre como este ou aquele objeto foram feitos, embora suas presenças sejam percebidas. O ponto de partida da maioria das entrevistas publicadas aqui é, no entanto, falar sobre Arte, e aí se acaba, ainda que meio sem querer, discorrendo sobre outras coisas, estas em minúscula, mas não por isso de menor interesse: o processo de trabalho, o mercado, a universidade, a vida na capital paranaense. As conversas, em sua maioria, começam sobre arte – ou sobre teoria da arte – e terminam sobre artistas8. Em português, há um livro recente de entrevistas com o artista inglês David Hockney: GAYFORD, Martin. Uma mensagem maior: conversas com David Hockney. São Paulo: DBA, 2011. Há também quatro livros/entrevistas publicados, há pouco, com o poeta e crítico Ferreira Gullar e com os artistas Jac Leirner, Jesús Soto, e Carlos Cruz-Diez: NELSON, Adele. Conversa com Jac Leirner. São Paulo: Cosac Naify, 2013. JIMÉNEZ, Ariel. Conversa com Ferreira Gullar. São Paulo: Cosac Naify, 2013. JIMÉNEZ, Ariel. Conversa com Jesús Soto. São Paulo: Cosac Naify, 2014. JIMÉNEZ, Ariel. Conversa com Carlos Cruz-Diez. São Paulo: Cosac Naify, 2014. 4 Obrist realiza entrevistas desde meados dos anos 1990, inspirado pelos diálogos de Duchamp com Pierre Cabanne e de Bacon com David Sylvester: OBRIST, Hans Ulrich. Arte agora!: em 5 entrevistas. São Paulo: Alameda, 2006. p. 111. Em 2003, começaram a ser apresentadas em livros. No Brasil foram publicados seis volumes, com o título Entrevistas, pela Editora Cobogó. São conversas com artistas e também com importantes personagens de outras áreas do conhecimento. A mesma editora também publicou, em 2013, uma edição apenas com entrevistas que o curador realizou com o artista chinês Ai Weiwei. Ulrich também é autor do livro Uma breve história da curadoria, que, apesar do título, consiste em uma série de entrevistas que realizou com curadores. Publicado originalmente em 2008, ganhou uma edição brasileira em 2010, pela editora BEĨ. 5 “(...) abordar a natureza através do cilindro, da esfera, do cone, colocando o conjunto em perspectiva, de forma que cada lado de um objeto, de um plano, se dirija para um ponto central”. Cézanne, em carta de 15 de abril de 1904 a Émile Bernard, citado em CHIPP, H. B. Teorias da arte moderna. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 15-16. 6 Isso tiro de uma entrevista concedida em 1963 pelo pintor norte-americano Jasper Johns a Billy Klüver: “BK: Quando você terminou uma pintura, você não sabe nada sobre ela? JJ: Sei mais do que qualquer um. Sei como eu a fiz.” (In: JOHNS, Jasper. Writings, sketchbook notes, interviews. Nova York: The Museum of Modern Art, 1996. p. 88, traduzido por mim do inglês). 7 São eles: Artur Freitas, Marco Mello, Eliane Prolik, Geraldo Leão, Rossana Guimarães, Carina Weidle, Fábio Noronha, Cleverson Oliveira e Tony Camargo. 8 Os dois únicos entrevistados que não são artistas, Marco Mello e Artur Freitas, falam, sobretudo, de teoria, e quase nada sobre suas carreiras e suas motivações. Tony Camargo, entre os artistas, talvez seja o único
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No escurinho Carina: A gente vive no escurinho aqui. Juliana: Porque não tem foco, não tem foco de mercado. Carina: Não tem. A gente está bem, acho Curitiba um ótimo lugar para se produzir arte. Dayana: Por quê? Carina: Porque convida a uma introspecção maior. Um questionamento recorrente nas entrevistas é como ganhar a vida sendo artista plástico em Curitiba. A possibilidade de pagar suas contas somente com a venda de trabalhos é um assunto pouco discutido em público e uma inquietação para muitos artistas, não só curitibanos. Nas respostas, encontramos menções a outras ocupações – na maioria dos casos, o cargo de professor numa universidade pública. Vive-se de arte na capital paranaense, embora não necessariamente apenas do comércio de obras. Como no resto do Brasil, como em muitos outros lugares. Menos citadas, mas presentes nas conversas, estão as leis municipais de incentivo à cultura – desdobramentos do mercado, como aponta Dayana na entrevista com Geraldo Leão. Desdobramentos que viabilizam, aliás, a existência deste livro. Os artistas fazem seus trabalhos, e em Curitiba há quem os venda e quem os compre. Na cidade não se fazem sentir, entretanto, as cobranças ou a ansiedade do mercado de arte. Talvez este seja mais um empecilho para que se encare o artista como profissional; isso, contudo, pode favorecer a liberdade e o debate. O escurinho, como chama Carina Weidle, chama à introspecção. Mas introspecção não é o mesmo que isolamento: quem conhece o meio das artes visuais na cidade sabe que, mesmo à meia-luz, muito se discute e se critica, não raramente com ânimos exaltados (como podem ser briguentos, os curitibanos!). A introspecção, o debate (provavelmente porque se encontra, na universidade, bons artistas como professores) e leis de incentivo certamente contribuem para que se produza arte de qualidade em Curitiba. Talvez tudo isso ocorra pela dificuldade em se ter êxito como artista na cidade – seja lá o que isso queira dizer. Se não temos clareza sobre o lugar da arte, somos convidados a pensar no que ela pode ser, em vez de no que ela é, e assim mantemos a cabeça – e a própria arte – em movimento. Se a figura do artista de sucesso não existe como um modelo a ser alcançado, se isso não é tido como possível, há que se procurar outra coisa para fazer – quem sabe até arte.
que mantém a conversa sobre suas opiniões sobre arte, citando eventualmente algum trabalho seu apenas como exemplo; Cleverson Oliveira, embora fale de sua trajetória e de seu trabalho, discorre, sobretudo, sobre o meio e o mercado das artes.
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Uma poética da vida social da arte Dayana Zdebsky de Cordova
Ah, o primeiro livro! Quantas escolhas demandam um livro! Talvez tantas quantas cabem em uma exposição, mesmo que de diferentes ordens. E nesse território não há imparcialidade possível, nem dada, nem ficcionalmente construída: abster-se da escolha é, em si, uma escolha. Acompanhar Juliana com toda sua intensidade em sua primeira incursão no mundo das palavras editadas foi uma aventura – as coisas poderiam ter sido mais fáceis, ágeis e menos dramáticas, mas duvido que o resultado pudesse ser melhor. Todos aprendemos muito com esse processo, atravessado por mudanças de cidade e modos de vida, depressões incapacitantes, morte e um nascimento. Mas tudo isso é invisível a olho nu. Conforme acordamos lá no início do projeto deste livro, quando ele era exatamente isso, um projeto de livro, uma intenção sem certidão negativa e incentivadores, minha função foi mais de segunda editora do que coeditora, mais de assistente curatorial do que cocuradora. Juliana teve a palavra final nas escolhas relativas à produção, organização e edição deste livro. Acho que fui uma espécie de diabinha sentada ao seu ombro, confrontando suas ideias, ampliando o leque de possibilidades e problematizando escolhas, explicitando minhas percepções das situações que atravessaram o projeto ou que foram agenciadas por ele. Esse lugar compartilhei, por um bom tempo, com Joana Corona – amiga e editora que faleceu no meio do processo, deixando-nos, por um tempo, imersas na escuta desse silêncio*. Tentei, após esse momento, ser também uma espécie de ferramenta de edição de texto, propondo a Juliana algumas possibilidades para as entrevistas a partir do cruzamento dos seus desejos e proposições, as observações de cada um dos artistas e as anotações deixadas por Joana nos nossos arquivos. Aqui somos, no entanto, todos autores: cada um dos nossos “entrevistados”, Juliana e eu (nós duas coautoras de todas as conversas). “Entrevistados”, assim, entre aspas, porque o que temos aqui não parte de roteiros pré-estruturados, compostos por perguntas predefinidas que orientam respostas. Apresentamos ao leitor conversas que foram adaptadas ao texto escrito. O formato conversa pode parecer menos pretensioso que uma entrevista, mas é mera aparência, uma falsa despretensão: queríamos mais do que isso, queríamos ir a outros lugares que não aqueles aonde pudéssemos chegar sozinhas, queríamos ouvir o que interessa ao outro, queríamos a surpresa de cada encontro. E assim nossas conversas tomaram
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Uma poética da vida social da arte
diferentes rumos, definidos ao sabor do momento. Lógico que essa abertura não significou ausência de interesses: cada uma das pessoas que tem voz neste livro, assim como Juliana e eu, tem seus interesses. Meu interesse, que é o único sobre o qual me sinto autorizada a falar, recai na socialidade1, conceito dos antropólogos que, traduzido para o mundo das artes, talvez seja uma espécie de poética da vida social da arte. Por vida social da arte não me refiro apenas à vida de pessoas, físicas e jurídicas, mas também à vida social dos trabalhos artísticos e tantas outras coisas a eles relacionadas, sejam elas físicas ou virtuais – vidas essas que só existem em conjunto e que, mais do que somadas umas às outras, formam o que chamamos de arte contemporânea. Na minha forma de ver, sentir, pensar e escutar arte, paira a certeza da indissociabilidade entre arte e aquilo que nós, os antropólogos, inventamos2 e chamamos de cultura – termo do qual estamos, aos poucos, nos desvencilhando. E também paira a dúvida sobre a dissociabilidade entre o que alguns analistas/produtores da arte chamam de análises poéticas e institucionais da arte3. Não vejo o que os artistas, críticos e historiadores chamam de poética de outra forma que não como a vida social da arte. Pois não existe poética sem uma vida social da arte, assim como a poética está na vida social da arte – e vice-versa 4. Este livro contém esculturas de gelatinas doces como o mar; a liberdade e o silêncio do fazer artístico; equívocos como parte da produção artística; a necessidade de escutar pinturas e esculturas. Aqui, você verá um dorso nu e arrepiado de uma artista transformado em uma língua gigante. Em algumas das páginas deste livro, a Arte (por vezes assim, com “A” maiúsculo) é tratada como uma operação de distinção de determinados objetos do mundo. Em outras páginas, arte é uma tentativa de lançar pontes comunicacionais dentro deste mundo. Nas palavras aqui transcritas, o leitor pode caminhar dos holofotes nova-iorquinos à meia-luz curitibana. Com o olhar atento à urdidura das linhas e suas entrelinhas, a leitora talvez perceba algumas das tais regras da arte não tabuladas, mas introjetadas, que ultrapassam trajetos, histórias, processos ou localidades específicos. Neste livro habitam artistas, instituições, teóricos, obras de arte; histórias, interesses, afetos e até mesmo desafetos velados – pois toda vida social, das pessoas e das obras de arte, é feita de aproximações e distanciamentos, de amores e desamores. É um livro sobre arte e seu avesso, este último muitas vezes só acessível a partir da fala daqueles que a praticam. Pois não existe uma vida social da arte sem poética. A (o) artista (o historiador, o museu, a galeria, o colecionador, o crítico, a socióloga, a história, a antropóloga...) faz (obra de) arte ou é feita (o) pela (obra de) arte? 1 Para algumas rápidas linhas sobre o termo socialidade, ver STRATHERN, Marilyn. No limite de uma certa linguagem. Mana, 5 (2), 1999. p. 157-175. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_ arttext&pid=S0104-93131999000200007&lng=en&tlng=pt. 10.1590/S0104-93131999000200007. 2 WAGNER, Roy. A invenção da cultura. São Paulo: Cosac Naify, 2010. 3 Uma sugestão de apresentação sobre tais formas de analisar arte, na qual o leitor pode encontrar diferentes referências sobre elas: FREITAS, Artur. As três dimensões da imagem artística: uma proposta metodológica em história da arte. In: Anais III Fórum de Pesquisa Científica em Arte. Curitiba: Escola de Música e Belas Artes do Paraná, 2005. Disponível em: http://www.embap.pr.gov.br/arquivos/File/anais3/arthur_freitas.pdf 4 O termo socialidade, tal como é acionado na antropologia, contrapõe-se à ideia de social enquanto categoria. Nesse sentido, seria um equívoco utilizar socialidade como sinônimo de vida social. No entanto, poética e social, no contexto das artes visuais, são termos muitas vezes utilizados como contrapostos e, nesse sentido, quando acionados juntos, somam-se, mas, também, anulam-se. No meu cálculo, nesse encontro de perspectivas de teorias antropológicas e das artes visuais, dizer que pensar a arte em termos de socialidade é pensar a poética da vida social da arte equivale, portanto, a dizer que pensar a arte em termos de socialidade é pensar a vida da arte.
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*Dedico cada minuto de engajamento neste projeto e toda transpiração dele decorrente para Joana Corona, pelas conversas e parceria infindas.
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CONVERSAS SOBRE Juliana Burigo
Sobre o livro: até ou além do objeto Este livro surge da vontade de estabelecer diálogos e buscar sentido para as diversas questões que abrangem o universo das artes visuais (as experiências de e com arte, as movimentações relacionadas ao meio artístico, a produção e fruição artística, o mercado de arte...). Também se incluía nessa vontade então pessoal (que pretende tornar-se pública aqui) a busca de sentido para minha própria produção artística. Além de olhar para o que fez e faz, o artista precisa da relação com o outro para entender a si mesmo, não esquecendo o prazer que há em refletir sobre arte e seus assuntos. Foram os momentos em que presenciei e participei de debates e discussões a respeito de arte, obras, exposições, ou mesmo durante montagens de exposição (ou a lembrança e os resquícios desses momentos), que ativaram em mim a percepção de que essa minha vontade deveria chegar mais perto das pessoas. Um pouco desses debates ou desses artistas e personagens poderia ser publicado. As pessoas que aqui conversam são algumas das que participam do meio de arte de Curitiba, algumas poucas dentre as muitas que existem na cidade e que têm ou tiveram importância tanto para mim como para outros artistas, para as pessoas do meio artístico e para o público, principalmente local. Suas atuações como artistas, pensadores, professores ou instrutores, promotores, estimuladores e influenciadores de pensamento, também participando de júris e conselhos diversos de museus e instituições e estando muito presentes nas universidades, revertem para a cidade e o meio artístico-intelectual curitibano e o brasileiro. Como sabemos, as atuações muitas vezes ultrapassam o local, reverberando em pessoas diversas e em outros pontos do globo, seja por conta do trabalho ou do discurso. Inclusive, por serem os assuntos de arte tanto específicos quanto abrangentes, tanto localizados quanto mundiais, este livro não se restringe à capital paranaense com relação a seu conteúdo. No entanto, creio que é para esta cidade no Paraná e para o circuito brasileiro que se dá o seu maior significado, porque, de certa forma, traz à tona pontos de encontro, tensão e embate que são travados entre os membros desses circuitos.
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CONVERSAS SOBRE
As conversas aqui publicadas aconteceram de maio a julho de 2009 e de novembro de 2012 a fevereiro de 2013. A seleção das pessoas se deu em decorrência de um desdobramento entre esses dois períodos distintos. O primordial e mais arbitrário critério de escolha foi o limite material, financeiro, relacionado ao trabalho e à viabilidade de execução, forçando-nos a ser bem seletivas. As primeiras pessoas, escolhidas em 2009, representam personalidades que influenciaram meu trabalho e a mim enquanto artista 1. Como uma consequência desse momento inicial e uma oportunidade de ampliar e expandir do meu referencial pessoal para uma correspondência também com elas próprias, as demais pessoas foram sugeridas pelas primeiras (esta foi uma grande ideia da Dayana para o aprofundamento do projeto). A definição final foi minha, contando com as opiniões de Dayana e analisando os conjuntos de sugestões possíveis2. Alguns critérios utilizados foram (de acordo com diversos fatores relacionados com a minha opinião e avaliação): cada pessoa ter o nome indicado entre ao menos um dos entrevistados; atentar para os nomes que se repetiam nas sugestões; o gosto pelo trabalho dos artistas indicados; minha análise pessoal da importância e potência de seu trabalho; o fato de serem considerados historicamente importantes para a constituição do meio em Curitiba, principalmente por suas atuações artísticas, mas também como ativistas ou atuantes no cenário. Outros nomes de pensadores, galeristas, críticos e professores estavam apenas nas listas minha e de Dayana, não sendo citados pelos primeiros entrevistados; por isso, não foram incluídos outros agentes que não artistas. E, ao ter de optar entre um crítico e um artista, por exemplo, acabo preferindo o último, principalmente pelas obras, mas também por gostar muito dos textos de artistas. O conjunto de pessoas que se formou representa um agrupamento de muitos olhares que admiro. E são mesmo as obras de arte, destes e de tantos artistas, que me motivaram, em primeira instância – por isso, até, a grande necessidade de as imagens estarem aqui, no corpo do livro, dialogando também3.
1 Como parte da contrapartida que ofereci em um projeto relativo à minha produção artística executado pelo programa Bolsa Produção para Artes Visuais 3 da FCC/PAIC, eu me propus a gravar e transcrever conversas com algumas das pessoas que influenciaram meu pensamento e produção (mais especificamente o trabalho e projeto que estava realizando no momento, que abarcava uma discussão da tridimensionalidade), pessoas por vezes próximas a mim, outras menos, e que fazem parte de determinado círculo social curitibano, no qual transito. Convidei, para efetivar esta contrapartida junto comigo, Dayana Zdebsky de Cordova, uma amiga pessoal, que estava ligada à pesquisa em arte pelo olhar da antropologia. As pessoas eram: Artur Freitas, Carina Weidle, Cleverson Oliveira, Marco Silveira Mello e Tony Camargo. Nós registramos em áudio as conversas (de uma forma genérica e informal), que pretendiam captar um pouco do pensamento dessas pessoas sobre arte. O material foi transcrito, editado e reescrito por nós (excluímos o possível das nossas perguntas aproximando as falas a ensaios – uma estratégia para poupar tempo e trabalho). Após a revisão realizada pelos próprios “entrevistados” elas foram agrupadas sob o título de Conversas sobre arte, e disponibilizadas em mídia digital ao Centro de Documentação e Pesquisa Guido Viaro, no Solar do Barão, em outubro de 2009. A entrevista com Marco S. Mello foi excluída deste CD por conta de problemas com prazos, e foi, então, retomada para o presente livro. 2 Já tínhamos quatro registros de conversas finalizados, resultado do trabalho de 2009, e propusemos um projeto de publicação deles em livro, acrescentando mais quatro outras a serem realizadas. A ideia foi pedir aos participantes iniciais (Artur, Carina, Cleverson e Tony) sugestões de pessoas consideradas de relevância artísticocultural para o meio de arte de Curitiba, para serem “entrevistadas” e comporem o corpo do livro junto com eles. Foi uma das possíveis escolhas, porque todos nós indicamos de quatro a cinco pessoas e nem todas se repetiram no conjunto de indicações... Não sei se foi a melhor, mas é muito difícil fugir de um gosto pessoal, e de uma direção. 3 Os casos de Artur Freitas e Marco S. Mello são exceções porque na época, em 2009, eu estava próxima deles e de suas ideias a respeito de arte (muito por causa do Tony). Marco não chegou a indicar nomes para o livro, porque minha decisão de retomar a conversa com ele aconteceu em 2012-13.
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Foram entrevistados no ano de 2009 Artur Freitas (crítico, historiador e professor universitário), Carina Weidle (artista e professora universitária), Cleverson Oliveira (artista), Marco Silveira Mello (historiador e galerista) e Tony Camargo (artista). Em 2012 e 2013, Eliane Prolik (artista), Fábio Noronha (artista e professor universitário), Geraldo Leão (artista e professor universitário) e Rossana Guimarães (artista e professora universitária). As conversas, apesar da distância de realização entre elas, não expressam esse lapso em seu conteúdo. A equipe tratou de cuidar para que houvesse um feedback generoso entre edição e entrevistados, e mesmo as que ocorreram em 2009 foram revistas para a presente publicação4. Também não sugerimos aqui uma ordem para a leitura das conversas, apenas deixamos evidentes e marcadas suas datas, como de fato aconteceram. O leitor pode e deve se sentir muito à vontade para orientar a leitura a seu bel prazer. Joana Corona, nossa editora, chegou a discutir e construir com Dayana uma ordem que, segundo elas, considera o fluxo e a fluência de leitura de acordo com a sequência dos textos, os encontros entre as falas e o “peso” ou complexidade delas, mas que não cheguei a adotar porque não foi possível uma interlocução maior sobre o assunto e não consegui abarcá-la sem a presença de Joana5. Mas deixamos aqui, em homenagem a ela, registrada sua sugestão de leitura, nesta sequência: Carina Weidle, Cleverson Oliveira, Tony Camargo, Fábio Noronha, Marco Mello, Rossana Guimarães, Artur Freitas, Eliane Prolik e Geraldo Leão. Os sete artistas e dois teóricos são “questionados” a partir do olhar de uma jovem artista, não tão jovem assim, que sou eu, e uma antropóloga que pesquisa arte contemporânea, a Dayana, minha parceira desde o início. Esses encontros são tratados e nomeados como conversas porque, como elas, são abertos e não fechados e, apesar de existir quem pergunta e quem responde, isso poderia ser alterado sem impedimentos. A conversa é muito característica, já que eu e Dayana (principalmente eu), aparecemos falando e emitindo opiniões em praticamente todas elas. O ponto de partida, na maioria dos casos, foi indagar sobre arte e arte contemporânea, para desencadear o papo, que, daí, toma seus rumos. São conversas simples, sem “preparo” de ambas as partes, apenas em disposição ao diálogo, e que, muitas vezes, desviam para diferentes assuntos e oscilam entre vontades minhas e de Dayana6. 4 Para uma descrição desse processo, ver Detalhes da edição, p. 326. 5 Joana faleceu em 16 de março de 2014 e, depois disso, as conversas ainda sofreram alterações. 6 Em geral, nossas perguntas e motivações surgem de acordo com a conversa, o ambiente, as obras que estamos vendo, etc., mas acho que podemos identificar duas vontades que de certa maneira constituem nossas bagagens, mesmo não instituindo uma regra nas conversas: a de aprofundar questões artísticas e das obras por mim, e de se adentrar nas relações sociais estabelecidas culturalmente entre obras e personagens e investigar o meio artístico, pela Dayana. Vontades complementares, mas que direcionam a conversa para lados distintos – quando falamos de um museu, por exemplo, não estamos falando de nada relativo à profundidade da obra de um artista, nem de como realizou determinado invento, que coisas passaram por ele antes de uma determinada execução, durante e depois, como a diferença entre uma intenção e sua realização, entre tantas outras especificidades. Assuntos que adentram as relações entre as obras e suas implicações para os artistas (tanto relacionados à produção das obras, quanto às problemáticas nelas contidas). A não ser que o museu (ou o que quer que seja) esteja problematizado no trabalho de tal artista. Mas as obras passam pelos museus e esses museus constituem visualidades, formam lugares para a arte (no imaginário, na vida e na sociedade) – a partir das obras de arte. Este processo é parte do contexto cultural e social em que as obras, os artistas, o público e os outros personagens transitam, que se aproxima mais das relações cara a cara dos sujeitos e das obras e seus percursos, e da própria vida; e menos dos embates reais, ou utópicos, ou profundos e intensos, ou necessários e entregues com os tais objetos, por aqueles que os produzem (sem ideologias ou misticismos). Uma zona, diga-se de passagem, nada confortável.
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CONVERSAS SOBRE
Nossas “questões” não foram programadas de antemão, somente às vezes alguma pergunta inquietante e latente para uma pessoa tal. Em geral, apenas esboçamos coisas de nosso interesse para que pudéssemos permitir que os assuntos se desenvolvessem de acordo com o momento nosso e de cada entrevistado, com a mudança de cada um frente a cada novo dia, a cada condição e/ou o desenrolar de cada conversa – a resposta que cada um pôde dar para aquilo naquele momento, coisas que reverberavam em seu pensamento cotidiano e em sua prática artística, ou um reflexo/resposta (àquela pergunta que pôde ser feita também naquele momento – uma pergunta/reflexo). O livro traz percepções semelhantes e diferentes – inclusive sobre o que é ou não arte, ou o que pode ser; formas de se relacionar com o meio, com o mercado, pensamentos, vivências, teorias, elucubrações. Cada texto é o registro de um encontro com uma pessoa/um momento, algumas horas apenas, e não tem a pretensão de descrevê-las em sua total abrangência e complexidade, nem de relacionar os assuntos à sua história ou a marcos históricos vividos por elas, de dentro da arte. Não tem a ver tanto com biografias, mas com a mistura e existência dessas biografias no amplo universo das artes plásticas. As perguntas não buscavam o máximo “entendimento” de cada entrevistado sobre um tema, mas, antes, acompanhavam a conversa, considerando cada vivência artística e com a arte, percursos e atuações dentro do campo e um pouco do “olho mágico” através do qual cada um vê e vive este universo: cada modo de ver determinadas coisas, com todos os limites deste formato, do próprio recorte temporal e do fato de ser o registro de um momento também editado. Contudo, os assuntos nos revelam muitas coisas e se mantém atuais, mesmo variando dentro de cada perspectiva pessoal. Pode ser estranho, até, fazer um livro com momentos tão, de certa forma, fugazes, mas é justamente isso que me encanta (e também à Dayana) neste projeto, um livro de “sopros”, um paradoxo: a materialização de um momento – quase como um frame cinematográfico (dos 25.000 frames do Cleverson) ou um frame da vida, uma imagem, uma fotografia, um registro. Acho que este livro tem um pouco essa dimensão. Algo abrangente dentro de um recorte, um olhar e vida específicos, peculiares e intransferíveis. O pessoal dentro do público. A questão de pensar a arte enquanto coisa pública – a partir do que é pessoal e único – evocando um coletivo maior, colocando a arte como atuação comprometida com a sociedade. E isso de alguma forma se expressa no conteúdo do livro, talvez, porque esteja realmente presente no pensamento, na vida e na fala de cada uma destas pessoas7. Outra coisa que ficou, por vezes, expressa em minhas falas (e que talvez seja também uma motivação para mim especificamente) foi a vontade de tentar encontrar ou de investigar como nascem as escolhas de cada um, principalmente as escolhas para se fazer um trabalho de arte. Claro que é uma investida utópica e que já prevê o próprio fracasso. Mas, como consolo, reaparece na relação do indivíduo com o contexto histórico e cultural, porque a criação de um artista é um misto dos aspectos individuais e sociais8. 7 Podemos observar isso clara e especificamente num trecho da fala do Fábio: “Portanto, eu só faço arte na medida em que coloco meu fazer, minha prática, em relação a um público, a um sistema, a outras pessoas que vão repensar e colocar esse objeto como um problema dentro de circuitos possíveis, junto comigo”. 8 Geraldo trata desse assunto, ao menos, nas suas duas primeiras falas. Aqui vai um trecho pequeno:
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O leitor é convidado a uma experiência quase antropológica nestas leituras: através das falas e conversas, muitas coisas vão se revelando, à sua maneira, ao seu tempo. Minha participação evoca um pouco essa sensação, por conta da relação de certa proximidade com as pessoas: como se, no processo de desenvolvimento do livro, ela fosse semelhante a uma janela, ou abertura para se enxergar “de dentro” as coisas, algo como posicionar uma câmera no interior de uma cena, pela qual a câmera passa a estar envolvida. Não sou entrevistadora, nem historiadora, nem teórica, na verdade, sou uma metida que resolveu fazer um livro de entrevistas para inventar uma forma de conversar com pessoas e poder mostrar isso a outras. E essas definições, ou essa necessidade de definição (e autodefinição), penso como uma herança que nosso processo de escolarização, incluindo a academia, nos traz. Tirei uma licença poética para criar e conduzir isto de uma maneira muito aberta. Acho que posso até olhar o livro por outro ângulo, talvez por estar também imersa nele. Muitas de minhas opiniões, ideias, questões e ingenuidades estão expressas nas minhas falas, coisas que tenho que assumir (nem a edição pode reverter, e nem foi essa a intenção). É interessante notar como eu também sou um personagem nesta história (como bem tratam do assunto Artur Freitas e Cleverson Oliveira em suas falas), ou uma figura neste jogo/álbum (como fez o amigo e colega C.L. Salvaro em seu trabalho Álbum9) e também o público deste acontecimento extra-ordinário. Desse assunto tratam Geraldo, dizendo a mim que “Curitiba somos nós”, Fábio, comentando sobre sua lista de e-mails, Tony, expressando que é ele quem vê e atesta primeiramente ao seu trabalho o caráter de arte ao afirmar: “Quando o objeto está ‘pronto’ [....]”, ou que algo se configura enquanto objeto de arte para o público “apenas quando esse objeto, que já ‘conferi’ como arte, efetivamente passa a existir no mundo da arte, o que na prática significa a sua exposição”, e também Eliane, falando do aumento de público causado pelos investimentos de grandes museus e universidades e mencionando a importância dos museus para nossa formação visual. Na introdução do livro A arte da entrevista10, organizado pelo jornalista Fábio Altman, ele comenta que a entrevista é “a técnica mais produtiva em busca da informação correta”. Ao ler a frase, fiquei intrigada. Porque técnica produtiva ou informação correta são termos muito definidores e restritos para as divagações possíveis ou as outras possibilidades que podem surgir em uma conversa ou entrevista, inclusa a de não se chegar a lugar algum. Logo percebi que este seria um pressuposto para quem tem a “correta” pergunta, ou de quem quer especular alguma resposta, talvez um pressuposto jornalístico ou investigativo de algo, o que pode ser válido para uma entrevista sobre arte com um artista (aliás, isso acontece muito), mas acho que seguimos na contramão desse “Então, esse ponto de contato entre a história, a cultura e a vida fenomenológica – aqui e agora – é que é o momento da arte, o momento do trabalho”. Outro: “Mas o que o trabalho, o que a vida da gente trata é dessa mistura de acontecimentos que é única, que é sempre irrepetível, que, às vezes, tem a ver só com a sua subjetividade, com a sua experiência pessoal, junto com essa carga que recebemos pronta da cultura. E o nosso trabalho como artista é lidar com esse fio da navalha, onde tudo está junto”. 9 Álbum, 2006-07. Serigrafia, 10,5 x 9 cm cada. “Partindo do circuito local da arte em Curitiba, o artista propôs a criação de um álbum onde as ‘figurinhas’ são retratos de pessoas ligadas ao meio artístico.” Do texto de Marcos Hill, Inserções afetivas em circuitos permeáveis, disponível em: http://salvaro.tumblr.com/textos/marcos_hill 10 ALTMAN, Fábio (Org.). A arte da entrevista. Trad. Inês Antonia Lohbauer, Maria dos Anjos Santos Rouch, Rosane Pauseiro Pousada. São Paulo: Scritta, 1995.
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raciocínio. A forma como conduzimos todo o processo e nos colocamos frente a cada pessoa justamente questiona esse correto e a existência de uma técnica produtiva rígida. Afinal, qual seria a informação correta? O que pode ser dito correto em arte? Como definir o que é arte? Uma técnica produtiva está a serviço de quê? Sabemos que cavamos algumas respostas, fomos atrás de algumas informações, não em busca da informação correta, mas de uma informação reveladora, ou em busca de uma revelação, daquilo que se dá naquele instante e naquela circunstância. Até porque a vida é dinâmica e os diferentes interesses dos agentes envolvidos com arte – que a produzem, veiculam, mensuram, comercializam e promovem (artistas, pensadores diversos, galeristas, especuladores) fazem-na se ressignificar e se expandir constantemente. O que temos, creio eu, é, a partir de Curitiba, uma introdução ao pensar da arte por aqueles que a produzem, a experienciam e a escrevem de alguma forma numa história – uma construção dada por individualidades. Um start para discutir questões de arte na contemporaneidade. O livro é mais um parto meu. Mais um, porque já tenho dois. E uma coisa que aprendi com eles é que existem coisas para as quais necessitamos nos entregar. Não adianta querer controlar tudo calculadamente, o controle se dá na medida da confiança e da entrega. Um processo transformador. Todo o cuidado que mantive foi para preservar a essência daquelas falas, daquelas pessoas, daqueles encontros, das trocas e sensações ali contidas (outra utopia levada a cabo). Poder conversar, ouvir as gravações muitas e repetidas vezes, entrar nas conversas, foi, para mim, uma experiência muito forte e concentrada de revelações e uma escuta de mim mesma. Além de surpreendente, pois muitas suposições ou ideias foram quebradas, reformuladas e transfiguradas no ato da conversa. Acredito que o processo de quem lida responsavelmente com arte seja esse, de estar sempre preocupado e questionando o que está instituindo ou edificando, mas, como comentam Rossana e Eliane, mantendo a liberdade necessária. E construindo o que for de uma forma a não estar fechando nada... como principalmente fazem os artistas.
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Sobre nós: um pouco da minha trajetória, minha relação com Dayana e nossa parceria neste livro Formei-me na Embap/Unespar em 2004. A faculdade, confesso, foi uma experiência um tanto frustrante no aspecto artístico-intelectual, apesar de ter havido muita diversão em meus anos de bacharelado, movimentando-me pelos circuitos culturais da cidade. Tive de parar os estudos por um ano porque engravidei e, em maio de 2001, dei a luz à querida Valentina, primeira, grande e intensa transformação em minha vida. Concluí, então, o curso dois anos após o devido. No final de 2003, realizei o primeiro trabalho importante para mim, uma instalação para o 60° Salão Paranaense. O que contribuiu para isso e para a minha mudança radical de percurso, sem dúvida, foi eu ter conhecido os artistas Tony Camargo e Cleverson Salvaro naquele mesmo ano. Ficamos muito companheiros e com Tony tenho uma relação mais íntima que se estende até os dias de hoje. A influência deles na forma como passei a ver o “mundo da arte”, as obras de arte e os artistas foi grande. Pude acompanhar suas discussões e conversas, a maneira respeitosa como tratavam os trabalhos de cada artista, os diálogos empolgados sobre novos trabalhos e sobre artistas paranaenses como João Osório Brzezinski e Miguel Bakun, por exemplo, bem como sobre as exposições que aconteciam em Curitiba, no Brasil e no mundo. Além disso, tive com eles a oportunidade de realizar diversos projetos (bem importantes para mim foram a intervenção nas escadas do SESC da Esquina e o Escritório, ambos em 2004 11), de receber seu incentivo artístico e, através deles, de conhecer outras grandes pessoas do meio. A convivência com Dayana já é mais antiga, remonta a 1997, ambas então com 16 anos. Fomos amigas de bairro, tivemos uma relação bem próxima quando adolescentes e depois nos afastamos um pouco por decorrência das universidades, mas mantínhamos contato. Em 2004, Dayana foi para Santa Catarina trabalhar com o ERRO Grupo, que fazia teatro de rua, performances e intervenções urbanas (coisa que ela já produzia aqui em Curitiba com a Companhia Silenciosa). Cursava Ciências Sociais na UFPR e seu foco era antropologia desde o primeiro ano. Antes de ir para Florianópolis, já era bolsista de iniciação científica e trabalhava com arte contemporânea (naquela época, intervenções em espaços públicos e urbanos). Terminou a graduação em 2005 e, em 2007, entrou no mestrado em Antropologia, com a proposta de continuar estudando a arte contemporânea e seus fluxos, mas 11 Em 2004 foi realizada no MAC-PR a proposta de uma exposição coletiva com 18 artistas, encabeçada por Otávio Roesner, William Machado e Tony Camargo. Para ela, o grupo realizou algumas reuniões e numa delas surgiu o Escritório. Uma proposição coletiva levada a cabo pelo Cleverson Salvaro, eu, a Vanessa Chaves de Carvalho e o Tony, e realizada durante o mês de setembro de 2004, onde nós montamos em uma das salas do museu um escritório e trabalhamos nele todos os dias, agenciando e divulgando ações artísticas (como exposições e eventos que aconteciam na cidade) e organizando diversos debates e falas abertos ao público geral. Participaram dessa exposição: Bruno Tomé, C.L. Salvaro, Cirilo, Cláudia Costa, Claudia Washington, Juliana Burigo, Juliano Antoceveiz, Karen Ricci, Lilian Gassen, Lívia Piantavini, Lúcio de Araújo, Marlon de Azambuja, Otávio Roesner, Renato Neotti, Tatiana Stropp, Tony Camargo, Vanessa de Carvalho e William Machado. Nessa exposição surgiu o convite para alguns artistas realizarem intervenções nas escadas do SESC da Esquina, durante o Congresso Internacional do Medo. Eu realizei um trabalho chamado Plano Inclinado, um desenho de esmalte sintético vermelho brilhante sobre as paredes, piso e teto do local. Os artistas eram: C.L. Salvaro, Vanessa Chaves de Carvalho, Margit Leisner, Juliana Burigo, Lúcio de Araújo, Tony Camargo e William Machado.
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desta vez a partir de suas instituições (museus, universidades, editais, salões...). Por conta do mestrado, onde pesquisou o trabalho do Tony, ela passou a ir com mais frequência à nossa casa. Em 2005 e 2007, incentivados pelo diálogo existente entre alguns artistas mais experientes – em especial o Tony e o Cleverson (como já mencionei), mais a Lilian Gassen, a Lívia Piantavini, o William Machado e a participação nas oficinas com Geraldo Leão –, eu, Fernando Rosembaum e Bruno Tomé realizamos, juntos, duas exposições importantes com debates abertos ao público, Preâmbulo e Dois, ambas realizadas no Memorial de Curitiba. Em 2008, juntamente com outros artistas, participei de um grupo onde discutíamos a produção de cada integrante alternadamente. Grupo que começou pequeno, com os integrantes do Pipoca rosa12 e a Tatiana Stropp, para discutir pintura, e que foi se abrindo para novas participações – chegaram a participar (talvez faltem alguns nomes aqui, pois muitas pessoas entraram e saíram ou participaram algumas poucas vezes): Tony Camargo, Lilian Gassen, Lívia Piantavini, William Machado, Tatiana Stropp, Deborah Bruel, C.L. Salvaro, Simara Ramos, Fernando Rosembaum, Marisa Weber, José Mianutti, Jack Holmer, Felipe Scandelari, Daniel Chaves, Cristiane Silveira. Dayana participou como ouvinte em algumas das reuniões, que ocorriam nos ateliês, nas exposições ou onde estivesse o trabalho do artista da vez. A Joana Corona acompanhou o Cleverson (C.L. Salvaro) uma vez, pelo que me lembro, e o Marco Mello, o Fernando Burjato e a Ana Brengel chegaram a participar de uma reunião. Também houve uma reunião na casa do Otávio Roesner. Nesses encontros, um artista mostrava seu trabalho e o grupo debatia abertamente todas as questões a respeito dele que estavam ao seu alcance. Essa experiência em grupo foi muito importante para mim, no sentido de discussão e aprofundamento sobre o que produzíamos. Em 2009, paramos sem explicação os encontros do grupo, simplesmente não voltamos a agendá-los, cada um seguia seus trabalhos e vida. Eu produzia meus trabalhos para a Bolsa Produção, um projeto em que eu tinha uma verba considerável para realizar obras, e convidei a Dayana para ser minha parceira na realização da contrapartida: as conversas. Como ela estava pesquisando e se envolvendo com o cenário artístico curitibano, para ela poderia ser algo interessante e proveitoso, e, por ser uma pessoa próxima e me conhecer há tanto tempo (inclusive numa relação pessoal), poderia ajudar a desvendar coisas importantes para mim nesse trabalho, a mim mesma, e me auxiliar na minha busca (porque já me aconselhava em meus projetos e textos anteriormente). Um olhar mais teorizado e disciplinado – ou acadêmico – , um olhar externo de observadora e pessoa “comum”, alguém que poderia puxar os assuntos ou as questões para o entendimento geral: dúvidas de quem não está muito acostumado com termos e expressões específicos utilizados para o debate de arte, um jargão que existe ali como em outros campos do conhecimento. 12 Grupo Pipoca rosa, composto por Lilian Gassen, Lívia Piantavini, Otávio Roesner, Raíza Carvalho, Tony Camargo e William Machado. Em 28 de novembro de 2000, o grupo realizou a Performance das pipocas, que consistiu em distribuir 10.200 pacotes de pipoca de canjica na frente das principais instituições artísticas de Curitiba. Não se consideravam um grupo artístico, a não ser por essa ação, mas mantinham regularmente encontros de debate dos trabalhos individuais de cada integrante.
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Como as conversas seriam gravadas em áudio, e nós tínhamos a intenção de deixar a coisa fluir o mais espontaneamente possível, o controle foi uma coisa banida de minha vista (até porque eu me permiti perdê-lo e talvez nem fosse capaz de o manter caso quisesse, mesmo). De certa forma, a Dayana foi a pessoa escolhida para trazer um pouco desse controle durante as conversas e, ao mesmo tempo, não tornar a conversa tão específica a ponto de ser entendida apenas pelos nossos pares. Certamente eu fui surpreendida com cada situação, cada debate, e o encontro com cada pessoa foi diferente em vários aspectos. Mesmo o que pensava da Dayana muitas vezes se inverteu, porque a conversa foi levada para um rumo totalmente diferente do que eu esperava e, até mesmo, queria. Esse fato acabou ampliando o leque de possibilidades e rumos para cada conversa e também evidenciou as diferenças de cada uma. Acho que juntas buscávamos uma ajuda para ver o mundo... E acho que nossas relações continuam a se estender nesse sentido. Para registrar, durante a produção deste livro, um tempo longo, a vida, que seguia sem brechas, nos deu suas surpresas. Antes de realizar a primeira conversa em 2012, minha segunda filha, Olga, nasceu, nos preenchendo, nos completando e reativando em nossa vida familiar a alegria, a intensidade, a transformação e o amor. Esse foi um acontecimento que me despertou outros olhares sobre este livro, sobre as relações acadêmicas, sobre o circuito de arte, sobre a forma como vida, arte e responsabilidade se conjugam e me causou grande impacto, e ainda causa, por evocar em mim um processo de reavaliação pessoal. Dois anos e três dias depois, nossa amiga e parceira Joana faleceu, deixando uma falta grande em nossos corações e entorno. Nesse meio-tempo, outras coisas não deixaram de acontecer, mas de fato aqui não cabe a menção, pois se trata apenas de um livro, e não de uma vida toda (como eu talvez pense).
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Conversamos com Tony Camargo na noite de 27 de maio de 2009, em seu ateliê-residência no bairro de Santa Felicidade, em Curitiba; na época, um escritório no piso superior da edificação. Este é um ambiente em que estamos em casa. Juliana, literalmente, pois Tony é seu companheiro, e Dayana, pelas inúmeras visitas que já fez ao casal. Esta foi a primeira conversa realizada, da série que apresentamos no livro.
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1: FP10, 2007. Impress達o inkjet sobre tela aplicada em poliestireno, 55 x 71 x 5 cm. Acervo MACRS.
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Juliana: Tony, gostaríamos de ouvir e registrar um pouco das suas opiniões, do seu modo de ver o mundo e pensar arte e, também, do seu posicionamento como artista. Dayana: Pensamos em abrir as conversas com uma questão bem genérica: o que é arte contemporânea? Como você pensa e se relaciona com ela? Em minha opinião, você é um artista que pensa a arte de uma forma bem calculada. Gostaria de ouvir um pouco sobre isso e sobre como você está se inserindo no meio artístico. Tony: Penso muitas coisas... O simples fato de querer ser não transforma ninguém em um artista, acredito que essa é uma das principais coisas a se levar em conta. Por melhor que seja o “curso”, a “escola” que você faça, ser artista é sempre algo consequente do ato de criar e produzir arte, consequente de uma produção. Acho que, quando um indivíduo decide criar uma arte eminentemente contemporânea, que passará a expor publicamente, está assumindo uma responsabilidade muito grande. Tenho várias questões na cabeça, um monte de loucuras... Eu me expresso através da arte, faço com arte as coisas, e não faço uma arte que possa ter bula, receita ou ingredientes. J: E como você pensa seu posicionamento, seu lugar como um artista profissional? T: Meu posicionamento pode ser entendido a partir do trabalho que faço. Estou consciente da dinâmica e da logística de desenvolvimento que ele pode ter no mundo. Muitos de meus trabalhos chegam ao limite da ideia palpável de imagem, e quase não existem coisas palpáveis neles. Mas confecciono coisas reais, realmente são objetos o que faço, objetos que demandam e dependem de uma logística de existência. Então, estou sempre prestando atenção nisso. Não sou o melhor empresário do meu trabalho porque não invisto em sucesso e dinheiro, invisto em outras coisas, mas creio saber suficientemente como administrá-lo. Até o momento, pelo menos, tenho conseguido manter-me em condições satisfatórias profissionalmente. Para mim, o mercado está ativado no museu e em quaisquer outras instâncias do meio artístico da mesma forma que está na galeria e na feira de arte, tudo se move e funciona automaticamente em um mesmo sentido. Ser um profissional, pensar em uma carreira, produzir a obra, tudo isso tem o mesmo sentido, que o mercado rege. As exposições são todas consequências do mercado, não só nas galerias, nos museus também, em todos os lugares. O mercado está envolvido ou se envolve sempre, direta ou indiretamente. Para mim, portanto, ser um artista profissional é manter efetivamente uma pesquisa visual no mercado de arte. J: O que é ou qual é o limite da ideia palpável de imagem? Como assim? T: Quis dizer que meus trabalhos, mais especificamente os Fotomódulos1 e as Planopinturas2, mesmo sendo tão objetuais, não são tão “maciços”, porque se 1 Fotomódulos, série de trabalhos do artista onde ele articula imagem fotográfica, pintura e objeto. Exemplos são as imagens 1, 5, 11, 12 e 13. 2 Planopinturas, série de trabalhos do artista onde ele faz uma espécie de referência a projetos de possíveis
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fundam e se firmam na natureza atemporal da imagem em um raciocínio planar, ou virtual. Uma Planopintura, por exemplo, tem a função de conceber a existência de algo externo à sua quadratura, de projetar uma ilusão. Desse modo, mesmo embora ainda haja sobre a tela a tinta da impressão e a fisicalidade do pigmento, a imagem deixa de ser tão palpável. Esses trabalhos estão justamente nesse limite, para o meu entendimento. J: E o que você vê de importante, percebendo o contexto e a produção contemporânea, que te leva a fazer as escolhas (formais, poéticas e conceituais) que você faz no seu trabalho? T: Penso que as escolhas não são decisões, são consequências. Eu penso que o artista, mesmo desejando, não deve simplesmente fazer escolhas a partir daquilo que vê, seja no mundo ou no seu meio particular. É possível, mas é muito difícil escolher... Creio que é mais saudável o artista tentar desenvolver, o mais espontaneamente possível, algo específico que seja ainda estranho ao seu conhecimento, que de alguma forma escape de todos os problemas já resolvidos por outros artistas que conhece, para, aí sim, obedecendo à natureza daquilo que já foi iniciado, fazer as respectivas escolhas. Se perguntássemos ao Volpi por que ele escolheu pintar bandeirinhas, provavelmente não teríamos em sua resposta uma razão particular, porque ele simplesmente estava dentro da coisa. Chega um momento em que a obra escolhe o caminho necessário a ser trilhado, portanto, mesmo que queira, não é mais o artista quem escolhe o que fazer. Com meu trabalho tem sido assim, atualmente. J: Assim como o Volpi encontrou as bandeirinhas, você encontra coisas. O que o faz continuar depois que você encontra essas coisas? T: O que me faz continuar são as coisas que ainda não encontrei, que ainda não sei o que são. Sempre preciso encontrar algo novo para poder conhecer a natureza desse algo, e não simplesmente para conferir ou atestar sua existência. O que acontece é que um bom trabalho apresenta um conhecimento que se amplifica, algo que está sempre em continuidade. Isso é natural. Eu sempre acho que não sei fazer as coisas. Não que eu seja modesto, sei que sei fazer bem o que faço, mas também sei que não posso me convencer. Se quero que tudo se desenvolva naturalmente, não posso achar que o trabalho, por melhor que fique, já encerra o assunto geral da pesquisa. Preciso manter minhas dúvidas e curiosidades. D: Você fica inconformado? T: Não necessariamente, porque a tensão é tão forte que se me sentir inconformado creio que posso até acabar depressivo. Mas realmente eu nunca estou satisfeito. D: Há pouco, você falou sobre a responsabilidade de se fazer arte contemporânea. Você pode falar um pouco mais sobre isso? pinturas. Exemplos são as imagens 2, 3, 4, 7, 8, 9 e 10.
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2: P53, 2012. Impressão inkjet sobre tela aplicada em poliestireno, 53 x 73 x 5 cm. Coleções: Sérgio Carvalho e Itaú Cultural.
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3: P35, 2008. Tinta sintĂŠtica sobre MDF, 121 x 69 x 5 cm.
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4. P55, 2012. Impress達o inkjet em tela aplicada sobre poliestireno, 62 x 62 x 5 cm.
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5: FP56, 2010. Impress達o inkjet sobre tela aplicada em poliestireno, 57 x 65 x 5 cm.
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T: Fazer arte não é apenas criar algo bonito, impressionante ou virtuoso. Muito mais que isso, é necessário descobrir e revelar exatamente por que o bonito, o impressionante ou o virtuoso existem e como existem. Foram muitos os artistas que já fizeram e pensaram a arte antes da gente, e isso gerou um conhecimento que não pode ser omitido ou desconsiderado. Para transmitir um pensamento de arte, a palavra que o escritor vai utilizar em seu texto, por exemplo, é muito importante, porque ele está sendo responsável pela formação cultural. É difícil pensar em algo que venha antes da cultura, mas parece que a arte vem. Não posso fazer cultura, simplesmente, assim como não posso usar apenas o domínio técnico para fazer um trabalho, uma pintura. Tenho que fazer uma coisa estranha à cultura, mas que esteja relacionada a ela de alguma forma, como se eu fosse uma espécie de gerador de cultura. Enfim... A grande responsabilidade de se fazer uma arte contemporânea é esta, a de que você está gerando um novo conhecimento, que deve revelar e ajudar a transformar o contexto atual, mas que significativamente só existe firmado sobre as bases de um conhecimento já estabelecido na história e na cultura. J: Tem uma frase de um texto seu de 20083 da qual eu gosto muito: “buscar o belo na clareza, não na verdade”. D: Qual a diferença entre clareza e verdade? T: No caso desse texto, acho que eu estava querendo dizer que não me interessa afirmar alguma verdade ou descobrir cientificamente por que é que o mundo existe, por que é que as sensações existem. A verdade, assim como prova, frustra. Para mim, às vezes, até interessa mais não descobrir nada, deixar as coisas como estão, mas conseguir vê-las integralmente, com muita clareza. Criar uma obra de arte não significa simplesmente obter o resultado de uma equação matemática, é muito mais que isso, é revelar o desconhecido sem encerrar seu mistério, é transcender a matéria, é obter um avanço espiritual. J: Por que um avanço espiritual? Você consegue explicar? T: Porque, assim como todo trabalho dignifica o trabalhador, a obra de arte também dignifica o artista, e a intensidade, a força do trabalho realizado, é o que mede essa dignidade. Na arte, sentir-se digno pelo trabalho é extremamente reconfortante para o processo mental, de modo que o artista passa a contemplar e compreender a existência real de algo novo, algo que transcendeu seus limites mentais, e é nisso, nesse fenômeno, que identifico – embora saiba que essa é uma forma de visão particular minha – um aprendizado natural de vida, como se fosse uma espécie de respiro, que expande a sensibilidade do espírito. Ou seja, vejo o artista como alguém que sente intensamente na sua prática, a cada passo, o progresso da alma em cumprir sua tarefa neste mundo. D: Parece-me que é importante para a arte contemporânea ser problematizadora e 3 CAMARGO, Tony. Texto da exposição Tony Camargo, 2008. Galeria Casa Triângulo, São Paulo. Disponível em: http://www.tonycamargo.net/index.php?option=com_content&view=article&id=4:tonycamargo&catid=2:textos&Itemid=4
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não afirmativa. Se ela é afirmativa vira ingênua, não cria um campo de tensão, fica como se fosse uma alegoria daquilo que alguns chamam de cultura – enquanto algo contraposto à arte – e, na verdade, ela pretende outra coisa, não? T: Pelo que percebo, existe um grande número de artistas fazendo uma arte que, ao contrário do que deveria ser, não é problematizada ou problematizadora, não é expansiva e não tem essa tensão como você está colocando. Porque as informações contidas em seu trabalho, embora verdadeiras, já existem no mundo e realmente funcionam, mas não como arte, porque não abrem nenhum caminho para discussão. A maioria dos trabalhos atuais, principalmente dos artistas mais jovens, têm sido afirmativos de uma simplória verdade já conhecida. Sem entrar na questão ser arte ou não ser arte, que penso ser muito mais profunda, tenho a impressão de que hoje o ingresso profissional se dá cada vez mais cedo, por exemplo. Por isso, penso que a coisa vai ficar complicada para a arte contemporânea, ou para essa falsa arte contemporânea. Já está complicada, na verdade, mas disfarçada pelo sistema. O design, a publicidade, a moda, o jornalismo, o cinema, e ainda outras artes como a música e a dança, todos estão concebendo questões verdadeiras do mundo através de tradições de linguagem específicas, como a pintura, por exemplo. Esse conhecimento está acumulado. Tem muitas coisas que vemos como obras de arte em museus e galerias que não nos oferecem nada além do que um trabalho de design, de moda, oferece. São trabalhos que não entendo como fenômeno da arte, como pesquisa e investigação, e sim como uma simples criatividade formal baseada no que já existe no mundo, como fazem os designers e os estilistas que são, inclusive e muitas vezes, mais responsáveis e investigativos do que os próprios artistas. Infelizmente, a meu ver, vemos muitos artistas “perdendo feio” para outros profissionais no seu próprio ramo. Essa é realmente uma situação problemática da arte contemporânea, o fato de os artistas saberem tão pouco e acharem que sabem demais. Se transformaram e se autoidentificaram como artistas antes da hora adequada, muitos por deixarem a vontade de “ser artista” se sobrepor à vontade de conhecer a arte, e por conta disso fazerem escolhas tão simplórias que nem mesmo conseguem possibilitar um eventual desenvolvimento à pesquisa. D: Será que muitos artistas, por um outro senso de responsabilidade ou por um saber diferenciado, acabam se permitindo experimentar mais e levar sua relação com a arte às últimas consequências, jogando com as coisas do mundo e deixando que o trabalho vá se constituindo? Alguns artistas se permitem um processo investigativo que tem como proposta se colocar no mundo e descobri-lo, um processo que está em outro lugar que o conhecimento acadêmico sobre arte, por exemplo, está. T: Esse é realmente o princípio de muitos artistas contemporâneos, que fazem uma arte livre e deliberada, desvinculada de qualquer compromisso que o “eco” do modernismo possa trazer. Aliás, esse argumento baseia a obra de Andy Warhol, e está no centro da pop art e da poética de vários artistas até mesmo anteriores, como uma liberdade quanto ao compromisso criativo explícito no pensamento modernista. Liberdade pela qual o artista pode desenvolver qualquer coisa a priori, e o avanço da
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linguagem seria dado pela sua escolha, independente de uma relação direta da obra com a história da arte e com a produção dos outros artistas. O problema atual criado pelo mal-entendido e pela confusão que se faz disso é bem grande. Acho que seria mais fácil vermos, hoje, boas exposições de arte contemporânea se colocássemos no museu o meu avô fazendo o balaio de taquara dele. Ou artistas populares que fazem sim a coisa livremente, através de uma escolha, mas que ao menos prestam atenção na coisa que estão fazendo e correspondem à sua real natureza. Você encontra, no produto que o artesão está fazendo, a arte dele. Aí é que está o problema dos artistas: em muitos trabalhos não se encontra a arte, só a ideia. Não adianta achar que podemos colocar novamente coisas dentro de uma janela, fazer com que as pessoas olhem para dentro dela e vejam a vida, é impossível. Você pode fazer o que quiser, mas não tem como se livrar da natureza da linguagem que usa. Então, por mais livre que seja em relação à linguagem, penso que, se você se esquecer desse compromisso natural, a partir do momento em que já está dialogando com alguma tradição, provavelmente não será bem-sucedido na sua arte. Ela não vai ser bemfeita e pode cegar você. Porque criar brinquedos e brincadeiras e impor isso como se fosse arte, alegando simplesmente o fato de ser um sujeito autor livre, é uma grande irresponsabilidade e um desserviço para a sociedade, a meu ver. Outro dia, em uma exposição coletiva em São Paulo que tinha dois trabalhos meus, o curador e a equipe de montagem acharam por bem relacionar os trabalhos pelo seu formato externo, fazendo com que as duas peças praticamente se transformassem em um único trabalho, coisa que eu jamais faria, mas que realmente acontece todo o tempo em curadorias e exposições coletivas. Preocupo-me em mostrar o meu trabalho sempre nas melhores condições porque não posso, nem quero, enganar ninguém. E, mesmo que quisesse, não tenho esse direito. Não me considero especial, mas em sua maioria os artistas não estão preocupados com isso, estão preocupados apenas com suas carreiras e se seus trabalhos estão “bonitos”. Se estão nos museus, eles já se sentem satisfeitos e, inclusive, ficam orgulhosos porque acreditam cegamente que esse é um verdadeiro mérito. Acho que existe pouca atenção à crítica de arte em geral. Tem que se chamar a atenção da crítica e dos responsáveis pelas curadorias. Os muitos críticos, que em ocasiões específicas se tornam curadores, e os muitos profissionais curadores, devem refletir profundamente sobre o que estão fazendo. A meu ver nem é possível ser um curador. Você pode ser um pesquisador, um crítico, um professor, um artista e, inclusive, ser curador naquele momento determinado, mas ser especialmente curador profissional não é possível por uma questão de termo. Afinal, o que estabelece e define a função de curador não é uma ciência ou conhecimento específico de curadoria, mas sim o ato ocasional de curar, ou seja, de tematizar, levantar, selecionar e organizar elementos para um evento momentâneo específico. As pessoas envolvidas com curadorias e com a crítica de arte precisam prestar mais atenção ao que estão fazendo, parar de colocar maus trabalhos no museu e de jogar a responsabilidade nos artistas, dizendo: “A arte está assim, a arte é isso!”. A arte não é isso não, quem está dizendo isso são os críticos, os curadores. Eles deveriam prestar mais atenção porque, ao contrário do que a tendência sugere, a arte não morreu.
