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Revista Editada pelo CORECON/DF - ANO IV - nº 16 - OUT/DEZ DE 2003

EDITORIAL .............................................................................................................................................. 4

ENTREVISTA

NILSON NAVES ............................................................................................................. 5 ARTIGOS GIULIANO CONTENTO DE OLIVEIRA E CARLOS EDUARDO CARVALHO Spread bancário no Brasil: desafios e dilemas ............................................................. 11

DÉRCIO GARCIA MUNHOZ Brasil. Financiamento Internacional .............................................................................. 18

GUILHERME DELGADO O Setor de Subsistência na Economia e na Sociedade Brasileira: gênese histórica, reprodução e configuração contemporânea .................................................................. 35

SÉRGIO MENDONÇA E MARIZE HOFFMANN Notas sobre as diferenças das taxas de desemprego da PME e da PED .................... 54

Revista de conjuntura

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EXPEDIENTE

EDITORIAL

Órgão Oficial do CORECON-DF

A passagem do ano é sempre o momento para a avaliação do desempenho passado e as perspectivas sobre o comportamento futuro. De um modo geral, as previsões dos economistas não têm muita credibilidade. Além do imponderável, nossos desejos e compromissos fazem com que as estimativas sejam muito imprecisas e tendenciosas. Mas, de qualquer modo, não podemos furtar-nos de especular, um pouco como os meteorologistas e um pouco como os bruxos. 2003 surpreendeu, tanto pelo que fez como pelo que deixou de fazer o novo governo. Talvez menos pelo medo que pelas próprias convicções e conveniências da cúpula do Partido, o PT imprimiu a mais radical ortodoxia à orientação econômica. E as duas conseqüências mais marcantes foram a virtual ausência de crescimento do PIB, com mais uma queda da renda per capita, e o aumento da taxa de desemprego, que, pelos números do IBGE – muito mais conservadores que os do DIEESE -, atingiam 12,2% em novembro (10,9% em novembro de 2002). O mercado informal – cresscente - absorve mais de 50% da mão-de-obra ocupada. A queda da renda real média do trabalhador é contínua há nove trimestres (de 13% na comparação entre novembro de 2002 e de 2003). Mas, como em Economia tudo tem mais de uma face, houve queda acentuada da inflação, o câmbio se estabilizou, os juros baixaram – ainda que permanecendo em patamares elevados – e o saldo comercial chegou perto dos US$ 25 bilhões, com saldo positivo em transações correntes. Curiosamente, pouco se tem falado na dívida, como se nossas inquietações tivessem sido superadas e nos encaminhássemos para um equacionamento definitivo do problema. Com efeito, a redução nas taxas de juros, a recomposição gradual da dívida (com menos proporção de títulos indexados ao câmbio e maior proporção de títulos prefixados), o aumento contínuo da carga tributária e a severa contenção de gastos essenciais (meta de superávit primário de 4,25% do PIB e, na prática, superior, beirando os 5%) deixam margem para que se considere sob controle o processo de endividamento, mesmo com aumento da relação dívida/PIB (perto de 58% do PIB). Os resultados das vendas de fim de ano ainda são contraditórios. Como de hábito, previsões otimistas, embaladas pela propaganda oficial, anunciam firme recuperação da atividade econômica ao final do ano, principalmente quando comparadas as vendas do período com as dos meses ou do ano anterior. Entretanto, informações preliminares indicam que o crescimento se deu especialmente nas vendas a prazo, sem dúvida favorecidas pela ampliação do crédito e por uma tímida redução dos juros ao consumidor. Dado o longo período de estagnação, é natural que as pessoas tenham um pouco mais de ousadia, liberando parcialmente as necessidades reprimidas, e os empresários corram maiores riscos, para desovar e renovar estoques. Deste modo, os resultados são incertos, pois, dados o endividamento elevado, as taxas de juros ainda muito altas, a queda no nível de renda e a precariedade dos empregos, não se tem uma clara noção dos índices de inadimplência para o próximo ano – sobretudo nos primeiros meses, época de muitas obrigações tributárias, outras associadas ao calendário escolar, além das próprias férias e viagens – que poderão provocar alguma desestabilização no comércio e, por extensão, na indústria. De toda a maneira, a retomada consistente do crescimento – e não apenas eventuais bolhas de consumo – dependerá essencialmente das expectativas e da disposição dos agentes econômicos de promoverem novos investimentos, expandirem sua capacidade de produção, iniciando um novo ciclo virtuoso. Dificilmente o início e consolidação desse processo poderão ocorrer sem uma firme e decidida atuação do Estado, sem a remoção dos gargalos da infraestrutura. Como a atividade econômica é altamente influenciada pela confiança e pelas expectativas dos agentes, será necessário que os investidores acreditem nas perspectivas favoráveis para 2004 e anos seguintes, e estejam dispostos a correr os riscos envolvidos em projetos de médio e longo prazo. Ninguém fará investimentos adicionais ou disponibilizará uma maior oferta de bens e serviços se não tiver a convicção de que haverá demanda para os seus produtos. As exportações, por si sós, além de conferirem um grau de vulnerabilidade muito maior ao nível de atividade econômica, não têm sido capazes da garantir a propagação de seus efeitos; a própria pauta de exportações brasileira não nos assegura um crescimento equilibrado nem uma melhor distribuição de renda (antes, pelo contrário, pois o benefício das divisas obtidas apresentam seguidamente um custo elevado para os consumidores internos, para o conjunto da população, em particular a mais pobre). Este é, em linhas gerais, o quadro atual, sem levar em conta outros fatores de origem externa, que sempre podem contribuir para confirmar ou desmentir, reforçar ou amenizar os bons ou maus fluidos. Resta “torcer” para que os mais otimistas estejam com a razão. Nosso Conselho espera continuar com todos os seus associados e colaboradores em 2004, participando de todos os eventos que tenham relevância para a compreensão da realidade e para um debate mais franco e imparcial sobre a situação brasileira. Independentemente dos resultados da economia, um Ano Novo muito feliz a todos.

Diretor Responsável: Roberto Bocaccio Piscitelli Conselho Editorial: Roberto Bocaccio Piscitelli, Carlito Roberto Zanetti, Dércio Garcia Munhoz, José Luiz Pagnussat, Mário Sérgio Fernandez Sallorenzo e Mônica Beraldo Fabrício da Silva Jornalista Responsável: Mariane Andrade - Reg. DRT/MS 127 Redação: Mariane Andrade Editoração Eletrônica: OM Loducca/Jornalismo (Tércio Caldas) (61) 425-1090 Impressão: Gráfica Ideal Tiragem: 4.000 Periodicidade: Trimestral As matérias assinadas por colaboradores não refletem, necessariamente, a posição das entidades. É permitida a reprodução total ou parcial dos artigos desta edição, desde que citada a fonte. CONSELHO REGIONAL DE ECONOMIA DA 11ª REGIÃO – DF Presidente: Roberto Bocaccio Piscitelli Vice-Presidente: Mônica Beraldo Fabrício da Silva Conselheiros Efetivos: Roberto Bocaccio Piscitelli, Mônica Beraldo Fabrício da Silva, José Luiz Pagnussat, Maurício Barata de Paula Pinto, Maria Cristina de Araújo, Humberto Vendelino Richter, André Luiz Ferro de Oliveira, Irma Cavalcante Sátiro e Guidborgongne Carneiro Nunes da Silva. Conselheiros Suplentes: Newton Ferreira da Silva Marques, Max Leno de Almeida, Evilásio da Silva Salvador, Jusçanio Umbelino de Souza, José Ribeiro Machado Neto, Francisco das Chagas Pereira, Ronalde Silva Lins, Miguel Rendy e Iliana Alves Canoff. Equipe do CORECON: Iraídes Godinho de Sales Ribeiro, Ismar Marques Teixeira, Michele Cantuária Soares, Jamildo Cezário Gomes e Angeilton Francisco Lima Faleiro. End.: SCS Qd. 04, Ed. Embaixador, Sala 202 CEP 70300-907 – Brasília –DF Tels: (061) 223-1429 / 223-0919 225-9242 / 226-1219 e 226-0906 Fax: (061) 322-1176 E-mail: corecondf@corecondf.org.br Site: www.corecondf.org.br Horário de Funcionamento: das 8:00 as 18:00 horas (sem intervalo)

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ENTREVISTA

Direitos e deveres do Judiciário A razão maior de nossa luta é a busca de um Judiciário soberano, agente de uma Justiça célere, acessível e efetiva . A frase acima resume os direitos e deveres do Poder Judiciário, na opinião do presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), Ministro Nilson Naves. Nesta entrevista, ele afirma a necessidade da reforma do Judiciário, em prol do aprimoramento institucional, aponta questões fundamentais para melhoria do sistema, critica a proposta de inspeção no Poder Judiciário e fala da relação entre a Justiça brasileira e o cidadão comum. Para o Ministro, é inegável que o Judiciário vem aprimorando-se dia a dia, a fim de tornar mais ágil a Justiça e efetivo o processo. Confira a entrevista.

Entrevista: Mariane Andrade Colaboração: Roberto Bocaccio Piscitelli

Conjuntura – O Brasil necessita de uma reforma do Poder Judiciário? Por que e de que tipo? Nilson Naves – Sim. Particularmente nós, do Superior Tribunal de Justiça, convocados a buscar soluções para os entraves que dificultam a realização da Justiça, temos batalhado, sem tréguas, em busca do aprimoramento institucional e mesmo da soberania perdida ao longo dos tempos, razão por que encaminhamos propostas ao Congresso para a almejada reforma, cujo debate se instaurou há mais de uma década e, entretanto, ainda continua sem conclusão. Aguardamos um fecho, sem mais demora, pois é inconcebível que se percam tantos anos de trabalho! Não poderia, aqui, listar todas as proposições, de indiscutível importância para a construção do JudiciRevista de conjuntura

ário com que sonhamos, nós e os jurisdicionados. Assim, atenho-me a fazer menção daquelas que representam a espinha dorsal do Projeto. Ponto cardeal da reforma é a purificação das competências constitucionais. Em face disso, enviamos propostas com a explicitação das tarefas atribuídas ao Supremo Tribunal Federal, restringindo sua competência à apreciação de recursos que tenham como fundamento matéria unicamente constitucional. Nesse passo, para que se purifique, de uma vez por todas, o sistema, o esperado é que se crie a Corte Constitucional. Ao lado disso, consta das proposições a criação de mecanismos de contenção de recursos. Por um lado, sugere-se incluir no texto constitucional, entre os pressupostos de admissibilidade do recurso especial, a repercussão geral de questão federal.

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Por outro lado, as proposições sugerem a adoção da súmula vinculante. Sem dúvida, a vinculação dos órgãos do Judiciário e da administração pública direta e indireta às decisões repetidas e de entendimento consolidado no Superior Tribunal de Justiça é um dos meios pelos quais se devem evitar, ainda no âmbito administrativo, a reiterada negação do direito do cidadão e o número excessivo de recursos protelatórios que abarrotam os tribunais e chegam às últimas instâncias, ajuizados pelos que confiam na demora. É de se reconhecer que a súmula tem o objetivo de contribuir para a observância dos princípios da segurança jurídica e da efetividade processual, bem como o de atacar a sobrecarga do Judiciário, motivo crônico da crise que inquieta a sociedade. Decerto, a medida investe contra a “indústria de recursos”, que, de modo indiscutível, dificulta a ação da Justiça, emperrando os passos do processo.

Ponto digno de realce, também, é o referente às ações civis públicas e às ajuizadas por entidades na defesa dos direitos de seus associados, representados ou substituídos. Na hipótese de a abrangência da lesão ultrapassar a jurisdição de diferentes Tribunais Regionais Federais, caberia ao Superior Tribunal de Justiça, ressalvada a competência da Justiça do Trabalho e da Eleitoral, definir a competência do foro e a extensão territorial da decisão. De tal maneira, evitar-se-iam a proliferação de demandas em diversos juízos e as conseqüentes medidas liminares sucessivas e contraditórias. Igualmente relevante é a adoção do título sentencial em lugar do precatório. Tal título – de livre circulação no mercado – seria emitido pelo juízo da execução, o que consagraria a eficiência do Judiciário quando impusesse ao Estado sentença condenatória em dinheiro. Seria essa uma maneira de se realizar a execução um pouco mais voltada para o interesse do credor e, ao mesmo tempo, de satisfazer o julgado sem demora. Propusemos a criação do Conselho Nacional de Justiça, composto apenas de magistrados com amplos poderes, no qual funcionem como provocadores o Procurador-Geral da República e o Presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados. À nova instituição competiria definir e fixar o plano de metas e promover a periódica avaliação do funcionamento do Judiciário no que concerne ao aumento da eficiência, à racionalização, ao incremento da produtividade e à maior eficácia do sistema, garan-

tindo mais segurança e mais celeridade. O Conselho Nacional desempenharia, inclusive, o papel de ouvidor, competente para receber reclamações e denúncias da população. Nessa mesma linha, insere-se a atribuição de poderes correicionais ao Conselho da Justiça Federal, fortalecendo-o como órgão central da Justiça Federal. Por último, é necessário que se torne a carreira mais atrativa, a fim de que haja condições de melhor recrutamento. Faz parte de nossas preocupações, portanto, o suprimento de recursos financeiros para que nosso Poder se livre da condição de suplicante perante os outros dois. Conjuntura – De que maneira o noticiário e a divulgação de pesquisas sobre o Judiciário têm afetado a imagem que as pessoas fazem desse Poder? Na sua opinião, há manipulação a respeito do assunto? Nilson Naves – Se há manipulação, não sei dizer. Não acredito que tais pesquisas afetem o Judiciário ou representem a perda de confiança na Justiça. Prova disso é a crescente procura pelos juizados especiais. Por exemplo, os instituídos, há tão pouco tempo, no âmbito federal já receberam mais de 800 mil ações. É claro que o Judiciário que temos ainda não é o dos nossos sonhos; reconhecemos suas falhas – principalmente a lentidão –, mas é inegável que nosso Poder vem-se aprimorando dia-adia, a fim de tornar mais ágil a Justiça e efetivo o processo. Conjuntura – A Justiça brasileira está ao alcance do cida-

É inegável$queout/dez nosso Poder vem se aprimorando de 2003

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dão comum? O que se poderia fazer para ampliar e tornar mais efetivo esse direito? Nilson Naves – A razão maior de nossa luta é a busca de um Judiciário soberano, agente de uma justiça célere, acessível e efetiva. É claro que um empreendimento desse porte não surge de repente; ele faz parte da incansável atuação criativa da magistratura nacional, na busca de ver aprovadas propostas de aperfeiçoamento das normas, bem como, no plano interno, no intuito de promover mudanças na celeridade processual. Exemplo evidente disso foi o projeto de estender os juizados especiais à Justiça Federal para racionalizar os trabalhos, tornando-a mais eficiente e mais rápida. Com êxito, desde janeiro de 2002, estão em pleno funcionamento no âmbito federal. Isso significa que jurisdicionados, aos milhares, estão tendo seus litígios solucionados gratuitamente e com presteza até a fase recursal, bem o inverso do que antes ocorria, quando as causas se arrastavam por anos a fio, fazendo tardia e ineficaz a Justiça. Já é possível avaliar o acerto da medida de instalação desses órgãos julgadores, por sua profícua atividade e incalculável benefício proporcionado especialmente aos componentes da base da pirâmide social. Dados estatísticos do Conselho da Justiça Federal dão conta de que, desde a implantação até agosto de 2003, foram julgados mais de 355 mil feitos, dos quais mais de 2 mil tramitaram em Vitória (ES). Conforme os juizados federais bem o demonstram, é possível descomplicar e desburocratizar a prestação jurisdicional. Regidos

pelos princípios da oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade, contribuem para desafogar as Varas tradicionais e os Tribunais Regionais Federais, e, por conseguinte, o Superior Tribunal de Justiça. Em suma, eles vieram para ficar e fazer a diferença. Conjuntura – O envolvimento de juízes em suspeitas de corrupção, como aconteceu recentemente no Distrito Federal e em alguns Estados, mancham o nome do Poder Judiciário perante a sociedade? Nilson Naves – A respeito das denúncias contra magistrados, ressalto que os fatos estão sendo apurados, porque é interesse do próprio Judiciário que tudo seja esclarecido. Conjuntura – O que significa um controle externo do Judiciário? Como isso funciona em outros países? Nilson Naves – Faço questão de frisar que sou radicalmente contra o chamado controle externo, mas inscrevo-me entre aqueles que entendem não ser o controle um mal; antes, é um bem. Se o controle é necessário, impõe-se que tal se faça internamente. Ora, se três são os Poderes constitucionais, independentes e harmônicos entre si, não se admite que o controle do Judiciário tenha qualquer aspecto externo. Como constantes em nossas propostas, sou favorável à existência de um Conselho Nacional de Justiça, composto, exclusivamente, de membros do Judiciário, e, ao contrário de falácias divulgadas por aí, defendo a idéia de que, perante esse

Faço questão de frisar que sou radicalmente contra o chamado controle externo. Se o controle é necessário, impõe-se que tal se faça internamente .

Conselho, funcionem o Procurador-Geral da República e o Presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil como órgãos provocadores. Historicamente, o primeiro Conselho foi criado na França, em 1946, e reformado em 1958, com o objetivo de garantir a independência da magistratura. Malgrado lá os juízes não disporem, de modo integral, dos dons próprios de um Poder, há tentati-

dia a dia, a fim de tornarRevista mais ágil a Justiça e efetivo o processo . de conjuntura out/dez de 2003 %


Sou favorável à adoção da súmula vinculante. Caso essa proposta não seja aprovada, pelo menos que se adote a súmula impeditiva .

vas no sentido de se dar à Justiça francesa maior independência. Isso se tentou, em data recente, com propostas de alteração da composição do Conselho Superior, “dans le processus d’émancipation de la justice par rapport au pouvoir politique” (Le Monde, 20.1.00, pág. 7). Na Itália, existe pretensão de que o controle se faça por Conselho composto apenas de magistrados: “Seriam escolhidos pelos méritos que demonstraram como juízes e procuradores” (Jornal do Brasil, 21.5.00, pág. 19). Hoje, o Conselho Superior da Magistratura francês é dirigido pelo Presidente da República e pelo Ministro da Justiça, respectivamente presidente e vice-presidente do Órgão, e é composto de nove membros: cinco magistrados de carreira, um membro do Ministério Público, um conselheiro nomeado pelo Conselho de Estado e três proeminentes figuras que não são membros do Parlamento ou juízes, respectivamente indicados pelo Presidente da República, Presidente da Assembléia Nacional e Presidente do Senado. Como a missão é garantir a independência da autoridade judicial, o Conselho tem, por finalidade precípua, atuar como um órgão de disciplina dos magistrados de carreira, hipótese

em que o Presidente da República e o Ministro da Justiça são substituídos pelo Primeiro Presidente da Corte de Cassação. Também possui as atribuições concernentes às nomeações, transferências e remoções de magistrados e promotores públicos. Conjuntura – A comissária dos Direitos Humanos da ONU, Asma Jahangir, disse que proporia à ONU uma inspeção no Judiciário brasileiro, idéia que teve apoio do presidente Lula e do Ministro Márcio Thomaz Bastos. O que o senhor acha disso? A proposta e o apoio comprometem a atuação da Justiça no Brasil e o relacionamento entre os Poderes? Nilson Naves – Tal atitude é descabida e configura ingerência no Poder Judiciário, o qual reconhece suas falhas, mas, na medida do possível, vem encontrando soluções para tornar-se mais ágil e célere, enquanto espera a aprovação da tão aguardada reforma que tramita no Congresso Nacional há mais de dez anos e que, constantemente, é objeto de mudanças e inovações protelatórias. Estranho o fato de o Poder Executivo, ciente do princípio da soberania nacional e da autonomia dos Poderes, não se ter manifestado contrariamente à pretensão da representante da ONU. Essa atitude revela um oportunismo do Governo, que, valendo-se de voz estranha ao País, ataca, mais uma vez, um dos seus Poderes constituídos. Conjuntura – A respeito da súmula vinculante, acredita-se que ela irá desafogar e agilizar a Justiça brasileira. Embora muitos juristas apóiem sua efetivação, há especi-

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alistas e instituições que são contrários, como a OAB. Qual a opinião do senhor sobre este assunto? Nilson Naves – É necessário que Tribunais como o Supremo e os Superiores tenham instrumentos eficazes para zelar melhor pela guarda do texto constitucional e dos textos infraconstitucionais. Sou favorável à adoção da súmula vinculante. Caso essa proposta não seja aprovada, pelo menos que se adote a súmula impeditiva, principalmente nas causas previdenciárias, que englobam milhares de processos. Conjuntura – Qual é a opinião do senhor sobre a vitaliciedade e sobre a indicação e nomeação dos Ministros e de outras autoridades do Judiciário pelo Poder Executivo? Nilson Naves – A magistratura desfruta de algumas garantias constitucionais, a saber: a vitaliciedade, a inamovibilidade e a irredutibilidade, todas pertencentes, como sabemos, mais à sociedade do que aos próprios juízes, pois figuram entre os principais sustentáculos do próprio Estado democrático de direito. Sem essas prerrogativas, os juízes se tornam capengas, como uma cadeira à qual falte um dos pés. Há algo que precisamos entender: o que nós estamos querendo é somente manter a dignidade do Poder Judiciário. Quanto à indicação e nomeação dos Ministros e de outras autoridades do Judiciário pelo Executivo, entendo tal prática como disciplinadora do relacionamento entre as funções do Estado, mecanismo inserido no sistema de “freios e contrapesos”. É uma maneira de um Poder controlar o outro sem sobrepujá-lo.

