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ANO VIII • Nº 36 • outubro/dezembro de 2008

Conjuntura Revista de

Publicação do Conselho Regional de Economia do Distrito Federal

ArtigoS Edição especial Efeitos da crise financeira internacional sobre o mercado de crédito no Brasil Elder Linton Alves de Araujo

Crise Econômica Internacional Carlos Eduardo Freitas

A crise econômica internacional e os impactos no Brasil

A crise do subprime com a cor verde-amarela Dércio Garcia Munhoz

A ortodoxia se rende mais uma vez à heterodoxia econômica Newton Marques

A Crise Financeira Brasileira: análise e propostas para o seu enfrentamento José Luis da Costa Oreiro Flávio Augusto Correa Basilio

Crise global e a vulnerabilidade externa do Brasil Reinaldo Gonçalves

ISSN 1677-0668

A Crise Financeira Global de 2008: pesos e contrapesos Oscar Henrique Belo Santos

Nesta edição especial sobre a crise financeira internacional, a Revista de Conjuntura traz diferentes enfoques sobre o assunto. Segundo analistas, o trabalhador brasileiro sofrerá impactos como perda de renda e desemprego.


O Instituto Brasiliense de Estudos da Economia Regional (IBRASE) foi criado e está em funcionamento desde 18 de abril de 2000. Sua constituição foi motivada e norteada pela necessidade de promover e realizar pesquisas, estatísticas e estudos de relevância sobre a economia do Distrito Federal e do Centro-Oeste como um todo. Suas atenções estão voltadas tanto para o setor público como para a iniciativa privada. O IBRASE conta com quadro diversificado e especializado de economistas cadastrados, todos registrados e em situação regular perante o Conselho Regional de Economia do Distrito Federal. Além de estudos e pesquisas, o IBRASE promove seminários, cursos e outros eventos.

Estudos e pesquisas econômicas e sociais

Oportunidades de negócio

Planejamento e políticas governamentais

Projetos

Assessoria e consultoria econômica

Avaliações

Entidades associadas: Corecon/DF – Conselho Regional de Economia do Distrito Federal • Sindecon/DF –Sindicato dos Economistas do Distrito Federal • ACDF – Associação Comercial do Distrito Federal • Dieese/DF – Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Sócio-Econômicos •Fecomércio – Federação das Indústrias do Distrito Federal •CUT/DF – Cental Única dos Trabalhadores do DF • Sebrae/DF – Serviço de Apoio às Pequenas e Médias Empresas do Distrito Federal • IEL/DF – Instituto Euvaldo Lodi • Fibra – Federação das Indústrias de Brasília • UnB – Universidade de Brasília • UCB – Universidade Católica de Brasília • UniDF – Centro Universitário do Distrito Federal • Cesubra – Centro de Ensino Superior de Brasília • Faculdade Euro-Americana

(61) 3964.8364


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Nesta edição

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Efeitos da crise financeira internacional sobre o mercado de crédito no Brasil

Elder Linton Alves de Araujo

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Conjuntura Revista de

Publicação do Conselho Regional de Economia do Distrito Federal

ANO VIII • Nº 36 • outubro/dezembro de 2008

Crise Econômica Internacional

Carlos Eduardo Freitas

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edição especial

Dércio Garcia Munhoz

A crise econômica internacional e os impactos no Brasil

A crise do subprime com a cor verde-amarela

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A ortodoxia se rende mais uma vez à heterodoxia econômica

Newton Marques

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A Crise Financeira Brasileira: análise e propostas para o seu enfrentamento

José Luis da Costa Oreiro Flávio Augusto Correa Basilio

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Crise global e a vulnerabilidade externa do Brasil

Reinaldo Gonçalves

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A Crise Financeira Global de 2008: pesos e contrapesos

Oscar Henrique Belo Santos

A assinatura da Revista de Conjuntura pode ser efetuada contactando o Corecon/DF. O valor da assinatura é de R$ 80,00 anual, o que equivale a quatro edições da revista.


Conjuntura

Revista de

Publicação do Conselho Regional de Economia do Distrito Federal

Editor responsável José Luiz Pagnussat Conselho editorial Humberto Vendelino Richter José Fernando Cosentino Tavares José Roberto Novaes de Almeida Júlio Flávio Gameiro Miragaya Mário Sérgio Fernandez Sallorenzo Maurício Barata de Paula Pinto Jornalista responsável Daniela Lima (Reg. DRT/DF: 4926) Redação Daniela Lima Revisão Marluce Moreira Salgado Editoração eletrônica www.arsventura.com.br Tiragem: 4.000 Periodicidade: trimestral As matérias assinadas por colaboradores não refletem, necessariamente, a posição da entidade. É permitida a reprodução total ou parcial dos artigos desta edição, desde que citada a fonte. CONSELHO REGIONAL DE ECONOMIA DA 11ª REGIÃO - DF Presidente Mário Sérgio Fernandez Sallorenzo Vice-presidente José Luiz Pagnussat Conselheiros efetivos Evilásio da Silva Salvador Homero Gustavo Reginaldo Lima José Luiz Pagnussat Júlio Miragaya Mário Sérgio Fernandez Sallorenzo Maurício Barata de Paula Pinto Max Leno de Almeida Mônica Beraldo Fabrício da Silva Roberto Bocaccio Piscitelli Conselheiros suplentes André Nunes Érton Birk Teixeira Guilherme Costa Delgado Junia Rodrigues de Alencar Newton Ferreira da Silva Marques Paulo Luiz Figueiredo de Oliveira Ronalde Silva Lins Victor José Hohl Conselheiro Federal pelo DF Humberto Vendelino Richter Equipe do Corecon Angeilton Francisco Lima Faleiro Iraci da Costa Lopes Ismar Marques Teixeira Jamildo Cezário Gomes Maria Aparecida Carneiro Michele Cantuária Soares Estagiário Tyago Belarmino de Lira (ensino médio) End.: SCS Qd. 04, Ed. Embaixador, Sala 202 CEP 70300-907 – Brasília/DF Tel: (61) 3225-9242 / 3223-1429 3964-8366 / 3964-8368 Fax: (61) 3964-8364 E-mail: corecondf@corecondf.org.br Site: www.corecondf.org.br Horário de funcionamento: das 8h às 18h (sem intervalo)

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Editorial

O recrudescimento da crise financeira internacional em 2008 teve forte impacto sobre o desempenho da economia na maioria dos países. O Brasil, entretanto, conseguiu fechar o ano com bons indicadores econômicos, apesar da forte queda da produção e emprego em dezembro. Os bons resultados da economia brasileira, em 2008, referem-se tanto aos indicadores de crescimento econômico como de estabilização da economia. O PIB cresceu em torno de 5% no ano e a taxa de desemprego no Brasil caiu para 6,8% em dezembro, o menor nível da série histórica do indicador, iniciada em 2002 pelo IBGE. A inflação se manteve dentro da meta, fechou o ano em 5,9%. As contas públicas estão equilibradas, o superávit primário foi de 4,07% do PIB (R$118 bilhões) e o déficit nominal ficou em 1,53% do PIB (R$ 44,3 bilhões), que corresponde ao melhor resultado anual, como percentual do PIB, desde o início da série, em 1991. A dívida líquida do setor público (DLSP) fechou o ano em 36% do PIB (R$1.069,6 bilhões), ou seja, a DLSP atingiu o menor percentual do PIB, na comparação anual, desde 1997. Resultado que reflete não só a política de superávits primários, implementada desde 1999, mas também a competência da equipe do Tesouro Nacional na gestão da dívida pública. As contas externas do País também apresentam bons números. As reservas internacionais no conceito de liquidez somaram US$ 206,8 bilhões em dezembro, acima, portanto, da dívida externa total, estimada para esse mês em US$ 200,2 bilhões. Os Investimentos Estrangeiros Diretos (IED) registraram ingressos líquidos de US$ 45,1 bilhões, com crescimento de 30,3% na comparação com o ano anterior, constituindo o maior valor observado na série histórica iniciada em 1947. O balanço de pagamento, entretanto, apresentou resultados menos expressivos. O superávit da Balança Comercial foi de US$ 24,7 bilhões, em 2008, enquanto em 2007 foi de US$ 40,0 bilhões. O déficit da conta de serviços subiu para US$ 57,2 bilhões. O resultado em conta-corrente foi deficitário em US$ 28,3 bilhões, comparativamente a superávit de US$1,6 bilhão, em 2007. Os dados confirmam que os fundamentos macroeconômicos brasileiros são robustos e que a economia brasileira vem demonstrando forte solidez diante das turbulências na economia mundial. O cenário para 2009, entretanto, é menos otimista. Os dados do mês de dezembro refletem o forte impacto da crise mundial na economia brasileira. A produção industrial caiu 12,4% na média nacional. A queda no mês foi generalizada de toda a indústria e regiões do País. Apresentaram retração 25 dos 27 setores avaliados pelo IBGE e em 12 das 14 regiões pesquisadas. Foram fechadas mais de 650 mil vagas segundo dados do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged), do Ministério do Trabalho. É o pior resultado para o mês na série histórica iniciada em 1992. A safra agrícola cairá 7,6% em 2009, segundo estimativa do IBGE. O plantio da safra de verão ocorreu no auge da escassez do crédito resultando em redução da área plantada e do uso de fertilizantes. Enfim, são necessárias medidas anticíclicas fortes tanto do lado monetário como fiscal. Há consenso, inclusive, entre economistas da banca financeira internacional de que o Brasil deve adotar medidas fortes de afrouxamento da política monetária, com a ampliação do provimento de crédito e substancial redução das taxas de juros. Do lado fiscal a expectativa internacional é mais conservadora. A flexibilização da política de superávits primários é aceita relativamente. A visão predominante é que o Brasil pode reduzir o superávit para 2,5% a 3% do PIB sem perda de credibilidade. As previsões de várias organizações internacionais (FMI, OCDE, etc.) são otimistas para o Brasil, em comparação com a perspectiva para os países industrializados e as economias dos principais países emergentes. Enfim, todos os cenários projetados para o Brasil, para 2009, são de crescimento da economia, apesar da continuidade da crise mundial. O Brasil tem condição de manter o crescimento econômico em patamares civilizados, se adotar medidas anticíclicas na intensidade e direção adequadas.


Efeitos da crise financeira internacional sobre o mercado de crédito no Brasil Elder Linton Alves de Araujo

Apesar da crise financeira internacional e suas repercussões no Brasil, verificou-se que, em dezembro de 2008, o volume total de crédito do Sistema Financeiro Nacional (SFN) atingiu cerca de R$ 1,23 trilhão, equivalente a 41,3% do PIB, nível recorde diante dos 24,0% do PIB observados em 2003 ou os 28,8% em 1996. No ano de 2008, houve crescimento de sete pontos percentuais sobre os 34% do PIB verificados em 2007, mostrando como estava o dinamismo da economia brasileira e o impulso advindo do mercado de crédito. Os dados revelam expansão tanto do crédito com recursos livres quanto do crédito com recursos direcionados, que fecharam 2008 em 29,4% e 12% do PIB, respectivamente (Tabela 1). Todavia, é de se considerar que esses números ainda não refletem diretamente os efeitos da crise financeira internacional, embora já

sinalizem para movimento de ajustamento no último trimestre de 2008, bem como as primeiras reações às medidas adotadas para minimização dos impactos. O agravamento da crise do subprime, desde 2007, tem provocado o encarecimento do crédito internacional, com a retração dos fluxos de capitais, o que levou também à redução e ao encarecimento do funding disponível para operações no mercado doméstico. A intensificação da crise, sobretudo depois de setembro de 2008, praticamente inviabilizou no Brasil as operações com recursos externos, especialmente as destinadas aos exportadores (ACC/ACE). As consequências da crise financeira passaram também ao setor real da economia, com recessão na maior parte dos países desenvolvidos, retração do fluxo de comércio internacional e consequente desaceleração do

Tabela 1 – Total de Operações de Créditos do Sistema Financeiro Nacional – 1996/2008 Operações com Recursos Livres (% do PIB) 1996

9,6

Operações com Recursos Direcionados (% do PIB) 19,2

Total dos Créditos do SFN (% do PIB) 28,8

Total dos Créditos do SFN (em R$ bilhões) 252,6

1998

8,6

19,3

27,9

276,9

2000

15,2

11,2

26,4

326,8

2002

13,8

8,2

22,0

384,4

2003

14,7

9,3

24,0

418,3

2004

15,6

8,9

24,5

498,7

2005

18,7

9,4

28,1

607,0

2006

20,6

9,7

30,2

732,6

2007

24,1

10,1

34,2

936,0

2008

29,4

12,0

41,3

1227,4

Fonte: Banco Central do Brasil

outubro / dezembro / 2008

Artigo

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crescimento das economias emergentes. Para citar um exemplo do contágio financeiro na atividade econômica, nos EUA houve forte retração do crédito para empresas, o que pode ser verificado pela queda na emissão de commercial papers por empresas não-financeiras. Antes da crise do subprime, o volume negociado era de cerca de US$ 2,2 trilhões. Depois, reduziu-se para US$ 1,7 trilhão, queda da ordem de 30% ao final de 2008. Em nível internacional, a primeira safra de medidas de combate à crise foi no sentido de se destravar o “represamento da liquidez”, que foi seguida de medidas contra o risco sistêmico, de forma a dar solvência aos bancos, tanto nos EUA quanto na Europa e no Japão, em ação coordenada entre os bancos centrais desses países. Para se ter uma idéia da dimensão, foi da ordem de US$ 1 trilhão o montante acumulado de perdas bancárias até o final de 2008, sendo necessária capitalização de US$ 800 bilhões, dos quais quase US$ 600 bilhões vieram de medidas dos governos. Procurou-se também adotar medidas fiscais para estímulo à reativação da atividade econômica. O governo brasileiro também vem adotando medidas para minimizar os efeitos da crise financeira sobre a economia do País, em especial para ampliar o crédito

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É de se notar que o crédito cresceu em 2008 no Brasil mesmo com os efeitos da crise internacional e a necessidade de elevação da taxa de juros básica para controle da inflação no país, que ameaçava fechar acima do limite superior da meta.

doméstico, de forma a compensar a retração dos financiamentos externos. Segundo o Banco Central do Brasil (BCB), as medidas focaram-se em objetivos como os de restabelecer o nível adequado de provisão de liquidez para bancos pequenos e médios, destravar o crédito interbancário e para a sociedade em geral e aprimorar o mecanismo do redesconto, pelo qual o BCB assume o papel de emprestador de última instância. Dentre as medidas adotadas no Brasil, destacam-se: a ampliação da liquidez em moeda estrangeira, com leilões de venda de dólares no mercado à vista e compromisso de recompra; operações de swap cambial; e financiamento em moeda estrangeira para as operações de comércio exterior. Em relação à liquidez designada em moeda nacional, destaque para a flexibilização de recursos dos depósitos compulsórios, ampliação do acesso a mecanismos de assistência de liquidez por bancos menores e aumento dos montantes de financiamentos dos bancos públicos (BB, CEF e BNDES), com foco no restabelecimento das operações de capital de giro e de financiamento a projetos de investimento e de consumo. Ressalte-se que, diferentemente dos países centrais, não houve necessidade de saneamento do SFN, dados seus ajustamentos anteriores por meio de programas como o Proer (bancos privados) e o Proes (bancos públicos) e a adoção de regras prudenciais de forma até mais rigorosa do que o exigido pelo Acordo de Basiléia, o que manteve sob controle o nível de alavancagem dos bancos e que parece ter evitado exposição das instituições brasileiras a operações do tipo subprime. É de se notar que o crédito cresceu em 2008 no Brasil mesmo com os efeitos da crise internacional e a necessidade de elevação da taxa de juros básica para controle da inflação no País, que ameaçava fechar acima do limite superior da meta. Nesse sentido, a taxa básica Selic foi elevada até 13,75% a.a, o que provocou encarecimento do crédito e alargamento do spread bancário, dada o ambiente de maior aversão ao risco. Todavia, fatores externos como a retração da economia mundial e a queda dos preços das commodities contribuíram para que as medidas internas levassem ao recuo da inflação medida pelo IPCA, que fechou 2008 em 5,9% e apresenta perspectivas de ficar no centro da meta em 2009. Além disso, dados da produção industrial em 2008 mostraram que houve forte efeito da crise internacional no setor real da


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A crise internacional provocou um abrupto choque de expectativas no último trimestre de 2008, com reversão da perspectivas de projetos de investimento, além do travamento das operações comerciais, elo do mercado de crédito com as empresas.