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6: Sem título, 2009. Acrílica, têmpera e fita adesiva sobre papel, 14,5 x 19,5 cm. Coleção particular.
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7 e 8 (p.48): P22, 2007. Tinta sintética sobre MDF, 90 x 175 x 05 cm. Coleção particular.
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9: PF290, 2015. ImpressĂŁo inkjet, verniz PU, tinta e pasta de polĂmero acrĂlico sobre tela aplicada em poliestireno, 68 x 55 x 5 cm.
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10: PF350, 2015. ImpressĂŁo inkjet, verniz PU, tinta e pasta de polĂmero acrĂlico sobre tela aplicada em poliestireno, 82 x 33 x 5 cm.
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11: FP66, 2013. Impress達o inkjet sobre tela aplicada em poliestireno, 59 x 64 x 5 cm. Cole巽達o particular.
12: FP65, 2013. Impress達o inkjet sobre tela aplicada em poliestireno, 54 x 69 x 5 cm.
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13: FP57, 2010. Impressão inkjet sobre tela aplicada em poliestireno, 63 x 59 x 5 cm. Coleção particular.
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J: Será que o descompromisso por parte dos artistas com a história e com a linguagem que utilizam não está relacionado à tentativa, do meu ponto de vista frustrada, de estabelecer novos parâmetros para a arte? T: Certamente é isso. Há muito tempo já não é possível colocar novos parâmetros para a arte. O Duchamp já “urinou” nos novos parâmetros há quase um século. Creio que o que importa hoje é como ainda fazer arte e não como continuar a quebrar paradigmas. Ainda existem muitos artistas com vontade de fazer uma arte que crie problemas para a lógica da vida no mundo, o que é bom, mas a maioria está acomodada. O fato de não ser mais necessário buscar novos paradigmas em arte não a torna algo fácil de ser feito, a arte é sempre rara. J: Você poderia falar mais sobre essa vontade de fazer uma arte que crie problemas para a lógica da vida no mundo? T: Quis dizer que, embora seja uma ínfima minoria, ainda existem artistas para quem fazer arte é sempre, de alguma forma, levantar problemas e questões paradoxais para o mundo em seu respectivo contexto. O poder que a arte tem de manifestar o diferente, o inesperado, o novo, o despadronizado, enfim, é algo que está sempre interferindo na lógica dos sistemas, muitas vezes desagradando boa parte da sociedade, principalmente quem deseja guiar as massas. Mas inegavelmente essa força contrária, quase corretiva, da arte é fundamental para o avanço de qualquer cultura, basta analisarmos a história da arte ocidental para conferirmos esse fato. D: Em que momento um objeto que você está criando se configura enquanto um objeto de arte? T: Do meu ponto de vista, no momento em que ele não depende mais de mim, em que o seu processo de criação naturalmente termina e a coisa para de se transformar e cria autonomia. Quando o objeto está “pronto”, deixo-o em algum lugar acessível para que possa observá-lo depois, com o olho descansado. A partir de um determinado momento, começo a enxergar aquilo de outra maneira, e então surge o trabalho aos meus olhos. Já do ponto de vista do “outro”, ou do espectador, apenas quando esse objeto, que já “conferi” como arte, efetivamente passa a existir no mundo da arte, o que na prática significa a sua exposição. D: E o movimento de apropriação de uma linguagem da rua, ou arte de rua, pelas galerias e instituições que tradicionalmente se ocupam de obras de arte? T: Para mim é perfeitamente explicável esse momento, que me parece ser o grande momento do graffiti ou da arte urbana no cenário e no mercado de arte. Isso é consequência do que aconteceu no começo dos anos 1980 nos Estados Unidos, com o Keith Haring, com o Basquiat, Kenny Scharf e companhia, embalados principalmente pela filosofia imagética de Andy Warhol e da pop art. Foi nesse momento que nasceu essa possibilidade. Depois da pop art, do minimalismo, da land art e da arte conceitual, a pintura era considerada uma coisa morta, acabada.
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Naquele momento, buscar fazer arte de vanguarda passou a ser considerado algo inútil, não se via mais razões para isso e nem havia o que já não tivesse sido feito em arte, já não existia mais o que fazer. Foi aí que se introduziu fortemente a ideia do uso da pintura como pura linguagem formal e como linguagem aberta, que nunca teve e nem tem fim. Isso se firmou na crítica até mesmo pelos apontamentos que aconteceram depois do expressionismo abstrato, através do minimalismo e de pintores como Frank Stella, Peter Halley e Philip Guston, por exemplo. Viuse, assim, a grande possibilidade de trabalhar a pintura sem, necessariamente, precisar desenvolver problemas novos. Esse retorno da pintura, sem o velho compromisso com a busca, com o progresso, abriu margem para que se pudesse aceitar nas galerias, e depois nos museus, um Basquiat, por exemplo, feito numa tela, como pintura, porque o trabalho possuía o caráter suficientemente pictórico e investigativo que uma verdadeira pintura deveria ter. Foi assim que o graffiti entrou definitivamente como arte nos museus e nas galerias. No Brasil, vivemos hoje um significativo momento de expressão dessa arte, principalmente movido pela apregoada sugestão da “liberdade em arte”, da “liberdade criativa”, de que “todos podem fazer arte”, ou até mesmo de que “qualquer um faz arte”. Isso rapidamente ficou bem estabelecido no meio na atualidade, e vemos cada vez mais no museu artistas que trabalham com o graffiti. Mas o real problema não é esses trabalhos estarem lá, nos museus e galerias, o problema é o fato de a maioria dos artistas não ter a menor consciência do que significam os limites de uma quadratura, do que significa fazer uma pintura sobre uma tela, por não ter, enfim, conhecimento pictórico. A partir do momento em que você aplica tinta sobre uma tela, independentemente da técnica, você está imediatamente dialogando com a tradição, quer queira, quer não. E, se você coloca isso dentro do museu, então, está dialogando com uma tradição das mais específicas que existem. Uma história muito específica, mesmo. Esse é o contexto em que o seu trabalho vai ser significante, e é nele que eu vou ver o trabalho. Sem essa noção do contexto, e geralmente é isso o que acontece, vemos apenas uma superfície, apenas uma estética vinda de outro lugar, e raramente vemos um básico problema de arte sendo desenvolvido. J: Te interessa muito esta questão de trabalhar a pintura sem ter uma linguagem nova, sem o compromisso com a busca e o progresso, como você disse há pouco, por quê? E, também, você se referiu na sua fala a uma “verdadeira pintura”; como assim? T: Identifico a impossibilidade de progresso numa evolução do pensamento da pintura no estado em que a prática da linguagem se encontra hoje. Mas não entendo como boa pintura aquela que, ancorando-se nisso, é feita por razões estritamente formais ou meramente estéticas, ilustrativas ou decorativas, cuja existência se dá unicamente pela autorização arbitrária do pintor. Preocupo-me muito em como manifestar a pintura no mundo de uma forma íntegra com relação à sua necessidade de existir e problematizar o contexto imagético em que está inserida. Sobre ser ou não uma verdadeira pintura, é simples. A pintura é algo específico, estabelecido por pensamentos e ações históricas, unicamente pelo que conseguimos
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compreendê-la. Algo que, por ser específico, também é limitado, ou, como talvez um pintor diria, contido em seus próprios limites. Isso, durante séculos, quer queiramos ou não, estabeleceu parâmetros para o desenvolvimento da linguagem no decorrer da história até os dias atuais ou, pelo menos, até algumas décadas atrás, para os “menos conservadores”. Então, seguindo o que foi aprendido pela própria linguagem nesses séculos de prática, obviamente é possível distinguir o que é pintura do que é desenho, processo pictórico, estudo ou qualquer outro algo que apenas utilize ou faça alusão à pintura e que, portanto, não seja estritamente pintura. A meu ver, embora eu compreenda a ambiguidade, mas também deliberadamente assuma o peso dessa afirmação, apenas o que é estritamente pintura é “verdadeira pintura”. D: O que você pensa sobre a exposição de documentos e registros de trabalhos? T: Acho que expor documentos de alguma coisa feita, na maioria das vezes, não permite ao espectador ter a noção do que é o trabalho. E, ainda que permitisse uma noção, no meu modo de ver, sempre haveria a necessidade de uma problematização desse documento como objeto/obra dentro do museu. O museu não é o lugar adequado para você simplesmente informar alguém de algo. Isso seria, como disse o Mário de Andrade, “uma estupidez que toca as raias do vandalismo”4. Ele disse isso para o caso de se emoldurar um desenho. Escreveu que desenhos são feitos para ser lidos. E, da mesma forma, usar o museu para simplesmente passar uma informação é algo que considero uma estupidez. Eu não posso fazer algo performático aqui no meu ateliê e usar o museu simplesmente para informar que esse algo foi feito aqui ou para dizer onde este algo está acontecendo. Fazendo isso, eu estaria usando à toa um espaço cultural, um espaço social, que não é apenas meu. Existem mídias muito mais apropriadas, funcionais e eficazes para isso que o museu – como a internet, a televisão ou o telefone. Mesmo que, no museu, você consiga mostrar claramente através de um documento ou registro um fenômeno que acontece ou que aconteceu em outro lugar, a condição de estar dentro do museu necessita ser justificada como trabalho, como obra, e isso é necessário até mesmo para se expor uma fotografia, por exemplo. Não dá para você simplesmente fazer uma fotografia, escolher aleatoriamente um suporte, colocar no museu e pronto. Isso é um desuso do espaço físico de exposição. Essa é uma preocupação minha. É por isso que meus trabalhos com fotografia, por exemplo, têm um formato peculiar e uma escala específica, porque eu preciso encontrar a justa razão de existência desses objetos no mundo. J: Duas coisas que você falou me chamaram a atenção: a primeira é sobre o lugar que é o museu. Como você pensa esse lugar? A segunda, sobre encontrar a razão justa de existência dos objetos no mundo. Você pode falar mais sobre isso? T: A meu ver, o museu de arte é um lugar apropriado exclusivamente para manter e apresentar a arte à sociedade e ao mesmo tempo distingui-la dos objetos “comuns” do mundo, ou das coisas que não são arte. 4
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ANDRADE, Mário de. Aspectos das artes plásticas no Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, 1984.
Quanto à existência do objeto, posso te dizer o seguinte: uma foto comum, que registra a ação de uma performance, pode ser impressa em diversas escalas. Não há razão, que não seja meramente alegórica ou simplesmente decorativa, para imprimi-la em uma escala específica. Para mim, é um problema ter que escolher a escala dessa foto. Expor no museu, então, sem considerar precisamente isso, é algo impossível. Nem mesmo a escala “acertada” satisfaz para mim a necessidade de uma explicação íntegra, e totalmente visível na obra, que esclareça por que uma imagem que pode ser digital, ou impressa em várias mídias, ocupa aquele tamanho específico, aquele corpo, aquela existência no mundo, enfim... Os Fotomódulos apresentam quadraturas irregulares, ou não retangulares, justamente por isso... Suas curvas são guiadas pela dinâmica das linhas das formas contidas nas próprias imagens fotográficas, de modo que nada na obra é aleatório, toda escolha é uma obediência severa ao caráter regido pelos passos anteriores do processo... Eu quero dizer, portanto, que preciso resolver meus trabalhos – e é assim com todas as séries – de modo que o próprio objeto final, o objeto da obra, explique clara e exatamente, por si só, através do caráter e das relações de todos os seus detalhes, por que foi criado ou concebido em sua forma específica. O trabalho precisa ser impecável nisso, porque estou consciente de que isso, e somente isso, é a arte que há nele. D: E, enquanto artista, o que realmente importa para você? T: Eu gostaria de encontrar outros artistas para discutir arte e produção de arte na atualidade. É como em antropologia. Pensemos em três antropólogos que pesquisam um mesmo assunto: um vai para a África, outro para a Oceania e o terceiro vai para a China. Aquele que está na África encontra um osso, o que está na China, uma peça de metal e o outro encontra um outro objeto. Então, eles se reúnem e cada um oferece uma contribuição com sua descoberta para a discussão do mesmo assunto. Esse seria o tipo de discussão saudável em arte e que eu sempre desejei. Mas infelizmente não existem artistas para discutir dessa forma, nem eu mesmo conseguiria ser completamente disponível para isso. O que existe são artistas se formando como bons fazedores de determinada coisa. Então, isso acaba virando uma escola insuficiente, onde um ensina para o outro apenas técnicas e formas, e nunca se discutem os problemas filosóficos, sociais e ideológicos que encontramos no mundo e na arte atual. Embora a forma seja uma das coisas que mostra o assunto, deveríamos sempre pressupor que nosso trabalho já foi bemsucedido formalmente para poder, a partir disso, conversar com o outro artista. O desenvolvimento do trabalho tem que estar ligado a alguma coisa maior que o próprio objeto ou além dele. Eu pressuponho o artista como um conhecedor de arte. Então, o encontro que imagino entre esses artistas seria um encontro entre verdadeiros conhecedores de arte preocupados com o planeta Marte, com o fim do mundo ou com a vida após a morte, por exemplo. A conversa que eu gostaria de introduzir seria sobre o que ainda pode ser descoberto no mundo ou sobre o mundo (mesmo que cientificamente falando)... O que é que já descobrimos afinal sobre nossa existência e o que isso nos diz, para saber se a gente pode e deve continuar fazendo arte. Enfim, gostaria de discutir a linguagem e a expansão da linguagem nos dias atuais e num possível futuro previsto. 57
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14: VP017, 2012. Vídeo digital, 22’’, som.
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15: VP15, 2012. Vídeo digital, 30’’, som.
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D: Um crítico uma vez me falou para parar de conversar com artistas e levar minhas questões às obras de arte, ver obras de arte. O que você acha disso? T: Acho que em determinados aspectos pode fazer sentido, em outros, às vezes, pode ser chatice do crítico. Porque os artistas criam problemas para eles, não só com o trabalho, mas a partir da conversa também. Pode ter certeza disso. Todo artista que tenha um bom trabalho é habilitado a falar sobre ele. É um desrespeito pensarmos o contrário. Artistas não são seres distintos apenas em relação à expressão da forma, nem são macacos com pincel na mão. O fato de muitos artistas não conseguirem se expressar com o verbo se deve geralmente à sua personalidade, e não a uma eventual incapacidade de raciocínio. Não tem como ele não estar consciente do que faz. O que o artista diz é sempre muito importante. São poucos e raros os textos de críticos de arte que alcançam o nível de textos de Matisse e Richter, por exemplo. O artista é sempre direto, não faz voltas. O que o crítico às vezes precisa de um livro inteiro para falar, o artista pode falar em uma simples e curta frase. Talvez o que o crítico em questão quis lhe dizer é que, independentemente do que o artista fale, o trabalho é sempre o trabalho. Não é o argumento do artista que vai fazer o trabalho, e nada que ele fale poderá transformar o que ele fez. Então, realmente, a melhor pergunta para quem quer conhecer arte deverá ser dirigida para os próprios trabalhos. A arte, no nosso caso, é um conhecimento visual, então você precisa olhar, precisa ver o trabalho. Até porque muitas das coisas que eu posso falar sobre meu trabalho, por mais claras que possam ficar nas ideias, quando consideradas e provadas na física análise frente a ele, terão para você outro aspecto. Você vai percebê-lo de outro jeito, com outra forma de organizar o raciocínio. A sua inteligência visual vai lhe dar sempre a melhor possibilidade de análise. É sempre o trabalho que pode nos oferecer o assunto da melhor maneira, mas em hipótese alguma isso significa que o artista não tem consciência do que faz. J: O que você pensa sobre arte, o que realmente importa para você quando falamos de arte? O seu trabalho é atual? Como você pensa a relação entre a arte e a vida? T: Sinceramente, não sei responder exatamente o que penso e o que importa para mim na arte. O termo “arte” para mim refere-se à ação de aperfeiçoar algo ao seu limite extremo. Seja o que for esse algo, se for bem-feito, é arte. A história das artes visuais é fundamental para eu pensar o que quer que seja, de modo que nada é novo o suficiente no mundo para que eu possa ver alguma coisa por meus próprios olhos... Creio que fazer arte, no meu caso, se tornou um dever, mesmo eu não sabendo exatamente o que faço. Sobre o trabalho ser atual, embora eu creia que não haja como se criar algo necessariamente revelador ao mundo hoje, tento fazer um trabalho que seja novo e estranho ao contexto sempre. Na medida em que percebo e sinto o estado e a transformação do contexto, ajo como se estivesse prevendo o futuro ao escolher meu caminho. Todos sabemos que a relação entre arte e vida é um assunto extremamente paradoxal. Eu levo muitíssimo em conta todas as divergentes aspirações que esse assunto naturalmente me desperta na hora de fazer meu trabalho. É possível até
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16: Sem tĂtulo, 2010. AcrĂlica e fita adesiva sobre papel, 19 x 22,5 cm.
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17: Sem tĂtulo, 2010. AcrĂlica e fita adesiva sobre papel, 18 x 22 cm.
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afirmar que meu trabalho está calcado na tensão desse paradoxo... Encontrar-se com a vida através da arte talvez seja a maior utopia do artista sempre, em todas as épocas. Entendo a própria história da arte como a história dessa utopia. Hoje, muitos dizem que a arte se agregou à vida de tal forma que não é mais possível distinguir com clareza uma da outra, de modo que qualquer operação atípica à vida “pode” ser arte, independentemente de como é feita. Esse tem sido o rumo de uma enorme produção plástica atual, desvinculada de compromisso com a história de qualquer linguagem específica e concentrada ou na técnica, ou na narrativa, ou na virtuosidade. Para quem adota esse ponto de vista, de onde a arte está na vida e “não depende” de nada além da própria vida para ser arte, o argumento é de que já “não é mais necessário buscar nenhum problema para a existência dela”. Creio que este cenário não é, nem nunca foi, desejado pelos bons artistas, mas é a consequência natural de um meio que se tornou eminentemente mercadológico. A meu ver, a arte é até mais parente da morte do que da vida, porque a vida é a natureza e a arte é o resultado de nossa ação humana que transforma a natureza. Portanto, a arte acompanha, mas não pode ser a vida em si e, ao ser confundida com a vida, inclusive e automaticamente, deixa de ser arte.
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Esta conversa aconteceu dia 2 de junho de 2009, na casa de Juliana. A tarde daquela terça-feira, ensolarada e fria, foi regada a um delicioso café Blackbourbon, produzido no sítio do marido de Carina, Fábio Scatolin, em Ribeirão Claro, interior do Paraná. O café foi um presente da artista para a dona da casa. Sentadas à mesa da sala, enquanto o cheiro da bebida sendo preparada por Juliana tomava conta do ambiente, Carina contou um pouco como é a sua relação com os livros, dizendo, entre outras coisas, que às vezes gosta de reler algum deles depois de muito tempo e perceber que o livro é outro, porque o tempo passou modificando tudo... Juliana serve o café e o papo gira em torno dele e de detalhes de sua produção, do sítio, de seu nome e de sua embalagem e então, em tom de graça, Carina comenta que o design de seu rótulo se parece com o de uma caixa de cigarros Marlboro.
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Juliana: Eu sempre fiquei pensando como é sua relação com o Fábio. Porque conheço muitos casais de artistas, até pela minha própria experiência, e sempre quis saber como é o relacionamento de um artista com alguém que trabalha em algo completamente diferente. Porque a arte parece que nos envolve tanto, envolve toda a nossa vida. Dayana: Pois é, artistas casam entre si. Antropólogos também gostam de casar entre si... Como é a sua relação com o Fábio, Carina? Vocês conversam sobre arte? Carina: Um pouco, mas a vida é também outras coisas... Acho bom isso. O Fábio, no entanto, sempre me incentivou muito na arte. Fábio é economista e tem um interesse especial em desenvolvimento econômico. Ele é professor da Universidade Federal do Paraná. Fomos juntos para a Inglaterra. Ele foi fazer o doutorado e eu, estando lá, fiz mestrado. Isso há 20 anos, em 1989. Meu primeiro pensamento foi um tanto influenciado por ele, pelas coisas que comecei a reunir para fazer escultura – antes eu fazia gravura em metal no Solar do Barão, primeiro com a Sandra Correia e, depois, no ateliê da Uiara Bartira. Eu também pintava um pouco na época. J: Você se formou na Belas Artes? Em quê? C: Sim, em Pintura. Só tinha Pintura naquela época, ou Licenciatura em Desenho. Mas, na Belas, acho que minha experiência com escultura foi mais marcante. Minha professora foi a Ligia Borba. Lembro que um dos trabalhos que fiz deu meio errado e percebi que fazer escultura era tão trabalhoso que jurei para mim que escultura nunca mais... Anos depois, tomei como regra “nunca dizer nunca”... D: Por que você foi fazer ateliê de gravura no Solar do Barão? C: Por quê? Não sei, não tinha essa pergunta. Quando se é jovem se faz um pouco o que está disponível. Eu pensava: “O que posso experimentar? O que posso fazer?” e tinha ali no Solar toda uma estrutura para gravura. J: É interessante este início na arte... Parece-me que a maioria dos artistas inicia sua relação com a arte pelo desenho: de repente se percebe desenhando, então procura algo para fazer relacionado a isso. Normalmente tudo começa pelo desenho. C: É. A Belas Artes sempre foi forte no desenho. Agora, pensando no desenho, a gravura colocava-se para mim como seu avesso. Uma maneira de descobrir o que não estava inscrito em contornos, ver as coisas ao contrário. D: E como o Fábio influenciou seu pensamento em arte? C: Quando fui para a Inglaterra, ia a museus, mas cada vez mais fui conhecendo os espaços interessantes de arte contemporânea. E estava acontecendo um boom na escultura, muito objeto, instalação e uma liberdade no uso de materiais que não lembrava ter visto antes com tanta profusão. Do mesmo modo, podia-se observar essa liberdade na arquitetura e nos objetos cotidianos, como aspiradores de pó, tomadas e caixas de distribuição de luz nas ruas. Morávamos em Harpenden e
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eu me lembro de andar de bicicleta por campos colhidos onde estavam colocados os rolos de feno como se fossem seres alienígenas. As construções de madeira e os termômetros também indicavam uma metamorfose. Era algo misterioso e estético. Isso tudo, para mim, se misturava com um discurso sobre paradigmas tecnológicos que não era meu, mas era muito do que os estudantes de doutorado em Economia falavam quando se reuniam. Os objetos do cotidiano e a arquitetura eram tão diferentes, mas de forma curiosa alavancavam distantes memórias minhas da infância, principalmente da casa da praia em Albatroz, no Rio Grande do Sul, acho que pela imagem da casa que tínhamos, pelo vazio das dunas, que modificavam sua forma por rolar. Eu pensava muito em legendas para os objetos, parecidas com os rótulos de distribuidores de eletricidade que encontrávamos na rua. Por exemplo, os primeiros desenhos que fiz quando estava lá tinham quadrados brancos do lado, que eram vazios, quase como se fossem indicações de possíveis textos sobre aquele desenho. Eles eram como se fossem chaves ou pensamentos sobre aquilo. Mas o texto era ausente. Então, comecei a me interessar por materiais diversos e objetos encontrados e passei a juntá-los. A primeira coisa que fiz foi ordená-los, pensando nas grandes revoluções científicas/tecnológicas que estava lendo em Thomas Kuhn1. Um desses objetos era uma bateria muito antiga. Todos eles eram velhos e carregados de história. Então, uma orientadora que tínhamos trabalhando conosco no estúdio, e se chamava Claire Scanlon, falou que eu estava partindo de verdades que estavam sendo passadas para mim. Disse-me que eu estava simplesmente ilustrando uma ideia. J: Ela disse isso quando você mostrou os objetos que achava interessantes? C: Sim, quando os mostrei a ela. J: Você já tinha feito alguma coisa com eles ou eram simplesmente objetos, sem nenhuma interferência sua? C: Não, eles estavam no ateliê, em processo, eu estava tentando conformar alguma coisa. D: Esses objetos antigos, de um lugar distante, eram estranhos para você? C: Sim, para mim, eram muito estranhos. Quase como se tivessem uma função, uma lógica, mas ela era misteriosa, eu não sabia bem qual era. Eu me perguntava qual a relação que buscava entre eles. A primeira sintaxe que encontrei foi referente à história do desenvolvimento tecnológico, ou seja, o que era a tecnologia, os paradigmas da energia que moveu tudo, a eletricidade, o vapor, etc... D: E como você se situava em relação a essa história de tecnologia e paradigmas tecnológicos, saindo de um lugar e indo para outro tão diferente? C: Eu estava simplesmente buscando uma lógica que ordenasse a atração por 1 KUHN, Thomas. A estrutura das revoluções científicas. Trad. Beatriz Vianna Boeira e Nelson Boeira. São Paulo: Perspectiva, 1991.
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aqueles objetos. Tinha o interesse no misterioso e na materialidade desgastada deles, o que eles haveriam significado no passado. A orientadora a que me referi antes, Claire, foi uma pessoa muito generosa comigo. Aliás, dentro do programa de mestrado, tive contato com algumas pessoas muito generosas, entre elas a Alison Wilding, uma artista madura com um trabalho muito interessante. Ela me ajudou bastante porque foi capaz de ver e analisar o trabalho de uma pessoa jovem começando. J: Como eram essas conversas, como elas aconteciam? Você recebia visitas de artistas no ateliê? C: No sistema que havia lá na Goldsmiths, eu podia chamar até dez tutores por ano e podiam ser pessoas, artistas, críticos, de qualquer lugar, não precisavam ser do quadro da universidade. J: Que interessante! E quais outras pessoas você escolheu? C: Escolhi alguns artistas com os quais me identificava e, como não conhecia muito o meio, pedia, às vezes, ajuda para o Gerard Hemsworth e para o Nick de Ville, que eram os coordenadores do programa. Lembro que uma indicação deles foi o Stuart Morgan, um crítico que usou um método interessante: fazia com que eu falasse sobre aquilo que eu estava fazendo e anotava palavras, que depois leu para mim definindo um pouco a estrutura que se apresentava conformando o meu trabalho. Não recordo agora quais eram... D: É um modelo estrategicamente incrível de ensino, de educação como troca. O ensino está em outro lugar, é o que me parece. C: É realmente incrível. Foi muito bom encontrar essas pessoas porque apontaram aspectos importantes para a construção do meu trabalho num momento em que estava mais perdida. Talvez não estivesse tão perdida, mas sentia tudo deslizante. Não é muito diferente agora... Mas agora tenho mais vocabulário, fios de conexão. Observo que hoje tenho um interesse no objeto e na cerâmica, onde estou mais focada ultimamente. Tenho um interesse na pintura, que faz tempo que desenvolvo e, também, na fotografia. E sempre me questiono a respeito: “Por que eu tenho esses interesses? Como é que essas coisas se juntam e que olhar é esse que passa de uma coisa para outra?”. Quando tentamos construir um projeto, de alguma maneira precisamos de uma sobrevisão. Um ponto de partida para começar, nem que depois algo se desvie. Uma desculpa que dê um sentido para isso tudo. D: Um problema inicial? C: Uma hipótese inicial... Eu passei por um tempo meio árduo agora, um tempo muito difícil de reforma e mudança de casa, foi traumático! Hoje foi um dos primeiros dias de libertação, pela manhã pude sentar ao sol e ler, e foi muito bom. Acho que estou em um processo
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18: Vista da exposição de Carina de 1º ano do mestrado no Goldsmiths College, Universidade de Londres, 1991.
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19: Balões, 1991. Balão de látex e chapas de aço, 60 x 120 x 100 cm.
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de concentração, introspecção. Também escrevi bastante sobre o meu trabalho, simplesmente sentei e amarrei certos fios, até em função do projeto que tenho de fazer para o doutorado. A Carla Vendrami esteve lá em casa ontem, para ver o espaço para um trabalho que ela quer fazer na cerca que divide meu jardim com a mata, e me ajudou nisso2. D: E esse exercício de escrever é importante porque você tem que ter um certo distanciamento para ver as coisas e tentar organizá-las. C: Para mim, é muito mais fácil trabalhar no ateliê que escrever. Ontem mesmo fiquei desenhando e me veio uma série de imagens de construções que poderia começar a fazer, pois tenho os materiais para isso ali em volta, mas preciso escrever agora, procurar uma espécie de sobrevisão da minha prática. E, também, começo muita coisa no ateliê que não termino. A ideia inicial é só a ponta de um iceberg e o processo é sempre bastante longo. No entanto, costumo escrever muitas anotações sobre o meu trabalho. Tenho feito um caderno por ano, mais ou menos, acho que já tenho uns 15, talvez mais. Desde quando comecei a fazer arte, comecei a ter cadernos. Então, se voltar a eles, posso ver a história inteira escrita, muito organizada, porém é difícil voltar a uma ideia antiga. Na verdade já pensei em fazer isso, mas então vi o quanto aquelas ideias, lá dos primeiros cadernos, eram permeadas por coisas que eu estava vendo naquele momento, e o quanto elas não eram minhas. É muito interessante pensar em como carregamos cadáveres. O cadáver da tradição, não só do passado, mas até mesmo daquilo que parece ser contemporâneo. D: Como assim? C: Porque tudo é linguagem e os conteúdos ficam, por vezes, muito submetidos a ela. Quanto mais no início de nossa produção, mais ingênuos somos em relação à forma como a linguagem está acontecendo, sendo emprestada. Ainda assim, podemos ter ideias muito intuitivas e próprias. Mas acredito que, quanto mais maduros ficamos, mais vamos entendendo quais são os potenciais daqueles elementos que temos à frente, e também adquirindo maior domínio da linguagem, sem seguir tanto certos fluxos que vão acontecendo ao lado, agindo com uma coragem um pouco maior. D: Mas para ter olho e perceber esse fluxo não é necessário passar por esse momento, vivenciá-lo? C: Sim, mas você não precisa fazer o que os outros estão fazendo. No trabalho, a gente precisa descobrir muita coisa para jogar fora e então, depois, selecionar o que fica. É aí que o trabalho ganha uma certa consistência. J: Caso contrário, ele acaba sendo a execução da ideia de outro, com uma referência muito pronunciada? 2 Carla Vendrami foi artista e colega de Carina como professora da Embap/Unespar, e faleceu em julho de 2009, logo depois desta entrevista. Comentário de Carina: Resolvi inserir essa fala a respeito da Carla, porque, apesar de não estar na gravação, isso aconteceu mesmo. E achei legal me lembrar dela...
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C: Sim, nesse sentido, embora autonomia seja algo que não existe. Acho que o que vi, revisitando os meus primeiros cadernos, foi alguma coisa que identifiquei como um maneirismo ingênuo talvez3. Eu tenho uma intenção figurativa no meu trabalho, sempre. Existe uma imagem que se fixa antes, e depois vou correndo atrás de como resolver. Neste correr atrás, na maneira como a matéria vai se conformando e encontrando soluções, a imagem se constrói. Mas existe sempre uma imagem mental anterior que não é abstrata. Todos os trabalhos têm isso. Até aqueles que no final tornaram-se abstratos, como os da série Aparelhos de ginástica4, que usam formas tipo pirulito – a própria palavra “pirulito” já remete a uma figura... Mas o primeiro dos aparelhos tinha originalmente, para mim, a imagem de uma cena comum em filmes de faroeste, onde o cavalo é amarrado na cerca de madeira em frente ao saloon. Foi essa imagem que definiu o desenho dos conectores feitos de látex e tinta verde, o círculo maior, não amarrado, mas deitado sobre o que seria a cabeça do cavalo, e o menor atado. É claro que isso não é mais aparente. O que se revelou no trabalho final foi apenas a estrutura daquela imagem, incorporando elementos como o equilíbrio e a dúvida sobre os materiais. Aliás, isso foi uma coisa curiosa. Quando foi exposta na galeria Casa da Imagem, muitas pessoas acharam que a parte móvel feita de látex era um tubo de cobre modelado, rígido. Acho que isso aconteceu por a cor ser muito próxima da oxidação do cobre. O fato de os cavalos serem amarrados, nos filmes, numa cerca horizontal me forçou a procurar uma solução escultórica para a haste. Para conseguir o equilíbrio horizontal, tive que enxertar dentro da madeira diversos pesos de ferro. Um outro trabalho da série Aparelhos de ginástica, intitulado Concentrados [imagem 21], também veio de uma imagem. Esses trabalhos até se parecem um pouco, estruturalmente, mas, nesse caso, a imagem era mais imprecisa, algo entre vestir um chapéu e segurar uma sombrinha, ambos furados... J: Esses trabalhos são muito legais; aliás, procurando imagens e coisas sobre você na internet achei seu blogue, o Rodajato. C: Rodajato não é atualizado nunca. [Risos.] C: Eu acabei dando uma limpada no blogue porque havia ali imagens de processos de trabalho que eu não tinha finalizado. Era quase como se fosse um dreno, sabe? Então, tive que estancar esse dreno. J: Entendo, porque com o trabalho também é assim. Para se fazer um trabalho de arte muita coisa se joga fora, como você disse, e expor essas coisas também é uma responsabilidade. C: Claro. 3 Comentário de Carina: Inseri essa fala sobre autonomia porque achei que o diálogo estava escorregando para algo meio pantanoso, como se eu acreditasse em originalidade... 4 Série de trabalhos da artista do qual fazem parte: Aparelho de ginástica com suspensão óbvia, Aparelho de ginástica com elogio à arbitrariedade, Aparelho de ginástica com tendência à simetria e Concentrados A e B.
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20: Aparelho de ginástica com elogio à arbitrariedade, 2000. Madeira, látex e fio de náilon, dimensões variáveis.
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21: Concentrados A e B, 2006. Resina e pintura automotiva, 103 x 49 x 49 cm cada um.
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J: E por que Rodajato? C: O Roda Jato é uma memória recorrente. Faz mais ou menos oito anos que tive a consciência dessa imagem. Imagino até que existam outras, mas não me recordo. Acho que isso não é algo particular meu, desconfio que todas as pessoas têm esse tipo de memória. Ela é uma imagem vinda da infância que funciona, pelo menos para mim, como uma espécie de diagrama. Acho que uma das primeiras coisas que percebi era que o Roda Jato se comportava quase como uma trena, um instrumento de medição do mundo que passei a ter em algum momento da infância. Então, há alguns anos, percebi que passava Roda Jatos em tudo. Aqui mesmo já passei várias vezes o Roda Jato [risos]. Por exemplo: “Quão espesso é aquele caixilho que está ali? Quanto ele sai da parede? Será que, se eu apoiasse pela lateral o Roda Jato ali em cima, ele conseguiria se apoiar?”. O Roda Jato era na verdade uma pista para carrinhos tipo Matchbox, uma fita vermelha de plástico maleável na qual um carrinho deslizava e fazia um looping. Chamava-se, mesmo, Roda Jato o brinquedo, e ele era do meu irmão. Você jogava o carrinho e ele caía fazendo iiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiaaaauuummm. E então aquele carrinho batia direto no armário: poft. Ele tinha esta velocidade, este barulho. Acho que este brinquedo existe ainda para vender. J: Como o Roda Jato te dava a medida das coisas? C: Media distância, velocidade, gravidade. Tinha também a espessura do plástico, o desenho imaginário de uma secção desta fita, o perfil. Tinha um ponto onde ele segurava em algum móvel, com uma tarraxa. Lembro-me dele preso nas janelas de madeira do nosso apartamento no décimo segundo andar do Edifício Maurício Thá. Dava para prendê-lo no peitoril de madeira, ou mesmo virado na vertical, nos bastidores. Algumas vezes funcionava, outras não, porque o carrinho não conseguia aderência e caía, e aí tínhamos que levantar mais a fita, aumentar a velocidade... Então, foi engraçado quando percebi que fazia isso o tempo todo, como uma memória involuntária. Walter Benjamin5 fala sobre isso. Estamos cheios dessas memórias. Descobri outras, mas percebi que não eram tão recorrentes. Em uma época, comecei a escrever sobre alguns lugares que sempre visito mentalmente, como uma espécie de fantasma. Acho isso interessante. Se eu pudesse mapear esses lugares seria fantástico! Mas não é uma coisa que eu domine muito. J: Você se refere a lugares concretos em que você esteve ou a uma espécie de memória inventada? C: Lugares concretos. Por exemplo, a imagem do apartamento em que vivi quando 5 BENJAMIN, W. A imagem de Proust. In: ______. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura.Trad. Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 2012.
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criança, este do qual falei agora há pouco. Lembro que a planta do quarto de meus pais não era em ângulo reto. Quão obtuso era o ângulo formado no encontro das paredes foi motivo de muito cálculo imaginário. Essas memórias... Algumas são bem geométricas, outras têm mais a ver com cor. Por isso, dei o nome de Rodajato para o blogue. Porque tem relação com memória, e acho que o fato de eu ter escolhido a escultura foi um pouco por esse interesse em memórias, em como as coisas vivem e se equilibram, em sua função, às vezes o som, a cor. D: É interessante isto, as crianças estão o tempo todo fazendo essas experiências, medidas e comparações. J: Nós também, não? Bem, eu faço coisas parecidas, mas acho que as pessoas, no geral, não se dão essa liberdade depois que envelhecem. Mas pode ser que haja um resquício de algo que fazíamos quando éramos crianças em cada um de nós. C: Nós também, mas nós vamos envelhecendo e diminuindo ou até perdendo isso. J: Existe aquela história, creio que li em escritos de antroposofia e pedagogia Waldorf, de que, quanto mais velhos ficamos, mais minerais predominam no organismo, vamos perdendo a água do corpo. Pode ter a ver um pouco com isso. Soa um tanto poético pensar que algo vai ficando mais pedra e menos água, não? C: Menos uma coisa fluida, sem compromisso... J: Essas coisas, eu acho, são tão particulares que às vezes nem se consegue falar sobre elas, nem as percebemos nitidamente. Você inclusive comentou tê-las descoberto, porque é algo que acontece quase inconscientemente e é difícil ter certa clareza sobre isso, não? C: Acho que é difícil. Não sei como aconteceu de eu me lembrar. Lembrar talvez não seja uma palavra correta, porque não é algo pontual. É mais uma repentina percepção, porque funciona quase como se fosse um DOS6, uma lógica interna. Acho que temos várias dessas lógicas internas que se formaram quando o nosso espaço era mais liso, menos estriado. Gilles Deleuze fala do liso e do estriado. Quanto mais velhos vamos ficando, como você disse, Juliana, maior a predominância de sais minerais no corpo, mais estriado vai o corpo ficando, agindo mais de acordo com certas regras. E tem coisas que a gente tem que fazer num espaço estriado, por exemplo, pensar em um projeto... D: Gosto da imagem do deserto acionada por Deleuze, na qual existem as ondulações na areia que compõem uma forma, mas o vento transforma isso o tempo todo. C: Ele também coloca que o oceano, o espaço mais liso que existe, é o primeiro a ser cartografado. 6
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Disk Operation System, um tipo de sistema operacional para computadores, atualmente em desuso.
D: Você sempre desenha os trabalhos, antes de executá-los? C: Quase sempre. Ultimamente, tenho preferido fazer trabalhos menos projetados e lidar mais com decorrências, achados. São trabalhos muito longos porque eles vão se amalgamando. D: Então, como fica a figura? C: A figura é encontrada pelo avesso. Eu trabalho pelo avesso. J: Figura, neste caso, não é uma palavra estática relativa a uma figuração ou a uma imagem figurativa, é um termo amplo como uma referência ou uma revelação, certo? C: É quase como se fosse um insight. Nos últimos anos pensei menos em projeto e mais em qual era o meu processo do fazer. Há uns quatro ou cinco anos comecei a recuperar coisas que estavam no ateliê inacabadas e a ver o que disso sobreviveria. Porque são coisas nas quais eu pus alguma energia. Havia tantas coisas que ficaram perdidas no meio do caminho e que resolvi recuperar, rever. Comecei a me interessar muito em fazer construções em que a escolha se dava da seguinte forma: eu partia de uma imagem primeira e a construção se fazia conforme. Eu utilizava os materiais de acordo com o que essa imagem necessitava. Penso muito naquele trabalho da ruazinha com postinhos de luz [Retorno, imagens 26, 27 e 28]. Essa foi uma imagem que surgiu para mim, enquanto passeava na rua, vendo os postes de luz que, por problemas na célula fotoelétrica, permaneciam acesos o dia todo. Via neles uma redundância, um esforço inútil de produzir luz durante dias ensolarados. Essa foi a imagem primeira que gerou o trabalho. O desenvolvimento foi então procurar trazer essa rua para a escultura. E aí vieram as questões como o dentro e o fora, e questões técnicas também, pois exigia uma instalação elétrica para os postinhos, para a caixa. A questão elétrica foi a com que mais me debati, pois as lâmpadas dos postes queimavam com duas horas de uso, não sabia como resolver. Aí um dia teve uma abertura de exposição no MAC-PR e por acaso comentei o problema com o Paulo Reis. Eu não sabia que o Paulo tinha cursado eletrônica no Cefet, e ele me deu prontamente a solução. O que eu precisava era usar corrente contínua e não corrente alternada. Solucionou, fiquei supergrata… Agora, trabalhos como esse são construções complexas que dependem de outros profissionais. Eu, no entanto, gosto de trabalhar sozinha. Então, comecei a me interessar muito mais por massas e também por coisas que já estavam no ateliê, a pensar em aglutinações. Essas massas e aglutinações enfatizam, muitas vezes, as superfícies, aproximando-se de um discurso pictórico. Nessas sobreposições, imagens começam a surgir, como foi a imagem do carimbo em Contorno abstrato [imagem 22], que expus no [62º] Salão Paranaense (2007-2008). Eram palavras feitas em argila de cores diferentes, mas, depois de algum tempo, borrachas coloridas foram sobrepostas e, finalmente, o cabo de madeira torneado que lhes deu a aparência de carimbo. Só que um carimbo cujo relevo não coincide com as palavras… 81
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22: Contorno abstrato parte A e Contorno abstrato parte B, 2007. Cerâmica, madeira torneada, encåustica e borrachas, aprox. 300 x 50 x 20 cm (os dois conjuntos, A e B). Acervos da artista e do MAC-PR, respectivamente.
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23: Cópia essencial parte B, 2007. Cerâmica colorida, massa de modelar pigmentada, madeira e borracha, 35 x 57 x 18 cm cada peça.
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Os trabalhos Contorno abstrato e Cópia essencial7 foram os que me colocaram no trajeto da cerâmica, porque percebi que poderia trabalhar com massas coloridas. Recentemente, fiz uma disciplina na ECA/USP pensando no doutorado que quero fazer, e nela desenvolvi algumas porcelanas coloridas. Elaborei uma massa misturada a corantes de alta temperatura que se pode trabalhar com esmaltes ou engobes por cima, ou mesmo outras matérias, como a tinta a óleo, e observar como a tinta estraga a pureza da porcelana, deixando marcas. Essas coisas me interessam, como essas massas se juntam. Assim, de certa maneira, houve uma ênfase no processo e através dele a descoberta de uma imagem. Isso já vem de alguns anos. Na exposição que apresentei no MACPR 8 em 2006, andei usando encáusticas sobre os objetos de cerâmica, interessada nessas cascas de matéria colorida sobre os objetos. Nessa exposição, havia também o Observador dois [imagem 24], um trabalho que foi muito engraçado: ele era uma bolinha de borracha cor da pele que estava há anos no ateliê, tinha começado para ser alguma coisa que não lembro mais o que era, ficou esquecido tanto tempo num cantinho... Até que resolvi resgatá-lo e, depois de me debater muito com ele, surgiu aquele cigarro, rugoso, pintado com encáustica. A bola não era bem redonda, era achatada e tinha um buraco quase obsceno atrás. Acho que não escolhi ou não encontrei um espaço bom para expor esse trabalho no MAC. Acabei deixando no chão mesmo, na mesma sala que os Concentrados, fazendo um diálogo, mas teria sido bom poder andar em volta dele, tê-lo mais à altura dos olhos em uma superfície mais fria de apoio, não no chão de madeira. Quando o trabalho é exposto, a questão sempre é onde o objeto habita, que é uma questão para você também, não é, Juliana? D: Como assim? C: Por exemplo: ele fica no chão ou na parede? Que parede é essa? Que contexto é esse no qual ele está? Quais são os possíveis diálogos? Para mim a instalação é somente uma decorrência, não é do espaço ou da arquitetura que retiro meus motivos. Tenho direcionado o meu trabalho para uma ordem interna. O externo não importa tanto. J: Sim, para mim essa é uma questão muito importante que se refere à problemática do trabalho e está tramada na construção e criação dele, para pensá-lo e defini-lo em suas características específicas. Também acho que é uma questão de suscitação do que o trabalho necessita para ser potencializado e existir (um trabalho minimalista ou as Caixas Brillo de Andy Warhol9, por exemplo, são evidenciados pelo fato de estarem em um espaço reservado às exposições, normalmente branco, que possibilita ao observador ver as relações do trabalho com o espaço e separar esses trabalhos do mundo). 7 Cópia essencial parte A, 2007. Cerâmica colorida, madeira e borracha, 53 x 46 x 17 cm cada peça e Cópia essencial parte B ( imagem 23 ). 8 Artistas Convidados, 2006-2007. MAC-PR, Curitiba. Foram realizadas quatro exposições individuais simultâneas dos artistas: Carina Weidle, Fábio Noronha, Gabriele Gomes e Lívia Piantavini. 9 Brillo Box. 1964. Esculturas idênticas às caixas de sabão em pó Brillo, só que feitas em serigrafia sobre madeira, com 43,5 × 43,5 × 35,6 cm cada caixa.
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24: Observador dois, 2006. Borracha Vinamould e cera pigmentada, 24 x 24 x 32 cm.
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25: Aparelho de ginĂĄstica com tendĂŞncia Ă simetria, 2000. Fibra de vidro, massa de papel, pelo animal e cera, 130 x 80 x 60 cm.
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Entendo quando você diz, relacionado a seus trabalhos, que a instalação é somente uma decorrência. Porque um objeto pode se fechar em si e ainda carregar o contexto em seu significado, mas o que é mais proeminente é como ele se organiza internamente – a partir da sua organização, da sua forma de ser e estar no mundo, tecem-se as relações com o contexto e, muitas vezes, em objetos bem-sucedidos, é pelo objeto que o contexto se revela. Já um ato performático, uma instalação ou um trabalho “processual”, por exemplo, lidam mais diretamente com as relações externas, com as situações, com as circunstâncias e ocasiões, penso eu. D: O externo também poderia ser o contexto artístico? C: Sim, porque tudo está inserido em contextos, até mesmo essas lógicas internas de que falei são alteradas conforme o contexto, porque são linguagem… D: Achei bem interessante o que você comentou da lógica interna e externa do objeto... C: Os trabalhos que fiz com caixa de luz10 eram definidos por um espaço que se aproximava do pictórico. Eram relevos, mas eram recortes retangulares, feitos na parede, que ficavam à altura dos olhos. Acho que, pelo fato de o trabalho estar na parede, começaram a achar que eu fazia instalação. Inclusive fui convidada para falar na UFPR sobre instalação e não soube resolver muito bem o problema. A ideia de associarem meu trabalho à instalação me incomodava. Ele até está ligado a ela por ser encaixado na parede, mas, na verdade, ele não tem a lógica da instalação porque o espaço-tempo que ele opera não é o mesmo em que o observador está, então este tem que se dirigir a outro espaço-tempo para acessar o trabalho. A instalação se relaciona muito com o corpo do observador, com sua escala. Não que o contexto seja por mim ignorado, apenas ele não está presente na lógica do meu fazer artístico, mas é presente, no entanto, quando exponho esse resultado. J: Eu entendo o que você diz. Por conta da exposição que realizei no Solar do Barão11, alguns universitários vieram me entrevistar e uma das questões que fizeram era se eu via meu trabalho mais como escultura ou como instalação, e achei interessante pensar em como escrever sobre isso. Eu constantemente penso em instalação, tenho muitos trabalhos que são instalações, mas, como você bem disse, por causa das dificuldades para resolver esses trabalhos, comecei a concentrar e focar no objeto os meus interesses. Até mesmo os interesses relacionados ao ambiente, ao espaço, à instalação, o que reflete imediatamente nos objetos que crio. Inclusive penso que uma exposição tem muito de instalação, por conta de estabelecer relações entre determinadas coisas que foram reunidas. No caso dessa minha exposição, esse caráter instalativo ficava forte por conta da natureza dos trabalhos e de como era a sala, mas cada objeto foi pensado isoladamente, cada peça é independente da outra. 10 Exemplos são os trabalhos Retorno e Mutilação, imagens 26, 27, 28 e 29 respectivamente. 11 Juliana Burigo, 3ª Bolsa Produção para Artes Visuais, FCC, 2009. Centro Cultural Solar do Barão, espaço 12 (1°andar e pátio), Curitiba/PR.
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C: Quando pensamos em escultura, mesmo em objeto ou em qualquer trabalho tridimensional, sempre teremos que lidar com as questões: “Como isso se suporta? Onde está?”. O trabalho pode ser mais ou menos potencializado conforme o espaço, mas a lógica está dentro dele, circunscrita por uma sintaxe presente no objeto. Na sua exposição eu vi isso, cada trabalho era particular. Acho que a instalação é antropométrica, habita o mesmo tempo que o espectador, não remete a outro tempo normalmente. Se o trabalho funciona como uma imagem, o ambiente externo a ele passa a ter outro peso, diferente do que o ambiente que você como espectador habita. J: Entendo isso. Parece que na instalação há uma atuação mais pronunciada, algo relacionado a uma teatralidade, como Michael Fried disse, referindo-se aos minimalistas. É o tempo da vida. Porém, acho que os termos muitas vezes complicam as interpretações, por isso, prefiro analisar cada caso. Nesse sentido, acredito que um objeto qualquer pode ser transformado em uma instalação, dependendo de como for apresentado, dependendo sempre do contexto em que estiver inserido. Essa mudança no sentido, a história da arte nos mostra em diferentes casos, como na exposição de alguns readymades de Duchamp, ou de certos trabalhos de Beuys, expostos em estantes juntamente com outros objetos comuns, em Pollock, com seus quadros expostos suspensos em vigas na galeria com formato de avião de Peggy Guggenheim, ou no caso de Warhol e os minimalistas, onde o trabalho só se dá pelo destaque e valorização do contexto do espaço de exposição, aquele espaço branco possibilitador de visualização12. E, como disse há pouco, acredito que uma exposição tem muito de instalação; essas relações que se estabelecem entre as coisas que foram reunidas podem se aproximar de uma situação instalativa e, para mim – acho até que este é o termo que resume melhor –, uma instalação tem a ver com situação. Relacionado ao objeto, você não acha que ele tem algo de imediato, que sua imagem alcança o observador mais rapidamente em comparação com uma pintura? Parece que nós conseguimos guardar na memória uma imagem dos objetos mais marcada, porque justamente eles estão fechados em si, encerrados em sua forma. Se fecharmos os olhos visualizamos os objetos, mas, ao se tratar de uma pintura, na maioria dos casos, é mais complicado visualizá-la. Isso também é parte de uma discussão importante para a escultura, por isso achei interessante o que você falou da imagem, sempre penso que gosto da escultura por causa disso, porque consigo fechar os olhos e me lembrar dela. Gosto muito dessa imagem que fica na memória, quase como se fossem frames fotográficos. Os objetos têm para mim essa natureza. Ultimamente estive pensando muito nisso, relacionando às minhas esculturas. A pintura é fascinante porque lida com a abertura para o mundo. E geralmente exige um tempo maior de observação porque sua imagem é complexa e, também, porque é realizada em um espaço que privilegia em primeira instância a visualização, o ato visual. Parece que ela exige a atenção do olhar, mesmo isso tudo não sendo uma regra. 12 Cf.MAMMÌ, Lorenzo. À margem. ARS (São Paulo), Brasil, v. 2, n. 3, p. 80-101, jan. 2004. Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/ars/article/view/2926/3616>
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26, 27 e 28 (p. 90): Retorno, 2000. Resina, carpete e caixa de luz, 82 x 54 x 256 cm.
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C: Eu também sempre compreendi melhor os termos da escultura, mas acabo gostando muito de pintura também por causa disto, por ela privilegiar uma superfície que absorve a percepção. Pode ser que a escultura se torne mental mais facilmente. Acho que talvez seja porque entendemos as relações espaciais de forma mais direta, enquanto a pintura dramatiza muito mais a situação de imagem, oscila entre a construção de um espaço e a superfície. A escultura é mais imediata porque você pode ter uma ideia e depois racionalmente tomar decisões sobre: material, escala, fatura. São ações que contribuem, melhoram muito ou pioram muito a aproximação da ideia inicial. Na pintura, a fatura é muito mais construtora, ela é colocada como gesto, mesmo que não exista o gesto. O que acho interessante na pintura é a forma como ela se constrói... Para mim, o ponto para a minha mudança de percurso na forma de atuar é tornar mais evidente a maneira como as coisas se constroem e não mascarar essa construção. Tinha para mim a opção de resolver o trabalho mais industrialmente, como se não o tivesse tocado, ou o contrário, assumir o aspecto manual. Então, comecei a elaborar meu trabalho através de camadas. Em algumas pinturas que me interessam percebo que existe um pouco de devaneio no seu processo. J: Há um ponto, nesse processo mais industrial de construção do trabalho (e de certa forma mais “perfeccionista” no sentido técnico da palavra – porque perfeição é sempre algo relativo), onde a manufatura aparente pode ser um problema, alterando o sentido da obra. Por exemplo, se uma escultura que tem sua superfície lisa com uma cor homogênea – como são as minhas – começar a rachar e craquelar como uma pintura da Adriana Varejão, altera-se o trabalho, ele já não é mais o mesmo. C: Pois é, torna-se um problema daí. Mas, para mim, este passou a ser um problema que interessava. Em uma época tive a ideia, que nunca levei a cabo, de transformar todas as minhas esculturas em naturezas-mortas. Porque uma natureza-morta apodrece ou fica empoeirada. Existe a ideia de vanitas, que é a coisa ir se desfazendo e sendo incorporada em forma de ruína pela natureza. Essa imagem da ruína, as marcas do tempo é que passaram a me interessar. Tem um trabalho meu, Mutilação [imagem 29], que é uma caixa com duas figuras se cumprimentando. A ideia partiu da imagem de duas figuras, uma sem um dos braços que cumprimenta outra que não tinha uma das pernas. Depois, na modelagem, elas já não tinham mais cabeças, que se transformaram em braços e pernas. Essas figuras ficavam sobre uma espuma muito bem cortada, construindo um espaço perspectivo. Depois de exposto o trabalho, eu o levei ao ateliê para o qual tinha recém me mudado, e lá havia uma janela quebrada, por onde um gatinho entrava no espaço para dormir. Esse gato sujou toda a minha espuma, ele a arranhou e deixou um bolinho de pelos ali. Via-se que o trabalho estava sujo, que estava rasgado. E comecei a pensar se eu o poderia expor daquela forma, como uma espécie de acúmulo, resíduo. Depois, pensando melhor, achei que não poderia ter tamanha liberdade. J: E você montou para ver?
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C: Não. Sabe, funcionaria, mas, ao mesmo tempo, quanto adicionaria ao trabalho? Será que não se tornaria ruído? Teria um elemento a mais e isso começaria a ser importante. Com tanta coisa sendo falada ali, ter ainda mais uma fala? Então, achei que talvez esse meu interesse pudesse ser desenvolvido em outros trabalhos. Por isso, comecei a desenvolver as coisas de maneira a tornar um pouco mais processual o meu trabalho, ou seja, extrair do processo elementos para composição da imagem. Eu gosto quando a imagem se estabelece como uma anedota visual. Eu parto dessa anedota, por isso, as pessoas acham que meu trabalho tem alguma coisa de humorístico. Na verdade não acho que ele seja humorístico. J: Eu os acho bem irônicos. Por exemplo, suas fotografias de galinhas, como a série Galinhas olímpicas [imagens 30 e 31], entre outras. C: Esses são os trabalhos que têm uma linguagem mais publicitária. Mas o trabalho é muito sujo para ser publicitário. Por ironia, quem comprou uma das edições das Galinhas olímpicas foi uma pessoa do meio publicitário, Charles Saatchi. Muitos anos depois, vendi uma das imagens para uso em uma propaganda nos Estados Unidos. Saatchi, na época, e acho que até hoje, investia em artistas novos. Um pouco depois, ele comprou uma escultura, um trabalho de balão e cera, o mesmo que o MusA tem aqui, o Blank and flat13. Depois, ele doou o trabalho junto com parte de sua coleção para a Hayward Gallery. Mas lá, pelo menos naquela época, comprava-se mesmo trabalhos de artistas jovens, o que é um superincentivo. Na abertura da primeira exposição que fiz, vendi um trabalho. J: Foi numa galeria? C: Sim, na Todd Gallery. Eu fui convidada por um amigo do mestrado para fazer a exposição com ele14. Era daquelas exposições de verão, onde as galerias experimentam novos artistas e, na abertura, vendi um trabalho. Isso não acontece muito aqui, não com um artista novo, desconhecido. D: Por quê? C: Acho que lá existe um hábito maior de comprar trabalhos. Quem comprou Tongue simplesmente falou para mim: “Eu sempre quis ter um nu na minha casa”. D: Poderia ter sido uma das galinhas. Seria muito engraçado se o nu comprado fosse de uma delas. [Risos.] C: Ah... era uma escultura em que a ideia primeira foi fazer uma espécie de pequeno lago de gelatina azul doce. Mas o resultado foi completamente outro. Eu queria fazer uma coisa que fosse um bloco de gesso grande com um laguinho que, na verdade, seriam as minhas próprias costas (as costas seriam a depressão, 13 14
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Blank and flat, 1992. Balão e parafina, 70 x 70 x 90 cm. Acervo Hayward Gallery e MusA/UFPR. Exposição com Andrew Bick e Roy Voss na Todd Gallery, Londres, 1992.
