1a Edição Digital - 2015 Português
1
2
3
Quando algo começa, já está começado. As coisas se sucedem umas às outras sem uma ordem estabelecida, e a mente se ocupa de determinar relações temporais e de sentido para criar uma organização. Quem pode especificar onde é o início e onde é o fim? Sempre me custou muito compreender como se dão os processos criativos. O quanto são obra do acaso ou de nosso trabalho? Como a criação se forja nesse mar de pensamentos, desejos, incômodos angustiantes sobre a falta de algo – um sentido, uma linha, um desenvolvimento lógico sobre o imaterial? A matéria parece mais simples. Os seres nascem e morrem. As coisas são o que são até que se transformam em outras coisas. Mas, enquanto isso, estamos vivos. E não estamos sós. O quanto 5
4
5
dos outros está em mim? Tudo o que se é é uma fórmula composta, são milhares de encontros, sinapses, errâncias, repetições, contaminações e outros ções e ismos e idades e ices e es e ous. O rio de Heráclito murmura incessantemente sua corrente impermanente. Quando se pode dizer que um projeto, uma ideia, um trabalho artístico começou? Platão e Aristóteles se digladiando por minha alma. Um em cada ombro. Está começado. Presente, particípio passado, os tempos se misturam enquanto, abstratos, contamos linearmente os dias, os minutos, a história, as narrativas de uma vida. Não sei como se dá meu processo criativo, mas sei que é profundamente influenciado pelos outros. A alteridade me parece o enigma mais importante da vida. É preciso cultuá-la, observá-la, perscrutá-la, furá-la, revoltar-se contra ela, ceder, entregar-se, ser atravessado e transformado a cada instante. Eu queria olhar mais detalhadamente para isso... Penso enquanto cozinho. Cozinhar me provoca coisas interessantes. Em primeiro lugar, ativa um personagem que às vezes chega a ficar tão grudado em mim que a volta ao convencional pareceria apenas uma farsa inercial a que me entrego para economizar os mal-entendidos.
Mas não sou eu, é um outro quem cozinha. Em segundo lugar, tenho enorme prazer em cozinhar para alguém. E, ainda, os efeitos dessa alquimia alquimizam mais coisas do que simplesmente a comida que é servida. Nesse sentido, o ato de cozinhar se parece à dança. Danço por que me trans-forma. Não sei qual é a sua relevância. Mas essa alquimia do corpo põe em movimento o denso que resiste à impermanência, ou que crê resistir a ela. Dança-transporte. “Um dia o viajante começou a ir de um lugar Para esse mesmo lugar.” Não se sabe exatamente por que, mas algumas coisas têm o poder de nos entusiasmar. A gente se acende a partir delas. Então não importa o porquê de nada. Vive-se. A arte deveria ser capaz de provocar isso. O que temos para jantar? O Banquete ou um biscoito? Combinações de ingredientes os mais variados. Pega-se o que se tem, ou vai-se especificamente a tal lugar em busca do tempero único, que só se encontra ali – especiaria. Especiaria é uma bela palavra. Degluti-la.
Há ainda essa identificação com a geração dos anos 1960/1970, sua ruptura, sua contestação frontal ao mercado, que ainda não parecia hegemônico como nos faz crer agora. Toda essa discussão sobre os modos de existir germinava ali no instante em que a máquina capitalista ajustava suas engrenagens para submeter a imaginação ao seu controle. O taxímetro agora nos cobra até os minutos de sono. Cada ronco, um centavo. Já acordamos exaustos, devendo um bom bocado do dia. A potência ainda nos habita. Mas precisamos de um pouco de silêncio. Pensar é o maior luxo da atualidade. E as sirenes tocam frente à menor ameaça de vírus, esse vírus da consciência que inocula o organismo social e o seu medo. Pequenas ocorrências de luz, como fogos fátuos incendiando-se ao contato atmosférico. Judson, Fluxus, o povo da performance e da dança preservam seu charme e sua lucidez, e seus aromas chegam até a minha cozinha. Gordon Matta-Clark abre seu restaurante “Food” e o declara um ato performático. Estou sempre pensando nisso enquanto se cozinha este trabalho, mesmo de cá, do assustador Brasil desses tempos. Não sei se pela distância geracional pequena ou por algum tipo de identificação prévia,
quando contemplo a geração dos artistas que nos anos 1960/1970 estavam produzindo um pensamento realmente potente e fresco no Brasil, ainda sinto o luto pelo que o golpe e a repressão instauraram. É estranho, mas também sintomático, que, tendo nascido em plena ditadura, eu me sinta próximo dessa geração, como um semelhante. Talvez porque a terra arrasada que a seguiu permaneça dolorosamente em nossa carne malpassada. Não sei onde começa nem como se dá meu processo de criação. É tudo tão esquizofrênico que preciso fazer esses acordos temporários, e às vezes, francamente, me deixo levar por eles. Combinamos todos de ir para um mesmo lado e, embora nem todos entendam realmente o que foi que combinamos, vamos, tropegamente, para aqui ou para lá. Às vezes o casamento acaba. Às vezes somos o único sobrevivente num barquinho feito das tábuas do naufrágio, racionando por dias um único biscoito, enquanto Orlando vê o barquinho girando no Serpentine. Comecei a gostar de várias pessoas e maliciosamente as convidei pra jantar. Este texto ainda não terminou.
Marcos Moraes
6
7
6
7
8
9
11
De: marcos moraes (marcomor@hotmail.com) Enviada: terça-feira, 28 de maio de 2013 17:17:28 Para: Comensais Assunto: Aos Comensais/ Cozinheiros
Queridos, (eu poderia dizer o quanto estou honrado etc etc etc) Mas não temos muito tempo para isso (agora). Então, comecemos: depois de conversar com cada um de vocês sobre o Projeto A Cozinha Performática, gostaríamos de fazer um primeiro encontro para falar sobre o projeto como um todo, especialmente a parte que nos toca, os Jantares. Nesse jantar ‘zero’ nos conheceríamos, nos apresentaríamos, falaríamos sobre o projeto, as idéias disparadoras, as condições de que dispomos, as implicações que imaginamos e assim cada um pode ver se confirma seu pertencimento a esse grupo menor que imaginamos estaria nos 5 jantares. Local a ser definido. Se agradece. Marcos Moraes, Ana Teixeira, Jaqueline Vasconcellos (faz frio e vou tomar uma sopa, que fiz ontem, de mandioquinha - ou Batata Baroa - com camarão - e humus com pão pitta)
10
11
12
13
As inesperadas configurações dos encontros Rosa Hercoles
Partiu de Ana Teixeira o convite para escrever este texto para o projeto Cozinha Performática, que conta com sua curadoria em parceria com Marcos Moraes. Uma solicitação que de imediato foi muito bem-vinda, simplesmente por aliar dois assuntos, para mim, de grande interesse: dramaturgia e comida. E, numa agradável noite de sábado, participei de um dos Jantares, ações constitutivas do projeto. Aproveito, aqui, para tornar públicos meus agradecimentos ao Zeca (José Carlos Catão), pela maravilhosa comida. O encontro reuniu todos os participantes do projeto, e me vi envolta e envolvida por uma conjunção de elegantes e experientes vozes. A paisagem dessa reunião evidenciou contornos de uma complexidade1 inatingível num primeiro e único momento. Foi a partir do pressuposto de que nossas falas carregam muitas outras falas, provenientes de nossas experiências de vida, nossos aprendizados
15
14
15
relacionais e nossas práticas estéticas, que decorreu minha primeira sensação. Seria imprudente de minha parte ousar escrever algo sobre a dramaturgia desse processo que ganha corpo a partir de tantas vozes, já que, nele, sou estrangeira; contudo, sinto-me motivada a escrever algo relativo à política do compartilhamento, indubitavelmente presente na construção de uma possível dramaturgia da cooperação (lembrando que, etimologicamente, a palavra dramaturgia significa “a composição da ação”). Embora muitos projetos se anunciem como colaborativos, atingir um estado de real cooperação não é tão simples e pacífico quanto parece, e muitas tentativas naufragam diante dessa multifacetária tarefa. A meu ver, de partida, duas questões se impõem quando o assunto é a cooperação: a primeira diz respeito à autoria; a segunda, ao desafio de compreendermos como operar na diferença. Entendo que os maiores problemas relativos à autoria residem no fato de, usualmente, ela ser entendida como sinônimo de propriedade. Foucault (1992) desconstrói a ideia de autoria vincu1 O termo complexidade não se refere apenas a uma relação quantitativa, ou seja, número de participantes, quantidade de campos do saber envolvidos na produção, etc. O que a complexidade compreende são fenômenos aleatórios carregados de incerteza, imprevisibilidade e ambiguidade, pois, nela, o acaso se faz sentir com maior incidência. Assim, relações com apenas dois elementos podem apresentar um alta taxa de complexidade. Para maiores esclarecimentos, consultar Introdução ao pensamento complexo, de Edgar Morin.
lada a um nome próprio. Para ele, este último se relaciona muito mais a interesses econômicos e de responsabilidade jurídica do que a questões propriamente artísticas. Obviamente, alguém teve a ideia disparadora de algum projeto e de seu processo criativo, mas, embora ideias possam emergir num sujeito em particular, elas não são exclusivas ou privadas.
Felizmente, a fala de Marcos Moraes, durante o Jantar, foi na contramão do entendimento de autoria como propriedade, e anunciou uma trajetória mais promissora: o curador disse que o projeto não apresentaria os atuais traços constitutivos caso fossem outras as pessoas nele envolvidas. Fala que nos remete à segunda questão, ou seja, como operar na diferença?
Ideias sempre surgem em algum contexto favorável a sua formulação, tendo como característica uma natureza múltipla, povoada por questões sociais, econômicas, políticas, educacionais, históricas, culturais, etc. A própria ideia já é uma resultante, sempre circunstancial, da ação das informações que compõem esse contexto no corpo do sujeito. Embora sua formulação possa ser inaugural, devido à singularidade dos acordos estabelecidos entre as informações incorporadas por quem teve a ideia, é preciso admitir que sua originalidade é passível de questionamentos, dado que as ideias não são imunes ao fato de pertencerem a alguma linhagem conceitual, configurada pela inevitável e inerente relação de codeterminância entre o corpo-sujeito e o ambiente-contexto. De tal modo que o que conquista existência estética encontra-se, inevitavelmente, condicionado e contaminado por muitas vozes passadas e presentes. Ideias não são manifestações desprovidas de história; em poucas palavras, o conhecimento não se limita a nós, tampouco começa em nós.
Encarar as diferenças pede, ao mesmo tempo, um olhar rigoroso e uma escuta disponível, ambos despidos de certezas e suposições preestabelecidas. Pois o fato de alguém pensar diferentemente de nós não significa que ele está contra nós. O corporativismo, os fundamentalismos e o tribalismo são exemplos do comportamento marcado pela busca de equidade nos posicionamentos, algo recorrente em nossa sociedade. Ações que visam atingir entendimentos e condutas consensuais empobrecem a complexidade pessoal e, consequentemente, a de seus decorrentes encontros. Assim sendo, toda tentativa de unificação de discursos/ações reduz o campo das inteligibilidades possíveis. Por outro lado, não podemos nos esquecer de que as estratégias capitalistas, voltadas para a geração de condutas socialmente desejáveis, promovem o isolamento do indivíduo, amplificam a competitividade e espetacularizam as experiências individuais. Infelizmente, a consolidação desses predicados comportamentais tem nos incapacitado cada vez mais para o corpo-a-corpo necessário à cooperação.
O ato de cooperar sem adormecer ou debelar as diferenças inevitavelmente acarreta conflitos, e, sem dúvida, sua gestão requer uma boa e generosa dose de noções de alteridade, tornando-se imperioso olhar para o outro como outro, e não como extensão ou espelhamento de nós mesmos ou de nossos desejos isolados. Talvez o maior desafio dos encontros, não balizados por relações descontinuadas por seus breves prazos de validade, esteja em interagirmos com os outros a partir dos termos por eles colocados, de modo a garantir a todos os envolvidos o direito de fala, mesmo que discordante. Cabe lembrar que a possibilidade da cooperação está condicionada ao modo como percebemos esse outro; assim, se faz necessário reconhecer que a ação de perceber é sempre incompleta e falível, devido às propriedades operacionais desse processo cognitivo, que compreende acertos e erros em seus processamentos. Para Richard Sennett (2012), a prática da cooperação no trabalho pode ser definida, resumidamente, como um tipo de troca em que todas as partes envolvidas são beneficiadas. Para tanto, essas partes necessitam desenvolver o que ele chamou de habilidades dialógicas. Enquanto habilidade, trata-se de algo que precisamos aprender a fazer, e isso requer o exercício de um tipo de repetição que compreenda, ao mesmo tempo, a exploração, a descoberta e a proposição de meios operacionais. De modo que se garantam tanto a
16
17
16
17
aquisição de competências específicas, para fins igualmente específicos, quanto a laboração de outras maneiras de atuação em circunstâncias similares às anteriormente vividas, visto que, nas produções artísticas, espera-se que não haja uma correspondência causal entre meios e fins. A distinção encontra-se em baixa, e ser atencioso em relação ao discurso do outro, manter-se sereno diante dos conflitos, reconhecer as semelhanças, detectar as possíveis zonas de convergência, aceitar e gerir as diferenças tornaram-se condutas raras em nossas práticas diárias, sobretudo por nem sempre serem favorecidas pela sociedade moderna. Por essa razão, qualquer iniciativa que retome esses valores se constituirá como uma ação eminentemente política, mesmo que micropolítica. Segundo Sennett, estamos perdendo as habilidades de cooperação necessárias para o funcionamento de uma sociedade complexa, dado que é na predisposição para cooperar que aptidões sociais e cognitivas se entrelaçam, favorecendo a maturação das instâncias da experimentação e da possibilidade de comunicação com o outro. Desse modo, habilidades dialógicas também se referem aos traços comportamentais presentes nas discussões decorrentes das relações que abrangem a troca de bens simbólicos, cujo objetivo não se restringe ao alcance de um entendimento comum acerca do que está em discussão, embora
ele possa ocorrer. Mas, durante as trocas dialógicas, apesar da não ocorrência de um entendimento comum do tipo consensual, os argumentos pessoais encontram um espaço-tempo favorável ao seu desdobramento. O que se ganha nesse tipo de troca diz respeito ao aumento da compreensão recíproca dos argumentos apresentados. Assim, as partes envolvidas são beneficiadas à medida que avançam no entendimento de suas próprias formulações e ampliam a percepção acerca das possibilidades e das impossibilidades de tessitura com outros e distintos fazeres, expandindo o campo das negociações. Por essa razão, durante a experiência de troca, esta sim comum a todos, instalam-se processos de emancipação. Para Sennett, muito longe disso se situam os atos imaginativos de identificação, que, além de debilitar os processos de troca no que se refere à extração e à construção do conhecimento, neutralizam as singularidades que deveriam ser encaradas como presença valiosa e desejável aos processos cooperativos. Pensar a cooperação como ação implica na adoção da premissa de que toda troca entre saberes, ou fazeres, é algo de natureza política, ou melhor, intrínseca e beneficamente política, na medida em que o que une os participantes é a disposição para realizar competentemente as tarefas que lhes cabem. E isso, felizmente, livra o projeto de indesejáveis e estéreis aportes isolados e autorreferenciais que se
18
dré (2006) chamou de estratégias sensíveis, que se referem aos trânsitos e conexões entre os discursos produzidos pelas ações, no nosso caso ações estéticas, e à posição do sujeito no interior dessa produção. Além disso, os saberes delimitam e constituem campos específicos de conhecimento, e, para que possam se afetar mutuamente, faz-se necessário que seus operadores (regras, normas e restrições) se flexibilizem, de modo que a experimentação de outros arranjos conceituais fique favorecida.