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Economia

de Brasília

Assessoria e consultoria econômica; projetos; avaliações; análises de risco; oportunidades de negócio. " CORECON/DF Conselho Regional de Economia do Distrito Federal

Entidades associadas:

" IEL/DF Instituto Euvaldo Lodi " FIBRA Federação das Indústrias de Brasília

" SINDECON/DF Sindicato dos Economistas do Distrito Federal

" UnB Universidade de Brasília

" ACDF Associação Comercial do Distrito Federal

" UCB Universidade Católica de Brasília

" DIEESE/DF Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Sócio-Econômicos

" UPIS União Pioneira de Integração Social " AEUDF Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal

" FECOMÉRCIO Federação do Comércio do Distrito Federal

" CESUBRA Centro de Ensino Superior de Brasília

" CUT/DF Central Única dos Trabalhadores do DF

" UniCEUB Centro Universitário de Brasília

" SEBRAE/DF Serviço de Apoio à Média e Pequena Empresa do Distrito Federal

" Faculdade Euro-Americana Instituto Brasiliense de Estudos da Economia Regional

IBRASE

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CORAL PLAZA HOTEL Vantagens – Desconto: 40% sobre o valor da diária, com apresentação da Carteira de Identidade Profissional. Rua Felipe Schmidt, 1320 – Florianópolis/SC. Fone: (49) 225.6002

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Mais informações no site: www.corecondf.org.br


A R T I G O

Spread bancário no Brasil: desafios e dilemas Giuliano Contento de Oliveira e Carlos Eduardo Carvalho* A elevada diferença entre os custos de captação dos bancos e os juros cobrados nos empréstimos no Brasil, conhecida como spread bancário, agrava ainda mais os efeitos nocivos dos altos níveis definidos pelo Banco Central para os juros primários. O tamanho do spread não é um problema novo em nosso País, e há alguns anos se tornou objeto de preocupações explícitas, com a realização de um número crescente de pesquisas e estudos a respeito, e a criação de um programa do BCB para a análise e a adoção de medidas para atenuar o problema. Este artigo discute os fatores apontados como determinantes para que os bancos no Brasil pratiquem altas margens em suas operações de empréstimos. O artigo está dividido em quatro seções, além desta introdução e dos comentários finais: na primeira, resume-se um referencial teórico para analisar o comportamento dos bancos; na segunda e terceira partes são analisadas a trajetória e composição do spread bancário no Brasil e os desafios para a redução do custo do crédito no País; na quarta, por fim, são feitos breves comentários sobre as medidas do governo na área de microfinanças, no que

se refere à possibilidade de que possa atenuar os problemas causados pelos altos spreads. 1. O comportamento dos bancos em economias monetárias Na abordagem pós-keynesiana, os bancos atuam em uma economia monetária de produção, em que a moeda cumpre também a função de reserva de valor, de vez que possui o atributo de proteger o seu possuidor das incertezas que o futuro lhe reserva. Embora a moeda não gere nenhum rendimento ao seu detentor, possui um alto prêmio de liquidez, ou seja, a conveniência ou segurança oferecida pela liquidez ao seu detentor (Keynes, 1971; Keynes, 1985). Daí a importância dos bancos, num tipo de economia onde a moeda significa muito mais do que um simples meio de troca. Como estas instituições são capazes de emitir obrigações contra si próprias, expandindo meios de pagamentos mediante a criação de moeda escritural, elas irão exercer um papel muito importante numa economia monetária. A moeda exerce o papel de vínculo entre os circuitos industrial e financeiro do sistema. No primeiro circuito, a moeda irá desempenhar a Revista de conjuntura

função meio de troca, prestando-se a girar bens e serviços, ao passo que no segundo ela irá constituir um ativo (Keynes, 1985). Na perspectiva da teoria da preferência por liquidez, o banco poderá compor o seu portfólio com ativos que combinam diversos graus de liquidez e rentabilidade. A decisão destas instituições será tomada num ambiente de incerteza não-probabilística e irá refletir as suas expectativas em relação ao futuro. O grau de preferência por liquidez dos bancos, em dado momento, será elemento fundamental para a trajetória do ciclo de negócios da economia. Na abordagem pós-keynesiana, o banco passa a ser concebido como um agente que possui o objetivo de apropriar e valorizar riqueza sob a forma monetária, e que irá criar crédito apenas se esta estratégia lhe for rentável. Num contexto de baixa incerteza em relação ao futuro e de inexistência de ativos menos arriscados que permitam o alcance da rentabilidade esperada, os bancos irão optar por um portfólio que releve a rentabilidade ante a liquidez, havendo maior estímulo para aplicar recursos em operações de crédito. Por outro lado, caso as suas expectativas forem pessimistas, será preferida

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uma classe de ativos que privilegie a liquidez, como moeda e títulos de curto prazo, ao invés de rendimento monetário. Levando em consideração a teoria da preferência por liquidez desenvolvida por Keynes (1985) e Minsky (1975; 1986), entre outros autores, a demanda por crédito será satisfeita apenas se o banqueiro assim desejar, se as suas expectativas em relação à capacidade de repagamento futuro do empréstimo e à manutenção e execução do valor do colateral forem otimistas e se a natureza de suas obrigações emitidas assim permitir. Tão importante quanto a composição do portfólio do banco é a forma pela qual a compra dos ativos é financiada. Numa economia monetária da produção, a decisão estratégica de balanço do banco será procedida com base na escolha entre quantos e quais tipos de ativos comprar e quanto e quais tipos de obrigações emitir, escolha esta que será orientada de acordo com a percepção de risco e as oportunidades de lucro visualizadas pelos bancos (Carvalho, F., 1999).

Portanto, a decisão estratégica de balanço do banco conformará tanto o lado de seus direitos, quanto o lado de suas obrigações. Esta decisão se dará num contexto de incerteza e irá refletir o grau de preferência por liquidez destas instituições em dado momento. Este último, por sua vez, irá traduzir as expectativas destas instituições em relação a fatores de ordens objetivas e subjetivas. 2. Trajetória e composição do spread bancário no Brasil (1994-2003) No período da alta inflação, os bancos praticavam políticas operacionais que privilegiavam a apropriação de receitas proporcionadas pela desvalorização da moeda doméstica e pela remuneração dos depósitos em níveis inferiores ao aumento do nível geral de preços. Há fortes indícios de que, naquele período, o diferencial cobrado por estas instituições entre as suas taxas de captação e aplicação de recursos, o denominado spread bancário, era extremamente alto. Isto porque a instabilidade de preços impunha a ne-

cessidade de incorporação de uma margem de segurança, nas taxas de juros cobradas nas operações de empréstimos, que protegesse estas instituições de movimentos imprevistos da inflação (Aronovich, 1994). Neste sentido, esperava-se que a estabilidade da moeda, ao abrir a possibilidade de efetivação de um cálculo econômico menos distorcido pelo risco inflacionário, faria com que os bancos estipulassem um diferencial substancialmente menor entre as suas taxas de captação e aplicação de recursos. Todavia, não foi o que se observou. O aumento acentuado das operações de crédito observado no período imediatamente após o Plano Real, uma alternativa lucrativa explorada pelos bancos para compensar a perda das receitas inflacionárias, se deu num contexto de alto spread bancário (Gráfico 1) e, a despeito da queda observada a partir de 1999, interrompida em meados de 2001, o diferencial entre as taxas de captação e aplicação de recursos praticado pelos bancos no Brasil permanece em patamar bastante elevado (Gráfico 2).

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150 140 130 120 110 100 90 80 70 60 50 40 30 20 10 0

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Gráfico 1 - Período de alto spread bancário


Os bancos cobravam em setembro último juros de 34% ao ano para pessoas jurídicas1 e de 70,7% a.a. para pessoas físicas2. Estas eram as

taxas médias. Boa parte das empresas paga sempre taxas superiores à média - naquele mês, nas operações prefixadas, o custo do capital de giro

era de 39,4% a.a. e o desconto de duplicatas, 48,5% a.a. Para as pessoas físicas, os juros do cheque especial eram de 152,2% a. a.

Gráfico 2 - Diferença entre as taxas de captação e aplicação de recursos

Spread - P. jurídica

Os bancos emprestam a estas taxas recursos pelos quais pagam aos depositantes, em média, juros inferiores à taxa básica do BC, naquele momento em 20% a.a.. Essa diferença substancial entre o custo da captação de recursos e os juros co-

Período Spread - geral

brados dos tomadores de crédito, conhecida como spread bancário, explica boa parte dos seus altos lucros3, já que a maior parte de suas despesas administrativas e de pessoal é coberta pelas tarifas cobradas dos clientes pelos diferentes serviços.

jul-03 -

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jul-03 -

jan-02 -

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Spread em % ao ano

110 100 90 80 70 60 50 40 30 20 10

Spread - P. física

O alto custo do dinheiro é um obstáculo importante para a expansão do crédito, representa fator de concentração da renda e da riqueza, e influi negativamente sobre o nível de investimento da economia. O Gráfico 3 mostra a relação inversa existente entre operações de crédito e spread bancário.

75 -

280

70 -

260

65 -

240

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45 40 -

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30 6 7 7 2 0 1 1 2 9 0 8 9 8 7 3 1 8 2 0 9 t-9 v-9 n-9 ut-9 v-9 n-9 ut-9 v-9 n-9 ut-9 v-0 n-0 ut-0 v-0 n-0 ut-0 v-0 n-0 ut-0 v-0 fe fe fe fe fe fe fe ou ju o ju o ju o ju o ju ju o o Spread

Op. Crédito (R$ bilhões)

Spread (% ao ano)

Gráfico 3 - Relação inversa entre operações de crédito e spread bancário

120

Op. Crédito

1 Taxa consolidada, a qual inclui operações pactuadas a taxas prefixadas, pós-fixadas referenciadas em câmbio e flutuantes referenciadas em CDI. 2 Taxa praticada nas operações prefixadas. 3 Como será discutido mais adiante, os títulos públicos também são muito importantes para explicação dos altos lucros destas instituições.

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A composição do spread praticado pelos bancos nos últimos anos (Gráfico 4) é elemento importante para a compreensão de seus determinantes. A parcela mais expressiva corresponde à rentabilidade desejada por estas instituições. Na posição de agosto de 2002, por exemplo, apenas 43% do spread total co-

briam custos incorridos: 21% para impostos diretos, 8% para impostos indiretos e 14% para despesas administrativas. Os restantes 57% destinavam-se à margem de lucro estipulada pelos bancos: 40% para os lucros e 17% para cobrir a inadimplência projetada (e não a inadimplência verificada, registre-se).

O fato de mais da metade do spread bancário corresponder a duas variáveis controladas pelos bancos enfraquece o argumento que atribui à alta carga de impostos o elevado custo do crédito no Brasil e reforça as teses que destacam o elevado poder de mercado dos bancos-líderes.

Gráfico 4 - Composição do spread de 1999 a 2002 4,0

3,58%

3,5

3,21%

Spread (a.m.)

3,0

2,73%

2,52%

2,46%

2,77%

2,65%

2,63%

ago/01

fev/02

2,5 2,0 1,5 1,0 0,5 0,0 fev/99

Desp. Indimplência

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Desp. ADM

3. Desafios e dilemas para a redução do spread bancário O spread cobrado pelos bancos em suas operações de empréstimos é influenciado por três tipos de fatores, a saber: microeconômico, macroeconômico e institucional (Fuentes e Basch, 2000). No caso brasileiro, as principais ações têm sido direcionadas sobretudo ao aperfeiçoamento da estrutura institucional, cujo objetivo é tornar o processo de exigibilidade de garantias mais eficaz e diminuir as assimetrias de informações envolvidas no processo de intermediação financeira.

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fev/01

Período Imp. Ind. + FGC

Imp. Diretos

Pesquisa recente do Banco Mundial (World Bank, 2003) sobre 130 países calculou um indicador de direitos dos credores, que leva em consideração fatores como preferência em falências e capacidade de execução das garantias colaterais. Numa escala de 0 a 4, o Brasil fica no nível 1, na 84a posição entre os 130 países pesquisados, enquanto países em desenvolvimento com altos volumes de crédito em relação ao PIB, como Hong Kong, exibem índices maiores. Deve ser tomada com muita cautela, contudo, a tese de que

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Margem Líq. do Banco

países com baixos volumes de crédito deveriam concentrar seus esforços em garantir direitos dos credores, defendida pelo Banco Mundial e pela equipe econômica do atual governo. A economia uruguaia, por exemplo, embora apresente um índice de direito do credor de 3, possui o segundo maior spread bancário do mundo, atrás apenas do Brasil. Exemplos como este mostram que os direitos dos credores não são suficientes para explicar os níveis do spread bancário. Outro contra-exemplo interessante surgiu meses atrás no mercado de automóveis brasileiro.


Os spreads bem mais reduzidos neste segmento foram apontados muitas vezes como resultado do instituto da alienação fiduciária, que mantém o bem financiado em nome do credor até a quitação, o que facilita a execução a qualquer tempo. Críticos da tese do Banco Mundial discordam desta interpretação, enfatizando que o principal fator no caso do mercado de automóveis, além da forte presença dos bancos de propriedade das montadoras de veículos, é a grande liquidez do mercado de usados, o que amplia a possibilidade de revenda do bem tomado do devedor inadimplente. Com a forte crise do setor em meados deste ano, os próprios bancos passaram a evitar a execução e ampliaram sobremaneira as possibilidades de renegociação das dívidas (Folha de S. Paulo, 24/08/2003, p. B1). As medidas implementadas até agora pelo Banco Central vão em direção à tese defendida pelo Banco Mundial. Entre elas, destaca-se a criação de uma Central de Risco de Crédito, que contemple informações positivas sobre os tomadores de recursos. Já no que diz respeito às medidas a serem executadas, sobressai o projeto da Lei de Falências, em trâmite no Congresso Nacional, cujo objetivo é melhorar o sistema judiciário de falências e de recuperação de empresas, aumentando a preferência dos credores em situações de insolvência. No que diz respeito ao fator microeconômico, as melhorias em termos de custo do dinheiro podem ser consideradas tímidas. Como mostra o estudo de Carvalho, C. et al. (2002), a entrada de

bancos estrangeiros ocorrida na esteira do processo de reestruturação do sistema bancário doméstico, iniciado a partir de 1995, pouco se fez sentir em termos de diminuição dos elevados spreads cobrados por estas instituições. Não menos importante, este processo implicou forte concentração do setor (Rocha, 2001). Os efeitos da concentração bancária sobre o custo do dinheiro não são consensuais. Estudos realizados pelo próprio Banco Central apontam em direções opostas. Mas em vista da elevada margem líquida incorporada ao spread praticado por estas instituições, pode-se afirmar que medidas que induzam a concorrência no setor certamente irão exercer impactos positivos em termos de redução das taxas de juros cobradas por estas instituições em suas operações de crédito. Quanto ao fator macroeconômico, merecem destaque a elevada necessidade de financiamento do setor público e as altas taxas de juros praticadas e consideradas necessárias pelo governo brasileiro. A alta rentabilidade oferecida pelos títulos pú-

blico tornam estes papéis muito atrativos para os bancos, pois permitem uma posição líquida e lucrativa ao mesmo tempo. Isto significa que os altos juros praticados pelo BC permitem que a preferência por liquidez dos bancos no Brasil seja facilmente atendida pelas aplicações em títulos da dívida pública, ativos que combinam liquidez quase total, segurança e alta rentabilidade. Para os bancos no Brasil as operações de crédito possuem um custo de oportunidade considerável, ou seja, representam “desvio” de recursos que poderiam ser aplicados com a rentabilidade e a segurança oferecidas pelos títulos públicos. Reduzir o crédito dá lucro em nosso País. Embora paradoxal à primeira vista, no Brasil preferir ativos líquidos é uma opção altamente lucrativa para os bancos. O Gráfico 5 apresenta o forte grau de correlação (89,04%) entre a taxa de juros básica da economia e o spread praticado pelos bancos no Brasil. Uma taxa básica alta implica um spread bancário elevado não apenas pelo maior risco de ina-

As medidas implementadas até agora pelo Banco Central vão em direção à tese defendida pelo Banco Mundial. Entre elas, destaca-se a criação de uma Central de Risco de Crédito . Revista de conjuntura

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dimplência envolvido nas operações de empréstimos, mas também pelo alto retorno oferecido pelos títulos públicos, a principal variável utilizada pelos bancos

para a estipulação do diferencial cobrado entre as suas taxas de captação e aplicação de recursos. A queda da taxa básica, além de reduzir o custo de cap-

tação de recursos para os bancos, tende a pressionar para baixo o spread e, por conseguinte, fazer com que o custo do dinheiro seja reduzido.

Spread mensal (em %)

Gráfico 5 - Correlação entre a taxa de juros e o spread 8,0 7,5 7,0 6,5 6,0 5,5 5,0 4,5 4,0 3,5 3,0 2,5 2,0 0,75 1,00 1,25 1,50

1,75

2,00 2,25

2,50

2,75

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4,00 4,25

4,50

Selic acumulada no mês (em %)

4. Microfinanças e spread bancário: os limites do (im)possível O conjunto de medidas anunciado pelo governo na área de microfinanças foi apresentado, meses atrás, como elemento de grande relevo para viabilizar a redução do custo do crédito para as pessoas físicas e para os micro e pequenos empreendimentos e empresas. Embora de grande relevo em termos sociais, é provável que seu efeito seja muito reduzido em termos do custo médio do crédito, com a possibilidade de que possa inclusive induzir o aumento do spread pelos bancos nas operações “livres”, como forma de compensar o custo dos recursos agora sob alocação compulsória. As principais críticas ao conjunto de medidas para o desenvolvimento do crédito às pessoas de

baixa renda e aos pequenos empreendimentos apontaram para sua concentração no que se chama de microfinanças. Aí se incluem as operações de valor muito reduzido, na faixa de R$ 200 até R$ 1 mil, ou de até R$ 5 mil, para alguns, ao lado de instrumentos especiais, como as contas bancárias simplificadas e os fundos de interesse social. Os recursos mobilizados devem somar cerca de R$ 3 bilhões, metade alocada por fundos públicos e pelo Tesouro, e metade proveniente dos bancos privados, além das linhas especiais dos bancos federais. Do ponto de vista dos beneficiados, os novos instrumentos podem significar a diferença entre a miséria e a pobreza, ou entre a pobreza absoluta e alguma possibilidade de melhoria sustentada, ou simplesmente o fim da drenagem de seus recursos para banqueiros e agiotas.

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Do ponto de vista da economia em conjunto, as medidas terão impacto muito reduzido. Os recursos mobilizados não chegam a 1% do volume de crédito do sistema financeiro e não têm como interferir no quadro de restrições dos últimos meses. Os críticos do governo destacaram que haveria efeitos potenciais muito mais amplos com uma redução mais ousada dos juros e medidas mais diretas para reduzir os spreads cobrados pelos bancos. No caso das cooperativas de crédito, instrumento com maior capacidade de mobilizar recursos do setor privado e de concorrer de fato com os bancos, o relaxamento das restrições foi bastante cuidadoso. As cooperativas com acesso livre só poderão ser criadas em municípios de até 100 mil habitantes, nos quais os bancos privados não têm interesse. Para “áreas” de até 750 mil habitantes há outras possibilida-

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des, mas todas submetidas a severas restrições e enquadramentos, de modo a reduzir os riscos de inadimplência e de malversação. Os bancos deverão aplicar compulsoriamente 2% dos seus depósitos a vista, valor reduzido e que pode cair ainda mais com as práticas de transferir sistematicamente os saldos das contas correntes para aplicações remuneradas, muitas vezes sem consentimento formal do cliente. As iniciativas dos bancos federais, algumas já em andamento, se concentram em áreas hoje pouco exploradas pelos bancos privados de rede, mas de grande expansão potencial quando a economia voltar a crescer. Trata-se efetivamente de medidas importantes para melhorar as condições de pobreza e promover

a inclusão social. Não se deve esperar delas a redução da pobreza ou do elevado desemprego, estimulado, entre outros fatores, pelos altos juros praticados pelo Banco Central e pelos bancos privados. 5. Alguns comentários finais O exame dos dados disponíveis mostra a presença de dois elementos decisivos na formação dos elevados spreads praticados pelos bancos no Brasil. Um deles é a alta remuneração oferecida pelos títulos públicos, alternativa de aplicação que combina alta rentabilidade e elevada liquidez. Com isto, os bancos dispõem sempre de uma aplicação muito atraente diante da alternativa ampliar as operações de crédito, em que a rentabilidade é bem mais alta, mas

os riscos também o são. Outro elemento, menos destacado no debate econômico brasileiro e menos ainda na grande imprensa, é o elevado poder de mercado dos bancos, expresso no forte peso de elementos sob seu controle na composição do spread, a margem de lucro desejada e a provisão para inadimplência. O forte peso destes dois fatores mostra que os bancos conseguem administrar o preço do crédito para defender a margem de lucro desejada. Frente a estes elementos, perdem força os argumentos que apontam como determinantes básicos a chamada “cunha fiscal” e as restrições legais aos direitos dos credores, fatores sobre os quais se têm concentrado a discussão pública e as iniciativas do Banco Central.

Bibliografia ARONOVICH, Selmo. Uma nota sobre os efeitos da inflação e do nível de atividade sobre o spread bancário. Revista Brasileira de Economia. São Paulo, 48 (1), janeiro/março, 1994. pp. 125-140. CARVALHO, Ferando J. Cardim de. On banks’ liquidity preference, in Paul Davidson; Jean Kregel (eds.). Full Employment and price stability in a global economy. Cheltenham: Edward Elgar, 1999. CARVALHO, Carlos Eduardo, STUDART, Rogério & ALVES JR., Antônio José. Desnacionalização do setor bancário e financiamento das empresas: a experiência brasileira recente. Texto para Discussão IPEA. N 882. Maio 2002. http://www.ipea.gov.br. FUENTES, Rodrigo & BASCH, Miguel. Macroeconomic influences on bank spreads in Chile, 1990-95, in: Philip Brock, Liliana Rojas-Suárez (Editors). Why so High? understanding interest rate spreads in Latin America. Washington: Inter-American Development Bank, 2000. KEYNES, J. M. A treatise on money: the pure theory of money, in The collected writings of John Maynard Keynes. Cambridge: Great Britain at the University Press, 1971. (1st ed. 1930). ____________. A teoria geral do emprego, do juro e da moeda. 3ª edição. Trad. Rolf Kuntz. São Paulo, Nova Cultural, 1985 (Os economistas). MINSKY, Hyman P. John Maynard Keynes. New York: Columbia Universit Press. 1975. ____________. Stabilizing an unstable economy. New Haven, Yale University Press, 1986. ROCHA, Fernando Alberto Sampaio. Evolução da concentração bancária no Brasil (1994-2000). Notas Técnicas do Banco Central do Brasil. N 11. Novembro 2001. http://www.bcb.gov.br.