29: Mutilação, 1998. Caixa de luz, espuma ortopédica e chumbo, 101 x 61 x 71 cm.
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30: Da série Galinhas olímpicas – halteres, 1993. Fotografia colorida, 50 x 38 cm.
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31: Da série Galinhas olímpicas – salto, 1993. Fotografia colorida, 50 x 38 cm.
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a concavidade do lago). Então, tirei o molde das minhas costas em gesso e depois em uma borracha que lá se usa muito para fazer molde, que foi a mesma usada para fazer os meus carrinhos15. Como o gesso era frio, a minha pele ficou arrepiada, além disso, no meio das costas há a linha da coluna, e tudo isso ficou gravado no molde. Como não sabia bem qual era a configuração dessa poça que eu queria fazer, fiz vários desenhos (moldes). Então uma das tutoras que me visitou no ateliê, a Maureen Paley, viu o molde em borracha e falou: “Carina, às vezes a gente tem que esquecer o que era a ideia inicial e ver o que se tem na frente! Olhe o que você tem aqui. Olhe o peso disso. Olhe o que é isso aqui!” Ela pegou aquele molde que era do tamanho das minhas costas, uma espécie de língua gigante, na cor própria da borracha, um vermelho-terra. Ela era pesada e meio flexível, estranha. Compreendi o que Maureen estava me falando e reeditei o trabalho, refiz todos os passos de novo, cortando certas coisas fora, para que ele ficasse como uma língua. E muitas pessoas acharam que aquilo era mesmo a língua de um animal gigante, por isso dei o nome de Tongue, língua [imagem 32]. E foi muito legal o fato de o trabalho em si ser um molde, o molde de alguma coisa da qual eu poderia tirar muitas cópias, que seriam, de novo, o positivo das minhas costas. E realmente era um nu, eu não tinha percebido antes, era um pedaço das minhas costas mergulhando num mar de borracha. J: E você não pôs a gelatina? C: Não, ficou só o molde. J: E ele ficava no chão? C: Ficou sobre uma base branca. Na mesma época, fiz um trabalho que era uma máscara de mergulho16, esta sim fiz com os doces. Eu estava fascinada por esses golfinhos de gelatina comprados em lojas de doces. Comprei um monte de golfinhos e derreti, fazendo o molde de uma máscara de mergulho maciça com snorkel. Tudo foi feito com essa gelatina azul. É um objeto através do qual podemos enxergar, mas que remete a uma ideia, porque a figura era também o fundo e esse fundo, além de ser azul como o mar, também era doce como o mar, espesso como o mar. J: Doce como o mar? C: Doce. O mar é salgado, mas o meu mar ali era doce. Essa foi uma imagem que, acho, pensei da primeira vez que andei de avião. O avião se sustentava no ar. Não lembro se eu já tinha passado por essa aula de física, mas lembro de imaginar que o ar lá fora parecia uma gelatina. O ar ou a água... Gostava de pensar os meios líquidos e gasosos mais espessos do que são, quase que travando o movimento dos sólidos. Mas na máscara de mergulho tinha também a ideia de derreter os próprios golfinhos. Tudo isso estava dentro da própria imagem, que era uma forma de pensar figura e fundo. 15 Carrinhos (série com 10), 2006. Borracha Vinamould e resina pigmentada, instalação de dimensões variáveis, com 13 x 10 x 30 cm cada carrinho. 16 Googles, 1992. Gelatina, 27 x 18 cm (tamanho natural de uma máscara de mergulho).
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J: E você não fez nenhum catálogo com esses trabalhos? C: Aquilo era tão no início, era o momento de olhar para a frente, não de fazer catálogo. Mas agora eu gostaria de pensar em um projeto de catálogo, mas morro de preguiça, sabia? Tem bastante coisa já, são uns 20 anos de produção. J: Sim, e muita coisa que não conhecemos, inclusive. Você trabalha ou trabalhou com alguma galeria na Inglaterra? C: Trabalhei com a Todd Gallery. Ela fez um trabalho muito bom para mim, mas aconteceram alguns problemas e foi um período em que também era muito difícil a comunicação, não era como hoje. D: E por que você não ficou lá? C: Eu tinha o compromisso de voltar para o Brasil, tinha uma bolsa do CNPq e o Fábio também tinha que voltar. Estava tudo muito bem lá, mas muito porque estávamos estudando e não é sempre que acontece venda de trabalho. Mas o escurinho que tem aqui também é bom, essa meia-luz em que a gente vive. D: Como assim? C: A gente vive no escurinho aqui. J: Porque não tem foco, não tem foco de mercado. C: Não tem. A gente está bem, acho Curitiba um ótimo lugar para se produzir arte. D: Por quê? C: Porque convida a uma introspecção maior. J: Acho importante você fazer um catálogo para podermos conhecer melhor seu trabalho. É difícil encontrar informações sobre ele, e você é uma artista importante de Curitiba. Li uma entrevista com você, Fábio, Lívia e Gabi, na época da exposição no MAC-PR (2006)17 e, nela, você dizia: “Eu me preocupo com o trabalho, tem artista que está correndo atrás do mercado”. Eu concordo, mas, ao mesmo tempo, se você não faz um papel que é importante para a arte se posicionando nesse mercado, um oportunista vai fazer. Essa questão da valorização no mercado é complicada! Acho muito ruim não ver seu trabalho numa exposição coletiva de artistas brasileiros ou de escultores brasileiros, por exemplo. Acho que caracteriza privação quando o trabalho de artistas importantes não é mostrado, principalmente quando se trata de panoramas ou exposições que tentam fazer uma mostra do que está acontecendo ou aconteceu em determinada época ou lugar. Aqui no Brasil, é complicado, eu entendo, porque querem que nós façamos esse papel de agenciadores do nosso trabalho. Fora do Brasil há quem faça isso pelos artistas e muito bem-feito, me parece. 17
Artistas Convidados. Vide nota 8.
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32: Tongue, 1992. Borracha Vinamould, 80 x 32 x 15 cm.
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C: Sim, fora do Brasil há quem faça. Na verdade, eu não fiz um catálogo ainda porque me dedico a muitas coisas... Eu dou aula na Belas Artes, tenho dois filhos, agora a Sofia está com doze, o Guido com cinco anos. Existe um período da vida em que a gente não consegue fazer tudo o que deseja e elege prioridades. Mas, se eu fizer o doutorado, em quatro anos é provável que eu consiga elencar vários projetos juntos, porque vou estar mais focada no trabalho. D: Você gosta de dar aulas? C: Olha, eu gosto, sim. Ajudar na construção do pensamento de arte dos alunos é gratificante. É uma troca, porque estou sempre aprendendo, vendo a maneira como cada um responde aos desafios. Não acredito em educação paternalista. Quando sinto que é esse tipo de atitude que os alunos esperam de mim, falo para eles que se for para pegar na mãozinha será para levá-los para a piscina funda e deixá-los lá [risos]. Também é um trabalho remunerado, o que me possibilita produzir arte sem depender de uma resposta do mercado. E eu acho que todo professor de arte precisa ter um trabalho como artista. J: Com certeza, são os melhores professores. C: Mas, no meu caso, gosto de dar aulas porque dar aula é um exercício de pensamento. Enquanto pensa o trabalho do outro você está desenvolvendo também o seu. Quando fala do trabalho do outro você também enxerga a si próprio. Estou fazendo um exercício com o pessoal do 4º ano agora. Vi os projetos de todos eles, forneci material principalmente em vídeo para que fizessem anotações a respeito, depois comecei a agrupar os alunos a partir das afinidades e coloquei-os para discutir e trocar entre eles, observando as relações que existiam em comum. É interessante pensar o método. Existe um grau de exposição nisso. Outro dia, eu estava escutando um aluno com muitas ideias, mas sem nada de concreto feito. Preferiria se esse aluno realizasse mais, concretizando de alguma maneira aquilo que ele estava idealizando, porque só assim se constrói e o professor pode de fato ajudar. Mas quando fica só no campo das ideias tenho um pouco de preguiça.
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33 e 34: Recheios, 2000. Fibra de vidro e tinta esmalte, 120 x 50 x 70 cm.
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35: Da série Matches, 2013. Cerâmica vitrificada, livro e látex.
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Conversamos com Artur Freitas na noite do dia 3 de junho de 2009, no bar e restaurante Café Mafalda, localizado no centro de Curitiba. Bastante informal, nossa conversa foi regada a cerveja e Xiboquinha. Sentamos na varanda do piso superior do bar e, por conta disso, a gravação de áudio foi tomada pelos ruídos e sons da rua Tibagi, onde transitavam carros, ônibus e pessoas, disputando volume e nitidez com o som de nossas vozes.
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Juliana: Nosso objetivo com esta conversa é registrar um pouco do seu pensamento sobre arte, seus posicionamentos, como você vê e analisa a arte contemporânea, ou seja, é uma proposta bem aberta... Artur: Então vou falar sobre a criação de personagens na arte contemporânea, que eu acho um assunto importante. Quando os artistas, no Renascimento, se propunham a fazer um trabalho, havia a ideia da vidraça, da janela de Alberti. Os artistas faziam o trabalho e você mergulhava no que estava sendo representado: havia um certo princípio de realismo. Com a arte moderna, os artistas começaram a “sujar” a vidraça da janela e a fazer questão de deixar evidente que aquilo é um mecanismo de representação, conforme a metáfora de Ortega y Gasset. Na arte contemporânea, em um sentido muito amplo, o que acontece é uma espécie de “novo realismo”, algo que acaba tendo uma ligação com aquele realismo no sentido da janela transparente do Renascimento. Porque, até então, a gente via a arte como sendo exclusivamente do domínio da ficção, como se na arte tivéssemos certas permissões que na vida concreta não teríamos. Na literatura, por exemplo, você pode ser pedófilo como personagem, ou um genocida, etc., podendo lidar ficcionalmente com assuntos que na vida real não são permitidos. A arte é um dos domínios em que a gente é autorizado a lidar com a ficção. Então, a princípio, quando se veta um artista de falar sobre um assunto que na vida social é proibido, mas que no domínio da ficção é permitido, evocamos a bandeira da liberdade de expressão. Ou seja, o artista pode falar sobre qualquer coisa, pode criar um personagem e esse personagem tem liberdade para, enfim, matar, roubar, transgredir as normas sociais e morais, ser contra a lei, etc. Na arte contemporânea, nesse sentido muito amplo que estou chamando de novo realismo, o problema é o seguinte: vários artistas quiseram esconder o vidro, apagando o sentido de se olhar a obra de arte como representação. De novo estamos lidando com as coisas “reais”. É o gesto básico do Duchamp: deslocar algo do mundo comum para inseri-lo no campo da arte e dizer “eu posso me apropriar de qualquer coisa da vida real e apresentá-la como obra de arte”. Só que, enquanto é só um urinol, não tem problema. A questão é quando você toca em assuntos que são de ordem legal e leva para o mundo da arte ações que transgridem a norma jurídica. Aí podem dizer: “você não pode fazer esse tipo de trabalho porque isso é ilegal”. No caso Darko Maver 1, por exemplo, o que os artistas fizeram foi falsidade ideológica, e existe um tratamento jurídico para isso. Os artistas partiram da premissa de que existe a possibilidade de fazer o que eles fizeram porque são artistas e porque a arte lida com ficção, e como ficção se pode fazer o que na vida real não é permitido. Existe, portanto, uma nova literalidade da arte. O artista pode criar situações que não são permitidas no cotidiano, mas que, como estão sob a capa da arte, sob a legitimação da arte, se tornam permitidas justamente por isso, porque, enquanto artísticas, são ficcionais. 1 Em 1998, o coletivo de artistas conhecido como 0100101110101101.ORG, composto pelos italianos Eva e Franco Mattes (em conluio com o grupo Luther Blissett, originário de Bolonha), inventou um artista chamado Darko Maver. Ele alcançou prestígio na mídia internacional e foi destaque na 48ª Bienal de Veneza, em 1999, antes de ser declarado como ficção. http://0100101110101101.org/darko-maver/. Aviso: as imagens apropriadas por Darko Maver são reais, de situações extremamente violentas, e podem chocar.
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J: Como você relaciona esse realismo do caso Darko Maver ao Duchamp? A: Acho que a premissa do caso Darko Maver é a mesma de Duchamp, no sentido de você pegar uma coisa que pertence ao mundo real, mas que no mundo da arte é apresentada como ficção. Então, por exemplo, eu posso, de repente, criar um personagem que não existe, que não é verdadeiro, e isso a literatura faz largamente. Você pode criar um personagem e esse personagem tem a liberdade de matar, de roubar ou de fazer alguma espécie de transgressão penal, certo? Só que, se você apresenta aquilo no contexto da arte contemporânea, não mais como representação, então você cria um personagem que pode fazer qualquer coisa, e aquilo acaba funcionando como licença poética para o artista. E o sistema de arte permite isso. Por exemplo, você está andando na rua e uma pessoa lhe dá um tapa. Você vai revidar o tapa, chamar a polícia, ou algo assim, mas aí a pessoa diz: “Isso foi uma performance, isso é um trabalho de arte”, ou seja, ela borra o limite entre o que é realidade e o que é arte. A partir do momento em que essa pessoa diz que o que ela fez é uma performance, que é uma prática institucionalizada no meio da arte, as pessoas veem aquilo como sendo do domínio da ficção, mesmo que o tapa seja bem real. Uma coisa é você dar um tapa em alguém numa peça de teatro, numa cena de novela, outra coisa é você não avisar o outro que ele está participando do campo da arte naquele momento e esbofeteá-lo de surpresa na rua. Desse modo, o que parte da produção contemporânea faz é lidar com a possibilidade de trazer elementos da vida real, elementos cotidianos, mas sem avisar ao interlocutor que esses elementos estão participando do âmbito da ficção. Quando a gente está lidando com a ficção, existe um contrato tácito, um acordo entre todas as partes envolvidas de que há um jogo sendo jogado. O campo da arte contemporânea, por sua vez, vem validando nos últimos 40, 50 anos situações como o caso Darko Maver e de uma série de outros artistas, ou seja, validando a possibilidade de fazer intervenções na vida social em que o acordo está explícito apenas de um lado: o lado do criador, do performer. Uma parte da arte contemporânea tentou fazer da vida um palco, e nesse sentido ela toma conta de tudo, e qualquer coisa pode fazer parte da experiência artística. Mas a vida, como jogo, tem regras. Regras jurídicas, por exemplo. O artista Allan Kaprow falou que podemos vir a encarar o assassinato como obra de arte, mas ele não chegou a fazer isso, só levantou isso como discurso. Entre você sustentar o discurso de que qualquer coisa pode ser arte e fazer isso na prática, há uma distância. Se você está aceitando as regras da vida como as regras da arte, então você tem que estar sujeito ao controle e à eventual punição das regras da vida, das normas que regulam a sociedade. E quando os artistas extrapolam esse muro, eles se defendem dizendo: “não, mas era arte. É ficção e, se é ficção, eu posso fazer”. A lei não tem nenhum fundamento moralista. O direito não vai dizer que você não pode matar; ele vai dizer que, se você fizer isso, você vai ter que pagar tal pena. O que acontece é que o conceito de arte, historicamente, desde os gregos, está relacionado
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à fusão entre o belo, o bem e a verdade, que eles chamavam de kalokagathia, um princípio socrático. O que é belo é bom e verdadeiro. Une os três domínios (que o Kant vai separar no século XVIII, mas que para os gregos estavam associados): só é belo o que é bom e o que diz respeito à verdade. A gente guarda resquícios disso, pois tendemos a pensar que a arte está do lado do bem. É um pressuposto moral, mas não jurídico. Ou seja, você lidar com pedofilia, para a nossa sociedade, é crime, é contra as normas jurídicas. Mas em uma sociedade que vê como comum uma menina de 12 anos, que já pode ter filhos, ser mãe, isso não é crime. J: Quando você se refere à verdade é em que sentido? A: É num sentido lógico mesmo, de verdadeiro e falso. Por exemplo: “Sócrates é mortal” é um princípio verdadeiro. Não é um princípio moral, mas para os gregos estaria tudo ligado. Moral seria um princípio do bem e não da verdade. A esse respeito, por exemplo, há uma história muito curiosa contada por Aracy Amaral 2: no contexto da Guerra Fria, quando os pintores faziam representações do proletariado oprimido, a tendência geral da sociedade era ver aquelas obras como algo que estava do lado do bem, ou seja, contra o capitalismo, contra o sistema opressor. Então, havia um princípio de que a pintura engajada denunciaria as mazelas do mundo capitalista. Nesse contexto, havia um pintor peruano chamado Quintanilla, que, na época, como forma de denúncia social, fazia pinturas de indígenas peruanos sendo explorados e escravizados por latifundiários locais. Um dia, esse pintor fez uma exposição no Peru, e, num momento, entrou na exposição um desses latifundiários peruanos que escravizavam indígenas. Todos ficaram se perguntando como ele iria reagir, já que o cara era o alvo das denúncias de toda aquela pintura engajada que estava ali exposta. E ele não só foi à exposição como comprou um quadro. Aí, quando perguntaram a ele qual o sentido de ter comprado aquele quadro, ele respondeu: “Esse quadro mostra o jeito que a gente deve tratar essa bugrada”. Ele, portanto, fez uma leitura inversa, ou seja: a interpretação do quadro varia conforme o olho de quem vê. O sentido da obra não estava na obra, estava no olho de quem estava diante dela. A obra dava margem para essa leitura ambígua, porque a imagem é ambígua. E há uma tendência a ver a obra de arte como algo que está do lado do bem. Essa, eu acho, é a lição desse “causo”. Quando a gente vê uma obra de arte que transgride regras jurídicas, tendemos a pensála como gesto revolucionário. Não é possível fazer revolução sem quebrar certas normas jurídicas presentes no direito positivo, ou seja, você tem uma certa licença poética nessa situação. A tendência, portanto, é ver a arte sob uma perspectiva moral. Artisticamente, a tendência da gente é se preocupar com a tradição moral, e não com a norma jurídica. E foi assim que essa permeabilidade entre a arte e a realidade levou, no caso da arte contemporânea, a situações que podem ser perversas, porque muitas vezes o artista parte do pressuposto de que na ficção você pode tudo. Só que, se a arte contemporânea está dizendo que a ficção é a vida, nesse caso não há diferença entre vida e ficção! É outro jeito de dizer que se borrou 2 AMARAL, A. A. Arte para quê? A preocupação social na arte brasileira: 1930-1970. 3. ed. São Paulo: Nobel, 2003.
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a fronteira. E, então, alguns artistas ficam testando os limites dessa distinção. J: Você não acha a postura desses artistas ingênua? A: Em muitos casos, eu acho terrível. É um pressuposto ingênuo partir da ideia de que deixar sua obra de arte permeável à vida é algo que por si só tem potência dentro da arte. O pressuposto não é válido. No contexto do Renascimento, os artistas acreditavam que deixar a janela transparente e mostrar a própria vida através da janela da pintura renascentista era um princípio para se fazer arte, mas não era isso, essa boa vontade, que garantia uma grande obra ou um grande artista. Tinha outras questões. Aquilo era uma condição inicial. Assim, atualizando essa questão para o contexto da arte contemporânea, eu acredito que há uma ideia meio generalizada de que basta deixar a arte permeável à vida para que ela já tenha potência por si mesma. Com algumas exceções [entre as obras expostas], as últimas bienais de São Paulo foram bons exemplos dessa postura3. Dayana: Sobre as questões jurídicas que você comentou: no direito existem as leis; você acha que no campo da arte existe um sistema de regras também? A: Comparando a questão da arte com a questão jurídica, acho que a grande diferença é que no campo das leis a ideia é que tudo se regule com base no texto escrito. O que varia é a interpretação. Mas, a princípio, você tem uma tábua comum para todos. No caso da arte, do sistema social da arte, não existe regra escrita. As regras, se existem, são introjetadas. E são, de fato, introjetadas, pois a gente acredita nelas, e elas se tornam tão corpóreas como se estivessem escritas. Existem acordos tácitos, como: para pertencer ao universo da arte, por exemplo, para não ser chamado de naïf, a gente entra num acordo comum, que não precisa nem ser dito, mas que basta você ir a qualquer exposição, frequentar qualquer conversa de arte para conferir. Eu acho que o fundamento histórico dessa desconfiança com as regras da arte é a desconfiança moderna com os pressupostos da arte acadêmica. Existiu um momento na história da arte em que se acreditava que era possível tabular as regras. Via-se a história da arte não como uma coisa que apontava para o futuro, como a arte moderna e contemporânea, mas sim para o passado. Desde a corte de Luís XIV, no século XVII, passando por todo o século XVIII e parte do XIX, criaram-se instituições, escolas, onde se reunia o que houve de melhor na história da arte (do passado) para criar regras – regras que, aliás, foram escritas, de fato. Por exemplo, vamos juntar o maior estudioso da cor ou da pincelada: Ticiano, com o maior desenhista: Rafael, com quem melhor estudou anatomia: Michelangelo e perspectiva: Leonardo, e temos que ter uma obra de acordo com os atributos desses artistas. Em 200, 300 anos de história da arte você faz um rol do que há de melhor nela e acredita que, a partir disso, consegue criar normas. Hoje rimos disso porque somos filhos da arte moderna, mas durante muito tempo isso foi uma verdade para a arte.
3 27ª Bienal Internacional de São Paulo: Como Viver Junto, curadoria de Lisette Lagnado e 28ª Bienal Internacional de São Paulo: Em Vivo Contato, curadoria de Ivo Mesquita e Ana Paula Cohen.
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Hoje em dia, entretanto, fazemos questão, por exemplo, de participar do circuito acadêmico-universitário. A universidade nada mais é do que uma nova academia, num sentido por sinal muito próximo das academias de belas artes do século XIX. Durante muito tempo, a história da arte foi regulada por um princípio que não era tácito, era escrito mesmo. A história da arte era um jeito de você enfrentar o passado, ou seja: era preciso aprender com o passado para conseguir fazer uma obra que fosse digna, que estivesse à altura do Rafael, do Michelangelo, do Leonardo da Vinci e assim por diante. Com a arte moderna, isso tudo foi jogado na lata de lixo da história. Os artistas modernos não tiveram lugar no circuito acadêmico e criaram uma instituição paralela a ele. O circuito de arte moderna é uma instituição paralela ao circuito de arte acadêmica. Nós somos filhos disso. E é tudo muito recente, se compararmos 5.000 anos de história da arte com esses últimos 150 anos. Às vezes, a gente não para pra pensar quanto nós convencionamos a arte do presente através de uma definição negativa, ou seja, nós definimos a arte de hoje não pelo o que ela é, mas pelo que ela não é: ela não é, por exemplo, um conjunto de regras escritas, porque isso é acadêmico. E o acadêmico no campo da arte não é tolerado. O que é muito maluco, porque a gente tem mestrados e doutorados em poéticas, onde os artistas têm que defender uma tese de doutorado sobre o próprio trabalho, tem que ser doutor em si mesmo. É uma nova academia, portanto, e aliás se chama academia, mas as pessoas não fazem a relação com a academia histórica no campo da arte. Para mim, isso cria um dado realmente perverso, que consiste na existência de uma hegemonia moderna e contemporânea no circuito de arte. Você não pode pintar à maneira do século XIX no circuito de hoje. Se fizer isso, você não é aceito, não participa de salão nenhum, leva porrada logo no primeiro ano de faculdade. Ou melhor, você pode pintar à maneira do século XIX, mas não pode fazer isso e ter a pretensão de participar do circuito de arte contemporânea, porque você não vai receber o rótulo de artista. E quem dá o rótulo de artista? Não são nem as faculdades: é o circuito de arte, e ele se baseia em regras tácitas bem rigorosas. O que acontece é que há discussões internas no circuito de arte que acabam opondo mundos que, a princípio, parecem muito distintos. De um lado, há uma vertente mais “formalista”, que diz que a obra de arte é, por exemplo, um objeto com cerveja dentro, como nesta situação fenomenológica [Artur exemplifica segurando um copo com cerveja]. Enquanto, por outro lado, há uma vertente que diz que o que importa é o processo de se colocar a cerveja dentro do copo, ou o ato de se produzir a cerveja e o copo, ou mesmo a própria ação de tomar cerveja entre amigos, e que o objeto mesmo não significa muita coisa. Essa discussão parece tão importante para nós, parece que ela vai dividir o mundo em dois, quando na verdade essas duas fatias fazem parte de um mesmo fenômeno moderno-contemporâneo, que é aliás hegemônico no circuito de arte atual. Essas duas vertentes, quando veem uma pintura do século XIX, a veem de maneira datada. Pintar da maneira correta, exercer o desenho correto, dominar os códigos de uma pintura clássica, nada disso pertence ao circuito de arte. O circuito de arte é uma capa implícita, e a gente
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faz mesmo parte dele. Vamos convivendo com ele, visitando exposições, criando uma estrutura de gosto, frequentando a universidade, lendo textos críticos... Você vai criando um jeito, vai se adaptando a ele e, quando menos espera, começa a acreditar no que está falando, como no meu caso: eu acredito no que estou falando. Há um ponto, portanto, em que você começa a acreditar que o circuito de arte tem o poder de dizer o que é ou não arte – e isso, veja você, não está escrito em lugar nenhum, mas é praticado de fato. Certa vez, convidado pelo Governo do Estado, eu fui júri de salões de arte em algumas cidades do interior do Paraná, onde a ideia de circuito de arte não é a mesma que se tem em Curitiba ou em São Paulo. É outro sistema. E as pessoas de lá que estão mandando trabalhos para os salões estão dentro de códigos que não seriam aceitos em Curitiba. São trabalhos que apresentam um código estético que não é o código do “nosso” circuito de arte. O circuito de arte, portanto, tem uma estrutura de poder real sobre o mundo, capaz de dizer o que pode ou não participar de determinadas esferas. D: Gostaria que você comentasse um pouco sobre a construção da figura do artista, que, até onde compreendo, está relacionada a essa estrutura de poder que existe na arte, mas se trata da construção de uma persona consciente que busca seus interesses dentro dessa estrutura da arte. A: Eu tenho um posicionamento politicamente incorreto sobre esse assunto porque não acredito muito na figura do artista construído, do artista que faz pose para o circuito de arte. Porque eu tenho a impressão de que, com esse tipo de raciocínio, seria mesmo possível separar o joio do trigo: dizer quando a gente é a gente mesmo e quando a gente está representando. E isso não só para o campo da arte, mas para a sociedade em geral, como se fosse mesmo possível discernir, na vida real, e sob qualquer condição, a realidade da representação. A impressão que eu tenho é de que, quando se raciocina assim, se está considerando a representação, que é algo fundamental para o campo da arte, como uma coisa essencialmente maligna: “Eu estou representando porque tenho um objetivo torto e não posso mostrar para os outros que estou fingindo”. Eu nem sei se isso é uma questão geral de todo o universo capitalista ou se é uma questão da própria natureza humana. D: Penso que falar de realidade é falar de alguma coisa representada. A: Exato, por isso que parto desse pressuposto e, partindo dele, por exemplo, você, Juliana, representa a artista da mesa, Dayana representa a entrevistadora antropóloga e eu represento o crítico de arte. Quando vou para casa, represento o pai, o marido. Parto do pressuposto de que estou presente em todas essas representações. Isso é o que chamo de realidade, falando filosoficamente. Não acho que o que acontece no circuito da arte seja diferente do que acontece em outros circuitos, como o da economia, da política, da universidade, onde é preciso conseguir um emprego, sorrir para o chefe, etc. Nesse sentido, é a vida que faz parte do campo da representação, e não o contrário, o que talvez seja algo que pertença
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à própria natureza humana. Assim, é evidente que o artista acaba pensando na própria imagem, na projeção dela dentro do circuito social da arte, e que ele faz isso, consciente ou inconscientemente, para galgar certos postos dentro desse circuito social. Eu, de fato, se for entrevistar o Paulo Herkenhoff, não será a mesma coisa que entrevistar um aluno meu; vou me cercar de certos cuidados, para saber quem ele é, sua visão de mundo e seus interesses. Se há uma questão que é típica do nosso mundo é a existência de certas hierarquias. Mas o que o universo da arte tem de específico é que a matéria da representação é matéria artística. É do metiê do artista representar (e dos políticos também, pois eles são nossos representantes). Como na política, aliás, eu vejo a arte como uma atividade pública, e por isso não compreendo o artista que sustenta a sua poética em questões estritamente pessoais. Não é do campo da arte aquilo que diz respeito apenas à história particular do indivíduo, ou seja, aquilo que não tem a menor possibilidade de se tornar público, a não ser porque você me diz. Eu não tenho como aferir nada quando se constrói uma poética em cima de questões que são estritamente privadas e não públicas. Para mim, isto é um pressuposto: a arte é pública e almeja a comunicação entre sujeitos. A arte lida com a representação, e a representação, por sua vez, é pública e, como tal, é matéria-prima para arte. O círculo se fecha. Mas eu tenho um lado romântico também. Acredito, por exemplo, que a arte tem um papel social, que pode ser resumido ao estímulo das relações estéticas entre as pessoas, à capacidade que a arte tem de fazer com que elas enfim se reconheçam e se comuniquem esteticamente, exercitando assim a faculdade que todos têm de julgar o mundo com base no prazer ou desprazer que temos diante das coisas. Nesse sentido, a arte é um patrimônio universal, de fato, e não só uma construção da nossa sociedade, do nosso circuito de arte: ela não diz respeito só à arte contemporânea. O que estou chamando de arte, agora, esse é um princípio romântico, é a capacidade de possibilitar a experiência estética coletiva do ser humano como um todo. Um sentido muito amplo, portanto. A arte para mim é aquele momento em que há um predomínio da experiência estética, que é uma das nossas experiências mais importantes. Na nossa sociedade a gente chama isso de arte, mas em outras sociedades eventualmente isso pode ter outros nomes. Pensando a arte como um todo, eu acredito que a experiência estética é individual, mas a capacidade de experienciar esteticamente é humana – a capacidade de termos prazer ou desprazer com a forma dos fenômenos. Os artistas, de fato, e como todas as pessoas, criam estratégias nem sempre conscientes de representação para galgar espaços dentro do circuito que lhes interessa. Somos todos humanos, enfim. E esse lado é condenado, quando a pessoa que está fora do circuito vai falar que “esse cara se vestiu desse jeito para ir ao vernissage, está falando com tal curador e está mostrando seu trabalho para ele por interesse...”. É por interesse sim, e é o que ocorre na “vida real”! Eu não vejo isso como um dado negativo, mas como um dado estrutural da nossa sociedade. A questão da experiência estética a que me referi é a seguinte: o que me interessa, como alguém interessado em arte contemporânea dentro do nosso mundo, é não perder o
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registro primeiro da arte. É preciso colocar em primeiro lugar a possibilidade de se motivar a experiência estética – preferencialmente inaugural – nas pessoas, no ser humano. Só que eu, como curitibano, homem, classe média, branco, etc., acredito de fato que isso se potencialize não em termos de um ser humano universal, transhistórico, que vive em qualquer cultura; eu falo com vocês, eu frequento certos espaços culturais. Eu preciso de um registro para dialogar com os outros: o circuito de arte contemporânea brasileira, a forma como ele se dá em Curitiba, o papel que eu ocupo dentro dele... E é assim que eu acabo tomando partido, me valendo da questão da experiência estética, por exemplo, da questão de que você tem que, como artista, dentro desse circuito, motivar uma nova experiência de mundo. Eu posso mudar amanhã a minha opinião a esse respeito, mas a princípio é com esse pressuposto que eu trabalho no dia a dia. É isso que me motiva. D: Uma experiência nova de mundo para quem? A: Esse é o ponto. Se for para a humanidade em geral, esse argumento cai por terra. Eu estou pensando dentro do nosso circuito, especificamente: pessoas que vão a museus, em Curitiba, que são eventualmente alunos na universidade, que podem se interessar pela história da arte... E a história da arte é uma disciplina, que possui uma história específica. É assim, portanto, situando essa experiência no nosso entorno concreto, que eu acredito que é possível lidar com o juízo de gosto. Existem coisas que me agradam mais, como arte, e coisas que me agradam menos, mas isso é uma questão de ver caso a caso e não de usar parâmetros genéricos. Eu acredito, de fato, que ter essa experiência nova, estética, no nosso circuito social, é algo pelo que vale a pena lutar. Existem ideias poéticas que circulam no circuito de arte das quais eu discordo, outras com que eu concordo, de acordo com as minhas premissas. E como crítico, professor, curador, etc., eu acredito que o meu papel é indicar caminhos com os quais eu concordo. É um alcance restrito, claro, porque eu dialogo com pessoas que estão dentro ou próximas desse circuito. Eu lembro muito bem da época em que entrei na faculdade: eu era ilustrador, trabalhava numa agência de publicidade – era um exímio desenhista, como o próprio [crítico de arte] Greenberg também havia sido, e entrei na faculdade querendo desenhar como Leonardo da Vinci. De repente, vi o mundo da arte e como ele funciona de fato. Aos poucos fui tendo ciência da minha história pessoal. Agora, quando eu vejo um aluno meu entrando na faculdade, eu me vejo nele... Uma pessoa que não tinha contato com o mundo da arte contemporânea – e de repente eu estou ali ajudando a formar aquela pessoa. Ao longo do tempo, o que fui defendendo é que a gente tem que inserir o projeto da obra dentro da proposta original, e por isso eu gosto de história da arte, para entender o contexto, o momento em que aquilo foi produzido. No circuito de arte, como mencionei há pouco, há uma dicotomia que divide e separa as visões da arte, internacionalmente. Nesse caso, uma mesma obra pode ser abordada de pontos de vista muito distintos. Existem historiadores, críticos e pensadores do mundo da arte que pensam de formas diferentes, olhando para o mesmo evento, para a mesma obra. Um fala: “Eu vejo isso como objeto”, e o outro: “Eu vejo isso como evento,
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como processo”. Há um livro bem legal do Ricardo Fabbrini em que ele chama a arte contemporânea de arte “depois das vanguardas”4. E, de fato: a gente não vive mais no período das vanguardas. Então, quando proponho, de novo, uma arte vinculada à vida, processual, que não seja mais vista em função da materialidade, da questão formal, da questão do objeto, da presença física, material – isso é já um dado histórico. O que foi o máximo de vanguarda em um contexto é visto por uma ala do pensamento artístico de hoje como passado, que não pode ser repetido. Para a outra ala, contudo – se dividirmos em dois polos principais – é justamente isso que mantém a arte viva. Claro que eu estou dizendo isso de maneira muito grosseira, pois existem muitas sutilezas no meio do caminho, e tomar o partido por um ou outro lado seria perder a dimensão do todo, seria perder a dimensão do próprio embate. Acho que o mais importante é o embate entre uma ala e outra, nesse assunto pontual. D: Como você vê a alegoria na arte contemporânea? A: Parece sacanagem a pergunta. A questão da alegoria na arte contemporânea é o ponto central do problema. Tem um capítulo do meu livro5 em que eu analiso a mudança de discurso de um artista sobre a própria obra, no caso, o Artur Barrio, falando sobre um trabalho dele intitulado Trouxas Ensanguentadas6. Quando ele solta as trouxas ensanguentadas num contexto de ápice da ditadura militar e aquilo é confundido com corpos desovados pelo comando de caça aos comunistas, etc., a metáfora, ou seja, a alegoria estava implícita. Não alegoria no sentido clássico de que os lírios representam a pureza da virgem, mas no sentido do Ismail Xavier 7, num sentido amplo, segundo o qual o trabalho de Barrio era alegórico da situação política, do contexto da ditadura de um país subdesenvolvido, que lida com aquela matéria putrefata, que era contra a poética high tech do primeiro mundo, das sociedades afluentes, etc. Na época, o Barrio afirmou em jornais (e eu tenho as fontes; para isso serve a história) que suas trouxas eram alegóricas em relação àquele momento político, isso em 1969/70. Quando entramos nos anos 1980, ele vai mudando o discurso sobre as próprias trouxas e se afinando a um novo discurso de época. No final, ele chega a dizer o oposto: “Eu não aceito mais nenhum discurso alegórico sobre as trouxas, elas são só carnes e sangue, amarrados com um tecido x, que eu joguei no Ribeirão Arrudas em Belo Horizonte, em 1970, e a obra foi aquela ação, eu não quis dizer nada com aquilo, não há metáfora política.” É muito evidente a mudança de discurso. A minha hipótese é de que ele foi se afinando a uma mudança de discurso da arte. O campo artístico começou a ser realista, neste sentido, a ponto de banir as metáforas, a alegoria, o sentido figurado das obras. A obra é o que ela é, ela não significa outra coisa. A minha hipótese é, portanto, de 4 FABBRINI, R. N. A Arte depois das Vanguardas. Campinas: Editora da Unicamp, 2002. 5 FREITAS, A. Trouxas ensaguentadas de Artur Barrio. In: ______. Arte de guerrilha: vanguarda e conceitualismo no Brasil. São Paulo: Edusp 2013. Na época da entrevista a referência era à tese, agora publicada. 6 Barrio jogou 14 trouxas com sangue, carne em decomposição, ossos, barro, espuma de borracha, pano, cabo (cordas), facas, sacos, cinzel, etc. no Ribeirão Arrudas, em Belo Horizonte, durante a manifestação Do Corpo à Terra, parte da mostra Objeto e Participação, realizada entre 17 e 21 de abril de 1970. 7 XAVIER, Ismail. Alegorias do subdesenvolvimento: cinema novo, tropicalismo, cinema marginal. São Paulo: Editora Brasiliense, 1993.
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que ele foi mudando o discurso conforme foram mudando as explicações sobre a arte contemporânea. Uma ala vai dizer: “A arte contemporânea não lida com metáfora, não lida com alegoria, não lida com o sentido figurado... Não me interessa o que está na sua cabeça, por onde andou essa obra. O que me interessa é o dado fenomenológico, a experiência direta que eu tenho com essa obra, nesse contexto, em relação ao meu corpo, em relação à vivência que eu tenho desse trabalho. Não me venha contar que isso circulou em tal local, em tal época e que você quer que isso esteja vinculado à sua história pessoal ou a um determinado contexto, ou seja, eu estou banindo a alegoria da interpretação da obra de arte”. Essa é uma leitura conhecida na história da arte: é a leitura formalista, onde se interpreta a obra como uma forma, ou seja, como uma coisa que nos afeta os sentidos de modo que a gente esqueça a experiência que poderia ter dessa forma por outras vias, por outras fontes e discursos. É claro que esse é um dado irreal, porque ninguém olha uma forma e se esquece do que sabe sobre o mundo. Mas isso é um pressuposto ideológico de uma fatia do campo da arte: banir a alegoria do universo de experiências possíveis. O outro lado vai dizer o seguinte: “Não me interessa a forma desse objeto, e sim, em que situação ele esteve, a que contexto ele remete...”. O oposto, praticamente, se a gente aceitar essa dicotomia simplista. A questão, enfim, independentemente das razões de cada um desses lados, é que a obra de arte é sempre alegórica, sem deixar de ser “formal”. Porque ela é sempre um dado fictício, ela nunca é a própria realidade, é sempre um dado que está nos remetendo a outras coisas. Eu diria que a questão da alegoria, e por isso acho que você está de sacanagem com a pergunta, é o assunto que não está resolvido, ele é o ponto de discussão para se entender as divisões internas do próprio circuito. J: E como você pensa isso particularmente? A: Eu vou dizer como eu me posiciono quanto a isso. Eu acredito de fato que a forma é fundamental para a experiência estética. Para mim não existe arte sem forma. Contudo, a tendência em geral é se associar, e eu não concordo com isso, objeto com forma. Há formas que são objetuais, certo. E foi por isso que eu escrevi aquele artigo O olho ampliado8, que trata exatamente de entender a forma em um sentido ampliado. Porque a tendência em geral é dividir o mundo da arte em objetos e eventos (os objetuais e os que tratam a obra como evento). Eu acredito que a forma diz respeito tanto a um universo quanto a outro. É uma conversa meio abstrata, reconheço, mas é assim que me posiciono. Na proposição de um trabalho que é um objeto, uma peça, a forma está evidentemente definida pelo seu contorno material. Entretanto, em um trabalho como, por exemplo, Inserções em circuitos ideológicos: Projeto Coca-Cola9 do Cildo Meireles, a forma é o próprio evento. Nesse caso, você tem que levar em consideração a forma do evento, a maneira como aquilo circulou e assim 8 FREITAS, A. O olho ampliado. Preto no Branco, Curitiba, n.0, p. 8-10, 2005. 9 Inserções em circuitos ideológicos: Projeto Coca-Cola, 1970. Garrafas de vidro de Coca-Cola, decalque em silk-screen com tinta branca vitrificada, 24,5 x 6,1 cm. Consistia em gravar, nas garrafas retornáveis, informações e opiniões críticas, e devolvê-las à circulação.
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por diante. O que eu não concordo é com a divisão a priori que afirma que algo é bom se é objeto ou que é bom se é evento. Esse é um pressuposto filosoficamente insustentável. Para analisar a forma, que entendo como um dado fundamental da experiência estética, tenho que adequá-la ao fenômeno que está em questão, seja ele um evento ou um objeto. Acho errado condenar um trabalho de arte por tratar-se de um evento ou de um objeto. Condená-lo por ser um objeto é condenar o quê? É julgá-lo como objeto de fetiche, como uma mercadoria... E isso é condenar a princípio todo o reino dos objetos modernos e contemporâneos, mas o contrário também é verdadeiro. E existem discursos prontos de cada lado. Só que isso é criar normas rigorosas para a experiência estética, paradigmas de experiência estética, o que certamente fecha a possibilidade da aparição do novo. Se você aceitar que obra de arte é apenas objeto, simplificando bem a situação, você negará toda uma história da arte enquanto eventos, eventos esses que de fato existiram e existem. E vice-versa.
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Cleverson Oliveira
Dia 15 de junho de 2009, conversamos com Cleverson Oliveira na casa de Juliana Burigo e Tony Camargo. O papo começou em torno da mesma mesa em que falamos com Carina Weidle. A noite estava fria e logo fomos atraídos para o quintal por uma convidativa fogueira acesa por Tony. Comendo batata-doce e pinhão assados ali mesmo, seguimos empolgados falando sobre arte. A conversa foi longa, iniciando à tarde e desenrolando-se até a noite. Dela, além de Cleverson e nós, participou também Tony.
Cleverson Oliveira
36: Autorretrato no deserto, 2005. Impress達o colorida digital, 27,9 x 35,6 cm.
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Juliana: Cleverson, desejamos gravar esta conversa de forma fluida e tranquila, começando com uma questão bem aberta: o que você pensa sobre arte e o sistema que a envolve e, também, como você vê a arte contemporânea, levando em consideração sua experiência de ter vivido durante anos em Nova Iorque? Cleverson: Antes, no Soho – bairro de Nova Iorque onde havia ateliês e estúdios de artistas e que, por conta disso, virou um local de grande especulação imobiliária –, existia uma originalidade maior, porque os artistas eram o que eram mesmo. Este lifestyle, espécie de arquétipo do mundo da arte, em que as pessoas adotam uma postura que represente um estilo de vida do que é “ser legal”, “ser sofisticado”, existe mais fortemente na atualidade. De maneira geral, vejo como uma superficialidade e um modelo criado para que todos acabem consumindo/comprando essa ideia. A mídia fez a cabeça da gente, estabeleceu modelos como Jean-Michel Basquiat, Andy Warhol, Keith Haring, Cindy Sherman. Não importa mais o que você faz, importa que você chegue ao modelo do fulano, do cicrano, que seja amigo de alguém que lhe dê um passe/código para ingressar em algum sistema, no meu caso, no mundo da arte. Não tem mais tanto a ver só com o trabalho, tem a ver com conexões: quem você conhece, em que mundo você está envolvido... No mundo da arte, o artista é só uma ponta. Vejo e sinto o artista como uma âncora que segura toda a coisa. Existe muita competição, principalmente nos lugares de grande escala. Tony 1: A produção emergente deve ser muito grande em Nova Iorque. Existem muitos eventos lá para artistas emergentes, como há aqui o Rumos Artes Visuais, por exemplo? C: O Rumos é uma estrutura política brasileira dentro das artes. Desculpe a franqueza, mas a gente vive no Brasil um ranço supersenzalista. A Revolução Francesa não aconteceu aqui: igualdade, fraternidade... Existe um certo coronelismo, uma oligarquia cultural no nosso país. Como o número de iniciativas de fomento à arte é reduzido, o Itaú tem a capacidade de ancorar o Brasil inteiro. Isso pode ser positivo em algum sentido, mas em um cenário maior acaba se mostrando como uma iniciativa que dita e estabelece quem são os artistas e as tendências no campo artístico. São iniciativas dispersas, sem uma política de continuidade. A gente vive no Brasil uma coisa ainda atrasada, atravancada, apadrinhada. Claro que nos Estados Unidos existem iniciativas como essa, só que existem aos milhões, em uma proporção muito maior. Tem, por exemplo, a Bienal de Whitney, que, infelizmente, a meu ver, está cada vez com um nível mais superficial. Existe uma grande competição para participar dela porque, se você for um dos artistas na bienal, automaticamente três ou quatro galerias do mundo inteiro vão lhe fazer algum convite e vão colocar o seu trabalho lá em cima. São milhões de esquemas... E cria-se da noite para o dia um artista, que já de imediato está no mercado, com aparatos de sustentação, apoios, etc. O mundo da arte, a estrutura da arte, não só o mercado, mas toda a estrutura que a envolve, de bajulação e apadrinhamento, não tem a ver com o que o artista faz no ateliê. Nesse mundo, mesmo que o artista 1
Tony Camargo é um dos entrevistados deste livro. Seu currículo resumido encontra-se nas páginas 32/33.
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não venda o seu trabalho, ele está sempre na mídia, sempre aparecendo. E existem trabalhos que não vendem mesmo, não adianta. Existem fenômenos como o Marcantonio Vilaça que, nos anos 1980-1990, colocou uma grande leva de artistas brasileiros no mapa mundial; alguns muito bons, outros estão hoje tapando buraco – pois cavaram para si mesmos buracos e enfrentam uma grande dificuldade para sair deles. Ele era uma pessoa com visão. Montou uma galeria, pegou cinco ou seis artistas daqui e levou para as feiras de arte. Ia às coleções, galerias e museus de Nova Iorque, da Suíça, e tinha um grande talento para fazer conexões, começando a estabelecer um mercado de artistas contemporâneos brasileiros. Enfim, existem vários fenômenos que precisam ser compreendidos para entender por que o Brasil chegou aonde chegou no cenário da arte contemporânea internacional. T: E o Hélio Oiticica? C: O Hélio Oiticica não dependia desses mecanismos, mesmo porque eles não estavam criados até então, ou estavam ainda no começo. Ele viveu em Nova Iorque nos anos 1970, quando acontecia a explosão dessa vibração artística toda, e o trabalho dele ecoou porque era verdadeiro, único e estava no lugar certo. Os Ninhos2 só aconteceram porque ele viveu num loft no East Village (depois que o Soho acabou, virou Est Village). Na tradução do inglês, loft é uma cama suspensa que tem uma escada de acesso, formando um ninho pequenininho, no alto, porque não havia lugar no chão. Lá [no Village] aconteciam performances na rua, ao mesmo tempo que pessoas se aplicavam em tudo quanto é esquina, roubavam e viviam à margem. Havia muita transgressão. T: E o Cildo Meireles? C: O Cildo Meireles também participou desse mundo. Ele foi para Nova Iorque, mas também foi para a França e viveu em outros lugares. O Hélio foi o brasileiro que estava em Nova Iorque em 1970 e tinha uma rede de amigos: Neville D’Almeida, que morava com ele, Glauber Rocha, que frequentava sua casa, Naná Vasconcelos, Hélio Pellegrino... Só fera. Foi naquela época que os curadores, assim como o Guy Brett, perceberam o Hélio. Mas era uma época em que as networks eram diferentes, o artista era reconhecido porque era bom mesmo e fazia bem o trabalho. De repente, o mundo e o mercado foram se tornando coqueluches, ficando chiques e cortando as barras da marginália, e o Hélio era envolvido com um lado meio sinistro e barrapesada na favela, com drogas e prostituição. Era um outro mundo, não tem nada politicamente correto sobre artistas como ele. Agora, o assunto é como se fabrica um artista, antes, se inventava o artista. O Hélio inventou um personagem. Dayana: Como se fabrica um artista? 2 Ninhos, série de obras de Hélio Oiticica criadas a partir de 1969, que são construções com estrutura principalmente em madeira e tecido, espécie de ninhos, tendas e camas feitos com materiais diversos, que proporcionam uma experiência sensorial (entrar, deitar e interagir como quiser com a obra).
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C: Não se fabrica um artista, se inventa um artista. D: Mas você comentou que antes o artista se inventava e hoje ele é fabricado. C: O mercado fabrica artistas. Por exemplo, para ser bem simbólico, Damien Hirst – que jogada maravilhosa dos ingleses para construir esse cara, eles são muito bons publicitários. Existem também muitos enroladores por aí que não trabalham no ateliê, apenas frequentam festas fazendo contatos e conexões. D: Algo relacionado às redes de afetividade? C: Não, obviamente nenhuma. Vivemos a era do pessimismo combinada à sociedade do espetáculo, como fala Guy Debord3. Acho que não existe afetividade, existem interesses. O caminho da arte é o da negociação, que é muito cerebral, não tem nada a ver com afetividade. Afetividade é casca fina. Você tem que ter uma casca grossa. Afetividade é uma coisa muito pessoal. O artista é impessoal, lida com superfícies e não com profundidades. Lida com relações de poder, com pactos, esquemas, escambos, o que não tem nada a ver com sentimentos. Isso faz parte de uma outra esfera do artista, ou da pessoa, que está lá, escondida num outro lugar, e que é bem romântica. O verdadeiro artista é aquele que cria um artista. A Juliana aqui conversando é uma coisa, mas a Juliana que as pessoas veem no museu, que sai no catálogo, é outra. Você não pode falar dos seus problemas para esse mundo de fora, a não ser que isso faça parte da sua poética. O artista se inventa criando uma persona, vendendo alguma coisa para o espectador, provocando. Você tem que oferecer alguma coisa ao espectador, você não pode ser igual a ele. O espectador não pode se sentir no mesmo nível que você, ele tem que estar “um degrau abaixo”, numa posição de veneração em relação ao que ele vê a partir de um objeto criado pelo artista. Esse é um pensamento modernista que ainda rege, eu acho, esse jogo. O grande problema ou a grande questão é: a criação de ícones e de veneradores de ícones. Todo o sistema quer que você seja um venerador, um consumidor. O sistema quer que você ache o cara da revista e da TV legal, e não o seu amigo, porque isso não gera lucro. Ele quer te ostracizar, espremer e pressionar, te individualizar para que você consuma essa mídia e dependa dela. Nesse aspecto, é quando a cultura faz mal para você. A gente vive isso, a cultura, hoje em dia, é um problema. Ela te põe lá no chão, te achata. Poder e cultura, gosto de pensar nessas duas palavras e no sentido delas que, às vezes, se parece bastante. As corporações aparecem em vários segmentos, na cultura inclusive. Qual a diferença entre arte e cultura? Godard falava que o músico tocando ao vivo é arte e que o disco dele é cultura. Porque já é uma massificação, já virou produto, commodity, como são as artes visuais hoje. Esse é o grande problema. Por exemplo, atualmente, o Jeff Koons está alimentando certos segmentos do mundo da arte, como coleções, galerias, lavagem de dinheiro, especulações, leilões. Ele virou parte de um mecanismo que precisa girar dinheiro. 3 2003.
DEBORD, Guy. A Sociedade do Espetáculo. Trad. Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto,
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37: Sombra, 2006. Super-8 transferido para DVD, 2â&#x20AC;&#x2122; (looping). Filmado em Real Catorze, MĂŠxico.
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D: Então obra de arte hoje é cultura? C: Um trabalho que vale um milhão de dólares! Onde está a arte? A cultura é tudo isso, é a permanência da tradição que ficou. A Juliana está trabalhando, está pensando, isso é arte, mas se o trabalho entra no circuito e começa a vender, é cultura. A partir desse momento já não se depende do ato criador, já não existe a relação do criador e da criatura. Já foi para o mundo, alguém comprou o trabalho, apostou, e, então, o trabalho se colocou no mercado e será comercializado em todos esses segmentos, no museu, nas galerias, etc. Isso não é de hoje, acontece faz tempo. Walter Benjamin já falou disso em A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica4. O que é arte? O que é cultura? Isso não tem uma lógica assim tão definida. D: Se estou entendendo bem, você está falando de uma diferença entre arte e cultura, que a primeira pode passar a ser a segunda. Qual o limite entre cultura e arte? C: Acho que tem pessoas que falam sobre isso, como Danto, por exemplo, que escreveu sobre a arte institucional5. O que diferencia é uma institucionalização das coisas pela cultura. Duchamp foi institucionalizado pela cultura, está dentro do museu, foi eleito. Hoje estamos vivendo um momento especial que é a revolução digital. A internet proporciona recebermos informações não direcionadas pelos mecanismos de cultura instituídos ou corporativos. Estamos passando por uma reforma que está começando a chegar ao Brasil, the new media reform, através da qual não só receberemos informações pela Globo ou pela BBC, mas por pequenos criadores de notícias que não são essas corporações que defendem interesses específicos. O problema é que a gente ainda vive no Brasil a ditadura das grandes corporações de mídia (guiada pelas elites políticas, socioeconômicas, donas das corporações e dos monopólios relacionados à comunicação), mas isso está acabando, vai acabar. Marshall McLuhan, nos anos 1960, falava da cultura de massa, de reprodução e de cópia, e da ideia da cibernética6. A ideia da palavra, do termo cibernética, é a de que as coisas se alimentam de uma outra coisa, nada se cria. A pop art é isso. Eu acho que estamos vivendo um outro período muito mais interessante em que não há mais essa oligarquia cultural. Preparemo-nos: agora o mundo é nosso! Acho que a última grande especulação internacional foi a China. Ela foi um resquício de preciosismo político. Há cinco anos, o grande estouro mercadológico foram os artistas asiáticos, porque ainda falavam sobre uma questão política e a arte ainda buscava nichos que falavam de questões mais ideológicas que artísticas. Fazer arte pela arte, que tem uma ligação com a história da arte, não era algo explorado. Acho que com o modernismo acabou a ideia da arte pela arte. Depois disso começou a se procurar lugares onde se fazia arte por questões sociais, de pobreza, fome, etc.
4 BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. Trad. Sergio Paulo Rouanet. In: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 2012. 5 DANTO, Arthur. O mundo da arte. Trad. Rodrigo Duarte. Artefilosofia. n. 1. UFOP, 2006. 6 MCLUHAN, Marshall; POWERS, Bruce. The Global Village: transformations in world life and media in the 21st century. Oxford/Nova Iorque: Oxford University Press, 1989.
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38: Autorretrato – Clevelãndia 2002 (díptico), 2002. Lenticular, 76,2 x 101,6 cm (cada), edição de 3.
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Acho que nós, agora, no Brasil, não temos que reclamar da ditadura ou outras questões dessa natureza. Nós já passamos desse período. Eu cansei de, em Nova Iorque, quererem me colocar no mesmo saco de artistas sul-americanos, com questões políticas, etc. O Tunga uma vez falou: “O Brasil é o país do prazer”. Nós temos outra relação com a arte, não precisamos reclamar através dela. Existem reclamações, claro, mas nós temos uma posição histórica muito privilegiada porque somos o primo pobre dos Estados Unidos, mas, ao mesmo tempo, também somos o primo pobre da Europa. Temos esses dois referenciais grandes. Os Estados Unidos não têm isso. Quem é o referencial deles? Talvez a Inglaterra um pouco, pela questão histórica, pelo monopólio cultural da supremacia branca e, fora isso, não há outros, talvez os franceses e os próprios americanos. T: E você não gostava quando se referiam a você como artista sul-americano? C: Não, porque entre os sul-americanos estão os chilenos, os argentinos e, também, os latino-americanos como cubanos e porto-riquenhos, e todos esses são excolônias que estão reclamando de certas coisas, batendo na porta dos colonizadores e falando: “Olha o que vocês fizeram com a gente aqui!”. Mas o Brasil não vai bater na porta de Portugal porque a hegemonia portuguesa nem existe mais, seu poder acabou há muito tempo. O Brasil se desenvolveu de uma maneira tão maciça que, ao lado dos EUA, vamos dizer, é o país americano que mais se desenvolveu. Eu não vou reclamar por isso, para quê? Tudo bem um artista indiano ou africano reclamar da importância dada ao Chris Ofili, que é importante apenas por preciosismo. A Sensation7 foi um espetáculo com o Damien Hirst e todos aqueles artistas do final dos anos 1980, foi o último golpe dos ingleses. Eles formaram um grupo de artistas que tinham trabalhos legais, apostaram muito dinheiro e a coisa virou uma fábrica. E isso tudo reflete uma postura inglesa de roubo. Os ingleses têm uma postura de roubo e saque na história. Há até uma maneira mais caricata de falar disso: quando os Sex Pistols decidem lançar seu disco Never mind the bollocks alguns dias depois dos Ramones lançarem seu álbum Rocket to Russia (acho que é esse), eles acabaram atrapalhando muito os Ramones, que é uma banda fantástica americana. Os ingleses pensaram: “Vamos inventar o punk antes dos americanos lançarem isso mercadologicamente”. Assim, os Sex Pistols explodiram para o mundo e os Ramones até hoje são uma banda meio maldita. O que os ingleses têm em seus museus são coisas roubadas, a maioria foi tomada de outros povos, poucas coisas foram realmente compradas. O ouro deles foi roubado de lugares como o Brasil. Isso já caracteriza e revela um pouco do enfraquecimento dessa cultura, dessa supremacia branca, desse império. Eu gosto muito desse tipo de cultura e notei a atitude de passar a perna, de roubar, essa coisa meio pirata que eles têm. Historicamente, quanto tempo a Inglaterra tem em comparação com a Itália? Como eles conseguiram tudo tão rápido e são muito mais ricos que a Itália? Conquistando os mares, saindo, explorando, saqueando.