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Note que, em dezembro, houve retração do crédito ­consignado a trabalhadores da iniciativa privada (-0,7%) e redução do ritmo de concessão a trabalhadores do setor público (1,0%). Quando se observa o volume de novas concessões de crédito consignado, percebe-se que o crédito consignado já vinha arrefecendo durante todo o ano de 2008, intensificando a retração no último trimestre do ano, quando as novas concessões ficaram um pouco abaixo de R$ 3 bilhões, ante quase o dobro desse volume que era observado no início de 2008 (Gráfico 1). Contribuíram, para isso, a saturação da capacidade de endividamento dos tomadores (uso de toda a margem consignável), o encarecimento do crédito (tomadores evitaram renovar empréstimos antigos, os quais tinham taxas que estavam mais baixas do que as oferecidas nos mais novos) e maiores dificuldades cadastrais (aversão do risco por parte dos emprestadores). No caso dos créditos com recursos livres destinados às empresas, as operações cresceram 39,2% ao longo do ano e atingiram R$ 395 bilhões em 2008. No último trimestre, porém, o ritmo de crescimento foi de apenas 7%. Em dezembro a desaceleração foi ainda mais forte, com elevação de 0,6% sobre o mês anterior. Destaquese a retração no 4o trimestre de 2008 nas modalidades

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economia brasileira, pois a média de crescimento do ano ficou em 3,1%, menos da metade do que se observava até setembro. O mesmo se observa com a forte desaceleração dos indicadores do comércio varejista. Para 2009, esses fatos passaram a abrir espaço para flexibilização da política monetária, cuja taxa básica foi reduzida em um ponto percentual na reunião do Copom/BCB em janeiro, voltando ao nível de 12,75% a.a e com perspectivas de mercado apontando para novas reduções nas próximas reuniões ao longo do ano, de forma a dar estímulos para reativar o ritmo de crescimento da economia brasileira. Nota-se que a crise internacional provocou um abrupto choque de expectativas no último trimestre de 2008, com reversão da perspectivas de projetos de investimento, além do travamento das operações comerciais, elo do mercado de crédito com as empresas. Esperava-se que o mercado interno absorvesse a retração das exportações, mas a queda tem sido mais intensa. O risco maior é que, se a retração da atividade gerar forte desemprego, quebra-se o outro elo do ciclo do mercado de crédito pela retração da renda e da massa salarial, que redundam ainda na ampliação da inadimplência no mercado de crédito. Dados mais detalhados das operações de crédito do SFN em 2008 permitem verificar os efeitos da crise financeira internacional sobre o mercado brasileiro. Cerca de 71% do total dos créditos do SFN era composto por recursos livres e os demais pelos chamados recursos direcionados (repasses do BNDES, crédito rural, crédito para habitação e financiamentos do FCO, bancos de desenvolvimento e agência de fomento). Dentre as operações com recursos livres, o estoque acumulado no ano cresceu 31,9%; em dezembro, o crescimento foi de apenas 0,9%, ou 5,1% no último trimestre de 2008, o que denota a forte desaceleração ao final do ano, tanto nas operações para pessoas físicas quanto para empresas. No caso das pessoas físicas, o crédito pessoal crescia fortemente até setembro, mas estabilizou-se no patamar de R$ 142 bilhões no último trimestre de 2008, crescendo 4,0% no último trimestre, uma forte desaceleração ante os 27% no acumulado de 12 meses em dezembro. O principal componente do crédito pessoal com recursos livres foi o crédito consignado em folha de pagamento, que também se estabilizou depois de setembro, fechando o ano de 2008 no patamar de R$ 79 bilhões.

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Gráfico 1 – Crédito Pessoal com Recursos Livres e Modalidade de Consignação em Folha de Pagamento (em R$ bilhões, preços constantes de dezembro de 2008; deflacionados pelo IPCA)

Fonte: Banco Central do Brasil

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Conjuntura

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de vendor (-5,1%), aquisição de bens (-7,4%), conta garantida (-4,2%) e desconto de promissórias (-23,9%). Em dezembro, registrou-se também queda nas operações de repasses externos (-3,0%), naquelas de financiamento às importações (-2,9%) e nas operações de hot money (-29,7%), dados que refletem claramente as dificuldades das empresas no acesso ao crédito, após a intensificação da crise internacional ao final do ano. De um modo geral, as taxas de juros dos créditos com recursos livres subiram ao longo de 2008, tanto para empresas quanto para pessoas físicas, em parte como repasse da elevação da taxa Selic para combate à inflação, em parte pelo aumento da aversão ao risco por conta da crise internacional. Em média, as taxas de juros das operações passaram de 34% em dezembro de 2007 para o patamar de 44% em novembro de 2008, mostrando leve arrefecimento apenas no final do ano, 43%, como parte do reflexo das medidas de flexibilização dos compulsórios e redução do IOF. Todavia, percebe-se que aumentou o spread médio, do patamar de 22% em dezembro de 2007 para o nível de 30% ao final de 2008. Com a diminuição dos juros básicos em janeiro de 2009, espera-se que também haja redução do

spread, importante componente do custo do crédito. O prazo médio das operações de crédito do SFN com recursos livres também foi afetado pelo ambiente de maior incerteza e de aversão ao risco provocado pela crise internacional. Antes, houve expansão do prazo médio de 350 dias em 2007 para 385 dias em outubro de 2008. Essa elevação do prazo ao longo ajudou a dissipar os aumentos das taxas de juros ao longo do ano, diluídos em maior número de prestações. No final do ano, porém, o prazo médio retraiu-se para 378 dias. Nessa mesma linha, a inadimplência, que vinha relativamente estável no patamar médio de 4% até setembro, passou a crescer no último trimestre e atingiu 4,4% do total das operações com recursos livres. Quando se consideram apenas as operações com pessoas físicas, a inadimplência subiu de 7% em 2007 para 8,1% em 2008. Dentre as modalidades mais afetadas pela contração do crédito estão as operações com recursos livres para aquisição de veículos por pessoas físicas. O montante de recursos declinou de R$ 84 bilhões em junho para R$ 81,4 milhões em dezembro de 2008, sendo que as novas concessões ficaram abaixo de R$ 3 bilhões. Com as medidas de apoio às montadoras e revende-


no Brasil, com perda de participação no último trimestre do ano (Tabela 2). Os créditos para as indústrias ganharam um pouco de participação, em parte devido ao crescimento dos financiamentos às empresas de construção, inclusas nessa rubrica. As operações para o comércio reduziram-se para pouco mais de 10%, enquanto o crédito rural se retraiu para menos de 9% do total. Note-se ainda que, apesar de pequeno em magnitude, cresceu o montante de crédito destinado ao setor público, para pouco mais de 2% em 2008. As operações de crédito para o segmento de habitação superaram os 5% de participação no total dos créditos do SFN, levando-se em conta apenas os que se referem aos financiamentos a pessoas físicas e cooperativas habitacionais. Este segmento teve forte crescimento ao longo de 2008, atingindo R$ 63,3 bilhões de reais em 2008. Esse montante é basicamente correspondente à aplicação de recursos direcionados (R$ 59 bilhões), tais como poupança e FGTS. Todavia, veio crescendo ao longo do ano o montante de recursos livres para esse segmento. Esses dados ainda não permitem visualizar os efeitos da crise financeira devido à inércia das operações contratadas e dos empreendimentos imobiliários já em andamento. Os créditos direcionados, por sua vez, cresceram dois pontos percentuais entre 2007 e 2008 e passaram a representar 12% do PIB ou 29% do total de créditos do SFN. A maior parte dos recursos direcionados (59%)

Tabela 2 – Operações de Créditos do Sistema Financeiro Nacional – Distribuição por Atividade Econômica (Participação % sobre o Total do SFN) Setor Público Setor Privado Total do SFN Total do Pessoas Indústria Habitação Rural Comércio (R$ bilhões) Federal Estadual S.Públ. Físicas

Outros Serviços

Total do S.Priv.

dez/07

936,0

0,38

1,63

2,01

22,84

4,90

9,53

10,43

33,59

16,70

97,99

mar/08

993,1

0,40

1,56

1,95

23,22

4,88

9,29

10,27

33,67

16,72

98,05

jun/08

1067,7

0,37

1,45

1,81

22,92

4,92

9,22

10,38

33,44

17,30

98,19

set/08

1152,5

0,42

1,43

1,85

23,38

5,04

8,90

10,45

32,97

17,40

98,15

out/08

1185,1

0,42

1,41

1,82

23,58

5,05

8,79

10,37

32,63

17,76

98,18

nov/08

1208,4

0,59

1,43

2,02

24,05

5,11

8,67

10,31

31,99

17,85

97,98

dez/08

1227,4

0,76

1,46

2,22

24,15

5,15

8,67

10,17

31,74

17,90

97,78

Fonte: Banco Central do Brasil.

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doras de veículos, tais como a redução do IPI e a maior canalização do crédito para o setor, houve alguma recuperação das operações no final do ano de 2008 e no início de 2009, mas ainda ligada às promoções de venda para redução de estoques. Os juros médios dessas operações, depois de crescerem sistematicamente ao longo do ano, recuaram de 38% para 36% ao final de 2008. O prazo médio das operações, que esteve praticamente estável ao longo do ano, ensaiou alguma ampliação em dezembro. Quando se analisam as operações de arrendamento mercantil (leasing) para pessoas físicas (modalidade muito utilizada para aquisição de automóveis), percebe-se movimento similar ao ocorrido com o financiamento de veículos. Havia forte crescimento ao longo do ano, que gerou expansão de 88% em 2008. Todavia, no último trimestre, o crescimento foi bem mais modesto, de 4,5%. No mês de dezembro, alta de 1,6%. No caso das empresas, as operações de leasing cresceram 60% em 2008, com desaceleração para 3,5% no último trimestre e para 0,6% em dezembro. Ao se considerar a distribuição do total dos créditos do SFN (recursos livres e direcionados), agregados por atividade econômica, nota-se que a maior parte vai para segmentos do setor privado (quase 98%), mais especificamente para pessoas físicas (31,7% em dezembro de 2008). Nota-se também que esse foi um dos segmentos mais afetados pela repercussão da crise internacional

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Revista de

Conjuntura

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refere-se aos desembolsos do BNDES, sejam para financiamentos diretos ou por meio de repasse a bancos credenciados. Houve crescimento dos desembolsos (mais de R$ 90 bilhões) especialmente para projetos de infra-estrutura, que passaram a representar 40% do total de desembolsos em 2008. Destacam-se também os desembolsos para micro e pequenas empresas, que responderam por 23% das operações. Cabe destacar também que a crise internacional impactou fortemente o mercado de capitais no Brasil. As operações de lançamento primário de debêntures e de ações caíram fortemente. Ainda assim, representaram R$ 72 bilhões (dos quais R$ 40 bilhões em debêntures) no acumulado de 2008, montante relevante, mas que se reduziu praticamente à metade do que foi observado no acumulado de 2007. O montante de lançamentos primários de ações reduziu-se em cerca de 30%, fechando 2008 em cerca de R$ 32 bilhões. Essa redução do financiamento direto via mercado de capitais ampliou a dificuldade das empresas no acesso ao crédito e aumentou a pressão sobre os financiamentos públicos, especialmente os do BNDES. As dificuldades de crédito no setor privado exigiram esforço adicional dos bancos públicos que, como consequência, passaram a aumentar a participação no total de crédito do SFN, que era de 34% em dezembro de 2007 e passou a 36% ao final de 2008, justamente quando passaram a suprir a lacuna de crédito privado. Os bancos privados nacionais, apesar de manterem ainda o maior peso na oferta de crédito, recuaram de 44% para 43% no período. Os bancos privados estrangeiros também perderam participação, de 22% para 21%, no mesmo período. Para atender às demandas por crédito internacional, o Banco Central anunciou ampliação das linhas em moeda estrangeira com base nas reservas internacionais e que devem alcançar US$ 36 bilhões em 2009. O BNDES também anunciou ampliação de seu cronograma de desembolsos em R$ 100 bilhões em 2009 e 2010, com o aporte de recursos do Tesouro Nacional. Em suma, os dados do mercado de crédito no Brasil revelam expansão vigorosa quando se comparam os dados anuais. No entanto, esse movimento vem perdendo força desde setembro, refletindo as dificuldades decorrentes do acirramento da crise financeira inter-

nacional ao final de 2008. Os efeitos no Brasil são atenuados pelas medidas governamentais adotadas para aumento da liquidez, que contrabalançam as restrições e ampliam o crédito diretamente por meio dos bancos públicos e também por incentivos aos bancos privados e aos tomadores finais. A maior preocupação passa a ser a extensão dos impactos da crise financeira sobre o setor real da economia, que foram muito abruptos no último trimestre de 2008. A recessão nas principais economias e a desaceleração do mercado interno têm como consequência a redução do ritmo esperado para crescimento do crédito no Brasil e geram a necessidade de medidas adicionais para sustentação da dinâmica do sistema financeiro, especialmente no mercado de crédito, que depende da reativação da atividade econômica e manutenção do emprego e da renda. Referências Bibliográficas Banco Central do Brasil. Nota para a Imprensa – Política Monetária e Operações de Crédito – dezembro de 2008. Brasília, 2009. Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social. Boletim de Desempenho – dezembro de 2008, Rio de Janeiro, 2009. Comissão de Valores Mobiliários. Informativo CVM – Mercado Primário – dezembro de 2008, Rio de Janeiro, 2009.

Elder Linton Alves de Araujo Economista. Mestre em Economia pela UNICAMP. Coordenador do Curso de Ciências Econômicas do UDF Centro Universitário. Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão.


Crise Econômica Internacional Carlos Eduardo Freitas

Vários são os ângulos sob os quais se pode analisar a crise que se abate sobre a economia mundial. Escolhi a perspectiva brasileira. Organizei o texto sob a forma de um pingue-pongue em torno de cinco perguntas que, no meu entender, resumem as principais inquietudes sobre o que pode acontecer conosco em função do terremoto financeiro mundial com epicentro nos Estados Unidos. A seguir, as perguntas e as respostas. Primeira Questão: Se o mundo todo está diminuindo juros e aumentando os gastos do Governo, por que o Brasil não faz a mesma coisa? Isto não é verdade. O Brasil está fazendo a mesma coisa. A intensidade das medidas é que é menor aqui do que lá. As providências do governo brasileiro vão na mesma direção dos pacotes do governo americano e de outros países ricos ao redor do mundo. As diferenças ficam por conta das dosagens. O Brasil ministrou doses moderadas. Aqueles países, doses cavalares. Primeiro, porque os danos causados pela crise são maiores lá do que aqui. Segundo, porque nós temos que tomar mais cuidado do que eles, para que medidas mais fortes de estímulo aos gastos não provoquem, à frente, volatilidades cambiais e tensões inflacionárias. Os desenvolvidos também estão sujeitos a efeitos colaterais de políticas expansionistas compensatórias, mas como desfrutam de um grau consideravelmente mais elevado de credibilidade e de solvência que o Brasil, têm espaço muito mais amplo de manobra. A prática de políticas de tipo keynesiano requer bom conhecimento das dimensões da capacidade

­ rodutiva ociosa já existente ou em gestação e segup rança sobre a solvabilidade do governo. Paralelamente é preciso ter presentes os limites da taxa de poupança interna, e dimensionar a eventual disponibilidade de poupança externa, assim como a credibilidade financeira da economia para utilizar-se dessa fonte de financiamento. Assim, é natural que, no caso do Brasil, o governo trabalhe com margens estreitas para dosar as medidas antirecessivas, de tal sorte que elas evitem uma redução de atividade econômica maior que a necessária e, ao mesmo tempo, preservem o equilíbrio macroeconômico. Os Estados Unidos, o Reino Unido, a Espanha e, em menor medida, o Japão e a Alemanha estão no olho do furacão. Enfrentam ameaça concreta de deflação, passaram por uma destruição de riqueza muito maior que a que ocorreu no Brasil, e por uma crise bancária de grandes proporções, a ponto de levar instituições do porte do Citibank e do Bank of America a depender de socorros governamentais para evitar a quebra. Uma deflação nessa altura dos acontecimentos agravaria os problemas bancários e de crédito naqueles países, porque aumentaria o valor real das dívidas impondo ônus adicional a indivíduos que já estão com seus empregos em risco, e a empresas, cujos mercados encolhem e o faturamento míngua. O fio condutor da crise entre nós foi a repentina contração do crédito externo de todos os tipos e prazos, com dois efeitos imediatos: de um lado a forte desvalorização do real diante do dólar, e, de outro, uma grave contração reflexa do crédito bancário doméstico.

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Artigo

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O governo respondeu nas duas frentes. No mercado de câmbio usou as reservas internacionais do Banco Central para irrigar o mercado de câmbio via crédito comercial de curto prazo aos exportadores, além de vender dólares à vista (vendas spot no jargão técnico) e a futuro para suavizar a trajetória de desvalorização cambial decorrente do impacto da crise. Mais recentemente estendeu o mesmo conceito das linhas para exportadores para prover “funding” em dólares a bancos no exterior com vistas à rolagem de empréstimos externos de médio prazo a empresas e bancos no País. No mercado interno liberou recolhimentos compulsórios dos bancos, vinculando parcialmente tais liberações ao destravamento e desempoçamento do crédito. Todas elas, medidas de recomposição da liquidez do sistema econômico. Mas foi além. Baixou Medida Provisória autorizando Banco do Brasil e Caixa Econômica a comprarem bancos privados, e dispensou-os de licitação para aquisi-

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Com a diminuição do imposto, os consumidores pagam menos do que vinham pagando pelos carros, e os produtores recebem mais do que vinham recebendo. Alguns pequenos alívios na cobrança do imposto de renda, IOF (Imposto sobre Operações Financeiras), e moderadas dilatações de prazo para recolhimento de certos tributos.