Em se tratando de cooperações voltadas para a criação estética, os procedimentos de mediação terão que considerar algumas questões. A primeira delas diz respeito aos modos como diferentes saberes e fazeres serão articulados, de forma a atenderem as necessidades do projeto artístico em curso; a segunda, ao modo como as diferentes maneiras de dar visibilidade a esses fazeres e saberes serão acordadas entre os participantes; e a terceira, ao modo como as relações possíveis entre esses saberes e fazeres serão pensadas tendo-se em vista o estabelecimento de uma dramaturgia da cooperação, cujo propósito é o de estabelecer relações de composição, e não de oposição ou de imposição.
Nessa proposta, não cabem relações unilaterais de dominância de um campo sobre o outro; o que se busca é a reconfiguração de seus meios de produção (movimento, palavra, imagem, etc.), bem como a readequação de seus operadores. Tais estratégias são necessárias à afetação e ao relacionamento entre distintos saberes para que um campo de operações compartilhadas se estabeleça, implicando na aproximação e na vinculação das singularidades desses saberes na dimensão do sensível. Para Sodré, o fato de essas ações pertencerem à dimensão do sensível não nos exime da responsabilidade de formular um pensamento crítico ou mesmo de sistematizar inteligivelmente as formas emergentes, observando suas possibilidades comunicacionais.
Os enunciados procedimentos de mediação encontram alguns paralelos com aquilo que Muniz So-
Contudo, sentir pressupõe o corpo, o que significa dizer que tanto a construção de um pensamento
19
De: Cozinha Performática cozinhaperformatica14@ gmail.com Enviada: 13 de junho de 2013 14:18 Para: Comensais Assunto: Jantar Zero Cozinha Performática
18
vinculam à aquisição de benefícios próprios, pautados por interesses privados. É nesse sentido que proponho uma dramaturgia da cooperação, aqui entendida como o modo por meio do qual as ações se compõem a partir da partilha das informações e do conhecimento que cada um confere ao projeto, tanto para identificar quando para solucionar os problemas surgidos. Não se trata, portanto, do estabelecimento de novas formas de poder sobre o outro, do tipo dividir para reinar, mas, sim, da criação de procedimentos de mediação que possibilitem a convivência entre diferentes e promovam a supressão de certezas absolutas.
trecho solto-provocação “A tradição oral seletiva, lacunosa nos autoriza a entrar no Banquete como locutores, banquete de palavras, de ideias, ideias e palavras lentamente absorvidas. De outra forma estaríamos sujeitos a uma embriaguez intolerável, arrasadora. Deixemos para amanhã o que não é possível assimilar hoje. O prazer está nos buracos, nas falhas. A fidelidade a Platão não nos preocupa. Em literatura e filosofia, a fidelidade é desastrosa por nos condenar a um servilismo estéril. De resto, como ser fiel a Platão se nem ele é fiel a si mesmo? Cada diálogo é diferente dos outros, o que condiz com o pensamento criativo. Em lugar de tentar repetir Platão, tentemos pensar a partir de Platão. Não há fidelidade maior a um inventor de pensamentos do que pensar com ele. As omissões do texto propiciam emissões nossas”. (‘Na Caverna’ - introdução de Donaldo Schüler ao Banquete de Platão)
19
quanto a sua inteligibilidade são, igualmente, fenômenos corporais, já que o seu substrato encontra-se na sensibilidade. As operações cognitivas, apesar de possuírem funções específicas e desempenharem tarefas distintas, são todas fisicamente inseparáveis e simultâneas, ou seja, codependentes e codeterminantes. Negar a centralidade de uma razão legitimadora e absoluta implica em assumir que, sem a existência de um corpo que pense, inexiste a possibilidade da sistematização de todo e qualquer pensamento. Este, por sua vez, poderá adquirir formas especializadas, sempre condicionadas, todavia, às propriedades materiais e às possibilidades compositivas de seus meios. Obviamente, incluem-se aqui as formas estéticas e seus ambientes: dança, performance, poesia, fotografia, entre outros. Jacques Rancière (2012) agrega outras questões à reflexão e à proposição de uma dramaturgia da cooperação, sobretudo ao entrelaçar a estética com a política e ao entender os atos estéticos como campos de formatação da experiência, que ensejam novos modos de sentir e induzem outras formas de atuação. Denominou como partilha do sensível o sistema de evidências que estabelece reciprocamente tanto um comum partilhado quanto suas partes exclusivas. Isso implica nas escolhas tanto de como quanto de quais serão os participantes que irão se unir nessa partilha. Algo que se define não por questões vinculadas às estanques
hierarquias de poder, mas, sim, pelas competências e habilidades dos envolvidos, critério que promove a mobilidade e a transitoriedade das hierarquias existentes. A partilha do sensível, ao considerar a indissociável relação entre estética e política, propõe que os atos estéticos intervêm nas maneiras de sentir e de fazer de uma comunidade, porque evidenciam, rompem ou antecipam os paradigmas que operam no interior dessa comunidade. Os modos, como práticas estéticas, se materializam por meio das formas artísticas que adquirem, carregam conceitos e entendimentos de mundo e, portanto, são possuidores de uma eticidade sensível, uma especialidade cognitiva que detecta os operadores sociais vigentes e os coloca em discussão, propondo outro modo de olhar para os fenômenos do mundo. Isso se dá por meio da formatação de algum arranjo entre as propriedades materiais inerentes à linguagem artística, de modo a potencializar a discussão pretendida. Nessa reconfiguração da dimensão do sensível reside a responsabilidade política dos artistas. Para Rancière, o real precisa ser ficcionado para ser pensado; assim se promovem as variações das intensidades sensíveis, das percepções e das capacidades dos corpos, favorecendo o surgimento de outras formas de existir no campo dos possíveis.
20
Mas, voltando ao projeto Cozinha Performática, ele encontra seus disparadores em Gordon Matta-Clark (1943-1978), sendo necessário olhar para o período em que suas proposições artísticas se configuraram, sobretudo no ambiente dança. O pós-modernismo, enquanto movimento artístico que se caracterizou pelo questionamento ao já estabelecido e promoveu uma revolução antirrepresentativa, se distanciou da ideia hegemônica de movimento de dança. Esse entendimento, consolidado pelo balé e pela dança moderna, estava comprometido, respectivamente, com a transmissão de uma mensagem ou com a expressão de uma interioridade. Regidas pela ideia de belas-artes e por suas nobres temáticas, as produções se preocupavam em ocultar suas propriedades materiais, e, consequentemente, atribuíam ao corpo em movimento uma condição de simples veículo da mensagem ou expressão, reiterando a ideia de corpo como instrumento. Definitivamente, o pós-modernismo rompeu com a lógica representacional presente na dança produzida até os anos 1940, sempre pautada por uma ordem político-social monárquica ou pela ideia de um sequenciamento progressivo do tipo linha de produção, com seus produtos prontos e acabados. O fato de romper com a premissa de estar a serviço de algum ideário estrangeiro à materialidade da dança não implica dizer que não há representação em suas práticas estéticas.
Isso seria uma impossibilidade, dado que, no sentido ontológico, ela sempre ocorre, ou seja, uma representação é algo que está para, um entendimento muito diferente e distante da ideia de se formular algum discurso sobre algo. Para André Lepecki (2006), a dança produzida nesse período (entre os anos 1950-1990) apresentou uma exaustão em relação aos entendimentos vigentes acerca do movimento em dança – como sinônimo de deslocamento, como desenho em um espaço a ser ocupado, com dimensões amplas e em fluxo contínuo. Certamente, estávamos diante da morte da ideia de uma figura dançante comprometida prioritariamente com a imagem que projeta. Mas, passado esse período, a dança atualmente apresenta uma tendência que parece fazer as pazes com seu objeto: o movimento volta a ser retomado após todas as alterações sofridas pelo tempo, após os vários questionamentos que provocaram a transformação nos modos como ele é entendido e coreografado. Como a negação dos modelos consolidados, de algum modo, não cessa de colocar o passado em evidência, e em muito pouco contribui com sua evolução, fica a questão que ainda pede por outras formas de inteligibilidade não inventariadas pela negação: qual o lugar do movimento na produção da dança contemporânea no século 21?
21
Inaugurar nosso 1° encontro trazendo essa citação tem como proposta sublinhar o desejo do próprio projeto que vocês foram convidados a participar. Esse trecho opera como uma síntese do jantar, ou seja “…o prazer está nos buracos, nas falhas.” Um encontro em que o acaso estará presente no modo como nos conhecemos, em como iremos nos conhecer, no como compartilharemos nossas ideias, trabalhos e desejos. Uma Cozinha Performática que se anuncia como um acontecimento do fazer que nos é caro, a “Arte”. Portanto, estão todos convidados, a partir dessa fala de Schüler, a se aventurem na alquimia do encontro. 1° Encontro: a partir das 20h00 (nossa preferência para a chegada de todos até às 21 hs. Haverá um caldo de missô para os que chegarem cedo e com muita fome) Até já, Marcos Moraes & Ana Teixeira 20
21
22
23
24
25
A performance e o risco da inoperância do comum Christine Greiner
Quando se pensa na história da performance como gênero artístico, lida-se a princípio com duas situações aparentemente antagônicas: experiências individuais e autobiográficas e manifestações coletivas. Nas pontes com a vida cotidiana – que constituem um aspecto primordial da performance para além da noção de gênero artístico –, torna-se fundamental abordar um traço reincidente deste estágio em que nos encontramos do capitalismo. Trata-se da inoperância que assombra a noção de comunidade. Para desativá-la, faz-se necessário testar outros modos de compartilhar, de viver experiências coletivas e de criar estratégias de disponibilização para o outro. O projeto do qual faz parte esta publicação foi, de certa forma, mobilizado por essa inquietação. Não se trata de um tema recente, mas é o seu agravamento cotidiano que tem perturbado a vida de muita gente e mobilizado artistas do mundo todo, especialmente das chamadas áreas de risco onde as “culturas das bordas” lutam para sobreviver. Nos últimos 30 anos, filósofos e escritores têm explicitado os principais impasses que norteiam 27
26
27
o debate sobre o que identificaram como “comunidades negativas”. Nunca se falou tanto na questão do coletivo e das comunidades, nos sentidos propostos pelas redes sociais, pelos coletivos artísticos, pelas manifestações políticas na rua ou pela resistência das minorias. No entanto, há uma série de ambivalências que rondam esses modos de estar junto e que, não raramente, indagam até que ponto tais agrupamentos podem ou não ser considerados comunidades. Autores como Georges Bataille e Marguerite Duras (1957), Maurice Blanchot (1983), Jean-Luc Nancy (1986), Giorgio Agamben (1993) e Roberto Esposito (1998) identificaram um colapso do comum e a falência da moderna concepção de comunidade que, sobretudo no decorrer do século 20, autorizou práticas autoritárias e excluiu as manifestações do coletivo. Roberto Esposito, provavelmente o mais didático entre os autores citados, fez uma extensa revisão bibliográfica explicando a distinção fundamental entre as duas perspectivas mais recorrentes para lidar com a noção de comunidade: a substancialista e a dessubstancialista. A primeira abarcaria boa parte da filosofia política tradicional, partindo do entendimento de indivíduos pré-constituídos fundidos em um todo maior (o povo ou a nação). Na perspectiva dessubstancialista, existiria uma relação de compartilhamento e um pensamento de comunidade a partir da noção de communitas.
O objetivo deste ensaio é aproximar essas bibliografias de filosofia política que analisam a genealogia das comunidades de alguns tópicos propostos por bibliografias científicas que me ajudaram a fundamentar uma redefinição que proponho para a performance, entendida então como operador cognitivo de desestabilização. A meu ver, há uma sintonia entre essas discussões, uma vez que o principal argumento da perspectiva dessubstancialista das comunidades refere-se justamente à singularidade dos corpos – do confronto corpo a corpo que tem marcado as manifestações políticas à constituição de coletivos artísticos. São os processos perceptivos que dão início à ação do sujeito no mundo, em toda a sua incompletude e descontinuidade.
Partindo da etimologia da palavra Communitas é a palavra latina para designar comunidade. É a partir dela que Esposito explicita dois importantes radicais, cum e munus. Cum revela a presença de um outro além de mim, e munus tem três significados possíveis: onus, officium e donum. Donum (dom) indica dever, dívida, obrigação, e cum refere-se à presença insistente de um outro (oculto). Assim, cum e munus, ou communitas, significa um tipo de relação em que o sujeito doa-se incondicionalmente ao outro (qualquer). É esse tipo de doação que está em jogo. Mas, segundo
28
29
De: Cozinha Performática cozinhaperformatica14@ gmail.com Para: Comensais Data: 4 de julho de 2013 00:04 Assunto: Carta Aos Comensais/Cozinheiros #2
28
Carta aos Comensais/Cozinheiros #2 Caríssimos, No primeiro encontro, jantar ZERO, nós introduzimos as questões gerais do projeto, e começamos a nos apresentar. Alguns não puderam estar, outros trouxeram algo de seus trabalhos e momentos de criação, pesquisa e reflexão. Ficou claro que a plataforma desse projeto está estruturada pelo compartilhamento de ideias, inquietações, desejos, receios, acasos, dúvidas, ações…, voltados às áreas artísticas. Um cruzamento de saberes (e fazeres) com o intuito de se construir uma rede de afinidades; nela, pressupomos que teoria e prática se organizam conjuntamente, à maneira rizomática, segundo a teoria de Deleuze e Féliz Guatarri.
Avaliando o primeiro encontro e o desafio que se segue, nossa questão central para os jantares é provocar a participação de vocês, estimulando-os, com muito desejo, na elaboração de cada encontro. Assim, vimos propor mais um jantar, que denominaremos de ZERO1. Abraços Marcos e Ana,
29
Esposito, é também justamente o significado de comunidade que acabou sendo modificado pelo pensamento moderno, constituindo toda a externalidade que corrói o sujeito. É preciso notar que a noção fundamental da comunidade não tem nada a ver com a lógica comunitária vigente que concebe a comunidade muito mais como uma posse, uma propriedade, do que uma obrigação de doação que, de acordo com Espósito, seria uma impropriedade. Ou seja, o impróprio neste caso é o outro, o que não é próprio, é o escancarar-se para esse outro que constitui a comunidade. Jean-Luc Nancy reitera as discussões de Esposito, pontuando que comunidade é também, antes de tudo, o “ser-em-comum”, mit-sein (ser-com). Cum é algo que nos expõe colocando-nos frente a frente com os outros. Nesse sentido, a experiência que é vivenciada é sempre a experiência de ser com... Pode-se dizer que Esposito e Nancy identificaram o ponto em que a estrutura da comunidade tradicional se rompeu. O que interessa a ambos é o comum da comunidade, um comum antes apresentado como substância (território, língua, cultura, costume, etc.), mas que seria sempre mais do que isso, na medida em que revela uma dívida (munus), um compromisso com o outro. Assim, uma ontologia da comunidade não pode limitar-se àquilo que ela mostra ou possui, ou seja,
àquilo que tem substância. A perspectiva dessubstancialista devolve para a ontologia o seu impróprio constituinte, que Georges Bataille definiu como a “comunidade dos sem comunidade”, uma comunidade de desertores e renegados, desobedientes a todo comum transcendental. Os exemplos evocados por Bataille estavam ligados à noção de comunidade eletiva, reunida por empatia, e não por qualquer substância ou interesse comum. Na segunda parte de seu livro A comunidade inconfessável, Blanchot escreve sobre a “comunidade dos amantes” arrebatados pela paixão e condenados a viver como nômades, sem destinação. Blanchot comenta a longa entrevista concedida por Bataille a Maguerite Duras em 1957, para o jornal France Observateur, e reconhece em diversas obras de Duras, como A doença da Morte (1982), uma empatia com os temas que eram mais caros a Bataille, como o gasto, o risco, a perda, a relação sexualidade/morte e o excesso. Para Blanchot, Bataille e Duras, o gasto não é só financeiro. Gasta-se e exaure-se cada vez mais subjetividade. A comunidade seria um modo de resistir a essa gastança, ao consumo dos sujeitos. E a impossibilidade da comunidade teria, antes de mais nada, um custo afetivo, vinculado à impossibilidade do amor, do dom e da amizade. O amor é tão antigo quanto o caos, e se apresenta como um lapso na lógica do universo porque nunca faz sentido, nunca partilha nada de objetivo; o que coloca em exposição é simplesmente o si mesmo tornando tudo o que é próprio absolutamente impróprio.