7 Sensation: Young British Artists from the Saatchi Gallery, 1997. The Royal Academy, Londres, Inglaterra (exposição da coleção de arte contemporânea de propriedade de Charles Saatchi).
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T: O que você achou da compra recente do acervo do Centro de Arte Hélio Oiticica e da coleção do Adolpho Leirner? C: Hoje em dia tudo virou negociação, estamos nesse mundo de troca e lavagem de dinheiro, de negociações corporativistas. Esse é mais um exemplo e mostra a banalização que também envolve a arte. Não importa se é carro importado, se é arte ou se são grãos, tudo tem um preço e tudo vira um produto. É a ideia de que a arte virou commodity. T: E o Jeff Koons, como é visto em Nova Iorque? C: Ele virou piada dele mesmo há dez anos porque criou uma espécie de maneirismo mercadológico de produção. Sua obra é preciosa e fundamental para entender a cultura americana, mas enfraqueceu-se porque ele virou tão figurinha marcada de leilões, com grandes peixes comprando seu trabalho. Para sustentar o mercado, ele fez várias maracutaias que geraram muitas ações judiciais. Ele fez reviver certas questões que Warhol colocou e que são interessantes, só que ele vem com o mercado. J: E como ele pode evitar o que vem com o mercado, principalmente morando lá? Você acha que existe uma forma? C: Acho que não tem como evitar. O artista não é aquele que só faz coisas boas, ele pode ser péssimo. O Jeff Koons deu sua contribuição. Ele fez todos aqueles trabalhos evidenciando as questões americanas, as hegemonias sociais, a ideia de que as pessoas são vítimas das corporações. Foram questões superpertinentes, que tinham tudo a ver com o momento – e têm ainda hoje. Mas depois desse momento a continuação do seu trabalho, ou a reiteração dessas questões, virou uma espécie de piada sem graça. T: Em relação aos estados de ânimo para fazer seu trabalho, como é para você? C: Não dá para esquecer a diversão na arte. É bem difícil assumir isso, acho que aí mora o meu romantismo, mas eu aceito e não tenho problemas para viver com ele. A minha relação com o fazer, essa relação manual, infelizmente desapareceu um pouco agora com a fotografia, e com o vídeo, principalmente. Eu sempre tive a minha mão presente no trabalho, algo que vejo sendo banido pela nossa história da arte brasileira, principalmente pela neoconcreta, quase como uma regra marxista que adotamos como postura intelectual do construtivismo. Sinto que é quase feio mostrar coisas feitas com a mão, é meio como um recalque escravagista nosso. Eu tenho certos trabalhos que estão em constante andamento, não dependem da minha mão. Há uma impessoalidade emocional. Para o trabalho acontecer, no final, ainda existe um moldureiro, um laboratório, enfim uma questão benjaminiana – não sou apenas eu. Picasso, em cinco minutos, fazia algo com a mão, a mão tinha importância. Pollock dançava em cima do quadro e Duchamp pedia para outra pessoa fazer o trabalho para ele. Eu não peço para outra pessoa fazer meu trabalho, mas preciso de um moldureiro para emoldurar a fotografia que eu manipulei de um vídeo que fiz no computador.
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39: Tina e Domenico (Las Alimas, Mexico), 2005. Impress達o colorida digital, 27,9 x 35,6 cm.
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40: Sem tĂtulo_08, 2014. Grafite sobre papel, 27 x 35 cm.
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41 : Além da superfície # 002, 2014. Grafite sobre papel, 27 x 35 cm.
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T: Quando pensa a fotografia, como você pensa a escolha da imagem? C: A partir de experiências que vivi. Eu sempre trabalho com captações de realidade através de câmeras. E, a partir dessas captações, escolho de maneira minimalista alguns poucos de 25.000 frames e agrego certas referências, certos pontos pacíficos dentro de certos movimentos (que são parte de minhas referências artísticas). Essas ações são mínimas, quase que intelectuais, apesar de eu gostar e ter muita facilidade em usar as mãos. Tais trabalhos não participam mais de discussões técnicas da arte ou de discussões científicas e sim de discussões intelectuais, de uma maneira quase duchampiana, as coisas vão se fazendo. Instaurei certas coisas que se tornaram predeterminadas no processo do meu trabalho, por exemplo, o artista poder trabalhar com seu corpo, ou poder se colocar dentro do trabalho. Uma maneira beuysiana de ser aliada a uma influência do cinema, acho. Partindo da ideia do audiovisual, da ideia de ícones, pares, que se mistura com essa ideia duchampiana de readymade e que acaba sendo um eco disso tudo, as narrativas entram no trabalho. Eu inventei uma narrativa em que sou um viajante e, portanto, os resultados do trabalho vêm de viagens que faço. Certas viagens talvez eu nem tenha feito fisicamente, são construídas, simuladas a partir de outras realidades e formam esse tapete em volta de mim, que é meio que uma poética nem um pouco objetiva. Não existe um limite. Isso já é uma consequência da arte contemporânea: a ideia é estar sempre testando seus limites. Isso é para mim algo que importa, mais do que uma coisa fechada, estanque. O meu trabalho sempre parece que é o produto de uma experiência: 4, 5, 10, 15 estudos, e o que exponho talvez não seja o final, mas se apresenta como obra de arte que propõe certos desdobramentos, é algo que está aberto, que propõe perguntas. As pessoas saem de perto do trabalho se perguntando, ao invés de ele oferecer respostas. T: Você já chegou a considerar algum trabalho seu como performance? C: Já. No geral toda essa história das catalogações de experiências vejo como performances. Tem um trabalho, que mostrei na última exposição individual que fiz em uma galeria em Nova Iorque8, em que há fragmentos de narrativas das experiências das viagens – que você pode chamar de vídeos – com partes feitas no México, na Guatemala, na Argentina e no Rio de Janeiro. São várias imagens em movimento captadas nesses lugares, e ficaram 30 minutos resultantes desse contingente. Os primeiros 10 minutos eu mostrei na galeria, nessa exposição, projetados na parede. Convidei quatro amigos, alguns músicos e outros não e, usando uma aparelhagem eletrônica, uma bateria eletrônica, nós cinco fizemos uma suposta trilha sonora para o que as pessoas estavam vendo na galeria. Junto com essa trilha sonora, misturei aleatoriamente alguns trechos de entrevistas que fiz ao longo de algumas dessas viagens. Isso foi o mais próximo que fiz de uma performance física, mas, como disse, considero todo o meu trabalho como uma espécie de performance. A invenção desse viajante, ou desse observador que vai para 8
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Frontiers: A journey through the Americas, 2006. M.Y. Art Prospects, Nova Iorque, Estados Unidos.
outro lugar, começou quando fui para os EUA, mas o trabalho do Super-Homem9 já era isso de uma maneira sutil. Ou seja, não sou um artista que se utiliza apenas da técnica de escultura, do desenho ou da pintura, todas elas estão aliadas, mas nenhuma se mostra efetivamente como algo que possa se sobressair, que seja constante na produção. Estou sempre testando limites, criando propostas abertas, exercícios, experiências. Isso é uma espécie de performance para mim, não sei se você concorda... T: Concordo. Eu também penso a performance na relação direta com a vida. No trabalho em que uso meu corpo não consigo vê-lo mais, eu só vejo imagem, é por isso que são quadros. Acho um problema quando vejo numa exposição coisas que são colocadas como performance, mas que fazem mais sentido na vida do que dentro do museu. Mas o seu trabalho, Cleverson, acho que tem uma ótima conversa com performance mesmo. Quando vi seu trabalho pela primeira vez, percebi um certo descompromisso com o objeto, uma relação mais direta com a vida, que aliás achei muito bacana. C: Isso devo aos americanos como Warhol e Jeff Koons, e, obviamente, a Duchamp e Beuys. O Jeff Koons era o artista de que eu mais gostava e acompanhava, acho que por isso, de certa forma, me decepcionei. T: E o que você acha dos Diários de Andy Warhol10? Em alguns momentos não lhe parece que ele não estava tão preocupado com a arte, mas estava a fim de viver e curtir a coisa toda? C: Eu gosto muito, sempre os leio, são fantásticos, porque também fazem parte de catalogações de vida, adoro isso. Eu acho que ele não estava nem aí para responder às perguntas que faziam a ele sobre arte, e estava muito aí para a arte. Tinha que estar ligado no que estava acontecendo para fazer aquilo: é um artista que conhecia a história da arte. Warhol levantava o tapete de alguns lugares onde tinha alguma sujeirinha escondida na qual ninguém quis mexer e procurava falar sobre aquilo, “tirar um sarro” daquilo, problematizar. Todo o seu trabalho é isso. Eu tive a chance de ver muitos. Ele, na verdade, é o representante de toda uma geração que hoje morre de saudades e morre de tédio por estar em Nova Iorque na atual situação das dinâmicas da arte. Quem está naquela cidade e viveu aquele momento carrega uma grande nostalgia e tristeza. Conheço várias pessoas que foram embora de lá, pois é muito desolador ver a transformação que ocorreu com a arte. Aquele foi um momento de glória. As pessoas eram enlouquecidas, liberadas e isso gerava muito 9 Referência à exposição individual Clevelãndia ’99, 1999. Solar do Barão, Curitiba/PR – ver imagens 44, 45, 46, 47 e 51. Comentário de Cleverson: “É uma reflexão sobre a fragilidade dos mitos. Em Clevelãndia 99, esses mitos, ou mais especificamente, o do super-herói (que em nosso tempo remete ao pensamento do homem ocidental) aparece como tema central da exposição. A partir da cultura do cinema, tive a decisão de eleger este personagem/cânone e o trágico acidente que ocorreu com o ator que o canonizou. Os acontecimentos e a trajetória da construção de um mito criado pelo cinema (arte), e a realidade daquele que ‘empresta’ o seu corpo para criar tal mito, de alguma maneira, refletem a construção da história, do pensamento humano, e da arte deste século, onde o corpo do artista se torna o próprio simulacro, o instrumento central de reflexão e semelhança”. 10 WARHOL, Andy. Diários de Andy Warhol. Org. Pat Hackett, trad. Celso Loureiro Chaves. Porto Alegre: L&PM, 1989.
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42 e 43: Debris, 2009 (tríptico). Vídeo, 11’.
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44: Clevelãndia ’99 (poster) – El Matador Beach-Califórnia, 1999. Impressão colorida digital, 35 x 47 cm.
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45: Sem título #1 (detalhe), 1999. Argila, tinta acrílica e silicone.
46: Sem título #2, 1999. Uniforme do personagem de quadrinhos Super-Homem, naftalinas e caixa de acrílico.
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47: Sem título #3, 1999. Carbono sobre papel, 50,8 x 61 cm. Desenho feito a partir de uma foto da revista TIME do ator Christopher Reeve após o acidente que o deixou tetraplégico.
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48: Maria, Maya Woman (San Pedro la Laguna, Guatemala), 2005. Impress達o digital, 40,6 x 50,8 cm.
49 (p.146): Debris estudo 002, 2011. Grafite sobre papel, 48 x 60 cm.
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mais criação e fruição. Hoje vive-se um mundo politicamente correto e é impossível escapar disso. Nova Iorque virou um lugar careta, superconservador, puritano. Os Estados Unidos sempre foram um país de resistência, têm uma história belíssima em relação a isso. Sempre teve gente resistindo e peitando a força venenosa dos presidentes americanos, que pregam a supremacia branca, a lógica protestante. A questão é política. Esse poder de castração sempre foi muito grande lá, essa mentalidade protestante, não católica. O catolicismo no Brasil também tem essa história, mas o catolicismo é muito mais permissivo que o protestantismo. O protestantismo prega que você precisa acordar cedo, trabalhar, chegar em casa às seis da tarde, rezar, beijar sua mulher e dormir e, quem sabe, fazer um sexo de vez em quando. Você precisa guardar a vida, caso contrário, existe a culpa. No catolicismo, você se confessa ao padre e ele te dá uma penitência. Acabando a culpa, você faz tudo de novo. Tem santo, tem vermelho, tem veludo, tem vinho. No protestantismo não. Aí começa, a meu ver, um dos maiores problemas americanos: existe uma castração sexual que está agora chegando ao seu limite. Essa não permissividade, essa proibição sexual, essa repressão, criou esse indivíduo puritano. D: Existe um texto clássico na sociologia que se chama A ética protestante e o “espírito” do capitalismo, do Max Weber 11... C: Então, isso levou a uma individualização. Eu sinto o norte-americano muito só pela criação dessas bolhas de proteção que acabaram virando jaulas. Não existe mais a relação com o outro e sim com ele mesmo. Estão vivendo um período de desumanização e o ser humano está entrando em colapso por isso. Nos anos 1970 ainda tinha essa resistência. Depois de Reagan, começou uma armada para a revolução republicana, que aconteceu em 1992. Os republicanos tomaram conta do Congresso e, desde então, vêm executando esse plano de tomar o petróleo do mundo, de virar mesmo a maior hegemonia. Com Rudolf Giuliani, um ex-policial, virando o prefeito de Nova Iorque em 1992, a cidade começou a ser um lugar meio nazista, controlado. No segundo mandato dele aconteceu o 11 de setembro e, com isso, mais republicanos apareceram, porque a segurança da família americana é algo que eles pregam. Essa família americana teve os filhos que assistiam à televisão e que pensavam em ser celebridade e ir para Nova Iorque. E a cidade começou a virar uma cidade vigiada, com muitos policiais. Esse universo todo que o Warhol viveu acabou, a cidade varreu o mundo dos loucos e boêmios, a liberdade dos indivíduos. Por isso eu disse que as pessoas têm saudades. Eu cheguei na cidade no final disso, no começo do segundo mandato do Giuliani. E o Bush é o epitáfio dessa história toda. Quando ele conseguiu chegar lá em cima e virar presidente de novo – um sujeito que é da família do óleo –, fizeram o que fizeram com Saddam12, porque era um plano. Saddam disse aos americanos que não queria receber mais em dólar e sim em dinheiro europeu. Nesse momento, o euro foi criado e o objetivo era dominar o petróleo do mundo. Mas, se os outros países 11 WEBER, MAX. A ética protestante e o “espírito” do capitalismo. Trad. José Marcos Mariani de Macedo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. 12 O antigo presidente do Iraque foi executado por crimes contra a humanidade, em seu país, em 2006.
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árabes fizessem como Saddam fez, os EUA quebrariam. Então, eles propuseram uma aliança com os Emirados Árabes, que eram inimigos do Saddam, e aí aconteceu toda essa história, até que os EUA anunciaram que iriam invadir o Iraque porque os iraquianos tinham armas de destruição. Ou seja, o que eles pensavam era: “Vamos derrubar as torres, colocar a culpa nos terroristas árabes e pegar o petróleo deles”. E conseguiram. Já fez dois anos que eles ocuparam o Iraque e estão lá até agora derrubando tudo: eles derrubam algo, a empresa do [ex-vice-presidente estadunidense] Dick Cheney constrói tudo de novo, eles ganham dinheiro dos dois lados e pegam o petróleo desses países. Mas agora entrou o Obama, vamos ver o que vai acontecer. Tem toda essa história amarrada. Se não matarem, nem derrubarem o Obama, e se ele não se vender... Tudo isso é uma roda viva muito mais interessante do que a arte, como não falar sobre essas coisas? Arte nesses grandes centros é estéril, é corporativo, são pessoas que trabalham em Wall Street investindo na bolsa, ou figuras da moda. D: Você pretende ficar aqui agora? Por quê? C: Eu pretendo, porque aqui posso me reinventar mais. Esses mundos não estão muito próximos de mim. Este atravancamento nosso aqui acaba proporcionando outros tipos de diversão ainda não tão corporativistas. Somos mais naïf em certos aspectos históricos, isso nos dá espaço para ser mais livres, não estamos tão catalogados, não somos tão produto, tão alvo das empresas de cartão de crédito, você não é tanto um cliente, você ainda é um cidadão. Nos EUA as pessoas são clientes, não são cidadãs, são vítimas das corporações, porque elas criam necessidades. Existe, por exemplo, um ciclo comida-doença que é uma das jogadas principais desses caras, onde eu compro comida envenenada, ruim, num supermercado, e o irmão do dono do supermercado me vende o remédio. Um ciclo criado pelas grandes indústrias para fazer você ficar com alguma doença grave e necessitar de remédios. Há um sistema todo que se criou em volta desse cliente não cidadão. J: Nós vivemos isso aqui no Brasil, mas ainda temos espaço para nos esconder um pouco. C: Pois é, essa ideia de se esconder entra na filosofia de Foucault, do olhar institucional que está sempre nos vigiando13. Aqui somos um pouco menos vigiados. Nos EUA eu não aguentava mais de medo de ser preso sem saber o porquê. Não há só uma aversão a terroristas, há uma aversão a latino-americanos, brasileiros, africanos, indianos. Eles pensam: “Por que você quer entrar no meu país se você não é dele? Você é brasileiro, é do samba, vocês são sexuais, vocês vêm aqui para bagunçar”. Essa é a história da supremacia branca – WASP (White Anglo-Saxon Protestant), o poder branco.
13 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: história da violência nas prisões. Trad. Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 2009.
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50: Debris, 2010. Vinil adesivo sobre parede e piso, MON, Curitiba, PR.
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T: E as pessoas que você conheceu lá, será que estão sempre conscientes disso? C: Existe lá muita gente consciente disso tudo, e de uma maneira diferente da gente, porque nós não vivemos com esses problemas, não precisamos nos armar contra isso. O cara que é branco e de olho azul, nos EUA, tem muito mais problemas com negros do que nós, no Brasil. O racismo é muito grande, tanto de um lado quanto de outro. São secções bem marcadas. As relações inter-raciais igualitárias, ainda hoje, são algo sofisticado. Antes não aconteciam essas relações, existiam nichos, ficava um de cada lado, os grupos eram contidos. D: Em que condições você foi para Nova Iorque? C: Fui para Nova Iorque em 1996 para ver e estudar arte, para estudar inglês e conhecer a cultura norte-americana, que vi desde que estava na barriga da minha mãe. Trabalhei por um ano dando aulas de arte, economizando dinheiro para comprar a passagem. Formei-me pouco mais de um ano antes de ir, em 1994, trabalhei o ano de 1995 inteiro e fui em abril de 1996. Eu queria ir para lá desde que tinha 12 anos. Mas isso era normal, todo mundo que viveu nos anos 1980 e que viu aquela explosão do E.T., do Guerra nas Estrelas, do rock ‘n’ roll, nesse mundo da mídia, de tanto receber essa cultura, essa massificação, você queria ir para onde essas coisas estavam. Tem coisa mais sedutora que o E.T. quando você tem 10 anos de idade? Piás da tua idade na Califórnia que pegam uma bicicleta e saem voando. Spielberg é um dos meus heróis, queira ou não. J: E seu trabalho do Super-Homem é de quando? Você já estava lá? C: De 1998. Fazia um ano e meio que eu estava lá. Foi uma época muito boa, me diverti muito. J: E você fez alguma exposição antes de ir? C: Eu, o Fernando e a Gabi fizemos uma exposição em 1994 chamada A fala14, na Galeria de Arte do Inter Americano. Foi meio que o nosso Moto Contínuo15, mas muito menos romântico. J: Você foi para Nova Iorque como assistente do Vik Muniz16? C: Não. Ele está lá desde 1983. O Vik viveu um pouco desse mundo, ele conheceu o Warhol, o Beuys... Esses caras ainda estavam lá e havia essa vida que comentei de Nova Iorque, dos anos 1970, em que você andava na rua e tinha um monte de loucos, 14 A Fala, 1994. Exposição coletiva com os artistas Cleverson Oliveira, Gabriele Gomes e Fernando Burjato. Galeria de Arte do Inter Americano, Curitiba/PR. 15 Evento Moto Contínuo, 1983, organizado pelos artistas Denise Bandeira, Eliane Prolik, Geraldo Leão, Mohamed Ali el Assal, Raul Cruz e Rossana Guimarães na galeria de arte da Fundação Cultural de Curitiba. A ideia de circulação do trabalho de arte, a experiência coletiva no processo de criação artística e sua inserção urbana orientaram as discussões do grupo. Foram realizados: os jornais pictográficos (jornais alterados pelos artistas e distribuídos gratuitamente); a edição do tabloide Moto Contínuo, encartado num jornal de grande circulação; a produção de cartazes únicos, colados em vários pontos da cidade e que se constituíam como mostra no espaço urbano; duas exposições nas galerias da Fundação Cultural de Curitiba; performances e intervenções no centro da cidade. 16 Cleverson foi assistente de Vik Muniz de 2000 a 2003.
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os grandes clubes ainda existiam. Mas aí a repressão foi cortando, hoje em dia não tem mais nada disso, quem é um pouco diferente lá é porque comprou a roupa na lojinha cara, porque está na galeria, etc. Modelos, réplicas de ícones, a réplica da réplica do Basquiat. Você pode ver um cara na rua que lembra o Basquiat, ele é negro, quer ser pintor, mora em Nova Iorque, já viu vários filmes sobre isso. Então, são criados certos nichos em torno dos quais as pessoas podem se acoplar. A cultura controlou muito mais as pessoas e colocou um cabresto, elas vivem suas vidas inteiras em cima de um modelo que talvez nem tenham escolhido, mas acham que estão sendo originais. Isso é uma praga, é a própria cultura. Quando falo que a cultura pode ser ruim é nesse aspecto. J: Desde que nascemos já existem condições que nos são impostas culturalmente e muitas formas de controle, condicionamentos, circunstâncias que nos influenciam não só a ser como somos, como em relação ao que valorizamos e como valorizamos. Isto tudo decorre do sistema social, econômico, político e cultural em que vive um povo, e das formas de poder, da relação com o poder. Existem profissões, por exemplo, que conotam maior valor que outras, e que são consideradas ideais, modelos a ser alcançados, símbolos de status, poder, estabilidade financeira e que acabam sendo mais respeitadas. Por exemplo, as profissões de médico, dentista, advogado. É algo que talvez esteja ligado mais intimamente com o desenvolvimento do capitalismo, onde prevalece o desenvolvimento material sobre o desenvolvimento do ser e também com o avanço de algumas culturas dominadoras. C: Sim, as pessoas querem o poder. Por isso que o ápice da pirâmide social é você ser bem-sucedido de alguma maneira ou de outra. Principalmente agora, se você usar uma gravata e tiver um carro, você é o herói. Essa mentalidade já vem se instaurando desde Jesus Cristo – a primeira corporação do mundo, o cristianismo, que deu certo até hoje. Os católicos falaram: “Vamos inventar isso aí, unimos todos os deuses num só, inventamos alguns lugares para as pessoas rezarem e ganhar grana. Chega de politeísmo e de rituais de histeria em massa através de substâncias e psicodelismo”. As experiências psicodélicas se perdem totalmente. Não existe mais contato com o sagrado através das substâncias, algo que sempre existiu nas sociedades. A experiência religiosa torna-se exclusivamente oral, não há mais troca. Então, a primeira corporação se instaura: a Igreja Católica. E o herói se instaura: Cristo. Eles investiram nessa ideia do herói porque era mais fácil. E a gente vive isso: “Por que que eu quero ser um artista famoso, ou um médico...? Porque eu quero ser um herói!” D: E você, quer ser um artista famoso? C: Hoje não me preocupo. A uma certa altura da minha vida eu pensava nisso. D: E você, Tony? T: Eu quero ser um artista reconhecido. Às vezes isso pode ter a ver com fama, mas se acontecer será uma coincidência ou consequência, e não um objetivo alcançado.
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51: What’s wrong with… (Jogo dos erros), 1999. Impressão colorida digital, 48 x 60 cm.
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J: E será que a fama não é uma cilada? C: Quanto mais preocupado com a fama, mais longe você vai estar dela. Porque você vai ficando conhecido, mas não é tão famoso quanto o Leonardo da Vinci, então acaba caindo em jogos egocêntricos. Hoje em dia, dificilmente um artista brasileiro vai ser mais famoso que o Vik Muniz, pois ele virou um herói nacional, como o Ayrton Senna, o Romero Britto, a Gisele Bündchen. Existem vários artistas que têm um ego assim. Você tem que dar valor ao que já tem, porque essa sinuca com o artista é uma armadilha: se você não é tão reconhecido quanto determinado artista, pensa que se deu mal, mesmo que seja bom. A obra de arte é uma coisa, o mercado de arte é outra. É uma tremenda roubada seguir receitas e se comparar. Se você se comparar com outro, cai. “Se não aparece na revista Bravo, não participa do Rumos Itaú Cultural e de galerias importantes de São Paulo, se não está nesses lugares, você não é um bom artista.” Esse é o jogo, as pessoas saem das escolas de arte querendo ser Vik Muniz. D: E o movimento inverso, apocalíptico, como o “dane-se o mercado”? C: Essas teorias são o apocalipse: a cultura, o conceito celebridade. A ditadura das imagens, esse é o apocalipse, fazendo o movimento inverso do pensamento. A epidemia dos veículos de comunicação. Alguns dizem que estamos vivendo uma crise do real, onde as coisas já não são elas mesmas, onde qualquer coisa pode ser qualquer coisa, então, não existem mais parâmetros para nada. Se de fato vivemos numa crise da realidade, isso é um problema! Como nós vamos lidar com isso? Como vamos produzir objetos que dizemos ser arte? Como isso vai caber no mundo? Tem lugar no mundo, hoje, para isso? Quando faço uma foto, ou qualquer outra imagem, eu penso nisso. Por isso quero fazer esses filmes, que faço como uma performance. Minha arte está ali, é o tempo real, não há crise de realidade. Eu fazendo música ao vivo com as minhas imagens. Posso fazer uma pintura, um desenho, uma fotografia, mas sempre pensando: “Isso merece estar no mundo? Vale a pena? Onde essas coisas vão parar? Vão virar commodity? Alguém vai comprar? E eu preciso viver também... Como é que eu vou viver?”.
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A conversa com Marco Mello aconteceu na tarde de 14 de julho de 2009, na edícula nos fundos da galeria Casa da Imagem, uma edificação de estilo (ou de inspiração) modernista, com amplos espaços em branco (inclusive o piso) e grandes portas de vidro,localizada no centro de Curitiba.
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Juliana: Qual sua relação com a arte e o que você pensa do contexto atual da arte contemporânea? Marco: Inaugurei a galeria Casa da Imagem em 1991. Desde o início, o projeto foi trabalhar somente com arte contemporânea; já são 18 anos. As mudanças que ocorreram no meio de arte nesse período são impressionantes. Quando comecei como galerista, o mercado de arte no país era bastante incipiente, e a produção contemporânea, avaliada com desconfiança e desdém; a todo instante se fazia necessário defender esse território: do governo, dos veículos de comunicação, até do público. Pelo menos em Curitiba era assim. Depois, o mercado de arte foi ganhando corpo mais definido, surgiram mais compradores e colecionadores e a atividade foi adquirindo formas mais promissoras. Por fim, chegamos ao estágio em que hoje nos encontramos, a existência de um mercado com características pungentes em vários pontos do território nacional, e o segmento contemporâneo capitaneando o setor. Avalio que hoje não se trata mais de fundar um âmbito, ele está de pé, mas considero que existem outras urgências. A mais flagrante, pelo menos para mim, é estabelecer critérios para que possamos julgar a produção atual. A cena contemporânea tomou proporções impressionantes e variadas, com boa parte de sua produção desenvolvendo relações cada vez mais estreitas com a nossa vida mais imediata. Acredito que muito do que hoje é apresentado como arte está bem longe de deter qualidades efetivamente artísticas e, para o bem desse território, é preciso que o debate não se faça frouxo ou arbitrário. É possível objetar que não é muito diferente de outros períodos, em que também havia uma predominância de trabalhos com qualidades ruins, mas o x da questão é que o espaço da crítica se tornou hoje bem mais reduzido, enquanto outras realidades desse processo produtivo se tornaram superlativas. E é nesse mundo que aprendemos o que é arte e vivemos as suas experiências. Para encurtar, quero dizer que a questão do contemporâneo, em meu entendimento, deve ser necessariamente atravessada pela discussão acerca do conceito de arte: do que é arte e o que não é. Afinal, o que faz a arte contemporânea não é deitar mão em um conjunto de procedimentos ou materiais novos, mas, por intermédio de uma realização, encontrar um modo de atualizar um âmbito que pertence à nossa forma de vida, o âmbito da arte, garantindo a sua permanência. Queiramos ou não, temos uma responsabilidade com tudo isso: são as nossas práticas que fundam preceitos, valores e possibilitam novos desdobramentos. J: Você se refere à ação e responsabilidade de todos os agentes relacionados ao meio artístico, nele e para com ele? E no seu caso, especificamente, a galeria sendo também uma instituição que funda e estabelece valores? M: É. As noções que temos da arte devem-se às ações dos artistas, às experiências que travamos com os objetos artísticos, mas não devemos esquecer que aqueles que promovem eventos e ações artísticas também têm uma importante participação neste jogo. Quando comecei, muita gente recebia mal as exposições, alguns riam, faziam piadas do que eu “inventava” e dos trabalhos que mostrava. Hoje, encontro várias pessoas que se mostram arrependidas de não terem aproveitado mais e,
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inclusive, comprado naquela época, pois circularam pelo espaço da galeria obras de artistas que vieram a se tornar muito importantes e valorizados no país. Mas, para chegar a isso, a conseguir este reconhecimento, teve muita labuta e insistência. Foi uma queda de braço danada. J: E você acha que as pessoas riam porque queriam ver o quê? Será que esperavam ver algo que correspondesse ao que viam em livros e revistas de arte, uma arte já instituída, mais comum ou familiar aos olhos? M: Em parte sim. Em parte, porque a visão daqui, desta cidade, das pessoas que aqui “consumiam” arte, era bem rasteira. A experiência vivida não abria nenhum horizonte novo, já que havia poucos locais para se ver arte e os espaços que existiam basicamente repetiam e reafirmavam o que elas já tinham em suas mentes. Era uma visualidade bastante pobre. Muito preconceito e pouco conceito. A inauguração da galeria foi importante nesse processo. Passamos a dar guarida a um panorama de trabalhos distintos, e isso contribuiu para dar mais musculatura ao debate e ensejo às mudanças. Paralelamente às exposições, a galeria promovia cursos, debates, trazia críticos e curadores de fora para ministrar conferências; estávamos sempre preocupados em oxigenar o meio, em constituir uma proximidade com a pauta vigente das preocupações artísticas. Sabia que sem isso a galeria não poderia sobreviver: ou a coisa mudava, ou, mais cedo ou mais tarde, teria que fechar as portas. Lembro que, ainda no início dos anos 1990, poucos anos após a galeria ser inaugurada, começou a ocorrer um maior interesse pelo turismo cultural e pelos espaços destinados à arte. No período, iniciava-se um boom de construção de museus de arte contemporânea em diversos países. Muitas pessoas, depois dessas experiências, me procuraram para dizer que haviam começado a entender o que a gente estava fazendo e passaram a ter uma relação mais estreita com a galeria. Passaram a frequentar mais as exposições, olhavam com bem mais cuidado os trabalhos, participavam dos eventos, dos cursos. Dayana: Você fez artistas? M: Lancei vários; de outros, acompanhamos o seu percurso ainda no começo de carreira. A galeria inaugurou em 1991, mas desde 1988 o projeto estava se esboçando. Como resultado disso, o núcleo central da galeria se concentrou nos artistas da chamada “geração 80”, daqui e de outros estados. Nos anos seguintes, outros, mais jovens, vieram a integrar o cast da Casa da Imagem. Pegando a pergunta por outro viés, de forma mais literal, acredito que direta ou indiretamente as nossas atividades contribuíram com o desenvolvimento da produção local e o surgimento de vários artistas. Se você está inscrito em um meio restrito, basicamente com realidades provenientes de contextos A e B, é natural que as suas ações gravitem em torno dessas realidades. É difícil que ocorra de modo diferente. Contudo, na medida em que o seu meio se torna mais complexo, proporcionando novas experiências, a decorrência natural é que novas relações venham a ser constituídas. Às vezes, eu era convidado para aulas em cursos de pós-graduação ou para ministrar palestras e conferências, e ficava abismado com as reações aos trabalhos que mostrava, por
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exemplo, os do Beuys ou do Pollock, isso só para ficar em dois nomes plenamente estabelecidos em todo o mundo. Sem qualquer pudor, diziam com a boca cheia de orgulho que era só porcaria, que os trabalhos não tinham nada, era só lambuzeira... Veja que se tratava de estudantes de arte e de artistas consagrados há mais de quarenta ou cinquenta anos. Isso dá para dimensionar o tamanho do buraco; dá uma ideia do quadro de referências dos participantes do meio de arte local. Não era fácil. Por mais incríveis que fossem os trabalhos, e isso me deixava assombrado, a maioria passava batido, não via nada. Claro que havia exceções, mas, para a grande maioria, a arte era uma experiência travada com uma figuração organizada pelas regras da perspectiva clássica. Faltavam experiências, informações, vivências para que eles pudessem partilhar outros legados culturais. E o pior era que essa realidade vigente encontrava, por muitos meios, força para se reproduzir. Vivia obcecado por pensar modos, atalhos que proporcionassem escapar do círculo vicioso e encontrar um virtuoso. Por isso tantos cursos e eventos. J: E por que você acha que isso acontece? M: Devido a vivências muito pobres com relação à arte. Aprendia-se, e aprende-se, a ideia de arte a partir de noções bem fracas, e, como as vivências não superavam tais noções, não as colocavam efetivamente em xeque, ela ia se mantendo, seguindo como se fosse jovem e faceira, a dona absoluta da passarela. É natural que as coisas pensadas por nós e os partidos que tomamos sejam delineados a partir do nosso quadro de referências, do nosso mapa cultural. Eu aprendi muito, principalmente na convivência com os artistas. Acompanhei muitas maneiras de pensar, poéticas muito diversas, projetos diferentes; participei lado a lado, discutindo, intervindo, e isso vai te dando cancha, abrindo possibilidades para novas reflexões, então falo isso “de cadeira”. Quando alguém apresenta possibilidades que são novas, pode retirar uma trava da qual você não se dava conta, possibilitando a você ver as coisas de maneiras que até então não imaginava possíveis. Agora, se o contexto da vida não apronta formas discordantes das nossas crenças, podemos ficar presos a elas infinitamente, por mais que sejam absurdas. Há também aqueles que, embora mantenham contato com experiências mais atuais, resistem a elas a qualquer custo, vivem tomados por um temor desmedido do novo, armam trincheiras e se negam a deixá-las; elas são o seu território, a sua pátria: é o que chamamos de pensamento conservador. Na arte, o conservadorismo não tem vez, embora o território dela também se faça da tradição. Fazer arte é justamente o fato de fazer as coisas de um modo diferente. Quebrar o imperativo da norma. Hoje, percebo uma mudança de comportamento drástica, notadamente em um segmento mais próximo da arte, e multiplicou muito esta fração, uma modificação que não é necessariamente positiva, que comparece trazendo novos problemas. Parece que no presente as travas se comportam de modo meio frouxo, como se para muitos desse segmento próximo tudo fosse possível, tudo pudesse ser arte. Basta o artista querer e pronto. Igualmente, não compartilho dessa ideia. É como se tivéssemos passado de um extremo ao outro. Divisar isso me impôs novas responsabilidades. Se antes sentia a necessidade, diante de realidades tão restritas e fechadas, de abri-
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las – “ou se abre as comportas ou não há mais arte” –, hoje sinto que, se não houver porta nenhuma, nenhum obstáculo, o espaço ocorre como um simples corredor de passagem. Sem barreiras, impedimentos, também não há arte. Para derrubar limites é necessário que exista algum limite. O historiador Paul Veyne afirmou que, quando tudo se transforma em história, a história deixa de existir; penso o mesmo com relação à arte. Acredito que, embora seja possível realizar obras com qualquer material ou operação, não é qualquer material ou operação que acaba por se tornar artístico. Pessoalmente, acredito que é preciso fugir dessa pretensa facilidade e encontrar pontos com maior resistência. É preciso que a prática artística se arme de mais critérios. D: Sei que é difícil, mas que critérios, para você, aproximam e afastam objetos da arte? M: Existe em toda ação artística um princípio de discernibilidade, ou seja, um conjunto de modos capaz de constituir distinções entre as realidades ensejadas por este campo e as pertencentes aos demais. Como disse, é possível fazer arte com qualquer matéria do mundo, com as ações mais diversas, mas não é qualquer ação que se torna artística e nem qualquer coisa que realizamos que se transforma em arte. Isso não é só uma afirmativa movida por questões subjetivas: são esses objetos que se “querem” assim; eu os observo, verifico as suas insistências em determinadas arestas, descubro continuidades, perscruto essas relações e aprendo com eles. São eles que me ensinam quais são os princípios que a esfera da arte reclama e os modos de discernir o que os artistas inventam. Por exemplo, as imagens de santos, só pelo fato de serem imagens, não podem ser caracterizadas como arte. Um religioso, mais do que se deter no desempenho visual daquela imagem, vai tomá-la como algo para o qual o crente vai distender sua fé, fazer um pedido, invocar um milagre. A relação com a imagem é de crença na existência de um nexo entre esse signo e uma realidade distante, fora do mundo, como se, por meio de um, fosse possível atingir a realidade daquele outro. Por outro lado, com outras imagens, podemos encontrar a descrição de um determinado espaço, como nas pinturas feitas em viagens marítimas, onde se visava descrever algo para observadores que estavam a distância do referente, possibilitando que eles apreendessem aquela realidade visual. Aqui e ali as coisas são bem diferentes. Veja-se que a imagem não é somente a “presença” de algo, uma referência a algo; igualmente é um estar, é um lugar onde nos encontramos, onde estabelecemos experiências de naturezas diversas, de mundos diversos que compartilhamos. A arte é um desses mundos e comporta distâncias e proximidades que lhe são próprias. Não falo somente de distâncias comprometidas com as espacialidades métricas, que são somente uma parte do universo que compõe as distâncias, mas igualmente daquelas de outras naturezas, oriundas de qualidades diversas. Qual é o lugar da arte? Em qual distância ela se insere? Qual é a proximidade que ela convoca? Essas são algumas das questões que perpassam necessariamente, a meu ver, o âmbito da reflexão artística. As coisas incorrem em mundos completamente diferentes conforme se distanciam ou se aproximam; repito, não são medidas meramente da
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métrica. O modo como representamos um corpo depende das relações de distância que mantemos dele. Algo, quando “está” para além do limite do mundo, pertence ao sagrado. Quando está no limite do mundo, torna-se arte. No limite da minha imaginação, compõe-se como erótico. No limite do meu olho, é pornográfico. E ao alcance da minha mão, a uma distância muito próxima e imediata, é do âmbito médico. Diante de representações do corpo humano, é possível se relacionar por essas diferentes maneiras. Estatuárias com seios enormes podem perfeitamente, como o foram, suscitar um relacionamento com o sagrado. E se me conformo a isso, despendo sensibilidades compatíveis com esse contexto. Embora a figura apresente partes do corpo que associamos aos contextos de erotismo e pornografia, e até de forma bastante pronunciada, não estabelecemos uma afinidade propriamente erótica. A cada uma dessas distâncias, respondemos com um tipo de sensibilidade. Quando percebo algo como arte, manifesto uma sensibilidade apropriada: aprecio esteticamente. A arte para mim é um prazer sem gozo. Ao ver a figura feminina no limiar do mundo, em um lugar limite entre o estar e o não estar, vejo-a como artística. Se a trago mais para perto de mim, tenho uma relação erótica, conjugo a presença do desejo e do gozo, mas esse último é sempre adiado, nunca ocorre. Já a pornografia ocorre de maneira diversa, posso até não ter prazer, mas tenho necessariamente a referência imediata ao gozo. Na pornografia, o gozo é sempre uma relação necessária, por isso, os filmes pornográficos precisam coroar sua performance com o momento da ejaculação. Este é o mundo em que vivemos. É por intermédio dele que aprendemos a ver as coisas e a nos comportar de maneira compatível com cada realidade. Aprendi a me comportar assim. Fui “treinado” para viver assim. É claro que é possível embaralhar o jogo e perverter essas distâncias, e o fazemos. Entretanto, o modo como isso é executado também conforma outras realidades. Muitas pessoas não foram treinadas para lidar com os limites, ou na vida em que vivem tais experiências não ocorrem ou ocorrem esporadicamente, outras discordam da rigidez dos contextos e buscam estabelecer mediações, os artistas querem encontrar um ponto de suspensão entre uma órbita e outra, e tem os “pirados” que articulam esses territórios de modo muito próprio... E essas jurisdições estão em constante mudança. Nossas práticas incidem nas expansões dessas distâncias, fazendo que “coisas” que em algum momento eram pertinentes a um âmbito passem a ser ressignificadas e partilhadas em outros. Em síntese, temos confluências e partições. Cada partição ocorre de um modo, afirma-se por um conjunto de maneiras, mas não absolutamente estanques. A arte, penso, pressupõe uma noção de distância muito particular, um ponto capaz de articular os extremos, um lugar onde algo e seu oposto podem ser uma coisa só. Nela se junta o visível ao invisível, o sim e o não, o pertencimento e a exclusão, isto e aquilo. Os objetos de arte – em minha compreensão, afinal são os meus critérios que estão sendo convocados – são itens excepcionais, eles são um enquanto são também outro. Arte é o território que abriga as realidades extraordinárias, compostas de coisas que são e não são o que são.
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D: Uma dúvida: esse princípio de discernibilidade seria, então, um lugar limiar ou liminar? M: É isso; penso que a arte se inscreve em um lugar limite, melhor, um lugar entre os limites. O artista faz um pertencer a este e àquele; organiza uma possibilidade que não é de admissível ocorrência. Isso é concernir ao âmbito da arte. Fazer arte é dar forma a algo, mas uma forma que é compatível com um princípio que compartilhamos do que seja arte, uma forma que é avessa a outros procedimentos de formalização que visam objetivar algo determinado, e não um e o seu outro. O artista compõe a sua ação de modo a estruturar não somente um objeto ou uma ação, mas igualmente visa conformar um lugar. Ele não só ajeita as coisas, também ajeita o ponto capaz de nos proporcionar uma experiência singular. Ele proporciona uma experiência singular para aqueles cujas vidas comportam tal forma de lugar. Vejo que todo objeto de arte incorre em formalizações, dá forma a um acontecimento limite, é a forma de um acontecimento limite; com isso, ele discerne esse estar no mundo. Afirmar isso de modo algum me compromete com o formalismo, mas, se assim o fizesse, definitivamente não seria isso que me daria arrepios. J: Você falou sobre a forma da arte, ou que todo objeto de arte incorre em formalizações, conforma um limite. Poderia falar mais sobre isso? M: Claro. Não são poucos os que relacionam a discussão da forma a um acontecimento de natureza física. Penso que o físico é um dos aspectos da natureza formal, mas de modo algum o único. Em outras épocas, a produção artística estava implicada na presença de materiais nobres como o bronze, o mármore, a tinta a óleo; as encomendas especificavam pigmentos a ser utilizados e inclusive a quantidade empregada. Usar estas ou aquelas matérias fazia parte das exigências do período, como também o emprego de procedimentos regrados, como a perspectiva. Tudo isso participa do acontecimento formal da arte – parece bastante –, mas o acontecimento da forma não se encerra nesses termos: matérias e conformação material não são os únicos participantes do acontecimento formal da arte. Este plus que a arte requer é o que mais me interessa. Na condição vigente, a arte pode ser feita com qualquer material ou até mesmo da sua falta, ou de gestos sem quaisquer rasgos de excepcionalidade, e ainda assim é possível fazer arte. Como isso é possível? Existem críticos contemporâneos que diante de tal radicalidade afirmam que este ou aquele artista é interessante porque utiliza materiais surpreendentemente triviais. É uma afirmação risível. Afinal, se o artefato participa de uma atmosfera particular, o mínimo que se espera dele é que o seu humor mantenha correspondência com o quadro geral dos acontecimentos; se ocorresse o contrário é que seria de surpreender. Na atualidade, tornou-se algo comum a invocação de uma citação de Jean-Luc Godard acerca do caráter extraordinário da arte. Acredito que a forma do fenômeno se relaciona a essa condição. Materiais, dimensões, meios, suportes, desempenhos seriam modos de articular essa existência, mas não seriam por si só suficientes para dar realidade à arte; afinal, cada uma delas faz parte da superfície do mundo e, por seu intermédio, realidades de diferentes mundos ganham
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forma. A estética de Arthur Danto parte desse princípio; seu engano é crer que a indiscernibilidade física é um fenômeno relativo à contemporaneidade. Outras épocas também se defrontaram com identidades visuais imprecisas. Não podemos esquecer que até o final do século XIX a pintura, a escultura, o desenho não eram linguagens exclusivas da arte, assim como a fotografia e o cinema no século XX. Várias instâncias de saberes articulavam essas linguagens em seus mundos. Hoje, para outros interesses, essas linguagens estão mortas: não há qualquer sentido em invocá-las, sua vida radica somente, quase que tão somente, no território da arte. A decorrência disso é que vemos todo e qualquer acontecimento pictórico de qualquer época como arte, e já começamos a fazer isso igualmente com a fotografia. Se hoje nossas certezas sobre as múltiplas vidas da pintura se tornam cada vez mais imprecisas, o mesmo não devia ocorrer com os personagens que circulavam entre o mundo da arte e o da ciência ao longo dos séculos XVIII e XIX. Eles não tinham dúvidas quando um acontecimento era pertencente à arte e quando pertencia à botânica. Lançar mão de um material ou outro e compor a partir de um sistema de regras inscrevia as coisas em determinados campos ou contextos; ainda assim, esses contextos poderiam abrigar realidades diversas. As utilizações do mármore ou do bronze, o uso da perspectiva e o emprego de uma infinidade de itens inscreviam a produção em um âmbito social próprio à cultura dominante – como a sociedade se instituía com base em relações bastante diversas de pertencimentos e exclusões, e essas realidades estavam associadas a um quadro sociocultural específico, seu emprego já determinava um pertencer –, contudo, tais componentes não eram de uso exclusivo da esfera da arte, ou dos artistas, de modo que outros expedientes se faziam necessários para estabelecer a identidade das coisas. Na condição contemporânea todo material pode ser utilizado. Vivemos em uma democracia das matérias que corresponde ao nosso estar no mundo. Um mundo de uma ordinariedade tal que qualquer sujeito se constitui em cidadão. Aqui e lá temos correspondências entre os diferentes mundos em que vivemos ou entre as diferentes inserções no mundo. A presença de materiais nobres, da hierarquia entre matérias e gêneros, corresponde a uma vida que se organiza com balizamentos similares. Um mundo onde as matérias se dispõem em um mesmo plano afina com as redes de pertencimento modernas. Até aí, morreu Neves. O x da questão é que, lá como aqui, o que chamamos de arte se apresenta munido de elementos comuns a tantas outras coisas e ainda assim ela se faz possível, se faz distinta, ou seja, se faz como arte. E como ela se faz? Cada artista propõe um modo de vencer esta impossibilidade de equilibrar uma presença que existe em outras realidades em uma forma singular capaz de lidar com limites, capaz de aproximar o contraditório. Diante de todas as coisas que reivindicam o estatuto de arte, e cada vez o número é maior, certamente algumas são bem-sucedidas e outras não, e devemos aferir e escolher o que é arte. D: Ou o que não é arte? M: O que não é arte são todas as outras coisas e muitas tantas que achamos que são [risos]. D: Se existe esse princípio de discernibilidade, de classificação, de pertencimento
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(o que pertence ou não a esse lugar, arte), algum critério a gente usa para fazer isso. Que critérios são esses de distinção? M: Existe uma discussão que passa pela teoria institucional, da qual eu discordo, mas acho que ela não é tão tosca como muitos falam. Ela é incompleta, lida com determinadas dimensões da vida e não com todas, e esse é o seu problema, mas acredito que ela é um princípio para se entender certas coisas sobre arte. Os seus teóricos rezam o seguinte: o objeto artístico é um objeto realizado por um artista que tem a intenção de fazer um objeto de arte, que é apresentado, por sua vez, no mundo da arte, ou seja, há um campo institucional que é entendido enquanto tal pelos seus participantes. Penso que as coisas sejam mais ou menos assim. Um artista procura fazer um objeto de arte, outras pessoas veem esse objeto e acreditam (mantêm uma crença) que ele se distingue dos demais objetos do mundo, e isso faz com que eu, por exemplo, possa aceitá-lo em minha galeria ou em um museu. Tomados por nós como arte, participando do mundo da arte, os objetos se configuram em nosso mundo como objetos de arte. O problema é: por que esse objeto e não aquele? Vamos presumir que o mundo da arte esteja munido de razões para essa discriminação. Muitos especialistas participam dele, os quais têm muitas informações e conhecimentos que os capacitam a proceder a essa avaliação. Entretanto, ainda assim, sua aferição se faz por intermédio de um conjunto de razões, e quais são elas? Estaremos julgando as novas aquisições de nosso museu imaginário baseados em aquisições anteriores? Mas, se elas são novas, como posso encontrar todos os fundamentos em ordens que são anteriores? Ou quem me assegura que neste museu imaginário não ocorram aquisições frutos de erros, e por que não? E que esses erros levem a novos erros e assim sucessivamente? O certo é que estamos fazendo isso e tudo isso. O pior é quando isso se aprofunda ainda mais e os produtos acabam sendo vistos como um valor em si, como valores de marcas, onde o grande valor que reina é o de pertencer a um âmbito exclusivo: as obras da galeria tal, do artista x... Vejamos o caso da marca Louis Vuitton. Ser Vuitton é um valor, sem dúvida, mas do que é feito esse valor? Da qualidade dos materiais? Da inventividade dos seus designers? Ou o fato de ser Louis Vuitton? Não sei dos materiais empregados, contudo, o design é qualquer nota, é muito cafona! O fantástico é que o desejo que move as bolsas Louis Vuitton é o de serem parecidas com as outras bolsas Louis Vuitton. É o que o público da marca requer, e tudo gira em torno do mesmo. Temo que o mundo da arte caminhe para realidades com esse formato, onde ser arte é ser uma marca de distinção fundada na personalidade do artista ou da galeria, e não em valores que possam ser discutidos e avaliados. Sei que dou voltas e adio as respostas do que vocês me perguntam. É que o troço é meio enrolado. Nós lidamos com noções de arte que possibilitam todo esse rolo. Penso que todos nós temos uma mesma noção do que venha a ser arte, mas é uma noção de base frágil, que cada um complementa com as experiências das quais participa; são essas experiências que travam a possibilidade de o jogo se desenrolar para lá ou para cá, ou estimulam que as jogadas se estendam em diversas direções. Eu definiria esta noção de modo muito simples: “mais quê”. Só isso. Explico: a arte aparece como uma realização que é mais do que uma realização. Como uma
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imagem que é mais do que uma imagem. Como um objeto que é mais do que um objeto. Como uma ação que é mais do que uma ação. Como uma presença cultural que é mais do que uma simples presença cultural. O conteúdo do “mais quê” é variável, depende do contexto, das nossas experiências. Para alguns providos de pouca experiência com o contexto de arte, “mais quê” pode se configurar em coisas bem simples. Qualquer aparição pode figurar algo extraordinário. Para outros, com experiências mais complexas, as exigências são bem maiores. Se olharmos atentamente, os debates acerca da arte giram em torno deste eixo: isto é mais do que isso, isto não contempla isso, e assim vai. Contudo, conforme as experiências vão se arrumando, as formulações passam a exibir as suas marcas de insuficiência. Se a pintura explorou por séculos a perspectiva, é porque essa maneira foi considerada por aquele período como a mais correta para representar – ainda assim, fazer arte nunca foi se deixar fazer tão somente isso e sim encontrar uma forma de superar um dado patamar. Cada artista desenvolveu modos de superar o ponto das realizações estabelecidas e incorporadas à cultura, instituindo novos padrões de realização. Essa busca de superar um quadro cultural existente é que eu chamo de “mais quê”. Friso que isso não é uma linha reta, mesmo porque as linhas estão sendo instituídas a partir de imbricações com diferentes realidades. Uma coisa que me incomoda muito nas discussões de arte são as afirmações que creditam à arte clássica um intento de copiar o real enquanto os modernos visam fazer realidade. A mim parece óbvio que o fazer artístico clássico abrigava uma intenção de encontrar formas de distinguir a representação da mera condição de representação. Tenho um amigo que é daltônico, ele só enxerga o preto e o branco. Descobri isso quando lhe mostrei uma exposição na galeria. Dizia para ele: “veja estas cores, perceba como o vermelho se relaciona com o vermelho...” E ele, rindo, disse-me: “eu não vejo nada disso, não vejo cores”. Estupefato, nunca havia conhecido alguém com daltonismo absoluto, comecei a indagar como ele via as coisas, e ele explicando: “está vendo, isto é preto e isto é preto, também isto é preto, isto é branco, isto é preto e isto é branco. Mas este preto é mais preto do que esse daqui, este é mais preto do que esse e este branco é mais branco do que aquele”. No que tange à arte clássica, creio que era mais ou menos assim que a coisa funcionava: o imaginário comportava uma diferença entre representação e realidade, e como os artistas visavam constituir uma representação que escapasse da condição de representação, a via a trafegar era aquela que seguia em direção ao ponto oposto àquele em que o padrão de representação se encontrava. Explico um pouco mais: se tenho duas realidades, só duas, o preto e o branco, de modo que ser branco é não ser preto, e ser preto é não ser branco, e se neste enquadramento quero construir um padrão de variedade ao branco, o que eu devo fazer? Não será justamente manchar a palidez, acentuando um afastamento do branco, mais e mais? Naquele contexto, visava-se realizar um feito que distanciasse a representação do padrão que é atribuído a ela. Não ver isso reduz o estatuto do artista, legando a ele uma atuação de copiador das formas do mundo – sendo sua ação julgada pelas relações de semelhança visual que suas obras estabelecem com o referente e não a partir das distinções com o universo da representação que ele promove. Aqui – muito embora haja um sentido oposto ao das intenções que, acredito, eram visadas pelos mais importantes artistas – o
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“mais quê” também comparece como ponto de juízo. Vejam que uma mesma noção – o “mais quê” – pode tomar sentidos absolutamente opostos. Segundo o meu ponto de vista, o não entendimento da distinção entre fugir à representação e copiar a realidade conduziu a uma leitura que muitas vezes empobreceu bastante a prática artística e resultou em profundos equívocos. D: Por quê? M: Os únicos seres no mundo que confundem imagem com realidade são os filósofos, as moscas de filósofos e os pássaros de filósofos. Os demais, embora saibam que uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa, ficam só meio desnorteados quando o sistema de bordas das representações é suprimido ou camuflado. E aí está a graça. O “mais quê” que enxergo na arte supera essa bipolaridade, como se a arte desenvolvesse uma fresta entre o mundo da imagem e o “mundo de fato”. Muito embora saibamos que os pertences da arte habitam uma órbita e não outra, é como ocorresse alguma licença que os torna igualmente investidos das qualidades deste [mundo de fato], capacitando-os a um comportamento que não podem ter. Assim, a atividade artística não visa somente agarrar padrões de referência, mas visa transfigurar a referência, infundindo um sentido de presença, como se nela calhasse uma realidade física efetiva e não só a realidade física e efetiva de que gozam as representações. Segundo minha suposição, inicialmente, o comparecimento de molduras nos quadros visava a essa suplementação de realidade para uma representação que se abria simbolicamente à lonjura, legando à representação espacial uma maior densidade de realidade. O problema é que, depois de conformada ao cotidiano, a força de “presença” se esvai, restando a presença da referência no lugar de uma presença obtida por intermédio de referências, o que obriga a uma sucessão de contínuas inovações. É por essa razão que a arte no Ocidente, ou melhor, a representação no Ocidente, desenvolveu uma vocação a toda prova para a invenção; é o “mais quê” que puxa essas transformações. E se isso não for percebido? O troço fica somente como um acontecimento de superfície, que dispõe de espaços, mas não possibilita um lugar, pelo menos para nós, os seus observadores. Fica tudo acontecendo como se estivesse da superfície para lá – sendo o para lá um acontecimento ilusório. A ação artística é bem mais complexa: ela desenha um espaço para lá e para cá, ocorre uma espacialidade estendida que é mais extensa que a pertinente à representação e também mais extensa que a concernente ao mundo, já que se constitui com base na realidade de ambas. (De novo o “mais quê”.) Mesmo quando a superfície da obra é plana, o plano na arte é bem mais profundo que o acontecimento planar em nosso mundo. Isso parece básico, entretanto, não é. Tem um texto que volta e meia vejo alguém citando: uma análise de Michel Foucault sobre o quadro As meninas1 de Velázquez, e que se encontra no livro As palavras e as coisas2. Começa com ricas promessas, com o espectador sendo convocado a participar da trama, mas termina por expulsá-lo da órbita dos acontecimentos. Com isso, a riqueza da obra 1 As meninas, 1656. Diego Velázquez. Óleo sobre tela, 318 × 276 cm. Museu do Prado, Madrid, Espanha. 2 FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. Trad. Salma Tannus Muchail. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
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perde quase toda a espessura, comprazendo-se em se manter no interior de uma representação, ainda que em conformação mais complexa. Uma coisa que Foucault não explora na análise do quadro é o tamanho da tela. Ela tem mais de três metros de altura. Creio que Diego Velázquez visou a infundir no espectador, através dessas dimensões, a sensação de espaço real. Também o espaço representado se relaciona com esse intento de juntar o espaço real ao diegético: o modo como as pinturas são exibidas no espaço corresponde ao modo como elas eram mostradas aos espectadores na época. Deixar aquele quadrão no centro de uma parede cheia de quadros, montados como aqueles que se encontram na pintura, deve ser uma experiência impressionante; por que ninguém pensou em uma exposição das Meninas assim? Por fim, também a iluminação participa do mesmo conjunto de razões – algo bastante interessante de estudar é uma comparação entre a representação da iluminação encontrada nas telas de Velázquez e a iluminação que poderia ser encontrada em ambientes da época –, imagino que o pintor buscou promover ajustamentos entre uma iluminação e outra com o propósito de promover um ocultamento das bordas que separam os ambientes reais e diegéticos. Claro que tudo isso não ocorreu em detrimento dos acontecimentos diegéticos; isso Foucault mostra muito bem. No quadro, cada elemento, cada aresta, é cuidadosamente engenhado para que no território não ocorra qualquer “buraco”, como Matisse denominava as imprecisões artísticas. Edgar Alan Poe tem um livro magnífico, A Filosofia da Composição3 , no qual discorre sobre o processo produtivo do poema O Corvo. Nele é possível verificar os esforços feitos pelo escritor para produzir um mundo que abrigue não somente os personagens, mas, fundamentalmente, o leitor. Poe vai chamando fatos de ordens diversas e vai ajustando-os uns aos outros, vira cada um deles para lá e para cá, no sentido da trama e na direção do espectador; assim, vai firmando uma ordem de caráter complexo, envolvente, capaz de abraçar contrários e de conciliar um encontro entre dois mundos opostos. Os grandes artistas constroem acontecimentos desta ordem: engenham fatos provenientes da variedade. Eles confeccionam, em qualquer linguagem envolvida, unidades que contam com a participação de realidades antagônicas, prontas a firmar posicionamentos opostos. Sabem que renunciar a uma posição em favor da outra é castrar a potência da arte. É por essa razão que a arte é e também é aquilo que ela não é, e que dizemos, da sua ordem, como uma ordem de exceção. Agora, vejam bem, um mundo com tal estrutura não se coaduna ao das demais linguagens que desenvolvemos para dizer o nosso mundo. De modo que, voltando para nossas conversas sobre a forma da arte, o objeto acaba por desenhar uma configuração muito própria, bem diferente dessas outras linguagens. Wittgenstein afirmava que o sentido da filosofia é desfazer paradoxos. Penso que o sentido da arte se encontre em atuação oposta: promover paradoxos. Esta é a forma do fenômeno. Diversamente das demais coisas, um objeto de arte não se faz unicamente do diferente, mas do igual e do seu oposto; um e outro estão sempre em franca relação, próximos e distantes. Por isso a obra instaura uma ocorrência e uma espécie de suspensão dessa ocorrência. Boas obras guardam a diversidade 3
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POE, Edgar Allan. A filosofia da composição. Trad. Léa Viveiros de Castro. Rio de Janeiro: 7Letras, 2008.
das possibilidades. Um paradoxo consegue promover um estar lá enquanto se está aqui: as melhores obras são aquelas onde a espacialidade apronta a maior distância e a menor distância entre os seus elementos. Diante de um objeto de arte, saio à cata dos paradoxos que ali se esgrimem. Onde não descubro uma ocorrência assim, desisto de encontrar algum fato relativo à arte. É assim que vejo as coisas, esses são os critérios que uso para julgar. O mundo que se dispõe dessa forma é o “meu” mundo da arte. Gosto dos trabalhos que se equilibram nessa zona de dificuldades, da alteridade que eles comportam, do modo como abrem e se abrem para outras possibilidades. Sei que a forma “Louis Vuitton” é cada vez mais presente no mundo da arte, com os colecionadores se referindo às obras como dispusessem de sujeitos: “tenho três fulanos, cinco sicranos...”, e com muitos artistas loucos, sedentos de ganhar o estatuto de marca, mesmo com tão pouco a dizer ou a mostrar. Confesso que este mundo não me interessa nem um pouquinho e se a coisa da arte se comprouver com isso, eu quero meu boné. Tá bom?