ções de bancos estaduais. Com isso equacionou com antecedência quaisquer problemas que pudessem aparecer com instituições específicas. No âmbito fiscal reduziu o IPI para aquisição de veículos até 31 de março de 2009, facilitando a desova de estoques pela indústria. Com a diminuição do imposto, os consumidores pagam menos do que vinham pagando pelos carros, e os produtores recebem mais do que vinham recebendo. Alguns pequenos alívios na cobrança do imposto de renda, IOF (Imposto sobre Operações Financeiras), e moderadas dilatações de prazo para recolhimento de certos tributos. Assustado com as demissões, estabeleceu recentemente a incidência de contribuição previdenciária sobre o aviso prévio indenizado. Em resumo: tomou decisões para (i) restaurar a liquidez, (ii) prevenir falências bancárias, (iii) aliviar impostos e (iv) colocar ônus adicional sobre a dispensa de empregados. Sem prejuízo das críticas de sempre, com exceção da última, as três primeiras providências caminharam na direção correta e na dose adequada. Sublinharíamos apenas certa morosidade e excessos de burocracia nas operações a cargo do Banco Central. Teria demorado a intervir no mercado de câmbio, não há uma orientação clara sobre o que a autoridade tem em mente para a trajetória da taxa de câmbio e houve demora desnecessária na operacionalização das linhas comerciais para as exportações. Esta iniciativa já tinha até antecedentes, tendo sido praticada em 1987, por ocasião da crise da moratória da dívida externa. Quanto ao novo ônus sobre as demissões, parece um equívoco – quanto mais se onerar a demissão, mais se desestimula e dificulta a admissão, prejudicando-se a criação de novos empregos na fase recuperação. No que diz respeito à taxa de juros, o Banco Central vem trabalhando com o olhar dividido entre dois choques de sentido contrário. De um lado, a dramática desvalorização cambial, com potencial significativo de repasse aos preços em função da velocidade da expansão econômica que se verificava até agosto de 2008. De outro lado, a contração do crédito, a destruição de riqueza provocada pela queda nos preços das ações na Bolsa de Valores e pela desova não antecipada de estoques acumulados em excesso, e o derretimento dos preços das commodities, todos militando no sentido de


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2ª Questão: A crise será mais curta no Brasil que nos países ricos? Mais curta, acho que não. Menos intensa, é possível. A crise aqui é reflexa. A destruição de riqueza no Brasil foi menor. Não houve crise imobiliária e a bolsa de valores entre nós tem alcance limitado. Depois do impacto inicial da contração do crédito, vamos enfrentar preços de commodities de exportação em queda e mercados externos em processo de estreitamento. Como a liquidez internacional deve permanecer escassa, a possibilidade de uso de poupança

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Nos países ricos, que estavam no epicentro da crise, o caso era diferente. A destruição de riqueza manifestada na desvalorização dos ativos imobiliários e das ações foi consideravelmente mais grave, e espraiouse pelos demais setores das economias.

externa será limitada. Capacidade de importar reduzida e acesso à poupança externa racionado significam crescimento econômico mais baixo. Devemos cair de uma faixa de 6% a.a. de crescimento do PIB, correspondente grosso modo à velocidade de expansão no terceiro trimestre de 2008, para algo em torno de 2% a.a. em 2009. Não é pouco e os brasileiros vão sentir o baque. De acordo com estudo do Ipea1 isto pode significar que o sistema econômico brasileiro conseguiria absorver somente 50% dos novos contingentes de mão-de-obra ingressados na força de trabalho em 2009. A taxa de desemprego interromperia sua trajetória de queda que vem desde 2005, alcançando 8,1% contra 7,6% em 2008. Retornaríamos no nível de desemprego de 2007, mas com a diferença de que, naquele ano, o desemprego estava no terceiro ano consecutivo de queda e prometia redução adicional para 2008. Agora ela volta a subir, e possivelmente aumentará de novo em 2010.

IPEA, A crise internacional e possíveis repercussões: primeiras análises (Comunicado da Presidência nº 16, janeiro de 2009), p. 12.

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arrefecer as tensões inflacionárias que eram preocupantes até agosto. Até que os estoques estivessem mais bem ajustados às novas circunstâncias econômicas, e o Banco Central tivesse segurança de que o choque da contração do crédito superaria o choque altista da desvalorização cambial, reduções da taxas de juros teriam o efeito de facilitar o repasse do câmbio aos preços e retardar a desova dos estoques. A indústria e o comércio não precisariam estreitar margens de lucro. A resultante poderia ser a propagação do choque inflacionista. Foi por estas razões que o Banco Central provavelmente não baixou a taxa Selic até janeiro de 2009, quando já terá, possivelmente, condições de efetuar uma primeira diminuição. Houve pequenos sinais de deflação, embora possivelmente transitórios, mas os estoques vêm sendo liquidados, as empresas já fizeram uma primeira rodada de ajuste em seus quadros de pessoal e as expectativas inflacionárias convergem gradualmente para o centro da meta fixada para 2009. Nos países ricos, que estavam no epicentro da crise, o caso era diferente. A destruição de riqueza manifestada na desvalorização dos ativos imobiliários e das ações foi consideravelmente mais grave, e espraiou-se pelos demais setores das economias. Não se colocando o problema do efeito colateral perverso da taxa de câmbio, as reduções agressivas de taxas de juros se justificavam ante a necessidade premente de recuperar o valor dos ativos reais para auxiliar na reativação da atividade econômica.

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Gráfico 1 – Taxa de Desemprego

Fonte: IPEA, A crise internacional e possíveis repercussões: primeiras análises (Comunicado da Presidência nº 16, janeiro de 2009), p. 12.

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Isto pode ser menos doloroso que uma diminuição absoluta do Produto Interno Bruto, que poderá ocorrer nos Estados Unidos e em outros países desenvolvidos. Mas, em termos. Nos países mais ricos o desemprego alcança grande número de expatriados, entre eles brasileiros, o que atenua o impacto sobre os nacionais daquelas nações. O resultado acaba sendo o acrescentamento de mais um efeito reflexo da crise sobre o País: diminuição nas remessas de dólares desses trabalhadores e mesmo o seu retorno, aumentando o contingente daqueles que lutam por uma vaga aqui dentro. Contudo, nossa saída da crise depende da recuperação da economia mundial, e esta é uma função da economia americana. Precisamos do crédito e dos mercados em expansão. Portanto, a recuperação aqui também será reflexa. Deveremos esperar que antes eles se recuperem para só então pensarmos em retomar nosso brilhante desempenho do quinquênio 2004-2008, quando o PIB cresceu 26,5%. 3ª Questão: Quanto tempo vai durar? Vai demorar o tempo que os sistemas bancários americano, do Reino Unido e de outros países levarem para reduzir e ajustar sua excessiva alavancagem (captação de depósitos em relação ao capital próprio). Isto significa redução das carteiras de empréstimos

(contração de crédito) e aumentos de capital, inclusive mediante utilização de dinheiro público. E não só o sistema bancário formal, mas igualmente o chamado sistema bancário sombra – bancos de investimento e fundos de investimento alavancados – importantes protagonistas da bolha imobiliária. Vai demorar o tempo necessário para que as famílias, indivíduos e empresas alcançados pelo empobrecimento (efeito riqueza adverso) restabeleçam seu equilíbrio patrimonial e voltem a gastar normalmente. Alguns economistas prognosticaram que a presente recessão americana poderia durar algo como 18 meses. Supondo que tal estimativa se materializasse, os Estados Unidos iniciariam a recuperação no segundo trimestre de 2010, o que repercutiria no Brasil a partir do quarto trimestre de 2010 ou no primeiro de 2011. É claro que a crise dos anos 30 durou dez anos, mas atualmente o peso econômico do setor público é bem maior, o que potencializa os efeitos das políticas anti-recessivas. Além disso, hoje se tem a consciência da tragédia humana e social de uma depressão profunda e prolongada, de modo que existe um apoio político maciço às medidas destinadas a minimizar as recessões. 4ª Questão: Como será a recuperação? Há um ano as perspectivas eram mais otimistas. Admitia-se que o governo americano poderia contornar os prejuízos do setor privado mediante um aporte de recursos da ordem de dois a três trilhões de dólares. Suponha-se que o governo tivesse gastos pontuais agora em 2009 e em 2010 de US$ 2,5 trilhões para fazer a economia americana reagir ao estouro da bolha do subprime, enfrentando uma recessão relativamente curta e sem muito sofrimento. A uma taxa de juros de 4,4% a.a., correspondente à média das taxas de Treasury Bills do Tesouro Americano (títulos de 3 meses) entre dezembro de 2006 e dezembro de 2007, aqueles US$ 2,5 trilhões de aumentos pontuais de gastos elevariam o déficit fiscal da União, em bases permanentes, a 3,7% do PIB. Percentual elevado, mas passível de absorção no contexto de uma recuperação econômica normal dos Estados Unidos. Importante notar que nos referimos a aumento de caráter permanente no déficit fiscal norte-americano.


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Com a liquidez farta e o juro lá embaixo, o sistema financeiro americano procurou alternativas de investimento e encontrou boa rentabilidade nas hipotecas de alto risco (subprime), formandose a bolha imobiliária. Infelizmente, no final de 2005 a inflação de preços dos bens e serviços correntes começou a apresentar-se.

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5ª Questão: O quebra-cabeça ou a etiologia da crise­. O que esteve por trás da bolha do subprime? Defeitos de supervisão bancária, sem dúvida. Mas também e, principalmente, taxa de juros baixa e exportações de manufaturas chinesas a preços baratos. Para coroar, financiamento abundante do People’s Bank of China (Banco Central). Sem problemas de inflação nem de financiamento dos déficits do balanço de pagamentos em transações correntes, o Federal Reserve colocou a taxa de juros básica em níveis historicamente reduzidos (ver Gráfico 2 e Tabela 1). A absorção (consumo mais investimento) e a dívida externa cresceram. A expansão do PIB foi excelente, e a exuberância da demanda americana contagiou direta e indiretamente o mundo todo. O Brasil ganhou muito com essa situação, vendendo commodities para a China e Oriente Médio, manufaturas

para a América Latina e África, ademais de uma pauta diversificada para a Eurolândia e América Inglesa. Com a liquidez farta e o juro lá embaixo, o sistema financeiro americano procurou alternativas de investimento e encontrou boa rentabilidade nas hipotecas de alto risco (subprime), formando-se a bolha imobiliária. Infelizmente, no final de 2005 a inflação de preços dos bens e serviços correntes começou a apresentar-se. Seguindo os preceitos dos manuais de Economia, o Fed iniciou um movimento de subida de juros. Em consequência, o preço dos imóveis parou de crescer e começou gradualmente a baixar.

Kevin Hasset, diretor de estudos de políticas econômicas do American Enterprise Institute, é colunista da “Bloomberg News”. Foi assessor de John McCain na eleição presidencial de 2008.

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Kevin Hasset, “Para os EUA arrumarem sua condição fiscal seria necessário dobrar o imposto de renda”, Valor, 19/01/09, p. A11.

O ano fiscal é referido ao ano calendário do mês do seu término. Assim, o ano fiscal 2009 começa em outubro de 2008 e termina em setembro de 2009.

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Kevin Hasset2 em artigo no Valor3 estima em US$ 1,7 trilhão o déficit federal dos Estados Unidos para 2009, algo da ordem de 12% do PIB. De certo está somando os gastos pontuais dos pacotes de socorro aos valores do déficit corrente projetado, até porque diz que em 2008 o déficit teria sido da ordem de US$ 0,4 trilhão. O aumento extravagante só pode se explicar pelo programa anti-recessivo. Não é claro, de outra parte, se Hasset refere-se ao ano fiscal americano, que vai de outubro de um ano a setembro4 do outro. Supondo que se refira ao ano fiscal, ele teria implicitamente dimensionado o custo imediato do resgate da economia em metade dos US$ 2,5 trilhões mencionados acima. Sendo assim, a saída da crise induziria um aumento do déficit em bases permanentes, não para 3,7% do PIB, mas para 3,3%. Seja como for, não implicaria, em princípio, perigos inflacionários que ameaçassem a posição do dólar como moeda de reserva ou que requeressem subidas muito fortes de taxas de juros para combater tensões inflacionárias.

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Tabela 1 – Federal Funds Target Rate

Federal Funds Target Rate Mês/Dia

1999

2000

2001 2002 2003 2004 2005

2006

2007 2008

Jan 1

4.75%

5.50%

6.50% 1.75% 1.25%

1.00%

2.25%

4.25%

5.25%

4.25% 0%-0.25%

Feb 1

4.75%

5.50%

5.50% 1.75% 1.26%

1.00%

2.25%

4.50%

5.25%

3.00%

Mar 1

4.75%

5.75%

5.50% 1.75% 1.25%

1.00%

2.50%

4.50%

5.25%

3.00%

Apr 1

4.75%

6.00%

5.00% 1.75% 1.25%

1.00%

2.75%

4.75%

5.25%

2.25%

May 1

4.75%

6.00%

4.50% 1.75% 1.25%

1.00%

2.75%

4.75%

5.25%

2.00%

Jun 1

4.75%

6.50%

4.00% 1.75% 1.25%

1.00%

3.00%

5.00%

5.25%

2.00%

Jul 1

5.00%

6.50%

3.75% 1.75% 1.00%

1.25%

3.25%

5.25%

5.25%

2.00%

Aug 1

5.00%

6.50%

3.75% 1.75% 1.00%

1.25%

3.25%

5.25%

5.25%

2.00%

Sep 1

5.25%

6.50%

3.50% 1.75% 1.00%

1.50%

3.50%

5.25%

5.25%

2.00%

Oct 1

5.25%

6.50%

3.00% 1.75% 1.00%

1.75%

3.75%

5.25%

4.75%

2.00%

Nov 1

5.25%

6.50%

2.50% 1.75% 1.00%

1.75%

4.00%

5.25%

4.50%

1.00%

Dec 1

5.50%

6.50%

2.00% 1.25% 1.00%

2.00%

4.00%

5.25%

4.50%

1.00%

Fonte: Federal Reserve Board Copyright 2009 MoneyCafe.com

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Copyright 2009 MoneyCafe.com

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– o fantasma da década de 30 – e optaram por uma atitude cautelosa. Isto foi fundamental para evitar pressões inflacionárias naquela oportunidade. De outra parte, é notório o crescimento da classe média chinesa inclusive com aumento da desigualdade na distribuição de renda refletida no crescimento do coeficiente de Gini. O acesso aos produtos e confortos oferecidos pela indústria moderna pode constituir chamamento suficientemente forte e acabar aumentando a taxa de consumo da sociedade chinesa e, por conseguinte, suas importações. Para finalizar, um ajuste da natureza apontada acima poderia viabilizar a ocupação do excesso de capacidade produtiva existente no mundo, a que se refere o economista Nouriel Roubini. Ele vê essa capacidade excedente de uma perspectiva pessimista – mais recessão, mais desvalorização das ações. Contudo, o fenômeno admite também um olhar otimista, na medida em que a capacidade produtiva agora ociosa pudesse ser absorvida por medidas coordenadas de estímulos à demanda e financiamento, porém sempre obedecidos os parâmetros de credibilidade dos tomadores de crédito. Não se pode querer curar uma bolha com outra.

Carlos Eduardo Freitas Economista do Corecon/DF

GALBRAITH, John Kenneth. Uma vida em nossos tempos. Trad. Wamberto H. Ferreira. Brasília: Editora Universidade de Brasília, c1985. p. 189-190.

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A crise se torna explícita em agosto de 2007 e o Fed dá marcha à ré na subida da taxa de juros (vide Tabela 1 e Gráfico 2). A partir daí a bolha vai estourando paulatinamente até que em 15 de setembro de 2008 a quebra do Lehman Brothers precipita a corrida bancária e instala-se o pânico. O quebra-cabeça é o seguinte: os pacotes anti-recessivos acabarão por simplesmente recompor o status quo ante? É possível e provável que isso aconteça. À medida que a recuperação da demanda nos Estados Unidos contar com financiamento externo, com o Banco Central da China à frente, havendo ainda manufaturas a preços baixos, a situação anterior que levou à atual crise pode se reproduzir e provocar novos desequilíbrios no futuro. Seria necessário que paralelamente aos pacotes anti-recessivos houvesse uma mudança radical na estrutura da economia mundial. Os países de alta taxa de poupança – China, Japão, Alemanha e outros – deveriam aumentar suas respectivas taxas de consumo, e os de altas taxas de consumo, como Estados Unidos, elevar suas taxas de poupança. À primeira vista, só uma intervenção de Odin faria com que isso acontecesse num horizonte de tempo razoável. Dois fatores, entretanto, poderiam se associar e eventualmente se contrapor a esse desdobramento. Um seria uma recuperação mais lenta da confiança dos consumidores nos Estados Unidos, o que aumentaria a taxa de poupança. Outro seria o aumento da propensão a consumir na China com a ascensão de uma nova classe média. Ou seja, mudanças estruturais de sentido inverso nos Estados Unidos e na China. Um eventual aumento da taxa de poupança americana no caso encontra precedente durante a 2ª Guerra Mundial, quando a riqueza financeira acumulada com o aumento de renda advindo da recuperação condicionada pelo esforço bélico não se transformou em surto de gastos. Segundo Galbraith5 dois fatores explicaram esse comportamento. De uma parte, preferiram os americanos esperar o fim da guerra para comprar seus “carros e geladeiras e casas” (Galbraith, op. cit. p. 189) sem as limitações dos tempos de escassez. Mas também, de outra parte estavam receosos da volta do desemprego

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Artigo A crise do subprime com a cor verde-amarela Dércio Garcia Munhoz

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A grave crise financeira que se alastrou em praticamente todos os continentes em meados de 2008, a partir dos Estados Unidos, teve o seu início um ano antes, quando centenas de milhares de compradores de casa própria através de financiamentos classificados como subprime (que são operações de risco) deixaram de pagar as prestações, iniciando-se um processo maciço de retomadas de habitações pelos bancos hipotecários. O descontrole em realidade deu-se muito antes, quando, a partir de 2005 passou a ocorrer um crescimento explosivo de financiamentos de retorno incerto, em que figuram como devedores mutuários com tradição de maus pagadores, ou trabalhadores de baixa renda e sem trabalho fixo, e muitas vezes imigrantes ilegais. E detonaria dois anos depois quando contratos facilitados por baixos juros e baixas prestações durante os primeiros anos passaram à fase seguinte, quando o aumento dos juros provocavam encargos acima da capacidade de pagamento dos compradores. Nos Estados Unidos a crise se instalou primeiro nos bancos hipotecários, que passaram a enfrentar enormes prejuízos com o não-recebimento das prestações; isso determinaria a baixa contábil de sucessivos prejuízos, engolindo assim o capital dos bancos. E como estes haviam emitido e vendido títulos lastreados nos seus créditos hipotecários – o que significa que eram credores dos compradores de casa própria e devedores daqueles aplicadores que lhes forneciam recursos – na

etapa seguinte também passaram a enfrentar prejuízos os compradores dos agora desvalorizados títulos emitidos pelos bancos hipotecários. Afinal era inevitável que passassem a valer menos os títulos emitidos por instituições financeiras que se enfraqueciam na mesma velocidade em que enfrentavam um calote maior. Mesmo porque os imóveis retomados de devedores inadimplentes se desvalorizavam na mesma intensidade em que crescia o número de execuções de hipotecas. Bancos na iminência de quebra saltitavam especialmente nos Estados Unidos e na Europa. O que faria surgir programas governamentais emergenciais voltados para a recapitalização de bancos, implementados apressadamente por diferentes países. Na fase atual, o governo americano faz empréstimos substanciais aos bancos, adquire carteira de títulos pobres de créditos hipotecários não pagos, compra ações de bancos cujo capital derreteu na compensação de prejuízos. O governo dos Estados Unidos, através do Congresso, abriu uma linha de US$ 700,0 bilhões para socorrer os bancos hipotecários americanos, seguradoras e bancos de segunda linha (que haviam refinanciado bancos hipotecários), mas só o Federal Reserve americano (FED), revelando surpreendente coragem para avançar o sinal, emprestou mais de US$ 2,0 trilhões a um pequeno grupo de grandes bancos locais afetados por vultosas perdas. Operação já sob contestação, pois passaram ao largo de apreciação legislativa.