Para Bataille, Duras e Blanchot não há possibilidade de homogeneidade e consenso. Ao contrário, muitas vezes a comunidade é um lugar do conflito e de dissenso. Há sempre uma confrontação de singularidades, uma vez que a comunidade não traduz uma massa homogênea com identidade dada a priori. O que a constitui são os processos de comunicação que são, eles mesmos e na sua pluralidade, as suas condições plurais de existência. Mas como lidar com esses confrontos? Como escapar das rotulações? Abrir mão das substâncias que estigmatizaram a noção de comum e de comunidade? Giorgio Agamben sugere, em A comunidade que vem (1993), que essas singularidades e confrontos firmaram historicamente a sua grande ameaça ao Estado totalitário, a partir da noção de qual-quer (quod-libet). As manifestações do qual-quer são justamente as manifestações singulares que não reivindicam nenhuma identidade, não representam nenhum grupo, nenhuma classe. Elas são as mais perigosas ao poder instituído. São resistências sem partido político ou movimento social consolidado. Constituem-se justamente das singularidades sem identificação ou território. Isso dificulta a ação do poder sobre elas. A expectativa por essa “comunidade que vem” expõe a crise da política moderna representacional, incapaz de represar os fluxos de singularidade. A ausência de substância, de propriedade ou de
domínio de si expõe não apenas as condições de uma política futura, mas também o que há de verdadeiramente comum na comunidade: o munus. Pode-se pensar na comunidade, nesse sentido, como um acontecimento, um sentido que desperta a condição originária de homens originariamente devedores uns dos outros. Assim, a experiência da comunidade, segundo Esposito, constitui uma experiência sem sujeito. Se para alguns ser arrastado para fora de si (o impróprio) soa como algo negativo, para outros pode significar a oportunidade única de uma vida repleta de vitalidade. Extraviar ou perder o controle de si abre a possibilidade de irrupção do novo e de um encontro inesperado. Esse encontro pode acontecer tanto no próprio indivíduo quanto fora dele, nos mais diferentes espaços sociais, nas mais improváveis situações coletivas e nas mais triviais, como quando se compartilha uma refeição.
Repensando a performance Para criar uma ponte entre essas questões levantadas pela filosofia política e alguns estudos do corpo, desenvolvidos por filósofos que pesquisam os processos de cognição humana, gostaria de apresentar
30
31
30
31
a hipótese de que a performance é uma singularidade cognitiva que invade e contamina linguagens (dança, teatro, cinema, artes visuais, etc.), desestabilizando suas particularidades e questionando certezas e evidências. Nesse sentido, a performance é, inevitavelmente, política, sobretudo quando se constitui na relação com o outro: festejar junto, comer junto, refletir junto, dançar junto. Para desenvolver essa proposta, gostaria de compartilhar três questões que venho discutindo, sobretudo nos últimos cinco anos, em diferentes situações.1 A primeira questão é: quando e como começa um processo cognitivo? Durante décadas, assumiu-se que a percepção viria antes da cognição e que a sua natureza seria distinta da ação. Costumava-se afirmar que a percepção seria um estímulo do mundo para a mente, e a ação, um estímulo da mente para o mundo. Nesse caso, o pensamento não seria nada além de um processo que se constituía “entre”. No entanto, mais recentemente, o filósofo Alva Noë (2004) tem explicado como essa separação entre 1 Versões preliminares deste ensaio foram apresentadas no Encontro do Instituto Hemisférico no Sesc Vila Mariana, em janeiro de 2013, e em artigo publicado alguns meses depois no livro Corpo em cena, volume 6, organizado por Lenira Rengel e Karin Thrall.
percepção e ação (assim como entre percepção e cognição) é bastante perigosa e inadequada. O pensamento não pode ser considerado apenas algo que fica entre uma coisa e outra, uma vez que a percepção já é, intrinsicamente, um pensamento, e que a sua base é um conhecimento prático dos modos como o movimento aciona mudanças em um sujeito e em seu entorno. Isso significa que perceber já é um modo de agir. A percepção não é algo que acontece para nós ou em nós, mas é algo que fazemos e, por isso, é sempre, inevitavelmente, singular. Ninguém faz a mesma coisa da mesma forma.
no sentido de que é uma habilidade sensório-motora da qual emergem protoconceitos organizados como movimentos corporais. A habilidade sensório-motora é portanto, ela mesma, uma habilidade conceitual. O movimento seria, nesse sentido, basicamente cognitivo, porque o modo como compreendemos como as coisas acontecem sempre se dá em termos sensório-motores. Nesse nível de descrição, não há nenhuma possibilidade de separar teoria de prática. Perceber já é um modo de pensar sobre o mundo ou, em outras palavras, toda experiência, mesmo sem se configurar como um julgamento, é pensável.
Noë vai ainda mais longe e afirma que perceber não é apenas ter uma sensação ou receber impressões sensórias, mas ter sensações que alguém entende. E isso me leva à segunda questão: um movimento pode ser considerado um conceito? Em que circunstâncias?
Assim, ter uma experiência motora é ser confrontado com um modo possível do mundo. O conteúdo da experiência e o conteúdo do pensamento, em muitos sentidos, são os mesmos. A ignição está no movimento.
De acordo com Noë – e autores como Lakoff e Johnson (1999), Alain Berthoz (2001), entre outros –, toda base de entendimento é conceitual. Essa hipótese é bastante peculiar, porque implica no reconhecimento de que grande parte do conteúdo perceptual já é conceitual, enquanto, de modo geral, admite-se que para formular um conceito é preciso ser capaz de fazer julgamentos e articulá-los como linguagem. Se, ao invés disso, considerarmos que o conteúdo perceptual já é conceitual, a percepção não é algo que antecede a conceituação; ela já é cognitiva
Foram esses estudos da percepção como ação e cognição e o acompanhamento de algumas pesquisas práticas que me levaram a pensar em um estágio anterior à linguagem e aos gêneros artísticos. Ou seja, ao momento em que o movimento corporal aciona mudanças que desestabilizam todas as certezas e evidências. Nem todo movimento aciona esse tipo de mudança. Esse seria, a meu ver, o papel dos movimentos performativos. Eles não são necessariamente classificáveis como um gênero artístico, mas, sim, como operadores de desestabilização cognitiva. Criam territórios epistemoló-
gicos onde as classificações, os modelos e as regras dadas a priori deixam de ser soberanos. Assim, ao contrário do que se costuma afirmar, a performance não se constitui a partir da hibridação de múltiplas linguagens artísticas. Ela nunca chega a se constituir a partir de paradigmas identificáveis, fortalecendo, a cada experiência, a sua aptidão para desestabilizar todas as outras linguagens. Lanço então a terceira questão: poderíamos pensar a performance como um modo singular de perceber/conhecer, cuja função seria reinventar o corpo para ativar potências de vida? No âmbito da pesquisa acadêmica, Michel Foucault (1977) foi um dos responsáveis pela desestabilização radical da relação entre corpo e palavra, corpo e discurso, ao chamar a atenção para a importância dos enunciados. Ele não trataria do que sempre ocupou o cotidiano dos arquivistas tradicionais, as proposições e frases. O que mais lhe interessava eram os enunciados enquanto “emissão de singularidades”. No enunciado, identificou que tudo é real e que toda realidade se manifesta. Os enunciados são inseparáveis do que nomeou como um “espaço de raridade”. Para explicar isso, reconheceu três fatias de espaço: 1- A primeira seria o espaço colateral, associado ou adjacente que é formado por outros enunciados. Pouco importava se era o espaço que definia o grupo ou se o grupo de enunciados é que definia o espaço. Os dois sempre se confundiam em suas
32
33
32
33
regras de formação, uma vez que jamais paramos de passar de um sistema a outro. Os enunciados são sempre transversais. 2- A segunda modalidade de espaço seria o espaço correlativo, que não se confunde com o associado. Trata-se da relação dos enunciados com sujeitos, objetos e conceitos. Segundo Deleuze (1988), é aí que viveriam os murmúrios sem começo nem fim. Isso porque os enunciados, da forma como foram estudados por Foucault, eram como sonhos, cada um tendo seu próprio mundo. O espaço correlativo seria, portanto, a ordem discursiva dos lugares, das posições dos sujeitos, dos objetos e dos conceitos que fazem parte de uma família de enunciados. 3- A terceira modalidade de espaço seria o espaço complementar. Trata-se das formações não discursivas (instituições, acontecimentos políticos, práticas e processos econômicos). É aí que podemos identificar, com mais clareza, a sua filosofia política. As relações discursivas se relacionam com meios não discursivos que não são nem internos nem externos ao grupo de enunciados. Todos os limites entre dentro e fora dos diferentes sistemas (inclusive o corpo) são borrados. A “microfísica do poder”, proposta por Foucault, estaria sempre lado a lado com o investimento político do corpo. O poder não tem essência, é operatório. Não é atributo, mas configura-se como uma possível relação, ou, melhor dizendo, um conjunto de relações de forças. Assim,
Foucault não ignora a repressão e a ideologia, mas, a exemplo de Nietzsche, reconhece que elas não constituem o combate de forças, sendo apenas uma espécie de índice do combate. É preciso observar ainda que, não apenas aquilo que acontece, mas também os desdobramentos metafóricos do acontecimento e das relações aí estabelecidas são fundamentais para se compreender a complexidade das operações do poder e suas relações com o corpo. Ao trabalhar as diferentes manifestações de realidade de modo não literal, a arte explicita algumas dessas operações nem sempre visíveis. Ao reconhecer que toda sociedade produz diagramas e mapas cognitivos, Foucault reconheceu alianças flexíveis e transversais que definem práticas, estratégias e procedimentos, ao invés de estruturas dadas e fixas. Vejo aí uma importante conexão com as experiências artísticas que também reconhecem sistemas físicos instáveis, sempre em desequilíbrio, ao invés de um círculo fechado de trocas. É na forma de diagrama que se dá a exposição das relações de forças que constituem o poder. O visível é, quase sempre, inevitavelmente enunciável. Daí a opção pela construção de uma possível epistemologia ao invés de uma fenomenologia. O saber seria um agenciamento prático, um dispositivo de enunciados e visibilidades. Não é separado da experiência perceptiva, nem dos valores imaginados. O que se vê e pode ser descrito é também pensamento.
Há inúmeros exemplos de artistas que optaram por transitar nas lacunas que, ao mesmo tempo que singularizavam os seus testemunhos, garantiam a impossibilidade de testemunhar. Muitos optaram por apresentar, justamente, os acontecimentos que são impossíveis de se testemunhar de dentro (não se pode testemunhar de dentro da morte) e igualmente impossíveis de se testemunhar de fora (quem está fora é excluído do acontecimento). Os exemplos de performances mergulhadas nessa situação sem saída proliferaram no decorrer do século 20 e transbordaram para o 21, sintonizados com os autores que explicitaram as chamadas comunidades negativas. Antes mesmo do surgimento do campo de estudos da performance e da sua inclusão nas linguagens artísticas, algumas questões se faziam presentes. Há exemplos de experiências que nasceram de diagnósticos de doenças terminais, de situações políticas traumáticas, de abandono, de castigo, de exílio e assim por diante. No entanto, o que me faz pensar na performance como operador cognitivo (antes e para além da linguagem) são justamente as situações de impasse. Aquilo que dá testemunho não pode ser já uma língua, uma escritura, mas apenas um não testemunhado, uma lacuna expressa no trânsito entre o movimento e o aparente não movimento,
que nada mais é do que o movimento que se dobra para dentro. Isso não se refere a todas as atividades artísticas ou criações. Tampouco a todas as danças ou a todo guarda-chuva abrigado sob a rubrica do gênero performance. Há que se transitar por uma certa precariedade e por um limiar de escuridão profunda para que o movimento nasça dessa urgência de desmascarar todas as evidências, sem se contentar em manipulá-las para qualquer outro fim. Ao repensar todas as pesquisas que tenho reunido para buscar novos caminhos de discussão da performance, da dança e das artes do corpo de maneira mais geral, parece-me que há um ponto de inflexão nesta dificuldade cada vez mais presente entre nós, identificada como a tal inoperância profunda que está sempre se fazendo presente. A esta altura, não se trata mais de optar por este ou aquele modelo estético, ou entre este e aquele gênero artístico. Parece mais importante reencontrar, com urgência, caminhos para o compartilhamento. Mas, sem o reconhecimento desse impróprio que nos constitui e do descontrole e da descontinuidade que o caracterizam (o sujeito nunca está pronto e nunca é autossuficiente), será bobagem seguir com a cartilha de vocabulários sofisticados e pesquisas delivery que norteiam as experiências mais vitimadas pelo mercado de arte. Afinal de contas, este tal mercado, na maioria das vezes, é pura ficção.
34
35
34
35
36
37
Pequeno caderno de receitas
A alquimia culinária de Gordon Matta-Clark Cláudio Bueno
36
Bem-vindo à sessão de receitas desta publicação. Convidamos você a compreendê-las como instruções para performances. Sendo assim, tanto o ato de cozinhar quanto os próprios textos deste livro podem se tornar performativos. Durante o preparo, as misturas sugeridas tendem a ativar experiências e transformações no estado dos corpos, dos alimentos e dos espaços envolvidos.
Receitas também são formas de compartilhamento, seja por e-mail ou numa anotação com caligrafia ruim – e, nesses trânsitos, desejamos que elas se modifiquem e até mesmo se desfaçam, gerando outras receitas. Mas, caso sejam guardadas por muitos anos, esperamos que elas criem mofo, traças, ácaros e outras espécies que impossibilitem a sua leitura completa; ou, ainda, que o arquivo digital seja corrompido, para assim, novamente, se transformarem.
As três receitas a seguir tomam como base algumas das experiências de Gordon Matta-Clark com a culinária. Elas antecedem ou são complementares à sua atuação no “Food”, restaurante fundado de forma colaborativa por Caroline Goodden, MattaClark, Rachel Lew, Suzanne Harris e Tina Girouard, em 1971, no SoHo, em Nova York. “Food” foi também um local de encontros, recebendo diferentes artistas para cozinharem como
convidados nas noites de domingo, entre eles Donald Judd, Keith Sonnier, Robert Rauschenberg, Richard Landry, Italo Scanga e outros. Você é nosso convidado: reperforme; misture; frite; espere; compartilhe; desfrute.
37
PHOTO-FRY
AGAR PIECES
Modo de preparo
Modo de preparo
1) Aqueça bem uma frigideira com o óleo vegetal; 2) Frite cada uma das fotos individualmente; 3) Durante a fritura de cada uma das fotos, acrescente uma folha de ouro; 4) Mexa bem até que toda a química evapore e a imagem desapareça; 5) Após se despedir dos convidados, embale cada uma das polaroids em uma caixa de papelão e envie para amigos e galeristas como cartão de natal; 6) Evite limpar o ambiente.
Tempo de preparo Acima de uma hora Rendimento 10 porções Ingredientes 10 fotos polaroid de árvores de natal; 10 folhas de ouro; 1 L de óleo vegetal; 1 sala branca, limpa e com muitos convidados; 10 caixas de papelão pequenas.
1) Aqueça uma grande panela com água; 2) Misture todos os ingredientes, deixando por último os metais; 3) Mexa tudo por uma hora; 4) Espalhe as bandejas e travessas pelo espaço; 5) Despeje um pouco da receita em cada uma delas; 6) Deixe secar por alguns dias, até que a substância se transforme quimicamente e sua superfície endureça; 7) Ao final, doe tudo ao acervo de um museu ou simplesmente queime.