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Eliane Prolik
Esta conversa aconteceu na tarde de 18 de novembro de 2012 e foi, por assim dizer, itinerante. Iniciamos a gravação no carro de Eliane Prolik, a caminho do Museu Municipal de Arte de Curitiba. Já no museu, pausamos o áudio e vimos a exposição da artista, Atravessamento, que estava em cartaz. Saindo de lá, cruzamos a região central da cidade e nos dirigimos para o ateliê de Eliane, no bairro Alto da XV. O ateliê é amplo e, além de abrigar muitos trabalhos produzidos em diferentes momentos da carreira da artista, permite que várias de suas obras fiquem expostas.
Eliane Prolik
52 e 53: No mundo não há mais lugar, 2002. Bala e cápsula (escultura de boca – as balas têm a conformação do interior da boca da artista feitas a partir do molde do céu da boca, língua e palato inferior), 5 x 5 x 5 cm.
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[No carro, de carona com Eliane, a caminho do MuMA.] Dayana: Eliane, o que você está pensando em relação ao atual contexto da arte contemporânea? O que você está vendo e sentindo em relação a esse contexto? Eliane [dirigindo o carro]: Eu acho que o meio cresceu bastante. Hoje existem muitos espaços expositivos, exposições, artistas, enfim, mais produção. Isso é diferente de quando eu comecei, nos anos 1980. Juliana: Onde? Em Curitiba especificamente, ou no Brasil? E: No Brasil, penso sempre no contexto brasileiro. Mas o mesmo acontece em Curitiba. Quando, na década de 1980, imaginaríamos ter um público tão grande para as artes plásticas como temos hoje? Principalmente no caso do MON, que, como um grande museu, tanto pelo seu porte físico quanto pela verba que possui, chama a atenção para sua programação e mostras. Outra coisa: hoje o artista consegue receber apoio para a produção de seu trabalho. É a primeira vez que realizo um trabalho de arte com apoio de uma verba pública da cidade [Eliane refere-se à exposição que vamos visitar]. Isso já havia acontecido em outros lugares, como em São Paulo, na Bienal. Essa política cultural de editais de incentivo que a Fundação Cultural de Curitiba instituiu para as artes plásticas é muito importante para a produção local. E, ao mesmo tempo, é preciso se fazer uma crítica – falta análise e reflexão, porque os editais ou comissões, sejam quais forem, são situações ou reuniões circunstanciais, efêmeras, que não possuem continuidade. J: Você acha que falta uma instância que pense o sistema da arte e não só determinado momento ou ocasião à parte? E: Sim. Convoca-se uma comissão e ela vota coisas pontuais, mas não se afirmam escolhas e definições com capacidade de produzir um substrato. Substrato, digo, algo que nos pense, sem ser regionalista. Será que os museus locais se perguntam: “Então, se vamos tratar de arte brasileira, qual será o nosso foco? O que falta em nosso acervo?”, ou ainda: “Como não foi tratada a arte paranaense nesse viés em que temos uma produção tal...?”. Acho que poderia haver uma leitura mais potente e certeira sobre a formação dos nossos acervos, pensando sobre o que nos é importante e por quê. “O que deveria existir naquele acervo para realizar o que a gente deseja?” Fiz parte de conselhos consultivos durante alguns anos. Neles, somos requisitados para julgar inscrições e propostas enviadas, sem possibilidade de formular uma participação ou projeto mais amplo. Então, quando nos solicitam, é para resolver uma questão específica, não há pensamento a médio e longo prazos. Parece que não conhecemos a nossa cara, não conseguimos consolidar uma coisa que tenha, ao menos, começo e meio. O fim pode, depois, se dar de muitas formas, pode ser múltiplo, é aquilo que vem junto. Mas acho que essa questão sobre o que a gente deseja deveria ser primordial. Deve-se tentar fazer pesquisa, produzir exposições, porque existe verba para isso, e por que não ter uma leitura sobre a arte brasileira e internacional a partir de um viés que nos interessa? Não é qualquer exposição que está passando pelo Brasil que precisa vir para cá. Temos que pensar 177
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quem nós somos, não é mesmo? Essa é a instância que nos falta. Não deve ser algo passageiro, nem temporário, porque isso não constitui acervo, e se nós não constituímos acervo, então não constituímos uma formação visual que realmente venha ao nosso encontro. Aceitamos uma colcha de retalhos. D: Você falou de um aumento de público e mencionou o MON. Fiquei pensando em que medida esse museu não acessa um público mais amplo por ser mainstream e, também, se isso reflete um aumento de público em outros espaços expositivos, de âmbito estadual e municipal? Será que o MON não acaba exercendo um monopólio desse público mais amplo, já que é visto como “o grande museu” daqui? E: É verdade, há uma predominância do grande museu, por uma questão de escala. Ele acaba concentrando mais público, porque tem uma área física maior. Mas o fato de agregar às artes plásticas um público mais amplo e heterogêneo é ótimo, como é o público de teatro e de cinema, por exemplo. O que é lamentável é que as instituições menores da Fundação Cultural de Curitiba e do estado não possuam verba suficiente, nem pessoal ou equipe, para a sua manutenção e programação. Precisamos de todas as instituições e, neste momento, aproveitar o salto dado pelo MON através do uso das leis de incentivo à cultura. J: Esse aumento de público, que realmente é mais heterogêneo, é muito importante, mas será que grande parte dele não busca apenas diversão, entretenimento? Ou está realmente atrás de uma experiência estética? Qual é o olhar desse público para os trabalhos? É claro que apenas o fato de ampliar o público é muito bom, porque possibilita o contato de mais pessoas com a arte, e aqueles que desejarem podem buscar um aprofundamento desse contato. Mas será que as pessoas que frequentam exposições no MON também frequentam exposições no MAC-PR, no Solar do Barão e em outros locais da cidade? Acho que esse é o ponto em que a Dayana tocou. E, também, como você levantou, em que estado sobrevivem esses museus? O MON é um atrativo real na cidade, com certeza pela escala, que, como você disse, é monumental. Esse museu pode ser visto a distância e impõe sua presença na paisagem da cidade e, inclusive, no imaginário das pessoas, assim como foram as pirâmides no Egito – e acho que ainda são. Mas o MON também é atraente pela sua arquitetura exuberante: o olho de Niemeyer, que se uniu à antiga construção e transformou-se em mais um dos cartões-postais da cidade. Um grande monumento que é nada menos que um museu. Isso o coloca em um lugar muito especial e privilegiado em relação aos demais espaços expositivos da cidade. Ao mesmo tempo, penso que a arte, de um modo geral, tem tido uma aceitação maior e temos observado o crescimento do mercado e da produção de arte. Duas coisas que, juntas, somam-se ao assunto público. Porém, tal crescimento parece, em grande medida, guiado por ações mercadológicas e estratégicas, através da valorização do espetáculo, de trabalhos e obras espetaculares e, em sua maioria, superficiais. Também vemos a adesão a tendências, rótulos e modas como, por exemplo, a “arte urbana”. E ainda há a aura, o glamour e o status que permeiam muitas das relações do meio artístico. Referências artísticas, por vezes estereotipadas,
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54: Def贸rmica 33, 2010. 166 x 320 cm.
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seguindo ou instaurando essas tendências, têm muita visibilidade na mídia e na publicidade, o que colabora com esse fenômeno de aceitação da arte por um público mais amplo. Se todas essas jogadas tornam a arte mais acessível, em que medida isso se dá? De uma forma bem simplificadora e, muitas vezes, simplista, infelizmente, construindo olhares que priorizam o espetáculo e o entretenimento, não objetivando necessariamente um contato com as questões profundas da arte e, consequentemente, da vida. E: Mas veja, a cidade cresceu e havia uma carência nesse sentido. As megaexposições nos dão oportunidade de confrontar uma boa quantidade de obras. Por decorrência delas, editam-se livros, material gráfico e objetos, toalhas, camisetas, etc. Isso é uma mídia autorizada dentro das artes plásticas, é a indústria do espetáculo que entrou na arte e que de fato chamou e encantou um público maior. Há também um número maior de pessoas envolvidas com a área das artes plásticas, sejam profissionais ou estudantes. J: E você acredita que esse público seja comprometido? E: Público é um termo generalizante de qualquer modo, mas conforta pensar no maior alcance dessas ações. Quanto essas pessoas estão comprometidas acho difícil de mensurar. D: Fiquei curiosa para saber como foi o seu encontro com a arte e de que forma você se relaciona com ela hoje. Conte-nos um pouquinho da sua história. E: Essa história é antiga. Desde a infância, eu gostava de desenhar, pintar e fazer escultura. Na escola e fora dela fiz cursos livres. Eles eram um espaço de liberdade, de concentração, um espaço para entender a mim mesma e ao mundo. Minha infância foi regida pelo período da ditadura militar, com seu autoritarismo. Na arte, eu encontrava um exercício de liberdade que me interessava. A arte fez parte da minha vida como uma atividade prazerosa e íntegra. D: Sua família tinha relação com arte de alguma forma? E: Sim, na forma de amizade com artistas e arquitetos da cidade, como Franco Giglio, Jaime Wassermann e outros. Franco Giglio ia a minha casa e eu convivi com sua obra de murais pela cidade. Minha mãe tem um olhar especial para a arte, o que me ensinou a ter atenção para com as obras. Especialmente quanto aos trabalhos de Miguel Bakun. Lembro que, quando tinha 10 anos, ela me levou ao ateliê dele. O artista já era falecido, mas conheci sua viúva, a casa, o ateliê, que era um barracão de madeira, e seus quadros que ainda estavam lá. Depois, algumas pinturas dele habitaram nossa casa e são significativas para mim. Nesse período, frequentei o Centro Juvenil na Biblioteca Pública e todas as tardes de sábado eram passadas numa oficina de arte no sótão do Clube Concórdia. Mais tarde, no final de 1970, fui aos ateliês do Centro de Criatividade de Curitiba, no Parque São Lourenço. Optei pela faculdade de arte mais tarde e, junto ao terceiro e quarto anos na Escola de Belas Artes, fiz Filosofia na UFPR. Infelizmente, o ensino na Belas era emperrado
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com uma certa tradição acadêmica antiquada e pouco se tratava sobre a produção contemporânea. Encontrei mesmo o sentido do que era um trabalho de arte quando, em São Paulo, visitei uma exposição no MAC/USP. Foi a primeira vez que vi obras de Mira Schendel, uma coleção surpreendente e radical de monotipias e desenhos que me fizeram pensar sobre a fragilidade da constituição da própria linguagem; de Waltercio Caldas vi alguns trabalhos da série Aparelhos, e A emoção estética1, a pressão de um aro de metal sobre dois sapatos; e, de José Resende, esculturas de diversos materiais, elásticos ou pesados, cuja tensão e torções eram reais e acionados. Os trabalhos tinham a ver com o momento, com aquilo que se estava vivendo. Aprendi realmente com o que conheci in loco, com as obras. Nessa época, viajei muito. No Rio de Janeiro, procurei conhecer algumas obras de Lygia Clark e dos neoconcretos, porque conhecia os textos sobre essa produção. Quanto ao processo criativo, a arte para mim é uma atividade que produz o silêncio necessário para entender as coisas, uma escuta. D: Mas essa não é a única maneira como você se relaciona com arte, é? E: Não. A arte me coloca em movimento, em um processo de captura de coisas que me circundam, na apropriação de determinados objetos. É escultura porque, justamente, não adere perfeitamente a essa nomeação. Porque não trabalho apenas com as técnicas vinculadas à tradição da arte, mas com a possibilidade de uma apreensão mais direta e imediata da realidade, da aproximação e alteração de coisas que, então, passam para o campo da arte. O trabalho nasce dessa coisa capturada, da realização, da transformação dela em algo dentro das artes plásticas. É essa a operação que me atrai. Quer dizer, trato do espaço, da luz, da forma, e a técnica é algo que vou descobrindo, cada série de trabalhos me solicita algo diverso, uma espécie de engenharia de produção ligada à poética.
[Já no ateliê de Eliane.] D: Sua produção é bem diversificada. Eu e Juliana conversamos um pouco sobre isso... J: Acho que, por ser uma produção extensa [desde 1981], percebemos séries de trabalhos, ou momentos diversos, não é? Tem um trabalho seu que vi algumas vezes e não sabia que era seu. Uma escultura branca que está na frente do Museu de Arte Moderna de São Paulo. Se compararmos esse trabalho, por exemplo, com o que acabamos de ver no MuMA, o Atravessamento2, eles são muito diferentes, não? O que está no MAM-SP tem outro olhar, me parece que ele deriva de um raciocínio mais moderno...
1 A emoção estética, 1977. Ferro pintado e sapatos sobre tapete, 15 x 300 x 300 cm. 2 A mostra Atravessamento, realizada entre outubro de 2012 e janeiro de 2013, foi composta de duas obras da artista: Atravessamento (vitrine)(imagens 58 e 59) e Atravessamento 2 (imagens 56 e 57).
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E: O nome deste trabalho que está no MAM-SP é Aparador [imagem 55], há realmente um raciocínio mais moderno que vinha de uma releitura da arte brasileira que eu estava fazendo após a experiência de morar na Itália. Ainda aqui, depois que terminei a faculdade, fui trabalhar administrando a galeria do Inter Americano [antigo Centro Cultural Brasil-Estados Unidos], onde aconteciam muitas das primeiras individuais dos artistas locais. Eu queria fazer o meu trabalho e atuar no contexto. Participei dos coletivos Moto Contínuo e Bicicleta, que estavam ligados à nova produção e a grupos de artistas da cidade. Viajei pela primeira vez à Europa em 1982 e tive a oportunidade de ver a Documenta de Kassel, na Alemanha. Em seguida, fui morar fora do país. Eu e Carla Vendrami fomos juntas para Milão, onde Luciano Fabro, um dos artistas daquela Documenta, era professor na Accademia di Brera. Foi algo importante para nós duas. Circulei por vários países na Europa e vi muitas exposições. Me marcou muito encontrar o Joseph Beuys em Nápoles, na sua última exposição, numa conversa no museu. Na minha volta ao Brasil, me interessou o neoconcretismo. No Aparador há, dentre outras, essa referência pósconstrutiva presente na arte brasileira, o que acredito não existir na produção paranaense. J: Entendo a referência, até porque não tinha ninguém produzindo esse tipo de trabalho aqui em Curitiba, não é? E: Sim, não havia. Em 1988, participei de um curso para alunos de pós-graduação da USP sobre arte brasileira, com o Rodrigo Naves, estavam Leda Catunda, Sergio Romagnolo, Heloise Costa... Este contato com o Rodrigo, e, mais tarde, com o Ronaldo Brito, enfatizou para mim a singularidade dessa arte. Durante anos mantive um ateliê em São Paulo e, de 1990 a 92, morei lá. Voltei quando surgiu a iniciativa da Casa da Imagem. Mas o fato é que uma cidade como São Paulo tem um meio mais instituído, com maior trânsito de pessoas, críticos, artistas, e aqui há uma falta de solicitação e comunicação para com a produção. Por esforço próprio, a geração de vocês desenvolveu uma discussão intensa sobre os trabalhos que produzem, não é? J: Sim. Acredito que isso vem de vocês, artistas e pessoas que incentivam. Você, por exemplo, é alguém que incentiva a produção de pessoas mais jovens, está sempre dando força, conversando, ajudando, além de participar de conselhos, organizar exposições, propor projetos de acervo, vários tipos de articulações e ações no meio. Outra pessoa que é muito preocupada, que incentiva essa discussão e esse debate, e também é muito importante para o nosso meio daqui, é o Geraldo Leão. E: Sim, dentro de um processo de formação, não é? J: Com certeza. Acho que ele é o responsável por um tipo de pensamento de discutir, levantar questões do trabalho. D: Mudando de assunto, Juliana me contou que você também coleciona trabalhos... E: Eu não tenho a preocupação de formar uma coleção pessoal, mas me preocupo
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55: Aparador, 1991. Ferro pintado, 100 x 500 x 80 cm. Coleção MAM-SP.
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56 e 57 (p.185): Atravessamento 2, 2012. Eletrocalhas de ferro galvanizado e parafusos, 227 x 1203 x 613 cm.
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58 e 59: Atravessamento (vitrine), 2012. Eletrocalhas de ferro galvanizado e parafusos, 123 x 323 x 286 cm.
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com a questão dos acervos públicos. Eu e Bernadette Panek fizemos um projeto de aquisição de obras para a Fundação Cultural de Curitiba, através da Lei Municipal de Incentivo à Cultura, ligado à Mostra Internacional da Gravura3, sob a curadoria de Paulo Herkenhoff e Ivo Mesquita. Essas mostras internacionais foram importantes para a cidade, mesmo se considerarmos as atividades do MON e da Bienal de Curitiba. Um momento único o das Mostras da Gravura... D: As pessoas de fora de Curitiba se lembram muito da Mostra da Gravura, eu acho impressionante... E: Sim. Só que havia um problema que a delimitava, o de se ater à gravura, mesmo que fosse da maneira mais engenhosa possível para ampliar a discussão. Com a Lei Municipal de Incentivo à Cultura, nós percebemos que era preciso, e possível, deixar parte da mostra para a cidade, para nosso acervo e formação visual. As obras já haviam passado por um crivo porque participaram da exposição, mesmo assim, formamos uma comissão e trabalhamos para viabilizar o que poderia ficar em nossos acervos. Conseguimos fazer uma negociação excelente, pois o dólar estava 1/1 e ainda não havia ocorrido o boom da arte brasileira no mercado internacional. Com isso, pudemos comprar muitos trabalhos. Foram catorze gravuras de Louise Bourgeois, um autorretrato de Andy Warhol, uma escultura e quatro gravuras de Amilcar de Castro, uma escultura e uma gravura tanto de Waltercio Caldas quanto de Cildo Meireles, gravuras de Lygia Pape, Hélio Oiticica, Oswaldo Goeldi, Joel Shapiro, Brice Marden, Kiki Smith, muitos trabalhos, enfim. D: Quanto custou esse projeto? Vocês adquiriram muita coisa. E: O máximo permitido para os projetos de mecenato em 1996, cerca de 70 mil reais. Outro projeto, ligado à obra de Raul Cruz, realizado com a Denise Bandeira, resultou também na representação significativa de desenhos, gravuras e pinturas para os acervos municipais e estaduais. Conseguimos fazer o levantamento de todas as obras ainda quando estavam reunidas no ateliê, após a morte dele. Documentamos tudo e fizemos duas exposições e um catálogo com texto do Ivo Mesquita 4. Se esses projetos usam do dinheiro público, esse dinheiro precisa ser bem gasto. E a hora era aquela, a urgência do agora, não é? A família do Raul cedeu para o projeto uma seleção de obras por um preço simbólico, inferior ao de mercado – mas, também, para falar a verdade, qual mercado? Dois conjuntos significativos de trabalhos foram distribuídos entre o MAC [PR] e a Fundação [Cultural de Curitiba], pensando que o Raul deveria ficar bem representado em cada um deles. Penso que não cabe aos acervos públicos manter a obra completa de um artista, não há espaço para isso, mas sim manter uma seleção de obras significativas da sua produção. No caso do projeto de aquisição para a Mostra da Gravura, houve a possibilidade de comprar trabalhos da Lygia Pape e do Hélio Oiticica, como eu comentei, porque o preço era acessível. Hoje custa mais caro fazer um acervo de arte brasileira. Foi um projeto 3 Projeto Coleção e Aquisição de Obras – XI Mostra da Gravura (1996-2000). 4 Projeto Raul Cruz (artista paranaense falecido em 1993). O projeto contemplava o levantamento das obras do artista, a produção de um catálogo e uma exposição retrospectiva de sua obra gráfica e pictórica, além de aquisição de obras para os acervos dos museus municipais.
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que poderia servir de modelo para tantos outros, mas que acabam não existindo, porque as pessoas não se organizam nesse sentido e nem as próprias instituições, ainda que devam fazê-lo. Porém, não se trata de comprar qualquer obra, porque é preciso ter critério, não é mesmo? Então, é isso, não me sinto tão colecionadora, eu me sinto mais angariadora... Com o projeto Miguel Bakun não foi muito diferente. No curso de especialização, em 2000, tratei da produção desse artista na monografia por causa da minha vivência junto a algumas de suas pinturas. Não me focava na história pessoal, mas na qualidade de sua obra. Relutei em publicar a monografia e fazer as exposições sobre ele, porque não posso perder o foco do meu trabalho, algo que só eu posso fazer e que demanda concentração. Mas, daí, surgiram as três mostras do artista e publicações com as bem-vindas colaborações críticas sobre o Bakun. Em 1986, quando dirigi o Museu Alfredo Andersen, foi por um curto período, no qual o governador também só cumpriria um mandato pequeno entre eleições. É muita responsabilidade. Quando se olha como está o acervo, como é a reserva técnica, percebe-se que é complicado e não há verba, é preciso ir atrás de recursos. Acho que falta contato com a própria sociedade para angariar também dela possibilidades de realizar as coisas, criando uma comunicação maior entre as instituições e o que está ao seu redor. D: E como seu trabalho atravessa Curitiba? E: Acho que esse embate com a cidade me acompanha e fez parte de minha geração, com o Moto Contínuo5 e o projeto Escultura Pública6, quando instalamos esculturas na cidade e realizei Canto I e Canto II [imagens 61 e 60 respectivamente]. Isso está presente na minha produção. Pra que se fez necessário também porque existe um circuito alternativo superimportante que, mesmo antes do poder público eleger Curitiba como capital ecológica, já existia com os milhares de coletores de material reciclável. Assim, quando eu penso a placa, a poesia, qualquer palavra que você encontre nesse objeto que transita, penso nesses circuitos alternativos dos veículos que não têm esse código. Atravessamento é um trabalho recente que ainda estou digerindo. Penso que trate da natureza pública e urbana da arte de certo modo, por sua relação de escala ampliada junto ao corpo que nele pode transitar. Nessa relação do espaço-tempo com o indivíduo reverbera o urbano. É um obstáculo, mas, ao mesmo tempo, é um atravessamento, é um espaço construído, a cidade inteira é uma construção, certo? E esses acessos também existem, mas você tem que sempre se debater com eles dentro do seu percurso na cidade. Quando vejo algumas intervenções no espaço público feitas de figuras, normalmente caretas ou rostos caricatos e/ou assinaturas, acho que a real dimensão do espaço e da arte pública 5 Evento Moto Contínuo, 1983. Organizado pelos artistas Denise Bandeira, Eliane Prolik, Geraldo Leão, Mohamed Ali el Assal, Raul Cruz e Rossana Guimarães na galeria de arte da Fundação Cultural de Curitiba. Conferir nota 15, na página 150, conversa com Cleverson Oliveira. 6 Escultura Pública, 1992. Projeto organizado pela Galeria Casa da Imagem e um grupo de artistas formado por David Zugman, Denise Bandeira, Eliane Prolik, Laura Miranda, Rossana Guimarães e Yiftah Pelled. Constituiuse na instalação de esculturas em espaços públicos da cidade de Curitiba e foi acompanhado de fórum de debates sobre o tema.
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acaba se perdendo. Acho que pode ser diferente, não circunscrever ou fechar com uma figura, ao modo do sujeito expressionista que responde ao embate social com uma figura deformada. Além do mais, essas imagens são muito carregadas, cheias de dados ilustrativos. J: É interessante notar que as pessoas gostam e tendem a gostar desse tipo de trabalho justamente pelo que você acabou de falar, pela figuração, pela representatividade, pelo caráter ilustrativo. De fato são poucos que alcançam potência artística. Acho que não há problema em trabalhar com a figura, desde que você não banalize e queira trazer tudo para o representativo, porque então você está voltando lá para os anos 1.500, para o Renascimento. “Arte urbana” é uma coisa que está em voga, justamente por ser acessível e ter um discurso de se aproximar do público. Muita gente acaba se aproveitando e isso é facilmente transformado em algo espetacular, bacana, supersensacional: “Vamos lá pintar as paredes!”. Transforma a arte em uma coisa legal, cool! O que não é de todo ruim, tem um lado importante, porém estimula todo um meio a ser de certa forma descomprometido com a arte, porque ser comprometido é careta, é chato! O pior é que muitas vezes vemos o próprio meio artístico validando situações deste tipo, com esse descompromisso. E a mídia se aproveita descaradamente disso, sem se importar com a maneira como trata e mostra a arte para o grande público, ou melhor, muito calculadamente escolhem o que e como querem mostrar ao público. Recentemente lançaram uma novela que tem o personagem de um grafiteiro, e ele, além de ser muito legal, é um artista muito talentoso, também é muito simples e comum e tem muitos amigos... Olha o conjunto de associações. Para as mídias, é importante reafirmar essa característica “legal” da arte urbana, porque estimula certo descompromisso (não por parte dos artistas, mas uma ideia do não comprometimento, um conceito embutido e que acontece na arte contemporânea também). Veja, se observarmos muitos dos graffitis pela cidade (e acontece com muitas obras de arte também), podemos facilmente associá-los a discursos afirmativos e até mesmo autoritários, muitas vezes, porque justamente trabalham uma ilustração sobre uma parede ou suporte, raramente problematizando essa situação ou problematizando a si mesmos, como o fazem boas obras de arte. Lembrei de um caso diferente, que também tem relação com o circuito artístico e com a manipulação de informações e imposição de olhar numa outra novela, onde havia um macaco que era artista! Na época, eu dava aula e, constantemente, os alunos perguntavam sobre isso ou faziam referência ao fato de o macaco fazer arte. Eu gostava de dizer a eles que o macaco pode fazer arte sim, mas “quem vê a arte que ele faz? O macaco diz que o que ele faz é arte? Não, quem vê a arte dele e realmente a afirma enquanto tal é você, somos nós, porque a arte é um conceito humano, uma criação humana”. Para mim, quem produz a novela está impondo e condicionando o senso comum a pensar dessa forma, criando uma realidade ou reafirmando uma ideia de que qualquer coisa é arte, sem problematizá-la, o que acaba não trazendo ganhos em termos de um debate saudável sobre o assunto. D: Uma amiga me escreveu: “Olha, Dayana, tem uma galeria na novela, veja!”.
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Parte da trama da primeira novela que você citou era em cima da relação entre arte contemporânea e elite, do acesso dos “pobres”, através do graffiti, a esse espaço de elite que é a galeria. Acredito que alguma coisa isso diz sobre o nosso contexto de arte. J: Mas não é bem assim. Existem muitos artistas e grafiteiros ricos como existem artistas e grafiteiros pobres. A relação com a elite, que você mencionou, é porque é ela que compra arte, já que a arte é um produto caro. Eu acho que muitos trabalhos, por serem ilustrativos, são muito mais fáceis de as pessoas acharem alguma coisa para entender. E acho que o fenômeno em torno da arte “de rua” tem a ver com isso. Porque as pessoas acreditam que precisam entender as coisas. Ao invés de procurar descobrir o que é, acredito que as pessoas deveriam se dar um tempo de relação com a coisa, olhar simplesmente e se relacionar com aquilo, sem ficar tentando descobrir “o que será que é isso e o que isso quer dizer?”. É natural você querer mais de algo, querer desvendar o trabalho, mas acredito que você tem que se dar à experiência e ao contato com a obra. E: É importante estabelecer esse tipo de contato com a obra, escutar o trabalho, deixar o trabalho falar. J: Pensando que em Curitiba ainda há pouca coisa sendo mostrada, queria te perguntar se você tem feito exposições fora de Curitiba, ou do Brasil? E: Sim, mas não tanto quanto eu gostaria. Por isso, acho legal quando acontece de ter um trabalho adquirido pela Pinacoteca, porque ele vai poder ser visto. J: Qual trabalho, Eliane? E: O Pra que horizontal, com as frases. J: Só esclarecendo: Pra que é o nome do trabalho? E: Sim, é uma série de placas de veículos chamada Pra que [imagem 62]. O título questiona o sentido da própria arte e o significado e uso das palavras. E tudo é uma questão de perguntar sobre o sentido das coisas, não é? J: Eu gostaria muito de te perguntar sobre isso. Como você pensa a relação de sentido, ou o sentido da arte contemporânea? E: Genericamente, é difícil responder, prefiro pensar em cada trabalho. Acredito que os trabalhos respondem a isso de certa forma, em várias instâncias. No Pra que havia uma infinidade de palavras que eu poderia usar. Poderia dizer muitas coisas, mas a pergunta era: quais palavras, qual sentido e por quê? Muitas criam um deslocamento, espelham o caráter urbano das próprias placas. Em FRÁGIL CUIDADO se contrapõe o que estamos habituados a escutar, “cuidado frágil”. Enfim, essas palavras podiam vir de uma frase, um verso do Hino Nacional Brasileiro e, assim, elas foram surgindo de vários lugares. Por exemplo, AO ALVO, que significa “àquele branco”; a placa em si é branca e é frontal, ali se cria um
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alvo mesmo. Também as palavras são trazidas por meio da acuidade da escuta, circulam e se prestam a articulações combinatórias de elementos, para a leitura em maiores ou menores conjuntos. LARGO BRANCO, PARA VIAGEM, PISCA-PISCA EM VAGAS, VENDO FARTO DESTINO, enfim, são algumas escolhas que buscam sentido ou, mais precisamente, buscar sentido constrói a obra. Então, para mim, o sentido da arte está relacionado a esse processo de captura que dá movimento à possibilidade da arte. Quando você está no processo artístico, está à escuta do mundo, que vem e permeia o trabalho. Muitos trabalhos nascem com a precisão de sua dimensão e escala em relação ao espaço em que estão inseridos e em relação ao corpo de quem os está lendo nesse espaço. Ainda que não se trate da habilidade manual do artista, da mão do artista, o artesanal também já apareceu nos cobres [série Cobre, de 1994 a 1997], onde eu trabalhei com artesãos, fazendo repuxo do metal. Aquilo era ensurdecedor e muito lento, porque o trabalho sai de uma chapa e vai sendo martelado até ganhar volume. No caso das rendeiras, nos Ditos7, eram ditados populares executados em renda. Nessa série, dois tempos se cruzavam, a renda e a paciência de um tempo moroso, e a potência da oralidade dos ditados, que é instantaneamente trazida à mente. Mas, enfim, agrego o conhecimento de outras áreas. J: Como você pensa a história da arte? Você fica trazendo referências e contextualizando o seu trabalho em relação a elas e à história? E: Não de uma forma organizada, porque eu não me sinto com essas amarras todas. Mas a visualidade criada por outros artistas me interessa, claro. As obras dos artistas me interessam. Também as pessoas que me auxiliam nas fábricas detêm um conhecimento ou uma prática, e a experiência de estar ali vem para o trabalho. D: Gostaria de ouvir sua opinião sobre algumas frases que tenho escutado muito, em função da minha pesquisa de doutorado, que dizem respeito à relação entre arte e mercado: “Arte não tem nada a ver com mercado”; “Isso não é arte, isso é mercado” e “Estou falando de arte, e não de mercado”. E: Eu acho que arte e mercado se comunicam. Pode haver a vontade de alguém de adquirir um trabalho de arte e olhar para ele a vida inteira, assim como o museu o faz. Como meu trabalho lida com o espaço, às vezes vou à casa das pessoas para ver como é o espaço, para pensar junto com elas o que cabe e o que não cabe ali. Claro que não é sempre que acontece, mas eu considero isso. Em outro aspecto, eu citaria o que ocorre na arte americana, quando ela começa a ter uma importância internacional, na geração do Mark Rothko [1903–1970]. Lógico, tem toda uma questão de domínio e expansão da cultura americana, mas nesse momento foram criadas oportunidades para a execução de trabalhos grandes em espaços públicos. Graças a isso, a arte americana tomou outra dimensão. A pintura, por exemplo, passou a lidar com outros formatos que não o quadro em um cavalete, pensando a escala de outra maneira, pensando a comunicação de maneira diferente. E isso 7 Série Ditos, 2005-06. Crivo em tecido ou cambraia de linho, fio e ferro, dimensões variáveis.
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60: Canto II, 1992. Aรงo SAC 41, 240 x 240 x 240 cm. Acervo MAC/USP, na Cidade Universitรกria em Sรฃo Paulo.
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61: Canto I, 1992-93. Madeira, ferro e chapa galvanizada, 250 x 250 x 400 cm.
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ajudou a instaurar o mercado e a arte americanos, com grandes artistas. Acho que a arte brasileira passou a ser mais respeitada e entendida porque ela conseguiu um mercado internacional. E, ainda bem, porque nós temos qualidade mesmo. Existe uma coisa que pode ser negativa em Curitiba: ficar com os trabalhos dentro do ateliê. E uma das maneiras de inserir os trabalhos no mundo é através do mercado. Eu não acho que a gente tenha que ter tanto preconceito, até porque o artista precisa viver. O Damien Hirst, por exemplo, polemiza com o mercado, e é bom e faz arte, é isso. Pode ou não ser uma questão mais ou menos pertinente para o artista, para uma ou outra obra. É mais uma opção, e é válida. D: Você vive do seu trabalho, consegue manter esse ateliê através dele? Claro que é o seu trabalho que justifica a existência disso, mas é possível viabilizar financeiramente, economicamente, sua vida através do seu trabalho com arte? E: Não, eu não priorizo o mercado, mas trabalho com galerias, tenho obras em coleções particulares e públicas e me mantenho com outra atividade. Em Curitiba, o mercado poderia ganhar força e se tornar mais visível. Em outras cidades brasileiras isso já vem ocorrendo. No entanto, acredito que o artista precisa entender que pode agir sobre o mercado. J: Você está se referindo à responsabilidade na constituição e determinação do mercado que se forma com o artista e a partir dele, inclusive? E: Sim. Como esse mercado se forma? O artista deve ter uma postura diante do trabalho, deve respeitar inclusive o seu próprio processo, para constituir um mercado a partir disso. J: Você poderia falar um pouco mais sobre seu trabalho e suas referências? Até porque você vê muita arte, viaja bastante... E: Recentemente estive em Bilbao e me impressionaram as esculturas do Richard Serra instaladas no Guggenheim. Acontecia ainda ali uma mostra de Brancusi e das obras anteriores de Serra, o que nunca tinha sido mostrado junto. J: Nossa, Serra e Brancusi juntos, queria muito ver! Pois é, agora que você falou do Serra, tendo muito clara na memória a imagem dos seus trabalhos que estão em exposição no MuMA, acho que eles têm uma ligação muito forte com o minimalismo americano, por causa da relação que estabelecem com o espaço. Eles são o espaço, são abertos para o mundo. Por isso, acho que tendo a compará-los com Aparador, porque, para mim, esse último é mais concentrado, para dentro, único e, nesse sentido, mais moderno. E: Aparador e Atravessamento se expandem espacialmente numa dinâmica de tempo e corpo. Aparador está na frente do MAM-SP, instalado paralelo à fachada envidraçada do museu e com cinco metros de comprimento, solicita percorrê-lo. É um aparador, mais direcionado à metade inferior do corpo do que à altura da vista. É uma construção de planos de chapas metálicas bidimensionais dobradas e soldadas
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e se relaciona com a escultura moderna, mas também com o mobiliário, com o modus operandi da indústria. Ele foi realizado para a exposição Apropriações8, no Paço das Artes, também em São Paulo, mas achei que a locação dele para o MAM deu certo. O teto da marquise do museu dá o acolhimento necessário para a relação da obra com a escala do corpo humano. Eu acredito que Atravessamento e Aparador, assim como Cantos, constroem um trânsito entre exterioridade, um senso público, e interioridade, mais relacionada ao próprio corpo. A comunicação entre essas duas coisas tem a ver com a questão pública do sujeito, porque não existe o público sem que se pense o sujeito. Os dois Cantos eram como espaços para o devaneio, com uma interioridade instalada e problematizada, no sentido de que você, uma vez dentro deles, era imediatamente devolvido à situação externa e urbana, para o local onde você está. A obra, ao mesmo tempo em que apontava um dentro, devolvia à realidade e ao seu entorno. Cantos nasceram de transformações do cubo arquitetônico, que é a unidade básica da cidade. O cubo circunscreve uma interioridade, abrigo e motivo de uma construção, certo? Já Atravessamento opera com a arquitetura da sala e com o corpo em movimento. Existe o uso das eletrocalhas para a construção de pisos e paredes que se sobrepõem à arquitetura do local. No primeiro trabalho elaborado para a mostra O Espaço Aberto9, em Brasília, havia uma configuração de uma passarela extensa com meia-parede de um lado e outra parede inteira do outro. No MuMA, a obra obstaculariza mais o espaço quadrado e amplo da sala com um corredor central formado por duas paredes, tendo dois planos laterais de piso. A escala da obra oferece a possibilidade de se transitar sobre ela, e acho isso mais próximo das questões do objeto ativo e participativo brasileiro do que do minimalismo americano que, claro, é muito importante para o pensamento escultórico contemporâneo. A escultura moderna já propunha uma infinidade de procedimentos. Um deles, a construção espaço-temporal entre volumes internos e externos, abertos e comunicantes. Outro dado, Atravessamento cria fluxos óticos intensificados pelas perfurações das eletrocalhas de metal, virtualidades que amplificam os movimentos, os acessos, as passagens. Atravessamento tem uma poética da urbanidade, de espaços sobrepostos a outros espaços. D: Aquele trabalho que está no Colégio Estadual do Paraná é seu? E: Sim. Porta [imagens 63 e 64] é uma escultura de aço corten do mesmo período dos Cantos, realizada de uma chapa usinada única, com corte e solda. Ela é uma estrutura entreaberta, instalada no pátio, no centro da escola. Ela recorta no horizonte a imagem da cidade a distância. Depois de instalada, a superfície da obra passou a registrar o discurso dos alunos, que escrevem sobre ela. D: Estudei no CEP e me relacionei muito com essa escultura. Sempre ficava sentada debaixo dela no intervalo das aulas... Ela fica no pátio, na frente do campo de futebol, e tem um vazado bem grande mesmo... 8 Apropriações, 1991. Paço das Artes, São Paulo/SP. Curadoria de Tadeu Chiarelli. Artistas participantes: Eliane Prolik, Rosangela Rennó, Célia Cymbalista e Mario Ramiro. A obra Aparador foi produzida para a mostra. 9 Atravessamento, 2011. Eletrocalhas de ferro galvanizado e parafusos, 100 x 1.200 cm aproximadamente. Mostra O Espaço Aberto, 2011. Caixa Cultural, Brasília/DF, curadoria de Ana Rocha. Artistas participantes: Eliane Prolik, Cleverson L. Salvaro, Deborah Bruel e Joana Corona.
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62: Pra que, 2007-09. Placa de veículo em alumínio e epóxi pó, 13 x 40 x 5 cm (unidade) e 105 x 495 x 5 cm (instalação).
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63 e 64(p.199): Porta, 1993. Aço SAC 41, 450 x 320 x 150 cm. Colégio Estadual do Paraná, Curitiba.
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E: Pena que a obra foi pintada, porque a ferrugem do aço corten impregnava a matéria com o tempo, com a duração. J: Como assim, pintaram? De que cor? Eles podem fazer isso? E: Ah, pintaram de cinza... J: Que absurdo isso! Falta de compreensão do trabalho, creio... Queria te perguntar sobre uma questão que a Dayana puxou lá atrás, relacionada à variedade da sua produção. Eu me lembrei agora daquele trabalho dos pirulitos, que, para mim, é um trabalho diferente dos demais. Ele é mais pop, não é mesmo? Ele tem uma brincadeira, uma ironia, algo diferente, que talvez exista um pouco na cadeira de marias-moles [Inversões10] ou nas balas de boca [No mundo não há mais lugar, imagens 52 e 53]. Digo isso porque o seu trabalho como um todo, para mim, é sério, mais sóbrio, tem uma coisa certeira. Mesmo quando existem, por exemplo, as palavras, como no caso das placas Pra que. E: Meus trabalhos, ou séries, propõem coisas diferentes porque há uma disposição e abertura para isso, e uma não fixidez. Os pirulitos, chamados Aliquod [imagens 66, 67 e 68], assim como as outras obras que você citou, são doces comestíveis e fica mais aparente a ironia que opera sua inserção no campo da arte. Aliquod em latim é “alguma coisa” ou “coisa qualquer”. Coisa qualquer porque daquilo se forma algo, é uma possibilidade de conjunção de elementos díspares. Acho que esse trabalho pode ser quase optical pela pulsão das cores dos pirulitos. A exposição dele no MON, o Museu do Olho, reiterava a questão do olhar. Nas placas Pra que, o músculo do olho do observador é mais requisitado, o branco sobre branco faz com que os limites do que é o trabalho, do que é o plano da parede e do que é a luz do ambiente se dissolvam, pedindo um esforço maior para lê-las, diferentemente do que ocorre em Aliquod. J: Mas, em relação ao conjunto da sua obra, como foi a realização e exposição desse trabalho, o Aliquod? E: A exposição aconteceu junto com o lançamento do livro Noutro Lugar11. Aliquod ocupava uma parede curva com extensão de 15 metros. A intenção era trazer a cor para dentro do meu trabalho (a partir daí que surgiu o trabalho Defórmicas, imagens 54 e 65) e lidar com o perecível e o cotidiano, como um palito, uma bexiga, uma escova de cabelo, uma cebola... O pirulito permitia a acoplagem das várias coisas sobre ele. Juntei esses elementos por cor, textura, colecionando-os. Aliquod, além de aguçar a vista, chamava ao tato, olfato e gustação. Durante a mostra, eles se transformavam, iam se desidratando e “chorando”, pingando e, mesmo açucarados, não perdiam a cor. J: E havia um com cílio?
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Inversões, 2003. Cadeira de veludo e marias-moles, 90 x 50 x 48 cm. MESQUITA, Ivo. Eliane Prolik: noutro lugar. São Paulo: Cosac Naify, 2005.
E: Esse pirulito com cílio postiço foi o primeiro. Eu queria trazer essas coisas pequenas e menos impositivas, ou afirmativas, junto ao grande museu Niemeyer, Museu do Olho. Em outro trabalho, o Tuiuiú12 , se empilhavam louças ou porcelanas brancas sobre uma mesa muito alta e ampla. Tuiuiú é um pássaro de dois metros de altura, desajeitado, esquisito, porque parece três pássaros ao mesmo tempo. Parece dividido: embaixo na perna é preto, tem a plumagem branca, uma listra vermelha no pescoção e o resto da cabeça é preta. Na obra, a mesa era alta como o pássaro, tinha 1,40 m, e você, observando a obra, se tornava um pouco um tuiuiú, se perguntando: “O que se passa nesta parte do corpo?” [sugerindo com a mão todo o corpo do peito para baixo]. Em contraposição ao branco da escultura clássica de mármore, Tuiuiú fala da fragilidade doméstica da porcelana relacionada aos gestos do dia a dia dos objetos. O branco está lá reafirmando a luz, de novo a permitir que o lugar ou a circunstância onde o trabalho se encontra o permeie e faça parte dele.
12 Tuiuiú, 2000-02. Porcelana (peças utilitárias de porcelana branca como xícaras, cinzeiros, pires, copos, tigelas, jarras, entre outras) e mesa. 175 x 825 x 180 cm.
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65: Def贸rmica 35, 2010. 120 x 135 cm.
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66: Aliquod (detalhe), 2005. Pirulito vermelho, cĂlio postiço e grampo.
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67: Aliquod (detalhe), 2005. Pirulito verde, palito, fita adesiva, dedo de luva e grampo.
68: Aliquod (detalhe), 2005. Pirulito claro, tablete de caldo de carne, sucrilhos e grampo.
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Esta conversa aconteceu na tarde de 23 de novembro de 2012, no ateliê de Geraldo Leão, no bairro São Francisco, em Curitiba. Observando as muitas pinturas em processo dispostas pelo ateliê, fomos motivadas a iniciar o papo. Por algum tempo, falamos a respeito de suas técnicas, tintas e processos de trabalho e, então, no meio dessa conversa, decidimos dar início à gravação.
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69: Sem título, 1990. Resina acrílica e pigmento sobre tela, 147 x 147 cm. Coleção particular.
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Juliana: Geraldo, o seu trabalho é inquietante – acredito que como toda boa obra de arte – e, diante das suas pinturas, fica uma dúvida para mim (com certeza fruto da minha inexperiência): você comentou há pouco que um pressuposto para fazer o seu trabalho é tentar não interferir tanto nele, deixando que ele surja. Penso também em um texto seu, chamado Da Ágora à internet. Nele, pelo que me lembro, você fala que a pop art coloca várias coisas em questão, retoma questões levantadas pelo Duchamp, ligadas ao sentido em uma obra, sentido esse que acontece nas relações com a história, com a teoria da arte e com a produção dos artistas – de certa forma “autorizando-os” a escolher as relações que desejarem como material ou ferramenta de trabalho1. Eu gostaria de saber como essas duas coisas se relacionam na hora em que você pensa o seu trabalho, se as questões colocadas pela pop de alguma forma entram em choque com o seu pressuposto? Geraldo: Veja, como um cara que começou a pensar nessas questões e trabalhar nelas no final dos anos 1970, começo dos anos 1980, meu trabalho já leva a pop como um dado, isso está no começo da conversa. A ideia do mundo como linguagem, do mundo como uma barragem desses símbolos culturais e na falta ou dificuldade de acesso direto à realidade – porque tudo o que percebemos está sempre mediado, intermediado pelos meios de comunicação e pela cultura – já nos é um dado. O que resta é pensar em como fazer, como lidar com essa avalanche de signos, de referências. Isso a história nos dá – tudo o que faço, tudo o que colocamos em jogo, são referências, são acontecimentos já transformados em linguagem, mas sempre modificados, sempre problematizados pelo site antropológico, social e histórico (de nossa formação), o contexto. Então, a gente tem toda uma história... Mas aí, quando você passa na frente de um carro, ele lhe atropela! Há uma verdade ali que é do acontecimento mesmo. Então, esse ponto de contato entre a história, a cultura e a vida fenomenológica – aqui e agora – é que é o momento da arte, o momento do trabalho. E o nosso trabalho é justamente colocar isso, organizar esses acordos. Você entende o que eu quero dizer? J: Mais ou menos... G: Bom, temos a história, a cultura, o dado. O que a pop faz, o que a pop ensinou para nós é que lidamos com coisas já transformadas em signos, em linguagem. Isso pode ser tanto um anúncio de jornal quanto um modo de fazer uma pincelada, um modo de jogar tinta na tela. Mas, ao mesmo tempo, a minha experiência, a minha vivência aqui neste momento, é única. E isso pode ser forte o suficiente para alterar a história, ou pode não ser. Mas o que o trabalho, o que a vida da gente trata é dessa 1 Segue uma passagem do texto: “Se as imagens artísticas não existem mais como cópias imperfeitas das imagens ideais, elas adquirem seus significados e sua validação na história das próprias imagens, que fornece os padrões para que possamos discernir, sempre a posteriori, a correção de suas configurações. Então, mesmo um corpo físico como o plano de uma pintura pode ser tratado também como o espaço virtual da escritura onde esta ou qualquer outra problemática se inscreve, e para o qual não se pode traçar nenhum diagrama de antemão. A ideia de obra fechada em si, com seus sentidos estabelecidos pela lógica organizadora de sua constituição, agora está aberta para o mundo de relações externas cujos sentidos se fazem apenas no uso. Este modo de pensar o espaço da obra em configuração com o espaço da arte traz aos artistas a possibilidade de escolher entre formalizações já estabelecidas e acessar suas relações sociais de origem como mais um entre os materiais que constituem a obra, justapondo sentidos estabelecidos pelas diferentes tradições.” (LEÃO, Geraldo. Da Ágora à internet. In: CODATO, Adriano, (org.) Para viver no século XXI: os problemas da contemporaneidade. Curitiba: SESC da Esquina, 2007. pp. 140-141).
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mistura de acontecimentos que é única, que é sempre irrepetível, que, às vezes, tem a ver só com a sua subjetividade, com a sua experiência pessoal, junto com essa carga que recebemos pronta da cultura. E o nosso trabalho como artista é lidar com esse fio da navalha, onde tudo está junto. J: Você não sente falta de uma observação, ou uma atitude, mais direta relativa ao contexto massivo em que vivemos? Parece-me que alguns trabalhos são mais efetivos do que outros em falar do momento, são mais atuais. Há até artistas que parecem perder sua potência, perder a potência do trabalho com o tempo ou de acordo com o andamento da produção. G: Veja, eu não consigo pensar muito bem assim em tese, eu acho que diante de um acontecimento concreto a gente pode avaliar: isso aqui está dando certo neste momento, isso não está dando. Um artista continua vivendo e testando as coisas, até porque ninguém faz obra-prima todo dia. Existem muitos tipos de pessoas e muitos modos de experienciar a realidade, há muitas maneiras de resolver esse problema. Alguns serão superartistas, reforçando essas características imediatas, avassaladoras, superficiais (entre aspas) de uma cultura muito massificada. E outros serão grandes artistas pisando no freio, fazendo o tempo diminuir, obrigando as pessoas que estão interessadas a baixar o seu ritmo, mudar o ritmo do cotidiano e ter uma experiência intensa. O que é legal é encontrarmos pessoas que acham o seu jeito de fazer, e conseguem tornar isso efetivo no conjunto da produção. Então, acho que não tem uma única resposta. Mas acho que arte é isso, não é? Os trabalhos só existem porque a gente precisa lançar pontes para o outro, para os outros, para o mundo, para alguma coisa que não está dentro da gente, e às vezes conseguimos, não é? Ou, às vezes, conseguimos criar uma ponte com uma obra, com um trabalho de outra pessoa. Não que a coisa esteja apenas no trabalho, está na nossa procura ali. Dayana: Precisamos lançar pontes do que para quê, exatamente? G: De uma experiência para outra. De duas experiências que são absolutamente incomunicáveis, como eu e você. Não existe possibilidade de eu entrar na sua cabeça e não existe possibilidade de você entrar na minha cabeça, mas em alguns momentos a gente consegue uma faísca em que você intui esse contato. Daí acontece um momento que, por exemplo, o zen chama de Satori, de Iluminação – sem nenhum tipo de transcendência, mas uma percepção intensa do aqui e agora. Acho que um bom trabalho de arte faz isso com a gente. J: Como quando um pingo cai em cima do outro...? D: E não seria essa uma definição possível de cultura? G: Não sei. Depende do que você chama de cultura também, não é? D: Você falou de uma aproximação da arte com a cultura em um determinado
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momento, lugar e contexto fenomenológico. Então, se você fala em uma aproximação, de alguma maneira, está dizendo que essas coisas estão separadas, não? G: Olhe só, você pode pensar em aproximação se há uma distância anterior, claro! Mas acho que cultura é o meio, cultura é o habitus, é o ambiente, e ele sozinho não é nada, a gente tem que fazer alguma coisa para produzir sentido com esse conjunto de signos que em si não são nada, são um monte de matéria inerte. Nosso trabalho é manipular isso de alguma maneira ou, melhor dizendo, colocar isso em movimento. J: Colocar em movimento o quê, Geraldo? G: Esse material que a cultura nos dá... D: Ou seja, colocar em movimento a própria cultura. G: Sim. J: Construí-la? G: Reconstruí-la perpetuamente! J: Muitas vezes eu me pergunto sobre o sentido da arte, se antigamente este sentido era diferente, ou pelo menos seu paradigma. Para mim, arte tem a ver com colocar o homem de volta em relação com a natureza, com a verdadeira natureza das coisas, algo nesse sentido. Porque acredito que o homem sofreu uma alienação da natureza das coisas do mundo. Isso, para mim, se reafirma quando vejo a alienação que envolve os círculos sociais em diferentes contextos, e o que acontece no sistema de arte, sua ordem, seus valores e os valores do mercado de arte... D: Geraldo, Juliana falou um pouco do que é arte para ela e levantou a relação entre arte e mercado. Você poderia comentar estes dois pontos: o que é arte e como é a relação entre arte e mercado, que você ampliou para uma ideia de sistema da arte e, de repente, de uma cultura da arte? G: Pois é, são coisas bem diferentes. O que é arte para a gente? Eu não sei se a gente tem muita certeza disso. Para mim, como falei, intuo de alguma maneira a arte como uma necessidade humana de contato, de comunicação, por isso eu estava falando aquelas coisas no começo da conversa. J: Comunicação em que sentido? G: Comunicação não no sentido verbal, onde você fala uma coisa e a outra pessoa entende exatamente. Quase pressupondo a impossibilidade disso, de a gente se entender mesmo, no fim das contas. Um impulso para uma tentativa de contato, de lançar pontes. Essa é uma imagem que o Cortázar usava e que eu acho bonita: você fica lançando iscas o tempo todo, e, às vezes, em alguns momentos, esses dois
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universos se tocam e conseguem um ponto de contato. Cortázar era um escritor que pensava muito: “Para quem eu escrevo?”. Qualquer um pode escrever textos completamente compreensíveis, mas não era isso o que ele estava querendo. Falava de lançar pontes não de um cérebro para o outro, mas de uma percepção de existência intensa para outra percepção de existência intensa. Mas, na verdade, isso funciona como material de trabalho, um impulso para se fazer coisas, e o que eu acho interessante, legal, ou de alguma maneira estimulante, é fazer objetos que façam as pessoas mudarem o seu olhar habitual, diminuírem seu ritmo e alterarem sua prática cotidiana da existência. Todo mundo tem sua vida, seu ritmo, seus acontecimentos habituais, e, de repente, a gente encontra situações que nos fazem parar e olhar de um modo que é inesperado. Quando um trabalho faz isso, ele já cumpriu um papel bem importante, de despadronizar o olhar, de criar momentos de intensidade naquele fluxo que é muito contínuo, quase sempre pouco intenso, não é mesmo? Então, adensar o cotidiano. D: E como esse despadronizar o olhar e essa quebra do fluxo cotidiano criam as pontes entre nós e os outros, entre diferentes seres? G: É como uma garrafa jogada no mar... D: O seu trabalho é a sua garrafa? G: É... O Julian Schnabel tem uma frase que eu sempre uso nos meus cursos. Ele é um artista, um pintor americano a quem me refiro muito, que acho muito legal e inteligente nesse aspecto. Ele diz que, quando está preparando material para fazer um trabalho ou escolhendo trabalhos para uma exposição, se sente como alguém que está escrevendo uma carta de amor para alguém que ainda não nasceu. Acho que é mais ou menos isso o que a gente faz, não é? Fazemos alguma coisa que tenha (pelo menos gostaríamos que tivesse) um potencial de criar, provocar um sentimento intenso em alguém, mesmo sem saber se algum dia uma pessoa capaz de sentir alguma coisa equivalente vai passar na frente do seu trabalho. Mas fazemos essas coisas a vida inteira, sabe-se lá o porquê... Agora, a segunda parte da questão. O mercado é um outro meio que a gente tem, que, para mim, é um problema apenas quando não vem posteriormente ao trabalho. Isso é o único problema. Quer dizer, problema não no sentido moralista, só no sentido de que pode, de certo modo, quebrar a liberdade de associação de ideias que poderia ser efetiva para essa despadronização, para essa construção de experiências inesperadas. Mas, se você, depois do trabalho feito, ou depois dessa experiência estar de alguma maneira construída, vende ou não vende esse trabalho, não é um problema, não faz a menor diferença, não é? D: Faz uma diferença no bolso. G: O que não é negativo. A gente precisa pensar que as grandes obras da nossa história (na verdade, o que formou o nosso pensamento de arte) foram talvez 90% encomendadas.