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As perspectivas são preocupantes. Se na primeira fase – que quebrou meio mundo – o número de compradores de casa própria inadimplentes nos Estados Unidos é estimado em apenas algo como 20,0% dos contratos subprime – aqueles que quebraram quando do aumento no valor das prestações – a segunda fase é muito mais perigosa.

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cialmente – a concessão de empréstimos de US$ 30,0 bilhões às grandes montadoras americanas – General Motors, Chrysler e Ford, que geram direta ou indiretamente milhões de empregos nos mais diferentes setores de atividades – em especial, incluindo da mineração, siderurgia e metalurgia à indústria de material de transporte, ao comércio de veículos e autopeças e aos serviços de manutenção. Titubear e fazer exigências a indústrias americanas submetidas à intensa concorrência externa de produtores estrangeiros, colocando obstáculos para emprestar às montadoras o equivalente a apenas 1,0% do socorro prontamente concedido a instituições financeiras, é uma prova eloquente do desprezo que uma elite constituída de white colors (“colarinhos brancos”) com as cabeças voltadas para o mundo financeiro, detendo o comando de decisões governamentais de caráter estratégico, dedicam aos demais trabalhadores.

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Mas, a despeito da ação espetacular da administração americana, a crise dificilmente poderá ser contida com a estratégia atual, porque enquanto novos devedores se confessam incapacitados a pagar as prestações da casa própria, o governo foi incapaz de implementar medidas de contenção da hemorragia, o que dependeria de subsídios diretos aos devedores hipotecários mais frágeis. E, alastrando-se a crise financeira, e consequentemente o desemprego no setor, a economia real foi logo contaminada – menos demanda doméstica, menos produção, menos emprego no setor real. E como o rastilho de pólvora logo alcançou todas as economias, a produção para exportação também foi desacelerada, agravando a crise econômica. As perspectivas são preocupantes. Se na primeira fase – que quebrou meio mundo - o número de compradores de casa própria inadimplentes nos Estados Unidos é estimado em apenas algo como 20,0% dos contratos subprime – aqueles que quebraram quando do aumento no valor das prestações – a segunda fase é muito mais perigosa. Isso porque agora tendem a se confessar financeiramente incapazes pessoas que, tendo suportado o aumento das prestações da casa própria, agora se apresentam como vítimas da crise, incapazes de pagar as prestações diante da perda de empregos, ou pela queda em atividades que ocupavam trabalhadores autônomos de menor renda. É um efeito dominó sob risco de ter o caudal engrossado, que as autoridades americanas, com os olhos vidrados apenas nos bancos, não consegue enxergar. Esse quadro preocupante dos desdobramentos da crise do subprime revela a extensão dos problemas provocados pela liberdade operacional e de ação nos mercados de capitais que desfrutavam as mais diversas instituições financeiras. Liberdade que decorre do fato de que as políticas nacionais de diferentes países ficaram totalmente indefesas nas últimas décadas, na medida em que o vendaval neoliberal e seu poder político levou seus asseclas ao comando das decisões fundamentais para o funcionamento da economia e dos sistemas financeiros. Não é por outra razão que enquanto o Federal Reserve e o Tesouro americano liberavam prontamente perto de US$ 3,0 trilhões para dar sobrevida aos bancos americanos, o mesmo governo passou dois meses discutindo – para então negar par-

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A crise na versão verde-amarela Na economia brasileira a crise entrou por outras portas. Mas encontrou campo propício num país, onde os ganhos ilusórios ligados à invasão maciça de dólares para operações especulativas, provocou uma cegueira generalizada em atores do mundo financeiro e mesmo da economia real, e em gestores governamentais. Todos não querendo ver que à medida que os novos ricos, bafejados pela valorização artificial de ativos financeiros, ou por ganhos espetaculares em atividades ligadas à intermediação financeira, puxavam alguns setores da economia, dando a falsa impressão de reencontro do mundo perdido de crescimento sustentado. Inicialmente, a contaminação da economia brasileira se deu atingindo bancos menores e empresas do setor produtivo de modo geral. Os bancos, diante da dificuldade de renovar linhas de crédito externas, o que naturalmente refletiria negativamente na captação de

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A crise financeira internacional, com perdas generalizadas de bancos e investidores, provocaria ainda outros reflexos na economia brasileira: fuga de dólares aplicados em títulos de renda variável, reduzindo abruptamente os preços das ações e forçando a desvalorização do Real pela pressão da procura de dólares no mercado cambial.

recursos internamente. As empresas diante da retração dos bancos americanos e europeus, dificultando a renovação de linhas de financiamento às exportações; e também o retraimento dos bancos comerciais brasileiros, restringindo a concessão ou renovação de créditos, na busca de aumento da própria liquidez num momento de incertezas. A crise financeira internacional, com perdas generalizadas de bancos e investidores, provocaria ainda outros reflexos na economia brasileira: fuga de dólares aplicados em títulos de renda variável, reduzindo abruptamente os preços das ações e forçando a desvalorização do Real pela pressão da procura de dólares no mercado cambial; dificuldades de exportação num mundo que passou a atuar na retranca, à espera de novos dias. Com isso o setor real da economia brasileira sofreu ataque em duas frentes: queda das exportações, a despeito dos estímulos trazidos pela desvalorização cambial; retração da procura interna decorrente do furo da bolha bursatil que até então alimentava ilusões. Essa dupla reversão nos níveis da demanda passou a provocar redução da produção e aumento do desemprego, gerando uma perigosa sequência de efeitos interdependentes enlaçando perdas de empregos/redução da renda gerada/retração da demanda das famílias da produção/aumento do emprego. É o preço amargo que se paga pelo fato de as autoridades terem desconhecido que a única fonte estável de demanda das famílias é aquela ligada à renda permanente – fundamentalmente salários, rendas de autônomos, ganhos de pequenos empresários e inativos de modo geral; enquanto o consumo gerado pela valorização de ativos financeiros tende a fazer emergir apenas efêmeros espasmos. É a propagação dos efeitos encadeados entre emprego, renda e consumo, aprofundando a crise, que o governo precisa interromper de imediato, através de investimentos geradores de empregos e de demanda adicional de manufaturados. E, para isso, nada mais apropriado econômica e socialmente que programas na área da infra-estrutura urbana – conjuntos habitacionais; saneamento e captação/controle de águas pluviais; transportes urbanos; abertura, ampliação, calçamento e recuperação de vias públicas; recuperação de prédios escolares; ampliação, recuperação e reequipamento de hospitais e centros de saúde.


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Essa ausência de objetivos convivendo com políticas conflitantes transformou o Brasil num dos grandes centros mundiais de especulação financeira, com ingresso crescente (e saída imediata) de capitais predatórios.

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Como lançar um vasto programa de dinamização econômica para um governo com R$ 1,7 trilhão de títulos da dívida pública, e cujo orçamento permite cobrir menos da metade das despesas líquidas com juros? Essa é uma questão importante. Mas não vital, desde que o governo resolva colocar ordem na administração da economia e nas finanças públicas. É inconcebível que praticamente todas as medidas que deveriam compor um amplo painel de política econômica atualmente se encontrem amarradas por regras do Banco Central que deveriam estar subordinadas à estratégia global do Governo. A viabilidade das exportações é afetada pela política de câmbio livre do BC; a taxa de câmbio é livremente manipulada por meio dos movimentos especulativos de capitais externos de curto prazo que o BC não mais disciplina; o ingresso e a pronta saída dos capitais predatórios são estimulados pelas elevadas taxas de juros dos títulos públicos tabeladas pelo BC e por injustificáveis isenções fiscais; grande parte das receitas governamentais fica comprometida pelos encargos financeiros decorrentes das altas taxas de juros Selic fixadas pelo BC; enquanto o governo sofre pesadas perdas com os estímulos ao ingresso de capitais especulativos, o excesso de dólares levou o BC a permitir que os exportadores apliquem no exterior suas receitas de divisas, enquanto instituições financeiras locais têm permissão para constituir fundos para investimentos no mercado de capitais de outros países. Uma barafunda de contradições que faz – ou fazia – as delícias dos especuladores. Essa ausência de objetivos convivendo com políticas conflitantes transformou o Brasil num dos grandes centros mundiais de especulação financeira, com ingresso crescente (e saída imediata) de capitais predatórios. Com o que o volume de capitais de curto prazo que entrou no País em 2007 para aplicações na bolsa e em títulos de renda fixa – em torno de US$ 160,0 bilhões, foi maior o total de ingressos nos oito anos da anterior administração, ou oito vezes o montante registrado em 2004. E embora no entra-e-sai dessa avalanche de capitais especulando no câmbio e na bolsa tivesse sobrado apenas US$ 45,0 bilhões no acumulado entre 1995 e 2007, em dezembro de 2007 os registros oficiais

indicavam que os aplicadores estrangeiros detinham no Brasil mais de US$ 500,0 bilhões em ações e títulos, num frenesi de ganhos fáceis só comparável ao ciclo reprodutivo dos coelhos. A observação dos resultados decorrentes da linha de conduta do Banco Central em questões que afetam os interesses da economia do País – que é acompanhada pelo governo, leva à conclusão de que a autonomia do Banco é uma excrescência, pois limita fortemente a capacidade de ação da administração federal, colocando um governo livremente eleito, paradoxalmente sob o jugo de uma elite da alta administração cuja escolha e nomeação compete ao mesmo governo. Donde se pode aquilatar a extensão do poder político e do jogo de pressões, entrelaçando interesses internos e externos ligados ao enigmático mercado – algo aparentemente abstrato, mas sempre temido. Nesse contexto de subversão institucional, a administração federal tem dificuldades em reorganizar as finanças públicas, já que não apenas as despesas com juros da dívida pública tem a prioridade fixada em lei, como também os repasses do Tesouro para o Banco Central constituem no presente despesas

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Os entraves que o governo terá de remover

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Os prejuízos do Banco Central cobertos pelo governo nos últimos anos são extraordinariamente elevados para não serem percebidos: R$ 25,0 bilhões em 2005/2006, R$ 48,0 bilhões em 2007, e R$ 66,0 bilhões do primeiro semestre de 2008 (valor atualizado até outubro de 2008) – destes, por ora, apenas repassados pelo Tesouro R$ 18,0 bilhões no mês de janeiro.

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a­ dministrativamente inquestionáveis. E os prejuízos do Banco Central cobertos pelo governo nos últimos anos são extraordinariamente elevados para não serem percebidos: R$ 25,0 bilhões em 2005/2006, R$ 48,0 bilhões em 2007, e R$ 66,0 bilhões do primeiro semestre de 2008 (valor atualizado até outubro de 2008) – destes, por ora, apenas repassados pelo Tesouro R$ 18,0 bilhões no mês de janeiro. Além dessas contas milionárias, o governo concede subsídios sistemáticos ao Banco Central, ligados à antiga Conta de Movimento que financiava empréstimos rurais (emissões do ano mais juros obtidos com o acumulado das emissões), que vêm alcançando em torno de R$ 25,0 bilhões anuais. Se o governo federal transferiu ao Banco Central mais de R$ 250,0 bilhões nos quatro últimos anos e R$

100,0 bilhões apenas em 2008, e não quebrou (ainda), é inegável que tem meios de, reformulando totalmente as relações TN/BC e a estrutura administrativa nas áreas econômico/financeira, financiar amplos programas quinquenais, encadeados, de investimentos, que propiciem concomitantemente a revitalização da economia e a modernização dos setores essenciais da vida urbana. Uma última questão que não pode ser desconsiderada é que um governo que não disponha de algum núcleo da administração incumbido e politicamente sustentado para formulação da política macroeconômica a partir de uma visão global, de um projeto político, dificilmente conseguirá implementar medidas na área econômica que preservem um mínimo de coerência à ação do Estado.

Dércio Garcia Munhoz Economista do Corecon/DF


A ortodoxia se rende mais uma vez à heterodoxia econômica: algumas reflexões sobre as terapêuticas adotadas pelos EUA e os países ricos para enfrentar a recente crise econômico-financeira mundial Newton Marques

Introdução Essa crise financeira que, já contaminou fortemente o lado produtivo da economia, surgiu nos países ricos, inicialmente nos EUA e depois na Europa. Foi apelidada de Ninja, pois tanto serviu para registrar esse grave momento, onde os cidadãos ficaram sem renda, emprego e patrimônio (No Income, No Job or Assets), como também pela rapidez que surgiu como metástase dos tecidos do sistema econômico mundial, provocando assim forte desaceleração de sua atividade econômica, e possivelmente se transformará na pior crise, podendo até superar as graves consequências econômicas originadas na Crise de 1929 (A Grande Depressão), em razão do aprofundamento do processo de globalização dos mercados e com os avanços dos mercados tecnológicos e financeiros. No início das discussões em meados de 2007, acreditava-se que a crise seria rápida assumindo uma trajetória do crescimento econômico em forma da letra V, pois significava queda e rápida retomada do crescimento. Posteriormente, acreditava-se em trajetória semelhante à letra U, pois apresentava um período mais longo de recessão e consequentemente demora na retomada do crescimento. Atualmente existe forte

corrente de pensamento que aposta na letra L, ou seja, a crise não tem horizonte para a recuperação econômica, pois vai atingir proporções e graves consequências econômicas superiores àquelas originadas na Crise de 1929 (A Grande Depressão), em razão da forte contaminação no lado produtivo nos países ricos e emergentes e que se estenderá fortemente por todas as economias, com o aprofundamento do processo de globalização dos mercados e com os avanços dos mercados tecnológicos e financeiros. Essa crise se originou com as baixas taxas de juros norte-americanas a partir dos anos 90, após ter chegado a mais de 16% em 1981, passando para taxas que variaram de 2,5% a 4,0% entre 1992 e 2001, que foram reduzidas a menos de 1,0% em 2003, e elevadas até 3,0% em 2007, e agora está próxima de 0%. Com esses movimentos de altas e baixas de taxas de juros norte-americanas foi criada uma bolha financeira especulativa que estourou em 2007, como consequência das políticas macroeconômicas, basicamente visando ao controle da inflação provocando a crise de inadimplência que atingiu o mercado de hipotecas norte-americano no final da metade de 2007, afetando os lucros dos bancos e provocando corridas e saques bancários, e uma forte contração de liquidez na

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“negociados” com alta rentabilidade nos mercados financeiros locais e internacionais, como foram os casos dos mortgage backed securities (MBS)1, credit default

Ao longo do processo da criação dessa bolha imobiliária, as pessoas compravam suas casas e o sistema financeiro encarregava-se de viabilizar os negócios. Obtinham os recursos financeiros por meio do próprio financiamento hipotecário, deixando como garantia a própria casa

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economia­, afetando o lado produtivo das economias. Ao longo do processo da criação dessa bolha imobiliária, as pessoas compravam suas casas e o sistema financeiro encarregava-se de viabilizar os negócios. Obtinham os recursos financeiros por meio do próprio financiamento hipotecário, deixando como garantia a própria casa, e os agentes financeiros negociavam esses créditos por meio da securitização dos recebíveis imobiliários, que são os próprios financiamentos de longo prazo, criando ativos financeiros para serem

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swaps (CDS)2 e colateralized debt obligations (CDO)3 Havia maior cuidado na análise de risco de crédito nos mercados prime (conhecidos como de primeira linha, pois tinham garantias reais), posteriormente foram desenvolvidos os mercados subprime (de segunda linha), que não tinham garantias e nem comprovação de renda dos promitentes compradores. Até os anos 1960, tomar um empréstimo nos Estados Unidos para comprar uma casa era um processo rudimentar. O cliente procurava uma agência bancária e respondia a um imenso questionário. A análise da papelada levava semanas, num trabalho em que contava muito a forma subjetiva do funcionário do banco. Não eram incomuns as queixas sobre discriminação, tanto que em 1974 e em 1976 foram aprovadas leis que determinaram tratamento igualitário aos clientes, independentemente de raça ou religião. No fim dos anos 1970, o sistema começou a mudar, quando ganhou impulso a chamada securitização, que permite transferir operações de crédito do balanço dos bancos para o mercado de capitais. A engenharia financeira encontrada pelo mercado foi transformar financiamentos imobiliários, que são ativos típicos de bancos, em produtos financeiros ao gosto dos mercados de capitais – títulos que podem ser negociados a qualquer tempo pelos investidores, como fundos de investimento e de pensão e empresas de seguros. Enquanto havia valorização dos imóveis, provocada pelo aumento dos créditos hipotecários e pela própria conjuntura, os negócios fluíam adequadamente, pois nada impedia o bom funcionamento das engrenagens

São ativos cujos fluxos de caixa são lastreados pelos pagamentos do principal e juros de uma série de empréstimos ou hipotecas imobiliárias. Esses pagamentos são feitos mensalmente durante a vida útil desses empréstimos subjacentes.