Origem Origem da receita
Entre 1969 e 1971, Matta-Clark produziu uma série de misturas
Photo-Fry (1969) foi uma performance realizada por Matta-Clark
que tinham como base o ágar (substância gelatinosa extraída
na John Gibson Gallery em Nova York, numa exposição intitulada
de vários gêneros de algas marinhas). Uma dessas séries era a
Documentation. Durante a abertura, o artista preparou um pequeno
instalação intitulada Museum, em 1970 na Bykert Gallery, em
fogão e uma frigideira, onde fritou fotografias polaroids de árvores de
Nova York. Outra série foi Incendiary Wafers, realizada após uma
natal junto com folhas de ouro. Após o término da exibição, quando
das misturas de ágar explodir acidentalmente em seu ateliê e o
os elementos acima continuavam presentes como resquícios e
artista as levar para fora e queimá-las.
também registros da performance, o artista embalou as fotos e as folhas de ouro em caixas de papelão e enviou por correio para amigos e profissionais do circuito da arte, como cartões de natal.
Tempo de preparo Mínimo de sete dias Rendimento Variável Ingredientes 2 kg de ágar em pó; 1 L de achocolatado líquido; 1 L de suco de cranberry; 1 L de suco de vegetais; 1 L de óleo de milho; 1 kg de sal; 1 kg de açúcar; 300 g de fermento em pó; 300 g de carne; 200 g de dextrose tryptone agar; 100 ml de caldo de galinha; 100 ml de espermacete de baleia; Metais diversos: parafusos, tachinhas, bandejas galvanizadas; folhas de ouro; 1 panela grande; Entre 10 e 12 bandejas/ travessas. Separe também as quantidades que encontrar das substâncias abaixo e adicione outros elementos perecíveis que estiverem disponíveis: Aspergillus negro (bolor negro); Mucor racemosus; Rhizopus apophysis; Penicillium notatum; Streptomyces griseus.
38
39
38
39
40
41
PIG ROAST Modo de preparo 1) Escolha um grande evento em espaço público; 2) Limpe as vísceras do porco; 3) Tempere o animal com o sal e a pimenta; 4) Monte os cavaletes e coloque o porco no espeto; 5) Coloque o carvão e outras substâncias inflamáveis embaixo do animal, a mais ou menos 1 m de distância. 6) Utilize os fósforos e o álcool para atear fogo; 7) Aguarde até que todas as partes estejam tostadas; 8) No aparelho de som, reproduza os arquivos MP3 do Philip Glass (se possível, convide-o para tocar); 40
9) Com uma faca, corte pequenos pedaços do porco que caibam em sanduíches; 10) Distribua aos participantes do evento. Tempo de preparo Entre 12 e 18 horas
Origem da receita
Porção 500 sanduíches
em 1972, Matta-Clark e Caroline Goodden apresentaram a
Ingredientes 1 porco grande; 2 cavaletes; 1 espeto ou barra de metal similar de aproximadamente 2 m;
no rolete. Foram aproximadamente 12 horas para assá-lo
No encerramento do Brooklyn Bridge Event em Nova York, performance Pig Roast. Na ocasião, eles prepararam um porco
500 pães; 1 caixa de fósforos; 1 faca para carne; 1 aparelho de som; Arquivos MP3 com músicas do Philip Glass; Sal e pimenta a gosto (a receita original utiliza pepperwater); 1 L de álcool Substâncias inflamáveis, como carvão, madeira, mato, etc.
(processo iniciado na tarde anterior ao evento, o que “obrigou” os artistas a passarem a noite no local). Ao final, serviram mais de 500 sanduíches ao público presente, ao som de Philip Glass, que tocava durante o evento. 41
A performance e o risco da inoperância do comum • Christine Greiner
A alquimia culinária de Gordon Matta-Clark • Cláudio Bueno Publicações impressas
AGAMBEN, Giorgio. A comunidade que vem. Trad. Claudio Oliveira. Lisboa: Editora Autentica, 1993.
HOARE, Natasha. Matta-Clark’s FOOD. The Gourmand: a Food and Culture Journal. [editado por David Lane & Marina Tweed], 2 ed., Londres, 2013.
AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha. Trad. Selvino J. Assmann. São Paulo: Ed. Boitempo, 2008.
LEE, Pamela M. Object to be Destroyed: The Work of Gordon Matta-Clark. Cambridge: The MIT Press, 2001.
BERTHOZ, Alain. Le sens du mouvement. Paris: Odile Jacob, 2001.
Filmes
BLANCHOT, Maurice. La communauté inavouable. Paris: Éditions de Minuit, 1983. DELEUZE, Gilles. Foucault. Trad. Claudia Sant’Anna Martins. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1988. ESPOSITO, Roberto. Communitas. Origine e destino della comunità. Torino: Einaudi, 1998. [Communitas: the Origin and Destiny of Community. Trad. Timothy Campbell. Stanford: Stanford University Press, 2004.] FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir, a história da violência nas prisões. Trad. Ligia Ponde Vassallo. Petrópolis: Ed. Vozes, 1977. FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Trad. Roberto Machado. São Paulo: Graal, 2004. FOUCAULT, Michel. A história da sexualidade, a vontade de saber, v. 1. Trad. Maria Thereza da Costa Albuquerque e J.A. Guilhon Albuquerque. São Paulo: Graal, 2006. GREINER, Christine. O corpo, pistas para estudos indisciplinares. São Paulo: Ed. Annablume, 2005. GREINER, Christine. O corpo em crise, novas pistas e o curtocircuito das representações. São Paulo: Ed. Annablume, 2010. NANCY, Jean-Luc. La communauté désouvrée. Paris: Éditions de Minuit, 1986.
THOMAS, Katie Lloyd. Material Matters: Architecture and Material Practice. Abingdon: Routledge, 2007. Food. 1972, 43 min, preto e branco, som, 16 mm. Câmera e som: Robert Frank, Suzanne Harris, Gordon MattaClark, Danny Seymour. Edição: Roger Welch. Parte do acervo do EAI (Electronic Arts Intermix). Disponível em: <http://www.ubu.com/film/gmc_food.html>. Acesso em: 4 dez. 2014. Sites Under the Brooklyn Bridge: The Origins of the Restaurant FOOD. Bethsheba Goldstein entrevista Carol Goodden. The SoHo Memory Project. Disponível em: <http://sohomemory.com/2012/06/30/guest-post-series-bethsheba-goldstein-interviews-carol-goodden-aboutfood/>. Acesso em: 4 dez. 2014. The Story of Food. Canadian Centre for Architecture. Disponível em: <http://www.cca.qc.ca/en/study-centre/1838-the-story-of-food>. Acesso em: 4 dez. 2014. When Meals Played the Muse. The New York Times. Disponível em: <http://www.nytimes.com/2007/02/21/dining/21soho.html?pagewanted=all&_r=0>. Acesso em: 4 dez. 2014. Exposições Gordon Matta-Clark: desfazer o espaço. Exposição no Museu de Arte Moderna de São Paulo. Curadoria: Tatiana Cuevas e Gabriela Rangel. Disponível em: <http://www.mam.org.br/projetos/gordon-matta-clark-desfazer-o-espaco/>. Acesso em: 4 dez 2014. Food 1971/2013. Frieze Projects New York. Disponível em: <http://friezeprojectsny.org/projects/food/>. Acesso em: 6 dez. 2014.
LAKOFF, George; JOHNSON, Mark. Philosophy in the Flesh. Massachussets: Bradford Books, 1999. NOË, Alva. Action in Perception. Cambridge: MIT Press, 2004. 42
43
As inesperadas configurações dos encontros • Rosa Hercoles
Artistas e obras
FOUCAULT, Michel. O que é um autor?. Lisboa: Ed. Vega, 1992.
Joseph Beuys: DURINI, Lucrezia De Domizio. Joseph Beuys: the Art of Cooking. Milão: Charta, 1999. Imagens disponíveis em: <http:// annecane.wordpress. com/2012/05/15/joseph-beuysthe-art-of-cooking/>. Acesso em 6 dez. 2014.
LEPECKI, André. Exhausting Dance – Performance and the Politics of Movement. Nova York: Routledge, 2006. RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível – Estética e política. São Paulo: EXO experimental, 2012. SENNETT, Richard. Juntos – Os rituais, os prazeres e a política da cooperação. Rio de Janeiro: Ed. Record, 2012. SODRÉ, Muniz. As estratégias sensíveis – Afeto, mídia e política. Petrópolis: Ed. Vozes, 2006. 42
Bruce Nauman: Body Pressure (1974)
Regina Silveira: Pudim arte brasileira (1977) Yoko Ono: Blood Piece (1960) 43
44
45
De: Cozinha Performática cozinhaperformatica14@ gmail.com Para: Comensais Data: 23 de julho de 2013 01:32 Assunto: próximos encontros... Carta aos Comensais #3
44
Queridos Comensais Cozinheiros,
Também marcamos o encontro de setembro para sábado, 21, em Cotia, na casa de Natalia Barros.
Gostaríamos de convidá-los para nosso próximo encontro. A pauta para este encontro vai ser cozida aos poucos, em encontros ‘bilaterais’ (alguns já estão ocorrendo) para que nossas ideias possam ir fermentando... Mas já temos alguns assuntos em andamento; por sugestão de Ferron, nos (re)colocamos as perguntas básicas: O quê cada um deseja cozinhar? O que nos ocorre propor ou colocar na bandeja? Talvez alguns de vocês gostem da ideia de nos encontrar, à Ana e a mim, para conversarmos mais. Seria bom.
Lembramos que temos a página ‘Cozinha Performática’ no FaceBook e que várias pessoas têm acessado e se interessado nesse angú... metam a colher. Beijos, Marcos
45
46
47
De: Cozinha Performática cozinhaperformatica14@ gmail.com Para: Comensais Data: 4 de agosto de 2013 13:27 Assunto: nova comunicação aos comensais/cozinheiros
Queridos, em anexo uma carta, também reproduzida abaixo, para seguirmos conversando... peço sua leitura paciente... beijos, Marcos “Tentativa de conversa avançada para uma cartografia da Cozinha Performática. Este texto é uma tentativa de falar mais sobre o projeto, a partir de questionamentos que me foram colocados nestas conversas que vamos tendo... É algo que me custa. Às vezes porque o que me conduz é a intuição (e o exercício de colocar em palavras necessite mais tempo de trabalho para ser-lhe correspondente); às vezes, ao contrário, por que me sinto perdido, ou seja, nem sempre sei para onde estou indo... alterno o perdido e o encontrado. Creio que a criação é assim, e vocês que são criadores certamente entendem isso.
46
47
48
49
Mas vamos lá: este projeto nasce de uma sensação: a de que faço o que faço por que algo se agita em mim. O desejo; e a falta. Também, nasce da sensação de solidão. De que estou demasiado só e é preciso que estejamos mais juntos. De que só, o que tenho para dizer talvez não seja muito interessante, é só mais do mesmo. Mas com outros, entre o que tenho e têm os outros, parece melhor e divertido. Portanto, eu convido outros a se aproximarem, a me ajudarem a sair de mim, das minhas limitações, e de juntos explorarmos a possibilidade de fazer algo juntos. Algo do campo da convivência, da performatividade e do pensamento. Essas ideias estão presentes na origem dos jantares. Depois, porque sinto profundamente um cansaço no formato ‘espetáculo’, na ideia de que poucas pessoas sairão de casa para ver um trabalho cênico sem aparato mercadológico “proto-hollywoodiano”, ou seja, apenas para o prazer do encontro com algo que os toque e os permita viver uma experiência. Isso anda difícil... não quero desistir, ao contrário, quero radicalizar mais, 48
mas não posso deixar de sentir que o desafio é maior do que antes, nesses tempos... Na dança, falamos sempre de ‘processo’ e, de como nossos processos são mais importantes do que um ‘produto’. Mas, então, como fazer para que os que entrem em contato com o trabalho, por exemplo, assistindo a um vídeo ou a um espetáculo cênico, possam ser atravessados, pelo menos, parcialmente por aquele processo? Que não seja algo que eles apenas se sentem, desliguem seus celulares, momentaneamente, vejam um produto, gostem ou não gostem, e saiam para o próximo assunto, inalterados. O mesmo em relação a determinados lugares de fala. Às vezes saímos de uma palestra interessante, mas o papo bom ocorre mesmo na mesa de bar, depois, quando, relaxados, deixamos fluir o pensamento. Estamos tentando aproximar esses lugares: o social, o pensamento, o performativo... Se os regimes visíveis instituídos estão atrelados ao já dado e, portanto, a uma redução que nos coisifica, à mercê de um mercado voraz e concentrador, é preciso criar outros lugares, outros mercados. A Cozinha quer expe49
50
51
rimentar isso e parte do apagamento das linhas que separam (?) processo e produto, linguagem da dança e outras artes, autoria, discurso, emissão-recepção, etc. Tudo já bem debatido em vários meios, mas nem sempre claro, enquanto vamos integrando os conceitos e percepções, cada qual a partir de suas próprias questões. Por enquanto, vamos pensando em espaços ‘entre’; aquilo que não é isso ou aquilo, mas isso e aquilo ou... uma tentativa de criarmos outra ética do fazer para criar outras formas de vida. E como precisamos agir dialeticamente com os meios materiais vigentes, este projeto se beneficia, com as consequências correspondentes, do Prêmio Fomento à Dança de São Paulo. A proposta tenciona a cultura dos editais, mas não prescinde deles. Por isso, o projeto tem 3 eixos: os jantares; os experimentos performáticos; e o trabalho cênico. Os experimentos e o trabalho cênico são, ainda, um campo em que minha autoria, em colaboração com possíveis colaboradores (assim espero 50
51
52
53
e assim é) é mais determinante. Sou o principal responsável por eles. E tenho queimado a mufa pensando em por onde ir e o que desejo deles, como bem me questionou Ferron. Mas nos jantares/almoços/Brunchs, eu gostaria que predominasse a ideia de plataforma de criação e pesquisa. Ou seja, que todos os convidados se sentissem convidados a experimentar o que surgir de seus desejos e desse encontro. Seja um pensamento, uma ação performática, uma ideia editorial, uma receita de comida, um simples lugar de presença e olhar para o que quer que se produza, uma breve intuição, sem uma exigência demasiado auto-consciente sobre os resultados. Nas conversas com Ana, ela sempre aponta para o desafio de que essa proposta não vire um lugar confortável de festa social, nem um evento. Estamos pensando e pensando sobre isso. E Edith colocou bem: é preciso algum tipo de proposição para que os convidados não se sintam no ar, no escuro, sem saber como tocar as paredes e, portanto, presos 52
de uma imobilidade. Concordo e sigo pensando como seria essa proposição. Como fazer para que vocês se sintam convidados e, com luz suficiente, possam olhar e propor caminhos. Como oferecer um espaço convidativo e relaxado, para que os convivas se sintam à vontade e possam assumir seu poder co-criativo, juntos... Me parece que o próximo encontro, o Brunch do dia 31 de agosto, teria que ser voltado a isso. Estou aberto a propostas, questionamentos, provocações. Vocês podem postar em nossa página do FBook, ‘Cozinha Performática’, imagens, fotos, textos, vídeos, que lhes pareça conversar com a proposta. Estamos trabalhando num Blog, para irmos levantando esses materiais, registrando o que vai ocorrendo, pois a escrita deste projeto é seu próprio fazer. Assim que o tivermos preparado, vamos passar a vocês também Mas os encontros/jantares também são como um blog. São espaços abertos a vossas proposições. Sei que os estou convidando para aventurar-se no escuro, mas é assim 53
Conversa com