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70: Sem tĂtulo, 2013-14. Resina acrĂlica e pigmento sobre tela, 150 x 150 cm.
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D: Qual a relação do mercado com o sistema de arte ou com a arte enquanto uma coisa que é mais ampla do que ele? O mercado de compra e venda de obras não atende a toda a demanda de viabilização financeira da produção artística. Nesse sentido, me parece que há um mercado muito potente, que são as leis de incentivo, do qual aqui em Curitiba nós somos bem dependentes. G: É tudo mercado mesmo, claro. Na verdade eu acho que o mercado é isso, sempre. No final do século XIX em Paris – este é um dado na história da arte – havia centenas ou milhares de artistas registrados na associação comercial deles, no sindicato de artistas, como pintores impressionistas, e, hoje, lembramos muito poucos, não é? Provavelmente muitos tinham ou esperavam ter mercado e vender seus trabalhos, sobreviver do seu trabalho. Naquele momento, isso que hoje chamamos de mercado de arte estava se formando. D: Ou seja, mercado de compra e venda de obras? G: De compra e venda de obras, exatamente. Não havia praticamente nenhum outro possível, além da compra e venda de obras pela instituição pública, pela Igreja. J: As encomendas? G: Exatamente. E alguns artistas construíram, entre os pares, uma credibilidade e uma capacidade de influenciar o universo simbólico do seu grupo que os transformaram em parâmetros, paradigmas, para os outros. A gente não se lembra desses tantos pintores impressionistas [registrados na associação comercial de Paris], lembra quatro ou cinco apenas. Porque eles criaram um modo diferente de ver as coisas, uns vendiam bem, outros nunca venderam, mas eles eram artistas do mesmo jeito. Uma ou duas gerações de artistas, depois deles, ainda estavam aprendendo com eles, desenvolvendo essas ideias. E hoje o que acontece é que o mercado, no sentido mais amplo, é tão mais desenvolvido que existe muito mais possibilidade de financiamento disso que a gente chama de produção artística. Então, existe mais gente fazendo essas coisas. Alguns fazem isso de uma maneira que é simbolicamente efetiva, que vai influir no pensamento de outros artistas, e outros, não sei, desaparecem com o tempo. Não sei se respondi exatamente porque não entendi exatamente... Tem muita gente que executa muito bem um edital, por exemplo, de lei de incentivo à cultura, para fazer um trabalho que não vai necessariamente ser importante para os novos artistas que vêm depois, não é? E tem outros que fazem isso e vão fazer a cabeça, literalmente, de um monte de artistas, quer dizer, eles vão mudar a história da arte. D: Você respondeu sim, porque a questão era a possibilidade da extensão de uma ideia de mercado para outras formas contemporâneas de financiamento da arte. Você disse que o mercado já se fazia presente lá no começo da história da arte, que talvez 90% daquilo que temos como referência histórica estivesse atrelado a um mercado. Você também disse que vê o mercado como um problema quando a preocupação do artista com ele antecede sua atenção à própria produção artística. Mas, se o mercado constitui grande parte da história da arte e de nossas referências, 216
ele não é, de alguma forma, algo que também está ali a priori e não apenas como um devir? G: Lógico que é a priori, mas ele nunca é um elemento determinante, no sentido determinista. Ele é um dos lados com que a gente dialoga. Na verdade, a história da arte (e a vida) é isso: a gente recebe uma coisa e, ou continua o debate, ou então diverge. E, na verdade, é a capacidade que um artista tem de fazer com que ou sua concordância ou sua divergência passe a construir outra tradição, sempre a posteriori, que tem importância para mim. É por isso que a discussão de mercado para mim é sempre perigosa, porque dá a entender que o mercado existe como uma coisa ou entidade indiscutível, no sentido de determinar mecanicamente a produção, percebe? Porque eu acho que, assim como toda obra foi, até muito pouco tempo atrás, encomendada, e a gente tinha desvios enormes de regras, com imposições de pontos de vista completamente “tensionadores dos encomendantes” [risos], continuamos tendo esse tipo de relação do mesmo jeito. Eu gosto do Bourdieu quando ele fala que nós criamos o sistema da forma como ele existe hoje, do qual o que chamamos de mercado faz parte e tem um papel muito importante. Este é o mundo com o qual temos que lidar, e o que importa não é esse mundo que já está dado, mas a resposta que damos a ele, não é? Porque o que a gente chama de arte é uma coisa, é uma área de atividade historicamente construída, que foi crescentemente ganhando autonomia em relação às outras áreas de conhecimento. Como sabemos, até a Idade Média e o começo do Renascimento, por exemplo, os artistas eram trabalhadores braçais, quer dizer, eles não eram apenas artistas, eram pedreiros, decoradores, essas coisas todas, iluminadores, ilustradores de livros e manuscritos, faziam tudo. A partir do Renascimento, com a tentativa dos artistas (que é uma briga social) de ascender socialmente, sair da posição braçal e alcançar um status de trabalhador mental, isso começa a criar um sistema de autorreferência que vai ficando cada vez mais acirrado. Com o tempo, esse campo de trabalho foi ficando autônomo, foi ficando cada vez mais autorreferente. Os artistas passaram a responder cada vez mais aos outros artistas do que ao pedreiro amigo deles, do que ao pintor de paredes, do que ao avô deles. J: Mas da mesma forma que aconteceu com as outras áreas? G: Exatamente. Isso chega a tal ponto que, hoje, tornou-se uma coisa tão especializada que você tem que conhecer arte para entender arte, para frequentar uma exposição, assim como a gente tem que entender de medicina para falar com o médico, entender de física para conversar com o físico, etc. J: E o Bourdieu diz que criamos isso... G: E que continuamos alterando isso o tempo todo, porque o mundo externo, o mundo político, social, interfere na arte, mas indiretamente, filtrado pelos próprios códigos do campo. Se acontece uma revolução, não haverá uma revolução imediata na produção artística, mas essa produção começa a filtrar, pelos seus meios, criar maneiras de dar conta dessa mudança externa ao campo, e este vai sendo alterado
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internamente também, aos poucos. Mas o vocabulário disso que a gente chama de arte é construído historicamente. É por isso que você pode lembrar o trabalho de outros artistas vendo o meu trabalho. Caso contrário, seria apenas um monte de tinta jogada. Então, nosso trabalho, como trabalhadores do campo artístico, é remodelar o campo continuamente segundo o nosso ponto de vista. Por isso, por exemplo, não gosto de um trabalho gigantesco em escala; por isso nunca faria um trabalho como o do Serra; por isso não gosto de um trabalho construtivo, no sentido pré-neoconcretismo carioca. Não posso admitir, porque meu campo de valores não acredita nisso. E, ao mesmo tempo, não se trata de uma regra preestabelecida com a qual todos deveriam concordar. J: Em relação ao trabalho do Richard Serra, você se refere a quê? G: Refiro-me ao tamanho avassalador e autoritário de muitos de seus trabalhos. Apesar de achar que ele é um superartista, não é o que eu queria para conviver comigo. Acho que a estrutura do trabalho deve, para mim e para o meu trabalho, trazer isso que a gente acredita que o mundo deva ser. Então, é por isso que eu falo que gosto que as coisas aconteçam bastante por si mesmas. J: Mas isso se reflete nas suas atitudes, na hora de agir perante o trabalho? G: Sim. De preferência não apenas na hora de agir perante o trabalho, mas nas ações de toda a vida, nela inteira, como um todo, para não haver separação entre o que acredito e o que faço. A questão é essa, tem artista que é um canalha e é um superartista, mas eu gostaria de não ser um canalha, pelo menos não o tempo todo [risos]. D: Você falou que o trabalho do Richard Serra não é algo com o qual você gostaria de conviver... G: Por causa da potência. Fisicamente mesmo, acho um trabalho poderoso, mas ele é poderoso demais. J: Então você é a favor de terem retirado aquele trabalho, o Tilted Arc2 , que estava instalado na Federal Plaza em Nova Iorque? G: Claro, imagine! Quem tem direito de se meter na vida dos outros, atrapalhar o caminho dos outros? D: De onde tiraram o trabalho dele? Como é isso? J: De uma praça pública em Nova Iorque, que é comercial e tem vários prédios de um lado, vários prédios do outro. Ele fez um arco de chapas de aço gigante no meio desta praça, cruzando-a em diagonal, então, as pessoas não podiam passar, elas tinham que se desviar do trabalho e percorrer uma distância bem maior para atravessar a praça, mais ou menos isso. 2 Unidos.
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Tilted Arc [Arco Inclinado], 1981-1989. Aço corten, 366 x 3660 x 6,4 cm. Federal Plaza, Nova Iorque, Estados
G: Vai se catar um cara desses! É um superartista, mas isso é um absurdo de se fazer, quem tem direito de fazer isso, dizer aonde eu tenho que ir? J: Você acha que o trabalho interfere na organização social? G: Claro, e violentamente, não é? J: Nesse sentido, como você pensa o responsável pela ordem da cidade? Entraremos aí em relações políticas que a meu ver são muito piores. G: A ordem da cidade reflete, ou então está a serviço de, interesses que são políticos, que já foram militares, que hoje são econômicos e políticos. Por que a cidade é construída para carro e não para andar a pé ou de bicicleta? Para vender mais carro, para facilitar o trânsito, para ninguém parar, porque se parar vai atrapalhar, vai começar a pensar e a conversar. A reurbanização de Paris no século XIX, planejada por Haussmann, foi para modernizar a cidade. Eles abriram aquelas grandes avenidas, os boulevards, para evitar as ruelas estreitas nas quais o pessoal podia fazer barricada muito facilmente. Em um lugar onde você só pode transitar, um lugar onde você não vai parar, não se cria problema, não é? Mas isso não é só negativo, tem um ponto que é importante do urbanismo, que é facilitar a vida das pessoas na circulação pela cidade. J: O artista não pode fazer isso, não pode se meter nessa lógica ou, ao menos, não desse jeito? G: Eu acho que o artista que se preocupa com os outros não deve atrapalhar o caminho dos outros. Essa é a questão. J: Este trabalho do Serra chegava a entrar nessas discussões? G: Sim, entrava nisso! Ele dizia: “Ah, por que as pessoas percorrem um caminho sem pensar, sem tomar consciência do que fazem habitualmente? Então, vou atrapalhar o caminho para a pessoa ter que pensar nisso”. Agora, acho que tem várias maneiras de discutir essas questões sem ter que atrapalhar, literalmente, a vida das pessoas, não é? Bom, se a pessoa que está trabalhando lá oito horas por dia precisa ter tempo e espaço para ir à lanchonete, almoçar e voltar a trabalhar, vai ter saco para uma discussão filosófica sobre não sei o quê? J: Ele entra muito num sistema cotidiano... G: O problema é impor os seus valores, seus pontos de vista, seus interesses, para os outros. D: Por vezes fazemos isso, não é? Tomamos uma coisa como certa, a impomos dessa forma, pensamos que é uma atitude muito revolucionária, mas estamos sendo megafascistas, ditatoriais. G: É, exatamente. E o nosso trabalho é, o tempo todo, buscar perceber isso, fazer
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71 : Sem título, 1991. Resina acrílica e pigmento sobre tela, 150 x 150 cm. Coleção Carlos Deiró e Giselle Lima.
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a crítica a isso. Por isso eu acho que arte é legal, porque estamos sempre nos debatendo com coisas sobre as quais não temos a menor ideia de como surgiram, que são tão inesperadas, e, mesmo que não se chegue a conclusão nenhuma, isso nos faz pensar e rever nossos pontos de vista. Então, isso é revolucionário! Isso, a longo prazo, cria o hábito de questionamento constante, de interrogar a origem das informações que vêm para a gente, isso muda o mundo. Um artista deve ser muito delicado no aspecto de como fazer as coisas se colocarem com a potência necessária para serem ouvidas, para entrar na discussão, mas, ao mesmo tempo, não se impor. D: Achei interessante ouvir sua fala em relação ao ritmo, a parar e olhar, à desaceleração, a colocar-se em uma outra relação com o espaço, com o tempo, com esse lugar antropológico clássico, através da pintura. Este é um discurso vigente dentro da arte urbana, essas buscas ou características são muito acionadas e comentadas pelos atores deste circuito. E achei curioso você falar isso da pintura, porque se fala da morte da pintura, da pintura como uma linguagem conservadora, como algo destinado a espaços convencionais, etc., e a arte urbana é tomada como algo novo, com um “quê” revolucionário. G: Bem, eu fui formado nesse mundo intelectual em que os determinismos estariam (ou deveriam estar) superados. Na minha juventude lidávamos com uma ditadura que estava calcada em um discurso e em uma prática terrivelmente dicotômicos, terrivelmente deterministas, terrivelmente violentos, que era a ditadura militar. Toda a nossa formação, como simpatizantes da esquerda nos anos 1970-1980, foi nos levando a entender que Marx, em meados do século XIX, percebendo a falta de efetividade teórico-analítica do determinismo, foi acessar um filósofo nascido no século XVIII, chamado Hegel, para utilizar um método chamado dialética, como uma tentativa de superar esse determinismo [risos]. E a gente via no século XIX, no século XX principalmente, pessoas poderosíssimas, cabeças incríveis, debatendo isso, pensando em alternativas para se superar o determinismo, as dicotomias, as relações causais. E, por isso, mesmo quando ainda éramos superiniciantes, não pensávamos mais em termos deterministas como: uma linguagem só pode ser isso, uma linguagem é conservadora, etc. Porque quando começamos a fazer pintura, nos anos 1980, fazíamos pintura porque ela estava morta, sabe como? Porque era considerada uma coisa careta, porque o pessoal só fazia aquelas coisas conceituais e a gente, de chato, assim com essa tendência natural de ser “do contra”, começou a fazer pintura como uma provocação, mas ao mesmo tempo como uma mostra de que esse discurso era determinista, um discurso primário, na verdade. Não tem como dizer que não se pode falar mais nada em português porque tudo já foi muito usado e falado, não é? O que a gente faz com a linguagem é que vai definir o acerto ou o erro, ou a pertinência histórica, ou estética, ou artística, ou política. Então, podemos ser absolutamente reacionários em pintura como em arte digital. Podemos ser terrivelmente violentos na internet ou com um manuscrito, um pergaminho. O que fazemos com isso é que importa. Nesse sentido, não vejo contradição em ter esse discurso. Mas como eu, por hábito e por gosto, mais por hábito mesmo, acabei me concentrando bastante em pintura – não apenas, mas bastante em pintura –,
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acabo procurando dar conta dessa minha inquietação existencial no meio em que estou mais habituado. Acho que tem algumas vantagens, que é justamente isso de que, quando você trabalha com uma linguagem, um objeto, uma experiência artística que não está presente no cotidiano das pessoas, de alguma forma ela vai tocar ou vai afetar quem está disposto a começar o diálogo. É mais uma maneira que eu acho, em muitos momentos, efetiva – não em todos, pois tem seus problemas também – de não se impor na vida dos outros. D: E quais são os problemas? G: Às vezes você não encontra quem poderia... Um ótimo interlocutor que, por acaso, não descobre que naquele lugar tem um monte de coisas que os caras chamam de arte. Quer dizer, isso eu acho uma coisa importante, a questão de como fazer acessar o trabalho, que é uma questão, um problema da nossa sociedade, de ter acesso à informação. O ideal seria que todo mundo soubesse, dispusesse de informação em que pudesse apoiar suas escolhas. “Hoje eu quero ir ao jogo de futebol, vai ter jogo de futebol em tal lugar. Hoje estão passando vários filmes, eu quero ver tal filme em tal lugar. Hoje tem uma obra de arte que está numa igrejinha, ou no museu determinado, eu quero ver aquele trabalho”. Infelizmente, como nem todo mundo tem acesso a toda a informação, muita gente não vai ver um monte coisas. Mas ainda prefiro isso a colocar um pedaço de ferro no caminho dos outros [risos]. J: Mas, como assim, não tem acesso? Porque existem muitos canais de informação on-line, tipo Canal Contemporâneo, Mapa das Artes, etc. G: Cada vez mais. Isso eu acho superpositivo. D: É preciso tomar um certo cuidado com essa questão da comunicabilidade, porque não podemos presumir que as pessoas estão na mesma condição de acesso. G: É, exatamente. É importante o que a Dayana falou, a acessibilidade não é uma coisa natural, não é um dado. J: Acho que aqui em Curitiba faltam iniciativas de divulgação, entre tantas outras coisas, e o meio é bem deficiente. Curitiba é uma coisa muito esquisita, parece até que regrediu em alguns aspectos. G: É que Curitiba somos nós, não é?! Então, a gente tem que fazer isso se quiser mudar. O problema é que as coisas não progridem “naturalmente”, não andam sempre para a frente, apesar de mantermos um otimismo de que as coisas progridem. Isso só acontece se arregaçarmos as mangas e fizermos as coisas mudarem, não é? J: Você é professor na UFPR. Você não pensa em viver exclusivamente da sua produção artística? Seria muito difícil aqui em Curitiba? Você vende bem o seu trabalho? G: Não, pelo contrário. Quando eu produzia para vender, vendia bem. Eu parei muito tempo de fazer coisas que achava que valia a pena mostrar, mas quando fazia
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72 e 73: Sem tĂtulo, 1992. Nanquim sobre papel, 18,5 x 25,5 cm.
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e mostrava, eu vendia. Fiz uma casa trabalhando com arte, inclusive. Eu acho que, para ser um bom professor, você tem que entender daquilo que está ensinando, então, se não for artista, dificilmente vai ser um bom professor de arte. Não tem como, acho que existem coisas que são necessidades, você tem que saber do que está falando. J: Fez a casa com venda de obras aqui em Curitiba? E como foi? Alguém vendia para você ou você vendia sozinho? G: Sim. Primeiramente eu vendia sozinho, ia atrás das pessoas, depois as pessoas vinham atrás de mim [risos]. Depois o Marco Mello começou a vender, através da Galeria Casa da Imagem. J: Mas como você sabia quem eram as pessoas que compravam arte, que estavam interessadas? Você oferecia para todas as pessoas? G: As coisas não acontecem de um dia para o outro. Eu me formei em 1980 na Belas Artes e comecei a dar aula na Federal em 1997, então, nesses 17 anos de intervalo, antes de eu entrar no concurso, trabalhei dois ou três anos em uma agência de publicidade, mas os outros catorze, quinze anos vivi de agenciamentos do meu trabalho artístico. E não apenas eu, muitos artistas. J: Tinha um mercado em Curitiba? G: Tem. J: Ouvi muitas pessoas comentando que é mais fácil vender em São Paulo do que aqui. G: Eu vendi pouco em São Paulo. J: Pois é, você é reconhecido aqui, importante para várias gerações de artistas, porém não é tão reconhecido em São Paulo, por quê? G: Porque quando comecei a ir para São Paulo meu trabalho não estava do jeito que eu gostava, então não mostrava muito. Quando ele começou a ficar do jeito que eu gostava, acabei deixando de ir para lá. D: Quer dizer que você mesmo se atrapalhou? [Risos.] G: Exatamente, só isso. Se tem trabalho, a gente acha o caminho! Por coincidência, no Facebook, outro dia, uma menina, assim quase da minha idade [risos], entrou em contato comigo... Ela tinha comprado um trabalho meu em 1993, num Panorama da Arte do MAM3, e adorava o trabalho. O marido que o tinha dado para ela. Eles se separaram e ele levou embora a pintura, e até hoje ela lembra. Mandou um 3
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Panorama da Arte Atual Brasileira, 1993. MAM-SP, São Paulo.
e-mail superbonito, carinhoso. Então, tinha algum contato, eventualmente, mas por incompetência, preguiça e situações pessoais acabei não explorando isso. Mas passei quase quinze anos só vivendo disso. Comecei a fazer os meus trabalhos nos anos 1980 e fui procurar gente que gostava daquele tipo de trabalho e achei. No início, não havia mercado para esse tipo de produção aqui, apesar do Zimmermann, que via muito bem o meu trabalho, ou do Ruben Esmanhotto. Hoje pode parecer um pouco sem sentido falar disso, mas na época era muito diferente. Uma exposição do Zimmermann, do Ruben Esmanhotto, do Rones Dumke divergiam do que era o mainstream, do que era a arte aceita na Escola de Belas Artes, nos Salões Paranaenses, que era muito convencional. J: Esses artistas eram mais engajados? G: Eram muito informados, o trabalho era de rompimento mesmo com o cenário mais conservador. Eu tenho o maior respeito por eles, principalmente por isso. Então, observando o trabalho e a relação desses artistas com o mercado, entendi que, se eles vendiam, eu também poderia vender, não é? “Se o Calderari (que era meu professor) vende, se o Zimmermann vende e eu preciso pagar minhas contas...” E de alguma maneira eu fui começando a procurar a minha turma, que é o que acontece. Na verdade, o que o artista tem que fazer é procurar sua turma. É o que falo para os meus alunos: “Faz o que você acredita, o que você mais acredita, e vai achar tua turma”, pois ela existe! J: Quando perguntei, estava querendo cogitar sobre sobreviver do próprio trabalho, que me parece quase impossível aqui. Porque muitos artistas trabalham como professores e, querendo ou não, dando aula, pode-se continuar produzindo, mas é diferente. O trabalho exige muita dedicação e ser professor também. Para mim é uma questão de tempo, mesmo. G: Pois é, você tem que pensar em duas coisas, é difícil mesmo. Veja, se começa a fazer qualquer outra coisa, você não vai ficar 100% no ateliê. Mas eu nunca fiquei 100% no ateliê, porque eu ficava mais tempo jogando sinuca ou treinando aikido ou conversando com os outros amigos. Precisa organização, profissionalismo, que é uma coisa que eu nunca tive muito, que não é fácil para mim. A Lilian 4 faz isso melhor, eu não, é bem difícil para mim. Mas estou conseguindo aprender, acho. Porque qualquer trabalhador tem que ir todo dia para a fábrica ou todo dia cuidar da horta. Se não for, a alface não nasce e ele não vai poder vender no final do mês. Se não for para o trabalho e não bater o ponto, você não recebe, não é? Trabalhar no ateliê é a mesma coisa, você tem que ir até lá e trabalhar, no horário que você tem para trabalhar nisso, ou seja, você precisa se disciplinar. J: Ah, mas eu digo no sentido de viver mesmo. Muitos artistas vão dar aula para sobreviver com dignidade, para poder comprar o próprio material, que é caro, e subsidiar o próprio trabalho. Porque para ser um artista reconhecido morando 4
Lilian Gassen é artista e companheira de Geraldo Leão. Ambos dividem o mesmo ateliê.
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em Curitiba você precisa se desdobrar em milhões, mostrar trabalho realizando exposições e assim mesmo é difícil, porque você não é visto pelo principal meio de arte no Brasil, que é São Paulo, não se torna conhecido e as pessoas não vão atrás de você ou do seu trabalho. Além do mais, em São Paulo, artistas muito mais jovens estão saindo da faculdade e já tomando todos os espaços, porque há, também, uma defasagem da crítica. G: Mas consegue, sim. Veja, o artista tem que se preocupar primeiro com o trabalho, em ter um bom trabalho. Porque a primeira coisa que você espera de um artista é que tenha um bom trabalho, senão não é artista. Então, depois disso, ele faz os trâmites necessários para o trabalho ser visto. Aí o trabalho vai ser visto e vai ser notado. No entanto, tem que ter a paciência e a persistência de fazer isso virar um hábito entre as pessoas, tem que trabalhar nisso. A concentração é no trabalho sempre, depois a gente tem que se concentrar em fazer outras coisas também, que é esse agenciamento do trabalho. E teve um momento em que percebi que eu estava há dez, quinze anos, trancado no ateliê e havia alguns amigos com quem eu tinha um debate produtivo, superimportante, que foram ou cuidando da vida ou então morrendo, essas coisas todas. Foi então que comecei a dar aula, e aí você começa a ampliar seu público, sair do buraco, sair do ateliê e começa a criar interlocutores. J: Então você foi dar aula por causa disso? G: Não só por causa disso, mas, entre outras coisas, sim. D: Por qual outro motivo? G: Para ganhar dinheiro, também. Porque não é sempre que você vende tudo, não é o tempo todo que você vende, não é todo tempo que você tem vontade de produzir. Cheguei a ficar alguns anos sem fazer nada, o Ivo Mesquita dizia: “Eu não acredito!”, e eu respondia: “É, faz dois anos que não faço nada”. E às vezes ficava dois anos sem fazer nada, então eu tinha que fazer alguma coisa, não é? É um crime para um trabalhador fazer isso. E chegou um momento em que eu não tinha muito o que dizer, por que, então, ficar fazendo exposição, fazendo uma bobagem atrás da outra? J: Chega uma hora em que o próprio artista pode se dar uma rasteira, se deixar levar por uma demanda do mercado ou de algo externo a ele, ou ficar reiterando sua própria fala. Alguns artistas negam convites para preservar o trabalho e sua dignidade, e até param de expor por acreditar que já fizeram o que tinham que fazer. G: E é um problema. Mas o problema é também quando você está precisando pagar o aluguel. Então a pessoa diz: “Está aqui a grana, eu quero comprar um trabalho seu”. Ou qualquer coisa desse tipo. Dá uma coceira [risos]... D: Você diz não?
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G: Algumas vezes. Esse trabalho aqui [aponta para um dos trabalhos dispostos no ateliê, imagem 74] não vendi porque continuei trabalhando nele. Isso há doze anos... Quando eu fiz essa sombra verde, ficou um negócio gráfico muito bonito, e o material é bonito, é cobre... O cara entrou tirando o talão de cheques, daí eu falei: “Não, vai continuar aqui no ateliê”. Então, continuei o trabalho e ele não gostou e não comprou. Várias vezes aconteceu isso. E o que é pior, também, várias vezes aconteceu de eu vender algum trabalho porque achei que estava pronto e depois vi que não estava. D: Aí você pede: “Posso dar mais uma pintadinha?” [Risos.] J: E, mudando de assunto, eu já ouvi você falar muito do Gerhard Richter, você gosta bastante do trabalho dele? G: Acredito muito nele ainda. J: Eu estava pensando na relação do seu trabalho com o dele, lá no começo da nossa conversa, quando falávamos da pop art. Olhando este detalhe do trabalho da Lilian [referindo-se à lateral de uma pintura, onde ela falseia um escorrido de tinta – desenhando-o, imitando-o], existe um artifício que outros artistas também utilizam, como o próprio Richter ou o Jeff Koons. Não tem isso no seu trabalho? Essa falsidade? G: Não, não tem. Eu entendo isso, mas não é isso o que quero. A minha pop passa pelo Richter, mas passa pelo Beuys também. Deixar as coisas serem o que elas são. Então, aquilo que funciona como ironia para ela, para mim seria uma forçada de mão. J: Você falseia através dos procedimentos? O teu ato, sempre interrompido, coloca o gesto como desenho ou caricatura dele mesmo? Eu vejo um pouco assim o seu trabalho. G: Creio que isso não é falsear, mas problematizar o ato mesmo. Colocar dúvida sobre a ideia de completude, finalização, ou projeto totalmente realizado. J: Você já viu imagens de uma exposição do Richter5 formada por pinturas de quadradinhos coloridos, vários quadros de quadradinhos coloridos, feitos em módulos? O que você acha? G: Aham, eu gosto bastante. Você viu o vídeo que estava na exposição dele na Casa Andrade Muricy? Um vídeo que era um making of de um vitral dele na Catedral de Colônia6. Aquela enorme daquela catedral gótica que foi destruída na Segunda 5 Referindo-se à exposição: Gerhard Richter – 4.900 Colours: Version II, 2008. Serpentine Gallery, Londres, Inglaterra. Também pode-se considerar as exposições da série intitulada 4.900 Colours [4900 Cores]. 6 Cologne Cathedral Window [Catálogo Ressoné: 900], 2007. Vitral com cerca de 11.500 quadrados de vidro boca-fundidos em 72 cores diferentes. Transepto sul da Catedral de Colônia, Alemanha.
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74: Sem título, 1997-2000. Cera de abelha pigmentada e ácido nítrico sobre cobre, 160 x 160 cm.
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Guerra Mundial, e ele foi chamado para fazer alguns vitrais. Imagina. E ele fez só com quadradinhos de vidro. O vídeo é tão legal, mostrando as escolhas dele, o processo. É maravilhoso! A inteligência, a responsabilidade e o olho dele de artista. Mas eu gosto muito do amigo dele, do Sigmar Polke, que é uma referência bem importante para mim. J: O seu trabalho lembra muito o do Richter, não tem como não relacionar. G: Mas isso acontece desde os anos 1980, quando pouca gente falava dele. Eu tenho pensado bastante no Antonio Dias nesta série de trabalhos [referindo-se à série de trabalhos que estava produzindo no momento]. J: Onde é que vai entrar o Antonio Dias? G: Já está entrando, em tudo quanto é lugar. Tem coisas também que são um pouco do Willys de Castro, a continuação para os lados e tal, que muda conforme o ponto de vista. J: Uma curiosidade: quando está dando aulas, como você faz para lidar com as referências e as coisas que enxerga de interessante nos trabalhos dos alunos? G: Falar é um perigo, porque a pessoa pode acreditar que só aquilo é legal e deixar de fazer um monte de outras coisas. J: E o que você faz? Você não fala nada? G: Não, eu falo: “Continue... Por que você está fazendo isso?”. Pergunto sempre o porquê de estar fazendo aquilo, por que a pessoa fez, entre outras questões. Quando eles continuam fazendo, produzindo, começam a fazer um retrospecto e a reconhecer os padrões – e a aceitar, ou não. E assim eles vão construindo a sua própria gramática, não é? Eu não posso (ou não devo) falar diretamente porque tenho um olho associado à minha experiência. Eu vejo coisas maravilhosas nos trabalhos dos alunos, mas que podem ser algo completamente diferente do que uma pessoa de 20 anos está pensando. Como professor, eu tenho que cuidar para não impor um ponto de vista, até por isso faço questão de não mostrar muito o meu trabalho para os alunos. A humanidade gosta de grupo, gosta de reconhecimento e de pertencimento. Se a gente começa a informar ou afirmar a opinião pessoal, acaba ficando sozinho. As pessoas têm padrões do que é certo e do que é errado. Se a sua versão é muito pessoal, muito individual, você acaba ficando meio restrito, e o seu grupo vai ficando cada vez menor. E todo artista já sentiu isso de uma maneira ou de outra. É difícil até você adquirir segurança pessoal e até mesmo encontrar um grupo de interlocutores que de alguma maneira reconheça isso como um discurso válido. Você acaba num primeiro momento falando sozinho e não é todo mundo que tem disposição para aguentar essas coisas. Então, não é todo mundo que se dá ao trabalho, tem essa paciência, tem saco para essas coisas.
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75 e 76(p.231): Metaesquema, 2013-14. Resina acrĂlica e pigmento sobre tela, 75 x 65 cm.
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77: Sem tĂtulo, 2014. Resina acrĂlica e pigmento sobre tela, 150 x 200 cm.
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J: E você viaja bastante para ver exposições, ou não? Você vai para fora do país para ver? G: Não, nunca saí do Brasil. J: Sua formação é por outros meios, então? Você nunca viu uma exposição do Richter? G: Não. Só aqui, vi aqui em Curitiba, na Casa Andrade Muricy 7. Eu me formei por revista, fotografia, slide na minha época. Mas a gente se acostuma a entender o pensamento dos artistas. Do Richter eu via imagens e lia o que ele falava, lia o que escreviam sobre ele e ia percebendo que não era só imagem que havia no trabalho dele. J: Mas você vai ver as Bienais de São Paulo, por exemplo? O que você achou da última Bienal8? G: Veja, eu gostei muito mais do que da Bienal anterior, como concepção, mas ao mesmo tempo com menos, com poucos trabalhos muito importantes. Mas isso foi uma opção do curador, essa atitude mais honesta de colocar quem está trabalhando, e colocar um espaço para cada artista, o que é inclusive mais tradicional, mas é mais digno, porque você consegue mostrar o trabalho sem aquela coisa, aquele absurdo da Bienal passada, do Moacyr dos Anjos e do Agnaldo Farias9. J: Estava muito quebradiça... G: E violentamente invasiva, não é?! Você não conseguia nunca estar diante de um trabalho, de um discurso, que tinha outro gritando no seu ouvido. Isso eu acho muito violento, acho uma bobagem. Porque tinha trabalhos como o do Nuno Ramos, de que eu gosto muito. J: Você falou de poucos trabalhos importantes, como assim? G: É, eu vi poucos trabalhos pelos quais me apaixonei, mas acho que tudo é sempre assim. J: Tinha o Bernard Frize. G: É, dele eu gosto bastante e gostei de ver, nunca tinha visto ao vivo. Alguns trabalhos de que eu gostava em imagem achei ruins ao vivo, e outros trabalhos, que eu achava ruins em imagem, adorei ao vivo. Gostei da inteligência do Bernard Frize, gostei de ver o trabalho dele, bastante. Gostei muito daquele artista que estava no terceiro andar, chamado Ian Hamilton Finlay, que já morreu também, que trabalhava com umas fachadas de templos clássicos, com uns textos escritos, só que os textos eram quase todos antimilitaristas, falando de violência, de violência 7 Gerhard Richter: Sinopse, 2010-11. CAM, Curitiba. 8 30ª Bienal Internacional de Arte de São Paulo: A Iminência das Poéticas, 2012. Curadoria de Luis Pérez-Oramas. 9 29ª Bienal Internacional de Arte de São Paulo: Há sempre um copo de mar para um homem navegar, 2010. Curadoreschefes Moacyr dos Anjos e Agnaldo Farias.
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de Estado. D: Junto com as fotografias? Um bem excessivo? G: Isso, com muitas coisas, grandes, pequenas, enormes. J: Pois é, você não achou estranho, parecia que a Bienal toda estava meio excessiva, no sentido de que as salas de cada artista tinham em sua maioria muitos trabalhos, meio “amontoados”, quase como se estivéssemos em um ateliê. Uma montagem bem carregada de obras, tornando difícil de visualizar os trabalhos individualmente. Muitas salas estavam assim, com algumas exceções. G: Mas recriava o universo do artista, não é? E não tinha essa coisa avassaladora, poderosa, autoritária. Era uma coisa delicada, que achei bem legal. J: Ah, sim, entendi. Mas, ao mesmo tempo, não dava para ver direito as obras. Você acha que isso é questão de curadoria, então? G: Acho. É uma mistura de curadoria com a vontade do artista de querer mostrar tudo ali, já que é uma oportunidade tão legal, então o artista quer colocar tudo, e aí ele se ferra, porque não dá para ver direito. A gente não pode esquecer isso, que também são os artistas que escolhem a montagem. Por isso que gostei do Ian Finlay, que comentei, porque foi a melhor montagem que eu vi na Bienal, na minha opinião. Você podia entrar na sala por qualquer porta, o trabalho não tinha uma linearidade, com começo, meio e fim. Era tudo, o ambiente todo era poderoso e inteiro, gostei muito. Não tem nada a ver com o que eu faria e com o que eu faço, mas achei um trabalho muito forte. Tinha um fotógrafo, no terceiro andar, mostrando fotografias pequenas, quase todas de uma parede, parece que era a mesma parede do ateliê dele, com pessoas, modelos, ou com bicho morto ou uma flor, ele tinha um nome judaico, o nome dele eu não lembro. Fotografias bonitas. Tinha um sueco também que achei legal. Mas, nessa ida para São Paulo, no momento da Bienal, eu gostei muito mesmo foi da exposição da Lygia Clark 10, fiquei tão encantado que todo o resto perdeu um pouco o brilho, para mim. D: Onde estava? G: No Itaú Cultural, na Paulista. Continha quase tudo dela. Todos aqueles dos bichos, os trepantes, os estudos, desde o começo, aqueles primeiros desenhos dela... Até aqueles quadros que saem da moldura, depois tinha os vídeos, as performances, as instalações. Ela é maravilhosa, tudo era muito bom! Estava lá o primeiro desenho, o segundo desenho, o terceiro desenho, o quarto desenho até chegar numa ideia, sabe? Tudo tinha qualidade, inteligência, compromisso. Uma instalação de vídeo que ela projetou e nunca conseguiu executar, talvez até porque não tinha tecnologia na época, era uma pessoa andando na rua com quatro câmeras na cabeça, uma 10
Lygia Clark: uma retrospectiva, 2012. Itaú Cultural, São Paulo/SP.
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na frente, outra atrás e uma em cada lado. E expostas nas quatro paredes de uma sala estavam aquelas imagens projetadas. E você entra dentro da projeção e vê a pessoa andando e o mundo, você perde o chão completamente, sabe? Tão legal! Uma ideia simples, e foi feito há bastante tempo. Muito legal! Ela é maravilhosa. Havia também uma exposição na Cultura Inglesa, no British Council, de artistas brasileiros e ingleses juntos, bela exposição também. Então, a Bienal, como era uma coisa propositalmente não espetacular, por outro lado, perdeu um pouco por causa desses outros espetáculos, no bom sentido. Mas, voltando ao que estávamos falando, sobre viver de arte. É muito difícil mesmo, porque o meio é muito pouco desenvolvido aqui no Brasil. Mas tem um livro do Durand, a dissertação e a tese de doutorado dele [em Sociologia] foram feitas na USP, e tratam do mercado de arte no Brasil. Ele usa o Bourdieu e fala de privilégio e distinção. D: O livro chama-se Arte, privilégio e distinção11. G: Isso mesmo. E ele mostra que sempre teve gente que viveu de arte no Brasil, desde a colonização. Vinham os europeus para cá, artistas, que preenchiam a demanda que se tinha aqui, que era quase sempre de retrato e decoração de igreja ou de cemitério. J: Ou então aqueles bustos, aquelas coisas escultóricas, não é? G: É, exatamente, os que conseguiam encomenda pública. Quase sempre era fazer os retratos dos e para os fazendeiros. Mas o mercado, como a gente entende hoje, começou a aparecer nos anos 1970, as galerias, tudo isso é muito recente – para vocês os anos 1970 podem não parecer tão recentes, mas são, historicamente falando. Então, no Paraná, a primeira galeria de arte moderna que durou foi em 1959 ou 1960, que é aquela galeria que o Ennio Marques Ferreira abriu, a Cocaco. Era uma molduraria onde eles também penduravam os quadros. Antes disso, os grandes artistas expunham em salões, existiam dois ou três, ou em vitrine de loja. D: Algum museu, espaço expositivo, não? G: Quase não tinha, tinha pouquíssimos museus. Para você ter uma ideia, até muito pouco tempo atrás, o Salão Paranaense, que é antigo, é de 1948, era feito num galpão no Instituto de Educação, ali na Emiliano Perneta. Não tinha onde mostrar o trabalho e não tinha quem o vendesse. Depois da Cocaco, a Acaiaca, do Jorge Carlos Sade, foi [fundada] no começo dos anos 1970. Só. Até lá, havia duas ou três galerias. J: Mas eram daqui? G: Daqui. Vinham artistas de fora, tinha uma galeria chamada Século XX, que era 11 DURAND, José Carlos. Arte, privilégio e distinção: artes plásticas, arquitetura e classe dirigente no Brasil, 1855-1985. São Paulo: Perspectiva, 1989.
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do Paulo Valente. Ele era o único artista que expunha obras abstratas geométricas, a partir dos anos 1960, porque ele tinha uma loja de design, ele era designer também, e tinha uma galeria de arte na loja. E ele expunha Willys de Castro, Hércules Barsotti, dos anos 1960. É que Curitiba era aquilo. Mas havia duas ou três pessoas que gostavam desse tipo de arte. Porque a arte moderna no Paraná, a partir dos anos 1960, final dos anos 1950, era uma figuração, como em Guido Viaro, uma figuração ao estilo de Portinari, deformada. J: Deformada como? G: Era uma coisa meio expressionista, como eles diziam. Aumentava o pé, a mão e era expressionista, era moderno. Isso eles aceitavam. Mas o Werner Jehring, o Érico da Silva, o Fernando Velloso começaram a trabalhar de modo abstrato no começo dos anos 1960 – o Jehring um pouquinho antes. Mas era uma abstração completamente ligada à produção do começo do século XX, no máximo. J: Produção mundial, você diz? G: É. Ligado no máximo a valores como o tachismo francês, que eram manchas, mas tudo composto. Eles não tinham a menor ligação com Pollock, os EUA não existiam para eles. Arte geométrica não existia aqui no Paraná. Tem textos da época, e a minha dissertação, por exemplo, é só sobre isso12. Tem textos do pessoal dizendo: “O Paraná não vai ser contaminado pelo vírus concretista. Que graça tem? Aquela coisa horrorosa, aqueles quadradinhos. Uma arte que é só aplicação de régua e compasso”. Está escrito assim, desse jeito. Mas quando havia uma pincelada mais solta, aquela abstração do Velloso, do Jehring, e uma composição que era reconhecível, as pessoas entendiam e aceitavam como válido. Então, essa história é muito recente. Até pouco tempo não era fácil mesmo... J: E você antes fazia trabalhos mais figurativos, não é? Como foi essa passagem para a abstração? G: É que eu não sabia... no começo eu só desenhava. Você já viu esses desenhos? J: Eu nunca vi nenhum ao vivo, só imagens. G: Outra hora eu lhe mostro, aqui acho que não tenho nada... [procura e encontra alguns desenhos que nos mostra] Eu só desenhava essas coisas, então comecei a querer pintar e vi que não entendia nada de pintura. Isso aqui deve ser da década de 1970. J: E depois de fazer esses desenhos que você começou a querer pintar? G: Sim, e então eu percebi que estava só levando o meu desenho para a tela... Esse aqui já deve ser do começo dos anos 1980. Esse aqui eu devia ter uns doze anos de 12 LEÃO, Geraldo. Escolhas abstratas: arte e política no Paraná (1950-1962). Curitiba, 2002. Dissertação (Mestrado em História) – Departamento de História, Universidade Federal do Paraná. Orientador: Prof. Dr. Luiz Geraldo Silva.
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idade [referindo-se aos desenhos que segurava]. J: Você desenha a partir de um modelo ou desenha de cabeça? G: Tudo de cabeça. D: Ou seja, a gente vê por esses desenhos que a única coisa que o Geraldo tinha na cabeça era mulher pelada. G: Como todo adolescente, não é? [Risos. Geraldo encontra um desenho que representa Alice Cooper] G: Tinha o Alice Cooper também... Esse outro é um livro que eu fiz com o Cesar Bond 13, eu desenhava e ele escrevia, eu escrevia e ele desenhava, a gente fez assim meio livre. Eu desenhava muito e quando comecei a pintar vi que só estava levando o meu desenho para a tela. Então, literalmente, comecei a tirar a figura para aprender a pintar. J [apontando para outro desenho]: E este, o que é? G: É um poema do Leminski de que eu fiz uma tradução gráfica [imagem 80]. Eu chamava, a partir do Julio Plaza 14, de tradução intersemiótica. Depois de pronto, mostrei para o Leminski no boteco e ele disse: “Não precisa exagerar também!” Aí eu disse: “Yes!”. Ele me passou o poema numa comanda de boteco. Uns três dias depois, eu levei a arte para ele. Eu criei uma tipologia para o poema. Isso aqui é tudo feito à mão, porque não tinha computador na época. J: E você começou a pintar sozinho? A abstração? G: Sim, mas foi um processo. Primeiro a figura foi saindo, porque, se tirasse a figura, eu não sabia o que fazer com a pintura, ela não se mantinha, daí tive que achar um jeito de a pintura se segurar. Assim fui aprendendo, acho. J: Mas os desenhos são meio abstratos, não? G: É, eles são simplificados, não é? Mas ainda era um desenho de alguma coisa, não era uma coisa autônoma, independente. J: Eu sempre fico intrigada com aquela pintura sua que tem uma cabeça de lado e um fundo amarelo, com umas florzinhas [imagem 78], e aquela outra com uma sereia também15. G: Ah, aquilo é bem durante essa passagem mesmo. Essas florzinhas eram muito mais cópia do Rogério Dias do que qualquer outra coisa. Eu não sabia o que fazer. 13 BOND, Cesar. As mulheres são todas. Curitiba: Edição do autor, 1985. Cesar Bond (1956-2004) foi poeta e publicitário. 14 PLAZA, Julio. Tradução Intersemiótica. São Paulo: Perspectiva, 2003. 15 Sem título, 1988. Acrílica e esmalte sintético sobre tela, 90 x 140 cm.
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78: Sem título, 1981. Óleo sobre papel, 25 x 35 cm aproximadamente.
79: Sem título, 1983. Acrílica sobre papel, 30 x 40 cm aproximadamente.
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Eram pinturas muito mais ilustrativas. J: Este espaço do ateliê é apertadinho para vocês dois, não? G: É, eu poderia estar realizando bem mais trabalhos ao mesmo tempo, mas estou fazendo 10, por exemplo, agora. J: E você acha bom fazer vários trabalhos ao mesmo tempo? G: Para mim é necessário, quando entro num ritmo de trabalho tenho que fazer várias coisas ao mesmo tempo, e eu preparo o material, tem o tempo de secagem, etc. J: Você utiliza o mesmo material em diferentes pinturas? Elas não acabam ficando muito parecidas umas com as outras? G: Não, porque cada uma tem um problema diferente, e eu vou procurando fugir disso... J: E a exposição que você organizou no MusA 16, você não quis assumir a curadoria? Você não considera a escolha dos artistas como curadoria? G: Lógico que não. Curadoria é levantar um problema estético e resolver, ou artístico, ou pessoal, ou político. D: Você acha que você não levantou uma questão escolhendo essas pessoas? G: Não, eu acho que não. Eu escolhi, chamei artistas que são, artistas que têm um trabalho de que gosto, que são efetivos. Se tivesse mais espaço, entraria muito mais gente. Foi só uma questão de capacidade de abrigar trabalhos lá, e contemplar três grupos etários. A questão foi essa. Mas o único tipo de escolha foi esse, o resto foi gosto pessoal mesmo. J: Mas, por exemplo, você confrontar um trabalho com o outro... G: Mas eu não fiz isso. J: Você convidou os artistas. Cada artista tem uma poética bem diferente, bem distinta, bem específica. G: Então, eu não tinha a menor ideia do que iria acontecer na exposição. São artistas que eu considero, como artista. D: Por quê? G: Por causa do que eu vi que eles já fizeram.
16 9, 2012. MusA, Curitiba/PR, Brasil. Mostra coletiva organizada por Geraldo Leão. Artistas participantes: Angelo Luz, Bruno Oliveira, Cleverson Oliveira, Fábio Noronha, Fernando Burjato, Juan Parada, Tony Camargo, William Machado e Willian Santos.
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Ideograma japonês que significa lua.
80 e 81: Poema de Paulo Leminski, 1988 (acima) e Poema de Cesar Bond, 1986. Ambos: Tradução gráfica, dimensões variáveis.
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82: Sem título, 2014. Resina acrílica e pigmento sobre tela, 210 x 170 cm.
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83: Sem tĂtulo, 2014. Resina acrĂlica e pigmento sobre tela, 190 x 160 cm.
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D: O quê? G: O próprio trabalho. O trabalho de cada um. A trajetória individual. D: Mas o seu olhar e o seu gosto não formam um conjunto, uma questão, um recorte? G: Eu acho que, nesse caso, não. O olhar é um recorte, mas não sei se ele confere unidade. Se tem alguma coisa que agregue. D: Você acha que não tem unidade lá? G: Não, pode ter. Alguma coisa em comum tem... Mas eu não fico procurando isso. J: Não ficou anteriormente, simplesmente escolheu porque pensou nos artistas, em cada trabalho separadamente? G: É, como uma pintura. Tem coisas que eu sei mais ou menos como funciona, agora, como vai acontecer mesmo, não tenho a menor ideia antes de fazer. J: Mas Geraldo, a escolha acaba... Você sabe qual artista trabalha com o quê. Se eu fosse fazer uma curadoria acho que seria isso, justamente... Eu acho que a mais sincera das curadorias seria essa. G: Mas o termo curadoria pressupõe uma discussão específica, daí não se aplica. Eu gosto da seriedade com que todos se dedicam ao trabalho. A persistência, a não aceitação de uma coisa imediata, do resultado primeiro, a busca. D: Eu acho que tem um assunto lá. Para mim, tudo está falando de pintura. G: Mas porque eles quiseram, não é? D: Porque eles quiseram? G: Sim, porque eles é que escolheram o que mostrar. Mas, talvez, como eu lido com pintura e dou aula de pintura, e quase todos de alguma maneira foram meus alunos... D: Você está fadado à pintura? G: Não, não acho isso. É que eu gosto mesmo, é escolha. De alguma maneira, acaba juntando as pessoas com quem eu tenho um trânsito mais intenso, não é? Talvez seja isso, pode ser. Mas não foi proposital, não. Não tinha nenhum impedimento. J: Do quê? G: De lidar com o que bem entendessem, com o que cada um quisesse. Mas isso não quer dizer que não tenha uma lógica que ordene a ideia da exposição. J: Até porque você é contra lógicas que ordenem, a gente já sabe [risos].
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G: Eu acho que as escolhas têm que ser lógicas, ou pelo menos ter uma razão, mas não a escolha anterior, a primeira. Tudo o que faço é assim. Eu não tenho esse interesse em assumir a curadoria, mesmo, de verdade. Eu quero que as coisas falem, quero que os artistas e o trabalho deles falem. O meu trabalho, que não é pouca coisa, você mesma está falando, foi escolher esses caras. Não é pouca coisa. J: Não, é bastante coisa. É quase tudo, para mim, pois eles já têm a sua produção. Somente dois estão ainda na universidade. G: E foi por isso que eu os escolhi. Mas não é quase tudo, porque se eles não falassem nada, ou se falassem besteira...
84 (p. 246): Exposição Pretérito Presente, curadoria Cristiane Silveira, MuMa, 2014. Obras: Sem título, 1990. Resina acrílica e pigmento sobre tela, 150 x 150 cm. Coleção Jorge Silka. Sem título, 1990 (imagem 69).
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Esta conversa aconteceu na tarde de 9 de fevereiro de 2013, na residência e estúdio de Fábio Noronha, em Piraquara, ao pé da Serra do Mar paranaense. Nós nos falamos ouvindo o som da água caindo em uma antiga piscina transformada em tanque de peixes, sentados em uma área externa ao pequeno estúdio montado em uma edícula atrás da casa. Fábio propôs também gravar a conversa com a sua aparelhagem, além da nossa. Após iniciarmos a gravação, a artista, professora da UFPR e companheira de Fábio, Juliana Gisi, juntou-se ao diálogo, trazendo café e biscoitos caseiros.
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85: Frango, 2004. Vídeo digital, cor, 2’32”, som estéreo.
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Juliana Burigo: Fábio, eu e Dayana vínhamos falando no caminho que uma das coisas interessantes que vêm acontecendo com estas entrevistas é que elas têm se desenvolvido muito como conversa. Isso acaba sendo eficaz para o que queremos, que é registrar de uma forma fluida, sem direcionamentos, o modo de pensar arte das pessoas com as quais conversamos, a forma como se posicionam em relação ao meio artístico e seus circuitos. Por isso pensamos em lançar algumas questões que são, de certa forma, genéricas demais, mas que podem nos levar para caminhos que interessem a você e a nós. Fábio1: E eu posso começar perguntando para vocês algumas coisas? JB: Pode. Como você quiser. Dayana: Só um parêntesis: o que acontece, quando falamos de arte contemporânea, é que cada um desenha seu contorno de forma bastante flexível e subjetiva. E isso é uma das melhores coisas que têm acontecido nas conversas. Por exemplo, uma pessoa traz uma perspectiva mais histórica, outra traz uma questão mais poética, outra pensa mais em termos de mercado. Os caminhos vão se construindo de forma bem diferente e, ao mesmo tempo, acabam se cruzando entre as diferentes pessoas com quem conversamos. F: Claro. Eu imagino. Acho que tem esse lado individual e, por outro lado, a arte tem a ver com noções de coletividade. Assim, parece não ser possível dizer: “eu faço arte”, sem submeter um determinado trabalho, uma proposição, noção, intenção, ou, melhor dizendo, uma nomeação (de objetos) ao espaço público. E o espaço público de alguma forma se liga a esse objeto e o articula a partir de raciocínios específicos do campo da arte ou do sistema das artes, do território da arte. Portanto, eu só faço arte na medida em que coloco meu fazer, minha prática, em relação a um público, a um sistema, a outras pessoas que vão repensar e colocar esse objeto como um problema dentro de circuitos possíveis, junto comigo. Então, dizer: “Eu faço arte ou eu quero fazer arte” tem a ver com a inserção de algo em certos circuitos, sejam eles quais forem, dentro desse campo da arte, que é um campo de forças – estou habitando um circuito, e ele está em relação, está em jogo com outros circuitos: o circuito do Matthew Barney é uma coisa, o meu é outra; o dele acaba sendo minha referência como professor pela sua inserção no campo da arte, pela maneira como ele o habita. Minha perspectiva do que é arte, de como penso arte vem, por um lado, de uma formação acadêmica que é: graduação em artes, especialização em artes, mestrado em artes e, agora, doutorado em artes [risos], ou seja, uma formação bem específica; por outro lado, vem também da minha experiência como professor – eu comecei bem cedo a dar aula na universidade. Minha prática artística, num certo sentido, tem a ver com esse movimento, que é pensar arte sempre em contexto, em relação a outros artistas, como parte das 1 Comentário de Fábio Noronha: O que falei durante esta entrevista é um resumo de alguns assuntos presentes na minha pesquisa de doutorado, assim, para uma versão mais detalhada e menos generalista e sem os rumores da fala, ver: http://hdl.handle.net/10183/72687. Minha pesquisa de mestrado pode ser acessada em: http:// hdl.handle.net/10183/8619.