* Giuliano Contento de Oliveira Economista, mestrando no Programa de Estudos Pós-Graduados em Economia Política da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP. * Carlos Eduardo Carvalho Economista e Professor da PUC-SP. Revista de conjuntura

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Brasil. Financiamento Internacional Das linhas oficiais do pós-guerra à armadilha dos capitais especulativos (Série Textos Didáticos de Economia - Economia Brasileira) Dércio Garcia Munhoz* 1. Introdução Desde os primeiros anos do pós-guerra, quando foram lançadas as bases da reorganização da economia mundial para os tempos de paz, com vistas à revitalização comercial que garantisse a recuperação econômica, foram logo definidos instrumentos de natureza financeira, com instituições internacionais especialmente criadas para ajudar na tarefa. Predominaram até princípios dos anos 60, no financiamento internacional, as fontes oficiais, com destinação específica dos recursos, e geralmente com a imposição de contrapartidas financeiras ou de administração econômica, especialmente aos países menos desenvolvidos que pretendessem ter acesso aos recursos. Uma segunda fase inicia-se na primeira metade da década de 60, com o aumento da liquidez bancária especialmente na Europa, e se explica em parte pela expansão das grandes empresas americanas no continente euro-

peu, gerenciando encaixes volumosos que necessitavam de um porto seguro, e ainda pelos gastos e os déficits comerciais americanos ligados à guerra do Vietnã. O fato é que então se presenciou o surgimento de um novo tipo de operações bancárias – inicialmente na Europa -, com a banca privada recebendo depósitos em dólares, e também fazendo empréstimos na moeda americana, em operações não subordinadas a regras internas de política monetária, e nem a restrições de caráter supranacional de entidades como o Fundo Monetário Internacional. Foi o mercado de Eurodólares – que, depois, operando com diferentes moedas fortes, se transformaria no Euromoedas. O Euromoedas registrou rapidamente uma grande expansão – especialmente com o “boom” do comércio internacional iniciado na segunda metade dos anos 60 –, e teria, posteriormente, papel primordial no financiamento dos desequilíbrios internacionais gerados a partir da quadruplicação

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dos preços do petróleo, em outubro de 1973. Mas não revelaria fôlego suficiente para a empreitada quando, dado o acúmulo de dívidas por parte dos países em desenvolvimento aos quais os países ricos transferiram a conta do petróleo em todo o transcorrer nos anos 70, suspenderam abruptamente todas as operações com os devedores em setembro de 1982 , tanto de recursos novos como de simples recontratação, no que se denominaria de “crise do endividamento”. A partir daí, e com o Fundo Monetário Internacional assumindo por delegação americana o papel de xerife, os devedores, assinando sem alternativa acordos de ajuste externo com o FMI em janeiro e fevereiro de 1983, passariam o resto da década tentando com grandes sacrifícios reequilibrar suas contas externas, desenvolvendo paralelamente tratativas visando ao refinanciamento da dívida acumulada desde o final de 1973. Foi o momento de pagar a conta, uma conta empurrada às econo-

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mias mais frágeis. Conseqüentemente, no restante dos anos 80 não se poderia mais falar em financiamento internacional, pois ninguém financiava ninguém, em termos de empréstimos a países devedores, e a grande maioria deles se encontrava em situação de moratória de fato, declarada ou não. E as operações ainda disponíveis para tais nações estavam ligadas a financiamento de importações. Até princípios dos anos 90 muitos países conseguiram ou reequilibrar suas contas externas ou conter os novos déficits em níveis que pudessem ser compensados com o fluxo de investimentos diretos de empresas estrangeiras – recursos ingressados para a compra de empresas já em funcionamento, inclusive de bancos –, nas célebres pressões americanas e do FMI para a privatização de empresas estatais; ou, menos freqüente, em economias em crise, investimentos voltados para a criação de novas fábricas, de novos empreendimentos. O Brasil foi um dos poucos no rol dos grandes devedores que conseguiram ainda na metade dos anos 80 o reequilíbrio de suas contas externas, travando o aumento do endividamento, o que lhe daria condições excepcionalmente favoráveis, inclusive para a negociação da dívida acumulada no período 1974-1983. Renegociadas as dívidas externas, só então retornam novos

Inaugura-se na década de 90, um novo modelo de financiamento internacional, com o ingresso de recursos visando a bolsas de valores ou papéis privados e governamentais . fluxos de capitais para os antigos devedores. Mas agora não mais como empréstimos bancários, de prazos médios e longos – como nos anos 70 –, mas sim capitais predominantemente de curto prazo, ávidos por ganhos especulativos e, portanto, dotados de grande mobilidade. Inaugura-se, portanto, na década de 90, um novo “modelo” de financiamento internacional, com o ingresso de recursos visando a bolsas de valores ou papéis privados e governamentais. E, dentro de políticas neoliberais – na linha do Consenso de Washington 1–, atuando com plena liberdade de movimentação, e sem restrições internas, nos países receptores, sobre quando entrar e quando sair, como e onde aplicar. Nessa última etapa, os países “beneficiados” mostram-se frágeis diante do capital internacional, diante de instituições financeiras como o FMI, que presidem e apóiam o

saque que o capital especulativo provoca nos países emergentes, e ainda intervêm nas políticas nacionais, a fim de dar garantia de efetivo recebimento dos juros nas aplicações em papéis públicos, e da livre entrada e saída aos aplicadores. E tais países são eufemisticamente denominados de “carentes de capitais”, quando geralmente o são, ou são feitos, exatamente em função do grande volume de saídas de recursos remunerando o capital estrangeiro, nas remessas de juros e de lucros. 2. Financiamento Internacional para a Reativação do Comércio no Pós-2ª Guerra As dificuldades por que passara a economia mundial na primeira metade do século, quando o comércio internacional e o crescimento econômico enfrentaram barreiras intransponíveis, tais como a primeira guerra mundial -

1. O chamado Consenso de Washington designa um receituário de políticas econômicas de caráter liberal, prescritas para a crise latino-americana, centradas no objetivo de reduzir o papel do Estado na economia, discutidas em seminário realizado em Washington, em l989, no Institute for International Economics. Sobre o tema ver BRESSER PEREIRA (1991, p. 03-24)

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Os acontecimentos da primeira metade do século XX indicavam que a tarefa do pós-guerra ultrapassava a tarefa de reconstrução da economia internacional . 1914-18 - e a crise de 1919, traziam, para o pós-2a. guerra mundial apreensões e esperanças. Apreensões pelo risco de que as incertezas da crise mundial retornassem após terminado o conflito, e esperanças de que se pudesse reencontrar o caminho da expansão, e assim construir um novo mundo. Motivos havia para preocupações. As exportações mundiais no final dos anos 30 – em 1938, haviam recuado perto de 40,0% em relação aos valores alcançados em 1928, e se situavam em níveis próximos àqueles registrados em 1913. E a crise de 1929 havia atingido todo o mundo ocidental - Estados Unidos, Reino Unido e Europa Continental -, bem como as regiões periféricas, com a única exceção mais notável do Japão, que,

com pequeno avanço das vendas na década de 30, dentro de um mundo em recessão, conseguiria praticamente dobrar sua participação no comércio mundial 2. Os acontecimentos da primeira metade do século XX indicavam, portanto, que a tarefa do pós-guerra ultrapassava a tarefa de reconstrução da economia internacional. Muito mais, “terse-ia de refazer todo um sistema que a crise dos anos 30 destruíra de forma ainda mais implacável, porque era a própria estrutura econômica de cada nação que havia sido atingida” 3. Além da tarefa de reconstruir as economias internas de cada país, reparando os danos da guerra, outras questões teriam de ser consideradas. E para o novo mundo do pós-guerra dois aspectos surgiam como fundamentais

na formulação da estratégia da recuperação: “(a) o fato de que poucas nações, e fundamentalmente os Estados Unidos, chegavam ao final da conflagração com o parque industrial intacto, e a reconversão de suas economias que requereria um comércio mundial sem as restrições que naturalmente deveriam surgir de parte dos países enfraquecidos pela guerra; (b) as preocupações americanas de caráter geopolítico, envolvendo a Europa Ocidental, que recomendavam o fortalecimento econômico como meio de evitar eventual distanciamento, ou mesmo ruptura com os Estados Unidos, sob eventual influência soviética” 4. A recuperação das economias ocidentais no pós-guerra era vital para os Estados , por vários fatores: o desemprego dos anos 30 nos Estados Unidos só havia sido reduzido graças ao esforço de guerra; o orçamento militar americano tinha papel fundamental para a atividade econômica do país, e se deveria esperar um recuo natural de tais dispêndios governamentais após o fim da guerra. Seria inevitável, portanto, os Estados Unidos converterem sua estrutura produtiva de economia de guerra para economia de paz. Ora, a econo-

2. A participação japonesa nas exportações mundiais se elevou, entre 1928 e 1938, de 2,8% para 5,3%, com aumento de receitas da ordem de 20,0%; o Reino Unido, embora com uma queda de 23,0% nas exportações, também veria ampliada a sua participação nas exportações mundiais, de 10,7% para 13,1% no mesmo período, enquanto a participação americana, ainda que recuando pouco em termos relativos, de 15,6% para 15,o%, registrava uma perda próxima de 40,0% no valor das vendas, que se situariam em torno de US$3,0 bilhões. A posição da Europa Ocidental se manteve com aproximadamente 30,4% - o que significava queda pouco superior a 20,0% nas receitas de exportação, e o resto do mundo retrocedeu de 40,7% para 35,9% a sua participação no comércio mundial. Ver Root (1973), p. 26. 3. Ver Munhoz (2001b), p. 03. 4. Itens transcritos de Munhoz (2001b), p. 05.

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mia americana dependeria, no pós-guerra, acima de qualquer coisa da vitalidade das economias européias, sem o que dificilmente se conseguiria impedir o retorno dos problemas enfrentados pelo país nos anos 30 – depressão e desemprego. Sem contar que uma nova crise econômica encontraria o mundo em um processo de polarização política, outra razão para uma atenção especial para com os países da Europa Ocidental. As medidas traçadas para o pós-guerra, visando a que as economias européias não se fechassem por incapacidade de gerar divisas com exportações, conseguiram fazer com que as importações da região triplicassem em 1946, em relação a 1938, e crescessem outros 50,0% de 1946 para 1947 - Tabela I, registrando paralelamente um déficit comercial de US$ 12,5 bilhões apenas nos dois primeiros anos após o término da guerra, que chegaria a US$ 24,0 milhões no qüinqüênio 1946-50; e destes, três quartos correspondiam a déficits no comércio com os Estados Unidos5.

Tais resultados evidenciam que a estratégia montada para evitar restrições generalizadas no comércio mundial no pós-guerra, dada a incapacidade das grandes economias em restabelecer mais rapidamente a sua capacidade produtiva e suas exportações, teve sucesso, permitindo aos Estados Unidos manter baixos níveis de desemprego até o final dos anos 40, na fase mais delicada da reconversão industrial. 2.1. As decisões de Bretton Woods As preocupações dos chamados aliados – e especialmente dos Estados Unidos, com a reorganização da economia e do comércio mundial no pós-guerra, é que explicam que antes do final do conflito – ainda em julho de 1944 – já se havia alcançado um acordo abrangendo questões de comércio, pagamentos e reconstrução, entendimentos, aliás, iniciados em meados de 1943, quando ainda nem se podia prever qual seria o resultado final da conflagração. O chamado Acordo de Bretton Woods, que levaria à

Tabela I Exportações e importações européias 1938, 1946, 1947 US$ bilhões Ano

Exportações

Importações

Saldo Comercial

1938

3,9

3,8

1946

4,1

9,4

(-)

5,3

1947

6,5

13,7

(-)

7,2

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0,1

Fonte: Ellsworth (1938)

criação do Fundo Monetário Internacional e em cuja conferência participaram inicialmente 44 países, visou, fundamentalmente: a) evitar que no pós-guerra se configurassem políticas de desvalorizações cambiais concorrenciais - isto é, desvalorizações que aumentassem o poder competitivo das exportações (porque as mercadorias poderiam ser vendidas a um preço internacional mais baixo, já que a queda de receita em dólares ou libras para o exportador seria compensada pela maior quantidade de moeda nacional recebida na conversão cambial) e, paralelamente, tornassem mais caras as importações; b) impedir que os países tivessem plena liberdade de fixar restrições outras, de natureza cambial, tais como quotas de divisas ou inconversibilidade de determinadas moedas, já que tais práticas, se não coibidas, dificultariam a expansão do comércio no pós-guerra; c) à criação de um fundo “pool” de moedas - para a concessão de empréstimos aos países deficitários, evitando que os desequilíbrios nas contas externas - previsto principalmente para as regiões mais afetadas pela guerra levassem a medidas restritivas sobre o comércio mundial. A reunião de Bretton Woods levaria, juntamente com o surgimento do Fundo Monetário

5. V. Ellsworth (1978), p. 484.

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Logo após o início do funcionamento do FMI, as medidas institucionais do pós-guerra seriam completadas com a Conferência de Comércio de Havana, de 1947, que constituiria o embrião para o Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT) . Internacional, também à paralela criação do Banco Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD), o chamado Banco Mundial, este voltado inicialmente, e até os anos 1950 - para o financiamento da reconstrução européia, e só depois abrangendo operações visando fomentar o desenvolvimento econômico. Logo após o início do funcionamento do FMI, as medidas institucionais do pós-guerra seriam completadas com a Conferência de Comércio de Havana, de 1947, que constituiria o embrião para o Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT), que, com vigência a partir do início de janeiro de 1948, tinha como objetivo evitar o surgimento de barreiras tarifárias estabelecidas

inilateralmente, a implantação de quotas de importação e de outras restrições ao comércio 6. Com o novo arcabouço institucional, enquanto o Fundo Monetário Internacional visava conter o surgimento de restrições cambiais aos fluxos de comércio, e proporcionar recursos compensatórios aos déficits de Balanço de Pagamentos, o GATT procurava evitar a proliferação de barreiras tarifárias, e outras não cambiais, a fim de que a expansão do comércio mundial, no pós-guerra, não fosse obstaculizada por políticas protecionistas, principalmente originadas dos países mais afetados pela guerra, e que deveriam enfrentar problemas de desequilíbrios internacionais

já não justificados pela presença da conflagração. 2.2. As Fontes Restritas do Financiamento Internacional Até Meados dos Anos 60 A criação do FMI e do Banco Mundial foi importante para a economia mundial, no sentido de que se marchava na direção da institucionalização de mecanismos que deveriam dar suporte aos países com desequilíbrios externos, a fim de assim evitar medidas visando a maior agressividade comercial, prejudicando outros países, ou restrições às importações, provocando crises econômicas internas. Mas as estruturas produtivas e de exportação das economias em desenvolvimento, centradas em produtos primários impossíveis de terem a produção programada – com o que o mercado internacional sofre flutuações no lado da oferta – geram instabilidade nas receitas em moedas estrangeiras. Com o agravante de que tais produtos se caracterizam por inelasticidade-preço – com o consumo pouco reagindo quando variam os preços, e por inelasticidade-renda – pouca sensibilidade do consumo frente ao crescimento da renda dos grandes mercados mundiais. Com isso, os desequilíbrios externos de tais países tendem a ser recorrentes, assim como, conseqüente-

6. De fato, a Conferência de Havana gerou a Organização Internacional do Comércio, cuja criação constituíra uma das propostas presentes em Bretton Woods. A não ratificação do acordo pelo Senado Americano, todavia, transformou a O.I.C. em natimorta, ensejando que em Genebra se acordasse, ainda em 1947, na formação do GATT, uma organização mais informal e menos ambiciosa, segundo diversos autores.

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mente, a necessidade de financiamento dos déficits do balanço de pagamentos. Se o esquema de Bretton Woods previa a criação de mecanismos de financiamento de déficits de balanços de pagamentos, supondo-os eventuais – com o que os recursos do FMI viabilizariam a manutenção das políticas econômicas internas, e a normalidade do emprego e da renda –, não é exatamente esse o quadro enfrentado pelas economias periféricas. Uma vez que os empréstimos do Fundo passaram a ser acompanhados por rígidas medidas de política econômica, de caráter ortodoxo, e portanto restritivas 7, a fim de, como condição para o financiamento, os devedores agirem no sentido de reduzir os dispêndios com importações e buscar ampliar as receitas de exportações. Donde a imposição rotineira pelo Fundo, de medidas voltadas para reduzir os investimentos públicos e controlar os salários, aumentar juros e tributos, e muitas vezes também desvalorizar a moeda. Desse modo, com aumentos de custos afetando o setor produtivo e forçando a elevação dos preços, recua o poder de compra das famílias que vivem do trabalho, ge-

rando-se, pela redução do consumo, por um lado uma queda nas importações, e por outro excedentes para exportação; com menos vendas internas as empresas dirigem esforços para aumentar as vendas externas. Com o recuo nas importações de bens e serviços e aumento das exportações, a economia é encurralada no sentido do ajuste externo. Mas como os instrumentos de política econômica impostos pelo FMI aumentam os custos e os ganhos dos aplicadores e do setor financeiro, o ajuste externo se dá com aumento da inflação interna, e deslocamento da renda gerada em prejuízo dos que vivem do trabalho. O Fundo Monetário Internacional nunca procurou mitigar esse efeito contracionista, responsável pela concentração da renda nos países em de-

senvolvimento, e, portanto, pela pobreza da população e conseqüente contenção do mercado e do desenvolvimento econômico. Sempre a preocupação única foi com o retorno dos empréstimos, a garantia aos credores, seja a que preço for. E como se observa dos dados da Tabela II, a falta de alternativas ao financiamento internacional – a não ser os créditos para importar bens industriais das economias centrais, e em especial dos Estados Unidos – deixou o Brasil preso a esse esquema. E se os reflexos sobre a economia brasileira ainda não foram maiores, se deveu à coragem de JK, que, honrando o seu programa, e colocando o projeto de crescimento acima de tudo, abriu mão dos créditos do FMI na segunda metade dos anos 50, mas não abandonou os planos de desenvolvimento.

Com o recuo nas importações de bens e serviços e aumento das exportações, a economia é encurralada no sentido do ajuste externo .

7. Uma política econômica é designada como ortodoxa quando recorre a medidas lastreadas em pressupostos teóricos desenvolvidos pelos clássicos {da Escola Clássica, constituída a partir das primeiras obras de Adam Smith (1776) e David Ricardo (1817)}. Utiliza-se o termo ortodoxo com sentido pejorativo quando políticas clássicas estão baseadas em raciocínios simplistas e conflitantes com a realidade observada, tal como ocorre quando a elevação das taxas de juros ou o corte de gastos públicos são justificados para conter um excesso de demanda e assim controlar a inflação, enquanto a economia registra elevado desemprego e capacidade ociosa generalizada.

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Tabela II Brasil financiamento dos déficits externos - 1945 a 1962 US$ milhões Discriminação

1945-49

1950-56

1957-62

1963-66

1. Empréstimos ou Financiamentos

81,0

569,0

2.383,0

1.342,0

1.1. Financiamento de Importações

...

...

1.709,0

785,0

1.2 – Empréstimos em moeda

...

...

674,0

557,0

118,0

719,0

652,0

498,0

2.1 – Fundo Monetário Internacional

38,0

(**)

123,0

10,0

2.2 – Outras fontes (*)

80,0

719,0

529,0

488,0

3. Investimentos Estrangeiros

66,0

173,0

653,0

202,0

4. Atrasados e Créditos Comerciais

22,0

(-) 156,0

163,0

(-) 155,0

2. Empréstimos Compensatórios

5. Subscrições e contribuições

(-)

37,0

-

(-) 103,0

(-) 127,0

6. Amortização (emprést./financtos.)

(-) 294,0

(-) 652,0

(-)1.997,0

(-)1.295,0

7,0

64,0

212,0

24,0

37,0

717,0

1.963,0

489,0

7. Outros - Fluxo Total (líquido)

(-)

Fonte: Munhoz (1977), p. 171/72 Notas: (* ) Eximbank dos Estados Unidos, Dep.do Tesouro USA, Credores etc. (**) Dois empréstimos de uS$ 28, milhões, contraídos e resgatados no período

As informações constantes da tabela evidenciam que o Brasil contou, nos primeiros vinte anos do pós-guerra e até 1966, basicamente com recursos relativos às importações financiadas, o que significa créditos para compras no país financiador, e com financiamentos compensatórios. Estes, todavia – que representavam a linha principal de atuação do Fundo Monetário Internacional - praticamente não vieram daquela instituição, dadas as condicionalidades que a instituição impõe como contrapartida, e que sempre desorganizam a eco-

nomia duradouramente. Assim, os problemas decorrentes dos desequilíbrios do Balanço de Pagamentos do País, nesses vinte anos, foram superados graças especialmente a refinanciamentos do Banco de Exportação e Importação dos Estados Unidos (Eximbank) – US$ 720,0 milhões, Departamento do Tesouro dos Estados Unidos – US$ 75,0 milhões, Aliança para o Progresso/Departamento do Tesouro USA – US$ 150,0 milhões, e credores europeus – US$ 230,0 milhões 8, enquanto as operações com o FMI – ingressos brutos, totalizaram apenas US$ 264,0 milhões, representando em torno de 20,0% dos recursos obtidos de

fontes que deveriam ter papel tão-somente secundário. A insignificante participação do FMI no financiamento compensatório de um país que registrava problemas de balanço de pagamentos fornece elementos para que se possa avaliar o fracasso daquela instituição no que se refere ao auxílio a países deficitários - uma de suas propostas básicas, objetivo estatutário que as décadas de 50 e em parte a década de 60, quando os bancos privados ainda não existiam como alternativas, indicaria tratar-se de mera declaração de intenções. Os investimentos diretos estrangeiros não proporcionavam

8. Com tais operações os financiadores visavam, de fato, fornecer recursos para que o Brasil pudesse pagar aos seus fornecedores, regularizando contas que se achavam pendentes por falta de divisas.

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um fluxo de divisas que financiasse parcialmente os déficits do Balanço de Pagamentos – dado um volume pouco significativo em comparação com os déficits do País, e assim mesmo em grande parte tendo como contrapartida a importação de equipamentos. Mas, de todo modo, contribuíam para ampliar a ca-

pacidade produtiva interna, proporcionando economia de divisas, num período em que foi rápido o crescimento industrial, dentro da política de substituição de importações, o que evidencia que o grande momento da economia brasileira na segunda metade do século XX. As bases da indústria moderna plantadas nos

anos 50 e as elevadas taxas de crescimento do produto então alcançadas (Tabela III) foram concretizadas exatamente porque o País soube distanciar-se do esquema comandado pelo FMI, instituição que, em troca do financiamento do balanço de pagamentos, simplesmente inviabilizava qualquer projeto de desenvolvi-

Tabela III Brasil crescimento do PIB - Taxas Médias Anuais Período

Taxas Médias de Crescimento - %

Período

Taxas Médias de Crescimento - %

1947-52

7,0

1961-64

3,2

1953-56

6,7

1965-67

5,0

1957-60

7,7

Fonte: F.G.Vargas/IBRE (1972)

mento econômico. E essa interferência desastrosa do FMI se faria sentir no Brasil quando, logo após o término do Governo JK, o novo Governo, seguindo o figurino do Fundo, introduziu em março de 1961 profundas alterações na política cambial do País, dobrando o preço de importações essenciais, e assim forçando uma explosão inflacionária. Os reflexos econômicos internos, travando o crescimento do País, os dados da Tabela III evidenciam com clareza. Os desdobramentos políticos da crise econômica, com a derrubada do Governo constitucionalmente empossado, todos conhecem da História, ou porque viveram a trágica herança da irracionalidade dos modelos dogmáticos com os quais

o Fundo Monetário Internacional, de forma presunçosa e superior, intervém nas economias periférica que não tenham conseguido ultrapassar o estágio de economias primário-exportadoras. No próximo tópico se verá que, tanto na segunda metade dos anos 60, como nos anos 70, o Brasil ainda conseguiria manter elevadas taxas de crescimento do produto, sempre que se manteve a salvo da interferência externa na formulação e implantação de políticas econômicas. 3. O Novo Mercado de Eurodólares como Opção para o Financiamento Externo O Brasil mudou sua política econômica no decorrer de 1967, com a chegada do novo Governo, Revista de conjuntura

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abandonando os desvios de caráter monetarista que marcaram a ação governamental pós-1964, como também ocorrera em 1961 com o efêmero Governo que sucedeu a JK. Já sob novo enfoque, o Governo procurou conter as taxas de juros, alterou a fórmula de recomposição salarial, a fim de recuperar perdas ocorridas no período 1964-66 (comprovadas pela Oposição em CPI da Câmara dos Deputados), mudou a política cambial em agosto de 1968, de forma a manter a paridade do poder de compra frente ao dólar, fazendo-o através de minidesvalorizações com maior freqüência, e buscou ampliar as possibilidades abertas por uma economia internacional em expansão. Como decorrência, as exporta-

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ções brasileiras quadruplicaram, alcançando US$ 6,2 bilhões em

1973, e a taxa média de crescimento do PIB situou-se em torno

de 10,5% ao ano – duplicando o PIB em apenas sete anos - e ainda com inflação declinante 9 Tabela IV Economia brasileira o período do milagre 1967-1973 Tabela IV. Discriminação I – Fluxos - US$ bilhões A1. Balança Comercial A1.1 – Exportações A1.2 – Importações A2. Transações Correntes

(-)

1967

1973

1967-1973

0,2 1,7 1,4 0,2

0,0 6,2 6,2 1,7

0,2 6,1

(-)

(-)

II – Estoques - US$ bilhões B1. Dívida externa Bruta B2. Reservas Internacionais B3. Dívida Externa Líquida (1 – 2)

3,4 0,2 3,2

12,6 6,4 6,2

(aumento) 9,2 6,2 3,0

C1. PIB - Crescimento no período-%

4,8

14,0

101,2

-

-

10,5

Taxa Média Anual - %

Fonte: Banco Central (1976). Munhoz (1972) e (1977). Fundação Getulio Vargas (1981).