Cláudio Bueno ANA TEIXEIRA: Foram cinco encontros, e tem bastante assunto desses cinco encontros, mas para transformar esses assuntos em conteúdo também levaria um tempo, e a gente só foi percebendo isso na coisa... | MARCOS MORAES: O encontro é muito mais orgânico do que o formato do livro. | AT: Justo. E depois eu fiquei pensando sobre isso, que cada um vinha com questões e que às vezes aquilo que estava sendo discutido sumia para, depois, voltar. Então, é um tipo de dinâmica que pede por continuidade – isso no meu caso, pode ser que outras pessoas vejam de outra forma – para se entender qual é o fluxo disso e como transformar esse tipo de narrativa, que por vezes é dispersa e por vezes é contida, em uma narrativa que caiba dentro de um livro. | MM: É buscar o que interessa de cada conversa, porque tudo é interessante na hora da conversa. Mas é preciso escolher o que interessa, pensar e desenvolver e relacionar; o que é que ganha relevo daquilo tudo. É um trabalho difícil, porque a cada dia você fecha os olhos e pensa algo diferente, algo que também é importante... É um trabalho em movimento. | AT: E, discutindo com a Edith... Nós conversamos muito, falei a ela dessa questão, de ser preciso um tempo outro que não aquele tempo da cozinha mesmo. Não como se fossem coisas apartadas... | CLÁUDIO BUENO: A Edith esteve nos encontros? | AT: Sim, ela faz parte do projeto. A Edith, a Sheila Ribeiro... | MM: A Aricia Mess, cantora, o Luis Ferron, também da dança, a Natalia Barros, poeta, e a Dalva Garcia, filósofa. Esse grupo é convidado, mas temos também todos nós, tanto os que estão fazendo o registro do trabalho quanto os que estão produzindo. Está todo mundo junto. Então, é um grupo de umas 14 pessoas que vai se reunindo. | AT: Refletindo sobre essa questão, eu pensei: “Como usar o que aconteceu na cozinha como uma provocação para a própria cozinha?”, ou seja, “vou trazer pessoas de fora para escrever”, mesmo que não tenham vivido aquilo, porque são as questões lá 54
55
mesmo: se sentirem que dá e que interessa, saltem. Vamos fazer o possível para atender suas necessidades. A Cozinha está aberta para outras colaborações e, se alguma ideia começar a se materializar e se transformar em algo concreto, uma proposta de trabalhar mais profundamente em parceria sobre algo, teremos que sentar e ver como remunerar cada caso, conforme as implicações da tarefa/projeto/desdobramento/participação. Bjs a todos e trabalhemos de aqui até nosso encontro Brunch em 31/ agosto. Saudações, Marcos
54
55
suscitadas que vão mover as pessoas, não é só a participação. Por isso, quando o Marquinhos propõe no projeto dele, em cuja capa já vem a foto [de Gordon Matta-Clark]... E foi isso, a questão da alquimia... | CB: Você propôs o projeto com uma foto do Matta-Clark na capa? | MM: Sim, ele é o inspirador do projeto, especialmente com a criação do “Food”...1 | AT: Então, a gente entende isso como uma ação, essa era a proposta dele, de discutir... | MM: Este é o projeto que eu mandei pro Prêmio Fomento. Daqui a pouco eu falo um pouco mais disso. | CB: Quando eu vejo o “Food”, na verdade, eu o vejo como um dispositivo para a performance, sabe? Que é como eu tenho pensado o meu trabalho. Enfim, em criar dispositivos, para que outras pessoas possam performar diante deles. Que é como eu chamo, o dispositivo como uma coisa aberta, de que o outro pode se apropriar pra então criar uma situação de performance. Então, quando eu penso no “Food”, por exemplo, ele é uma cozinha ali disponível, pra uma noite em que eventualmente você convide o Rauschenberg pra fazer uma comida [risos]. Então, “Food” para mim é um pouco esse lugar de um dispositivo criado para ser apropriado por outros artistas, mais do que a lógica da reperformance, presente em produções como da Marina [Abramovic], por exemplo. | MM: Como é que eu represento algo que não é do campo da representação? Eu vou puxar um fio daí, aproveitar. Às vezes eu preciso, para construir o meu discurso, fazer um pouco de “vai e volta”. Então, quando eu penso de onde veio isso do Matta-Clark, penso no Vitor César, que comentou com o Enrico Rocha, e o Enrico quando me viu falando de comida, já no projeto anterior, DSF, que foi um projeto em que eu estava começando a pensar sobre a questão do desejo e de como o desejo coloca as coisas em marcha; como as coisas que se movem são movidas pelo desejo. E sobre essa ideia de colaboração, de encontro com outras pessoas. Em que cada encontro dá origem a uma dramaturgia própria, por ser aquele encontro específico. Então, essas são as bases daquilo em que comecei a deter o olhar. Só que, quando você formula, você começa a olhar, e o buraco é mais embaixo. Como é que isto que está me inquietando, está me atraindo, vai se materializando? Que dispositivos surgem, que
1 Nascido em Nova York em 22 de junho de 1943, Gordon Matta-Clark integra uma geração de contestação frontal à mercantilização da arte. Afilhado de Teeny Duchamp (esposa de Marcel Duchamp) e arquiteto de formação, Matta-Clark trabalhava com fotografia, filme, vídeo, performance, desenho, colagem e escultura, por meio de intervenções em larga escala e trabalhos site-specific. No início dos anos 1970, fundou, com outros artistas, o restaurante “Food”, um espaço na 112 Green Street, no SoHo, para encontros, criações, exposições e performances. Segundo Matta-Clark, “Food” era uma ação performática em si mesma.
procedimentos, que espaços, que pessoas? E o acaso? O acaso, sempre. Então, esse foi um processo que durou um ano e meio, dois anos, e em cada encontro desses se produziu algum trabalho que depois eu desenvolvi e que foi até um determinado ponto. Eu tinha pouca preocupação, talvez demasiado pouca preocupação com os produtos. Até por todo o nosso discurso na dança, do processo e da arte contemporânea, processual, etc. “Não estou nem aí para o mercado, não estou nem aí pra coisa”, só que você também se comunica com as pessoas através disso, quando você compartilha. Então as leituras que se fazem, até mesmo para continuar a colaboração, a troca, têm a ver com as obras. Tudo isso ficou aí, como pensamento, para mim. Quando eu fui fazer a Cozinha, o Enrico tinha me falado lá atrás do Gordon Matta-Clark, aí eu fui dar uma lida, fui procurar. E falei: “Tudo a ver”. Mas o que é que foi que mexeu comigo? Quando ele abre um restaurante e declara que isso é um ato performático... Além disso, tem aquele livro Pioneers of the Downtown Scene que aproxima, pela atitude radical de ocupação do SoHo, naquele momento ainda marginal em Nova York, a Laurie Anderson, a Trisha Brown e o Gordon. Isso daí, pra mim, tem um germe desse momento, dessa atitude, dos quais eu me sinto parente. E a arte foi para uma outra situação, contemporânea, de atravessamentos, e de uma certa maneira a ideia de vanguarda perdeu o sentido, e tudo isso que constitui nosso pensar atual. Mas há também uma coisa que eu sinto que tínhamos na contracultura em São Paulo, nos anos 1980, por exemplo, uma atitude em relação à arte, “vida e arte”, sobre a qual eu falei: “Isso aqui conversa comigo”. CB: No vídeo eles vão ao mercado de peixes, ficam comprando, negociando com o cara. Aí voltam para o restaurante, fumam um baseado. Começam a conversar sobre: “Ah, vai fazer sobremesa?”, “Não vai”. E aí tem o clima do restaurante. O vídeo é legal porque ele tira um pouco dessa ideia de que era um lugar frequentado só por artistas ou só do hype; assim, não era do hype. Era um restaurante comum, as pessoas frequentavam. Tem lá um casal comendo, tem os senhores que tocam.
56
57
56
57
Mas você vê que era uma coisa assim, não tinha um glamour da cena da arte de Nova York. Era bem low profile. Isso é incrível. | MM: Isso é muito bacana. Então, a filiação do projeto tem a ver com isso. O que é que move. É a ideia dos jantares, é uma ideia em aberto, porque aconteceu de maneiras diferentes. Por exemplo, não sei se vai dar pra ver isso aqui, eu vou te mostrar um vídeo de Goiânia. Eu fui chamado em Goiânia pra um projeto que se chama Conexão Samambaia. O vídeo está no Facebook da Cozinha Performática. Quando o Kleber, que dirige aquele projeto, me convidou, perguntou “o que você está fazendo agora?”. “Eu estou fazendo a Cozinha Performática, mas ainda está só começando.” Isso foi em junho. Então eles falaram: “Vamos fazer uma Cozinha aqui”. Um deles, o Guilherme, tem um café que fica aberto pra calçada, como uma garagem. Eu falei: “Quem quiser propor alguma coisa, está aberto”. E aí, o Kleber falou: “Eu vou chamar a Bebel, que canta, e os meninos que estão fazendo monitoria do projeto, que são alunos da faculdade”. Bom, aí eu chego lá pra fazer, dali a três dias era o lançamento da Conexão Samambaia, iria ser um jantar. Eles fizeram um convite com umas berinjelas de saia, entregaram pessoalmente. Filmaram tudo, então um dos vídeos é esse convite. Eu havia falado: “Eu quero uma equipe filmando tudo, porque vou fazer um making of das compras na feira, etc.” Cheguei lá, a mãe do Gui, com ascendência alemã, tinha um método de defumação de carnes e aceitou me ensinar. Fui pra chácara dela aprender o segredo, depois fiz um peixe defumado. Fui ao mercado, havia uns músicos que vinham tocando em alguns lugares em Goiânia, passando o chapéu, que, por coincidência, nesse dia entraram no mercado. Depois me inteirei que eram os mesmos músicos que a Bebel iria convidar. Então, tem o vídeo da gente fazendo compras com os músicos tocando, e uma mulher que tem uma barraquinha e levanta e me tira pra dançar. Tudo isso foi acontecendo assim; finalmente, tem os ingredientes, a gente na feira discutindo se isso é um ato performático ou não, a defumação do peixe, e chega o dia do jantar. No jantar, a Bebel fez uma música sobre o cuscuz, que era o prato, e tá todo mundo, os monitores, trabalhando de garçom ou na cozinha, de assistente e coisa e tal. Eu pensei “puxa, isso já aconteceu no começo do projeto... É por aí”. Já os nossos jantares aqui têm um outro caráter, pois é um grupo fechado e há uma proposição, que a cada vez a gente sentia a necessidade de explicar de novo. | CB: Entendi, porque a cada vez mudava a proposição. | MM: Porque a cada vez mudava. Eu sinto, agora que a gente fez os cinco encontros, que desde o começo há reverberações que não são mensuráveis, por exemplo, pra uma publicação. A Sheila detecta isso muito bem, quando encontra a Aricia em Londres. Elas estavam as duas no mesmo período em Londres, e a Sheila fala: “Isso pra mim é a Cozinha Performática. Estou conhecendo a Aricia. A gente está se encontrando aqui em Londres e está conversando aqui, por causa desse projeto. Isso deve ser computado como um resultado desse projeto.” E a mesma coisa o Yuri Pinheiro, fotógrafo, que conhece a Sheila por causa do projeto e começa a pensar na programação visual, ou a Natália, que pega um texto da Dalva com as memórias da avó dela e 58
59
58
59
enxerga ali a poesia. Todas essas reverberações apontam pra uma série de coisas. Algumas delas eu tenho o desejo de capturar de alguma maneira, outras não. Então vão surgindo as colaborações: a Marcela, fotógrafa que documenta o projeto, ia viajar, e falou: “Antes eu quero fotografar os seus ensaios”. Então, ela fez um ensaio sobre o ensaio. Com o Yuri, também fotógrafo, a gente trabalhou uma ideia que eu tenho há um tempão, que chamamos de O porquinho, e que traz essa questão de o artista se dar a comer, e ali estou com uma maçã na boca. Fizemos um ensaio fotográfico com a visão dele, a estética do trabalho dele, que tem uma história na moda. Procuramos o que esses encontros podiam produzir. O personagem de O porquinho é minha criação, posso fazer o que eu quiser com ele, mas ele virou um trabalho desse encontro meu com o Yuri. O Osmar fez algo dele, durante uma viagem, com um material que ele tinha filmado da gente na praia num fim de semana, com os textos em que a Ana estava trabalhando com a ideia do desejo, então ele trabalha com isso, e com as bandas de música que ele estava vendo na viagem (o vídeo se chama 4X desejo). Enfim, essas reverberações, para mim, eram um pouco o meu desejo, porque considero esse projeto uma plataforma de criação e pesquisa. A ideia é que ele dê fermento pra que várias coisas sejam cozidas. Nós tínhamos desde o início uma diretriz de fazer uma publicação disso. E a gente se encontra com uma série de complexidades, de como nomear, de como trabalhar com todo esse universo, o que é que a gente sente que tem mais força, mais relevância; ou às vezes, até, com uma preocupação que eu e a Ana tínhamos desde o começo, de quando a convidei para trabalharmos juntos, que é a relação mesma da dança e do discurso sobre a dança. O que está acontecendo no cenário da dança contemporânea de São Paulo, em que temos o Prêmio Fomento, que foi uma conquista de muita luta política, mas que, por ser uma das poucas coisas que oferecem uma condição de trabalho, e por ser um edital a que todos concorrem, foi gerando também um discurso generalizado e homogeneizante sobre o fazer artístico, que muitas vezes não parece ser o que o artista deseja; tampouco parece que ele se apropria 60
61
60
61
daquele discurso que ele mesmo promove. Começamos a discutir isso que vários de nós, artistas da dança, ficamos pensando. Tipo: o que é “pesquisa continuada”? Algo de que todo mundo agora fala, porque supostamente é esse o objeto do edital. O que é uma pesquisa continuada? O que é a transdisciplinaridade ou a indisciplinaridade? Como a Christine Greiner traz, o que é um híbrido? O que é isso na dança? Então, essas questões estão todas aí colocadas. Mesmo que não sejam objeto específico de um trabalho que quer responder isso. Mas são questões que estão aí, também. E para mim, a questão da colaboração continua posta: como é que deixamos de ser um pra trabalhar com os outros. Porque o trabalho não é em série, tipo eu contrato tal coisa, eu sei isso, você sabe aquilo, depois a gente junta na linha de montagem e faz. Não. Eu tenho que deixar um pouco de ser eu. | CB: É a alquimia do Matta-Clark. | MM: Exatamente. | CB: Então, é uma mistura improvável de coisas, que pode gerar algo que você desconhece. Esse é o lugar da pesquisa, se você já sabe a resposta dela não faz sentido fazê-la. | MM: Exato. E foi aos poucos, agora é que o bicho está pegando, entendeu? Porque a gente fez a série dos cinco encontros, com muitas perguntas. Recentemente a Aricia foi assistir o trabalho do Ferron e falou: “Caceta! É assim que eu quero repensar o meu próprio trabalho com a música”. Com a Sheila, a gente está desenvolvendo um trabalho. Outro trabalho com a Ana e o Ferron, os três criando o meu solo, discutindo movimento... Estamos pensando um vídeo com o Osmar, e todo esse processo de criação do livro com a Ana, a Edith, a Ruth e as colaborações de todos os envolvidos. Enfim, há coisas saindo aí do caldeirão. | CB: Mas que lindo projeto. Quando a Ana mandou... É engraçado até, porque ela mandou e eu estava fechando essa história da plataforma VB, e daí pensei, a pessoa ideal pra escrever essa história é o Jorge Menna Barreto... | MM: Tipo, não vou pegar mais nada na minha agenda. | CB: Aí, quando o Jorge falou: “Putz, Cláudio, eu não consigo”... Ele viajou, enfim, não dava. Eu falei: “Não, espera, eu tenho que ter uma saída bacana pra Ana”. Porque a Ana, que era quem estava em contato comigo e... | MM: Estragamos as suas férias [risos].