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É a forma mais simples de um contrato bilateral pré-acordado, sob a forma de títulos ou de empréstimos, entre um comprador e vendedor de proteção. O comprador de proteção desembolsará um pagamento periódico para o vendedor da proteção como retorno de uma garantia dada pelo vendedor até acontecer o sinistro ou houver o resgate total das obrigações especificadas na transação.

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É uma forma de derivativo de crédito oferecendo exposure a um grande número de empresas em um único instrumento. Esta exposure é vendida em fatias ou pedaços de riscos variados ou subordinação, sendo conhecidos como tranche. Em um CDO de fluxo de caixa, os riscos de crédito subjacentes são títulos ou empréstimos mantidos pelo emissor. Alternativamente em um CDO sintético, a exposure para cada empresa subjacente é um credit default swap (CDS). Segundo dados da Moody´s, os spreads de crédito sobre os bônus de alto grau especulativo (junks) subiram de 260 pontos-base sobre os títulos do tesouro dos EUA, no início em 2007, para 1.200 pontos-base no final de 2008. O especialista Edward Altiman prevê que cerca de 100 bilhões de dólares em empréstimos alavancados pelos bancos para operações de compra de ações para tomada de controle de empresas estão vencendo agora, o que pode resultar em forte risco de crédito e contaminar os sistemas financeiros envolvidos.

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as crises financeiras às novas tecnologias. Os investidores superestimam os lucros potenciais das inovações, aplicam recursos em excesso e inflam os preços de ativos. Quando a bolha estoura, os investidores perdem dinheiro e as economias entram em colapso. Mas as novas tecnologias sobrevivem e continuam a criar riquezas. A crise do subprime também ocorreu na esteira de criações admiráveis. São produtos da engenharia financeira, talvez não tão visíveis a olho, como os inventos das engenharias de transportes e de telecomunicações, mas que também trazem bem-estar aos cidadãos e agentes econômicos. O volume contratado no mercado subprime aumentou de US$ 65 bilhões em 1995 para mais de US$ 1,0 trilhão em 2007, de acordo com publicações especializadas de mercado. Segundo dados do setor, a inadimplência do mercado hipotecário atinge cinco milhões de moradias. Com isso, o mercado financeiro internacional foi contaminado, provocando o credit crunch (escassez de crédito), originado particularmente nos EUA.

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A criação dessa bolha especulativa financeira, pode ser explicada por alguns analistas econômicos como inflação dos preços dos ativos e somente ganhou força e autonomia porque os EUA não aumentaram a sua produtividade e nem mesmo deram importância ao caráter do aumento do emprego e renda via lado produtivo

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das hipotecas e securitização desses créditos. À medida que os mercados começaram a se agitar (fortes quedas nos índices de bolsas, elevação dos juros e câmbio spot e futuros), procuraram descobrir o valor e os detentores dos prejuízos que já apareciam ou iriam aparecer, ficava cada vez mais claro que os problemas com o estouro da bolha dos imóveis foram amplificados muito além do imaginável pela hiper-alavancagem dos fundos de investimento (fundos de hedge e de pensão), e dos bancos que os financiaram. Ademais, esse longo processo da criação dessa bolha especulativa financeira pode ser explicado por alguns analistas econômicos como inflação dos preços dos ativos e somente ganhou força e autonomia porque os EUA não aumentaram a sua produtividade e nem mesmo deram importância ao caráter do aumento do emprego e renda via lado produtivo, mas tão-somente pelo lado rentista, o que todos sabem historicamente que não tem vida longa sob as forças produtivas do capitalismo. Esse processo foi favorecido por algumas situações. A primeira foi uma valiosa ajuda das agências de ­rating, que classificaram os papéis da securitização das hipotecas imobiliárias como se fossem títulos do Tesouro Norte-Americano (conhecidos como baixíssimo risco e elevada liquidez, com o conceito de triplo A), mesmo sem terem um mercado secundário, e que foi de fundamental importância para o espetacular furo nessa bolha. A segunda foi a auto-regulamentação do mercado de derivativos, patrocinada pelo ex-presidente do Fed, Sr. Alan Greenspan, o qual acreditava que os mercados, principalmente os de derivativos, se autoregulassem e que não havia necessidade de nenhum órgão regulador. E, finalmente, outra valiosa contribuição decisiva para estourar essa bolha foi a ausência de poderes do Fed em evitar o risco sistêmico no caso dos bancos de investimento, os quais tinham liberdade para fazer o que quisessem sem serem importunados pelos órgãos reguladores, que não tinham o menor compromisso com a assimetria de informações que provoca o risco sistêmico, conhecido como a quebradeira generalizada de instituições bancárias, provocando corridas bancárias e paralisação nos mercados produtivos. O economista austríaco Joseph Schumpeter ­associou

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A atual crise mundial foi afetada por uma crise de solvência ou de liquidez? A posteriori, os analistas econômico-financeiros costumam ser mais precisos e cuidadosos em seus comentários sobre as causas que provocaram o atual estágio dessa grave crise mundial. Inicialmente, acreditava-se que o principal problema oriundo da corrida bancária era a escassez de crédito, proporcionada pela inexistência do mercado secundário dos papéis atrelados ao mercado hipotecário, notadamente daquele de alto risco (subprime). Tanto foi assim que os bancos centrais dos países ricos (Fed, Bank of England, Banco Central Europeu, Bank of Japan, dentre outros) criaram linhas especiais de redesconto (renováveis) para suprir, por curto prazo, a falta de liquidez dos bancos com relação aos saques dos seus fundos e das suas contas bancárias, colateralizados por papéis associados ao mercado hipotecário, os quais eram conhecidos como “moedas podres”, sem mercado secundário. Hoje, alguns poucos analistas do mercado financei4 ro admitem que se tivesse sido feito diagnóstico correto no início dessa crise financeira hipotecária dos EUA,

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a crise de liquidez resolve-se via operações compromissadas dos bancos centrais, mas a crise de solvência é um grave erro de supervisão dos órgãos reguladores, bem como tende a riscos sistêmicos.

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em 2007, a terapêutica teria sido mais eficaz em minimizar os seus efeitos mundialmente; entretanto, o Fed e o Bank of England, por exemplo, somente descobriram os seus erros de avaliação tardiamente, quando o estouro de boiada e a corrida bancária já haviam acontecido, transmitindo rapidamente ao setor produtivo e financeiro mundial. Aqui é importante ressaltar que as terapias a serem adotadas diante de um diagnóstico de crise de liquidez diferem significativamente de um diagnóstico de crise de solvência. Em geral, essa crise resolve-se via operações compromissadas dos bancos centrais, mas a crise de solvência é um grave erro de supervisão dos órgãos reguladores, bem como tende a riscos sistêmicos. Somente quando o Banco da Inglaterra saiu na frente comprando as ações das instituições financeiras com problemas de solvência é que os EUA abriram os olhos e tomaram igual atitude, mas com muita desconfiança e com muito atraso, o que permitiu que o Lehman Brothers fosse reconhecido como grave erro e desencadeado a contaminação nos sistemas financeiros. Ademais, não é desprezível admitirmos que o modelo adotado para o sistema financeiro dos EUA durante muito tempo, iniciado pelo Glass-Steagal Act, de 1933, até o Gramm-Leach-Bliley Act, de 1999, segregou os sistemas normativo e operativo dos mercados financeiro e de capitais, e criou espaço para que fosse estimulada e inflada a bolha especulativa do setor hipotecário pelos bancos de investimento. Com isso, o Fed foi tolhido dos seus poderes de órgão regulador para minimizar o risco sistêmico (preconizado pelo Comitê de Supervisão Bancária do BIS), ao lado do estímulo do Sr. Greenspan para a auto-regulação dos mercados de derivativos, bem como permissão da Securities Exchange Comission (SEC), que é a equivalente à nossa CVM, para que os normativos contábeis incluíssem esses lançamentos dessas operações fora dos balanços (off-balance sheet). O relatório mais abrangente sobre os credit-default swaps (CDS), com um mercado de mais de US$ 47 trilhões, não revela as apostas que contribuíram para destruir a American International Group (AIG), que já foi a maior seguradora do mundo.

Gostaria de agradecer especialmente ao economista Tony Volpon, o qual foi o primeiro que me chamou a atenção para esse grave erro de análise por parte das autoridades supervisoras, notadamente os bancos centrais dos países ricos.

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Inúmeras tentativas vêm sendo feitas no sentido de solucionar essa crise, como vários pacotes do governo dos EUA para ajudar aos inadimplentes compradores das hipotecas e compra de ações dos bancos que estão ameaçados de falência ou graves problemas de corridas de saques, bem como o redesconto de liquidez dos bancos centrais àqueles que detêm os ‘ativos’ agora podres

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cambial) e de capitais, ao longo de 2008, culminando com a sua fase mais aguda neste segundo semestre. Terapêuticas adotadas pelos governos dos países­ricos e emergentes

Inúmeras tentativas vêm sendo feitas no sentido de solucionar essa crise, como vários pacotes do governo dos EUA para ajudar aos inadimplentes compradores das hipotecas e compra de ações dos bancos que estão ameaçados de falência ou graves problemas de corridas de saques, bem como o redesconto de liquidez dos bancos centrais àqueles que detêm os “ativos” agora podres (porque não conseguem se desfazer deles) e que provocam sérios e graves problemas de liquidez.

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Um estudo da Depository Trust and Clearing Corp. (DTCC), a agência que liquida e compensa operações das bolsas nos Estados Unidos, não inclui os CDS negociados em particular pelas seguradoras como AIG, MBIA e Ambac Financial Group, para garantir os ativos conhecidos como obrigações da dívida colateralizada(CDOs). O relatório da DTCC mostrou que existe um total de US$ 33,6 trilhões de transações com papéis de governos, empresas e títulos vinculados a ativos em todo o mundo, com base em dados brutos. As operações com derivativos sobre crédito se multiplicaram por cem na última década, uma vez que bancos, fundos de hedge, seguradoras e outros investidores usaram esses contratos para se proteger contra prejuízos ou especular com títulos que não possuíam. Esse crescimento foi puxado, em parte, pelos CDOs, títulos que combinam ativos como bônus, empréstimos e credit-default swaps, dividindo-os em diversos níveis de risco. Em todo o mundo os bancos registraram baixas contábeis e prejuízos de US$ 693 bilhões com empréstimos, CDOs e outros investimentos desde o começo de 2007, segundo dados compilados pela “Bloomberg”. A AIG informou aos investidores em agosto de 2007, pela primeira vez, que detinha mais de US$ 440 bilhões de negócios envolvendo swaps de crédito vinculados a CDOs. A empresa, sediada em Nova York, se encontrava à beira da falência em setembro último, depois que o valor dessas transações despencou. A seguradora teve que entrar com mais de US$ 10 bilhões em garantias para respaldar os contratos, depois que a classificação da sua dívida foi rebaixada. Aceitou um empréstimo de US$ 85 bilhões do governo em troca do controle. A MBIA e a Ambac, que já foram as duas maiores seguradoras de bônus do mundo, perderam este ano a classificação AAA, a mais elevada, devido às perdas potenciais com swaps de crédito vendidos para garantir CDOs vinculados a empréstimos para a compra de imóveis. Uma pesquisa de mercado realizada em 2008 pela International Swaps and Derivatives Association, que inclui os swaps de crédito sobre CDOs e outros contratos que podem não ter sido detectados pela DTCC, estima que mais de US$ 47 trilhões em contratos brutos estejam em circulação. Assim, atingiu-se a globalização do comércio mundial e dos mercados financeiros (monetário, crédito e

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alguns países emergentes, como o Brasil, não estão em péssima situação macroeconômica, pois essa grave crise mundial os apanhou em fase de crescimento da atividade econômica, com ajustes fiscal e monetário, e baixo grau de endividamento externo público, mas não privado.

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Em fevereiro de 2008, o Congresso aprovou pacote de estímulo aos consumidores norte-americanos, no qual havia cheques de restituições aos contribuintes, o que atenuou o momento da crise financeira. Posteriormente, em setembro de 2008, o Congresso dos EUA aprovou plano de ajuda ao sistema financeiro no valor de US$ 700 bilhões (os quais tiveram a inclusão feita pelos deputados de mais US$ 150 bilhões por meio de corte de impostos, benefícios fiscais para a classe média, pequenos empresários e famílias atingidas por acidentes naturais), com vistas a permitir a compra dos denominados de “títulos podres” (papéis ligados aos setores hipotecários subprime). Outras soluções dadas pelo governo dos EUA e do Reino Unido foram a capitalização dos bancos que estavam com problemas de solvência, por meio de recursos dos seus respectivos Tesouros. Fica a sensação de que o Estado socializa os prejuízos após os capitalistas privatizarem os lucros. Eles esperam o perdão por terem alavancado seus instrumen-

tos financeiros sob os auspícios do risco moral (moral hazard), ameaçando os sistemas econômicos, como o sistema circulatório pode provocar os devidos estragos no corpo humano dos cidadãos! Essa crise mundial não tem sido pior, pois tem havido uma coordenação das políticas monetárias entre os países do G7, com vistas a evitar pioras da liquidez financeira, o que poderia criar severo travamento no crédito mundial, consequentemente, no lado produtivo ou real da economia desses países ricos. Entretanto, para sair dessa armadilha de liquidez, somente têm eficácia as políticas públicas, as quais encontram fortes resistências nos países da Área do Euro, em razão das metas fiscais impostas pelo Tratado de Maastricht, bem como pela ausência de autonomia que tem esses países que adotaram o Euro como sua moeda e que impede o manejo das políticas públicas para criar o princípio da demanda efetiva como forma de incentivar a retomada do ciclo econômica a la Keynes. As taxas de juros básicas dos EUA, Reino Unido, Japão, Canadá, Suíça, Austrália estão muito baixas, aproximando-se de zero. O mundo dos países ricos está no que o Lord Keynes denominou na teoria econômica de “armadilha da liquidez”, onde nenhuma ação de política monetária permite a retomada da atividade econômica. Somente as políticas fiscais têm condição de aumentar o nível de emprego e renda desses países. Curiosamente, alguns países emergentes, como o Brasil, não estão em péssima situação macroeconômica, pois essa grave crise mundial os apanhou em fase de crescimento da atividade econômica, com ajustes fiscal e monetário, e baixo grau de endividamento externo público, mas não privado. Entretanto, como dependem fortemente do processo de globalização de seus mercados comercial e financeiro, têm sofrido fortes desvalorizações cambiais e elevados e crescentes déficits nas contas-correntes dos seus balanços de pagamento. Conclusão Enfim, quais são as lições que nós, economistas, temos que tirar desse momento de grave crise mundial? Os sistemas financeiros mundiais devem ser devidamente acompanhados, normatizados, fiscalizados, regulados e auditados, para que seja evitada situação


privado não-financeiro (caso das montadoras), inchando o seu balanço com títulos privados e outros bancos centrais no mundo, em ação coordenada. Tudo isso é conhecido como meramente uma emissão monetária sem contrapartida pelo lado real ou produtivo! É necessário também esquecer outra pedra angular da ortodoxia: o equilíbrio fiscal aliado ao controle monetário! Caso fosse por meio de investimentos públicos não seria problema, é até mesmo recomendável; entretanto, torna-se difícil essa operação porque tem como objetivo absorver os ativos podres do setor privado. Se essas operações fossem realizadas por meio de títulos públicos, encontraria compradores, mas com os títulos privados não têm valor e, portanto, não têm comprador. Trata-se, portanto, de uma doação ao setor privado, mesmo sendo travestido de operações com títulos públicos. E pode ainda se tornar mais grave, caso o setor privado, mergulhado na deflação, decida-se por entesourar esses recursos “doados” pelo governo dos EUA. Enfim, existe um limite para a capacidade da assunção dessas dívidas privadas pelo setor público dos EUA, o qual deverá ser evitado a todo custo a ser atingido, dificultando, assim sobremaneira, as operações-hospital do Federal Reserve por meio das operações compromissadas dos papéis privados, bem como exigindo rapidez nas ações do governo dos EUA. Aliado a essa crise de

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Os analistas e as autoridades, notadamente nos EUA, equivocaram-se ao diagnosticar essa crise como se fosse uma mera inflação de preços de ativos e que iria rapidamente se ajustar.