A expansão econômica teve como reflexo um déficit em Contas Correntes no montante de US$ 6,1 bilhões acumulados nos sete anos do “milagre econômico”, resultado devido ao saldo negativo nas transações com Serviços (especialmente Juros US$ 1,9 bilhão, Transportes – US$ 1,7 bilhão, Viagens Internacionais – US$ 892.0 milhões e Remessa de Lucros – US$ 834,0 milhões), já que a Balança Comercial, com o grande aumento tanto nas exportações como nas importações, registrou um superávit da ordem de US$ 211,0 milhões no período. Mas o Brasil não teve dificuldades em financiar os novos desequilíbrios, sem recorrer em ne-

nhum momento ao Fundo Monetário Internacional, tendo registrado um ingresso de capitais muito superior às necessidades – US$ 9,1 bilhões líquidos –, elevando assim as suas reservas internacionais, que, num dos níveis mais elevados do mundo, alcançara US$ 6,4 bilhões ao final de 1973. E esse novo milagre – a possibilidade de financiar grandes déficits sem quaisquer traumas – se explica pelo grande fluxo de ingresso de novos investimentos estrangeiros – compreensível numa economia com crescimento explosivo –, mas especialmente graças ao ingresso de US$ 15,0 bilhões brutos na rubrica empréstimos e financiamentos (Munhoz, 1977, pág. 171), ou US$ 9,2 bilhões de ingressos líquidos (dada uma amortização global de US$ 5,8 bilhões).

Essas novas condições que permitiram ao Brasil manter-se distante do FMI, e de suas políticas desestruturantes, refletiam as transformações observadas ao longo dos anos 60 no sistema financeiro internacional, onde a banca privada, com os mecanismos flexíveis proporcionados pelo mercado de Euromoedas, passou a financiar as necessidades de divisas de diferentes países, fazendo-o às vezes mediante empréstimos a Governos, mas de forma mais geral através de operações com empresas, que assim obtinham recursos para financiar suas atividades internas a custos baixos e prazos longos – oito, dez ou doze anos –, enquanto as divisas trocadas no mercado de câmbio garantiam o financiamento exter-

9. As taxas de inflação declinaram de 1967 a 1972, e só em 1973, quando da quadruplicação dos preços internacionais do petróleo, a tendência se inverteu, tendo inclusive surgido forte polêmica na ocasião, acusando-se o Governo, já em final de mandato, de manipular índices de preços visando registrar inflação contida. Outra polêmica se centrou no tema distribuição da renda, com a crítica de que o crescimento da economia se deu com concentração ainda maior da renda. Ver SABÓIA (1990), p. 588-90.

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Euromoedas), no ano de 1974 dois terços da dívida era representado por empréstimos em moeda e 30,0% por financiamentos de importações –, praticamente desaparecendo as chamadas operações de regularização, que caracterizam o papel Tabela V Dívida externa fontes de financiamento - 1965 e 1973 US$ bilhões no do País, e portanto a conversibilidade da moeda. Nesse período, a estrutura do endividamento externo do Brasil sofreu alteração radical. E enquanto a dívida externa era representada em 1965 em 40,2%

por financiamentos de importações e 31,6% de empréstimos compensatórios (FMI, Tesouro USA, bancos credores etc.), e apenas 8,6% por empréstimos em moeda (próprios das operações dos bancos privados no

Discriminação 1. Empréstimos compensatórios 2. Financiamento de importações 3. Dívida externa consolidada 4. Empréstimos em moeda 5. Empréstimos “bônus” 6. Empréstimos diversos Total

1965 1,1 1,4 0,1 0,3 0,6 3,5

1973 0,2 3,5 0,0 7,9 0,1 0,9 12,6

Fontes: Banco Central (1976). Munhoz (1977).

do FMI - Tabela V. Essa primeira fase da presença marcante dos créditos privados supridos pelo Euromoedas se estenderia até 1973, num mundo de expansão comercial – com um crescimento das exportações mundiais de mais de 80,0% entre 1968 e 1973 em termos reais - e onde nenhum desajuste de maior significado rondava as economias em desenvolvimento. Diferentemente, um grupo de nações industrialmente emergentes – Brasil, México, Argentina, Coréia etc. etc. – se firmava como exportadores crescentes de produtos transformados, e sentiam como que o surgimento de um novo mundo de oportunidades, de aumento e diversificação da base industrial, de um desejado processo de crescimento sustentado. Mas a súbita mudança no mercado mundial de petróleo transformaria o sonho em pesadelo. De fato, nos desdobramen-

tos da crise do petróleo, de outubro de 1973, o aumento da dívida externa das economias emergentes tornou-se incontrolável, e o Euromoedas foi a grande fonte de financiamento internacional nessa sua segunda etapa de expansão. Não só porque o Fundo Monetário Internacional não tinha cacife para financiar déficits monumentais, mas especialmente porque os Estados Unidos exigiram que os ganhos da OPEP fossem depositados nos bancos do sistema, para dar suporte a empréstimos aos novos devedores – o mundo das economias emergentes –, que no final pagariam a conta do petróleo dos países ricos (Munhoz, 1988). E esse fluxo de rendas do petróleo, primeiro em direção aos bancos do Euromoedas, e em seguida destinados ao financiamento dos devedores, ficou consagrado Revista de conjuntura

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na literatura econômica como a “reciclagem dos petrodólares”. Só depois de perto de dez anos do início da crise do petróleo, e quando a dívida acumulada pelas economias em desenvolvimento se aproximava de US$ 800,0 bilhões, é que a banca privada tomou uma atitude definitiva, interrompendo qualquer operação com os devedores, em setembro de 1982 – no chamado “setembro negro”, dados os riscos decorrentes do fato de que o crescimento da dívida se havia acelerado desde o final dos anos 70, pressionado pelos novos aumentos nos preços do petróleo e pela grande elevação das taxas de juros internacionais. Nesse momento a banca privada sai de campo, e o Fundo Monetário Internacional é entronizado como um xerife incumbido de comandar as políticas de ajuste externo dentro dos seus rígidos programas econômicos, obedecendo aos mesmos

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Ao final de 1982, o Brasil acumulava compromissos externos de US$ 85,3 bilhões, dos quais US$ 15,1 bilhões de dívidas de curto prazo e US$ 70,2 bilhões de dívidas de médio e longo prazos . princípios adotados desde a sua criação. Déficits externos significam uma situação de excesso de consumo em relação à capacidade produtiva, e só podem ser sanados com menos consumo, e portanto mais exportações e menos importações – esse o dogma do FMI. E assim o Fundo desorganizou mais uma vez – e agora por atacado – um grande número de países, desde o início sacrificados para que os novos preços do petróleo, que propiciaram tantos negócios novos, como no Mar do Norte e no Alasca – não tivessem tomado o rumo impossível de transformar as ricas economias ocidentais em pobres economias endividadas. Quando da eclosão da “crise do endividamento”, ao final de 1982, o Brasil acumulava compromissos externos de US$ 85,3 bilhões, dos quais US$ 15,1 bilhões de dívidas de curto prazo (derivadas fundamentalmente de linhas de crédito comercial, obrigações de bancos e dívidas do Banco Central em operações especiais) e US$ 70,2 bilhões de dívidas de médio e longo prazos. Do montante destas, os empréstimos em moe-

da representavam 75,0%, e os financiamentos de importações, perto de 20,0%, metade dos quais se referindo a créditos supridos por bancos comerciais. Donde se vê o predomínio absoluta do sistema do Euromoedas no financiamento sem contrapartidas e a prazos médios ou longos, dos desequilíbrios externos das economias em desenvolvimento nas décadas de 70 e parte dos anos 80, a taxas de juros adotadas no mercado londrino – a Libor, ou com base na Prime-Rate americana, mais spreads particularizados por países. 4. O Novo Panorama dos Anos 90: Mercado de Títulos e Capitais de Curto Prazo Os países devedores, e em especial os da América Latina, se viram forçados aos acordos de ajuste externo com o Fundo Monetário Internacional, firmados logo no início de 1983. E passaram o resto da década buscando uma saída para o refinanciamento da dívida externa em condições suportáveis, sem acesso, portanto, a novas

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fontes de financiamento, salvo recursos de curto prazo do FMI, dentro dos acordos de ajuste, e os financiamentos de importações por instituições financeiras internacionais e agências governamentais de países fornecedores. Os anos 90 se iniciam marcados pelo defesa do neoliberalismo, por parte das economias centrais e instituições como o Fundo Monetário Internacional, que viam na abertura comercial, na abertura do sistema financeiro, no câmbio livre e na livre movimentação de capitais os requisitos para que os capitais de curto prazo pudessem, em rápidos deslocamentos e sem riscos, obter nas economias emergentes ganhos jamais imaginados nas economias centrais. Assim, a insensatez das políticas econômicas dos anos 90, de países como a Argentina e Brasil, tem muito mais lógica do que possa parecer, pois quando o Fundo Monetário Internacional apoiou programas de estabilização que provocavam grandes déficits externos em economias de porte médio, e manteve esse apoio mesmo quando os desequilíbrios totalizavam valores impossíveis de serem pagos, foram três únicas as preocupações extravasadas por aquela instituição: a) que as privatizações fossem aceleradas - pois com isso o país teria algum ingresso adicional de dólares para ajudar a cobrir o rombo externo, ao mesmo tempo em que o Te-

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souro obteria uma receita extra que ajudasse no pagamento dos encargos financeiros; b) que o Governo gerasse superávits (primários) fiscais crescentes - para isso aumentando a carga tributária e reduzindo despesas (como através das reformas da previdência de 1988 e aquela em discussão no Congresso em 2003), a fim de se garantir recursos para pagamento de altos juros nos títulos públicos (com os quais busca atrair capitais de curto prazo do exterior); c) que os países mantivessem elevadas reservas internacionais - e na segunda metade dos anos 90 o FMI tem sido pródigo em financiar os devedores para formação de grandes reservas -, com o que se garantiria a conversibilidade da moeda e conseqüentemente a liberdade de saída dos capitais especulati-

vos, e de seus ganhos, afastando-se o risco de que, dada a escassez de divisas, os devedores se vejam obrigados a implantar mecanismos de controle de capitais. Nos anos 90 tem imperado, portanto, uma nova matriz de financiamento internacional, centrada em capitais de curto prazo, que se destinam a aplicações em papéis – na bolsa de valores e em títulos. Mas em meados da década, com o acúmulo de déficits dos países da área, observou-se na América Latina uma nova estratégia, com grande parte dos capitais não mais ingressando como capital financeiro stricto sensu, dando margem a um aumento incomum de recursos registrados como investimentos diretos, com o que - e acreditando na tradição da não-imposição de restrições a investimentos diretos - os aplicadores estariam à salvo do risco de que, diante do agravamento

dos desequilíbrios externos acumulados, e da crise fiscal provocada pelo tamanho da conta de juros, os governos da região se vejam forçados a implantar formas de controle de capitais e/ou de remessa de ganhos. Os dados da Tabela VI mostram como tais mudanças vêm verificando-se na América Latina, onde os capitais ingressados destinam-se quase que somente para o pagamento de juros da dívida e à remessa de lucros, ou ainda à formação de reservas internacionais, verificando-se, também, que, a despeito de um crescimento econômico medíocre, tem sido cada vez maiores os volumes de capitais que ingressam como investimentos diretos nos países da região, tratando-se da mencionada “fuga institucional”, no pressuposto de que assim os capitais financeiros estariam a salvo de eventuais medidas restritivas ao movimento de capitais e remes-

Tabela VI - América Latina Desequilíbrios Externos e Fontes de Financiamento US$ bilhões - 1991 a 2000 Discriminação

1991/1995

1. PIB – Crescimento no período (%)

1996/2000

1991/2000

18,5

16,5

38,1

271,2

347,8

619,0

187,1

295,2

482,7

174,2

251,2

425,4

12,9

44,4

57,3

2.2 - Aumento das Reservas Internacionais

84,1

52,3

136,3

3. Fontes de Recursos Externos - US$ bilhões

259,1

412,9

672,0

176,6

121,9

298,5

82,5

291,0

373,5

2. Uso de Recursos Externos – US$ bilhões 2.1 – Déficits em Contas Correntes - Pagamento de juros e remessa de lucros - Outros dispêndios

3.1 - Empréstimos Líquidos (aumento da dívida) 3.2 – Investimentos Diretos Líquidos *

Fontes: FMI (1992, 1999, 2000 e 2001). CEPAL (1998). MINIPLAN (2000 e 2001). Transcrito de Munhoz (2003, p. 41) (*) Inclui US$ 40,0 bilhões de ingressos na privatização de empresas na Argentina e Brasil

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sa de ganhos. 4.1 – Financiamento Brasileiros nos anos 90 Essas mudanças nas fontes de financiamento internacional nos anos 90, decorrentes da existência

de vultosos recursos na forma de capitais financeiros em fundos administrados por grandes bancos internacionais, também se refletiram no fluxo de capitais para o Brasil, ávido demandante desde 1995, em razão dos elevados

déficits de Balanço de Pagamento provocados pelo Plano Real. E como conseqüência, a estrutura do endividamento externo brasileiro sofreu profunda transformação na década, mas especialmente depois de 1994, quando retornaram os desequilíbrios nas contas

Tabela VII Brasil estrutura do financimento externo Evolução 1990, 1994, 2002 US$ bilhões Discriminação

1990

1994

2002

2,2

0,2

-

2. Empréstimos-Reservas do FMI

-

-

20,8

3. Finant.Importações – oficial (*)

24,9

29,9

37,1

4. Finant.Importações - privado (**)

10,1

5,8

11,2

5. Colocação de Bônus do Tesouro

1,1

51,5

56,8

6. Colocação de Notes (***)

0,8

19,4

53,3

7. Empréstimos em Moeda

52,3

5,7

6,8

4,8

5,3

17,0

9. B.Central-Op.Especiais-Curto Prazo

13,6

0,5

-

10. Obrigações de Bancos-Curto Prazo

10,9

28,1

15,1

0,3

2,0

9,6

121,0

148,3

227,7

1. Empréstimos compensatórios

8. Empréstimos Intercompanhias

11. Outros empréstimos Divida Externa Bruta

Fontes: Banco Central (1991), (1995a-Suplemento), (1995b), (2002) e (2003). Nota: (*) Instituições financ.internacionais e agências governamentais. (**) Bancos e créditos de fornecedores. (***) Comercial Papers, Securities etc.).

externas do País. Como se verifica da Tabela VII, enquanto em 1990 o financiamento de importações (30,0% da dívida) e os empréstimos em moeda (perto de 45,0% da dívi-

da) respondiam em conjunto por aproximadamente três quartos de uma dívida externa brasileira de US$ 121,0 bilhões, e outros 11,0% correspondiam a operações especiais do Banco Central ligadas à moratória/renegociação

iniciada nos anos 80, em 1994, concluída a renegociação com os bancos credores, os empréstimos em moeda praticamente desaparecem. E o financiamento externo fica centralizado nos “Bônus do Tesouro” - bônus

10. A renegociação externa colocou o Tesouro como o grande devedor, porque, de fato, desde princípios dos anos 80 o Governo foi estatizando a dívida externa; isso porque, como não se dispunha de divisas para os pagamentos externos, todos os devedores antigos contratantes de empréstimos externos passaram a fazer as amortizações em moeda nacional, junto ao Banco Central, com este assumindo a posição de devedor, em nome do governo. E com esses recursos o Banco Central passou a comprar títulos do Tesouro denominados em cruzeiros. Com isso ficou a seguinte situação: Tesouro deve ao BC; BC tem créditos junto ao Tesouro e deve aos bancos estrangeiros. Quando, em 1994, fecha-se a renegociação externa, o BC devolve os títulos ao Tesouro, e este assume diretamente a dívida externa, para isso emitindo títulos (Bônus da renegociação) em moeda estrangeira e em favor dos bancos credores, com prazos longos e juros reduzidos. Conseqüentemente, anula-se a dívida interna do Tesouro. E, mais recentemente, o Governo passou a substituir os bônus da renegociação por novos títulos emitidos pelo Tesouro, buscando desvincular a dívida securitizada do estigma da moratória dos anos 80.

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da renegociação - US$ 51,5 bilhões 10, ou 35,0% de um total de US$ 148,3 bilhões, no financiamento de importações (US$ 35,7 bilhões – ou 24,0%) e em Obrigações de Bancos Privados, vinculados principalmente a linhas de crédito comercial de curto prazo (US$ 28,1 bilhões). Surge, ainda, com relativo destaque, a colocação de títulos de empresas brasileiras no exterior – especialmente comercial papers –, que, com US$ 19,4 bilhões, evidenciam que o País recuperava a capacidade de endividamento bancário, de que estivera afastado quase por uma década, em razão da interrupção dos pagamentos internacionais na primeira metade dos anos 80, quando o Banco Central foi assumindo o lugar dos devedores originais. Ao final de 2002 a dívida brasileira era representada em 21,0% por financiamentos de importações (US$ 48,3 bilhões), 25,0% por títulos do Tesouro (US$ 58,1 bilhões, um terço dos quais representando o remanescente dos papéis emitidos pelo Tesouro quando da renegociação de 1994, e ainda não substituídos por novos “bônus”), 23,5% (ou US$ 53,3 bilhões) por títulos de empresas colocados no exterior e recursos aplicados em ações de empresas brasileiras negociados em bolsas no país ou no exterior. Aparecem pela primeira vez, por outro lado, os empréstimos contratados com o FMI em anos recentes – que denominamos de “Empréstimo – Reservas” (US$ 20,8 bilhões em dezembro de 2002, e que em setembro de

2003 já haviam alcançado US$ 34,0 bilhões). Em relação às operações com o FMI, é oportuno frisar que, diferentemente das “créditos compensatórios” do passado, quando aquela instituição financiava déficits do balanço de pagamentos (essência do papel do Fundo), os recursos agora fornecidos se destinam apenas à formação de reservas, permanecendo depositados em bancos internacionais como uma garantia aos capitais de curto prazo de que o país vai manter a liberdade de movimentação de capitais. Mas como antes, quando o financiamento se destinava a uso efetivo para cobrir déficits, o FMI coloca o mesmo grau de ingerência na política econômica, com a novidade de que agora impõe inclusive mudanças na estrutura institucional do país, com as novas normas legais que devem ser aprovadas pelo Congresso. Além do que, é evidente que manter níveis elevados de reservas traz custos altos a título de encargos financeiros dos empréstimos: para o País, a saída de dólares (rendas de juros), e para o Tesouro, despesas em reais (pagamento de juros).

O fato de contar-se com um nível elevado de reservas não significa, por outro lado, que o País esteja menos vulnerável na sua condição de devedor crescente. Mesmo porque o reequilíbrio do Balanço de Pagamentos em Contas Correntes que se vai materializando em 2003, decorre fundamentalmente do recuo das importações de mercadorias – de aproximadamente 15,0% nos dois últimos anos, e num quadro de insuportável estagnação econômica. Além do que o volume de amortizações da dívida externa de médio e longo prazos - US$ 100,0 bilhões vencendo até 2005 -, mais as saídas de capitais de curto prazo (incluindo os agora voláteis capitais financeiros e empréstimos intracompanhias, ambos registrados como investimentos diretos) têm superado US$ 60,0 bilhões anuais. O intenso fluxo de capitais de curto prazo para “investimentos em carteira” - entre os anos de 1994 a 2002 entraram US$ 230,0 bilhões aproximadamente, mas saíram US$ 210,0 bilhões – revela que o seu papel de fonte complementar de financiamento dos déficits externos se dá em função do curto “tempo de hospeda-

É evidente que manter níveis elevados de reservas traz custos altos a título de encargos financeiros dos empréstimos: para o País, a saída de dólares, e para o Tesouro, despesas em reais . Revista de conjuntura

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gem”, em que ao mesmo tempo em que entram capitais, outros estão saindo, contando o Brasil com um “saldo médio” de tais recursos de pouca significação. Do que se pode concluir que o País pode prescindir de tais capitais – os investimentos em carteira - como fonte de financiamento, desde que consiga dar um caráter de estabilidade ao capital financeiro ingressado sob a rubrica investimentos diretos, que, segundo os novos critérios do Banco Central, desde 2001 passaram a incluir os empréstimos intercompanhias. E se pode prescindir, é possível reintroduzir critérios de permanência mínima para capitais de curto prazo, regras que existiram desde o início dos anos 80, mas que foram eliminadas quando da primeira onda neoliberal que invadiu o País, ainda nos primeiros anos da década de 90. 4.2 – A Vulnerabilidade Externa da Economia Brasileira Quando se vê a intensa movimentação de capitais de curto prazo, com saldo inexpressivo diante do volume dos fluxos de entrada e saída, percebe-se a natureza da vulnerabilidade do País. Pois basta qualquer discussão sobre os rumos da política econômica, ou da política fiscal, e o chamado “mercado” se inquieta; e a interrupção das entradas dos capitais ditos especulativos provocaria

uma crise cambial, sem contar que, como os recursos do FMI são de prazos relativamente curtos – 70,0% da posição de empréstimos em junho de 2003 venceriam até 2005 –, na ausência de novos acordos as amortizações ao Fundo levarão de volta os dólares que respondem por setenta por cento das reservas do País, e o “mercado” se inquietaria porque não mais estaria contando com o “guarda-chuva” do Fundo; e certamente o País se defrontaria com uma crise cambial. Consideradas as dificuldades insuperáveis em relação aos compromissos do Tesouro no pagamento dos juros da dívida pública federal interna e externa, mais os problemas relacionados à fragilidade do País na questão da dívida externa e do seu refinanciamento, parece inquestionável que seria melhor para o Brasil encarar de frente tais estrangulamentos, partindo para uma renegociação ampla das dívidas interna e externa, pois só assim será possível reverter a carga tributária, abrindo espaço para a recomposição das rendas do trabalho e para que se vislumbre um horizonte concreto para a retomada do crescimento. Ao Fundo Monetário Internacional aparentemente também seria interessante uma renegociação ampla, pois dificilmente se

poderá manter por muito tempo uma situação de falsa normalidade, embora os capitais especulativos devam estar extremamente satisfeitos, enquanto puderem fazer ganhos fáceis, rápidos e seguros, sob o hábil esquema de proteção montado pelo FMI, como vem acontecendo agora nas Bolsas de Valores, repetindo a onda especulativa de 1993, a primeira após a abertura do País aos capitais de curto prazo para todas as operações, inclusive derivativos em geral. A “jogada” de 1993 proporcionou ganhos reais de 88,0% em cruzeiros e de 100,0% em dólares americanos (Banco Central, 1993), transformando em heróis os novos gestores dos novos fundos criados em instituições financeiras estrangeiras especialmente para aplicações no Brasil. É importante considerar que, afinal, a Casa da Moeda não pode emitir reais num volume que permita cobrir os déficits gerados pelas despesas financeiras 11, e nem dólares para financiar a dívida externa – novos déficits e refinanciamento dos antigos. Donde não cabe manter uma política econômica irrealista, na busca do impossível, sacrificando de forma crescente todos aqueles que vivem do trabalho, e em contrapartida mantendo travada a economia, levando o País a continuar percorrendo o leito da terceira década perdida.