CB: O que eu acho que é muito legal é esse espaço que não é o espaço institucionalizado, sabe? É o espaço da cozinha. Eu acho que a arte contemporânea foi construindo um lugar que, por um lado, é um lugar necessário, de visibilidade, um circuito de visibilidade que é muito importante pra conseguir financiamentos e fazer circular uma produção, etc., mas ela foi se tornando excessivamente institucionalizada. Então, falta esse lugar da cozinha. Ontem eu estava num jantar com um pessoal e uma amiga comentava assim: “Ai, eu fui pra Juiz de Fora...” – eu não lembro, ela passeou por algum lugar assim, dando oficina de curadoria e tal. Não sei se em Belém ou em Juiz de Fora. Falaram pra ela: “Mas a gente precisa de espaço, a gente não tem nenhum espaço aqui pra circular a nossa produção e tal”. Gente, para criar um espaço: põe a plaquinha aqui na porta e chama a galera, porque está criado, entendeu? Não preciso do... Tudo bem, o museu, ou o espaço do museu, ele cria uma inscrição na história. Então você fala assim: “Eu exibi no Itaú. Eu exibi no MAC. Eu exibi não sei onde.” Então, ele cria uma inscrição na história da arte, mas se o problema é circular uma produção, é isso, esse espaço é muito mais legal do que o museu. O museu foi criando esse lugar que tem sua importância, mas que também tem o lado da rigidez. Já um trabalho como esse, uma cozinha performática, é o lugar do desvio... E é legal porque o Matta-Clark cria esse problema também, porque numa das receitas dele ele frita aquela folha de ouro, “golden...” – enfim, a tradução é folha de ouro –, dentro da galeria. Então, é o óleo dentro do cubo branco sendo frito durante uma abertura, que torna aquele espaço do cubo branco, limpo, um lugar insuportável. Eu fiquei pensando nisso quando vocês me convidaram... E foi muito legal esse convite porque me fez pensar um monte de coisa. Porque pra ele o negócio era a transformação das coisas, ou a alquimia, as misturas improváveis. Esse lugar do desconhecido é que era o mais bonito. É o que pode surgir nessa cozinha, o que pode emergir disso e que a gente não conhece. Por exemplo, vocês virem aqui hoje encontrar uma pessoa que nunca viram na vida, acho que é esse lugar e o que pode surgir disso. E isso é muito lindo, essa é a beleza do projeto. É, eu fico pensando, assim, no que eventualmente esse livro de vocês, nosso agora... O que o corte do Matta-Clark, no fundo, tem a ver com a Edith talvez, num projeto gráfico, sabe, algo que tenha um corte no meio... Porque a ideia do corte é linda, mas eu comecei a pensar nisso depois do convite de vocês. Aí quando você pensa na comida, no corte da carne, no corte das coisas... E como Matta-Clark fazia isso com os prédios, e como o corte é o lugar de criar uma temporalidade, de dividir, de multiplicar. Enfim, o quanto tem de significado nessa ideia do corte, quando a gente está falando em comida, arquitetura... É esse momento da experiência. Daí o que eu fiquei pensando foi um pouco nisso... Tem duas receitas do Matta-Clark que levam um pouco ele ao “Food”... | AT: O que é a alquimia, “Photo-Fry”, “Agar”? CB: Isso, “Agar” e “Photo-Fry”, o das fotografias fritas, né? Ele frita a fotografia junto com a folha de ouro, e dentro da galeria. Então tem
62
63
62
63
a química da fotografia, deve virar uma coisa horrorosa, mas que é ótimo. Até que a imagem se apague. Eu tenho pensado muito também que a gente vive numa cultura da imagem e isso é muito forte. Tenho pensado cada vez menos em imagem e cada vez mais nesses campos de invisibilidade entre as pessoas, entre os espaços. E ele produz esse campo, quando ele frita a foto, apaga a imagem e cria um novo campo ali que é de outros sentidos... Então, o meu desejo é esse, é criar três receitas, melhorar esses textos que eu te mandei só pra ter como modelo, melhorar essas receitas. São três receitas, e uma breve introdução sobre essa lógica das receitas, esse pensamento da receita como instrução de performance. Menos um texto acadêmico e mais essa intervenção. E aí eu não sei também o que vocês têm de ideia sobre isso. É uma tentativa de pensar mais conceitualmente sobre o projeto, que lugar é esse do cozinhar, que tipo de dispositivo é esse do livro, como ele 64
65
64
65
ativa outras situações a partir dele. É o mesmo pensamento que está presente naquela peça e que envolve o corpo do outro, convida o outro a estar junto. | MM: Eu gosto também do Bruce Nauman como uma referência que a gente tem que ter, porque liga com tudo. É muito engraçado isso porque, ao mesmo tempo que a gente vai fazendo cortes, aquilo que se pertence se encontra. É um pouco o que o Lepecki fala sobre o devir da obra, que para mim tem a ver com colocar o desejo em movimento. As coisas têm o seu próprio anjo, por isso, voltando para o Deleuze, é importante não afugentar os devires. Estava lembrando da minha avó cozinhando. Ela era filha de portugueses, tinha aquela coisa assim que você chegava, estava servido aquele mega banquete e você falava: “Vó, que maravilha!”, e ela: “É, eu fiz umas coisinhas”. Ela tinha aquela atitude portuguesa. Você pegava as receitas dela, obviamente que, se você faz a receita de uma pessoa que cozinha, sempre fica um pouco diferente, mas a gente via que ficava completamente diferente. E quando você a via cozinhando, ela não fazia nada do que estava na receita. Ela pegava pra bater as claras, fazia assim e caía um pedaço, e aí misturava com não sei o que, jogava farinha e não era a medida que ela tinha falado. E ela sabia, porque sabia um outro saber daquilo. Para mim isso tem tudo a ver com a coisa da receita como dispositivo provocador. A receita não é o que será feito, não é a coisa, ela é uma referência, um lugar. E acho que a gente pode pensar um pouco o livro como esse lugar também, que se expande para fora dele mesmo. É o que a gente falou desde o começo com a Edith. | CB: É, na verdade, uma ilusão de controle. Quer, dizer a instrução está posta no mundo, mas se eu fizer isso naquela parede ou na da tua casa, muda tudo. Ou, se fizer no museu, em um lugar que eu não tenho nenhum tipo de intimidade, tudo muda. Então a receita, ela é isso. Desculpe usar essa palavra tantas vezes, a receita é um dispositivo, ela não é a coisa em si, ela é algo para ser ativado, é algo para, não é algo em si. Eu gosto de pensar nisso como performance. | MM: Eu gosto bastante e acho oportuno você trazer isso. | CB: Eu pensei, será que eles já estão usando receitas no livro e estou sendo óbvio? | MM: Não, aí a gente está abrindo pra uma outra
questão. De uma certa maneira, estou pensando como é que vou organizar o solo. Ferron falou: “É que nem aquela comida do Zeca (no jantar #4): é uma coisa, só que tem tudo”. Sim, e talvez inclua receber os convidados, talvez tenha entrada, prato principal, sobremesa, talvez seja só um prato, eu não sei. Eu quero pensar sobre isso, como é que eu vou organizar isso. E a mesma coisa com a Sheila. Esses elementos entram ali como ingredientes, entram ali e tudo vira uma coisa, é uma sopa ou são vários pratos? | CB: Eu separei essa revista pra mostrar pra vocês, que é uma revista que chama The Gourmand, ela fala sobre arte e comida e tem essa foto... | MM: A mesma foto do projeto. Essa foto é maravilhosa porque ele que escreveu, ele que definiu. | CB: Ela é linda. Ele fala de 16 mil laranjas espremidas. Ele fala dos coelhos, das cenouras, dos peixes. E aí tem uma matéria que eu mandei o link pra vocês da revista, mas essa é a versão impressa. Essa é a matéria que vai falando do “Food”, das receitas que ele fez antes de criar o “Food”, são essas que eu mandei pra você, mas eu pensei em incluir mais uma, que acho que é meio simbólica, também é importante, a que ele queima o porco na Brooklyn Bridge... Em um evento... | MM: É O porquinho dele. | CB: Como é que chama isso... “Pig Roast, 1972, marca a sua relação direta com a comida e o trabalho de arte encenado no fim do Brooklyn Bridge Event.” Então foi feito um evento ali e ele assa o porco no final da exibição, na noite anterior ao encerramento, até o dia seguinte. “Acompanhado da música do Philip Glass, Matta-Clark faz mais ou menos 500 sanduíches” com esse porco. | MM: É defumado. É uma defumação, ele defuma a carne. É o que eu fiz lá em Goiânia, defumei o peixe também, desse segredo da mãe do Gui, que a gente não podia nem filmar ela, nem o segredinho da coisa, só o resto. Depois, quando você puder, entra no Cozinha Performática. Você usa Facebook? Tem um link pra Conexão Samambaia que tem todos os vídeos, tem o que me mostra fazendo compra no mercado, acho que não aparece na edição, o segurança me para, me tira, diz que eu não posso filmar... | CB: Você conhece a Berna Reale? É uma performer de Belém do Pará... | MM: Eu não conheço, não. Alguém mais falou dela também. Tem tanta gente que faz coisa
66
67
66
67
com comida que na Inglaterra já tem um festival de artes cênicas só com comida. Tem uma amiga minha que produz lá no interior... | CB: Tem um trabalho dela em que ela é transportada como um animal dentro de um caminhão frigorífico, os caras descem do caminhão com ela pendurada e eles vão andando pela cidade com ela pendurada. É um pouco ativista... | AT: Aí, Cláudio, depois, com a Edith, a gente pode pensar onde nós vamos colocar as receitas e essa questão do corte. | CB: Eu acho que é uma questão legal de pensar, o corte como... Tem a ver com comida, tem a ver com Matta-Clark, com arquitetura... O que eu tenho pensado também, viu, Marcos?, é na ideia da performatividade do texto. Eu não sei, estou contando pra vocês mais porque acho que isso vai aparecer com a confecção do livro... Mas é esse texto que performa. É o lugar do texto menos como um algo já instituído, mas ele como... Como vou explicar? Por exemplo, estou escrevendo na minha tese sobre o trabalho do Ricardo Basbaum, que tem um jogo entre troca de pronomes, quando EU viro VOCÊ, de repente nos tornamos EUVOCÊ, enfim, esse jogo dele... Aí, no texto, eu crio tags, que marcam quando a situação comentada trata-se de EUELE, EUVOCÊ, etc. Então, é fazer o texto performar, eu acho legal porque é uma compreensão do texto como uma situação dinâmica também, que dialoga conceitualmente com a ideia de performance... MM: O Matta-Clark era afilhado da mulher do Duchamp, Teeny Duchamp. | CB: Uau! Agora, isso também de ele fazer essas coisas meio sujas, que criam fungos dentro dos lugares, é uma reação contra a assepsia da arte nos anos 1970 em Nova York... O vídeo é muito bom, porque ele não é nada. E aí tem uns momentos que um cara está cozinhando e chegam com a câmera: “O que você está fazendo?”, e o cara não quer responder, meio de mau humor... Um detalhe que é legal, essa coisa dele dos anos 1970, porque nesse momento em Nova York uma das coisas que estava acontecendo era o minimalismo norte-americano. Estava todo mundo criticando de certa forma o cubo branco. Acho que, diferente do Brasil, em que só hoje a gente tem as instituições, o mercado fortalecido, na época, em Nova York, isso já existia, o mercado, a circulação de obras. Se o Richard Serra vai no espaço público e faz um Tilted Arc lá na Federal Plaza, que corta a praça ao meio, e fala: “A obra foi feita pra cá, ela não pode ser tirada daqui. Se ela for tirada daqui ela não existe mais.”, ele cria um lugar pra obra que não é o lugar da mobilidade, não é o lugar do mercado, ela não pode ser vendida pra Europa, tem que ser ali, tem que existir ali. É um site-specific, totalmente. E isso cria um novo problema para o mercado de arte americano. E acho que por outro viés, que é o da performance, da cozinha, dessa situação que ele cria dentro da galeria suja, ele faz a mesma coisa. Ele está queimando fotografia, está queimando um objeto que seria o objeto da mobilidade, esse objeto circularia como obra comercializada. | AT: Querido esse papo está muito bom, mas eu preciso ir. Vamos? 68
69
68
69
Entrevista com
Lucio Agra ANA Teixeira: Lucio, eu preparei algumas questões, mas elas são só detonadoras... Isso é mais uma conversa do que uma entrevista, tudo foi pensado em função daquilo que a gente vive na dança. É claro que esta é uma conversa entre a performance e a dança, não tem como distanciar. Então eu vou começar com o título de um texto seu que é: “Por que a performance deve resistir às definições?”. Eu queria que você falasse um pouco sobre essa questão. | LUCIO AGRA: Porque a performance já nasce em um contexto filosófico, de pensamento, em que a noção de que você poderia definir alguma coisa estava se esboroando, já estava acabando. Essa seria a primeira razão. Se você falar estritamente de estudos da performance, este seria um campo científico, acadêmico, como você quiser chamar, que cerca a performance, mas que também não é um campo no sentido tradicional, porque boa parte dos praticantes destes estudos também faz performance. Eles não têm nenhum suposto distanciamento crítico em relação ao objeto de estudo deles, o objeto não é “o objeto” clássico e assim por diante. Mas, além disso, o que se passa é que havia já, e não preciso desdobrar isso, todo um esforço, desde os anos 1950 pelo menos, de desfazer essa perspectiva das definições. De que definição não é definitiva. A ciência, talvez desde muito antes, já tinha estabelecido essa impossibilidade de firmar campos com contornos definidos e, portanto, já havia abandonado essa possibilidade de estabelecer parâmetros definitivos. O que vinha sendo feito eram, na verdade, as últimas definições... No caso da performance, não era possível também pelo seguinte motivo: porque ela é uma linguagem de linguagens, como várias outras, pois não é a única nesse aspecto. O que tem acontecido mais comumente hoje é você ter linguagens que são híbridos de outras. A ponto de haver quem pense que a gente vá ter no futuro, eu sou um dos que acha 70
71
70
71
isso, que a gente vá ter não mais as formas tradicionais artísticas, que serão uma paisagem distante. Mas o que mais frequentemente você vai ter serão grandes misturas, porque também há uma grande mistura nisso aí, que é a mistura com a própria vida. Sempre cito isso que o Donasci fala: “A gente faz performance pra gente saber por que a gente está fazendo aquilo”. Durante certa época tinha uma frase que foi pouco compreendida, mas lembro que eu repetia sempre para mim mesmo, tentando entendê-la. Era muito ignorante ela, porque desconhecia certas coisas, mas ao mesmo tempo intuía outras coisas. A frase dizia assim: “O teatro é a vida e a performance é a arte”. Com isso eu queria dizer que aquilo que o teatro pretendia ser, uma espécie de inventário da existência, tinha sido sugado pela própria existência, e a própria existência tinha se tornado teatro. Mesmo se você considerar um teatro brechtiano, num lugar onde você fazia ou uma tática ilusionista ou anti-ilusionista, enfim. E aí de certa forma não fazia muito sentido você ir ao teatro ver aquilo que já estava se processando na própria existência. Como de certo modo suponho que a dança também fez, no momento em que de repente ela disse: “Não tem mais música acompanhada pelo corpo, a questão é o movimento”. Então começou a construir uma coisa cujos limites com a existência cotidiana vão se formando cada vez mais fluidos. E aí, o que acontece? A performance sempre reivindicou isso. A performance sempre disse que era o real em presença? Não. Ela está na verdade construindo aquilo que talvez fosse possível como arte nos séculos 20 e 21. Você via essa tentativa de propor, nos termos que, por exemplo, Beuys propunha, uma existência estética. Então, do que nós estamos falando quando falamos de performance? Também estamos falando de outros modos de existência. Isso sentimos muito agudamente, quem faz constantemente performance, que você transita subitamente de um espaço, de uma prática cotidiana banal, repetitiva, pra algo extraordinário, dentro do ordinário cotidiano. A ponto de, em determinado momento, essas duas instâncias do ordinário e do extraordinário se misturarem e começarem a ter uma espécie de comportamento que é muito conhecido – por exemplo, e que por isso eu suponho que tem sido tão discutido, o dos psicóticos. Então, tem um comportamento “esquizo” também, que a performance faz acontecer... E o comportamento “esquizo” tem por natureza uma não definição, e esse parece ser outro motivo. E, por último, porque eu acho que não é só por aquele clichê de que a definição aprisiona a coisa e tal, mas é porque a definição vai cair no vazio. Há filas e filas, listas e listas de definições pra performance, todo mundo arriscou e nenhuma delas consegue dar conta. Estou lembrando, por exemplo, do Renato Cohen que era muito bom pra fazer essas definições, nos livros dele tem vários momentos com essas definições... Estava querendo me lembrar de uma especificamente, mas não estou lembrando agora.1 Mas ele faz algumas que mexem, por exemplo, com a dimensão do ritual dentro do cotidiano, essa questão do ordinário e do extraordinário. Quando ele fala que, se você pintar um quadro no ateliê
não é uma performance, mas se você pintar um quadro no meio da Paulista pode ser.2 Mas também, ao mesmo tempo, você tem que levar em consideração que o contexto em que o Renato está falando isso é um contexto em que havia também essa demanda da singularidade da performance. E hoje você já tem gente que está produzindo nos seus ateliês um trabalho de performance, como de certo modo uma das alegadas origens da performance, que é o Bruce Nauman, já fazia, porque o trabalho dele é de certa forma um trabalho em ateliê...