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histórias da arte ou das histórias em geral. Quando falo minha prática artística, não quero dizer que os alunos são meus objetos e que vou produzir obras de arte, ou trabalhos de arte, ou seja lá o que for, com eles, não é isso (não quero ter como referência Joseph Beuys). Mas, se interfiro no campo da arte... JB: É uma prática dentro do sistema. F: Sim. Porque eu “modifico” o campo da arte na medida em que dou aula, apresento artistas que são meus “colegas”, por exemplo, artistas que normalmente não seriam trazidos para dentro da academia ou que escapam um pouquinho dessa história da arte mais grandona, europeia e norte-americana (ou mesmo brasileira, paulistana, carioca). Acredito que isso faça parte da minha prática artística. Mas eu comecei a mostrar meu trabalho em salões e galerias de arte; os dez primeiros anos da minha produção foram muito vinculados a esse tipo de mostra que tem uma seleção: é preciso se submeter a uma comissão julgadora, a alguns críticos, a especialistas do campo dotados de um certificado que faz com que eles possam avaliar, dizer que esse trabalho merece um prêmio, ser referenciado, essas coisas. Trabalhei nesses dois lugares: ao mesmo tempo em que dava aula e, portanto, estava envolvido com pesquisa (e sistematicamente na especialização, mestrado e doutorado), também estava vinculado a esse sistema que julgo um pouco mais frouxo, um pouco mais momentâneo por causa das seleções, das escolhas de determinada comissão que têm a ver, em certa medida, com relações pessoais que me escapam um pouco, não que a academia não tenha. Na academia, com a pesquisa, minha produção acontecia e se modificava a partir de perspectivas um pouco mais densas que essa: vai vender ou não vai vender (esse é um estereótipo). E foi quando comecei a fazer vídeo, a me envolver com computação, redes, internet, que pude separar esses sistemas “de vez”, e vê-los com mais clareza. Com isso, não precisava mais mandar meu trabalho para esses caras (como diria Hélio Oiticica), porque já estava me irritando um pouco com essa transação – crítico, curador, galerista – e estava com preguiça desse povo (de novo Hélio). Aí pensei (uma certa adolescência tardia): “Bom, se eu coloco um trabalho para circular, se distribuo, se tenho autonomia de distribuição, posso burlar essa história, ou simplesmente evitá-la”. Mas acontece que, evitando, essa história me evita também, não é? Se eu não me submeto a uma comissão, por que essa comissão vai me escolher para alguma coisa (eu não existo para ela)? JB: Na verdade, a comissão, ou quem te conhece da comissão, pensaria que você não quer participar, por isso não se submeteu. No caso de um salão, por exemplo, acontece isso. Se você não se inscreve, eles não vão te convidar porque está subentendido que você não está a fim de participar daquilo. F: Como se fosse um traço meio ranzinza de quem faz isso, de quem não manda propostas para salão, de quem não vai jantar com o curador de um determinado evento. Eu decidi que meu negócio é ligado à academia, à pesquisa, e assim eu negocio com os acadêmicos [risos] – os que permanecem, pois muitos curadores,
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etc. têm formação acadêmica, mas se tornam vendedores e/ou promotores culturais. E, por outro lado, não negocio com ninguém, porque distribuo meus trabalhos via rede, posso me relacionar com esse sistema que é um pouco mais técnico: “Eu posso fazer upload de um vídeo? Posso. Então eu faço. Você vai hospedar e distribuir meu trabalho? Vai, beleza. Vai me cobrar alguma coisa? Não. Então vou distribuir de graça, o.k.?”. Essas coisas, hoje, quase quinze anos depois, são bem claras para mim: a distribuição do meu trabalho e a potência que isso tem, e a forma como tenho habitado o campo da arte. Naquela época de interseção entre “eu professor”, “eu artista lidando com galeria”, “eu pesquisador lidando com galeria”, e, ainda, começando a produzir vídeo, entender essas relações de distribuição como algo potente não era, obviamente, fácil assim, era uma aposta em um sistema de tecnologias que na época não estavam implementadas como hoje, por exemplo, o YouTube. Hoje vejo que foi muito bacana ter feito essa aposta. Porque, ao mesmo tempo, é uma aposta que “me tira”, como objeto, de circulação e, por outro lado, estando dentro das academias, me coloca junto a várias instituições que me validam como artista/pesquisador e não artista/vendedor. É meio esquisito viver tão inserido no campo da arte (até o pescoço!) e, ao mesmo tempo, tão longe. Juliana Gisi 2: Eu acho que, por mais que você não se submeta, você foi convidado para algumas exposições este ano… JB: Tem uma coisa perversa e sinistra nessa questão da validação ou do reconhecimento do artista, pois parece que, se você não frequentar as aberturas de exposições, as pessoas esquecem que você existe. Se você não ficar aparecendo, mostrando a tua cara, distribuindo... JG: ...alguns santinhos. [Risos.] JB: É, alguns santinhos [risos], ou algumas máscaras. Algumas máscaras para as pessoas irem aos lugares com a tua cara. Porque parece que, se você não participa dos eventos, não existe. Porque o meio está crescendo e cresce desse jeito, requisitando essa coisa do novo, do novo, do novo, o tempo inteiro. Há a questão de que também é um papel que se desempenha, demanda uma atitude sua, mas não só uma atitude sua como também dos outros agentes do meio. Como está a crítica de arte hoje? A maioria dos textos que vemos é encomendada. Como se configuram esses textos? D: Sua escolha de deixar de lado esse circuito de salão, de galeria, enfim, foi após a entrada como professor na Belas Artes? F: Eu acho que facilitou, pelo fato de eu ter um salário e não precisar vender meu 2 Juliana Gisi: Curitiba/PR, 1979. Vive e trabalha em Curitiba e Piraquara/PR. Bacharel em Pintura pela Embap/Unespar (2000), com especialização em História da Arte do Século XX, pela mesma instituição (2002), mestrado em Educação pela PUCPR (2004), doutorado em Artes Visuais, linha de pesquisa História, Teoria e Crítica de Arte, pela UFRGS (2013). Participou das exposições: Caixa d’água, Museu da Fotografia, Curitiba (2013), Sobrespaços, Espaço Tardanza, Curitiba (2012), Estado da Arte: 40 anos de arte contemporânea no Paraná – 1970-2010, MON, Curitiba (2010), Possíveis Conexões, MAC-PR, Curitiba (2008). Desde 2005, é professora da UFPR.
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86: Natureza-morta: Arranging the tea table 1946, 2005-06. Vídeo digital, cor, 7’20”, som estéreo.
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trabalho (o que vendo são meus projetos ou intenções); ter essa fonte de renda faz com que eu possa existir dessa forma. Se eu não tivesse, certamente, minha relação com o circuito seria outra. D: Mas não é só uma fonte de renda, pelo que você falou, é uma possibilidade de prática artística. É outro circuito possível. F: Sem dúvida, como coloquei no começo, minha prática artística acontece lá também. Essa prática artística é remunerada, então, no final do mês eu tenho um salário. Tem a ver com algo em que hoje acredito bastante, que é essa prática artística institucional, ligada ao ensino, e é uma parte importante da minha vida que está ali. Por exemplo: “O que e com quem vou negociar para viver? Vou negociar com o galerista, com o diretor de museu, com o curador, ou procurar um emprego que tenha regras um pouco mais fixas e que tenha a ver principalmente com pesquisa?”. Claro que a figura do professor tem um status, tem um poder dentro do campo da arte, é uma posição, um filtro. De alguma forma, o que proponho em sala interfere no campo da arte, talvez mais efetivamente até, entre aspas, do que a minha produção como artista. Acho bacana lembrar que, quando se fala o campo da arte, a gente está se referindo a certas práticas que são, digamos, supostamente primordiais. Então, quando você diz: “Se você não vai às aberturas das exposições, a sua cara é esquecida e, num certo sentido, você vai ser esquecido também”, por outro lado, a questão é que “não me dirigir àquele lugar não quer dizer não me referir ao campo da arte, como se o principal do campo da arte fosse aquilo. Se eu não vou a muitas aberturas de exposições, se eu não fico ligando para curadores, se não tenho essa relação mais estreita com diretores de museu, etc., não quer dizer que eu não habite o campo da arte. Eu só não habito essa parte do campo da arte”. Mas, como se diz, esse é o campo da arte definido... JB: Esse é o campo institucionalizado da arte, cheio de poderes? F: É o campo institucional que é mais espetacular, talvez – não sei como chamar. Como é lidar com um galerista influente, por exemplo? JG: Acho que é a parte aparente do campo da arte. Que movimenta alguns tipos de pessoas, relações, que é o que as pessoas comentam. JB: E consomem também. JG: E consomem. F: Claro que, por conta de trabalhar em rede, acabo me preocupando com qual será o feedback quando mando um e-mail. O que acontece nessa negociação? Quando lanço um trabalho, um vídeo, tenho alguns tipos de respostas e de um certo grupo de pessoas, no entanto, quando divulgo esse mesmo trabalho que, agora, está participando de uma exposição qualquer, ligado a uma instituição, a resposta é
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completamente diferente. Porque ganho parabéns, principalmente de pessoas ligadas às outras instituições; o que elas estão dizendo, quero acreditar, é: “Sucesso pela tua ascensão social, sucesso por você ter exposto em tal museu ou instituição”. E não: “Sucesso por você ter feito esse trabalho” (que já estava no espaço público das redes). Fica muito transparente quem se interessa pela produção, pelos processos, pelas lógicas de produção e quem se interessa por esse lado aparente de que vocês estavam falando. JB: Mas, se você é um artista que faz um trabalho que as pessoas consideram bom, você tem que fazer parte desse lado aparente também! Você comentou que a sua atuação como professor tem mais importância efetiva no campo do que a sua atuação como artista. Eu acho que o seu trabalho como artista reforça muito quem você é e como você age no campo, e até me dá as coordenadas para como eu devo ouvi-lo como professor. Acho que os melhores professores de arte são artistas e, como professor, faz muita diferença você ter um trabalho consistente, que levanta questões para a arte. O que me mostra isso é a potência do seu trabalho ou dos bons trabalhos, em geral, entende? Acho que, se o seu trabalho não aparece, as pessoas não estão vendo tanto, há certa negligência que gera uma lacuna. JG: Eu acho que a ausência só é sentida por algumas pessoas. A ausência só é sentida por quem espera. JB: Por quem já conhece o trabalho, quem não conhece não vai sentir falta. Então, tem tudo a ver com isso também, uma espécie de legitimação da sua existência como artista, de fazer conhecer o seu trabalho. F: É. D: São espaços de visibilidade distintos? Esferas de visibilidade diferentes? F: Eu acho que sim. Para não perder o que a Juliana falou, se você, como professor, não traz coisas do mundo para “dentro” da academia e não aprende com os alunos coisas que você não está vivendo, porque são particulares a uma “outra geração”, esqueça, entendeu? Esqueça! Então, eu só consigo fazer alguma coisa no campo da arte que julgam interessante porque estou ativo. Assim como só consigo levar alguma coisa interessante para a sala de aula porque, da mesma forma, estou pesquisando. Senão, na posição que ocupo, não tem como, acho que você vai falhar, não sei o que isso significa, mas acho que você vai falhar – se o mundão não estiver por perto. D: Isso é muito interessante, porque, quando fazemos aquela lista de pessoas que compõem o campo da arte, aparecem galeristas, curadores, artistas, mas em geral deixamos de lado o professor, não é? F: Esses tempos a Juliana [Gisi] estava me falando da quantidade de artistas que, a partir dos anos 1960 e 1970, entraram na universidade; não só entraram na universidade, mas se tornaram professores, não é, Ju?
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87: Banho, 2006. Vídeo digital, cor, 5’30”, som estéreo.
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88, 89 e 90 (p.262): Sem título, série Conservadores de Carne, 1998. Grafite sobre fotografia, 30 x 45 cm.
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JG: É, eu estava pesquisando. A proporção é imensa. D: É curioso, percebo isso nesta pesquisa que estou fazendo também, como a partir dessa geração de trinta e poucos anos existe uma quantidade maior de pessoas que passaram pela academia (uma arte acadêmica, nesse sentido), que passaram por uma faculdade de arte, algo superespecífico, o que é muito diferente de uma geração imediatamente anterior. JG: É, nos EUA isso acontece a partir da década de 1950. Dos artistas que fizeram parte da minha pesquisa de doutorado, que produziram nas décadas de 1960 e 1970, muitos tinham pelo menos formação superior, alguns, mestrado/doutorado, e muitos eram professores. Eu não sei aqui no Brasil quando que isso começou, mas lá começa nesse período, pelo que percebi. Dos artistas da geração anterior que eu pesquisei, a proporção não é tão grande. Então, eu acho que é uma geração mesmo, a dos baby boomers (pessoas que nasceram nos Estados Unidos entre 1940 e 1955), que começou a ter essa formação. Porque o sistema educacional nos EUA vai se direcionar para a arte a partir desse momento e os cursos superiores também se fortalecem muito, são criados vários. F: Mas, enfim, de qualquer forma, o que a gente estava falando aqui é que, claro, como professor, se eu não trouxer coisas da minha prática artística, e do mundão, para dentro da academia, estou ferrado. JB: Por quê? F: Porque daí não levo a vivência de nenhuma prática artística externa àquele ambiente de laboratório (de simulação, para citar Thierry de Duve), que é a academia, para dentro dela. E se, dentro da academia, como professor, não vou fazer mestrado e doutorado, estou ferrado também, porque aí não estou me relacionando com pesquisa “de fato”. O tempo inteiro você está tentando fazer uma coisa alimentar a outra; querendo criar esse fluxo entre o que é um espaço de produção que, no meu caso, não tem nada a ver com esse outro que é o acadêmico – no sentido de ter um conteúdo programático, de ter uma rotina burocrática, um encadeamento lógico com começo, meio e fim (como se isso fosse exemplo de excelência), de ter, justamente, essa lógica mais “engessada” dos formulários. Meu primeiro desejo a passar para alguém, como docente, é: “Olha, é possível fazer arte, inclusive é possível existir como um louco, fora, isolado, não estar aí, habitando um campo da arte que não precisa se remeter a ele mesmo ou, caso se remeta, se remete de forma tão indireta que acaba sendo bem geral, a ninguém em especial”. D: Eu não entendi. Mas, então, remete-se a quem? Remete-se a quê? F: Por exemplo, quando divulgo meus vídeos na internet, não faço, objetivamente, um endereçamento para uma galeria específica, para um curador, para um museu, para uma exposição, apesar de minha lista de e-mails conter vários artistas, alguns críticos, alguns curadores, pessoas que eu conheço (meus interlocutores mais imediatos). Então, o endereçamento é de certa forma para ninguém, nesse sentido.
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Eles não são meu alvo, mas o contexto inicial de uma proposição. Trabalho a partir do campo da arte e não para ele. JG: Eu acho que é um pouco o oposto daquilo que você estava falando sobre o Matthew Barney um pouco antes de começar a entrevista: dizem que antes de ser colocado no mercado, ele já tinha um certo suporte institucional. Então, a diferença é que você, antes de se dirigir a esse sistema interno, que seriam curadores e críticos, está se dirigindo a um público mais geral. F: A qualquer um. JG: Então, o ineditismo do trabalho não está na exposição, mas está nessa execução. F: É, no próprio processo. D: Mas quem está nessa lista, quem vê os seus trabalhos na internet? Como é que você tem esses e-mails? JG: Das pessoas que mandam e-mail para ele [risos]. F: Às vezes mandam e-mails abertos e a lista vai se formando – mais especializada e dirigida também. JB: Você faz uma divulgação geral, então, não há pessoas específicas? F: Isso. Mas não é uma lista que mantenho atualizada sempre. Eu mando os e-mails. Se eles não voltam, acho que estão certos, mas, se voltam, eu não vou atrás para arrumar ou me atualizar. Os acréscimos são mais afetivos e, em certos casos, marcam meus vínculos acadêmicos (muitos endereços de e-mail acrescentados à minha lista me chegaram pelos canais “acadêmicos” de comunicação). JB: Mas no mínimo você precisa ir atrás do e-mail que voltou quando ele é de uma pessoa que gosta do seu trabalho. Seria legal se essa pessoa visse e lhe desse uma resposta, um retorno. Não era disso que você estava falando? De coletividade? Principalmente no caso de ser uma pessoa com quem existe interlocução. F: Se for uma pessoa desconhecida, não. Não é porque é um curador, por exemplo, que eu vou atrás. É nesse sentido. E, depois, se alguém que supostamente gosta do meu trabalho troca de e-mail e não se preocupa em me avisar, o que posso fazer? É uma escolha desse alguém! Não é minha responsabilidade, como eu indiquei, não tenho negociado muito nesse sentido mais assertivo: eu preciso do e-mail desse curador para isto ou aquilo. JB: Entendo, mas em relação à comunicabilidade, normalmente, os críticos e curadores exercem um papel importante de troca com os artistas. Tem outra coisa: quando você lança o trabalho para o público geral, quem irá vê-lo provavelmente será, em sua maioria, o público de arte, que já é mais ou menos definido. Essa é uma consequência do que foi acontecendo, a arte foi fechando o círculo, foi se
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tornando uma especialidade, como todas as outras. Então, tem esses dois lados: ao mesmo tempo em que você escolhe as pessoas com quem quer e pode dialogar (quem lhe retorna), não é ruim você escolher. Porque o diálogo é importante para que o trabalho cresça; se você ficar falando sozinho, não vai conseguir evoluir com ele, não faz sentido, não é? F: Não, não faz sentido mesmo. Eu me dei conta disso durante uma conversa pública com um artista (essas conversas com artistas!). Já estava acontecendo quando chegou um povo atrasado. De repente, uma dessas figuras atrasadas falou: “Ah, eu também não concordo”. Eu olhei para ele e pensei: “Como você não concorda? Você acabou de chegar e nem viu a exposição”. E declaradamente a pessoa não tinha visto a exposição, só havia dado uma “passada”. Isso foi há algum tempo. Aí percebi a importância disso que você está falando. Porque era mentira aquela conversa. Na verdade quem estava ali eram as figuras, o campo da arte localizado em dois extremos curitibanos. Eles falavam o que era bom, o que não era bom, se aquilo que estava sendo exposto valia ou não valia. Não era uma interlocução: “Para quem que você está falando?”. O bacana da academia, da universidade, é que você tem um monte de colegas pesquisando, “freaks como muitos de nós”, com as garras afiadas, muitos professores e pesquisadores para trocar. Além disso, você tem uma rede que se forma. JB: Ali você tem um público. F: Existem várias relações que eu construí com diferentes pessoas (pessoas até que não conheço ou conheço um pouquinho do trabalho) por causa da academia e de “situações acadêmicas”, ou porque mando meu trabalho, minha divulgação, a partir desse lugar. Então, a academia tem sido, para mim, uma fonte de troca importante. JG: De troca efetiva e mais consistente, não é? F: Isso. JG: Eu tenho a sensação de que vou fazer minha tese e existirão pessoas que vão ler e falar sobre ela com o mínimo de seriedade. Os professores que serão escolhidos para a banca serão os primeiros leitores do meu trabalho, e eles são pessoas qualificadas para falar daquilo. “Quem vai ler a minha tese depois deles?” Poucas pessoas vão ler a minha tese, de fato. Pessoas interessadas no assunto ou eventualmente alunos, pessoas que estou orientando e que estão pesquisando alguma coisa relacionada para que eu possa indicar a minha tese. Mas, de fato, poucas pessoas vão ler. E, na academia, você tem uma troca efetiva com essas pessoas, por princípio. Eu acho que tem a ver com isso. D: Fábio, você falou desses campos de visibilidade, do circuito, da academia, enfim, pensando você como freak, louco, fora desse circuito institucional – mas sem estar fora, como a Juliana [Gisi] bem falou, num certo sentido você está dentro, afinal,
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participou de seis exposições este ano –, em que medida esse mailing acaba tendo efetivamente um público diferente do que o de uma exposição? F: Eu tenho um lado meio Pollyanna, que vai pensar que essas pessoas têm as suas redes e elas vão divulgar. Eu não tenho Facebook. Penso que elas vão divulgar, vão usar outros canais, vão mandar para as suas famílias, eventualmente; a coisa se perde pela difusão, dependendo do interesse, ela se multiplica com uma velocidade que parece uma praga, um vírus, algo replicante. Vejo que esses e-mails circulam de uma forma descontrolada e você acaba recebendo o seu próprio e-mail, por exemplo. Mas grande parte dessa minha lista é feita de profissionais. D: Da arte? F: É... Uma parte, enfim. Tem outra parte que são “outras pessoas”. Mas essa divisão é complicada. Quem são as pessoas do campo da arte? Qualquer pessoa que compra arte é do campo da arte, num certo sentido, não é? Quem apoia, quem acha que o Vik Muniz é bacana naquela novela, faz parte do campo da arte, entende? Porque o está tornando mais poderoso dentro daquele sistema de comércio. Mas, então, todas as pessoas que recebem esses e-mails, sejam elas ativamente, como vocês, participantes do campo da arte ou não, são o campo da arte nesse momento. Meu campo da arte, a extensão dele, vai se modificar de acordo com o alcance da minha lista de e-mails; se pessoas que não são “do campo da arte” encaminharem meus e-mails para outras pessoas que também não são – essas pessoas passam a ser. Porque elas passam a participar, eventualmente, vão clicar lá no link e ver meu vídeo. Então, automaticamente elas estão dentro desse campo gravitacional que é o meu e-mail, nesse momento. JB: E não te incomoda como será a visualização do teu trabalho, por exemplo, se vão ver de qualquer jeito? F: Não. Isso me interessa muito, na verdade. JB: Que vejam de qualquer jeito? F: Não de qualquer jeito, de todos os jeitos. JB: De todos os jeitos? Até, por exemplo, num monitor onde a imagem aparece em tom cor-de-rosa (como está o meu agora!)? [Risos.] F: Não faz mal, eu acho ótimo. Na verdade, o que me interessa é que alguém precisa realizar uma ação para ver o trabalho. Quem vai acessar o link, baixar o meu vídeo, precisa esperar, e, às vezes, o download demora, às vezes, a visualização é precária. Alguns podem se perguntar: “Ah, eu vou disponibilizar a minha energia, a minha grana, o meu hardware e minha paciência para ver o trabalho desse cara?”. Nesse momento, toda a energia que é gasta para a produção do vídeo passa a ser, em um certo sentido, multiplicada. Porque o mundo lá fora, que recebe esse material,
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passa também a gastar energia para visualizá-lo. É de fato um espaço coletivo de visualização do trabalho. E é múltiplo, mesmo, cada um vai ver de um jeito, numa tela bacana ou numa outra qualquer; alguns vão preferir baixar o formato comprimido, porque é mais rápido, meio tosquinho, outros não, vão querer numa resolução para ver numa TV grandona, com som bacana. Quando você clica para ver um vídeo meu na internet, esse clique ativa um hardware lá em São Francisco, porque os vídeos estão hospedados nos EUA. Imagina, que controle remoto é esse? Que bacana, não é? No instante em que meu vídeo é ativado, existe um trânsito de energia, é um trânsito de informação que está acontecendo nesse momento. Eu acho isso fantástico. Depois disso, para mim, o cubo branco passa a ser desinteressante. JB: Trabalhar com vídeo é diferente, normalmente não necessita de um espaço ideal para exibi-lo, não é mesmo? Como é que você trabalha a resolução e a cor dos vídeos? Pois eu sei que você é exigente com isso. Isso importa para você, não? F: Sim, eu sou o maior chato com isso. Mas é aquela história, o vídeo ideal eu vejo aqui. De preferência com um par de monitores bacanas para o som, um monitor que dê para visualizar as imagens superbem. JB: Mas, se eu quiser comprar um vídeo seu, eu posso? F: Não, é de graça! Você pode comprar o hardware. JB: É a tela que é o hardware? F: Para visualização, sim. Mas daí você tem que, necessariamente, trabalhar com um monitor específico, o mesmo que eu uso; ou uma TV com certas características, o que já faz uma diferença bem grande. JB: Você chegou a ver como o seu vídeo 2ª Parte [imagens 96 e 97] foi exposto na mostra coletiva 93 no MusA? F: Eu não vi. JB: Puxa! Acho que agora identifiquei uma diferença quando lhe parabenizam pela participação em uma exposição, que é quanto à visualização e apreciação do trabalho. Quando seu vídeo está na rede, online, e o assisto em casa, não sei como ele é exatamente, fica uma dúvida. Mas numa exposição estão definidos o modo e as particularidades de exibição escolhidos pelo artista e em conjunto com outras pessoas, artistas ou curadores. É possível ver, então, as relações que o trabalho estabelece com os outros da exposição. Porém, no seu caso, é diferente, pois eu sei que não foi você quem montou o seu trabalho.
3 9, 2012. MusA, Curitiba/PR, Brasil. Mostra coletiva organizada por Geraldo Leão. Artistas participantes: Angelo Luz, Bruno Oliveira, Cleverson Oliveira, Fábio Noronha, Fernando Burjato, Juan Parada, Tony Camargo, William Machado e Willian Santos.
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F: Não fui eu que montei. Mas isso é outra coisa que me interessa: “Olha, está aqui o trabalho e, agora, como você vai mostrar? Como você pensa em mostrar? Projetado? Numa TV pequena?”. Eu acho que essa responsabilidade é importante. Quem está do outro lado, quem recebe o trabalho, vai ter que decidir coisas. Eu já liberei o vídeo, qualquer um pode baixar, ele está numa resolução superbacana. “Bom, agora é com você, não é? Veja esse material e decida o que vai fazer com ele”. JB: Mas é interessante você poder ver no trabalho exposto todas essas escolhas (quanto a cor, formato, etc.), não é mesmo? Alguns vídeos não exigem uma rigorosidade tão grande, por exemplo, aquele que você fez com a Margit, que registra a ação dela batendo a cabeça numa parede4: ali tem uma questão de vídeo, mas penso que é a performance que importa mais. Porém, os outros são vídeos bem pitorescos, nos quais, se você muda de um rosa para um vermelho, faz diferença. F: Mas tudo bem, é uma diferença possível. Talvez a beleza dessa vida tecnológica seja essa. Porque as coisas se modificam e a modificação, o que pode ser aparentemente pior, de repente não é, é apenas diferente. De verdade: é apenas diferente. JB: Para você não há uma forma exata para mostrar o trabalho? F: Pois é, acho que não. JB: Não tem uma questão de o trabalho precisar ser exatamente de uma forma, e não poder ser de outra? F: Então, posso dizer assim: tem um tipo de trabalho meu que não pode ser de outra forma, ou seja, vai existir em vários computadores, em telas, a partir de pen drive, no celular, de acordo com o hardware que alguém disponibilizar. Se tiver um telefone celular que dê pra ver o vídeo, tudo bem. A Carina Weidle me disse, um tempo atrás, que eventualmente vê meu trabalho no Ipod quando está no trânsito, parada, esperando as crianças. Eu acho demais que isso aconteça! Por outro lado, eu tenho trabalhos que são específicos de outro jeito, por exemplo, como a ação que fiz lá na UFRGS, no prédio do Instituto de Artes, em Porto Alegre5. Eram dois fones de ouvido que eu juntei com presilhas, então duas pessoas ficavam juntas vendo esse vídeo num Ipod. Como os fones estavam fixados, as pessoas ficavam grudadas, cabeça com cabeça, como se fossem gêmeos siameses. E esse trabalho não existiu na rede porque tem um hardware (ele precisa ter o fone) e um lugar (acontece dentro do elevador, lotado). JB: Ele acontece dentro do elevador lotado? F: Tem que ser o elevador lotado, com duas pessoas, ligadas por fones de ouvido, assistindo o vídeo com o hardware em mãos, enquanto são assistidas pelos demais – aí as pessoas trocam os fones. 4 Paraisso. 2002. Videoperformance de Margit Leisner realizada em 2002, no projeto de residência Faxinal das Artes/PR. Imagens e edição de Fábio Noronha. Link: https://archive.org/details/paraisso. 5 Ação teste News: input/output COLAPSO L Á B I O S \ my lips look like an ass? Elevador do prédio do Instituto de Artes da UFRGS, 2009.
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91: Sem título, autorretrato da série Acidez, 2000. Óleo, bastão oleoso e grafite sobre papel, 50 x 35 cm.
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92: Sem título, autorretrato da série Acidez, 1999. Óleo, grafite e adesivo sobre papel, 28 x 21,5 cm.
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JB: Mas o elevador lotado de público ou de figurantes? F: Do público que participou da ação. JB: Então, você enche o elevador e depois roda o vídeo? O elevador sobe ou desce? O que acontece? F: Isso. Ele fica lotado até que todos terminem de ver o vídeo e experimentar os fones. As outras pessoas tentam entrar e sempre se deparam com ele lotado. D: São só duas pessoas que veem o vídeo por vez? Elas precisam ir trocando? F: Sim, as duas pessoas ficam grudadas, veem o vídeo e depois passam o fone junto com o Ipod para outras duas que ficam grudadas, olham o vídeo, e assim por diante. Enquanto isso, ninguém pode entrar no elevador, nem sair. O vídeo é uma boca que pergunta a si mesma se ela se parece com um cu, e ela tenta falar isso em inglês, e então tem um cara que diz, em francês, para ela repetir e escutar. É minha boca pintada (no computador) de verde e azul, parece o cu do Hulk. [Risos.] F: Então, esse trabalho é específico, ele não existe em outro lugar. Eu não gostaria de vê-lo na web, exibido como se fosse um vídeo, “apenas”. Em algum momento, vou fazer aqui em Curitiba essa ação. JB: E suas pinturas, você parou de pintar? F: Claro, as pinturas! Parei totalmente. JB: Parou? F: Parei, faz alguns anos que não faço nada. Mas eu guardo as tintas, ainda. Esses dias pensei em me desfazer, mas decidi guardá-las. D: Fábio, no começo da conversa você falou do objeto como um problema dentro desse sistema, dentro desse circuito, se referindo ao trabalho de arte. Eu queria ouvir um pouco mais sobre isso, sobre essa ideia do objeto como um problema. JB: Problema no sentido bom ou ruim? F: Problemas sempre são bons, quanto mais problemas, melhor. [Risos.] F: Acho que essa noção já existia, voltando às pinturas, por exemplo, na exposição individual que fiz na galeria Casa da Imagem, do Marco Mello, em 20016. Não sei se você chegou a ver, Juliana? 6 Fizeram parte da exposição pinturas, desenhos e imagens digitais da série Acidez (imagens 91, 92, 94, 95 e 100) e desenhos sobre fotografias da série Conservadores de Carne (imagens 88, 89 e 90). O texto Divagações às séries, publicado no catálogo da exposição, foi escrito por Fernando Burjato.
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93: Projeto Motosserra (vídeo Barba eXistenZ), 2012. Vídeo digital, cor, 53”, som estéreo. Este projeto delirante prevê a retirada de 7.000 árvores invasoras do tipo pinheiro-americano (Pinus elliottii) de áreas de recuperação de bioclimas típicos da Serra do Mar (Paraná). As chamadas para este projeto aconteceram em três sites diferentes: vinculada à exposição CONCIERTACIENCIA, na Colômbia; em Curitiba, como parte da exposição 2012: Proposições sobre o Futuro, no Museu de Arte Contemporânea; e, no meu blog (a “sede principal” de lançamento do projeto), que concentrou todos os documentos relativos ao Projeto Motosserra. Disponíveis em: <http://www.plataformabogota.org/index.php/muestras/22-exposicionesfuturas/77-muestra-conciertaciencia-2012>;<http://leglessspider.wordpress.com/projetos/motosserra/>; <http://www.cultura.pr.gov.br/arquivos/ File/MAC/2012_mac.pdf>.
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94 e 95 (p. 275): Autorretratos da série Acidez, 1999-2000. Óleo e bastão oleoso sobre tela, 93 x 93 cm.
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JB: Não, infelizmente não, vi apenas o catálogo. Foi exatamente quando a [filha] Valentina nasceu, e eu fiquei um ano sem ver exposições. A de Ivens Machado também foi nesse ano, no MAC-PR, e eu não vi. F: Naquela época fiz uma série de pinturas que eram lindas, pintadas a óleo e com cores muito sedutoras, uma fatura muito sedutora também, mas elas tinham uma escrita em rosa no meio: “Um mundo feito de catarro” [imagens 94 e 95]. Acho que nesse trabalho é bem evidente isso, porque é um objeto sedutor a uma certa distância. Eu lembro que, quando olhava de fora do espaço expositivo da Casa da Imagem, era muito bonita aquela faixa rosa que aparecia sobre aquele fundo todo movediço, cercado de cores, muitas em tom pastel; era bacana mesmo, mas quando você chegava perto tinha certa decepção ao ler aquela frase, repetida em dez pinturas – o que também tornava difícil colocar uma delas numa sala de jantar, por exemplo. Não é todo mundo que vai rir daquilo, não é todo mundo que tem senso de humor para isso, que tem a ver com ironia no sentido complexo que pode ter essa palavra. Criar um objeto que é sedutor e ao mesmo tempo repulsivo (que você precise de mais tempo diante dele para conseguir dar conta); eu penso dessa forma, acho que existem maneiras de fazer objetos problemáticos e inseri-los no campo da arte, esse é um sentido que me interessa. Alguns dos meus vídeos operam assim, por procedimentos que são típicos da arte conceitual. Tem algumas coisas que são definidas de antemão, algo arbitrário, e algumas estruturas que são derivadas de coincidências – enquanto o trabalho acontece. De qualquer forma, há um jogo de regras, inerentes ao computador. Estou lidando com programas, mas a formalização final deles é tão anos 1980, o Chroma Key, os efeitos, sabe? É tão cafona (assim como as pinturas), num certo sentido, que existe um choque; e acho que pouca gente consegue perceber as duas tradições sendo articuladas: uma frieza da arte conceitual dos anos 1960 e 1970, e depois, os anos 1980 e 1990 com os efeitos especiais, sobreposições, Chroma Key, etc. JB: Ah, mas ele não é cafona! F: Não é cafona? [risos] JB: Não sei, eu acho que ele fica, às vezes, muito... JG: Sóbrio, não é? JB: Muito intelectual, acho. Muitas vezes, eles exigem que você os veja mais de uma vez. Alguns vídeos, por outro lado, depois que assisto, dão-me a sensação de que eu poderia ter visto somente uma parte deles, não precisaria vê-los inteiros. F: Alguns são tão longos que chegam a ser repetitivos. JB: Eu acho muito interessante num vídeo o fato de você captá-lo rapidamente, não precisar estar o tempo todo disponível para ele. Acho que isso se apresenta como uma vantagem numa exposição, por exemplo, ter um vídeo que você possa ficar
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o tempo todo olhando para ele, se você quiser, ou passar e apreender um instante dele apenas. Apesar de que às vezes a gente se engana. Por exemplo, na exposição 9, no MusA, eu sentei para ver o seu vídeo e percebi que quando você vê o vídeo todo é que vai entendendo a lógica da construção, ou seja, a lógica é captada no decorrer do tempo do vídeo. F: É nesse sentido que eu estava falando, Juliana. O trabalho da exposição 9 foi o último vídeo (mais longo) que publiquei. Parece que é só um efeito, um monte de luzes e coisas se sobrepondo que não vão dar em nada. Mas tem uma estrutura que é narrativa e que é quase bobinha, a história da Pollyanna sendo narrada. JB: De repente, a lâmpada verde muda para amarela, um cachorro aparece e logo sobressai a imagem de um conta-gotas que vira alguma coisa de ponta-cabeça, uma forma que conseguimos perceber que está de ponta-cabeça... O transcorrer do vídeo é dado por imagens que vão se alternando, se sobrepondo e se transformando em outras através de manipulações de figura e fundo, contraste, positivo e negativo, e coisas assim... Não lembro mais quais são exatamente as imagens, mas tem esse sentido narrativo de uma história visual e não de uma narrativa literária, não é mesmo? Ou há uma narrativa literária? F: Eu sou incapaz de trabalhar com uma narrativa literária. D: Você não tem um roteiro? F: Não consigo segui-los muito bem. D: Olha, vou continuar com o assunto problema. Você falou que, quanto mais problema, melhor, quando se trata de arte. Então, você gosta de trabalhos problemáticos, ou que trazem problemas. Mas o que você gosta de ver te coloca problemas de alguma forma? Já ouvi que boas obras de arte trazem problemas... F: É, eu diria que é um bom clichê. Sobre isso, David Lynch fala algo... Perguntam para ele o que ele vê de arte e cinema contemporâneos “bons”, quais filmes, por exemplo. Ele responde que não tem tempo para ir ao cinema. [Risos.] F: Ele fala, então, que vai raramente ao cinema. Eu me sinto um pouco assim também. E me sinto confortado por um artista desse calibre dizer isso, alguém de quem eu bebo constantemente no trabalho, às vezes de forma sem-vergonha, sabe? Claro que eu gosto de ver exposições, gosto de ir a museus, tenho gostado menos, mas gosto de ir. Porém, fico feliz de ver um pôr do sol bacana com a mesma intensidade, não tem esse caráter especial. JB: Mas você tem referências antigas, você já circulou bastante... D: Eu fiz a pergunta pensando na questão do problema, mas acabei fechando a coisa nos trabalhos de arte. Porque às vezes as nossas referências não são necessariamente
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96 e 97 (p. 279): 2ª parte, 2009-12. Vídeo digital, cor, 19’04”, som estéreo.
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98 e 99 (p. 281): Désir: ou o buraco é feito com faca, 2009-10. Vídeo digital, cor, 47’30”, som estéreo.
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do universo que a gente está estudando. Por exemplo, uma coisa que tensiona muito a antropologia hoje são as discussões de Gilles Deleuze, e foi a partir delas que comecei a pensar o conceito de território na arte visual contemporânea. Acho que na academia algumas das possibilidades são essas outras referências, de outras áreas, que surgem na pesquisa. Então, se você quiser ampliar e alargar essa conversa para outras referências não necessariamente artísticas, Fábio, acho legal. F: Claro, bacana. Tenho um uso que acredito ser particular, e talvez bastante problemático, por exemplo, do Deleuze, já que você falou dele. A maneira com que me interesso pelo trabalho, pela literatura (entre aspas) dele, “me fez” construir um vídeo, que é o Désir: ou o buraco é feito com faca [imagens 98 e 99], anterior ao 2ª parte. No Désir o texto de Deleuze aparece em praticamente todo o vídeo. Selecionei passagens das palestras em que ele falava sobre desejo; situações, dá para dizer, em que ele tentava defini-lo em relação à sociedade, como elemento da formação da própria sociedade. E, há muitos anos, um dos meus primeiros vídeos foi feito de gravações em vídeo das páginas do livro Conversações, também do Deleuze, mais especificamente dos trechos que falavam da formação do campo da filosofia como sendo um campo que faz só história da filosofia e que parou de fazer filosofia, e eu tentei pensar isso em relação ao campo da arte, que passa a fazer mais história da arte e menos arte (ou coisas chamadas de arte)7. Tentei criar esse paralelo, de fato, outras disciplinas interferem muito, de forma bastante rica, no meu processo de construção do trabalho. Outro campo é o da música: comecei a tocar bateria, mas meio de brincadeira, e depois me envolvi com música eletroacústica e acho que a parte estrutural dos meus trabalhos se modificou muito quando comecei a compor, ou arranjar sons, produzir meus próprios samples de áudio, etc. As estruturas dos meus vídeos têm sido sempre bastante simples. O Maurício Dottori me passou uma dica de estrutura. Na época, eu estava fazendo aula de eletroacústica com ele (era uma disciplina oferecida pelo curso de graduação em música da Embap), e ele falou: “Escute Bach, porque Bach tem uma formação que é mais ou menos assim – começo, meio e fim –, e você vai identificar muito facilmente as partes, suas diferenças, dê uma olhada”. E acho que a partir disso eu pude usar, por exemplo, a música de um compositor barroco dentro da minha produção que acontece agora, e isso, para mim, foi uma interferência bem interessante, pois acabou modificando meu modo de pensar. É uma daquelas regrinhas que me ajudam muito: se quero uma estrutura pronta, uso Bach; por exemplo, no Désir, usei outra estrutura que era de um filme do qual me apropriei, chamado The Brain That Wouldn’t Die, dirigido por Joseph Green e lançado em 1962. Selecionei partes desse filme, a repetição da cena de uma mulher com a cabeça cortada, e estruturei meu trabalho a partir disso. Mas não utilizo necessariamente filmes produzidos por artistas reconhecidos, tenho usado, através da apropriação, filmes que são de domínio público, registros feitos por cineastas “anônimos” – e quem tem interesse nesse tipo de filme é um grupo bem restrito de pessoas. 7 DELEUZE, Gilles. Conversações. Trad. Peter Pál Pelbart. Rio de Janeiro: Ed. 34, 2000. As imagens gravadas a partir das páginas do livro Conversações, ainda inéditas, serviram de referência para algumas partes do vídeo Désir: ou o buraco é feito com faca, vídeo digital, cor, 47:30 min, som estéreo, 2009/10
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D: Isso é muito interessante, porque você se apropria de áreas completamente distintas, não é mesmo? JB: Mas em cinema você tem outras referências, não é? Como o David Lynch, que você comentou. De quem mais você gosta, como cineasta? Você conhece Dario Argento? F: Sim! JG: O Fábio tem um vídeo que é um trecho de cena de um filme dele. F: É, eu me apropriei das cenas de um olho com alfinetes grudados pela cabeça na pele da pálpebra inferior, como se fossem uma grade; um olho que não pode fechar. O meu vídeo8 partiu desse frame, ou melhor, a sequência se desenvolveu a partir do frame. Mas eu estava respondendo à Dayana sobre a questão das referências, porque estava me referindo a coisas específicas do campo da arte e, então, ela ampliou a pergunta, colocando questões que possibilitam outras referências, dentro da academia, principalmente, fazendo um intercruzamento de fronteiras. Como Deleuze, por exemplo, que é da filosofia, influencia o meu trabalho e eu uso o texto dele direto como fonte, leio-o como literatura. JB: Eu já ouvi muito você falando de Deleuze, David Lynch e de outro cineasta... F: Tarkovsky é bem importante para mim. D: Sobre a leitura de Deleuze, é interessante essa possibilidade, como você comentou, de entendê-lo não como um autor teórico, mas mais como um autor literário. Uma professora (a antropóloga Catarina Morawska Vianna) me disse: “Leia o texto dele como literatura”. F: Olha, que legal! D: “Leia dentro da banheira”. E isso faz uma diferença radical. Nas minhas tentativas anteriores, buscava entendê-lo, e isso me colocava em um lugar onde eu não conseguia acessá-lo. A partir desse momento, que foi muito recente, comecei a fazer o esforço de ler trechos e de lidar com ele como literatura. Acho que o acessei de outra esfera de sensibilidade, de percepção, que é muito interessante. F: Voltando à história do objeto problemático. Quando, por exemplo, lemos filosofia de uma forma estranha a alguém que é da filosofia, que provavelmente tem um compromisso com um campo do conhecimento que é específico, não que essa forma de ler seja errada, mas, por ser estranha, talvez não tão autorizada, talvez desinteressante para o campo específico da filosofia, ela cria, na medida em que o texto é processado e devolvido para o mundo, algum objeto problemático. Eu faço muito isso nos vídeos, faço isso na minha tese quando uso a filosofia e Deleuze, especificamente. 8 Olho, 2002. Vídeo digital, cor, 09’08”, som estéreo. O filme de Dário Argento que contém o frame citado é OPERA [Terror na ópera]. Direção: Dario Argento. Itália, ADC Films, 1987. Vídeo (107 min.).
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D: O que você fez com ele, usando-o no vídeo, foi propor uma compreensão dele que não é uma compreensão filosófica, é nesse sentido que você fala? Existe uma outra sensorialidade ali... F: A ideia da mulher que ficava excitada quando lia Deleuze – o mote do vídeo Désir – veio dessa imagem retirada de um texto dele (da letra D de desejo, do Abécédaire9), quando ele fala algo de uma mulher em relação à paisagem, tendo-a como pano de fundo, inserida e envolvida na e pela paisagem. No sentido de que uma mulher não é só uma mulher, mas ela é na paisagem. Que seu vestido não é só o vestido, mas é aquilo que é visto em contexto e também como ela se vê nele. Então, ele fala desse ambiente que se forma em torno da cena, e um pouco por isso me veio essa imagem. Acho que o campo da arte tem essa possibilidade aberta, e bem aberta, não é mesmo? Pode-se apropriar de uma forma estranha das coisas, pode-se fazer com que as coisas habitem outros universos e, quando se faz isso, elas não são mais as mesmas, elas são transfiguradas.
9 L’ABÉCÉDAIRE de Gilles Deleuze. Direção: Pierre-André Boutang. França: La Femis, 1996. Vídeo (450 min.), son., color.
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100: Sem título, autorretrato da série Acidez, 1999. Óleo, talco e grafite sobre papel, 29,8 x 21 cm.
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Rossana Guimar達es
O encontro com Rossana Guimarães aconteceu na tarde de 11 de fevereiro de 2013, no ateliê/residência da artista, no bairro Vista Alegre, em Curitiba. Ao entrar, vimos alguns trabalhos dispostos na sala que motivaram o diálogo inicial e nos suscitaram a seguir caminhando pelos cômodos da casa, conversando sobre as obras. Havia muitos trabalhos diversificados da artista, cremos que a maioria produzida nos anos 1980, mas também em períodos posteriores: objetos, esculturas, desenhos, pinturas... Depois desse percurso, nos sentamos e demos início a nossa conversa gravada, regada a café, água e pão de queijo.
Rossana Guimarães
101: Rossana com a obra Niké, 1992. Alumínio escovado, 120 x 110 x 60 cm. Acervo MuMA.
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Rossana Guimarães
Juliana: Rossana, nosso interesse aqui é registrar um pouco do seu universo e pensamento sobre arte contemporânea e em geral. De maneira ampla e genérica, nos interessa o que você pensa sobre arte ou o que é arte contemporânea para você. Rossana: Eu acho que cada artista, cada pessoa tem uma maneira de pensar arte. Inclusive porque cada um tem uma forma de trabalhar e uma preferência. Eu gosto da arte ou de uma arte que, embora seja contemporânea, trabalha com a estética e tem relação com o belo. Isso me interessa, sempre me interessou. Então, no meu trabalho, eu me interesso pela estética, pela forma, pela cor, por esse lado que nem sempre está na mira dos artistas contemporâneos. Começo por aí. J: Você acha que trabalhar com o belo e com a estética não é próprio da arte contemporânea? O que você vê como estando na mira dos artistas contemporâneos? R: Na arte contemporânea, de uma forma bem geral, o lado das ideias ou do conceito vem tomando um tal lugar de importância que, em alguns casos, mesmo o trabalho surge como um conjunto de ideias ou relações de ideias que as obras suscitam, em detrimento de soluções estéticas ou plásticas. J: E como você pensa a situação da arte atualmente, de uma forma geral e contextual? R: Eu acho complicada a questão da arte contemporânea hoje em dia, porque ela está aberta, então, tudo pode ser transformado em arte. Acho que essa grande abertura e permeabilidade da arte com outros saberes, com outras áreas do conhecimento, é uma liberdade bem legal, mas, por outro lado, também dá margem para muitos equívocos. Dá margem para as pessoas se perderem e chamarem tudo de arte, e para os artistas fazerem qualquer coisa e chamarem aquilo de arte. Muita coisa que é produzida hoje como arte, eu tenho minhas dúvidas se é arte mesmo. Porém, acredito que isso é uma coisa de momento, mas é um risco, e não é mais possível voltar atrás, nem teria sentido. Mas o maior problema que vejo é a predisposição que surge não só a partir de críticos e curadores, mas também de artistas, a enquadrar a arte numa só tendência, a da moda, e tudo o que não se relaciona com aquilo ou é diferente, passa a ser considerado como não arte. Dayana: Você usou uma palavra de que gostei: equívoco. Você estava falando que existem coisas que geram dúvidas em você, pois não sabe se são arte ou não. Parece que o equívoco está relacionado ao entre, a um entre a arte e a não arte, é isso mesmo? Como pensar a fissura entre algo que é arte e algo que não é? R: Quando se abre muito o campo, quando se abre para uma permeabilidade com outras áreas, há algo que é muito interessante, que é você realizar as coisas com grande liberdade, mas, em contrapartida, exige-se um comprometimento. Num primeiro momento, você não consegue perceber o que algo realmente tem de arte e o que não tem. A gente sempre precisa de um distanciamento de tempo para entender. É o distanciamento que faz com que a gente realmente perceba o que permanece, e o que permanece é arte, o que não permanece não é. O tempo vai deixando as coisas e as relações mais claras. Hoje em dia, está difícil termos
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trabalhos diferentes, a produção em geral é muito semelhante, parece que há uma reiteração de questões já levantadas. D: Se a produção atual é semelhante, então onde fica a questão do equívoco? Porque, quando você fala de uma arte e de uma não arte está formando uma ideia, mesmo que contextual, do que pode ser arte e do que não é arte na sua percepção naquele momento. R: Mas isso é inevitável. J: Acho esta uma pergunta difícil para você fazer, Dayana, porque é necessário questionar sobre cada caso específico, cada trabalho. Assim, você vai julgar de acordo com as características daquela determinada coisa. E muitas vezes você pode se enganar, pode julgar algo como bom ou ruim e daqui a alguns anos perceber o contrário. Depende de você também, das suas experiências e preparo, do seu aprofundamento nas questões de arte, como tudo na vida. R: Sim, essas coisas podem acontecer, por isso precisamos do distanciamento. Acho que existem pessoas mais preparadas, que têm uma visão mais educada, que percebem isso antes de outras pessoas. Alguns artistas ou críticos, por exemplo. D: E como você lida com essas coisas em seu trabalho? R: Bom, eu nunca me preocupo com o que está em voga, nem o que está na moda, nem o que as pessoas estão fazendo. Sempre me interessei em fazer um trabalho com uma pesquisa própria e, claro, informada pela história da arte, mas nunca me preocupei muito com o que as pessoas pensavam. Acho que o papel do artista é produzir e ser o mais fiel possível a si mesmo. D: O que você pensa hoje a respeito do seu trabalho, considerando esta ideia de que, ao longo do tempo, vamos mudando a relação que temos com a nossa própria produção? Por exemplo, em um momento consideramos um trabalho potente, depois podemos mudar de ideia... R: Ah, acho que a gente deve ter a total liberdade, certo? Porque os artistas não fazem só coisas boas. Nem Picasso fazia. Os artistas fazem porcarias também. E, às vezes, você demora para perceber a potência de um trabalho, para desenvolvê-lo. Falo sempre para os meus alunos que eles devem produzir durante um ou dois anos algo para, então, enviar a determinado salão, para ter tempo de olhar, analisar e aprender com o próprio trabalho. Porque às vezes o trabalho está na sua frente e você não percebe. Precisamos desse tempo de amadurecimento. Isso para qualquer coisa nova que começamos a fazer, tenha você 30 ou 50 anos de arte, ou o tempo que tiver. Eu, por exemplo, trabalho em várias frentes, gosto de trabalhar com objeto, pintura, desenho. Então, na minha produção, um trabalho informa o outro. Quem conhece mesmo o meu trabalho vai ver que todos têm relação entre si. Na verdade, é como se eu estivesse falando a mesma coisa há trinta anos, só que de formas diferentes.
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J: Nesse sentido, você acha que existe uma poética própria em seu trabalho? R: Sim. J: E você pensa nisso de maneira estruturada, conformada em uma ideia a ponto de falar abertamente sobre ela? Quero saber se esta questão de que você disse tratar há trinta anos é clara para você e se pode ser traduzida de alguma forma em palavras. O que você pensa sobre isso? R: Penso a princípio que o trabalho plástico tem que falar por si só. Se você precisa explicar o seu trabalho com palavras, então não faça artes plásticas, faça literatura. Mas acredito que o artista também pode escrever sobre o seu trabalho quando as ideias são, digamos, complementares, ou interessantes. O trabalho plástico tem outra característica, ele não pode ser transformado em palavras porque, nesse caso, seria outra coisa, e não deve também ser transformado em algo que não ele próprio. Essa maneira de dizer que estou trabalhando sempre na mesma coisa é uma forma de expressão. É claro que, se você não está sempre falando das mesmas coisas, talvez toque em alguns assuntos que lhe interessam durante a sua vida e a sua carreira, e esses assuntos, de tempos em tempos, podem voltar. J: Eu entendo você e não estava me referindo a uma tradução do seu trabalho em palavras, apenas pensava na possibilidade de identificação crítica de um ou mais assuntos que perpassam todos os seus trabalhos. Podemos perceber uma identidade, como você mencionou, ou seja, o universo de Rossana Guimarães. R: Mas isso é uma coisa natural, não é uma coisa que busco, é uma coisa que acontece. Acredito que deve ser natural em todos os artistas quando eles são realmente sinceros consigo mesmos ou com a sua produção, ou seja, quando eles produzem aquilo que brota verdadeiramente de dentro de si e é produto das suas relações com o mundo e com a arte. Vejo que existem muitos artistas jovens que, quando começam a trabalhar, trazem muitas influências e, às vezes, se deixam levar por elas. Isso é um perigo, porque você pode se encontrar ou se perder nesse momento. Precisamos estar muito conscientes daquilo que estamos fazendo, e muito focados para não cair em modismos. J: Me parece que seu trabalho traz algo de uma pessoalidade1 mais forte do que em outros artistas, parece que ele fala para dentro, não de uma forma romântica e subjetiva, o que do meu ponto de vista prejudica a realização da arte. R: Sim, ele é muito introspectivo. Porque, na verdade, quando comecei a trabalhar eu não tinha de onde partir, então parti do meu universo particular. Naquele período, a gente não tinha muita informação sobre arte contemporânea, hoje em dia é tudo mais acessível, nós tínhamos uma certa informação, mas de fato cada um partia de si mesmo no início de um trabalho. 1 Comentário de Juliana: Essa pergunta como está foi um equívoco, quis me referir a um universo poético e intimista que perpassa a obra da artista e não pessoal, mas simbólico. Bem vemos nos trabalhos de Rossana que eles não são pessoais, não carregam pessoalidades.
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J: Nesse sentido, é como se você se colocasse inteira no trabalho, se jogasse nele, e isso de certa forma está no trabalho como informação. Há pouco, você comentou sobre a necessidade de liberdade na criação, sobre errar ou fazer porcarias. Eu queria saber como é o processo do seu trabalho. Há um enfrentamento, um medo diante dele? R: Todo artista se joga no trabalho, mergulha nele. Quando estamos começando a trabalhar, sentir medo é mais comum. Depois de um certo tempo de experiência, você já tem uma base mais sólida, então, vai desenvolvendo as suas ideias, porque uma coisa puxa a outra, um trabalho informa o outro, um trabalho sugere o outro e você vai desenvolvendo um processo. Quando já estruturou um processo, fica mais fácil, no início do percurso é que é mais difícil. J: E como você avalia a pertinência do que está fazendo? Há como fazer isso? R: O que me importa é fazer e ser fiel a mim mesma, se isso será pertinente ou não, não interessa quando estou fazendo arte, mas, se interessar, colocará em risco todo o trabalho. D: Você fez faculdade de arte? R: Fiz bacharelado em Pintura e também Licenciatura em Desenho. Estudei na Belas Artes com o Geraldo Leão, o Raul Cruz, a Eliane Prolik, a Denise Bandeira, com todo esse pessoal. E a gente pegou a escola num período muito ruim, ela era muito tradicional e não ensinava absolutamente nada de importante para o que nós sentíamos como necessidade. Então, a pesquisa aconteceu, mesmo, quando saímos da escola. Como ver exposições é também um tipo de pesquisa, começamos a ir para São Paulo porque aqui em Curitiba havia muito pouca informação. Eu desenvolvi um trabalho bem metódico. Ele foi se desdobrando: partiu do desenho e se desdobrou em outras técnicas, em objetos, em esculturas. Todo tipo de arte tem esse poder de se desdobrar em outros trabalhos. Portanto, não acredito nas pessoas que dizem que se você faz pintura, então tem que fazer apenas pintura para conseguir fazer bem. Isso é discurso de quem não sabe fazer ou tem preguiça, pura bobagem. Você pode fazer tudo o que você quiser e bem, se você se dedicar, é claro [risos]. J: Qual seria o artista de que você gosta muito e que a influenciou? R: Ah, muitos, você pode imaginar. Acho que Magritte, num primeiro momento, ainda quando não estudava arte, porque, como ele é surrealista, é mais acessível para as pessoas, chega mais perto delas. Adorava também Monet, depois veio Picasso. Todo artista é um aprendizado. A gente não pode dizer que eles não nos influenciaram, porque é impossível. Toda a história da arte nos informa e nos influencia. J: E tem algum artista contemporâneo de que você gosta?
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R: Hoje? Gosto de tantos. A Kiki Smith, o escultor Anish Kapoor, Louise Bourgeois... J: Num sentido o trabalho do Anish Kapoor é diferente do seu, em Anish Kapoor é tudo gigante. R: É verdade, eu gosto do trabalho dele, mas isso não quer dizer que o meu trabalho... D: …se identifique com o trabalho dele. R: Sim, talvez até tenha relação, mas não é visível. J [olhando para um trabalho]: Este seu trabalho [imagem 104] tem uma cara muito dos anos 1980, com estas “faquinhas” ou “espadinhas”, ambos elementos recorrentes em trabalhos diferentes dessa época, uma coisa meio simbólica, não? R: Essas faquinhas e espadinhas no meu trabalho são simbólicas mesmo, mas podem aparecer em momentos diferentes, não é um símbolo de uma época, é muito mais universal. Esses dias mesmo achei uma reprodução de um trabalho da Louise Bourgeois onde ela usa uma série de tesouras e objetos cortantes. Veja, o trabalho dela é muito anterior ao meu, mas eu não o conhecia quando produzi o meu. Bom, com o que penso sobre isso nenhum artista e nenhum crítico vai concordar, pois tenho uma visão pessoal da coisa toda, porque estudei algumas filosofias orientais, e meu trabalho traz essa informação. Primeiro me interessei pelo zen budismo, depois pelo budismo e outras filosofias orientais e ocidentais. Então, segundo um desses saberes, nós compartilhamos alguns corpos que não são físicos, por exemplo, o corpo mental, um corpo que se expande além do espaço e do tempo. Nesse sentido, todos compartilhamos das mesmas ideias, que fazem mais ou menos parte do inconsciente coletivo. Aquelas ideias permeiam este inconsciente e o artista é quem tem mais facilidade de acesso a ele. Na cabala, por exemplo, Yesod é o plano que é um reservatório das imagens, que seria o inconsciente coletivo como Jung o pensa, ou seja, o lugar onde estão os arquétipos, as ideias primordiais. Acredito que todos nós estamos em contato com essas ideias primordiais. E isso explicaria, por exemplo, o surgimento de um tipo de trabalho lá na Holanda e um mesmo tipo de ideia, num mesmo momento, em outro lugar, porque estamos ligados. E a pessoa que está ligada à arte está sempre em contato com esse plano, agora, como cada artista vai lidar com isso é algo completamente pessoal. Então, essa coincidência entre trabalhos de arte pode se dar dessa forma, ou pela convivência, o que é mais usual. Um artista informa e influencia o outro. Nesse caso podemos observar que não só as ideias são as mesmas, mas a roupagem também é. J: E você também acredita na influência pela cultura ou por uma sensação de contexto? Por exemplo, o modo como vivemos é revelador de muitos comportamentos e atitudes, pensamentos e distúrbios, informações que muitas vezes são assimiladas como por osmose, entrando em nosso corpo pela convivência. O modo de vida não é o mesmo para todas as pessoas, mas existem vários fatores semelhantes: moramos numa mesma cidade e fazemos os mesmos percursos, e vemos as mesmas coisas nesse caminho, e, muitas vezes, as vemos de uma forma semelhante.
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102: Nuvem, 1984. Alum铆nio e tinta a 贸leo, 40 x 70 cm aproximadamente.
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103: Sem tĂtulo, 1983. Nanquim sobre papel, 29,7 x 42 cm.
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104: Convite para a exposição Desenhos, pinturas e objetos na Galeria de Arte Poupança Banestado, 1985. Imagem do convite: Caixa de flores, 1985. Caixa de madeira com tampo de vidro, objetos cortados em alumínio e pintados a óleo, 40 x 40 cm.
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106: Sem título, 1998. Cetim, quartzo e colar indígena, 39 x 16 cm.