11. Além do que, embora possa parecer inacreditável, todas as emissões de papel-moeda desde o final de 1985 não trazem ganhos ao Tesouro, mas sim ao Banco Central, que, assim, subsidiado e sem controle, pode dar sobrevida à caixa preta que já custou ao País cem bilhões de dólares, desde as mudanças iniciadas no exercício de 1986.

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Bibliografia Banco Central do Brasil. Boletins de julho de 1976, outubro/novembro/dezembro de 1991, setembro de 1995 (Suplemento Estatístico), dezembro de 1995 e junho de 2003. Banco Central do Brasil. Relatórios Anuais de 1984, 1989, 1992, 1995, 1999 e 2002. PEREIRA, Luiz Carlos Bresser. A crise na América Latina: Consenso de Washington ou crise fiscal ? in Pesquisa e Planejamento Econômico. Nº 1. Abril de 1991. Vol. 21, p. 03-24. Balance Preliminar de las Economías de América Latina y el Caribe. Ed. CEPAL, 1998. DAUGHERTY, Carrol R. Labor, in:”The Growth of the American Economy. Harold F. Willimson, editor, Prentice-Hall, Inc., Englewood Cliffs, N.J. 6ª edição. 1959. ELLSWORTH, P.T. Economia Internacional. 4ª edição. São Paulo, Ed. Atlas, 1978. Fundação Getúlio Vargas/ IBRE. Relações Características da Economia Brasileira. In revista Conjuntura Econômica. Fundação Getúlio Vargas/Rio de Janeiro. Novembro de 1972. Vol.26 (11), p.22-30 Fundação Getúlio Vargas/IBRE. Contas Nacionais e Parâmetros da Economia Brasileira. In revista Conjuntura Econômica. Fundação Getúlio Vargas/Rio de Janeiro. Fevereiro de 1981. Vol. 35(2), p. I-VI – Anuário Estatístico. Fundo Monetário Internacional. International Financial Statistics. Setembro de 1998 e janeiro de 2001, e Yearbook de 1998 e 2000. _________________________________. Balance of Payments Yearbook. 1992, 1994, 1999, 2000 e 2001. MALAN, Pedro S. Uma crítica ao Consenso de Washington, in Revista de Economia Política. Nº 3 (43). Julho/setembro de 1991. Vol. 11, p. 05-12. Ministério do Planejamento /SEAIN, Brasil. Indicadores da Economia Mundial. Nº 10. Dezembro de 1999. Nº 11. Dezembro de 2000. Nº 12. Dezembro de 2001. MUNHOZ, Dércio Garcia. Dívida Externa Brasileira, In revista Conjuntura Econômica, Fundação Getúlio Vargas/Rio de Janeiro. Abril de 1972. Vol. 26 (4), p. 52-57. ___________________ . Desequilíbrios Externos Desde o Pós-Guerra – Origens e Fontes de Financiamento, in revista Conjuntura Econômica. Fundação Getulio Vargas/Rio de Janeiro. Novembro de 1977. Vol. 31 (11), p. 169-75. ___________________. Os Déficits do Setor Público Brasileiro. Uma Avaliação. UNB/ Departamento de Economia, Brasília. Texto Para Discussão. Nº 123. Julho de 1984. p. 109. ____________________.Reflexos Desestabilizadores dos Programas de Ajustamento Externo, in Crise e Infância no Brasil – O Impacto das Políticas de Ajustamento Econômico, José Paulo Z. Chahad e Ruben Cervini (organizadores). UNICEF/FIPEUSP. São Paulo, 1988. p. 03-45. ____________________. América Latina. Ortodoxia Econômica e Dependência Financeira, in Revista de Conjuntura Corecon/ Sindecon – Brasília. Ano II. Nº 07. Julho/setembro de 2001. p. 09-18. ____________________. A Institucionalização da Economia Mundial no Pós-Guerra. Série Textos Didáticos de Economia Economia Internacional. Nº 08. Brasília, 2001b. ____________________. Investimentos Diretos. O Novo Refúgio dos Capitais Especulativos, in Auditoria da Dívida Externa: Questão de Soberania. Maria Lúcia Fatorelli Carneiro (organização). Rio de Janeiro, Contraponto Editora Ltda, 2003. p. 37-43. PEREIRA, Laércio Barbosa. Considerações sobre a crise do Estado no Brasil: crítica ao Consenso de Washington, in Indicadores Econômicos FEE. Nº 1, maio de 1995. Vol. 23, p.127-37. ROOT, Franklin R. International Trade & Investment - Theory Policy Enterprise. New York, South-Western Publishing Co., Third Edition, 1973. SABOIA, João. Salário e produtividade na indústria brasileira: os efeitos da política salarial no longo prazo, in Pesquisa e Planejamento Econômico. Rio de Janeiro, IPEA, dezembro de 1990. Vol. 20 (3), p. 581-600. SAMUELSON, Paul A. Introdução à Analise Econômica. 7ª edição. Rio de Janeiro, Agir Editora, 1971. Vol. I. SODERSTEN, Bo. International Economics. New York, Harper & Row, Publishers, 1970. STIGLITZ, Joseph E. More instruments and broader goals: moving toward the post-Washington Consensus, in Revista de Economia Política, Centro de Economia Política/São Paulo. Nº 1. Janeiro/março de 1999. Vol. 19, p. 94-120.

* Dércio Garcia Munhoz é professor aposentado da Universidade de Brasília (UnB) Revista de conjuntura

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Quem tem informação tem poder Revista de Conjuntura, o melhor panorama sobre tudo que anda acontecendo.

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A R T I G O

O Setor de Subsistência na Economia e na Sociedade Brasileira: gênese histórica, reprodução e configuração contemporânea Guilherme Delgado* 1. Introdução A noção do setor de subsistência na literatura da História econômica brasileira não aparece de maneira unívoca, nem sobre ela os autores se preocupam com rigor conceitual. Na realidade, o setor de subsistência é quase sempre definido negativamente ou residualmente, alegadamente porque não é núcleo estruturante da economia; não possui dinâmica própria, mas depende da “Grande Lavoura”, situa-se à margem da economia dirigida aos mercados e esta inexoravelmente tenderia a absorvê-lo e dominá-lo. O chamado setor de subsistência aparece, assim, como uma espécie de contraponto à modernidade, ao setor moderno, dinâmico, capitalista. Estas alegações, como se verá, encontraremos em muitos autores que trataram do assunto. Mas a grande maioria dos pesquisadores sequer aborda o setor de subsistência como algo digno de análise.

Antes de falarmos sobre a gênese do setor de subsistência na economia brasileira, precisaríamos justificar a relevância de sua abordagem. Vamos rapidamente mencionar três abordagens de notáveis historiadores econômicos e sociais do Brasil – sobre como comparece este conceito nas suas obras. A partir dessa abordagem, do seu confronto e síntese, creio que ficará respondida a indagação sobre a relevância do objeto pesquisado. 2. O setor de subsistência em Caio Prado Caio Prado Jr. na sua “Formação do Brasil Contemporâneo”, dedica todo um capítulo à “Agricultura de Subsistência” e outro à “Pecuária” do Brasil Colonial, mas antes nos adverte de que esses setores não constituem atividades fundamentais da economia colonial, centrada esta no trinômio grande propriedade, trabalho escravo e monocultura voltada para o comércio exterior. Certamente que a Agricultura de Revista de conjuntura

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Subsistência e a Pecuária não se encaixam nesse trinômio, embora já no período colonial “ocupassem” uma parcela expressiva da população, numa extensão territorial muito vasta da Colônia. “Mas não podemos colocálas no mesmo plano, pois pertencem a outra categoria, e a categoria de segunda ordem (...) Trata-se de atividades subsidiárias destinadas a amparar e tornar possível a realização das primeiras. Não têm uma vida própria, autônoma, mas acompanham aquelas, a que se agregam como simples dependência. Numa palavra, não caracterizam a economia colonial brasileira e lhes servem apenas de acessórios...” (Caio Prado, op.cit., p.124) É claro na construção analítica da “Formação do Brasil Contemporâneo” o tripé Grande Propriedade, Trabalho Escravo e Monocultura, estruturando a produção da “Grande Lavoura” e da mineração na produção de mercadorias para o setor externo.

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O setor de subsistência, que se estendia do norte ao extremo sul do país, caracterizavase por uma grande dispersão . Quando trata da “Agricultura de Subsistência”, da “Pecuária” e mesmo das “Produções Extrativistas”, o tripé não se aplica e o autor recorre ora ao argumento de setor de subsidiário residual, reflexo etc., ou faz uso de uma outra noção do setor de subsistência, onde se destaca sua especialização na provisão de meios de subsistência para o consumo interno. “Já apontei acima os motivos principais por que fiz esta distinção fundamental numa economia como a nossa, entre a grande lavoura que produz para a exportação e a agricultura que chamei de “subsistência” por destinar-se ao consumo e à manutenção da própria colônia ...” (p.157) “... Há a considerar a natureza econômica intrínseca de cada uma e outra categoria de atividade produtiva, o fundamento, o objetivo primário, a razão de ser respectiva de cada uma delas. A diferença aí é essencial, e já me ocupei suficientemente da matéria” (op.cit. p. 157). Mais adiante, depois de o autor exemplificar diversos ramos das atividades de subsistência no Brasil Colonial, conclui apontando um segundo caráter específico do setor de subsistência: “Assim, com maior ou menor independência do lavrador, e maior ou menor extensão da lavoura respectiva, constituem-se a par das grandes explorações, as culturas

próprias e especializadas que se destinam à produção de gêneros alimentícios (grifo nosso) de consumo interno da colônia. É um setor subsidiário da economia colonial, depende exclusivamente do outro, que lhe infunde vida e forças... Em geral a sua mãode-obra não é constituída de escravos: é o próprio lavrador modesto e mesquinho que trabalha. Às vezes conta com o auxílio de um ou outro preto ou mais comumente de algum índio ou mestiço...” (op.cit.pg. 160/161). Sintetizando a noção de setor de subsistência na “Formação do Brasil Contemporâneo”, de Caio Prado, temos aí quatro características a destacar: a) atividade subsidiária, que depende ora exclusivamente ora parcialmente da “Grande Lavoura”; b) setor produtor de bens de consumo destinados ao auto-consumo da fazenda ou ao consumo interno da economia interna (da Colônia), mas não à exportação; c) especialização na produção de alimentos – um valor de uso, distinto das mercadorias produzidas para o mercado externo; d) a estrutura produtiva é distinta da “grande lavoura”, visto que o setor de subsistência praticamente não se utiliza do trabalho escravo, a produção não é monocultivo e o estabelecimento produtivo é em geral de dimensões pequenas (familiar),

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produzindo algum ou alguns produtos com mão-de-obra própria e/ou participação de inúmeras relações de trabalho (depende da atividade), que, em geral, não são nem de trabalho escravo, nem de trabalho assalariado). Observe-se finalmente, que, de acordo com Caio Prado, o setor de subsistência alberga-se na grande propriedade, geograficamente externa às zonas das grandes lavouras, sujeito às relações fundiárias de dominação impostas pelo sistema de sesmarias, mas, diferentemente da “Grande Lavoura”, os agricultores de subsistência gozam de certa autonomia, principalmente na pecuária, onde os contratos de parceria entre proprietários absenteístas e vaqueiros são completamente distintos dos “contratos” entre grandes proprietários e os seus “moradores de condição” na grande lavoura. 2. O Setor de Subsistência em Celso Furtado Outra abordagem do setor de subsistência aparece em Celso Furtado (Formação Econômica do Brasil) com semelhanças e algumas diferenças em relação às definições de Caio Prado. “O setor de subsistência, que se estendia do norte ao extremo sul do país caracterizava-se por uma grande dispersão. Baseando-se na pecuária, era mínima sua densidade econômica. Embora a terra fosse o fator mais abundante, sua propriedade estava altamente concentrada. O sistema de sesmarias concorrera para que a propriedade da terra, antes monopólio real, passasse às mãos de número limitado de indivíduos que tinham acesso aos favores reais (...)

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Dentro da economia de subsistência cada indivíduo ou unidade familiar deveria encarregar-se de produzir alimentos para si mesmo. A “roça” era e é a base da economia de subsistência. Entretanto não se limita a viver da roça o homem da economia de subsistência. Ele está ligado a um grupo econômico maior, quase sempre pecuário, cujo chefe é o proprietário da terra onde tem a sua roça. Dentro desse grupo desempenha funções de vários tipos, de natureza econômica ou não e recebe uma pequena remuneração que lhe permite cobrir gastos moratórios mínimos. Ao nível da roça o sistema é exclusivamente de subsistência, ao nível da unidade maior é misto, (grifo nosso), variando a importância de faixa monetária de região para região e de ano para ano numa região (Celso Furtado – Formação Econômica do Brasil – pg. 120). Neste texto e em diversas outras passagens do seu livro clássico, Furtado caracteriza o setor de subsistência como um espaço onde se exercem funções econômicas e não-econômicas, todos elas ligando o setor de subsistência à grande propriedade territorial. Sua produção e reprodução dependem da economia mercantil dominante, mas esse setor de subsistência conserva elementos de reprodução natural, principalmente na pecuária, que o deixa até certo ponto invulnerável às crises periódicas da economia mercantil. A seguir, recolhemos como síntese aquilo

que Furtado parece destacar como principais características do setor de subsistência: a) a produção de alimentos e outros recursos para suprir o auto-consumo das fazendas e atender o mercado consumidor urbano e as demandas da “Grande Lavoura”; b) albergar uma espécie de reservatório de força de trabalho, sob controle do grande proprietário territorial, a quem os ocupantes devem uma certa sujeição econômica e principalmente lealdade social; c) o setor de subsistência se caracteriza por um nível técnico de produção muito baixo, condição que lhe confere reduzida capacidade de produção de excedentes, expressos sob a forma de fluxos monetários pela venda da produção ou pelo pagamento de rendas econômicas apropriáveis pelo grande proprietário territorial; d) as unidade econômicas de subsistência – em geral a unidade familiar - apresentam-se altamente dispersas pelo interior do País, seguindo o rastro da pecuária, e em geral não

contam com o concurso do trabalho escravo ou do trabalho assalariado sistemático. Celso Furtado identifica o último quartel do século XVIII e toda a primeira metade do século XIX, quando se exaure o ouro das Minas Gerais e a economia açucareira entra em forte declínio pela concorrência das Antilhas, como o tempo histórico de maior adensamento do setor de subsistência na economia colonial. A ocupação territorial e a manutenção da população de homens livres de então é feita basicamente por este setor, que ocupa espaço do próprio setor exportador em fase de relativa e longa estagnação, até que se encontre um novo produto fortemente competitivo no comércio mundial: o café. 3. O Setor de Subsistência na visão de Raimundo Faoro A diminuição do setor exportador da economia colonial no período de quase 100 anos – 1750-1850 -, conquanto a população mais que dobrasse no período1, somente se explicaria, na

Dentro da economia de subsistência cada indivíduo ou unidade familiar deveria encarregar-se de produzir alimentos para si mesmo. A roça era e é a base da economia de subsistência .

1 Em 1750 para uma população de 1.750.000 habitantes a exportação alcançou 4,3 milhões de libras esterlinas, enquanto em 1800, numa população de 3,3 milhões de pessoas, mal subiu a 3,5 milhões de libras esterlinas. Cf. Raimundo Faoro. Os Donos do Poder. São Paulo, Ed. Globo, 2000. p.245.

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interpretação de Faoro, pela mediação de um enorme setor de subsistência na economia colonial, que se transporta à Monarquia (e, como veremos mais adiante, mantém-se também ao longo do século XX, chegando à atualidade ainda com enorme dimensão). Na economia nacional, será o embrião daquilo que mais tarde se constituirá no mercado interno brasileiro. Segundo Faoro, “... com a contração econômica do latifúndio, a terra e as conexões econômicas produtoras passam a adquirir maior importância, com a gravitação de categorias de pessoas sem terra em torno do proprietário” (op.cit., p. 244). Desde a segunda metade do século XVIII até aproximadamente 1850 decorre quase um século de decadência do comércio exterior, e também da importação de escravos negros, fatores que irão mudar o caráter do próprio empreendimento colonial: “Não apenas o conteúdo político do senhor rural mudou, senão que transformação

mais profunda alterou-lhe o “status”. Depois de dois séculos ocupados em produzir açúcar, lavrar ouro, cultivar cana e tabaco, pastorear gado – ao lado das funções paramilitares e paraburocráticas – a própria estrutura da empresa rural toma outro cunho. De caçador de riquezas converte-se em senhor de rendas, a fazenda monocultora toma o caráter de latifúndio quase fechado ...o antigo minerador, o senhor de engenho, o lavrador e o pastor ampliam – enquanto o café não vier avassalar as terras, as culturas de subsistência, preocupados em adquirir de fora o mínimo possível de bens, sal, ferro, chumbo e pólvora ......” (op.cit., pp.243-244 e 245). Por outro lado, Faoro identificara no século XVII, muito antes do declínio do ouro e da estagnação da economia da cana-de-açúcar, a formação dos sertões interiores do Nordeste, do Centro e posteriormente do Sul, conquistados por aventureiros paulistas e nordes-

Desde a segunda metade do século XVIII até aproximadamente 1850 decorre quase um século de decadência do comércio exterior, e também da importação de escravos negros, fatores que irão mudar o caráter do próprio empreendimento colonial . Revista de conjuntura

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tinos, que, penetrando ao longo dos Rios Tietê, Paraíba do Sul e São Francisco, fincaram marcos de conquista colonial, relativamente independentes do movimento de expansão da economia colonial litorânea. “Os Sertões do Sul e os Sertões do Norte abriram-se ao império e ao furor das armas desses duros conquistadores, onde ombrearam no século XVII paulistas como Domingos Jorge Velho, e baianos como Francisco Dias de Ávila, já agora embrenhados na meta para alargar a zona de criação, limpando-a do indígena” (op.cit., p. 155). Abertas as vastas regiões sertanejas do Nordeste e do Centro pela conquista das bandeiras e no extremo Sul pela presença militar oficial, a ocupação dessas áreas interiores darse-á em geral pelo estabelecimento de alguma atividade econômica de subsistência – agricultura alimentar e pecuária extensiva -, sendo esta última a que mais marcará a fisionomia das fazendas dos diversos sertões brasileiros. Na verdade, cessada a pregação dos índios e a busca de pedras preciosas como motivação imediata das entradas e bandeiras do século XVII, a maior parte da população indígena aculturada, dos poucos quilombos aí formados e da porção de brancos que aí penetrou atravessará os séculos XVII e XVIII tenuemente articuladas à economia colonial dominante. “A herança do conquistador – o coronel e o capanga, o fazendeiro e o sertanejo, o latifundiário e o matuto, o estancieiro e o peão – permanecerá estável, conservadora na vida brasileira, não raro atrasando

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e retardando a onda modernizadora, mais modernizadora que civilizadora, projetada do Atlântico” (op.cit. p.156). O Setor de Subsistência é um conceito relevante? As três abordagens sobre o setor de subsistência apresentadas nas seções precedentes tratam de um campo comum e de diferentes aspectos das noções de setor de subsistência. Para Caio Prado este seria um setor produtor de um valor de uso na economia colonial – o alimento para consumo humano, que, no entanto, assume também a condição de mercadoria de segunda ordem, e de cunho circunstancial, subsidiária da economia produtora de mercadorias típicas – a “Grande Lavoura”. Mas para esse autor as atividades de subsistência não se integram no conceito de economia colonial, cujo tripé constitutivo está estruturado no trabalho escravo, na grande propriedade territorial e na monocultura destinada ao comércio exterior. Por essa abordagem o conceito de economia de subsistência é dispensável, já que economia não é, mas tão-somente atividade subsidiária, transitória historicamente, sem dinâmica própria, mas inteiramente dependente do setor mercantil. Esse conjunto de negatividades terminam por conferir ao setor de subsistência um certo caráter de corpo estranho na economia colonial e depois à própria economia nacional. Sua dimensão social e territorial, reprodução material e relações econômicas e sociais próprias não são devidamente reconhecidas e/ou conceituadas. Ademais a persistência secular do setor de subsistência na economia rural e urbana ao longo de todo esse período

No aspecto econômico, Celso Furtado não associa diretamente a noção de subsistência à provisão de meios de subsistência, como explicitamente o faz Caio Prado . analisado teria que afetar a própria natureza da economia mercantil, interpenetrada dialeticamente, e não apenas de forma subsidiária e tangencial como propõe este autor. Em Celso Furtado a noção de setor de subsistência é multifuncional – contém dimensão econômica e relações sociais intrínsecas à natureza do latifúndio brasileiro. No aspecto econômico, Furtado não associa diretamente a noção de subsistência à provisão de meios de subsistência, como explicitamente o faz Caio Prado. Na verdade a noção de economia de subsistência de Furtado está associada a idéia do setor produtor de pequeno excedente monetário, em razão do seu baixo nível técnico e conseqüente precário nível de geração de fluxos monetários. Embora reconhecendo também o caráter dependente do setor de subsistência em relação à economia mercantil, Furtado não radicaliza o argumento da completa subsidiariedade desse, por duas razões: 1) porque enxerga evidentes explicações não econômicas para as relações sociais que se estabelecem com a economia mercantil; 2) porque reconhece uma dinâmica reprodutiva natural no setor de subsisRevista de conjuntura

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tência, que independe da economia mercantil. E nessa análise, Furtado elege a pecuária e não a agricultura de subsistência como atividade estruturante da economia de subsistência, calcada em moldes familiares e dependência sócio-política da grande propriedade territorial. Para Celso Furtado o setor de subsistência é um pólo constitutivo da economia colonial e depois nacional, com características estáveis, resistente às crises cíclicas da economia mercantil, embora com baixo nível técnico e precária capacidade de geração de excedente econômico. Mesmo assim este setor se reproduz secularmente, porque os excessos de trabalhadores que se albergam nos latifúndios constituem um arranjo típico de relações sociais de motivação extra-econômica. E essas relações continuam hegemônicas na sociedade. A visão do Faoro é muito mais próxima dessa explicação extraeconômica de Furtado. Mas Faoro acentua a relação do latifúndio com o setor de subsistência, enxergando na captura da renda da terra pelo latifundiário uma dimensão econômica nova quando a fazenda se transforma em autarquia. Esta tese, Furtado

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A grande propriedade territorial, oriunda do sistema de sesmarias, é peça integrante fundamental do setor de subsistência nas abordagens históricas desses três autores clássicos, Furtado, Prado e Faoro . não reconhece, em razão de suas teses de baixa capacidade de produção de excedentes monetários deste setor. Finalmente, nós poderíamos captar um consenso de interpretação histórica nesses três autores. Todos eles reconhecem a dimensão territorial e demográfica do setor de subsistência, utilizando-se de indicadores diretos ou indiretos que nos mostram a maior parte da população e do território albergados neste setor, senão em todo o período colonial, pelo menos no século que media a exaustão da economia do ouro (último quartel do século XVIII), até a plena constituição de uma economia cafeeira exportadora sucedânea (último quarto do século XIX). Todos os autores citados reconhecem outras relações de trabalho na economia de subsistência, que não a do trabalho escravo. Portanto, é importante reconhecer a coexistência de um setor de trabalho não escravo, albergando parte expressiva da força de trabalho em pleno regime colonial.