1 Uma das definições mais famosas de Renato Cohen é o entendimento da performance como “a legião estrangeira das artes”. 2 Corrigindo a referência, feita de memória: “A performance é antes de tudo uma expressão cênica: um quadro sendo exibido para uma plateia não caracteriza uma performance; alguém pintando esse quadro ao vivo, já poderia caracterizá-la” (COHEN, Renato. Performance como Linguagem. Sao Paulo: Perspectiva, 1989, p. 28, grifos do autor). Note-se a alargada noção de “cênica” que ele propõe. 3 Que, na época, era reel, isto é, fita de rolo, videotape em rolo, antes do videocassete.
MARCOS MORAES: Tem também muita coisa em vídeo. | LA: Sim, claro. E isso foi fundamental. Quer dizer, a performance se expande decisivamente com o desenvolvimento desse tipo de registro que permitia que você gravasse no máximo 90 minutos contínuos. Isso é essencial. Porque antes você tinha magazines de 16 mm ou em Super 8 de três minutos. Então não dava pra você fazer uma ação contínua. Tanto que pirou o cabeção do Vito Acconci, do próprio Bruce Nauman, essa possibilidade do real tape.3 Você fazia aquele negócio que vai, vai, vai... E isso é interessante porque... a Chris Melo acho que pesquisa isso e é muito interessante. Porque se você for ver, há uma expansão da temporalidade possível a partir daí, com as memórias cada vez maiores; você pode armazenar mais coisas desse contínuo da própria existência... dessa outra temporalidade que é extensa demais e que nada tem a ver, por exemplo, com você fazer aquilo que tradicionalmente a dramaturgia faz, que é recontar, editar, montar e fazer uma narrativa que tem que ter elipse. Porque senão você não vai, em duas horas, contar história. Mesmo que a história seja toda desmantelada e tal. Pense em Robert Lepage, ele conta a história da sua vida, a relação dele com a mãe, não sei o que, tudo em duas horas. Mas você pode também pensar em Zé Celso, que fica seis horas, sete horas em um ritual gigantesco, que conta uma história, mas estende pra cá, pra lá, puxa fios pra todos os lados. Aí já é outra coisa. Mas assim, pra não perder, porque aí já estou entrando em outro assunto... A indefinição é isso. Eu acho interessante
72
73
72
73
pleitear a indefinição. Acho que é uma ideia interessante. | MM: Eu acho que a discussão é muito pertinente no campo da dança, muito parecida. A velha discussão sobre a representação, a não representação, o que o corpo constrói, que lugar o corpo tem, o lugar do movimento. Mas eu estava pensando na questão da definição e da indefinição, linkando com a tua performance que vi outro dia, em que você fala que toda vez que se fala de performance as pessoas querem saber o que é. Essa necessidade de tentar explicar e colocar em alguma definição. Pensei também na música do Caetano que fala dos americanos: “Americanos são muito estatísticos... Enquanto aqui embaixo a indefinição é o regime”. Você acha que a maneira de fazer performance tem algo que pertence ao campo brasileiro, a esse lugar da “indefinição como regime”? | LA: Totalmente. Eu acho que aí o Brasil está com a faca e o queijo na mão. Mas, ao mesmo tempo, existe um paradoxo que se passa entre nós que é o próprio descaso que a gente produziu, e talvez isso seja algo a se pensar: por que nós não prestamos atenção? Por que nós deixamos que a performance desaparecesse? Eu vejo o teste constante da experiência viva, e estou vendo agora, no Promptus; as pessoas que conhecem a performance mal se aproximam. E aí você vê que existe o peso tremendo de um juízo estético que vem por cima disso, que é engraçado. Porque os países ditos de tradição, que têm mais dificuldade com essas questões, mesmo os Estados Unidos, ao mesmo tempo, talvez por conta dessa pressão racionalista, eles se dão muito bem com 74
a possibilidade de expansão de outras coisas. E aqui, muitas vezes, há uma grande resistência. Vamos falar de dois paradoxos. Primeiro esse: a gente tem grande desejo de poder ser a grandeza que a gente pode ser, e aí o nosso parâmetro, por conta da colonização, é o parâmetro europeu. Mas, ao mesmo tempo, nós tememos que cada coisa que a gente faça possa não corresponder a isso, então nós nos atiramos como lobos em cima de nossa própria produção, com uma exigência estapafúrdia. Que, em alguns casos, foi extraordinária. No caso da poesia concreta, acho que essa exigência foi na medida em que tinha que ser, porque era necessário naquele momento aquele recorte. Ele pôs de lado muitas coisas que eram interessantes, que os que vieram depois recuperaram, como a chanchada da Atlântida. Foi muito importante, por exemplo, o Glauber, que pertence a uma geração que disse “não, a chanchada é uma bobagem”. E depois a chanchada apareceu com a grandiosidade que ela tinha. Então, a gente tem esses dilemas. Tem outro paradoxo também, que é a questão da própria performance ser... Você falou dessa coisa do Caetano... Eu assisti a um show do Caetano em que ele falava assim: “Nos Estados Unidos branco é branco, preto é preto e a mulata não é a tal”. E aí, assim, a performance já é por natureza aquilo que enseja a possibilidade de se dizer isso, porque você já toma de partida uma atitude estética, criativa, de pensamento, etc., que passa a ser inclusiva; que não pense a arte como um mecanismo de seleção de algo que possa ter características estéticas especiais, que é de resto aquilo que todo classicismo ocidental produziu. EDITH DERDYK: A questão da definição e da indefinição da performance é similar, de certa maneira, às definições e às indefinições sobre o livro de artista, permeando um terreno híbrido, mestiço e que lida com a porosidade entre as linguagens... Considerando então essa fluidez, essa porosidade em que todas as linguagens se mesclam, em que o campo da experiência e a ordem do acontecimento prevalecem sobre o campo da representação, enfim, a gente poderia dizer que cada performance 75
De: Cozinha Performática cozinhaperformatica14@ gmail.com Para: Comensais Data: 4 de novembro de 2013 09:47 Assunto: Novembro e a Cozinha
Caros, Após o outubro ‘para-dentro’, estamos vislumbrando um novembro ‘para-a-frente’, assim, estamos pensando num jantar, ao final de novembro (pré-agendado para 29 de novembro - à confirmar), que terá como mote os assuntos da publicação, ou seja, nossos encontros. A Edith que estará trabalhando no design do livro, pensando na publicação como “um território movente, mas também como um mapa de todas as nossas rotas até aqui, para depois daqui” nos envia o seguinte enunciado: “Gostaria que, pro nosso próximo encontro da Cozinha, cada um de nós trouxesse, em função do que foi conversado, comido, cozinhado, escolhido, recortado, vivido, trocado, imaginado, desejado (tudo no passado, né?) mas também considerando nestas escolhas a projeção de um futuro - o que gostaria de conversar, desejar, imaginar, trocar,
74
75
funda sua própria teoria, seu próprio conceito, já que seria impossível delimitar a performance e o ato performático sob a moldura de uma única definição definitiva? | LA: Decerto que sim, se não fosse o fato de que cada uma dessas experiências, ao mesmo tempo em que funda um campo que pode se encerrar dentro dela mesma, tem uma capacidade de contaminação tremenda. | MM: Tenho interesse nessa questão, no sentido de criar situações em que se afrouxem alguns dos “pressupostos” sociais, gerando um nível de relações, um “determinado ambiente” que incide na criação, naquilo que é feito. Portanto, resiste-se à ideia de definição, mas ao mesmo tempo afirma-se que há uma busca de modos de existir dentro disso, que tem incidência naquilo que você está criando. | LA: Totalmente, e de modo algum eu diria o contrário; eu acho que para algumas sensibilidades, pra não falar linguagens artísticas, essa relação específica com o ambiente é crucial, ela é definidora de muitas coisas. A relação do ambiente com a performance é uma relação que pode ser traduzida em termos de contexto. Isto é, ela não tem o mesmo caráter crucial que tem para outros artistas, digamos, entre aspas, dançarinos, e até esportistas. Mas tem a ver com uma espécie de conversa conceitual com o espaço, porque você pode estar produzindo alguma coisa que tenha diálogo tanto direto quanto indireto. [...] Então, quando você vê um corpo nu deitado em determinado lugar, na performance ele não é apenas um corpo nu deitado. E aí tem uma exigência grande da performance que é que se você ler só por aquilo que está acontecendo ali, você não vai entender nada. Existe toda uma discussão sobre o tempo, você estende esse tempo às vezes fazendo ações idiotas, e aí isso vai entrando pra outras coisas. Assim, nós não fomos capazes na tradição ocidental de dessublimar a arte, por mais que a gente quisesse. O Dadá fez o que fez, mas a gente ainda continua com alguns preceitos do tipo: não pode ser idiota, não pode ser decepcionante, não pode ser fracassado, não pode ser horroroso, não pode ser de mau gosto, não pode, não pode... Quer dizer, todas as dimensões de uma existência cotidiana em que essas coisas estão em jogo vão sendo postas de lado para criar o território do extraordinário da arte. E isso aliado a essa ideia do contexto, de o contexto ser de certa forma, nas tradições animistas, transformado pelas interferências. Isso é uma coisa de que Paul Zumthor fala maravilhosamente, um poeta é aquele cara que chega querendo conquistar o outro, instaurar um ambiente novo. Então, o lugar de onde ele fala já não é mais aquele lugar. O poeta que chega à igreja recitando um verso. É claro que a igreja não é mais a mesma, a igreja muda com a poesia. E esse tipo de alteração que uns chamam energética ou coisa assim, mas que eu prefiro dizer que é material, uma alteração real no espaço, tem essa dimensão conceitual que não se resolve exclusivamente se você tiver uma explicação do tipo relações com o ambiente – relações biológicas, relação espaço, tempo, temperatura, etc. Porque tudo isso não dá conta. Entende? Também é claro que essa noção de arte contextual é um artefato precário, como é precária a própria compreensão que a gente tem disso. Porque nós, na tradição ocidental, e eu 76
77
cozinhar, experimentar e outros verbos que nem sei quais são e que cada um poderia também listar aqui as seguintes coisas: – palavras: que podem ser poesia, algum texto, seja de natureza teórica, filosófica, gastronômica, literária, antropológica, científica, de revistas... enfim, palavras de qualquer ordem, registro, fonte ou natureza, porém palavras! – imagens: que podem ser autorais ou não, pode ser desenho, fotografia, pode vir de livro de ciência, do jornal, da arte, da biologia, de qualquer lugar, porém imagens. – sons: canção, clássica, som de natureza ou de ruídos, de qualquer fonte, pode trazer gravado... – livros -trazer livros que vcs gostam- seja pelo conteúdo, seja pela forma, 76
77
cito um pouquinho o nosso principal pensador dessa questão, Eduardo Viveiros de Castro, a gente abandonou todas essas ideias... Quem trabalha com artes visuais sabe que, se você botar essa parede branca aqui, você vai ter um nível de reflexo e luminosidade, e a parede cinza não vai ser mais a mesma coisa. Mas a maioria das pessoas que vivem num mundo capitalista como o nosso só percebe isso quando tem um especialista que diz... E aí pega a coisa do feng shui e tal. Tem várias mediações, porque você vive num mundo todo fragmentado, espiralizado, e você não tem condições de ver esse mundo como um todo. Tudo isso se perdeu, e a arte sente isso muito agudamente. É preciso lembrar que o Gordon Matta-Clark, quando faz aqueles buracos naqueles prédios que vão ser demolidos por causa da construção do Centro Pompidou, ele era um “zé ninguém”, era conhecido por poucos. Eu lembro, e sempre conto isso para os alunos, que quando Hélio Oiticica morreu, Hélio Oiticica e Lygia Clark estavam esquecidos completamente. Em 1986 teve uma retrospectiva de Hélio e Lygia, e, isso é contado no livro dessa retrospectiva, chegaram para ela e perguntaram: “E aí, Lygia, o que você está achando?”. E ela respondeu um pouco apática. Estava desanimada porque esse trabalho, dessa potência que hoje a gente percebe, estava completamente jogado às traças. Há também essa dimensão do contexto, do conjunto de coisas que vai fazendo essas coisas emergirem. Eu já vivi a situação de muitas vezes falar de performance e as pessoas olharem pra mim como se eu estivesse falando um completo absurdo, como se eu fosse um delirante. Como se ensinar performance fosse algo completamente sem sentido. Opera-se aí uma coisa que o Thomas Kuhn falava sobre as revoluções científicas: quando elas surgem, são entendidas como bruxaria, magia, esculhambação, maluquice... Até hoje é assim. Falando dessa coisa da esculhambação, o pior não é a gente ser considerado como esculhambados, o pior é as pessoas não conseguirem aceitar que a gente aceita isso muito bem. E dizem assim: “Não, não é esculhambação”. Quando a Bia Medeiros fala “é fuleragem”, ela está falando isso de verdade, mas ao mesmo tempo também não é. Porque a gente percebe, porque ninguém é bobo, como os outros nos olham... Por isso que o Erwin Goffman, um dos autores evocados pelos estudos da performance, nos trouxe a questão do estigma social. E todo o pessoal da performance tem um estigma dentro do social da criação artística. Isso acontece aqui, na Europa, nos Estados Unidos... Porque tem uma RoseLee Goldberg, que é uma madame que faz um festival no Museu Guggenheim, o Performa, e hoje ela tem que lidar menos com isso, mas ela lida com essas situações. É um jogo de poder... E vai continuar a existir, Marcos, porque é isso que a performance traz, e não é porque é só a performance, é a performance, o mash up, a modificação de jogos, um monte de outras coisas que eu poderia citar aqui, a troca de músicas via internet, a criação de músicas a partir de outras músicas, o sampler, o abandono da noção de autoria... Essas coisas desestabilizam radicalmente aquilo que às vezes é a sustentação... 78
79
publicações que vcs curtem sei lá porquê.... e que se relacionam, de algum modo, com a nossa cozinha performática – quem quiser trazer também anotações de caderno, desenhos, rabiscos, palavrinhas que foram realizadas no decorrer de nossos encontros .....será ótimo!!!!!!!! daí os bastidores do pensamento e das ações ficam ali na boca da cena!!! Enfim, qualquer sinal, indício, registro será uma pista, belo material pra trabalharmos na publicação que iremos materializar feito um coral dissonante, pois a diferença é tudo! besosmil gracias total e até jajajaá Edith “ 78
79
AT: Eu vou continuar ainda nessa questão dessas terminologias que a gente lê muito nesses releases, por exemplo, não só da dança, mas das artes em geral; termos como performatividade, performático... Será que você poderia dar só uma contextualizada pra gente de quais são as relações? Porque, geralmente, eles são utilizados como sinônimos de performance. | LA: Isso também é um sintoma da situação. Veja só, um dos primeiros lugares em que aparece o termo performatividade é no livro do psicólogo-pensador J.L. Austin...4 Aliás, a gente perdeu esse ano um grande especialista disso a que eu assisti no Instituto Hemisférico. Como era o nome dele? Um cara dos Estados Unidos, acho que com ascendência peruana, que trabalhava no Performance Studies, e que formulou uma das mais brilhantes interpretações que eu já vi das ideias do Austin.5 Porque o Austin sustentou uma polêmica com o Derrida e o Derrida o espinafrou, ele como americano, aquela coisa... Mas ele foi um dos primeiros a falar desse negócio da performatividade. Ele falou isso dentro de um campo específico, o da linguística, e isso foi se desenvolver fora, em outros universos de pesquisa. Um cara que é ótimo pra se entender isso é o Marvin Carlson. Tem um livro dele, que é um livro de um teórico do teatro que escreveu sobre performance, que é Performance: uma introdução crítica. Foi publicado aqui em 2010 e é um livro de 1995, e não foi reeditado. Tem tanta procura, e a UFMG não faz uma reimpressão dele, o livro é incrível. Ele apresenta a questão da performance na sociologia... O mesmo que escreveu aquela história do teatro...6 Ele fala da performance na linguística. A performance na antropologia é um termo utilizado desde a década de 1980, por causa do Victor Turner, que primeiro usou o conceito de drama social para apresentar como funcionavam as sociedades, as civilizações; depois ele passou a usar o termo performance, por conta do contato dele com o Richard Schechner. Então, você tem performance em todos esses campos. No caso específico de performatividade, o termo começou a aparecer na linguística, particularmente na linguística do Chomsky e do Austin. Depois o Searle vai trabalhar com ele, pra fazer o que se chama de
4 Linguista norte-americano, autor de How to do things with words (trad. Brasileira: Das palavras nascem as coisas) ver detalhes em <http://pt.wikipedia. org/wiki/John_Langshaw_Austin>. No livro Performance: uma introdução crítica de Marvin Carlson (Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2010), há um capítulo destinado à discussão dessa noção na linguística. 5 Trata-se de José Esteban Muñoz. Há uma ótima entrevista com ele no banco de vídeos do site do Instituto Hemisférico (<http://hidvl.nyu.edu/ video/003305734.html>). 6 CARLSON, Marvin.São Paulo: Ed. Unesp, 1997.