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semelhante a essa que aconteceu recentemente nos EUA e na Europa. As autoridades fiscalizadoras e reguladoras mundiais não podem continuar a serem complacentes com as grandes transformações e inovações financeiras, deixando que a auto-regulamentação cumpra esse papel, bem como se omitirem de exercer algum tipo de controle sobre as agências de rating. Outro grave equívoco que deve ser evitado é o Banco Central não ter poderes para evitar o risco sistêmico, como foi o caso recente do FED. Os analistas e as autoridades, notadamente nos EUA, equivocaram-se ao diagnosticar essa crise como se fosse uma mera inflação de preços de ativos e que iria rapidamente se ajustar. A discussão sobre a utilização do arsenal macroeconômico pelos governos para controlar a inflação de bens e serviços não pode prescindir de se preocupar também com a inflação dos preços dos ativos, mesmo sabendo-se que aquela inflação é um processo generalizado, sem descontinuidades e que não se interrompe por si mesmo, e que a de preços dos ativos é um fenômeno setorial, descontínuo e que pode se exaurir repentinamente, independentemente das políticas macros. Será que não aprendemos o suficiente com as lições dadas por essa grave crise mundial! O processo de deflação deve ser evitado a qualquer custo, mesmo sabendo que aumenta o valor dos ativos em relação à renda e à riqueza dos devedores, dificulta a desalavancagem e prolonga a deterioração dos ganhos obtidos nos momentos de prosperidade, como é o caso da taxa dos fed funds tenderem a zero, o que não impedirá que o valor dos ativos fique abaixo do valor das dívidas ou hipotecas nos EUA. E o que podemos esperar para reativação do ciclo econômico com relação às medidas que os EUA têm tomado com a aprovação de pacotes fiscais para ajuda a bancos, empresas e consumidores (principalmente os inadimplentes das hipotecas)? Ainda existem etapas a serem queimadas. A primeira é fazer o crédito voltar a fluir, mesmo com o aumento de liquidez por meio do Fed, rasgando o livro das regras dos bancos centrais ao realizar operações compromissadas com papéis privados e “podres”(títulos securitizados e commercial papers) e montando engenharias financeiras para também agir indiretamente com o setor

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liquidez, existe também a crise de solvência de inúmeras instituições bancárias. Conclui-se, portanto, que essas inúmeras tentativas do governo dos EUA de aprovação de pacotes fiscais não é o de reanimar a sua economia, como tem sido dito pelo governo e muitos analistas econômico-financeiros a todos os quatro cantos do mundo, mas tãosomente o de evitar o colapso do sistema financeiro e restabelecer os canais de crédito que estão completamente danificados e bloqueados. Anexos

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A seguir são relacionados alguns fatos que foram considerados determinantes para o processo dessa grave crise mundial e que aconteceram ao longo desses últimos dezoito meses. Em agosto de 2007, o BNP Paribas Investment Partners congelou 2,0 bilhões de euros dos fundos Parvest Dynamic ABS, o BNP Paribas ABS Euribor e o BNP Paribas ABS Eonia, alegando inadimplência dos pagamentos do crédito “subprime” nos EUA. A partir daí desencadeou-se reação de pânico no mercado hipotecário. A American Home Mortgage, uma das 10 maiores empresas do crédito hipotecário nos EUA, pediu concordata; a Countrywide Financial, outra gigante do setor, foi comprada pelo Bank of América; os fundos de investimentos com carteira de papéis ligados às hipotecas “subprime” e ligados aos bancos do Citigroup e Bear Stearns (e que depois foi vendido ao JP Morgan) sofreram saques de bilhões de dólares. Um dos maiores bancos de investimento dos EUA, Lehman Brothers, foi o pivô da contaminação da crise financeira no setor real ou produtivo da economia mundial, pois tentou, sem sucesso, comprador para seu controle, em setembro de 2008, bem como levantar fundos financeiros junto a outras instituições financeiras privadas para continuar suas operações financeiras, mas não teve sucesso. Ademais, teve que amargar a recusa de ajuda financeira em forma de empréstimo junto ao Federal Reserve (banco central dos EUA), o que foi considerado o maior erro do chairman Ben Bernanke, desencadeando fortes reações ao sistema financeiro mundial, atingindo fortemente o setor produtivo ou real da economia dos países ricos.

Em setembro de 2008, o Tesouro Norte-Americano injetou vultosa soma de recursos financeiros na Fannie Mae, denominação do The Federal National Mortgage Association, que é uma agência governamental dos EUA que compra as hipotecas e as securitiza, criada em 1938 pelo setor privado, mas estatizada pelo Congresso em 1968, e na Freddie Mac, denominação do Federal Home Loan Mortgage Corporation, instituições que fazem parte do Federal Housing Finance Agency, autoridade reguladora do setor de hipotecas norteamericanas, como forma de garantir os US$ 12 trilhões desse mercado, em 2008. Em seguida, o Merrill Lynch foi vendido ao Bank of América; houve ajuda financeira à gigante do setor de seguros AIG, na forma de injeção de recursos públicos de US$ 85 bilhões; houve a falência de uma das maiores instituições do ramo de empréstimos em poupança dos EUA, Washington Mutual. O quarto maior banco norte-americano, Wachovia, foi vendido ao Wells Fargo, por US$ 15,1 bilhões, como consequência do desastroso negócio feito com a compra da companhia hipotecária Golden West Financial em 2006, por cerca de US$ 25 bilhões, que àquela época era visto como excelente negócio em momento de grande euforia do mercado hipotecário, assumindo US$ 122 bilhões em hipotecas do tipo “pick-a-payment”, as quais caracterizavam-se por permitir que os mutuários deixassem de fazer alguns pagamentos.

Newton Marques Economista do Banco Central do Brasil


A Crise Financeira Brasileira: análise e propostas para o seu enfrentamento José Luis da Costa Oreiro Flávio Augusto Correa Basilio

Nos últimos dois meses, os efeitos da crise financeira internacional atingiram em cheio a economia brasileira. No final de agosto, o dólar ainda era cotado em torno de R$1,60. Fechou no dia 18 de dezembro a R$2,39. Uma desvalorização de cerca 50% em dois meses. Essa impressionantemente rápida e profunda desvalorização da taxa de câmbio nos dá uma pista do canal pela qual a crise financeira internacional chegou ao Brasil. Se nos Estados Unidos a crise teve sua origem no estouro de uma bolha especulativa no mercado imobiliário, alimentada principalmente, mas não unicamente pelas assim chamadas hipotecas sub-prime; no Brasil, a crise financeira teve sua origem no estouro de uma bolha especulativa no mercado de câmbio. Uma bolha especulativa é definida como “um aumento significativo do preço de um ativo ou conjunto de ativos, num processo contínuo, no qual o aumento inicial gera expectativas de novos aumentos no futuro, atraindo assim novos compradores – geralmente especuladores que estão interessados nos lucros que podem obter com a venda do ativo e não devido ao uso produtivo do mesmo. Esse processo é geralmente seguido por uma reversão das expectativas e um grande colapso dos preços, o que leva a uma crise financeira” (Kindleberger, 1992, p.1992).

Essa definição nos coloca duas questões fundamentais. Em primeiro lugar, quais são os mecanismos econômicos pelos quais uma bolha especulativa surge, se propaga e estoura? Em segundo lugar, que ou quais evidências empíricas podemos alinhavar a favor da hipótese de existência de uma bolha especulativa no mercado de câmbio no Brasil, como também, e mais importante, de que o estouro dessa bolha foi, parafraseando Hyman Minsky, o “evento detonador” da crise financeira brasileira? No que se refere à primeira pergunta, uma análise bastante interessante a respeito do surgimento, propagação e estouro de uma bolha especulativa pode ser obtida em Kindleberger (1996). Segundo esse autor, a bolha resulta de uma “mania”1 que se inicia com a ocorrência de algum evento exógeno que reduziria o rendimento obtido nas atividades comerciais normais. Um elemento particularmente importante para o surgimento de uma bolha é o assim chamado efeito Duessembery: os indivíduos desejam manter seu padrão de consumo quando confrontados com uma redução permanente de seus rendimentos. Nos estágios iniciais da bolha, a procura por investimentos mais arriscados é feita por investidores profissionais, mas com o tempo os “outsiders”, ou seja,

Movimento coletivo de compra de ativos (reais ou financeiros) que resulta da perda do senso de realidade por parte dos agentes individuais, levando-os a ter um otimismo “não-fundamentado” nas possibilidades de lucro com a compra desses ativos. Se a oferta dos ativos em questão for relativamente inelástica (como é o caso de imóveis), então o movimento coletivo de compra irá resultar num aumento dos preços desses ativos, reforçando o “otimismo irracional” e criando assim um mecanismo de auto-alimentação positiva.

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i­nvestidores amadores que não possuem o conhecimento e a informação requerida para operar nos mercados de ativos; passam a investir nesses ativos com o desejo de emular o comportamento dos investidores profissionais. A mania é viabilizada pela expansão da moeda e do crédito, produzindo assim um clima de euforia entre os agentes, o qual se expressa numa forte elevação dos preços dos ativos financeiros. Em algum momento ao longo desse processo começarão a se acumular dificuldades financeiras entre os agentes, quer devido à frustração de expectativas excessivamente otimistas, quer devido à realização de lucros por parte dos investidores profissionais. Isso irá resultar num aumento do número de falências, gerando uma crise de confiança e o pânico entre os investidores (tanto profissionais como “outsiders”). O pânico gera uma “fuga para a qualidade”, ou seja, um movimento coletivo de venda de ativos com vistas à busca de liquidez. Nesse ponto ocorre o estouro da bolha especulativa. Quais são as evidências a respeito da existência de uma bolha especulativa no mercado de câmbio no Brasil­, no período que antecedeu a eclosão da crise financeira no Brasil? Uma forma de se demonstrar a existência de uma bolha especulativa no mercado de câmbio é calcular o assim chamado “desalinhamento cambial”, ou seja, a diferença entre o valor efetivo da taxa real de câmbio e o valor dessa taxa que seria compatível com os “fundamentos econômicos”, ou seja, com aquelas variáveis que afetam o valor da taxa real de câmbio de maneira independente das expectativas dos agentes econômicos. A diferença entre essas duas taxas só pode ser explicada pela presença de uma “bolha especulativa” .

Num trabalho de autoria de um dos autores deste artigo e apresentado em setembro de 2008 no 5° Fórum de Economia de São Paulo, foi estimado um modelo econométrico para se determinar o valor da taxa real efetiva de câmbio que seria compatível com os “fundamentos econômicos” para o Brasil no período 1994-2007 (cf. Oreiro et al., 2008). Os resultados dessa estimação mostram a ocorrência de uma sobre­apreciação significativa da taxa real de câmbio a partir do primeiro trimestre de 2005, conforme a Figura 1. Como pode ser observado nessa figura, se a taxa real de câmbio seguisse apenas os fundamentos, seu valor no terceiro trimestre de 2007 deveria ter sido cerca de 25% maior ao efetivamente observado nesse período. Esse padrão de sobrevalorização cambial pode ser observado desde o primeiro trimestre de 2005, variando pouco ao longo de todo o período. Daqui se segue que o câmbio real (e nominal) apresentava um valor “excessivamente” elevado, o que é uma evidência forte a respeito da existência de uma bolha especulativa no mercado cambial brasileiro. O estouro dessa bolha especulativa no câmbio no final de setembro de 2008 esteve na raiz da crise financeira brasileira. Isso porque, ao contrário do que pensam os paladinos do regime de flutuação cambial, essa rápida e desordenada desvalorização do câmbio provocou efeitos desestabilizadores sobre a economia brasileira. Diversas empresas do setor produtivo, principalmente as empresas exportadoras, amargaram prejuízos bastante significativos com a desvalorização do real. As empresas exportadoras realizaram excessivamente operações de forward target, realizando uma dupla aposta na apreciação cambial. Na primeira apos-

Figura 1 – Taxas de câmbio efetiva real e esperada real (índice - média de 2000=100)

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Fonte: Oreiro et al. (2008).


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a economia brasileira não estava blindada contra a crise financeira internacional em virtude da fragilidade financeira do setor produtivo, a qual se deveu a sua excessiva exposição a instrumentos de derivativos de câmbio.

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ta, as empresas venderam dólar aos bancos por intermédio de um instrumento chamado forward. Em outras palavras, nesta operação as empresas realizam uma operação clássica de venda de dólar no mercado a termo, apostando na apreciação cambial com o objetivo de ganhar os juros da operação, recebendo, portanto, uma receita financeira. Outra possibilidade advém das operações de swap cambial reverso realizadas pelo Banco Central, operações essas que, na prática, conferem às empresas cupom cambial no caso de queda do dólar. Essas duas operações, em si, não representam elevada exposição cambial se casadas com a receita em dólar que as empresas obtêm com as exportações. Já em uma operação de target forward, uma segunda operação sucede a venda a termo. As empresas vendem novamente dólar para os bancos no mercado futuro por intermédio da venda de opções de compra a descoberto, conferindo aos bancos o direito de comprar dólar no futuro a um preço pré-estabelecido. A partir desse razoado, é possível responder a uma das questões que mais intrigavam os economistas ao longo dos últimos dois anos, a saber: como as empresas exportadoras estavam sobrevivendo com forte apreciação cambial ocorrida no período 2005-2007? Elas estavam compensando perdas operacionais com as receitas financeiras provenientes dos contratos de derivativos cambiais – tal como prevê a teoria das bolhas especulativas de Kindleberger – sendo favorecidas por um ambiente favorável evidenciado no mercado doméstico, além de contar com sinalizações da equipe econômica do governo de que não haveria uma forte depreciação da moeda. Este argumento pode ser comprovado a partir das previsões de câmbio do Banco Central, das declarações do ministro da Fazenda e dos discursos calorosos do presidente Lula. Mesmo sabendo da enorme exposição cambial a que estavam sujeitas, as empresas não esperavam, diferentemente de 1999, que a cotação fosse ultrapassar o target (alvo). Essas considerações nos levam à contestação do assim chamado “mito da blindagem brasileira”, segundo o qual a economia brasileira estaria blindada contra a crise financeira internacional em função: i) da existência de um regime de câmbio flutuante que isolaria “automaticamente” (milagrosamente?) a economia brasileira de choques ocorridos no exterior; ii) da existência de um

volume expressivo de reservas internacionais (mais de US$ 200 bilhões de dólares pouco antes da erupção da crise financeira no Brasil) e iii) da existência de sólidos fundamentos macroeconômicos, expressos na inflação baixa e sob controle, dívida pública como proporção do PIB em queda e superávit primário como proporção do PIB significativo e sustentável no longo prazo. Hoje podemos dizer que a economia brasileira não estava blindada contra a crise financeira internacional em virtude da fragilidade financeira do setor produtivo, à qual se deveu a sua excessiva exposição a instrumentos de derivativos de câmbio. Essa exposição aos derivativos cambiais, por sua vez, foi o resultado da própria apreciação excessiva da taxa de câmbio num contexto de mercados financeiros abertos e desregulados. Nesse contexto, as empresas se valeram de um processo de defesa de margem de lucro diante do processo contínuo de apreciação cambial evidenciado nos últimos dois anos, acarretando queda na receita operacional das empresas. Podemos afirmar, portanto, que as empresas substituíram receita operacional por receita financeira. Além disso, evidenciou-se um segundo fator


que contribuiu para esta exposição: o otimismo generalizado do mercado, otimismo este sancionado pelo governo federal. Foi sob este contexto que as empresas reduziam as suas margens de segurança e, sob este enfoque, afirmamos que o mito da blindagem desconsiderou a fragilidade do setor privado não-financeiro. A crise brasileira é endógena, fruto da crescente fragilidade financeira do setor privado e decorrente da exposição ao risco cambial. O gatilho, é verdade, foi exógeno, oriundo do recrudescimento da crise internacional. Economistas ligados ao mercado financeiro calculam que o grau de exposição das empresas exportadoras com as operações de “derivativos cambiais” podem superar a cifra espantosa de 50 bilhões de dólares. Como resultado desses prejuízos – cuja extensão ainda não é totalmente conhecida – ocorreu um aumento significativo do risco de crédito das empresas do setor produtivo. Tal situação, agravada pelo clima de incerteza originado pela crise financeira internacional, fez com que os bancos brasileiros reduzissem de forma signifi-

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O Banco Central ainda acredita que os efeitos da crise internacional se limitam a uma questão da “falta de liquidez” do setor bancário. Dessa forma, as medidas tomadas até aqui se resumem a liberação (parcial) dos depósitos compulsórios com vistas a irrigar o mercado financeiro com a liquidez necessária para que o mesmo funcione normalmente.

cativa o crédito, principalmente o crédito ao financiamento do capital de giro das empresas. Essa situação de “evaporação de crédito” foi particularmente grave em outubro e novembro de 2008. Havia o risco – ainda não totalmente dissipado – de que a economia brasileira entrasse em recessão ainda em 2008 devido à “implosão” da oferta de bens e serviços, a qual resulta da incapacidade das firmas de obter o financiamento necessário às suas atividades normais de produção. A gravidade da crise não tem sido adequadamente percebida pelo governo. O Banco Central ainda acredita que os efeitos da crise internacional se limitam a uma questão da “falta de liquidez” do setor bancário. Dessa forma, as medidas tomadas até aqui se resumem à liberação (parcial) dos depósitos compulsórios com vistas a irrigar o mercado financeiro com a liquidez necessária, para que o mesmo funcione normalmente. O problema é que a situação atual não é de falta de liquidez, mas de “empoçamento de liquidez”. Isso se evidencia pelo fato de as reservas compulsórias dos grandes bancos junto ao BCB terem sido substituídas por reservas voluntárias!!! Em outras palavras, o problema não é falta de liquidez, mas aumento da preferência pela liquidez dos bancos. Os grandes bancos brasileiros não emprestam, não por que lhes falte liquidez, mas porque receiam que esses empréstimos possam não ser pagos. Esse receio tem o poder de se tornar uma “profecia auto-realizável”: o receio gera contração do crédito, a contração do crédito gera uma queda do nível de produção e de emprego, a queda do nível de produção e de emprego gera um aumento da inadimplência dos empréstimos bancários, sancionando, assim, o temor inicial e dando origem a uma nova rodada de contração de crédito. Não podemos desconsiderar o fato inegável de que existe uma crise financeira internacional em marcha, a qual terá como consequência provável a maior recessão nas economias capitalistas desenvolvidas no póssegunda guerra mundial. Nesse cenário sombrio as exportações brasileiras deverão se reduzir drasticamente, tanto em preço como em quantidade, agravando ainda mais os efeitos recessivos da contração do crédito e das perdas de capital das empresas do setor produtivo. Os efeitos combinados da contração do crédito, da perda de capital das empresas do setor produtivo e da retração das exportações deverão gerar uma desaceleração


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O Banco Central tem atuado nesse sentido por intermédio da venda de reservas internacionais e operações com swap cambial para irrigar o mercado de câmbio, atuando assim como um market maker.