Finalmente a grande propriedade territorial, oriunda do sistema de sesmarias, é peça integrante fundamental do setor de subsistência nas abordagens históricas desses três autores clássicos. Mas como fica a configuração do setor de subsistência com o novo ciclo econômico que se inicia na economia brasileira com o café, a imigração, o fim do trabalho escravo, a Lei de Terras e a formação de um mercado de trabalho assalariado no Brasil? Teria sido este o período histórico de exaustão do setor de subsistência, liquidação de suas relações sociais “atrasadas” e plena constituição de uma economia mercantil no meio rural e no setor urbano? Estas questões todas marcam a passagem do regime de trabalho escravo ao trabalho livre e também na cronologia histórica a passagem do século XIX ao século XX. É, portanto, este o objetivo da próxima seção, perseguindo de perto o nosso objeto, qual seja – o que ocorre com o imenso setor de subsistência herdado do período colonial –

quando a economia e o Estado ingressam na nova ordem econômica e no novo ciclo econômico, que, para efeitos didáticos, dataria de 1850. 5. O Setor de Subsistência na transição do escravismo ao regime assalariado. A economia escravista começa a declinar de direito com a proibição do tráfico de escravos em 1850, pela Lei Eusébio de Queiroz, e continuará a declinar por todo o final do século, de fato e de direito, extinguindo-se em 1888 com a Lei Áurea. No final do século as informações do Censo de 1872 revelam que a população de escravos (1,5 milhão de pessoas) representava apenas 16,0% da população total, havendo uma população livre de 8,4 milhões de pessoas (84%), que obtinha os seus meios de subsistência fora dos domínios do escravismo. Dessa população escrava estima-se que no máximo 1,0 milhão de pessoas (descartados velhos e crianças) estivessem em atividade efetiva2. Observe-se que em 1872 o surto cafeeiro estava fortalecendo-se e já começara a existir um problema de mão-de-obra na lavoura cafeeira, assim como outra demanda forte por mãode-obra se manifestaria na economia da borracha no Norte do País, ao final dos anos 70 (século XIX). Mas a imigração européia ainda não iniciara seu importante fluxo de abastecimento para o café, principalmente para São Paulo3, de sorte que a expressiva participação das profis-

2 Alice Canabrava. A Grande Lavoura , in Sérgio B. Holanda (org). O Brasil Monárquico II Declínio e Queda do Império. p.131. 3 O número de imigrantes europeus que entram nesse Estado sobe de 13 mil, nos anos 70, para 184 mil no decênio seguinte e 609 mil no último decênio do século . Cf. Furtado, Celso. Op.cit. p. 128.

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sões livres na força de trabalho que os dados do Censo de 1972 revelam não reflete ainda os assalariados. Concentram-se fortemente no setor rural e nas atividades domésticas do setor urbano, que, juntas, empregam ou albergam cerca de 90% da força de trabalho livre em cinco províncias principais (Rio de Janeiro, São Paulo, Bahia, Pernambuco e Rio Grande do Sul), com uma pequena diferença para o município neutro do Rio de Janeiro, que apresenta um contingente apreciável de funcionários públicos e profissionais liberais4. Essa massa de força de trabalho livre somente em fração muito pequena pode ser classificada como “assalariada”. Mais uma vez valendo-me da “classificação por profissões” da população livre em 1872, feita por Fernando Henrique Cardoso no trabalho já citado, teríamos que os “operários” e “funcionários públicos” ali classificados poderiam aproximar-se dos trabalhadores assalariados. Os primeiros correspondiam a 4,7% da força de trabalho livre, enquanto os segundos representam menos de 1% da população livre das principais Províncias. Esse perfil de profissões, e implicitamente de relações sociais do trabalho, revela uma situação muito peculiar da sociedade colonial brasileira em vias de extinção do trabalho escravo. Esse regime já não era base econômica da grande lavoura, e a transição para o regime de trabalho livre ocorrerá muito antes da abolição: com recurso à imigração européia na lavoura cafeeira

paulista e com recurso à mão-deobra do setor de subsistência nas demais economias provinciais. Mas as relações sociais sob as quais se assentaria o novo regime de trabalho depois da abolição longe estavam de caminhar para o aprofundamento do assalariamento na economia nacional pós-escravista. O funcionamento da economia brasileira na República Velha é incapaz de incorporar, de forma sistemática, o assalariamento. Sua dinâmica, puxada pela expansão da lavoura cafeeira e pela incorporação do trabalho semi-assalariado dos contratos de “colonato”, somente é potente o suficiente para incorporação de uma pequena parcela do trabalho livre, herdado do antigo setor de subsistência, e evidentemente dos novos imigrantes. Em contrapartida, toda a massa ex-escrava e toda a grande lavoura de mais baixa produtividade econômica (açúcar, algodão, cacau e fumo) e até da borracha no final do século conduzirá suas atividades econômicas intimamente associadas ao setor de subsistência da economia. Este, na República Velha, não foi absorvido pela expansão cafeeira, mas reproduziu-se de

forma autárquica ou subsidiou inúmeros arranjos de relações de trabalho com a grande lavoura que, de certa forma, realimentou a reprodução de ambos. Os diversos Censos Econômicos dos anos de 1900, 1910 e 1920 continuaram a apresentar a estrutura ocupacional do Censo de 1872 (com exceção do “colonato” na cafeicultura e do assalariamento urbano no Estado de São Paulo), não obstante o fim do regime escravista. E nesse quadro ocupacional, veremos que o antigo setor de subsistência, forjado no período colonial e adensado por quase um século (1750-1890) de declínio/estagnação da “grande lavoura”, comparece praticamente intacto nesta nova fase da economia nacional, conservando antigas características clássicas e também despontando com novos perfis. 5.1. O Setor de Subsistência, a Lei de Terras e a Abolição A grande propriedade territorial, fundada no regime colonial das sesmarias, detém simultaneamente domínio sobre a grande lavoura escravista monocultora e destinada ao comércio externo, e um outro sobre o setor de subsistência, operado median-

O funcionamento da economia brasileira na República Velha é incapaz de incorporar, de forma sistemática, o assalariamento .

4 Ver tabulações por profissão elaboradas por Fernando Henrique Cardoso. Dos Governos Militares a Prudente Campos Sales pp. 18-19, in Boris Fausto (org.). O Brasil Republicano Estrutura do Poder e Economia 1889-1930, São Paulo: Difel, 1977.

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te recurso às múltiplas relações de trabalho não-escravo que vinculam o agricultor familiar ao proprietário da terra. A produção dessa agricultura familiar, geralmente de gêneros de subsistência, parece ser o aspecto secundário dessa relação; já a dependência social e pessoal do agricultor de subsistência em relação ao senhor de terras é característica essencial. Esse setor de subsistência sobreviveu à abolição da escravatura até porque é um subsistema independente do escravismo e de certa forma também é autônomo relativamente à monocultura exportadora, mas não o é em relação ao regime fundiário vigente. Observe-se, portanto, que a crise da monocultura exportadora na primeira metade do século XIX e a crise do escravismo de sua segunda metade não produzem uma transformação radical no setor de subsistência, mas sua reprodução em escala ampliada. Isto na verdade está refletindo a substituição do regime das sesmarias por um estatuto ainda mais conservador de relações fundiárias: a Lei 601/1850 (Lei de Terras). Este estatuto fundiário, substitui o regime de sesmarias,

extinto em 1822. Mas essa lei é precedida por um regime transitório, vigente até 1850, que inovara nosso direito agrário com o reconhecimento da posse: “Daí por diante, em lugar dos favores do poder público, a terra se adquire por herança, pela doação, pela compra e sobretudo pela ocupação – a posse, transmissível por sucessão e alienável pela compra e venda” (cf. Faoro, op.cit. p.408). Observe-se que a vigência desse regime de posse é transitório e breve em nossa história econômica, coincide com um período de forte decadência da “grande lavoura”, mas será completamente alterado com a Lei de Terras de 1850. Esta reconhece as sesmarias previamente concedidas em cada comarca ou paróquia e mesma as posses obtidas no período anterior (1822-1870), desde que registrados nos registros cartoriais ou paroquiais então estabelecidos: “Para o futuro punha-se termo ao regime das posses, admitida a trasmissão das propriedades apenas pela sucessão e pela compra e venda (...) para o futuro as terras públicas só seriam adquiridas por

A crise da monocultura exportadora na primeira metade do século XIX e a crise do escravismo de sua segunda metade não produzem uma transformação radical no setor de subsistência, mas sua reprodução em escala ampliada . Revista de conjuntura

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meio de compra, com a extinção do regime anárquico das ocupações....” (Faoro, op.cit., p.408 e p.409) Esse estatuto fundiário de 1850 corresponde, como que a um golpe histórico duplo: 1) liquida o sistema de posses fundiárias que se estabelecera em 1822 e que poderia transformar o setor de subsistência em regime de propriedade familiar; 2) liquida com a possibilidade futura de transformação da mão-de-obra escrava liberta, em novo contingente de posseiros fundiários, com possibilidade também de estabelecimento de quilombos legais e ou estabelecimentos familiares legalizados. Em lugar dessa transição histórica, que de certa forma se desenhara parcialmente a partir de 1822, recompõe-se o setor de subsistência sob a égide da grande propriedade: “O lavrador sem terras e o pequeno proprietário somem na paisagem, apêndices passivos do senhor territorial que, em troca da safra, por ele comercializada, lhes fornece em migalhas encarecidas os meios de sustentar o modesto plantio. As precárias choupanas que povoam o latifúndio abrigam o peão, o capanga, talvez o inimigo velado, servo da gleba sem estatuto, sem contrato e sem direitos. O sistema das sesmarias deixou, depois de extinto a herança: o proprietário com sobras de terras, que nem as cultiva, nem permite que outro as explore. Os lavradores, meeiros e moradores de favor são duas sobras que a grande propriedade projeta, vinculados à agricultura de subsistência, arredados da lavoura que exporta e que lucra....” ( Faoro, op.cit. p. 418).

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A transição do escravismo para o regime de trabalho livre representa no final do século não propriamente a emergência de um regime assalariado em bases nacionais. Mas graças ao regime fundiário recalibrado em 1850, a abolição trará os exescravos para o setor de subsistência, reforçando as relações de dependência social que vinculavam os trabalhadores livres à grande propriedade territorial. As muitas relações de trabalho não-assalariado que coexistem com o trabalho assalariado na grande propriedade concorrem para depreciar o salário monetário e o próprio contrato de trabalho. Neste período as relações de trabalho não então protegidas por instituição pública. A dimensão quantitativa desse setor de subsistência, com as características que aqui estamos destacando, pode ser identificada nas estatísticas demográficoprofissionais dos vários Censos, posteriores à abolição (ver Censos Demográficos de 1872 a 1920), abordagem a que por ora não nos dedicamos neste texto. Por outro lado, a emergência da um setor de grande lavoura, movido a trabalho assalariado, fortemente abastecido pela imigração, é uma realidade histórica que somente pode ser entendida dinâmicamente, se o interpretamos em conexão com a manutenção e ampliação do setor de subsistência na economia. A conservação das relações fundiárias e relações de trabalho intocáveis na transição da abolição marcarão toda a economia e sociedade da República Velha por evidentes sinais de atraso social, e conservadorismo político. Este “pacto” na República Velha de certa forma condenou as forças sociais

O século XX é um período histórico privilegiado, mas contraditório para a reflexão sobre a Questão Social Brasileira . O pensamento social sobre a formação do País se diversifica e de certa forma a própria História se acelera pela emergência de novos atores após a abolição da escravatura . emergentes com o desenvolvimento da cafeicultura e do setor urbano a reproduzirem muitos dos traços da vida colonial. São Paulo, apresentando um diferente pacto social, é uma exceção, que não generaliza seu projeto de desenvolvimento para o conjunto do País. Ao contrário, acomodase plenamente à regência de uma ordem conservadora, sem dinamismo próprio, até a derrocada política em 1930. 6. A Questão Social Depois da Abolição O século XX é um período histórico privilegiado, mas contraditório para a reflexão sobre a “Questão Social Brasileira”. O pensamento social sobre a formação do País se diversifica e de certa forma a própria História se acelera pela emergência de novos atores após a abolição dos escravos. Ocorrem ainda diversos surtos de industrialização que irão emergir até os anos trinta; principalmente depois destes surtos o Revista de conjuntura

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País experimentaria processo intenso de industrialização, até o início dos anos 80. Daí para a frente, a economia passa por um longo período de relativa estagnação. Mas a “Questão Social” clássica do século anterior, que desembocara na abolição, aparentemente se esgota num ato formal – a Lei Áurea –, e a sociedade que se estruturará a partir de então já não é vista como estando em dívida social profunda com as necessidades do mundo moderno em termos de mudança das relações sociais. Ao mesmo tempo, a reflexão sobre a questão social sai do campo da política para outras esferas de vida social, captando muitas outras situações dentro da questão social emblemática do Brasil, mas sem um eixo geral de cunho político e abrangência nacional. Se focalizarmos provisoriamente a questão social a partir da transição do regime de trabalho escravo para o regime de trabalho livre (não-escravo), veremos que se perde a partir de

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A sociedade que se forja no Brasil depois da abolição carrega no seu âmago duas questões mal resolvidas do século anterior: as relações agrárias arbitradas pelo patriciado rural e uma lei de libertação dos escravos . então o próprio objeto – as relações sociais estruturantes, que tinham mobilizado a sociedade e a política em nível nacional à época do escravismo. Com a abolição do regime de trabalho escravo emergem e se exacerbam vários problemas de iniqüidade nas condições de vida da maioria da população – exescravos, homens pobres brancos, pretos e pardos libertos antes da Lei Áurea. Esses problemas, conquanto graves e até explosivos, para citar o exemplo clássico que é Canudos, não assumem o caráter político e social que tivera a “Questão Social” da escravatura. São lidos de diferentes maneiras, pela sociedade existente: questões regionais, problemas étnicos, movimentos messiânicos, “secas”, banditismo rural etc.; somente mais tarde – nos anos sessenta do século XX - irá configurar-se na agenda dos setores de oposição política de esquerda – a chamada “questão agrária”. A sociedade que se forja no Brasil depois da abolição carrega no seu âmago duas questões mal

resolvidas do século anterior: as relações agrárias arbitradas pelo patriciado rural, mediante uma Lei de Terras (1850), profundamente restritiva ao desenvolvimento da chamada “agricultura familiar”, e uma lei de libertação dos escravos que nada regula sobre as condições de inserção dos ex-escravos na economia e sociedade pós-abolição. Esta sociedade de grandes proprietários de terra e de poucos homens assimilados ao chamado mercado de trabalho inaugurará o século XX impregnada pela desigualdade de oportunidades e condições de reprodução humana para a esmagadora maioria dos agricultores não-proprietários e trabalhadores urbanos não inseridos na economia mercantil de então. Sobre essa imensa maioria, no País continental que é o Brasil, veremos que no século XX a História Social, a Literatura Social e a História Econômica, com seus diferentes olhares metodológicos sobre a sociedade, nos contarão um repertório de versões sobre a grande drama-

ticidade das condições de vida da base de nossa pirâmide social. Faltará incrivelmente nesses olhares uma leitura política sobre as raízes desse mal-estar social e da sua não-conversão em problema político social nacional, diferentemente do que ocorrera no século XIX. Na verdade, a Terra e o Homem que se configuram no Brasil da primeira metade do século XX são um mundo de exclusão e violência, albergados precariamente nos mundos dos vários “sertões”, levantados por nossa literatura social e regional, sob a égide de um patriciado agrário, respaldado pelos direitos absolutos da Lei de Terras. 6.1. O Setor de Subsistência e a Rebeldia Social na República Velha. A história social das populações não incluídas no bloco do poder na 1ª República é cheia de buracos negros. Uma parte das classes sociais subalternas – o proletariado urbano, por exemplo – ingressa na História, ainda que de forma clandestina, protagonizada pelo Partido Comunista5, e é objeto de pesquisa sistemática meio século depois nos institutos de pesquisa e academias fortemente influenciados pelo marxismo. Mas a população que escolhemos para investigação de certa forma escapa da curiosidade intelectual-acadêmica, com exceção da leitura episódica que daria conta das rebeliões que ocorreram na República Velha, a maior parte delas tendo por cenário aquilo que estamos chamando de setor de subsistência nacional.

5 Para uma abordagem de pesquisa sobre as classes médias e o proletariado na Primeira República, ver in Boris Fausto (org.) O Brasil Republicado III Sociedade e Instituições (1889-1930), capítulo I (classes médias) e capítulo 4 (proletariado), de autoria de Paulo Sergio Pinheiro

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A pesquisa bibliográfica sobre este pedaço esquecido do Brasil provavelmente encontraria maior destaque na literatura social-regional, de certa forma inaugurada pela obra clássica “Os Sertões” de Euclides da Cunha, que irá influenciar no Brasil várias gerações literárias, que de alguma forma retomarão o tema dos sertões na literatura regional, como veremos adiante. Na República Velha, conquanto não se trabalhe com o conceito da “Questão Social”, a exemplo da questão do trabalho escravo no século XIX, experimenta-se um quadro difuso de rebelião social urbana e rural, que se traduz em eventos muito diferenciados de conflito em praticamente todo o “sertão” brasileiro. Canudos (1895-98), Contestado (19121916), Juazeiro (1889-1934), Caldeirão (1936-1938) são episódios muitos diversos, com conotações ora de messianismo puro, ora da luta pela terra, violentamente combatida pelas armas da República. Todos eles surgem no território dos sertões e no espaço social daquilo que vimos definindo como setor de subsistência da economia brasileira. Nessas cinco décadas da República Velha e dos anos 30, os sertões foram o campo de conflito aberto entre e dentre vários dos tipos sociais forjados no setor de subsistência: coronéis e jagunços, cangaceiros, místicos e até grupos armados de procedência urbana, como o foi a “Coluna Prestes”, que percorreu e descobriu, para sua enorme surpresa, o Brasil real dos “sertões” – completamente desintegrado do Brasil urbano ou litorâneo.

Canudos, Contestado e Caldeirão (Juazeiro em menor grau) apresentam alguns elementos em comum, não obstante a relativa distância geográfica e mesmo histórica que os separa: são movimentos sociais organizados no interior do setor de subsistência da economia; apresentam e recuperam elementos do catolicismo popular de alguma maneira impregnados na memória e resgatados na mobilização popular; ignoram ou explicitamente denunciam a estrutura da propriedade latifundiária preexistente; e, finalmente, são combatidos e dizimados militarmente pelas forças da ordem da República, no que resultou na sua eliminação física (com exceção de Juazeiro). Os seus líderes e seguidores constituem uma população pobre, mestiça e desintegrada da economia agrário-exportadora e urbana que então era o chamado pólo dinâmico da economia brasileira. Essas características comuns são provavelmente um eixo fatal a condenar

estes movimentos a um certo pacto do esquecimento nacional. O gênio literário de Euclides da Cunha salvou a maior dessas rebeliões do destino comum que todas elas vêm tendo ao longo de nossa história: conflitos locais, particulares, produto de fatores pré-políticos e/ou fanatismo religioso, sem maior importância para a formação da sociedade e da História nacional – como são captados e interpretados pela “establishment” formador das idéias e agendas da pesquisa acadêmica. Os “Sertões”, a juízo de muitos a maior obra da literatura brasileira do século XX, completando, em dezembro de 2002, exatamente cem anos de sua primeira edição, propôs um desafio intelectual novo, qual seja o da interpretação do Brasil incorporando os seus “Sertões”, até então esquecidos ou desvalorizados. Esse desafio intelectual, que provavelmente Euclides se fizera com muita força e convicção, teve repercussões profundas na História da literatura brasileira6,

Nessas cinco décadas da República Velha e dos anos 30, os sertões foram o campo de conflito aberto entre e dentre vários dos tipos sociais forjados no setor de subsistência: coronéis e jagunços, cangaceiros, místicos e até grupos armados de procedência urbana .

6 A literatura regional brasileira a partir de A Bagaceira , de José Américo de Almeida, tematiza os sertões e o sertanejo brasileiro em várias obras clássicas (Rachel de Queirós, Guimarães Rosa, Ariano Suassuna, Graciliano Ramos etc).