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R: Claro, sem dúvida! Porque todos nós estamos vivendo neste momento, estamos em contato, e existe um contexto histórico que é inegável. Acho bem legal a sua colocação porque hoje vivemos numa aldeia global, realmente estamos no mesmo contexto, todos nós, não apenas no Brasil. Acredito que o contexto informa e influencia, sim. Porque, por exemplo, a maneira como trabalhamos hoje não é a mesma como trabalhávamos vinte anos atrás. O contexto é outro e a forma de trabalhar se modifica também. D: O que se modificou, Rossana? R: O que se modificou? Tudo. A forma de ver e pensar. O dia a dia transforma as coisas, olhe o que é essa cidade: o que era Curitiba vinte anos atrás e o que é Curitiba hoje! E o ser humano se modifica. Porque você vai aprendendo coisas, vai absorvendo informações de outros tipos, de outras maneiras, de outras formas, de outros lugares. A vida é dinâmica. D: Fiquei um pouco curiosa em relação ao que você estava falando anteriormente. Você falou dessa espécie de inconsciente coletivo e que o artista é a pessoa que mais alcança esse inconsciente. Por quê? R: Porque o artista tem uma maior facilidade de entrar em si mesmo e se deixar levar pela imaginação nos seus devaneios. Segundo Bachelard 2, o devaneio com intenção de se tornar uma obra é um devaneio poético e pode, segundo ele, ir tão fundo a ponto de atingir as ideias primordiais, os arquétipos. Mas é claro que, se o cara não tiver a intenção, as ferramentas ou o preparo técnico e plástico para realizar um trabalho, não produzirá nada. Por outro lado, a maneira como o artista irá “vestir” essas ideias terá relação com o contexto cultural em que vive, que, junto com a tônica pessoal, vai dar a “cara” do trabalho. Mas isso é apenas uma forma de trabalhar. Podemos utilizar outras. J: E você acha que esse acesso é possível só ao artista ou você acredita que qualquer pessoa que se predisponha possa acessar este inconsciente? R: Acho que qualquer um que se predisponha. Mas é necessário que você deseje e se concentre. Penso que isso aconteça em outras áreas também, não apenas na área artística. Mesmo a ciência, que tem certos limites, também necessita de um certo grau de intuição e de imaginação para se expandir. Mas o artista tem mais liberdade... A intuição é isso, é quando você capta algo que ainda não sabe o que é e vai em busca daquilo. E você vai captando aquilo e, com seus meios materiais, você trabalha e o transforma. Não vem pronto, nada vem pronto. J: Voltando a falar do seu trabalho, parece que ele é um mundo dentro de uma caixinha ou dentro de uma moldura. Há nele uma força, uma presença, me lembra do Bispo do Rosário... Eu fico curiosa pensando sobre o uso formal dos elementos. Como você pensa essas coisas, a organização dos elementos nos desenhos e nas 2 BACHELARD, Gaston. A poética do devaneio. Trad. Antônio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1988.
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107: Sem título, 1997. Madeira, vidro, osso, pedra, prata e água, 31,8 x 22 cm.
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108: Sem tĂtulo, 1997. Caixa de madeira, parafina, palma de Santa Rita, foto P&B, vegetal e concha, 20 x 13 cm.
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109: Mandala, 1998. Tecido, ametista e inox, 67,5 x 67,5 cm.
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caixinhas? E também, como pensa essa relação entre os elementos e materiais que você junta nas caixas, por exemplo, entre uma linha e uma concha? Qual é a carga que cada material traz para você? Como você lida com o aspecto simbólico dos materiais, seu simbolismo? R: Bom, o Bispo do Rosário é um bom exemplo de alguém que trabalha com os arquétipos, mas, no caso dele, ele estaria totalmente “tomado, confundido” por esse arquétipo, sem ter a possibilidade de diferenciá-lo da realidade. Mas, no meu caso, há um outro motivo pelo qual meu trabalho foi para essa linha do simbolismo: quando estudava na Belas, não havia muitas disciplinas que pensassem a arte e a minha informação vinha mais da literatura. Então, por causa dela, meu trabalho foi mais para esse lado. D: O que você quer dizer quando fala de simbolismo, Juliana? J: Eu quero saber se as imagens, figuras e objetos que a Rossana escolhe, e usa em seus trabalhos, são usados justamente pela qualidade de signo que possuem. R: A Juliana está dizendo que muitos dos elementos têm um significado além daquele plástico, têm uma outra carga de significados. Signos. Meu trabalho tem isso porque, como eu disse, a mim influenciou muito mais a literatura do que a história da arte. Até hoje é assim. Com o tempo, é claro, fui me informando, vendo exposições, e outros materiais foram entrando no meu trabalho, muito pela necessidade de resolvê-los num primeiro momento. E depois você continua se informando e aqueles materiais novos ou usados pela contemporaneidade vão, de alguma forma, penetrando também na sua esfera de interesse. Sabe, também manuseio os materiais de uma forma simbólica, eles também me interessam nesse sentido. J: Mas, para você, tanto o material quanto as figuras e imagens têm uma carga? Qual a diferença, por exemplo, de usar uma parafina e uma cera de abelha? Existe uma diferença? R: Sem dúvida. Nessa época usei vários materiais, como ossos, conchas, objetos coletados do mundo, e todos eles tinham vários significados. Por exemplo, se eu usar a cera de abelha, ela traz uma série de informações: é um material natural, fabricado a partir do pólen das flores, por um conjunto de seres, as abelhas, que têm toda uma organização e função dentro da colmeia e da natureza. Possuem uma beleza específica – posso visualizar o seu corpo peludo cheio de pólen, por exemplo. Então, se eu usar a cera, as flores estarão lá, as abelhas estarão lá, as relações das abelhas com o meio ambiente estarão lá, até o lugar onde as flores estavam e, assim, poderíamos tecer uma grande rede de significados. J: No seu trabalho, há influência do Duchamp, ou não? R: Não diretamente, mas é inevitável, ele abriu um campo novo, não é verdade? Tudo se tornou possível. A arte contemporânea abriu-se para todas as
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possibilidades, como falei no início da conversa, a partir do trabalho de Duchamp, ou da compreensão do seu trabalho, o que gerou uma dificuldade, porque juntar um monte de coisas e dar a isso o caráter de alguma fala, de alguma expressão, de alguma importância, não é fácil. Não é fácil pra ninguém. Quando a gente faz arte, quer se comunicar com o outro. E essa é uma comunicação incrível, porque é um mundo que se abre para outra pessoa que também vem com o seu mundo, e a junção desses dois produz um terceiro, e isso é maravilhoso. J: Lembrei que certa vez você comentou comigo algo do Tunga. R: Sim, gosto do trabalho dele. Um dos artistas mais interessantes do Brasil e do mundo. J: Você comentou que o conheceu e que ele já conhecia bem o seu trabalho, algo assim... R: Sim, foi uma surpresa para mim. Quando cheguei à Bienal de Havana me apresentaram a ele, então ele falou: “Ah, você é a famosa Rossana Guimarães?”. Eu falei: “Eu, famosa?”, e respondi: “Famoso é você, Tunga. Eu não sou ninguém”. Acredito que algum crítico, talvez o Paulo Herkenhoff, ou alguém, comentou alguma coisa sobre mim, ou ele talvez tenha conhecido algum dos trabalhos que vendi para o Thomas Cohn, lá no Rio de Janeiro, ou viu algum trabalho que vendi para um colecionador de arte de São Paulo. J: Isso foi no momento em que você estava bem no pique, não é? Quando foi? R: Em 1994, quando participei da [V] Bienal de Havana. J: Você participou com qual trabalho? Você estava produzindo muito naquela época, não é? R: Sim, nos anos 1980 produzi muito porque tinha interesse em ter uma carreira e viver do meu trabalho. Participei da Bienal com um objeto em alumínio [imagem 110] e três esculturas em ferro e tecido. O trabalho em alumínio escovado que participou da Bienal é aquele que tem um único ramo seco de roseira no meio, que foi escolhido pela curadora. Os outros fui eu que escolhi. Deles, não tenho fotos e só restam dois, que foram desmontados para guardar. J: E dava para viver do seu trabalho artístico? R: Consegui por um certo tempo, mas é muito difícil manter uma carreira no mesmo pique. Sempre há novos artistas e o mercado tem suas leis próprias que não as da arte. J: Você chegou a trabalhar com alguma galeria fora de Curitiba? R: No Rio de Janeiro, com a Thomas Cohn. E, em São Paulo, com a Arco Arte Contemporânea. 307
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J: E você chegou a fazer alguma exposição individual nelas? R: Não, só vendi alguns trabalhos. O Thomas Cohn queria que eu me mudasse para o Rio de Janeiro, ele queria acompanhar o meu trabalho, mas eu não tinha condições de me mudar naquela época. D: Pelo que percebi, esse era o perfil do Thomas, ele gostava de ter os artistas produzindo perto dele... R: Exatamente, era assim que funcionava naquela época. Ele queria o ateliê lá para acompanhar diariamente. Ele vivia no ateliê do Ernesto Neto, que visitei no Rio de Janeiro, enfim... Depois, nos anos 1990, conheci uma crítica italiana que queria que eu fosse para a Itália, ficar um tempo por lá para produzir e fazer exposições. Ela trabalhava com um artista famoso, italiano, o Mimmo Paladino. Mas não fui porque não consegui o dinheiro para ir. J: E quando foi que você entrou na Belas Artes como professora? Você queria dar aula? R: Entrei em 1998. Eu era autônoma, dei cursos desde que me formei e, ao mesmo tempo, tentava vender meu trabalho, às vezes até vendia um trabalhinho aqui, um trabalhinho ali, mas não dava para sobreviver. Era muito difícil. Se eu fosse morar em São Paulo ou no Rio de Janeiro, quem sabe... J: Quando você deu uma parada na sua produção? R: Fiz uma última individual em 1992, na Galeria Casa da Imagem, com objetos grandes em alumínio3. J: Ah, eu não sabia. R: Foi. Eu, o Geraldo Leão, a Eliane Prolik, a Denise Bandeira e o Raul Cruz ajudamos a criar a Casa da Imagem porque precisávamos de uma galeria de arte contemporânea aqui em Curitiba, que até então não havia, e todos fizemos exposição lá. J: Cada um fez uma individual? R: Sim. J: E então você parou de produzir? Mas fazia algum trabalho em casa, ou não fazia? R: Parei mesmo. Porque eu me desencantei com tudo.
3 Objetos, 1992. Galeria Casa da Imagem, Curitiba/PR. O texto da exposição é de Rossana: “O anjo unese num forte abraço à flor e a asa a chama a roseira o coração o vento o mar as colunas dos templos da Grécia transformam-se uns nos outros, percorrendo o caminho do próprio transformar-se, rio de Heráclito onde tudo flui, contínuo vir a ser, Panta Rei. Vênus dos corpos amorosos, o trabalho moldado no corpo, flexível Artêmis das formas vegetais, aladas Nikés, vitórias sobre o frio metal sobrepujado, na luta de torná-lo pétala pele pleura que respira inspira expira dentro fora alma ar”.
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D: Você se desencantou com o quê? R: Com o clima de competição acirrado, com as relações entre as pessoas... Tudo estava muito deteriorado, muito difícil, não estava legal. Fiquei muito decepcionada e sumi. J: Você trabalhava muito e não tinha retorno do trabalho? R: Não, não tinha retorno, estava sem galeria, não tinha como vender meu trabalho. Então, parei. Mas em casa havia um material que eu reuni por vários anos, aí falei: “Vou pegar isso e fazer a rapa do tacho”, e fiz a exposição das caixinhas em 1998, no MAC4. Todo o material com que trabalho, tudo o que criei até hoje, ou veio da minha infância, da minha relação com ela e com as coisas que vivi nela, ou da literatura. Muitas coisas da minha infância estão nessas caixinhas, como as partes que guardei da máquina de costura da minha mãe... Então, peguei todo esse material e fiz a exposição, onde havia as caixinhas, algumas pinturas e objetos. J: E essas exposições, tanto a de 1992 quanto a de 1998, tinham título? R: Não me lembro. D: Isso foi depois de seis anos parada? R: Isso mesmo. Em 1998, comecei a dar aula na Belas Artes, fiz essa exposição que era para terminar aquele material todo que tinha em casa. Já tinha algumas coisas começadas, terminei esse material e parei. Na Belas peguei a disciplina de cerâmica e comecei a pesquisar de novo, porque sou autodidata em cerâmica, tive que aprender essa técnica para dar aula. Com isso voltei para a arte. Também, não posso dizer que não trabalhei mais na minha produção, porque sempre estou trabalhando, nem que seja um pouquinho. D: Você fez apenas uma pausinha... [Risos.] R: E participei daquela exposição coletiva chamada Nome5, em 2004, na Casa Andrade Muricy. Apresentei quatro trabalhos, eram pinturas grandes, de 150 x 150 cm6, uma produção que fui fazendo um pouco aqui, um pouco ali, diferente daquele 4 Rossana Guimarães, 1998. Sala Theodoro de Bona, MAC-PR, Curitiba. Nessa exposição havia as caixinhas de madeira com outros materiais dentro, pinturas sobre madeira e objetos de materiais variados (imagens 106, 107, 108 e 109). O texto do catálogo é um poema de Rossana Guimarães: “Opala no copo d’água / mármore em pó desmanchado / com mel e três raminhos cruzados / na cera e no cobre entornados // veludo osso musgo e prata / mirra acácia e benjoim / espelho pele de coelho / um dedal de jasmim // outro dedal de orvalho noturno / gota de sangue sob Saturno // que da Natureza em tesouros pródiga / possa aquele que dela se alimente / tornar o fogo que devasta no que aquece a casa / a água que afoga na que limpe a mente / a pedra que fere na gema preciosa.” 5 Nome, 2004. Curadoria de Daniela Vicentini e Simone Landal. Artistas participantes: Alex Cabral, Carina Weidle, Cleverson Oliveira, Débora Santiago, Eliane Prolik, Fábio Noronha, Fernando Burjato, Francisco Faria, Gabriele Gomes, Geraldo Leão, Glauco Menta, Lilian Gassen, Lívia Piantavini, Luciano Buchmann, Luciano Mariussi, Luiz Rodolfo Annes, Otávio Roesner, Rafael Tavares, Raul Cruz, Rossana Guimarães, Tony Camargo, William Machado e Yiftah Peled. 6 As pinturas de Rossana apresentadas não tinham títulos, mas eram duas da série Paisagens Oníricas e duas da série Alquimia, feitas em acrílica sobre tela em 2003-04.
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110: Sem título, 1991. Alumínio escovado e ramo seco de roseira, 120 x 90 x 20 cm.
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111: Sem título, 1990. Alumínio escovado, 120 x 90 x 20 cm.
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período dos anos 1980, em que para cada exposição eu produzia 30, 40 trabalhos, para destes escolher 20 que realmente participariam. Eu trabalhava muito naquela época. J: Porque naquela época você estava mais focada no seu trabalho de arte, não é? Esse foco, essa dedicação, deu muita força para o seu trabalho. R: Eu precisava produzir porque queria ter uma carreira, tinha esse objetivo, então tinha que fazer exposição, tinha que ter produção. Naquele período eu só fazia aquilo e dava umas aulinhas para poder comer [risos]. A maioria do dinheiro era direcionado para compra de material. E o meu trabalho me abriu caminho para São Paulo e para fora do país também. J: E você ainda produz trabalhos em alumínio ou não? R: Você não viu a última exposição que fiz em 2009 no espaço do BRDE? J: Ah, é verdade, tinha me esquecido! R: Aquela exposição se chamou Constelações7. Os trabalhos de pintura sobre alumínio [imagem 112] que mostrei lá foram inspirados em fotos de galáxias e estrelas feitas pelo telescópio Hubble, e tinham a ver com as constelações no espaço sideral. E as flores de cerâmica8, de certa forma, foram uma leitura das galáxias e estrelas na Terra. O macro e o micro. J: A espiral, uma forma que você usa bastante no seu trabalho, tem muito a ver com isso, não é? Me parece que seu trabalho trata de uma forma poética da existência das coisas e, nesse sentido, as pessoas se identificam com ele de alguma maneira. R: Acho que as pessoas se identificam quando trabalho com arquétipos. Por exemplo, a espiral é uma forma que está na natureza. A organização das pétalas de uma flor obedece a ela e várias outras coisas também, é uma ideia arquetípica. Assim como Platão argumentava sobre o mundo das ideias, acredito que existe o mundo das ideias e que vamos descobrindo esse mundo na matéria. D: Ah, quero ouvir sobre isso... R: Eu gosto dessas filosofias. Estudei várias durante um bom tempo da minha vida. A última que estudei foi a cabala e ela fala que a manifestação material, primeiramente, foi uma ideia na mente divina e que essa ideia foi passando por vários planos até chegar ao plano material. E o que Einstein fala? Que tudo é energia, e é verdade. Então a ciência está chegando neste momento no mesmo ponto em que chegaram as filosofias orientais. Os matemáticos falam que existe muito mais espaço do que se imaginava entre um elétron e outro, se você for diminuindo, diminuindo, e chegar ao núcleo de um átomo vai perceber que não existe matéria, é tudo energia. O que faz a matéria? É o mundo de vibrações que vai se acumulando 7 8
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Constelações, 2009. Espaço Cultural BRDE/Palacete dos Leões, Curitiba/PR. Série de esculturas em dimensões váriaveis, 2009.
112: Sem título, 2009. Alumínio e tinta a óleo, 120 x 90 cm.
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113 e 114 (p. 315): Vestido, 1985-1986. Alumínio e tinta a óleo, 120 x 90 x 30 cm.
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e vai formando a matéria. Nesse sentido as ideias arquetípicas também existiam antes do universo ser formado. Para se fazer algo, você tem que ter um plano, não é mesmo? J: Você poderia falar mais sobre essas ideias arquetípicas? O que elas são? R: São matrizes. Por exemplo, a forma espiral é um arquétipo, pois é uma ideia que existe, está em toda a natureza, para organizar vários elementos da natureza, é uma ideia que organiza. Outro exemplo é o arquétipo do herói ou do guerreiro. Quantas vezes a gente não tem que assumir essa postura do guerreiro? Ou o arquétipo da mãe, qual é? É a mãe que amamenta e que cuida do filho, que cria. São ideias primordiais que já existem mesmo antes de o universo existir. Todas as ideias, e tudo o que existe no mundo de criação já foi uma ideia, essa é a coisa. E quando você trabalha com os arquétipos, teu trabalho puxa as pessoas, elas se identificam porque aquilo está dentro delas, aquilo já existe. J: Interessante como suas caixinhas, ao mesmo tempo que são tão pequenas, são tão amplas e potentes, parece que entramos ou nos projetamos para dentro delas. Os trabalhos em metal têm uma natureza diferente, não? Eu me lembrei de seus Vestidos [imagens 113 e 114], que eu só conheço por imagem, nunca vi um ao vivo, mas acho fantásticos. R: Há um guardado lá em cima, depois eu te mostro. Gosto de trabalhar no micro e no macro, para dentro e para fora. Quanto aos Vestidos, foram uma crítica social ao consumismo e à aparência como valor dentro dessa sociedade – ou seja, para fora. D: Onde foram expostos esses Vestidos? R: Eles foram expostos primeiramente no Camarim, que era um bar de Curitiba muito famoso na época. Depois eles foram para São Paulo, ficaram expostos na galeria de arte de um bar muito conhecido, o Madame Satã. Lá, um grande colecionador de São Paulo viu os Vestidos, enlouqueceu com eles e comprou vários. Os Vestidos fizeram um certo sucesso com as pessoas naquela época. Também os mostrei numa individual [Objetos] no MAC em 1987. J: E todos foram vendidos? Quantos você fez? R: Vendi vários em São Paulo. Fiz uns 12, acho. J: Eles eram feitos de alumínio e eram frontais mesmo, quase bidimensionais? R: Sim, uma espécie de avental. Eram uma espécie de máscara. Na verdade, a exposição se chamava Máscaras9 e teve um texto muito legal do Cesar Bond. J: Máscaras? Ótimo nome. D: As pessoas falam muito desses Vestidos. 9
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Máscaras, 1986. Bar Camarim, Curitiba/PR, Madame Satã, São Paulo/SP.
115 e 116: Niké, 1992. Performance, aprox. 7’.
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R: Sabe por quê? Porque esses Vestidos me projetaram primeiro para São Paulo e depois para fora do Brasil. Para a época eles eram recentes e muito ousados. D: E você gosta deles? R: Muito. Eles eram ousados mesmo em São Paulo, tanto que uma crítica na época, a Sheila Leirner, num primeiro momento, falou mal deles. Eu, o Geraldo Leão e o Mohamed [Ali el Assal] expusemos em São Paulo, numa sala muito legal, no Jardim Europa 10. Eu mostrei os Vestidos e a Sheila Leirner escreveu um texto falando muito mal do meu trabalho, porque ela não entendeu nada. Eu tenho esse texto. J: Eu gostaria de ter acesso a ele depois. E o seu trabalho com performance? Os Vestidos têm uma coisa com performance, não é mesmo? R: Sim, porque eram usados para performances. Eram vestidos. J: Você os vestia, ou várias pessoas vestiam? Como era? R: Sim, eu os vesti e fiz uma performance no bar Camarim11. Nela, três mulheres usaram os Vestidos. Uma delas era pianista, a Vânia Schittenhelm, que está morando na Inglaterra, a outra era atriz, a Dedela [Maria Adélia Ferreira], e a outra era eu. Nós cantamos e fizemos uma cena, cada uma usando um dos Vestidos. Tenho algumas fotos dessa apresentação. No Madame Satã acabei não fazendo performance, apenas expus. J: Que interessante! É um vestido perfeito para se apresentar em um palco, por causa da frontalidade [risos]. R: Eles criticavam a aparência, a máscara social que as pessoas usam. Naquela ocasião dublamos uma música das Frenéticas, se não me engano. Foi bem legal. J: Sim, eles têm uma critica até com a arte também, justamente por sua frontalidade, que remete à discussão entre pintura, escultura e teatralidade tão debatida nos anos 1960-70. E você fez outras performances? R: Sim. Na minha primeira exposição, em 1985, eu já havia feito uma performance, que apresentei em vídeo12, não ao vivo. Naquela época estava estudando o zen budismo e artes marciais. Nessa performance, eu uso uma máscara que parece chinesa, existia todo um simbolismo com a espada, com as rosas. E na época também estava estudando teatro, dança, e usei esses conhecimentos para fazer o trabalho. J: E essas performances são narrativas? 10 Três artistas do Paraná, 1987. Paço das Artes, São Paulo/SP. Texto de apresentação de Alberto Puppi. O Paço das Artes, na época, estava localizado no mesmo prédio do Museu da Imagem e do Som, no Jardim Europa, hoje ele está situado na Cidade Universitária. 11 Performance e vídeo Máscaras, 1986. Participação de Vania Schittenhelm, Rossana Guimarães e Maria Adélia Ferreira. Vídeo: Cido Marques. 12 Yin-Out, 1985. Criação: Rossana Guimarães. Vídeo: Cido Marques. 5’ 29’’. Exposição Rossana Guimarães: Desenhos, pinturas e objetos, 1985. Galeria de Arte Banestado, Curitiba/PR.
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R: São apenas som e imagem. Faço alguns movimentos, o movimento da rosa, da espiral, e saio. J: No geral, suas performances têm narrativas? R: Nunca têm fala, elas têm música ou gesto. O gesto que é a narrativa. Depois dessa performance de 1985, fiz uma em 1987, na exposição que mencionei no MAC-PR, e nesta não havia som, apenas gesto13. Depois fiz outra, do mesmo tipo, em 1992, na abertura da minha exposição na Galeria Casa da Imagem14. Dizem que fui meio pioneira da performance em Curitiba nos anos 1980. J: E o Raul Cruz também? R: Sim. Em Curitiba não existiam muitas performances antes da gente. Apresentamos a nossa primeira na exposição Moto Contínuo15. Quem a realizou, baseada num texto que a gente tinha escrito coletivamente, foi o Beto Perna, um amigo do Raul que mora em Paranaguá e que fazia dança na época. E depois, o Raul foi fazer coisas relacionadas ao teatro e eu continuei fazendo minhas performances. Na Casa da Imagem realizei duas, uma [Niké] na minha individual e outra em uma exposição coletiva 16, em que chamei o Yiftah Peled e sua esposa, Elaine de Azevedo, para participar. Essa performance foi falada porque era baseada em um poema que escrevi sobre corações. Eu falava o nome do coração em português, ela falava em inglês e ele em hebraico. Ficou tão lindo! Cada um vestia um coração diferente. Esses trabalhos traziam de forma bem clara essa relação com a literatura. J: Que corações são esses? R: Eram corações enormes que fiz de metal, de alumínio. J: Aquele que estava na XII Mostra da Gravura 17? Um que é abaulado, curvado, tridimensional? R: Isso. Aquele era um deles [imagem 119]. J: Ele era moldado? Como era feito? R: Era todo feito à mão. Tudo feito na porrada e na força! J: E como esses corações eram vestidos? 13 Anjo Urbano, 1987. Comentário de Rossana: “Eu vestia roupa preta colada ao corpo, grandes asas feitas de borracha de caminhão, como também cinto do mesmo material. Máscara branca do meu próprio rosto com os olhos fechados (enxergava por pequenos furinhos imperceptíveis ao público). Fiz um percurso mudo, onde os gestos diziam uma mensagem, como um Anjo Urbano”. Exposição Objetos, MAC-PR, Curitiba/PR. 14 Niké, 1992. Comentário de Rossana: “Nessa performance eu dizia um discurso só com gestos e interagia com o público. Roupa: calça colada preta, blusa brilhante de cores rosa, violeta e azul, também colada ao corpo, e uma fina capa de organza azul”. Exposição Objetos, Galeria Casa da Imagem, Curitiba/PR [ver nota 3, p.308]. 15 Tatuatua, 1983. Performance apresentada por Beto Perna no encerramento do evento Moto Contínuo, organizado pelos artistas Denise Bandeira, Eliane Prolik, Geraldo Leão, Mohamed Ali el Assal, Raul Cruz e Rossana Guimarães na galeria de arte da Fundação Cultural de Curitiba. 16 Corações, 1991. Exposição 11 artistas contemporâneos, Galeria Casa da Imagem, Curitiba/PR. 17 XII Mostra da Gravura Cidade de Curitiba: Marcas do corpo, dobras da alma, 2000. Curadoria conjunta de Paulo Herkenhoff e Adriano Pedrosa.
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117: O escudo para Artêmis (ou Escudo para Diana), 1987. Alumínio e tinta a óleo, 120 x 80 cm.
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118: Meteoro, 1987. Alumínio e tinta a óleo, 100 cm de diâmetro. Coleção de Orlando e Dilva Busarello.
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R: Nós os colocávamos na nossa frente, pendurávamos no corpo, como os Vestidos. Eles vieram de outros trabalhos que eram escudos, porque eu estava trabalhando com a mitologia. Fiz um trabalho chamado Escudo para Diana [imagem 120] e, também, uma performance em vídeo com ele18. Isso foi em 1987-89. Fiz corações enormes, de tudo que era tipo. Virou moda depois e todo mundo começou a pintar corações. J: Qual o sentido desses corações? Eles têm uma coisa irônica? R: Claro que sim. E tem poesia também, porque os meus corações vieram do meu poema. No poema eu enumerava todos os tipos possíveis de coração: coração de ouro, coração de terra, coração de ferro, coração de abelha, coração de baleia… E no meio do poema havia a pergunta: “Qual é o seu coração?”. Então, ao mesmo tempo em que se falava do coração de abelha, havia o coração de baleia e se ficava imaginando isso tudo. Era uma lista grande. Construí alguns desses corações, não todos. Porque era um work in progress, aberto para prosseguir sempre que eu quisesse. D: Você construiu o coração de abelha? R: De abelha, não. Mas construí o coração do lobo, por exemplo. J: E você inventava como era o coração do lobo? R: Inventava. O coração do lobo era preto, enorme, feito de pele de carneiro com uma flor pendurada. Enorme, lindo19. J: E onde está esse coração? R: Está aqui em casa, guardado. J: E como a ironia acontece neste trabalho dos corações, por exemplo? R: Imagine um coração de lobo feito com pele de carneiro. J: Sim! Uma ironia sutil e literária... Essa é a palavra. Me lembro muito do Tunga por conta dessa referência literária, ele fala do bicho rola-bosta de uma maneira poética 20. Não é uma ironia explícita, como em um Jeff Koons, por exemplo, que inclusive tem trabalhos que são corações enormes de aço inox 21. R: O trabalho não é explícito, inclusive porque aquele pelo de carneiro é negro, não branco. Ainda traz essa questão da ovelha negra. Você conhece a expressão “um lobo em pele de carneiro”? Depois, comecei a construir aqueles trabalhos escovados 18 Sem título, 1987-88, aprox. 10’. Comentário de Rossana: “Eu vestia uma roupa como uma toga curta feita de lã preta de carneiro, apertada na cintura com o mesmo cinto de borracha de caminhão que usei na performance do Anjo Urbano no MAC em 1987. E só passo na frente da câmera arrastando o Escudo para Artêmis. Foi uma filmagem que o Cido fez só para registro, pois não tive uma oportunidade de mostrá-la ao vivo”. 19 Coração de Lobo, 1998. Pele de carneiro, borracha e flor de metal, aprox. 120 x 70 cm. 20 TUNGA. Barroco de lírios. São Paulo: Cosac & Naify, 1997. 21 Referência aos trabalhos de Jeff Koons: Sacred Heart [Sagrado Coração], 1994-2007, aço inoxidável de alto cromo com revestimento de cor transparente, 356,9 x 218,4 x 120,9 cm e Hanging Heart [Coração pendurado], 19942006, aço inoxidável de alto cromo com revestimento de cor transparente e latão amarelo, 291 x 280 x 101,5 cm.
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de alumínio, abandonei os corações, até porque virou moda e ficou uma coisa muito batida, embora as pessoas pintassem e desenhassem e não eram objetos como os meus. Mas como é um work in progress, dá essa abertura para continuar e fazer outros. D: Na época em que você expôs em São Paulo havia muitas galerias por lá? R: Sim. Mas era difícil fazer parte de uma delas. Como disse anteriormente, até trabalhei durante um período em uma que se chamava Arco Arte Contemporânea, ficava no bairro Jardins. Quem me apresentou foi o Francisco Faria, na época ele trabalhava com ela. Você não podia chegar sozinho numa galeria, que era tratado como lixo. Tinha que ser indicado por alguém, então pelo menos nos recebiam. Era assim. Hoje, não sei como está, mas deve ser a mesma coisa. D: Você falou das dificuldades, em um determinado momento da sua carreira, que te levaram a dar uma pausa na produção. Depois vieram as demandas das aulas na Belas Artes. E recentemente você voltou a produzir. Como foram esses movimentos que te trouxeram de volta para a produção? Como ficou a busca de continuar produzindo? R: Dar aulas numa universidade absorve muito da nossa energia, principalmente quando você entra. Porque uma coisa é você dar curso livre e outra coisa é ter um curso regular numa faculdade. Então, no início, a Belas me absorvia bastante, por isso comecei com aquela pesquisa muito lenta, sabe? Ainda não estava muito animada. Acho que me animei só de uns cinco anos para cá mesmo, tanto que minha última exposição aconteceu em 2009. Foi há quatro anos, passou muito rápido o tempo. Também não tenho mais aquela necessidade de mostrar o trabalho para ocupar um espaço, pois já tenho uma história. Tenho um monte de trabalho, de pesquisas que comecei há muito tempo, mas que não termino. Agora, por exemplo, estou me animando a prosseguir. Desenhos, pinturas, tenho muitas coisas inéditas, nas quais estou trabalhando devagar, que, logo, poderão fazer parte de uma exposição. J: Eu acho seu trabalho muito original. É difícil achar algo parecido com ele. Quando você tem um trabalho forte, acaba influenciando outros, não é mesmo? Como você lida com trabalhos de artistas que você acredita terem uma forte influência do seu? R: Sabe, quase ninguém quer fazer muito esforço para buscar um trabalho que seja original, isso é muito difícil de buscar. Mas acho que existe a influência mesmo, acredito que isso é uma coisa normal. Algumas vezes me chateei com isso, principalmente quando alguém apresentava ao público um trabalho muito parecido com o meu, e influenciado por ele, antes de mim. O Geraldo Leão me dizia: “Mas veja pelo lado bom: seu trabalho é tão bom que as pessoas se influenciam!”. E isso é um lado bom mesmo. Você lembra a história de que os artistas cobriam seus trabalhos, os escondiam quando Picasso aparecia? É normal, porque acredito que existem dois tipos de artista no mundo, existem aqueles que criam e aqueles que desenvolvem, que são bons desenvolvedores de ideias. J: O Picasso era uma máquina. Seu olho era uma espécie de máquina fotográfica.
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R: Mas é assim. Quando temos prática, olhamos para o trabalho e vemos todas as possibilidades e desdobramentos que podem advir dele. Então, você, vendo um trabalho, pode produzir uma série dentro daquela poética. Mas existe uma diferença entre copiar e ter influências, sabe? Acredito que todos devemos nossa informação aos outros, mas existe também uma questão ética. Eu posso dizer: “Juliana, seu trabalho é maravilhoso e me influenciou, obrigada”. Acho importante esse reconhecimento, sabe? Porque é disso que a gente vive! D: Como assim? Vive de reconhecimento? R: O artista vive daquilo que ele produz, ou seja, do reconhecimento por aquilo que ele cria. Então, se você se influencia por um trabalho de algum artista, dizer isso a ele é um reconhecimento do trabalho. Valoriza o trabalho. É porque o trabalho dele é bom que influenciou o seu. Quando alguém te diz: “Adoro o seu trabalho e ele me influencia bastante”, isso é a coisa mais bonita que você pode escutar de alguém. D: Rossana, e como você pensa a questão do valor do artista? R: O valor do artista vem daquilo que ele cria, do que ele traz ao mundo de qualidade, do que não foi dito e que ele consegue dizer, das relações que não existiam, mas ele instaura. Então, quanto mais ele traz qualidades que não eram até então visíveis, melhor, porque isso o qualifica. É muito importante que um artista respeite o trabalho do outro, que tenha ética nessa relação. Quando um trabalho é copiado, o que acontece? É dividido o valor que aquele artista tinha, que ele tinha batalhado, criado, este valor vai para outro. Se essa outra pessoa divide com ele a autoria e assume que o trabalho o influenciou, está respeitando o trabalho do outro. Quando isso não acontece, o outro se sente roubado. Inclusive, hoje, a arte participativa está muito em voga. Agora, o mundo é este! Acho que é igual em todos os campos, a competição existe em todos os meios. Hoje em dia a gente tem um meio maravilhoso que é a internet. Acredito que também é uma forma de divulgar nosso trabalho. Acho que aqui no Sul há uma competição muito grande. Conheci artistas no Nordeste e lá eles parecem ter um convívio mais legal, onde um ajuda o outro, um é convidado para uma exposição e já chama o outro, eles têm uma solidariedade maior, trocam mais informações. Então, acho que o ideal seria mesmo que todos os artistas pudessem trocar informações e se ajudassem reciprocamente, porque há espaço para todos.
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119: Sagrado Coração de Poeta, 1989. Alumínio e folha de ouro, 120 x 90 cm.
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Detalhes da edição por Juliana Burigo
Nossa proposta de gravar uma conversa com liberdade para falar o que quer que fosse e, então, editá-la posteriormente, deixou-nos todos mais à vontade. Justamente por esse fator, detectamos a necessidade de uma edição cuidadosa, que, porém, tivesse certa autonomia para eliminar ruídos, reformular algumas palavras e falas – sempre de acordo com as especificidades de cada pessoa, buscando manter a integridade dos assuntos, o caráter dos comentários ou ideias e a forma de expressá-los. Agimos retirando alguns vícios de linguagem e melhorando as perguntas, deixando-as mais claras (algumas foram refeitas) e excluindo trechos considerados excessivos, principalmente comentários que não eram relacionados a arte, interferências externas à conversa – pessoas, telefonemas, cachorros, etc. – e devaneios que deixavam o texto muito longo e até cansativo. Em alguns casos, foram acrescentadas questões pós-edição para auxiliar no conjunto e fluência do texto/entrevista – assuntos que senti ter deixado passar e que gostaria de explorar um pouco mais. As palavras de David Sylvester em seu Entrevistas com Francis Bacon1 traduzem minha intenção na edição de uma forma bem esclarecedora: “o objetivo era costurar uma conversa mais concisa e coerente do que a que ocorria em nossos encontros, mas sem uma coerência exagerada para que não se perdesse o sabor de um diálogo fluente e espontâneo”. Como as conversas aconteceram em períodos muito distintos de tempo2, para o processo de produção do livro muitas coisas, do material que já tínhamos e da forma de pensá-lo, tiveram que ser revistas e transformadas. Tomando a distância que o tempo nos deu, reavaliamos as transcrições e edições e alteramos o método utilizado anteriormente. Explico: para realizar as primeiras cinco conversas, eu tinha todas as limitações financeiras (visto que era a contrapartida para a qual não havia verba destinada, e naquela época nem poderia haver, de um projeto de produção artística), um fator que, inclusive, forçou a definição desse número de pessoas, em função da viabilidade disso tudo. Dayana tinha o gravador e nós dividimos as edições. Trabalhamos escutando, transcrevendo e editando esse material. Mas o fizemos de 1 2 2013.
SYLVESTER, David. Entrevistas com Francis Bacon. São Paulo: Cosac Naify, 1998. As conversas aqui publicadas aconteceram de maio a julho de 2009 e de novembro de 2012 a fevereiro de
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Detalhes da edição
uma forma bruta, pelas condições e pelo tempo necessário (ou pela falta de ambos), e acabamos realizando muitos cortes de conteúdo. Nesse momento, pensamos em não expor tanto nossas questões ou expô-las o mínimo possível, deixando os textos mais próximos de ensaios, quase sem interferências nossas. As transcrições das conversas mais recentes, realizadas entre 2012 e 2013, foram integrais. E eu pude, através delas, observar que nossas falas, tanto minhas quanto da Dayana, eram importantes, pronunciadas, reais e também definidoras dos rumos do diálogo, elas não podiam ser atenuadas, minimizadas ou excluídas, elas precisavam se fazer presentes. Por isso, as transcrições das conversas realizadas em 2009 foram refeitas: resgatamos algumas coisas excluídas inicialmente e até trabalhamos mais algumas questões, dependendo do caso. Nossos critérios de edição não atuaram no sentido de tratar os áudios e suas transcrições como documentos históricos, nem estávamos preocupadas com metodologias científicas, de entrevistas, por exemplo. Porque também coisas interessantes puderam ocorrer a partir da edição, mas a entonação, certas preciosidades em muitas falas e algumas vírgulas precisaram, da mesma forma, ser preservados. Então, ocorreram tanto situações bem próximas da fala gravada, quanto situações em que houve muita reescrita e também construções ou criações de falas pela escrita, com essa mistura de acontecimento e “ficção/edição”. As transcrições e edições iniciais, lá em 2009, das conversas com Tony, Carina, Artur, Cleverson e Marco foram divididas entre mim e Dayana. As demais, em 2013, foram realizadas por Simara Ramos, que também me auxiliou nas retranscrições de algumas das conversas de 2009. As edições e reedições foram divididas entre mim e Joana Corona e, nessa etapa, Dayana trabalhou na edição da conversa com Tony, além de sugerir e apontar questões relativas às outras conversas. Em meados de 2014, passei os textos com muitas dúvidas e anotações para Joana, que então realizaria a última edição e revisão desse material, ajustando a ordem e o conjunto do livro, deixando tudo pronto para a diagramação. Foi nessa época que enfrentamos a sua morte, um choque muito sentido. Uma fatalidade que nos desestruturou, pela amizade e parceria profissional, e que nos obrigou a parar antes de reformular nossas estratégias. Sofremos todos com essa perda, tanto pessoalmente, quanto, neste caso, profissionalmente, pois o entrosamento de Joana com os textos facilitaria todo o processo. Então, depois de atenuado o choque, em reunião, eu e Dayana nos resolvemos a retomar este trabalho finalizando em conjunto os textos um a um. E, para engrossar esse caldo, auxiliando-nos mais um bocado nesta minha primeira empreitada editorial, contamos com as preciosas contribuições de Fernando Burjato, que, além de escrever a apresentação desta obra, também participou com comentários, sugestões, observações e incentivo; de Sabrina Lopes, atuando como Fernando, só que de maneira ainda mais minuciosa, na revisão e também edição de todos os textos do livro; e da Máquina de Escrever Editora, através do diálogo e seus muitos serviços concernentes a uma publicação.
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Caso a caso Cada caso foi um caso e demandou mais ou menos trabalho de edição, de acordo com principalmente dois fatores: como a conversa se desenrolou e como cada pessoa percebeu e se relacionou com nossa proposta a posteriori. Por exemplo, as conversas com Geraldo Leão, Cleverson Oliveira, Carina Weidle, Artur Freitas, Rossana Guimarães e Fábio Noronha tiveram poucos cortes ou alterações, mas algumas perguntas foram retrabalhadas e foi incluída uma questão complementar na edição da conversa com Geraldo; já com Eliane Prolik, Tony Camargo e Marco Mello tivemos mais alterações, cortes e inclusões, inclusive de questões complementares. Talvez por ter sido a primeira (27/05/2009), a conversa com Tony foi uma surpresa para mim. Ele diz que não gosta de falar por si só... Como nossas perguntas eram abrangentes e “sem preparação prévia”, ele respondia e não discorria muito sobre os assuntos. Para esta publicação, Dayana releu a conversa e fez apontamentos para sua edição atualizada, indicando e sugerindo alterações em trechos que tratavam de assuntos muito pontuais ou datados e nos enviou. Esse envio impulsionou entre nós três uma troca de e-mails a respeito de ou gravar novamente a conversa ou então realizar uma edição maior que a já existente, o que optei por fazer. Não vi sentido em regravá-la, pois seria uma exceção perante todos os outros processos. Trabalhei em cima da edição da Dayana, sugerindo coisas e explorando lacunas com o acréscimo de questões sobre assuntos já comentados pelo artista, tentando esclarecer algumas dúvidas e ideias que passaram despercebidas por mim durante a conversa. Tony, depois, excluiu e refez algumas falas, principalmente essas que tratavam de assuntos momentâneos e de coisas que já não lhe agradava dizer, e também respondeu às questões inseridas. A reedição ocorreu entre 02/07/2013 e 04/11/2013. Quero abrir um parêntese aqui. Lembro que, em um dos e-mails, perguntei ao artista o que ele achou a respeito da conversa e se sentiu falta de algo. Desejo expor uma parte do que ele me respondeu, para dar mais sabor a esta discussão caso a caso e também alcançar alguns pontos tocados em outras partes deste livro: “Como artista, sou pensador e tenho opinião formada sobre o meio, o circuito, a vida de um artista e todos os seus departamentos, mas o assunto sobre o qual tenho mais propriedade para falar, evidentemente, são as especificidades de minha pesquisa particular. Senti falta de falar sobre problemas específicos que envolvem meu trabalho. Posso citar, por exemplo: a natureza volátil e ao mesmo tempo palpável na ‘presentidade’ expansiva das Planopinturas ou a carga política dos Fotomódulos e dos desenhos, assim como das próprias Planopinturas em sua versão ‘Iconográficas’; os evidentes riscos a que se dispõe meu trabalho diante do patamar histórico tradicional das variantes linguagens bidimensionais, ou a presença da obra e sua intransigência e paradoxal identificação como objeto no contexto atual. Ou ainda o desacômodo formal que o trabalho apresenta quanto a seduzir o olhar e ao mesmo tempo provocá-lo, ou tantas outras especificidades que existem nele”. Continuando...
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Detalhes da edição
Na primeira edição, em 2009, da conversa com Carina (esta realizada em 02/06/2009) e na sua reedição em 2013, trabalhamos para “costurá-la”, pois, devido ao grande tempo que não nos encontrávamos e à empolgação de todas no momento, a conversa foi travada de uma forma muito espontânea e quebradiça, com mudanças repentinas de assunto. Em 18/07/2013, Carina alterou de forma pontual algumas falas, deixando-as mais de acordo com suas ideias atuais, mas sem grandes modificações, apenas enxugando e modificando algumas palavras e frases, acrescentando também algumas informações e conteúdos, incrementandoos. Ela fez poucas observações para nós, sendo que, na edição, transformei algumas delas em comentários, incluídos em nota de rodapé como “comentário de Carina”. Mesmo nossa conversa com Artur tendo acontecido num bar (em 03/06/2009), caso que também nos levou a certa empolgação por causa da bebida, que desconcerta por vezes as falas de muitos, todas as suas edições foram sempre muito pontuais. Talvez porque Artur pareça falar escrevendo, ou escrever falando. A transcrição tratou de eliminar os ruídos e devaneios e, como retranscrevemos essa conversa para esta publicação, algumas questões inicialmente excluídas foram retomadas, até porque a primeira transcrição tinha sido feita com o objetivo de transformála em um ensaio, como disse acima. A reedição conferida nos foi entregue em 03/07/2013. A conversa com Cleverson (15/06/2009) gerou algumas horas de áudio, acho que cerca de quatro horas. Para a primeira edição, já excluímos vários comentários que fugiam ao escopo ou diziam respeito a assuntos aleatórios, fortuitos. Para a segunda edição, trabalhamos em nova transcrição em cima da primeira e acrescentamos algumas informações que achamos relevantes para o conjunto do livro. Quando mandei o texto para sua aprovação, o artista retornou em 10/09/2013 uma edição com muitos cortes. Como eu achava (e acho) sua entrevista realmente muito bacana – assim como acho todas as outras –, pedi que reavaliasse e, em seu segundo retorno, em 08/01/2014, o texto estava quase intacto, com o corte de apenas algumas partes com que Cleverson já não se identificava tanto, mas reconheceu tratar-se de uma conversa datada e espontânea. Ainda houve a parte de edição das perguntas e falas de Tony, que foram bem pontuais e sucintas. Mesmo que não falemos tanto dos trabalhos de arte, Cleverson traz para nós um pouco do universo que ele viveu e que é ou foi uma realidade irradiante no meio e na história da arte, e um contexto que tem muito significado para o seu trabalho de arte, especificamente. A conversa com Marco (14/07/2009) gerou dois áudios que se entrecruzavam e uma edição (feita por mim) meio Frankenstein, que tentou mesclar as falas ali contidas, porque elas reiteravam assuntos, mas eram distintas: após gravarmos por pouco mais de uma hora, reiniciamos a conversa e a gravação a pedido de Marco, que queria expressar as informações de forma mais enxuta. Quando lhe enviei o material, ele não só precisava conferir, mas finalizar aquela edição. Não sei se ele chegou a ler, se ele se desempolgou com o que viu, ou se estava ocupado com outras coisas da vida, mas não me respondeu e, como eu estava com um problema em relação aos prazos em 2009, optei por deixar essa edição para trás, para um
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dia retomá-la. Em uma conversa com Fernando Burjato sobre este livro, fui incentivada a tentar resgatá-la e logo me debrucei sobre essa tentativa. Conversei com o galerista e ele topou participar do livro. Enviei-lhe o texto em 06/10/2013 e em 28/01/2014 ele me retornou a sua edição tomando como base aquela que eu havia lhe passado, mas com muitos cortes de conteúdo e inclusão de trechos e falas inteiras escritas, segundo ele, a fim de deixar o raciocínio menos quebrado e explorar coisas que foram tangenciadas, mas não ditas. Um resultado, inclusive, um tanto diverso do resto do livro e mais a par com os textos críticos, mas que estava dentro de nossa proposta inicial. A conversa com Eliane (19/11/2012) foi cheia de percursos pela cidade, e nós gravamos até mesmo dentro do carro. Resultou em mais de 40 páginas de transcrição, onde falamos sobre variados assuntos, mas acabamos nos detendo naqueles relacionados ao meio artístico, às políticas para as artes plásticas, ao mercado, etc. e menos nas especificidades do trabalho de Eliane. Ao enviarmos o material para ela, tivemos seu retorno em 25/01/2014 com uma edição resultando em 12 páginas apenas. No processo final de realização do livro, agora, em meados de 2015, resolvi propor à artista uma reedição partindo da entrevista original, resgatando coisas que eu achava importantes, pois o texto que estava prestes a ser publicado omitia muito do que conversamos. E, com a ajuda de Dayana, obtivemos uma edição que, mesmo mantendo muitos cortes de conteúdo, resultou em uma entrevista polida, mas mais completa e recheada de Eliane Prolik. As duas finalizaram juntas esta última edição em 28/02/2015. A edição da conversa com Geraldo (23/11/2012) foi muito pontual, a não ser porque a transcrição também gerou mais de 40 páginas onde tocamos em muitos assuntos dispersos, e optei por excluir alguns pequenos trechos e um trecho maior em que falávamos de coisas corriqueiras. Foi muito difícil cortar, afinal, Geraldo discorre com maestria sobre os assuntos mais banais, mas achei que valeria a pena, pois reforçaria o que já tínhamos, que é um bom material. Assim, também conseguimos deixá-la um pouco mais a par das outras no conteúdo e número de páginas, já que é a mais longa do livro, com 41 páginas. A edição conferida nos foi entregue em 22/08/2013. A transcrição e a primeira edição da conversa com Fábio demandaram um pouco de trabalho “extra” porque, mesmo tendo nós, de certa forma, decretado o fim da conversa, continuamos gravando. E, de fato, falamos muitas coisas mais, e algumas bem interessantes, mas que já não cabiam nesta edição porque estavam quebradiças, tratavam de diversos assuntos, porém não de maneira contínua. Então, mesmo transcrevendo quase tudo, cortamos esse “final de conversa”. As demais edições foram muito pontuais. Como já era a penúltima conversa realizada (09/02/2013), àquela altura estávamos mais confiantes e tranquilas, falando melhor, de forma mais clara. Tanto Fábio quanto Juliana Gisi trabalharam em cima da nossa edição fazendo pequenas inclusões e exclusões nas suas falas. Deixo aqui um comentário do artista no e-mail escrito ao enviar-me sua versão editada definitiva, em 11/07/2013: “o texto já estava bom de ler; o que fiz foi torná-lo mais preciso e
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Detalhes da edição
fluido, sem eliminar os rumores da fala (apenas reduzindo-os)”. Lembro que, ao me encontrar com Fábio, ele comentou ter editado suas falas porque percebeu que nós também o fizemos nas nossas. A edição da conversa com Rossana (esta realizada em 11/02/2013) foi muito tranquila, a não ser pelos últimos ajustes que fizemos na reta final, tentando desvendar os nomes, datas e títulos das exposições, trabalhos e performances dela, o que valeu até mais uma visita a seu ateliê-residência. Rossana simplesmente aplicou poucos cortes e ajustou alguns detalhes; outros cortes, fomos nós que sugerimos, para evitar repetições de assunto. Mas a primeira edição a partir da transcrição já havia excluído muitos comentários à parte, e também conversas sobre outros assuntos, como ser mulher, ser mãe, os relacionamentos, etc. A edição conferida nos foi entregue em 28/10/2013.
Outros detalhes As sequência das conversas no livro considera a data em que ocorreram, cronologicamente. Houve um receio quanto a essa decisão, pois separá-las em conjuntos datados poderia evidenciar a distância temporal entre as conversas, algo que não é percebido nos conteúdos ou assuntos abordados. Porém, essa foi a forma que encontrei para organizar as falas sem sugerir diretamente encontros e cruzamentos entre elas. Gosto (e acho que se aplica aqui) da explicação de Glória Ferreira na apresentação do livro Escritos de artistas: anos 60 e 70 (aliás, uma referência importante para mim) sobre a opção por apresentarem os textos na ordem cronológica de sua publicação original ou de sua produção: “Neutra em relação a conteúdos ou temas, e não classificatória, essa ordem visa sugerir os possíveis diálogos de uma pluralidade de vozes, independentemente dos diferentes labels que poderiam ser aplicados a muitos textos. Assim, sem a intenção de indicar qualquer tipo de evolução, temporal ou causal, essa ordenação busca apontar desdobramentos dos textos de artistas nesse período, como documentos que assinalam um deslocamento na definição, intenção ou direção da arte”3. Como elas (Glória e Cecília), eu não queria direcionar a leitura e sim tentar me manter “neutra”, sem opinar, nem construir narrativas ou sequências de pensamentos, nem me posicionar a respeito dos assuntos abordados – mais do que já acontece nas conversas, conversando. Também não quis propor nenhum desenvolvimento ou “evolução” alusivos aos acontecimentos e às relações históricas entre as pessoas e suas falas, ou continuidades, e mesmo que a organização cronológica possa sugerir algum desenvolvimento, foi como de fato ocorreu. Às datas em que as conversas foram realizadas, ainda somam-se as datas de edições, e também o fato de elas não terem sido escolhidas racionalmente ou programadamente, mas de acordo com a disponibilidade de agenda de cada pessoa. A escolha de apresentar, junto ao texto, imagens de obras desses artistas vem da 3 FERREIRA, Glória; COTRIM, Cecília (Orgs.). Escritos de artistas: anos 60 e 70. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2006. p. 9.
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vontade de dar mais sabor ainda para a leitura, de recheá-la e, também, de trazer ao leitor um conteúdo paralelo, mas que é o principal ingrediente das escolhas que agrupam essas pessoas aqui – suas obras. Elas ocorrem no livro com uma semiautonomia em relação aos textos, com uma espécie de “narrativa própria”, ora conversando muito com o que estamos dizendo, ora agregando conteúdos para trazer uma visão mais completa da obra desses artistas. Acho importante registrar que tais imagens foram cedidas para o livro e não produzidas para ele. Mesmo não sendo historiadora e sim artista, no decorrer do processo de produção do livro eu me deparei com o fato de que há uma importância histórica nesta realização e na junção dessas falas. A partir daí, passei a considerar também este trabalho como um registro histórico, uma espécie de catalogação. E muitas decisões foram tomadas pensando em salvaguardar um pouco disso; por exemplo, optei por colocar as referências completas das obras de arte e de determinados eventos mencionados nas falas. As referências de livros entram em norma ABNT para auxiliar o leitor em possíveis conexões e em futuras pesquisas. A meu convite, por sentir a necessidade de um outro olhar sobre a coisa, um olhar sincero, o livro também é apresentado por Fernando Burjato. Paranaense radicado em São Paulo, ele é conhecedor dos entrevistados e também deste cenário, outrora morando e realizando exposições e projetos em nossa cidade.
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SIGLÁRIO ABCA – Associação Brasileira de Críticos de Artes BRDE – Banco Regional de Desenvolvimento do Extremo Sul CAM – Casa Andrade Muricy CCBB – Centro Cultural Banco do Brasil Cefet – Centro Federal de Educação Tecnológica, atual UTFPR CNPq – Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico DeArtes – Departamento de Artes da UFPR Embap – Escola de Música e Belas Artes do Paraná ECA/USP – Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo FAP – Faculdade de Artes do Paraná FCC – Fundação Cultural de Curitiba Funarte – Fundação Nacional de Artes FVCB – Fundação Vera Chaves Barcellos MAA – Museu Alfredo Andersen MACCE – Museu de Arte Contemporânea do Ceará MAC-PR – Museu de Arte Contemporânea do Paraná MACRS – Museu de Arte Contemporânea do Rio Grande do Sul MAC/USP – Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo MAM-Rio – Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro MAM-SP – Museu de Arte Moderna de São Paulo MASC – Museu de Arte de Santa Catarina MON – Museu Oscar Niemeyer MuMA – Museu Metropolitano de Arte de Curitiba MusA – Museu de Arte da UFPR Seec – Secretaria de Estado da Cultura do Paraná Sesc – Serviço Social do Comércio Sesi – Serviço Social da Indústria UEM – Universidade Estadual de Maringá UFPR – Universidade Federal do Paraná UFRGS – Universidade Federal do Rio Grande do Sul Unespar – Universidade Estadual do Paraná USP – Universidade de São Paulo UTFPR – Universidade Tecnológica Federal do Paraná UTP – Universidade Tuiuti do Paraná
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FOTOGRAFIAS Imagens das obras concedidas pelos artistas com fotografias de: Alice Varaj達o (115 e 116) Brasilio Wille (54, 65) Gilson Camargo (24) Jo達o Urban (60, 61, 63, 64) Julio Covelo (45, 46, 47) Marcelo Almeida (52, 53, 58, 59, 62, 66, 69, 70, 71, 74, 75, 76,77, 82, 83, 84) Orlando Azevedo (20, 25, 26, 27, 28, 29, 33, 34, 105, 117, 118, 119) Rafael Dabul (42, 43) Romulo Fialdini (55) Sergio Guerini (56, 57, 58, 59) Vilma Slomp e Orlando Azevedo (91, 94, 95) ZAP (104) Zeca Moraes (106, 107, 108, 109) Tratamento de imagens: Miguel Ricardo de Melo (56, 57, 58, 59, 62, 66, 69, 70, 71, 74, 75, 76,77, 82, 83, 84)
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Direitos reservados à: EDITORA MÁQUINA DE ESCREVER Rua Virgínia Dalabona, 352 CEP 82310-390 Curitiba – PR – Brasil editoramaquinadeescrever.com.br
DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO
B958 Burigo, Juliana Conversas sobre arte – Curitiba, Brasil (2009-2003) / Organizado por Dayana Zdebsky de Cordova; Juliana Burigo. ___ Curitiba: Máquina de Escrever, 2015. 340 p. ; 15,5 x 22,2 cm
1. Arte Contemporânea – Paraná. 2. Arte - Produção. 3. Artista Plástico – Entrevista. 4. Crítica de Arte. I. Cordova, Dayana Zdebsky de. II. Título.
CDD (22ª ed.):709.8162
Concepção e coordenação: Juliana Burigo Edição de Texto: Juliana Burigo, Dayana Zdebsky de Cordova, Sabrina Lopes, Joana Corona e Davi Pessoa. Transcrição dos áudios: Dayana Zdebsky de Cordova, Juliana Burigo e Simara Ramos Projeto gráfico: Martim Fernandes Revisão: Sabrina Lopes Produção: Singélida Produção Cultural
Fonte: Fedra Serif A e Fedra Sans Papel: Pólen Soft 80g Impressão: Corgraf Tiragem: 1000