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Aqui cabe uma análise a respeito da medida provisória 443 submetida em 22/10/2008 ao Congresso Nacional. Ela autoriza o Banco do Brasil e a Caixa Econômica Federal a comprarem parcial ou totalmente outras instituições financeiras. Implicitamente a MP assume que a fragilidade financeira do setor privado já contaminou o setor financeiro, expondo alguns bancos ao risco de insolvência. Dessa forma, com vistas a reduzir o risco sistêmico, o governo autorizou essas instituições a fazer o “salvamento” dos bancos com problemas, mediante a transferência de controle acionário. Essa medida é correta, mas insuficiente, pois não atua no sentido de promover um efetivo destravamento do crédito ao setor privado. É necessário que o governo crie mecanismos para induzir os bancos a reduzir a sua preferência pela liquidez. Do contrário, não seremos capazes de deter o ciclo vicioso da contração do crédito-redução da produção-aumento do risco de inadimplência-contração do crédito. Por fim, não é o momento para pseudo-ortodoxias na condução da política monetária e fiscal. Num cenário de forte desaceleração do crescimento e queda acentuada nos preços internacionais das commodities, não há nenhum risco significativo de que o teto da meta de inflação de 2009 possa ser rompido, fato que, aliás, foi reconhecido pelo Copom na ata da sua última reunião

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significativa do crescimento da economia brasileira. Uma projeção não muito pessimista seria de um crescimento de 2,5% do PIB em 2009, o que, devido ao efeito carry-over do crescimento de 2008, seria equivalente a um crescimento zero para o próximo ano. O que o governo brasileiro pode fazer para atenuar esse quadro sombrio? Em primeiro lugar, são necessárias medidas no sentido de estabilizar a taxa de câmbio. O Banco Central tem atuado nesse sentido por intermédio da venda de reservas internacionais e operações com swap cambial para irrigar o mercado de câmbio, atuando assim como um market maker. Segundo dados divulgados pelo BCB, entre os dias 18 de setembro e 16 de dezembro, as operações com dólar totalizaram US$ 53,4 bilhões de dólares (O Globo, 19/12/2008, p.31). Apesar dessas medidas, a taxa nominal de câmbio continua apresentando uma tendência forte à depreciação devido à saída de capitais do Brasil. Em setembro de 2008, o saldo cambial ainda foi positivo em 2,803 bilhões de dólares. Em outubro, no entanto, observa-se uma forte reversão do saldo da conta cambial: constata-se um déficit de 4,639 bilhões de dólares. O déficit na conta cambial é ampliado para 7,159 bilhões de dólares em novembro e o saldo acumulado até o dia 12 já mostrava um déficit de 2, 163 bilhões de dólares em dezembro (Valor Econômico, 18/12/2008, C2). Esses dados apontam para uma reversão líquida dos fluxos de capitais para a economia brasileira da ordem de 11 bilhões de dólares em pouco mais de dois meses. Esse é o primeiro sinal de alerta a respeito da ocorrência de uma “parada súbita” da entrada de capitais externos na economia brasileira. Se esse fenômeno persistir por mais tempo, a estabilização da taxa de câmbio irá exigir medidas mais drásticas como, por exemplo, a proibição temporária à saída de capitais do Brasil. Além disso, o Conselho Monetário Nacional precisa adotar medidas urgentes de “direcionamento de crédito” para induzir os bancos a retomar as linhas de crédito ao setor produtivo. Uma medida concreta nesse sentido seria atrelar a liberação dos compulsórios à concessão de crédito para o financiamento de capital de giro e para o financiamento das exportações. Algumas medidas nesse sentido já têm sido adotadas pelo governo, mas ainda são muito tímidas no que se refere aos valores envolvidos.

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de 2008 (Valor Econômico, 19/12/2008, C2). Em termos do balanceamento de riscos entre inflação e recessão, não há nenhuma dúvida de que o risco de recessão é muitíssimo maior e possui, caso se confirme, consequências mais negativas para a economia como um todo. Portanto, é o momento para uma redução significativa da taxa de juros básica, a exemplo do que vem sendo feito no mundo inteiro. Acreditamos que exista espaço hoje para uma redução de 450 pontos base na taxa básica de juros, redução essa que pode ser realizada de maneira relativamente suave nas próximas seis reuniões do Copom, a começar pela que será realizada agora em dezembro. Isso daria uma redução de 75 pontos base por reunião do Copom. Dessa forma, poderíamos chegar no segundo semestre de 2009 com uma taxa básica de juros em torno de 9,25% ao ano em termos nominais, ou de 4% ao ano em termos reais, se considerarmos uma expectativa de inflação de cerca de 5% para 2009. Trata-se de uma taxa real de juros ainda bastante atrativa, considerando-se o cenário internacional de taxas reais de juros próximas de zero ou até mesmo negativas. Em outras palavras, essa redução da taxa de juros não deverá produzir uma fuga em massa de capitais do Brasil. A redução da Selic em 450 pontos base geraria uma economia de cerca de 60 bilhões de reais acumulada em 12 meses. Esses recursos economizados poderiam, então, ser utilizados para capitalizar o BNDES, o qual poderia utilizar os mesmos para aumentar as suas linhas de crédito para o financiamento de capital de giro e para o financiamento das exportações. Sendo assim, os recursos economizados no pagamento dos juros sobre a dívida interna poderiam ser destinados ao financiamento das atividades produtivas, contribuindo assim para manter o crescimento da economia brasileira num patamar socialmente aceitável, constituindo assim uma verdadeira política anticíclica. Quando a crise de confiança ameaça contaminar os planos de investimentos das firmas, a política fiscal deve auxiliar a política monetária por intermédio do aumento dos gastos públicos, principalmente com investimentos em infra-estrutura. Não é o momento para se discutir contração fiscal; pelo contrário, os gastos do governo devem ser ampliados, principalmente com investimentos em infra-estrutura. Dessa forma, a verdadeira ortodoxia

econômica prega a adoção de uma política monetária expansionista, com redução significativa da taxa de juros, em conjunto com uma política fiscal expansionista. Eventualmente poderá haver algum aumento da dívida líquida do setor público. Se ocorrer, paciência, é o preço a ser pago pelo uso da política anticíclica para corrigir as “falhas de mercado em grande escala” geradas, de tempos em tempos, pela dinâmica endógena das economias capitalistas. Esperemos, portanto, que a política econômica brasileira não seja conduzida por idéias heterodoxas neste momento crucial. Referências Bibliográficas ATA diz que IPCA acima da média foi o motivo para a manutenção dos juros. Valor Econômico, São Paulo, 19 dez. 2008. C2. FLUXO cambial do mês volta a ficar inativo. Valor Econômico, São Paulo, 18 dez. 2008. C2. INFLAÇÃO no segundo plano. O Globo, Rio de Janeiro, p. 31, 19 dez. 2008. KINDLEBERGER, C. Bubles. In: EATWEL, j. MILGATE, M. (Org.). The new palgrate dictionary of money and finance. [S.l.: s.n.], 1992. ______. Manias, pânicos e crashes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996. OREIRO, J. L. et al. Restrições macroeconômicas ao crescimento da economia brasileira: diagnósticos e algumas proposições de políticas. In: FORUM DE ECONOMIA DE SÃO PAULO. Escola de economia de São Paulo, 5. 2008. [Anais...]. [São Paulo], 2008.

José Luis da Costa Oreiro Professor do Departamento de Economia da UnB, Pesquisador Nível I do CNPq e Membro da Associação Keynesiana Brasileira. E-mail: jlcoreiro@terra.com.br

Flávio Augusto Correa Basilio Economista, mestre em economia, doutorando em economia pela Universidade de Brasília (UnB).E-mail: flaviobasilio@unb.br.


Crise global e a vulnerabilidade externa do Brasil Reinaldo Gonçalves

Até meados de 2007, quando eclodiu a crise financeira nos Estados Unidos, a quase totalidade dos analistas no Brasil argumentava que o País havia reduzido significativamente sua vulnerabilidade externa em relação à economia mundial e, portanto, haveria blindagem em relação aos choques externos. Alguns analistas mais afoitos, antes da eclosão da crise, trombeteavam: “a restrição externa está equacionada”.1 O argumento era de que o Brasil tinha concluído seu acordo com o FMI em 2005. Outros analistas, com base na evidência a respeito da acumulação de reservas internacionais, mesmo depois da eclosão da crise, persistiam em afirmar que o Brasil estava blindado.2 O destemor era tanto que chegavam a afirmar, no início de 2008, que a economia brasileira tinha “blindagem de aço” visto que “nossa moeda – já com seis meses de crise – é hoje uma das mais fortes e estáveis no mundo emergente. Nesse período, o Real praticamente não se moveu”.3 Restrição externa equacionada, blindagem em aço: Retórica muita, responsabilidade nem tanto! A realidade mostrou que os otimistas intrépidos estavam completamente equivocados. O fato é que a blin-

dagem brasileira mostrou ser de “papel crepom”. Entre o início de julho e o início de dezembro de 2008 a taxa de câmbio (R$/US$) saltou de 1,60 para 2,50. Ou seja, depreciação cambial de quase 60% – uma megadesvalorização cambial, como mostra o Gráfico 1. E, vale notar que esta foi a maior desvalorização cambial na América Latina no período e, muito provavelmente, no mundo. Naturalmente havia exceções no minúsculo conjunto de analistas independentes. Fazendo a distinção entre vulnerabilidade externa conjuntural, comparada e estrutural, Filgueiras e Gonçalves (2007, p. 20-21) afirmam que “os indicadores de vulnerabilidade externa conjuntural, que estavam com tendência de melhora desde a crise cambial de 1999, continuam progredindo durante o Governo Lula. Entretanto, não houve melhora na vulnerabilidade externa da economia brasileira comparativamente ao resto do mundo durante o Governo Lula. Trata-se, aqui, da vulnerabilidade externa comparada, ou seja, de se analisar a evolução dos indicadores brasileiros em relação aos indicadores do resto do mundo. Ademais, as políticas do Governo Lula tendem a reforçar o avanço de estruturas de produção

Segundo Maria da Conceição Tavares (entrevista na revista Carta Capital, 25 de dezembro de 2005): “ao pagarmos o Fundo Monetário chegaremos a uma relação de dívida externa e PIB que, finalmente, apagou o que o governo do Fernando Henrique fez. Isso é espantoso: Conseguimos sair do atoleiro, da fragilidade da crise cambial”. E mais:“Isso [pagamento da dívida com o FMI] significa que a restrição externa que vem lá detrás, desde o começo dos anos 1980, está equacionada.”

1

Segundo Luis Carlos Mendonça de Barros (Folha de São Paulo, 8 de fevereiro de 2008): “a economia brasileira tem hoje condições estruturais novas e que fazem com que a tempestade nos países mais avançados aqui chegue com ventos bem mais suaves.”

2

3

Ibid.

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Gráfico 1 – Megadesvalorização cambial: Julho 2008 – Dezembro 2008 (R$/US$)

Fonte: Ipeadata.

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e padrões de inserção internacional retrógrados, que tendem a aumentar a vulnerabilidade externa estrutural do País.”4 Filgueiras e Gonçalves (2007, p. 225-226) vão adiante e afirmam que “as circunstâncias internacionais favoráveis não são aproveitadas, pelo Governo Lula, para reduzir estruturalmente a vulnerabilidade externa do País. Muito pelo contrário, embalado por elevados superávits comerciais, o modelo liberal periférico (MLP) tem se mantido intacto, abrindo ainda mais a conta financeira do balanço de pagamentos. Assim, a eventual reversão da atual conjuntura – caracterizada por grande liquidez internacional e por uma fase ascendente do comércio –, que favorece enormemente as exportações de todos os países da periferia, inclusive o Brasil, terá impactos decisivos sobre a dinâmica da economia brasileira. Essa mudança, que poderá ocorrer a partir da desaceleração das economias americana e chinesa, cada vez mais articuladas comercial e financeiramente, terá um efeito desestabilizador tanto maior quanto mais frágil for a inserção internacional de cada país.” No que se refere à questão da restrição externa, a crítica também é que o argumento acerca da blindagem­

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da economia brasileira equivoca-se a respeito da natureza da atual crise internacional. As crises dos anos 1990 tinham foco no subsistema que abarcava os fluxos financeiros para alguns mercados emergentes. Atualmente, a crise também deriva de problemas na esfera real (que tem repercussões nas esferas comercial e tecnológica), além, naturalmente, dos problemas nas esferas monetária e financeira internacional. Brasil: blindagem de papel crepom O falso argumento da blindagem brasileira assentase em três aspectos: (i) menor dependência das exportações brasileiras em relação ao mercado dos Estados Unidos; (ii) elevado nível das reservas internacionais; e, (iii) dinamismo da absorção interna. O primeiro argumento refere-se à distribuição geográfica das exportações. É verdade que a participação dos Estados Unidos como mercado para as exportações brasileiras de bens reduziu-se de 24,7% em 2001 para 18,0% em 2006, como mostra o Quadro 1. A crise econômica nos Estados Unidos reduziu ainda mais esta participação em 2007-2008. Entretanto, neste período

Luiz Filgueiras e Reinaldo Gonçalves, A Economia Política do Governo Lula. Rio de Janeiro: Editora Contraponto, 2007.


to de 10% das exportações para estes três mercados tem como efeito direto o aumento do PIB brasileiro de 0,38% em 2001 e 0,40% em 2006. Assim, ao longo dos anos a queda do peso específico dos Estados Unidos foi mais do que compensada pelo aumento do grau de abertura da economia brasileira e do peso específico da China e do México, que dependem do dinamismo do mercado dos Estados Unidos. O segundo argumento diz respeito ao nível das reservas internacionais. Houve crescimento extraordinário, principalmente, a partir de meados de 2006. Entretanto, a situação externa do Brasil está marcada por dois problemas sérios: o desequilíbrio de estoque derivado do crescimento do passivo externo a partir de 2003 e a forte deterioração dos fluxos do balanço de pagamentos a partir de 2007. O passivo externo do país quase triplicou visto que passou de US$ 343 bilhões em 2002 (final do ano) para US$ 939 bilhões em 2007 como mostra o Gráfico 2. Neste mesmo período, o passivo externo líquido (passivo menos ativo) cresceu de US$ 230 bilhões para US$ 574 bilhões.

Quadro 1 – Impacto das exportações segundo o parceiro comercial (em %)

Participação nas exportações de bens

Impacto direto das exportações sobre o PIB

2001

2006

2001

2006

Estados Unidos

24,7

18,0

0,30

0,26

Argentina

8,6

8,5

0,10

0,12

China

3,3

6,1

0,04

0,09

Holanda

4,9

4,2

0,06

0,06

Alemanha

4,3

4,1

0,05

0,06

México

3,2

3,2

0,04

0,05

Chile

2,3

2,8

0,03

0,04

Japão

3,4

2,8

0,04

0,04

Subtotal

54,7

49,8

0,67

0,73

Estados Unidos + China + México

31,2

27,3

0,38

0,40

Fonte: Nações Unidas, Comtrade . (http://comtrade.un.org/) Nota: O impacto direto sobre as exportações é calculado como: participação relativa de cada país no valor das exportações de bens multiplicada pelo grau da abertura no ano e por 10. Ou seja, é o impacto do crescimento de 10% das exportações para cada mercado sobre o crescimento do PIB. Visto que o grau de abertura refere-se a bens e serviços, supõe-se, portanto, que a participação de cada país na exportação total de serviços é idêntica à participação na exportação total de bens.

outubro / dezembro / 2008

houve aumento das participações da China e do México como destino das exportações brasileiras. O problema é que estes países dependem significativamente do mercado dos Estados Unidos. Outrossim, houve aumento do peso relativo das exportações como fonte de expansão da demanda agregada. O coeficiente de abertura (exportação de bens e serviços/PIB) era de 12,2% em 2001 e 14,6% em 2006. O resultado destes processos é que, no conjunto, os três mercados (Estados Unidos, China e México) tornaram-se importantes para a economia brasileira. Por um lado, houve queda na participação total destes três mercados nas exportações de bens do Brasil de 31,2% em 2001 para 27,3% em 2006. Por outro, com a elevação do grau de abertura da economia brasileira e a maior importância relativa da China e do México nas exportações do país, estes três países passaram a ter maior impacto direto sobre o PIB brasileiro. Assim, as exportações do Brasil para Estados Unidos, China e México tiveram impacto direto sobre o PIB do país de 0,38% em 2001 e 0,40% em 2006. Ou seja, o crescimen-

37


Gráfico 2 – Passivo externo do Brasil: 2001-07 (US$ bilhões, final do ano)

939

1000 800

623

600 400

372 265

446

407

343 230

273

2002

2003

499

524

297

331

384

2004

2005

2006

200 0 2001

Passivo externo

Passivo externo líquido

Fonte: Bacen, Posição Internacional de Investimento. Disponível: http://www.bcb.gov.br/sddsp/detposinterinv_p.shtm.