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mas uma influência muito precária na História Econômica e na pesquisa sociológica, que na sua segunda metade do século XX é feita basicamente nas instituições universitárias. A divisão formal de “Os Sertões” – “A Terra”, “O Homem”, “A Luta” – é paradigmática e não apenas pelo seu lado formal, mas principalmente substantivo. É uma tentativa de compreender e interpretar o Brasil profundo, trazendo à baila o setor de subsistência da economia, onde se dá essa luta desigual do homem despossuído na terra inóspita sob o jugo de senhores proprietários absenteístas. Sem esses elementos, a sociedade brasileira e a economia brasileira ficariam carentes de traços essenciais de sua formação. E sem essa recuperação histórica, os problemas contemporâneos da desigualdade, marginalidade e pobreza parecem insondáveis, aparentemente efeitos sem causa. 6.2. Rupturas com o modelo de economia de subsistência: as experiências do sertão A constituição de experiências sociais e econômicas de comuni-

dades que superaram os limites e as barreiras sociais da economia de subsistência e desenvolveram importantes estratégias de desenvolvimento, integradas ao mercado interno regional, talvez seja a grande novidade, a ser investigada pela constatação e comparação do que teria ocorrido de comum no Arraial de Bom Jesus, em Juazeiro (Ce), e na Comunidade do Caldeirão. Contestado não foge a esse enfoque, mas merece análise à parte, por peculiaridades regionais que convém destacar (e que por ora não serão destacados neste texto). O movimento que impele estas comunidades a se constituírem apresenta claramente uma ruptura com o padrão de hegemonia da economia política dominante. Os agricultores, artesãos, pequenos comerciantes, beatos, romeiros etc., que se aglutinam nessas localidades e constituem um assentamento humano, fazem-no fora dos domínios físicos e patrimoniais do latifúndio. Criam novas relações econômicas entre si e com o mercado exterior às aglomerações microurbanas aí formadas e produzem

Lendo com a atenção devida as descrições de Euclides da Cunha, percebe-se na trajetória do Conselheiro um movimento de organização não apenas religiosa, mas das própria economia popular, por meio de iniciativas as mais variadas . Revista de conjuntura

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individual ou coletivamente um amplo excedente que permite expansão, até mesmo acelerada do estoque de bens sob controle da comunidade, e/ou de sua direção religiosa. A construção ou reconstrução de igrejas, cemitérios, açudes, casas, cercas e uma lista variável de empreendimentos, em curto período, possibilita e é possibilitada pela cooperação interprofissional do povo simples. Este processo de mobilização é estranho ao regime de economia de subsistência, todo ele subordinado a relações de lealdade e dependência de famílias a um proprietário absenteísta ou não. 6.3. Canudos Canudos fora sede de uma velha fazenda de gado à beira de Vaza Barris, e era, até 1890, “Uma tapera de cerca de cinqüenta capuabas de Pau a Pique”. (Euclides da Cunha op.cit. 184). De 1893, data em que ali chega o Conselheiro, até 05 de outubro de 1898, data em que é completamente derrotado e arrasado pelo Exército, edificara-se uma cidade de aproximadamente 30.000 pessoas. Restaram ainda, no dia 05 de outubro, depois de longo cerco e destruição pela artilharia, 5200 casas “cuidadosamente contadas”, segundo Euclides. No dia 06 acabaram de destruí-las, deixando o Arraial pedra-sobre-pedra. Lendo com a atenção devida as descrições de Euclides da Cunha, percebe-se na trajetória do Conselheiro um movimento de organização não apenas religiosa, mas das própria economia popular, por meio de iniciativas as mais variadas: “Antonio Conselheiro há vinte e dois anos, desde 1874, era

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famoso em todo o interior do Norte e mesmo nas cidades do litoral (...) Vinha de uma peregrinação incomparável há um quarto de século, por todos os recantos do sertão, onde deixara como enormes marcos, demarcando-lhe a passagem, as torres das dezenas de igrejas que construíra, fundara o arraial do Bom Jesus, quase uma cidade; de Xorroxó à Vila do Conde, de Itapecuru a Jeremioabo, não havia uma só vila ou lugarejo obscuro, em que não contasse adeptos fervorosos e não lhe devesse a reconstrução de um cemitério, a posse de um templo ou a dádiva providencial de um açude...” (Euclides da Cunha, op. cit. p.227). Conquanto pouco se saiba das relações econômicas concretas da comunidade de Canudos, não há dívida de que esta superou de longe o estágio pretérito da economia de subsistência pecuária da região do Vaza Barris e estabeleceu relações comerciais múltiplas com as cidades vizinhas. Não há dúvida de que essas atividades eram constituídas pela cooperação interprofissional – carpinteiros, pedreiros, artesãos, jagunços, agricultores, prestadores de serviços etc., todos cooperando em nome da fé, mas muito fortemente envolvidos com o comércio. Também não resta dúvida de que a atividade econômica que exerciam atendia-lhes necessidades básicas e gerava excedentes, que a comunidade, sob direção de Conselheiro, apropriava sob a forma dos muitos investimentos comunitários descritos e tantos outros de caráter familiar, de que não dispomos de muita informação. Este projeto de economia escapa completamente aos limites da economia política dominada

Juazeiro é experimento vivo, embora politicamente limitado, de superação do regime de economia de subsistência . pelos coronéis da República Velha, no domínio dos quais o semiárido nordestino constituíra um dos mais atrasados rincões do setor de subsistência nacional. 6.4. Juazeiro (CE) Quase à mesma época em que o Conselheiro inaugurava seu arraial em Canudos, surgia no interior do Ceará um movimento religioso, de forte apelo popular, sob a liderança do Pe. Cícero Romão Batista. Os milagres atribuídos à Beata Maria de Araújo durante vários meses, em 1889, provocaram intenso movimento de romarias com destino a Juazeiro (CE), muito intensos nos anos de secas, mais regulares nos demais anos, até 1934, quando morreu o Pe. Cícero. Esse movimento religioso-popular, e sua liderança, constituem em Juazeiro o exemplo mais notável de ruptura com a economia política do setor de subsistência, inaugurando um importante assentamento humano nos sertões, com algumas relações de trabalho e relações fundiárias novas, embora sem romper politicamente com a ordem republicana e o jogo do poder dos coronéis do sertão. A zona rural e a comunidade urbana de Juazeiro convertem-se em pólo aglutinador de trabalhadores sem terra, romeiros, artesãosindustriais, comerciantes, prestadores de serviços etc., de sorte que, entre 1884 e 1909, a vida precária evoluiu para novo patamar: Revista de conjuntura

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“A atividade econômica principal de Juazeiro, entretanto, provinha de suas florescentes indústrias artesanais. Desenvolveram-se para atender as necessidades do consumo do povoado em ascensão e como uma resposta oportuna à incapacidade das áreas rurais limitadas de Juazeiro para absorver os imigrantes nas áreas agrícolas, de imediato após a chegada. (...) A princípio dedicavam-se tais atividades à construção de casas assim como à manufatura de vários artigos de uso doméstico confeccionados com matéria-prima local: louças de barro, vasos, paredes, cutelaria, sapatos, objetos de couro, esteiras de fibras vegetais, cordas, barbante, sacos e outros receptáculos para estocar e expelir gêneros alimentícios.” (Ralph della Lava. Milagre em Juazeiro, op.cit., p.125). Juazeiro é experimento vivo, embora politicamente limitado, de superação do regime de economia de subsistência, alí onde essa economia é fortemente afetada, entre 1877 e 1915, por quatro secas de grandes proporções (1878, 1888, 1898 e 1915), sendo que a primeira delas matou 57 mil pessoas no ano de 1878. De albergue para retirantes e ponto de encontro de romeiros, a cidade se converte naquilo que ainda hoje ostenta: uma experiência de desenvolvimento econômico-religioso, fora dos domínios do

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A experiência do Caldeirão transcende os limites sociais do Juazeiro e, mesmo sendo menos conhecida que aquela experiência, contém elementos internos de muita relevância no que concerne às propostas de ruptura com o setor de subsistência . latifúndio rural e dos coronéis da região. Mas o próprio Pe. Cícero tornou-se um novo Coronel e Patriarca do Vale, grande proprietário de terras e imóveis urbanos. Contudo, exerceu um controle social distinto sobre os seus adeptos, mesmo sem ultrapassar os limites da ordem estabelecida. 6.5. Caldeirão A comunidade de Caldeirão (1931/1938), liderada pelo beato José Lourenço, amigo do Pe. Cícero, instalou-se em terras cedidas pelo patriarca para serem cultivadas pelo beato e sua gente, e de fato transforma todos as relações de poder na Região até ser liquidada pelas armas da Polícia Militar do Ceará. A proposta comunitarista do Caldeirão, diferentemente do Juazeiro, mudara por completo as relações econômicas e sociais no lugarejo, introduzindo um projeto popular e religioso de vida em sociedade, ao mesmo tempo em que instalara uma forma de cooperação econômica altamente desenvolvida.

Há evidências de que aí se tenha constituído não apenas um assentamento precoce da Reforma Agrária popular, como também um distrito rural de produção artesanal e industrial de caráter “multifuncional”: “Existiam oficinas de carpintaria, funilaria, curtume, ferraria etc., tudo fabricado no Caldeirão: as canecas d’água, chaleiras, cuscuzeiras, litros de medição, candeeiros etc. No curtume tratavam o couro para a fabrico de selas para os cavalos, arreios, gibões, alforges, sapatos, alpargatas, chinelos de rabicho. Na carpintaria, além dos móveis simples das casas, fizeram também as portas da capela. Além disso, o mais importante foi a construção do engenho de rapadura, todo ele feito artesanalmente... 7 A experiência do Caldeirão transcende os limites sociais do Juazeiro e, mesmo sendo menos conhecida que aquela experiência, contém elementos internos de muita relevância no que

concerne ao foco desta seção: propostas de ruptura com o setor de subsistência. Há forte evidência, pela quantidade e qualidade de bens saqueados pela Polícia Militar por ocasião da invasão perpetrada em 1938, da ocorrência de um nível de produção e de excedente relativamente elevados no Caldeirão; e ainda mais: de que esse excedente fosse produzido e desfrutado pela comunidade em bases não capitalistas, em plena República Velha. Tudo indica, na Comunidade do Caldeirão, que o projeto de produção comunitária tenha alcançado alto grau de integração de todos os seus indivíduos, que tenha realizado formas multifuncionais agrícolas e não-agrícolas de incorporação de atividades, profissões e funções; que o excedente econômico tenha sido suficiente para desenvolver e atender muitos outros projetos comunitários: igrejas, cemitérios, açudes, engenhos etc., além de apreciáveis excedente pecuários e agrícolas. Mas a propriedade da terra terminou por se constituir em um tendão de Aquiles do movimento, visto que veio a ser reclamada pelos herdeiros legais do Pe. Cícero – A Ordem Salesiana, iniciando-se aí o processo de demolição física e social da experiência em pleno período do Estado novo. 7. O longo ciclo de industrialização (1930-1980) e o Setor de Subsistência A Revolução de 1930 demarca um outro momento de inflexão da nossa história econômica e social, tão importante quanto o

7 Vera Lúcia G. de Matos Maria: José Lorenço, o Beato Camponês da Comunidade do Caldeirão. Coleção Homens e Mulheres do Nordeste. São Paulo: Edições Paulinas, 1992, p.25.

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foram a Abolição e a Independência política no século XIX. Por isso, nesse contexto de uma nova transição política e econômica é relevante conceituar ou reconceituar a categoria colonial setor de subsistência, que vimos utilizando como conceito relevante para compreender e interpretar nossa economia e sociedade atuais. Novamente cabe aqui a pergunta que fizemos na seção precedente, relativamente ao escravismo. A emergência de um novo ciclo econômico, e novo padrão de acumulação de capital na economia brasileira a partir de 1930, é mudança econômica e social capaz de eliminar o setor de subsistência da economia? Ou esse setor ficará também reproduzido neste processo? Observe-se que o setor de subsistência que aqui estamos considerando compreende o conjunto de atividades econômicas e relações de trabalho que propiciam meios de subsistência e/ou ocupação a uma parte expressiva da população, mas essas relações não são reguladas pelo contrato monetário de trabalho assalariado, nem visam primordialmente à produção de mercadorias ou serviços mercantis. Essas atividades e relações sociais são uma herança da economia colonial, que se mantêm com o fim do escravismo e a revivescência de uma economia primário-exportadora nas três primeiras décadas do século XX. A crise do modelo primário exportador, a partir de 1929, e a mudança do comando da elite política, com a Revolução de 1930, demarcam na nossa História econômica o início de um período de industrialização, ainda restringido no Pré-Guerra, mas claramente fomentado no Pós-

Guerra. Nesse contexto, seria de se supor teoricamente irrelevante a persistência de um largo setor de subsistência na economia que se industrializava e se urbanizava. Pelo menos esta é a tese prevalecente nos diversos campos teóricos – a esquerda e a direita (ver seção de “approach teórico”), – que analisam o desenvolvimento econômico ou o desenvolvimento capitalista no Brasil durante o meio século de crescimento acelerado – 1930-1980. A História econômica e social do Brasil posterior a 30 praticamente ignora o setor de subsistência enquanto categoria digna de se constituir em objeto de estudo especializado. Isto não significa a assunção de sua inexistência, mas o pressuposto de sua irrelevância teórica. Por outro lado, para a pesquisa que estamos empreendendo, o setor de subsistência é um conceito de história econômica relevante e – pelo menos por hipótese – ele tem que ser investigado. Há que dimensioná-lo, por um lado, nos diversos censos demográficos a partir de 1930 até 1980; mas é importante também refletir sobre a configuração teórica contemporânea dessa massa de informações que se coleta nos Censos. Os enfoques empírico (a ser construído) e teórico (ver próxima se-

ção) são a ponte que fazemos do nosso período de análise atual (1930-1980) para aquele que abordamos nas seções precedentes, perseguindo sempre a categoria “setor de subsistência”. 7.1 - “Approach Teórico” A abordagem histórica precedente revela-nos ao longo de mais de duzentos anos da História econômica, sobre o qual detemos algum grau de informação e conceituação comparável, um expressivo conjunto de atividades econômicas e relações de trabalho, que ocupam a maior parte da população brasileira e que escapam às caracterizações clássicas dos regime de trabalho escravo ou do regime capitalista assalariado. Este setor, denominamo-lo pela noção colonial como a História econômica o tratava – setor de subsistência. Por sua vez, a permanência, com alguma metamorfose, deste setor na economia industrial e urbana do século XX, albergando já no seu final cerca de 2/3 da força de trabalho, reintroduz um gigantesco desafio teórico, que, diga-se de passagem, quase nunca foi enfrentado no pensamento econômico e social do País. Temos muita reflexão sobre a formação do proletariado, das classes médias, do empresariado e da elite

A História econômica e social do Brasil posterior a 30 praticamente ignora o setor de subsistência enquanto categoria digna de se constituir em objeto de estudo especializado . Revista de conjuntura

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dirigente; mas sobre a base da população, excluída dessas classes, a pesquisa é escassa, mas não a população. Sobre o setor de subsistência pesam inúmeros anátemas, estigmas e preconceitos intelectuais, que em geral afastam os pesquisadores da reflexão sobre algo que não é uma categoria histórica ou teórica comum à História econômica da Europa ou da América, matrizes do nosso pensamento e referencial para comparações. Na literatura da História econômica e social da Europa há um campesinato e um sistema de corporações de ofício que o capitalismo industrial dissolve, e depois absorve ou exporta para as colônias. Na América há uma sociedade indígena primitiva que a expansão capitalista destrói, substituindo-a por um regime familiar rural, no contexto de um capitalismo reestruturado em sua base agrária. As frações de população que ainda subsistem dos antigos regimes feudal e indígena na Europa e na América do Norte são francamente residuais e certamente sem nenhuma conotação aproximada à nossa trajetória histórica.

Mas quando adotamos em bloco categorias e teorias sobre o desenvolvimento capitalista da Europa e da América, provavelmente deixamos de apreender aspectos cruciais da realidade que escapam nessa malha teórica. Temos um setor de subsistência em nossa economia/sociedade que não pode ser cognominado de “resíduo feudal”, tampouco de “exército industrial da reserva”, ou de “resíduo da comunidade primitiva”, em processo de aculturação e metamorfose à economia e sociedade capitalista. Ora, cerca de 60% da população brasileira hoje dependem (ver dado da Tabela 1) e mais da metade da população que sempre retirou seus meios de subsistência dessas e nessas relações de trabalho. E essas atividades e relações de trabalho caracterizam-se historicamente pelos baixíssimos níveis técnicos, e reproduzem relações de trabalho de sorte a gerarem dependência social e forte exploração humana. Sua perpetuação histórica indica uma matriz de desigualdade e pobreza que se mantém, sem rupturas, ao longo da História. Mas isto não é efeito sem causa. Não é uma categoria resi-

Na América há uma sociedade indígena primitiva que a expansão capitalista destrói, substituindo-a por um regime familiar rural, no contexto de um capitalismo reestruturado em sua base agrária . Revista de conjuntura

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dual, transitória e subsidiária do desenvolvimento capitalista e nem cabe nas categorias aproximativas da Histórica econômica e social da Europa ou da América do Norte. Tampouco é uma comunidade indígena resistente e remanescente à dominação branca, como o são na América Latina os grupos indígenas do México e na Zona Andina os grupos indígenas da Bolívia, do Equador e do Peru. O setor de subsistência na nossa economia e sociedade é o espaço das relações de dominação das populações excluídas de um modo especificamente capitalista de exploração econômica, mas submetidas ao jugo político do poder patrimonialista. O desenvolvimento capitalista no setor rural, na indústria moderna e nos serviços não tem sido nem é capaz de incluir e absorver este setor de subsistência; não o foi na sua fase primárioexportadora, nem no ciclo industrial (1930-1980), e muito menos sê-lo-á na era da globalização e do neo-liberalismo econômico. Sua inclusão, que foi admitida teoricamente com uma lei de tendência à direita e a esquerda, como dinâmica inerente ao próprio desenvolvimento das forças produtivas capitalistas, é uma entre tantas precárias teorizações que se dissolveram no ar, fruto de uma reflexão marxista a-histórica e teleológica. Não resiste à análise de nossa História econômica, muito embora estivesse e ainda esteja na cabeça de muitos pesquisadores que pautaram nossa História econômica e pesquisa social do pós-guerra. O tamanho do setor de subsistência é uma informação muito relevante, não apenas pelo seu lado quantitativo. Sua dimensão é


uma característica ultra relevante para que se possa interpretar sobre o seu papel ocupacional intra e inter ciclos de desenvolvimento da economia dos mercados no Brasil. Já vimos, pela análise dos capítulos precedentes, que o setor de subsistência desempenhou o papel ocupacional principal na economia colonial; cumpriu função primordial na passagem do regime escravista para o de trabalho livre, na República Velha; e finalmente, no longo ciclo de industrialização do pós-guerra, o mercado de trabalho formal avançou, mas nem de longe logrou dissolver o setor de subsis-

tência. E enfim, quando se exaure o ciclo de industrialização intensiva do pós-guerra, o setor de subsistência volta a crescer. Uma informação pontual: a comparação entre os Censos de 1980 e 2000 dos setores formal e informal dos mercados de trabalho brasileiros (ver Tabela 1) corrobora essa linha de argumentação. Em 1980, ao final do ciclo de expansão de cerca de 50 anos de industrialização e urbanização intensivas, o setor formal do mercado de trabalho (empregados com carteira e autônomos contribuintes, mais funcionários públicos e empregadores) atingiu o pico de absorção da população

Tabela 1 Comparação entre os Setores Formal e Informal entre os Censos de 1980 e 2000. Censo 1980 PEA %

Censo 2000 PEA %

1.Setor Formal (1+2+3)

55,6

43,1

Empregados contribuintes, inclusive domésticos

43,8

31,8

Conta Própria contribuintes

6,6

4,1

Funcionários Públicos contribuintes

3,4

4,8

53,8

40,7

1,8

2,4

Informalidade não protegida.

43,4

54,4

3.1. Conta Própria não contributivo

16,9

14,9

4,6

3,3

2,5

2,1

15,0

3.5. Empregados sem carteira e sem contribuição.

19,76

18,7

SUB-TOTAL 1 + 2 + 3

99,00

97,5

100,0

100,0

1) Subtotal Trabalhadores 2) Empregados Contribuintes 3) Setor de Subsistência +

3.2. Não-remunerados e que apóiam a produção. 3.3. Produção para autoconsumo. 3.4. Desemprego Involuntário.

PEA TOTAL

=43.235.7mil =76.158,5 mil Fonte: IBGE Censo Demográfico (mão-de-obra) Brasil, 1980 e Tabulações Avançadas 2000. 8 W. A. Lewis, op.cit.; Mellor, John W (1961), op.cit .

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economicamente ativa – 55,6%, enquanto que no mesmo ano o setor de subsistência, acrescido do emprego informal e dos desempregados, correspondia a 43,4% da PEA. Passados vinte anos de relativa estagnação econômica e certamente de desativação de amplos segmentos industriais, a população economicamente ativa cresceu 76%, incorporando cerca de 33 milhões de novos indivíduos. No ano 2000, o perfil ocupacional dessa nova PEA é completamente distinto. Apenas 43,1% mantém-se no setor formal (contra 55,6% em 1980), enquanto que 54,4% estão albergados neste setor de subsistência, mesclado pela informalidade urbana. A dimensão do fenômeno e sua significação econômico-social clamam por um novo olhar teórico e histórico sobre este “setor”, de pobreza e desigualdade na sua longa História evolutiva. 7.2. O Setor de Subsistência e a Sociedade Industrial e Urbana do Século XX Algumas teorias do desenvolvimento econômico em voga no pós-guerra (Lewis – Mellor, etc.)8 reconheciam implícita ou explicitamente um setor de subsistência na economia rural, ao qual atribuíam produtividade marginal do trabalho nula, e um papel explícito de transferência de força de trabalho ao setor urbano e industrial como “função” a ser cumprida para desenvolver a economia industrial e urbana. Essa função cumpriria um ciclo virtuoso de desenvolvimento capitalista, porquanto absorveria o excedente estrutural de trabalho do setor de subsistência rural, transformando-o em mercado de trabalho urbano-industrial.