Gráfico 3 – Passivo externo líquido do Brasil: 2001-07 (% do PIB, final do ano)

Revista de

Conjuntura

38 Fonte: Bacen, Posição Internacional de Investimento. Disponível: http://www.bcb.gov.br/sddsp/detposinterinv_p.shtm.

2007


Passivo externo de curto prazo Ainda em relação ao passivo externo, vale notar que parte expressiva deste passivo é de curto prazo. Tratase fundamentalmente dos empréstimos intercompanhias, créditos comerciais, investimento em ações, investimento em títulos de renda fixa e derivativos. Estima-se, então, que o passivo externo de curto prazo é, pelo menos, duas vezes o nível das reservas internacionais, se tomarmos como referência os dados do final de 2007, apresentados no Quadro 2. Isto significa, na

prática, que caso o governo decida garantir certa estabilidade da taxa de câmbio há o risco de queda abrupta das reservas internacionais em pouco tempo. E isto caracterizaria uma crise cambial. Além do desequilíbrio de estoque, o Brasil defronta-se com o problema de desequilíbrio de fluxos derivado da acelerada deterioração das contas externas, como mostra o Gráfico 4. Previsões apontam no sentido da forte queda do superávit comercial de bens e, principalmente, do surgimento de déficit da contacorrente em 2008-2009. Ou seja, os fundamentos da economia estão comprometidos. Os desequilíbrios de fluxos afetam o mercado de divisas e as expectativas. A situação pode se tornar mais crítica na hipótese de saída abrupta e significativa de fluxos de capitais ­internacionais.

Quadro 2 – Passivo e Ativo externo, Brasil: 2007 (US$ bilhões, final do ano)

Posição (A-B)

-574

Ativo (A)

365

Investimento direto brasileiro no exterior

130

Investimentos em carteira

15

Outros investimentos e derivativos

39

Ativos de reservas

180

Passivo (B)

939

Investimento estrangeiro direto

328

Participação no capital

281

Empréstimo intercompanhia

47

Investimento em carteira

510

Investimentos em ações

364

No país

166

No exterior

198

Títulos de renda fixa

146

No país

47

No exterior

99

Outros investimentos e derivativos Fonte: Bacen, Posição Internacional de Investimento. Disponível: http://www.bcb.gov.br/sddsp/detposinterinv_p.shtm.

101

outubro / dezembro / 2008

Como proporção do PIB, o passivo externo líquido encontrava-se no final de 2007 em nível (aproximadamente 44%) não muito diferente daquele de 2002, quando houve crise cambial, como mostra o Gráfico 3.

39


Gráfico 4 – Deterioração das contas externas do brasil: 2007-09 (US$ bilhões)

60,0 50,0 40,0 30,0 20,0

46,1

40,0 23,6 13,7

13,6

10,0

3,6

0,0 -10,0

Saldo comercial de bens

Saldo conta corrente

-20,0 -30,0

-25,4

-40,0

-34,3 2006

2007

2008

2009

Fonte: Bacen, Boletim Focus. Disponível: www.bacen.gov.br

Revista de

Conjuntura

40

O terceiro e último argumento destaca o dinamismo da demanda interna como amortecedor da retração da demanda externa derivada da crise internacional. Entretanto, a economia brasileira é marcada por um padrão retrógrado de inserção no sistema mundial de comércio e pela sua posição de fragilidade no sistema financeiro internacional. A dependência do País em relação às commodities é um problema sério à medida que a crise econômica internacional provoca movimento de queda dos preços no mercado internacional. A reversão e a forte queda dos preços das commodities afetaram o desempenho do agronegócio exportador a partir de meados de 2008. Mesmo na indústria, houve elevação do grau de abertura e há setores com elevada dependência em relação ao mercado internacional.5 Ademais, as dificuldades de obtenção de financiamento externo afetam o agronegócio, o sistema financeiro brasileiro e os planos de captação de re-

cursos ­pelas empresas de todos os setores. Estes fatos implicam, na realidade, problemas de acesso ao capital externo e maior custo de captação tanto no mercado externo como no mercado interno. Estes fatos inibem a oferta de crédito para consumo, a disponibilidade de capital de giro e o investimento. As dificuldades crescentes no sistema financeiro internacional são ilustradas pela forte elevação do ­spread dos títulos brasileiros como mostra o Gráfico 5. Em 2008, este spread aumentou de 179 no início de junho para 349 no início de outubro e 530 no início de dezembro. Conforme argumentam Filgueiras e Gonçalves (2007, cap. 1), com a crise econômica internacional, “as fragilidades do País reaparecerão com toda a força, evidenciando mais uma vez os limites estruturais do Modelo Liberal Periférico e da sua política macroeconômica. Os efeitos sobre a economia brasileira e a res-

5 O coeficiente médio de exportação (exportação/valor da produção) da indústria brasileira era de 15,8% em 2002 e 21,5% em 2007. O coeficiente de exportação é muito elevado (maior do que 40%) nos seguintes setores: extração de minerais metálicos; outros equipamentos de transporte; extração de petróleo; produtos de madeira; e, preparação de couros, seus artefatos e calçados. Ver, F. J. Ribeiro et al. Coeficientes de comércio exterior da indústria brasileira: 1996-2007. Revista Brasileira de Comércio Exterior, Nº 95, 2008, p. 4-26. Para ilustrar, o coeficiente de abertura da indústria de veículos automotores é de 19,7%. Neste caso, a queda das exportações de 20% provoca redução da produção interna de 4%.


outubro / dezembro / 2008

Gráfico 5 – Risco-Brasil, spread (%): Setembro 2008 – Dezembro 2008

41

Fonte: JP Morgan.

posta das autoridades econômicas são conhecidos. A desaceleração do comércio mundial terá um impacto imediato sobre o valor das exportações, com a redução das quantidades exportadas e a queda dos preços das commodities agrícolas e industriais. A redução dos saldos da balança comercial e, em consequência, da conta de transações correntes do balanço de pagamentos, implicará aumento da dependência em relação aos fluxos de capitais internacionais – necessários para o equilíbrio do balanço de pagamentos. Como essa situação será a regra dos países periféricos, as taxas de juros exigidas pelos capitais de curto prazo – e com tendência de buscar proteção nos títulos do governo americano – tenderão a se elevar, provocando, em cadeia, a elevação das taxas de juros domésticas. Em resumo: reaparecerá a vulnerabilidade externa estrutural da economia brasileira – mascarada até aqui pelos grandes saldos obtidos atualmente no comércio exterior –, agora também explicitada pelo seu lado comercial e reforçada pelo lado financeiro. O crescimento da vulnerabilidade externa, num quadro de redução dos saldos da balança comercial e elevadas taxas de juros, será acompanhado de uma aceleração do crescimento da dívida externa e interna, que tornará ainda mais débil os efeitos da política de

elevados superávits primários – evidenciando-se, mais uma vez, que o problema fundamental da fragilidade financeira do Estado se localiza na vulnerabilidade externa e na política monetária.” Em síntese, a crise brasileira já era prevista bem antes da eclosão da crise internacional. Lamentavelmente, o trabalhador brasileiro será a principal vítima (principalmente, via desemprego e perda de renda) da crise em decorrência das políticas equivocadas do Governo Lula e da vulnerabilidade externa estrutural do País. A adesão da grande maioria dos analistas ao otimismo irresponsável também tem influência nesta “morte anunciada” da economia brasileira diante da crise global. Lamentável é saber que perdemos as oportunidades criadas pela fase ascendente do ciclo internacional (2003-2007). E é bem provável que a crise brasileira só esteja começando.

Reinaldo Gonçalves Professor titular de Economia Internacional, UFRJ. reinaldogoncalves1@gmail.com. Texto preparado para a Revista de Conjuntura Econômica do CORECON-DF, 20 de dezembro de 2008


Artigo A Crise Financeira Global de 2008: pesos e contrapesos Oscar Henrique Belo Santos

Revista de

Conjuntura

42

Aviso aos leitores: este é um artigo de um social-democrata keynesiano, que pede um pouco de paciência aos radicais, à direita e à esquerda, para um exercício de análise, aplicada à crise, da essência das escolas de pensamento econômico capitalistas hegemônicas no século 20. A crise global dos mercados financeiros, pela qual estamos passando neste final de 2008, merece uma reflexão mais equilibrada e embasada que aquela observada na maior parte dos meios de comunicação. Comumente, são ressaltados alguns aspectos em detrimento de uma visão mais ampla, tanto do ponto de vista histórico como ideológico. Como aproveitar as diferentes visões, das escolas liberal e keynesiana, para uma atuação imediata diante da crise financeira global de 2008, que já começa a afetar o lado real da economia do planeta? Em termos de Teorias do Pensamento Econômico Capitalista, o século 20 oscilou entre as idéias de Keynes (e suas derivações, incluindo aí a síntese neoclássica de Samuelson) e das escolas ditas liberais (na verdade, neoconservadoras), dentre as quais as de maior destaque foram a Monetarista e a Novo Clássica. Começando pelos liberais, não existe, a priori, na essência do pensamento liberal, a defesa das grandes corporações. Pelo contrário, existe a defesa da livre concorrência e o pressuposto de que, em ambiente de mercados competitivos, a presença do Estado deve ser reduzida.

Assistimos ao longo das décadas de 1980, 1990 e 2000 a uma concentração de operações em grandes bancos de investimento, completamente fora de controle, e a multiplicação de derivativos financeiros de difícil compreensão e pouca transparência. Outra consideração importante, do ponto de vista operacional, refere-se à recente pulverização da supervisão sobre o mercado ocorrida nos EUA. Houve um esvaziamento da autoridade do Federal Reserve em prol de uma segmentação de supervisão. Isso retirou do FED uma visão panorâmica e instrumentos de regulação. Portanto, se falamos de equívocos, o erro das escolas liberais não está na defesa da livre concorrência, mas na omissão teórica relativa às reais condições de concentração dos mercados e na interação perniciosa entre grandes corporações e poder público. Portanto, não busquemos a explicação da crise nos preceitos das escolas liberais, mas na falta de uma discussão realista das estruturas de mercado. Além disso, os pressupostos de equilíbrio em presença de mercados completos e perfeitamente competitivos, quando utilizados em mercados incompletos e imperfeitos conduzem a generalizações totalmente equivocadas, pois não aplicáveis. Entretanto, o discurso vulgar insiste em usar a palavra mercado, numa acepção propositalmente dirigida a induzir ao público leigo de que se trata de mercado completo e competitivo. Dito isso, não pretendo ignorar o uso deturpado das idéias liberais por parte das grandes corporações


Smith não vislumbrava a ameaça das grandes corporações como algo preocupante, pois acreditava que a concorrência acabaria se impondo. Isso não aconteceu. A tentativa das escolas liberais (neoconservadoras) do século 20 de continuar desenvolvendo o mesmo raciocínio na presença das grandes corporações, ignorando as distorções causadas no funcionamento da economia, quando comparado ao ambiente de concorrência como regra dominante, conduz a falácias evidentes. Da mesma maneira, a pressão econômica exercida por parte das grandes corporações sobre os governos é fator de desestabilização que não pode ser menosprezado. Keynes, ao reconhecer as imperfeições do capitalismo como inerentes ao próprio sistema, não defendia a presença do Estado como panacéia para a solução dos desequilíbrios, mas como ação reguladora. Essa regulação aconteceria por meio da demanda do governo, em situações de crise geradas por excesso de oferta, quando a injeção de liquidez na economia não produziria a reação dos empresários, no sentido de aumentar investimentos privados (situação cunhada de “armadilha da liquidez”). Pelo lado monetário, o reconhecimento da não-neutralidade da moeda e da rigidez ou viscosidade de preços e salários, bem como a instabilidade dos mercados financeiros incompletos e imperfeitos,

‘‘

‘‘

Keynes, ao reconhecer as imperfeições do capitalismo como inerentes ao próprio sistema, não defendia a presença do Estado como panacéia para a solução dos desequilíbrios, mas como ação reguladora.

outubro / dezembro / 2008

no sentido de extrair o máximo dos governos: desde incentivos fiscais, defesa de interesses particulares – em detrimento do interesse maior da sociedade – distorções na atividade do lobby e comportamento antiético, para usar um termo eufemístico. A liberdade pretendida pelas grandes corporações é uma afronta aos direitos do cidadão, tanto como contribuinte como na condição de consumidor, pois mascara o enorme desequilíbrio de forças, decorrente do exercício do poder econômico concentrado. Por outro lado, a escola keynesiana, à qual este servidor humildemente se filia, ao reconhecer as imperfeições na economia capitalista, se aproxima mais da realidade observada, mas enseja uma série de interpretações oportunistas sobre a presença do Estado na economia. Assim, para uma parcela da classe política voltada para o aparelhamento do Estado como instrumento de ascensão ao poder, o pensamento keynesiano aparece como a justificativa para ampliar a participação governamental na Economia. Da mesma forma como ocorre com a utilização distorcida das idéias liberais por parte das grandes corporações, no caso dos partidos políticos de viés populista, não é colocado em primeiro lugar o interesse maior da sociedade, mas interesses políticopartidários mesquinhos e eleitoreiros. Portanto, feitas essas reflexões iniciais, chega-se a uma primeira conclusão importante: nem a escola liberal (neoconservadora) pode ser justificativa para a ação selvagem das grandes corporações (financeiras ou não), nem a escola keynesiana pode ser usada para defender o aumento injustificado da participação do Estado na economia, camuflando a sanha do aparelhamento do Estado para interesses político-partidários. Então, qual a verdadeira utilidade das reflexões feitas por essas escolas no atual ambiente de crise? Tais reflexões são de fundamental importância para a avaliação dos desdobramentos da crise financeira e a atuação dos governos e organismos supranacionais, valendo destacar o contexto histórico em que foram sendo feitos os estudos teóricos. Sem dúvida alguma, as idéias de Adam Smith representaram, em seu momento, um incrível avanço para o entendimento da realidade. Mas, estávamos no final do século 18 e começo do século 19, no início do processo de desenvolvimento da produção em escala industrial.

43


conduz a uma ação da autoridade monetária, em sentido anticíclico e preventivo de situações de crise, como defendido por Hyman Minsky, maior referência do pensamento pós-keynesiano, que se concentra no lado monetário da Teoria Keynesiana. Agora, buscando uma síntese pragmática das duas escolas (liberal e keynesiana), num contexto de socialdemocracia: no sentido estrito da atividade econômica produtiva: a presença do Estado deve ser a mínima necessária (excetuados os setores estratégicos, como por exemplo: energia e infra-estrutura de transportes) para garantir ao cidadão igualdade de oportunidades, defesa de direitos e estímulo à produção, aliada a uma presença reguladora e preventiva sobre o poder das grandes corporações; do ponto de vista monetário: o Estado deve atuar, por meio da autoridade monetária, regulando o mercado que é incompleto e imperfeito, de maneira anticíclica e preventiva, reconhecendo a instabilidade inerente dos mercados financeiros; do ponto de vista social e ambiental: o Estado deve prover a sociedade com os serviços públicos essenciais: saúde, educação, transportes, segurança, defesa, justiça e políticas compensatórias. Além disso, promover políticas públicas de preservação do meio-ambiente e redução das externalidades econômicas poluentes; dimensão estratégica: além dessas três esferas, há a dimensão estratégica do Estado, tanto do ponto de vista de identificação de rumos de desenvolvimento, redução de desigualdades sociais e regionais, como relacionamento no contexto internacional.

Revista de

Conjuntura

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De um lado e de outro, lições históricas não podem ser esquecidas: O Estado onipresente já causou enormes prejuízos à humanidade. A queda do muro de Berlim não foi um acidente. George Orwell (pseudônimo de Eric Arthur Blair) já alertava para os perigos do Estado totalitário em sua alegoria Animal Farm (“A revolução dos bichos”) e depois na fabulosa ficção apresentada no livro 1984. A China, que hoje pratica o “Capitalismo de Estado”, não deve ser vista como modelo, uma vez que submete seus cidadãos a uma opressão que nenhum defensor das idéias democráticas pode tolerar.

Quanto à queda do muro de Wall Street, foi a queda da desregulamentação dos mercados, disso não pode haver dúvida: mercados são incompletos e imperfeitos e, portanto, necessitam de regulação para defesa da economia como um todo. Então, deveríamos utilizar essas reflexões para exigir dos governos e organismos supranacionais uma regulação firme e perene dos sistemas financeiros nacionais e uma coordenação internacional efetiva, em ambiente de irreversível globalização. Um aspecto perigoso da “consolidação”, cada vez maior, dos sistemas financeiros nacionais e seus desdobramentos internacionais é a criação de bancos gigantes que, potencialmente, gerarão problemas muito mais graves em caso de quebra. Portanto, deveríamos pensar no caminho inverso, ou seja, a desconcentração bancária, com estímulo à concorrência no sistema financeiro, beneficiando o consumidor bancário e salvaguardando o sistema financeiro dos perigos da concentração excessiva. A ação reguladora, social e estratégica do Estado não deve ser passaporte para a radicalização da presença do Estado, com todas as mazelas do aparelhamento por parte dos partidos políticos, tolhendo a liberdade inalienável do cidadão. Em resumo, pesos e contrapesos: praticar o capitalismo com a social-democracia para valer.

Oscar Henrique Belo Santos Economista formado pela UnB, doutorando em Economia pela UCB.



Não quebre a corrente!

Não quebre a corrente! O Corecon/DF defende os interesses da categoria e trabalha pela valorização dos economistas.

Mas, para que esta luta seja bem-sucedida, é importante a participação de todos. Visite o seu Conselho. Critique. Dê sugestões.

Participe!

A conquista é de todos.

Conselho Regional de Economia da 11ª Região-DF SCS Qd. 04, Ed. Embaixador, Sala 202 CEP 70300-907 - Brasília -DF Tels: (61) 3225-9242 / 3223-1429 3964-8366 / 3964-8368 Fax: (61) 3964-8364 E-mail: corecondf@corecondf.org.br Site: www.corecondf.org.br


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