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O setor de subsistência e a economia informal são evitados como conceitos significativos, até porque seriam absorvidos e assimilados pelo capital nos seus novos ciclos de expansão . Sob o enfoque desse “approach” teórico, o setor subsistência rural se transformaria em mercado de trabalho urbano. O longo ciclo de industrialização e urbanização que o Brasil atravessou, com especial enfoque para a era da “modernização-conservadora”, sob tutela militar, parecia confirmar essa teoria, subjacente à qual existia um pressuposto da irrelevância epistemológica do setor de subsistência na economia. Mas a experiência brasileira da modernização da agricultura no pós-guerra, e especialmente nos anos 60/70, conquanto gerasse uma maciça transferência de força do trabalho para o setor urbano, não eliminou o setor de subsistência no espaço rural nem alimentou apenas um mercado de trabalho urbano-industrial. Construiu-se um enorme setor informal de trabalho urbano, que, conquanto não tenha as mesmas características do setor de subsistência, não é tampouco um setor assalariado. Isto já era assim no auge do ciclo expansivo e se magnificou bastante nas duas décadas de estagnação dos oitenta e dos noventa. No campo marxista, as teorias sobre desenvolvimento capitalista

no Brasil do Pós-Guerra9 reconhecem a permanência de uma dualidade básica na sociedade, com um setor capitalista, dinâmico, e outro não capitalista, mas subsidiário deste, e que inexoravelmente seria por este puxado na História da industrialização. Mas o setor de subsistência e a economia informal são evitados como conceitos significativos, até porque seriam absorvidos e assimilados pelo capital nos seus novos ciclos de expansão. No seu trabalho clássico “A Economia Brasileira: Crítica à Razão Dualista”, Francisco de Oliveira utiliza prodigamente as noções de “Setor de Subsistência Rural” e “Setor de Subsistência” urbano (“terciário não capitalista” etc.). Mas este autor está fortemente associado a uma interpretação que eu chamaria de funcional, porquanto reconhece sempre nessas atividades e relações do setor de subsistência uma ligação estrutural com a dinâmica capitalista da economia. Por esta tese, o setor de subsistência não é outro pólo (uma dualidade, na expressão do autor), mas parte integrante da estrutura social construída pelo nosso capitalismo retardatário. O citado ensaio,

elaborado em pleno ciclo expansivo da indústria brasileira (1975), não cogita em nenhuma de suas análises de investigar contradições insanáveis entre desenvolvimento capitalista da economia brasileira e a reprodução do setor de subsistência. Tampouco investiga a hipótese da prescindibilidade deste setor para o desenvolvimento capitalista. Estas lacunas acarretam conseqüências sociais e políticas graves, mais pelo que ignoram do que pelo que predizem. Na realidade, o que as teorias de desenvolvimento do campo conservador e também do campo marxista não previram foi a reprodução urbana, em escala ampliada, das relações sociais do setor de subsistência rural na chamada economia informalurbana, enquanto que, no espaço rural, o setor de subsistência se manteria intacto, depois do ciclo da modernização técnica do período 1965-1985. 7.3. O Futuro da População Albergada no Setor de Subsistência como Desafio. O setor de subsistência é de certa forma geneticamente constitutivo da sociedade e da economia colonial, do período de transição do escravismo ao trabalho livre e finalmente da economia capitalista industrializada a partir dos anos 30. Daí que nem meio século de urbanização e industrialização aceleradas foram capazes de absorvê-la, mas sim de albergá-la, para depois expandilo na crise (1981-2001). Da História colonial ao século XX, a economia produz e reproduz um conjunto de atividades

9 Francisco de Oliveira. A Economia Brasileira: Crítica à Razão Dualista. São Paulo: Seleções CEBRAP 1, Ed. Brasiliense, 1975.

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econômicas e relações de trabalho que propiciam precariamente meios de subsistência e ocupação a uma expressiva parcela da população, sem que estas atividades e relações visem primordialmente à produção de mercadorias e/ou se realizem mediante contrato monetário de trabalho. Concluído o século XX, com o enorme contingente daquilo que vimos definindo como setor de subsistência, agora envolvendo mais da metade da força de trabalho, que futuro se poderá esperar dessas atividades e relações de trabalho que se produzem e reproduzem secularmente no Brasil, reproduzindo junto delas miséria e marginalidade? Essa questão do setor de subsistência na atualidade e sua perspectiva de inclusão no mundo dos direitos sociais, do desenvolvimento eqüitativo, da eman-

cipação social é hoje vista com muito mais realismo. Há certa evidência sobre aquilo que não é provável de se esperar, ou seja sua inclusão, por expansão tendencial no mundo do mercado formal de contratos de trabalho e/ou no da produção de mercadorias para mercados fortemente competitivos. Mas o desafio de incluir a maior parte da força de trabalho, hoje precariamente albergada nos setores de subsistência rural e da informalidade urbana, clama por um projeto de economia e sociedade que esteja aberto à criatividade dos novos atores sociais. Mas infelizmente esta população também está sujeita à barbárie das máfias e bandos organizados, principalmente no espaço urbano, como de resto estivera sujeita aos bandos formados nos sertões à época da República Velha.

O desafio do desenvolvimento da economia brasileira hoje é também o desafio de inserção econômica do seu setor de subsistência, em condições tais que se eleve simultaneamente sua produtividade, para gerar excedente, mas que tal se dê sob condições de sua reprodução em bases institucionais distintas da integração capitalista marginal. Todos esses desafios – social econômico, político – colocam-nos desafios intelectuais que infelizmente ou felizmente não podem ser resolvidos com recurso aos velhos paradigmas intelectuais do desenvolvimento do pós-guerra. Este texto pretende colocar o desafio, mas não tem como respondê-lo nos seus limites temáticos atuais, até porque é um ensaio preambular de uma investigação/reflexão a ser perseguida.

BIBLIOGRAFIA CANABRAVA, Alice. A Grande Lavoura in Sérgio B. Holanda (org) “O Brasil Monárquico II – Declínio e Queda do Império”. 5ª edição. São Paulo e Rio de Janeiro, Ed. Bertrand Brasil, 1995. CARDOSO, Fernando H. Dos Governos Militares a Prudente – Campos Sales in Boris Fausto (org) O Brasil Republicano Estrutura do Poder e Economia – 1889-1930. São Paulo, Ed. DIFEL, 1977. FAORO, Raimundo. Os Donos do Poder. 15ª edição. São Paulo, Ed. Globo, 2000. FURTADO, Celso. Formação Econômica do Brasil. 10ª edição. São Paulo, Ed. Nacional, 1970. MAIA, Vera Lúcia G. de Matos. José Lourenço o Beato Camponês da Comunidade de Caldeirão. São Paulo, Edições Paulinas, 1992. PINHEIRO, Paulo Sérgio. Classes Médias e Proletariado in Boris Fausto (org) O Brasil Republicano III Sociedade e Instituições - caps. 1 e 4. São Paulo, Ed. DIFEL, 1978. PRADO JR., Caio. Formação do Brasil Contemporâneo. 16ª edição. São Paulo, Ed. Brasiliense, 1979. CUNHA, Euclides da. Os Sertões. São Paulo, Ed. Record, 2000. OLIVEIRA, Francisco de & SÁ JR., Francisco. Questionando a Economia Brasileira. São Paulo, Ed. Brasiliense, CEBRAP, 1975. CAVA, Ralph della. Milagre em Juazeiro. 2ª edição. Rio de Janeiro. Ed. Paz e Terra, 1976. MELLOR, John (W). The Role of Agriculture in Economic Development in American Economic Review. Setembro, 1961. W, Arthur Lewis. Desenvolvimento Econômico com Oferta Ilimitada da Mão-de-Obra – in A. N. Agarwala e S. P. Singh – A Economia do Desenvolvimento - pp. 406/456. São Paulo, Cia Ed. Forense, 1969.

* Guilherme Delgado Pesquisador do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA) Revista de conjuntura

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A R T I G O

Notas sobre as diferenças das taxas de desemprego da PME e da PED Sérgio Mendonça e Marize Hoffmann* Desde o início dos anos 80, existem duas pesquisas domiciliares para acompanhar o mercado de trabalho no País: a PME – Pesquisa Mensal de Emprego, realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), e a PED – Pesquisa de Emprego e Desemprego, desenvolvida em parceria pelo DIEESE – Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Sócio-Econômicos e pela Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados (SEADE), de São Paulo que produzem e divulgam mensalmente indicadores sobre a inserção da população nos mercados de trabalho metropolitanos do País. Os indicadores dessas pesquisas têm permitido o acompanhamento conjuntural e a evolução desses mercados de trabalho nos últimos 20 anos. Por essas pesquisas, a situação do desemprego aparece como uma das mais cla-

ras expressões da insuficiente capacidade da economia de gerar postos de trabalho para atender às demandas da população. A PME é produzida pelo IBGE, entidade federal responsável pela produção de estatísticas oficiais, desde 1980; já a PED é uma pesquisa produzida pelo DIEESE e pela Fundação SEADE, em parceria com organismos de pesquisas e produção de estatísticas estaduais. Sua implantação inicial ocorreu na Região Metropolitana de São Paulo, em 1984, e seu desenvolvimento atendeu à demanda da sociedade por indicadores sobre o mercado de trabalho mais adaptados à realidade do País, bem como à necessidade de descentralização da produção dessas estatísticas, até então concentradas no IBGE. A PME abrange, desde seu início, as regiões metropolitanas de São Paulo, Porto Alegre, Rio de Ja-

neiro, Belo Horizonte, Salvador e Recife. A abrangência geográfica da PED consolidou-se de forma paulatina e por decisão de organismos estaduais, que a implantaram nas regiões metropolitanas que englobam suas capitais. Atualmente, compreende as regiões metropolitanas de São Paulo, Porto Alegre, Belo Horizonte, Salvador, Recife e o Distrito Federal, e é reconhecida como pesquisa do Sistema Público de Emprego1. A aguda situação de desemprego vivida pela população e a paralela divulgação, por estas pesquisas, de taxas de desemprego diferenciadas vêm recorrentemente colocando em pauta a necessidade de uma mais ampla disseminação destas diferenças, bem como a explicitação dos fundamentos conceituais que sustentam ambas metodologias e propósitos que norteiam a produção de seus indicadores.

1 As Resoluções nºs 54 e 55/1993, do CODEFAT, reconhecem este modelo de pesquisa e determinam a contribuição para seu financiamento nas diferentes regiões metropolitanas.

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A reformulação da PME, a partir de 2002, levou em consideração o debate ocorrido nos anos 90 sobre as taxas de desemprego divulgadas por estas duas pesquisas, bem como sua necessidade de melhor ajustarse às recomendações internacionais da OIT – Organização Internacional do Trabalho, para a geração de estatísticas sobre a inserção da população no mercado de trabalho2. Assim, a PME Nova amplia o recorte etário, para definir a população em idade ativa (PIA), incorporando nesta população as crianças entre 10 a 14 anos, e passa a considerar como mais adequada e, portanto, como oficial, a taxa de desemprego aber-

to com procura de trabalho nos últimos trinta dias, em vez da antiga taxa de desemprego aberto que era baseada na procura de trabalho no período de sete dias. Adicionalmente, reformula seu questionário para investigar, de forma mais ampla e acurada, a procura por trabalho, além de ampliar o escopo temático de sua pesquisa, em especial para a caracterização dos ocupados. Com estas mudanças, a PME Nova, além de gerar um banco de dados bastante amplo, passa a produzir indicadores mais acurados de condição de atividade e também indicadores complementares, como taxas de subocupação entre os ocupados e proporção entre os inativos de

indivíduos denominados como marginalmente ativos. Este texto se propõe a contribuir para o conhecimento das semelhanças e diferenças entre as taxas de desemprego apuradas pela PED e pela atual PME, através da explicitação das suas definições de Condição de Atividade, ou seja, na forma como cada uma classifica a PIA nas situações de ocupados, desempregados ou inativos, o que permite obter as respectivas taxas de desemprego. Tal como mostra o gráfico que segue, a taxa de desemprego divulgada pela PME Nova continua sendo bastante inferior à taxa de desemprego total apurada pela PED.

Gráfico 1 - Taxas de Desemprego, segundo PED e PME Nova Região Metropolitana de São Paulo

%

PME Nova

PED Aberto

PED Total

22 20 18 16 14 12 10 1 00 2 t/ ou

01 20 / z de

2 00 2 / v fe

2 00 2 r/ ab

2 00 2 n/ ju

2 02 00 20 2 / t/ o ou ag

02 20 / z de

3 00 2 / v fe

3 00 /r 2 ab

3 00 2 n/ ju

03 20 / o ag

Fonte: Convênio DIEESE/SEADE - Pesquisa de Emprego e Desemprego - PED e IBGE - Pesquisa Mensal de Emprego - PME

As diferenças anteriores, que chegavam a ser em torno de 5 a 7 pontos percentuais entre o de-

semprego total calculado pela PED e o desemprego aferido pela PME, é resultado, basica-

mente, da definição mais ampla de desemprego adotada pela PED. Além do desemprego

2 13ª e 16ª Conferências Internacionais dos Estatísticos do Trabalho promovidas pela OIT

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A evolução da taxa de desemprego aberto da PED e sua taxa de desemprego total apresentam movimentos semelhantes aos da taxa de desemprego mensal calculada pela PME . aberto (que é o desemprego medido pelo IBGE), a PED considera outras duas situações: o desemprego oculto pelo trabalho precário e o desemprego oculto pelo desalento (que são as duas outras parcelas que compõem a taxa de desemprego total calculada pela PED). Ao comparar apenas o desemprego aberto apurado pela PED e o desemprego medido pela PME, notamos que ambas as taxas estão em patamares bastante semelhantes, com valores levemente inferiores para a PED, e variações para mais ou para menos em torno de 2 pontos percentuais. É importante esclarecer que os indicadores mensalmente divulgados pela PED para acompanhar a evolução conjuntural do mercado de trabalho estão calculados para trimestres móveis enquanto para o IBGE referem-se ao mês, não sendo, portanto, estritamente comparáveis. Os valores divulgados mensalmente pela PED, que suavizam as variações mensais, serão

maiores ou menores que os respectivos indicadores calculados pelo IBGE, a depender da fase conjuntural (de expansão ou retração) do indicador. Embora defasados com relação aos calculados pela PME, os indicadores da PED são também capazes de acompanhar a evolução conjuntural e/ou sazonal típicas desses mercados, uma vez que estes movimentos não se restringem ao período de um mês e, sim, prolongam-se por mais meses. Assim, a evolução da taxa de desemprego aberto da PED e sua taxa de desemprego total apresentam movimentos semelhantes aos da taxa de desemprego mensal calculada pela PME, tal como pode ser apreciado pelo gráfico anterior3. A comparação das definições das categorias que compõem a condição de atividade da PED e da PME Nova permite compreender estas diferenças nas taxas de desemprego, inclusive da referente aos valores levemente superiores da taxa de desemprego aberto da PME comparativamen-

te à respectiva taxa calculada pela PED. Em primeiro lugar, as taxas de desemprego são proporções entre o conjunto de desempregados e a população economicamente ativa (PEA). Para ambas pesquisas, a PEA é o subconjunto da população de 10 anos e mais que foi classificada como ocupada ou desempregada. Desta forma, a taxa de desemprego de cada pesquisa dependerá da forma como são definidas as situações de ocupação e desemprego. A PME adota uma definição mais restrita de desemprego, composta exclusivamente pelo desemprego aberto; a PED adota uma definição ampliada de desemprego, ao considerar, além do desemprego aberto, o desemprego oculto pelo desalento e o desemprego oculto pelo trabalho precário. A definição de desemprego aberto em ambas pesquisas é semelhante, ou seja, são classificados nesta situação os indivíduos sem nenhum trabalho na semana de referência e que procuraram efetivamente trabalho nos últimos trinta dias anteriores à entrevista. A PME utiliza o critério adicional de que o indivíduo deve ter, caso encontre trabalho, disponibilidade de assumi-lo nos próximos quinze dias. A PED não utiliza este critério adicional, por considerar desnecessário testar a disponibilidade de assumir o posto de trabalho encontrado, pois, em geral, existe excesso de concorrentes e premência por parte do desempre-

3 O uso de trimestres móveis pela PED foi resultado de sua preocupação em minimizar os custos operacionais da pesquisa. Para tanto, a PED utiliza um sistema de amostra cujos domicílios sorteados são incluídos em uma única tomada e um sistema de rotação de setores censitários que fraciona em três a amostra total calculada. Para maior aprofundamento, veja FUNDAÇÃO SEADE - DIEESE. Pesquisa de Emprego e Desemprego - Relatório Metodológico. São Paulo: Fundação Seade, 1995, mimeo.

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gado em ocupar-se. A proximidade do volume de pessoas em desemprego aberto aferido por ambas pesquisas parece indicar o acerto desta hipótese. Na situação de desemprego oculto pelo desalento, a PED classifica aquelas pessoas que não procuraram trabalho nos últimos trinta dias, por desestímulos do mercado, porém o fizeram nos últimos doze meses, e encontram-se disponíveis para trabalhar. Para a PME Nova, o desemprego oculto pelo desalento é uma situação de inatividade e identificado na categoria de pessoas marginalmente ativas. O desemprego oculto pelo trabalho precário para a PED compreende as pessoas que realizaram, nos últimos sete ou trinta dias, algum tipo de trabalho descontínuo e irregular de autoocupação em simultâneo à procura de um novo trabalho, situação não identificada pela PME, ficando oculta entre os ocupados (quando trabalharam na semana de referência) ou então como inativos (quando este trabalho foi exercido em período anterior) Com relação aos ocupados, a PME Nova adota um conceito mais amplo, considerando como ocupados todos os indivíduos que exerceram, na semana de referência, qualquer trabalho remunerado ou não remunerado de ajuda a negócios de parentes, ainda que seja por apenas uma hora na semana. A PED utiliza uma definição diferente e mais restrita de ocupados: por classificar como desempregados aqueles que nos últimos sete dias realizaram eventualmente algum trabalho por conta própria para

sobreviver enquanto procuram por outro trabalho, ou por classificar como inativos aqueles que só tenham feito esta atividade porque lhes sobrou tempo de outros afazeres não estando disponíveis para trabalhar. As considerações anteriores evidenciam que a classificação da condição de atividade dos indivíduos como ocupados e desempregados se diferencia no sentido de que na PME é prioritária a classificação dos ocupados (qualquer trabalho exercido nos sete dias é suficiente para classificar os indivíduos como ocupados), ficando em segundo lugar a situação de desemprego e inatividade. Por outro lado, entre estas duas últimas situações, priorizase a inatividade, ao considerar como inativa uma parcela de indivíduos que descontinuaram sua procura de trabalho recentemente e que poderiam ser classificados como desempregados desalentados. Inversamente, a classificação da PED, aparece como priorizando a situação do desemprego, no sentido de que retira dos ocupados uma parte classificada pela PME como tal (desem-

pregados ocultos pelo trabalho precário), bem como classifica como desempregado uma parcela de inativos (aqueles desalentados da procura de trabalho). Essas diferentes definições para classificar os indivíduos como ocupados, desempregados e inativos, e em menor medida a operacionalização dos instrumentos de coleta, explicam as diferenças numéricas entre os indicadores de ambas pesquisas. Por último, é importante considerar que essas definições são resultado de distintas prioridades dadas ao uso desses indicadores, enquanto indicadores para comparabilidade internacional e/ou melhor aferição da realidade nacional. Enquanto a PED enfatiza a produção de indicadores de condição de atividade mais ajustados à realidade nacional, a PME preocupa-se em produzir indicadores que permitem uma estrita comparabilidade internacional, utilizando basicamente as três categorias de classificação da condição de atividade definidas pelas recomendações da OIT, que tem por modelo mercados de trabalho homogêneos.

É importante considerar que essas definições são resultado de distintas prioridades dadas ao uso desses indicadores, enquanto indicadores para comparabilidade internacional e/ou melhor aferição da realidade nacional . Revista de conjuntura

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Segundo as recomendações internacionais, as três categorias de condição de atividade definidas para classificar a população em idade ativa como ocupada, desempregada e inativa constituem três subconjuntos bem delimitados em suas fronteiras. O subconjunto de ocupados engloba todos os indivíduos que trabalham independentemente de terem ou não procura de trabalho; os desempregados são aqueles sem nenhuma ocupação e que procuram efetivamente trabalhar; e os inativos compõem o subconjunto da população sem procura e sem trabalho. O gráfico que segue ilustra as fronteiras entre os três subconjuntos da classificação da condição de atividade em mercados de trabalho homogêneos. • Condição de Atividade • Situações excludentes e limites claramente definidos

fronteiras entre as três situações de atividade são perfeitamente delimitadas, não havendo situações justapostas ou combinadas entre suas fronteiras. A figura que segue mostra o tratamento das fronteiras na classificação de condição de atividade adotada pela PME Nova para nosso mercado de trabalho, utilizando rigidamente os critérios das normas internacionais.

Condição de Atividade Mercado de Trabalho Heterogêneo Existência de limites superpostos

Inativo com trabalho excepcional

Sub-ocupados

Ocupados

Inativos Marginalmente ligados à PEA

Outras situações Desempregado desalentado Limites da procura

Mesmo reconhecendo a existência de heterogeneidade do nosso mercado de trabalho, a PME Nova continua priorizando a comparabilidade internacional de seus indicadores de condição de atividade. Assim, embora reconheça as diferenças entre a realidade nacional a partir da qual e para a qual são produzidos seus indicadores de condição de atividade, continua a definir a situação de desemprego tomando por modelo um mercado de trabalho homogêneo, na qual as

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Desempregados em desemprego aberto

Inativo puro

Inativos

A classificação anterior aplicada em sociedade e mercados de trabalho heterogêneos não consegue captar situações justapostas, específicas destes mercados, presentes nas fronteiras dos três agrupamentos, levando a uma subestimação do desemprego e em menor medida dos inativos, e uma sobreestimação dos ocupados. Para a formulação de seus indicadores, a PED partiu das possibilidades de flexibilização contidas nas referidas normas

PM4 - NOVA

Subremunerados

Desempregado com Desempregado em trabalho precário desemprego aberto

Desempregados

Condição de atividade Mercado de Trabalho Heterogêneo

PED: classifica limites de acordo com a realidade do País

Ocupados

• Mercado de Trabalho Homogêneo

Ocupados

internacionais, no sentido de buscar adaptá-las à realidade nacional. Para tanto, foram identificadas e reclassificadas as situações-limite ou justapostas entre as três categorias de condição de atividade presentes em mercados de trabalho heterogêneos, de tal forma a expressar mais adequadamente a situação de desemprego e inatividade, justaposições até então desconsideradas nas estatísticas oficiais do nosso País. O gráfico que segue ilustra os limites redefinidos pela PED.

No caso da PME, as fronteiras superpostas de procura e exercício de trabalho ou de nãoprocura e de disponibilidade para trabalhar continuam a ser classificadas sempre como de ocupação ou de inatividade, mesmo que na realidade possam configurarse mais como uma situação de desemprego. Por esta classificação, os efeitos da heterogeneidade da nossa realidade sobre a condição de atividade da população refletem-se apenas nas categorias dos ocupados e inativos, enquanto o desemprego permanece não só como uma categoria homogênea, como também mais restrito ao limitar-se ao desemprego aberto. * Sérgio Mendonça é Diretor Técnico do DIEESE

* Marize Hoffmann é Coordenadora do DIEESE na PED/SP

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