teoria dos atos da fala, que foi muito usada na área de teoria literária. Um dos estudiosos que usou a teoria dos atos da fala aqui foi o Luís Costa Lima, que, não por acaso, também é um dos que usa as ideias do Zumthor, que, por sua vez, também menciona isso no livro Performance, recepção e leitura; ele apresenta como é que vem essa ideia da performance. Ele fala do Dell Hymes, que é um antropólogo das antigas. Então é uma longa história isso... Ora, quando de repente essa coisa começa a voltar, quando a gente vive um novo surto de interesse pela performance, aí o que acaba acontecendo é que as pessoas se apegam a algumas palavras-chave. Quando se tem, por exemplo, um release ou coisa assim, é onde mais acontece isso, porque hoje a gente vive uma febre do release de imprensa. Eu sei porque vivo isso e vocês também. As pessoas botam um monte de bobagem e isso vai pra imprensa, ninguém mais redige nada, copia o que está no release... Vai para o edital. Então, aí é preciso distinguir isso. Porque tem uma dinâmica da cultura brasileira contra a qual deveríamos lutar muito mais, pra modificá-la, e que acaba canibalizando tudo quanto é conceito pra poder funcionar como mecanismo pra você ter a grana de que você precisa. Isso tudo é uma grande farsa, e todo mundo está metido nisso. Isso vai explodir em algum momento, acho que não tem como sustentar mais. Acho que isso está infelicitando a arte brasileira. Isso é uma outra questão. Independente disso... Eu acho que tem essa questão do desconhecimento do assunto... Então, a rigor, a noção de performatividade foi trabalhada de um certo modo... por J.L.Austin, em How to do things with words, que foi traduzido aqui como Das palavras nascem as coisas – acho que era melhor traduzir ao pé da letra: Como fazer coisas com palavras, que era isso que ele queria dizer, que a palavra tem o poder de fazer as coisas acontecerem. Ele estava interessado nisso, o caráter actancial da palavra, sem o sentido da semiótica, o caráter que faz com que a ação, a palavra, faça acontecer. A palavra-corpo, a palavra-acontecimento, a palavra que faz fazer. É uma potência que a gente conhece bem no ocidente, por meio de uma coisa chamada oração, que as pessoas rezam. As pessoas rezam porque acreditam no poder da palavra, a palavra em estado de produção poética, porque uma oração é uma poesia. Esse caráter performativo é o que isso significa. Agora, performático é um adjetivo que começou a surgir principalmente a partir dos anos 1980, quando muita gente se aproximou da performance, e também por causa da emergência de discussões de gênero, que vieram estropiadas pra nós aqui no Brasil, muito embora as questões de gênero sempre tenham existido. Alguns grupos, como o grupo dos travestis que já estava na fronteira mesmo e que já tinha ultrapassado quaisquer limites, gostava de usar esse termo porque sempre usou o termo performance. “Eu vou fazer uma performance.” E eles usavam com toda propriedade, porque de fato é. Você se vestir de outra identidade sexual construída socialmente, isso é uma coisa que é muito discutida pela Diana Taylor, construir outras identidades sexuais. É um processo desses, e é um processo em que você vai formulando um outro jeito de agir, isto é, uma outra
80
81
80
81
ação performativa, se não fosse já uma redundância falar “ação performativa”, ou uma outra performatividade, se quiser. Então eu entendo isso um pouco dessa forma. O Guillermo Gómez-Peña fala de performatividade como caráter propriamente de ação no meio de toda formulação teórica, epistemológica, conceitual e estética que a performance abarca.7 E aí, nesse sentido, ele está um pouco próximo do teatro também, porque tem um caráter de performativo no teatro. Eu continuo achando que o Hans-Thies Lehmann acertou mais em falar em teatro pós-dramático, porque a questão... E ele falou do Peter Szondi, ele atacou exatamente a questão, quer dizer, o drama é o problema. A gente tem uma impossibilidade contemporânea do drama, o declínio das narrativas. As narrativas se dobram sobre si mesmas, elas entram em colapso e ao mesmo tempo chamam a atenção para aquelas que nunca entraram em colapso, que são as narrativas ancestrais. Roland Barthes, e isso estava um pouco esquecido, dizia assim: “Não adianta falar do tema da história porque os temas são sempre os mesmos, o que muda são as histórias, o modo de contar as histórias, as modalidades”. Mas, além disso, só pra concluir, você tem essa questão, aí outros propõem, como propôs a Josette Féral, o teatro performático. E aí é um outro tipo de abordagem, porque ela se concentra na ação: não acontecem mais as coisas. Você vai assistir a uma peça do Frank Castorf,8 então fica um cara falando: “Você vai”, “não vai”, “vou”, “não”, “vai”, “não”, “não vai”, “aAh...”. Nada vai, porque isso já é pós-Beckett, não vai acontecer, não espere porque não vai acontecer nada. O Peter Pál Pelbart acabou de fazer uma palestra no Promptus em relação à Ueinzz, então ele disse assim: “Não acontece absolutamente nada. As peças da Ueinzz só podem ser chamadas de peças de uma maneira muito precária, porque não acontece nada, não há acontecimento.” Quando não há acontecimento, aquela história da dramaturgia se desmantela. Como você pode sustentar alguma ideia de dramaturgia se nada mais acontece? E nem como consequência de movimento, porque os movimentos também não estão sequenciados de alguma maneira. Todas as noções que você
possa querer apreender, isso já não funciona mais ou funciona precariamente, elas vão até certo ponto e quebram. São cálices de cristal, você põe ali e daqui a pouco quebra, o líquido vaza. E aí, nesse sentido, a performance vem como grande auxílio. Porque aí você diz assim: “Bom, não tem mais nada, então é a performance”. Isso é o que vai dar naquelas coisas assim: “Olha”... Todas as vezes que você fala de performance acontece de alguém esbarrar em alguma coisa, cai alguma coisa: “Olha, é a performance”. Porque se começa a ver o grau de inclusividade do conceito. E é tremendamente perigoso também. Mas isso também chama a atenção pra outra coisa: não será talvez isso que estamos chamando de performance, uma desconfiança sobre um funcionamento do mundo que principia a acontecer? Onde todas as emergências possíveis estão cada vez mais em incidência? A gente tem hoje uma crise climática no planeta que faz com que você possa ter tempestades acachapantes que, de um dia para o outro, viram o contrário... Essa coisa dos intempestivos, sobre o que já estão falando. Nós estamos vivendo num mundo desses...
7 http://www.scielo.br/pdf/ha/v11n24/ a10v1124.pdf 8 Ver palestra recente em http://vimeo. com/78892524
AT: Você tem acompanhado todo esse movimento da dança, essa aproximação com a performance? | LA: Sim. Eu acho que a dança se aproximou da performance do mesmo modo que o teatro se aproximou da performance... Do mesmo modo não, porque cada um tem seu modo de aproximação, mas em um nível genérico muitas coisas se aproximam da performance por causa daquilo que eu estava falando antes, porque esse torvelinho que a performance acidentalmente... Eu não pensava que isso iria acontecer, porque a performance acidentalmente se tornou uma espécie de pororoca. Acho que essa ideia até o próprio Renato já tinha usado, mas ele usou uma ideia muito legal que é o “carrefour das artes”. O carrefour é o mercado onde se misturam todas essas coisas. Esse atrator estranho que foi a performance, a partir de certo momento, começou a sugar tudo à sua volta. Porque você sente uma crise e quer entender: qual é aquele lugar de liberdade em que
82
83
82
83
aquele cara está fazendo aquilo? Você ficou um tempão tentando fazer aquilo e ele vai lá e faz: “Vou me aproximar disso, porque eu quero entender como é que é”. Teve muita gente se aproximando de mim e falando: “Eu quero entender”. Muita gente. E aí eu achava engraçado, porque nem a gente entende muito bem. Não é uma questão de entender, é uma outra questão que tem a ver também com fazer uma certa opção na existência. Ou seja, produzir um certo deslocamento nos seus próprios funcionamentos, o que eu posso falar por mim. E é por isso que a autobiografia é uma coisa fundamental na performance... Porque essa trajetória também define muitas coisas. Eu venho da poesia e levei muito tempo da minha vida pra entender que só era possível fazer poesia de fato quando a poesia era corpo, quando eu falava a poesia, pra dizer um termo mais tradicional. Mas aí, trombando com a performance, também a performance me deu uma rasteira e produziu em mim um desejo de fazer meu corpo pertencer à cena, num sentido amplificado de cena, que não fosse só esse da ação de ler o poema ou de falar o poema. [...] O que tinha mais a ver comigo era aquilo que o Leminski fazia no TV de Vanguarda, em que ele pegava um texto do Guimarães Rosa e performava imaginando uma espingarda contra a lente da câmera. Foi por esse caminho que eu comecei a pensar como é que eu podia entrar nisso. Aí houve um outro momento, que foi um momento em que a palavra desapareceu, que eu comecei a fazer essas personas que são Jesus Cristo Parangolé, Frankstein Psy, Índio Multimídia, esses híbridos assim. Que foi muito também o impacto que teve em mim ver, por exemplo, Guillermo Gómez-Peña. Mas ao mesmo tempo tive o impacto do Renato, que ensinava a gente a trabalhar com longas temporalidades. O Renato nunca me deixou entrar em cena, o Renato sempre... Eu acho que não deu tempo de a gente trocar essa possibilidade. Mas, de certa forma, quando eu voltei pra performance por influência dele e fui fazer o “Ursonate” do Kurt Schwitters, ele ficou meio de fora, depois acabou se aproximando, dando umas dicas e tal. A gente foi fazendo juntos de alguma maneira, mas já era o meu trabalho. Eu tinha muita dificuldade de ter coragem de mostrar, principalmente porque achava que ele tinha um high standard muito grande. E eu não ia por ali, até que encontrei outro caminho. A performance, no meu caso, foi a possibilidade de me, pra usar a palavra clichê, desterritorializar, de eu conseguir construir outros territórios de outro modo, que hoje são territórios de altíssima precariedade. Porque muitas vezes fico muito insatisfeito com o que eu faço e muitas vezes me surpreendo tremendamente. Aí, eu descobri... Porque a minha geração teve muito essa história de “não pode ser artista de jeito nenhum. O artista é feio. Ninguém é mais artista.” E eu levei um tempão pra entender que eu podia dizer que era artista, Porque tinha essa coisa, se demonizava... Era muito necessário... Quando descubro tardiamente o que é isso, descubro que ser artista é nunca ter certeza de coisa nenhuma. Mas esse nunca ter certeza de coisa nenhuma, e aí eu ponho a moedinha lá do Beuys, era necessário pra gente construir um outro 84
85
84
85
modo de existência. É você já construir uma vida de incertezas possíveis. Porque também tem as incertezas impossíveis... Você pode se atirar pra outro lado de incertezas que é ficar fumando crack até morrer. Você pode fazer outras coisas na sua vida que seja na incerteza absoluta. Mas não se trata disso. Muitas vezes a gente está à beira disso... AT: Tem uma coisa que a Diana Taylor diz sobre ter que se questionar esse termo performance. Por que na América Latina se usa a mesma expressão? E essa ideia de universalizar o conceito, como se isso desse conta de tudo. | LA: A Bia, por exemplo, sugere que se use o termo “fuleragem”, porque ela quer assumir um lado. Acho que é um lado forte, politicamente muito interessante, porque você afirma categoricamente a possibilidade de que aquilo tudo a que você está assistindo seja uma grande farsa. Algo que alguns artistas souberam extraordinariamente fazer, o Marcel Duchamp, por exemplo. Que muitas vezes deixou todo mundo assim: “Será que o que ele está fazendo é uma farsa?”. Eu acho que a ideia que a Bia está desenvolvendo é um ponto, um caminho, inclusive nas artes mais tradicionais, que diz assim: “Não vai dar mais pra ter certezas”. Mas acho que isso é um aspecto. Aí tem um Felipe Ehrenberg, por exemplo, que é um performer mexicano das antigas, que pensa no termo “performa”, que soaria melhor nas línguas latinas, particularmente em português, espanhol, etc., porque poderia ter como significado “através da forma”. Porque, de fato, o artista que faz performance atravessa a forma, a ideia de atravessar algo... O atravessar tem a ver com aquela ideia do meio, que é muito cara à performance. No terceiro fórum de performance que a gente fez, eu sugeri como título a expressão “Atravessando com a performance”. Atravessar na música quer dizer você sair do ritmo. Às vezes o atravessar é necessário. Quando a performance está muito quadradinha, é preciso atravessar. É preciso ter uma noção alargada de ritmo. Sabe-se que alguns percussionistas trabalham com uma variação mínima entre o bit e o tempo forte... Então essa ideia de atravessamento é muito importante. 86
87
86
87
Tem essa terminologia. Tem outras que já estão sendo sugeridas, o Guillermo Gómez-Peña não usa o termo performer, prefere usar performero, que eu acho muito interessante. Acho que a gente poderia incorporar no português do Brasil “performero”. Eu defendi e ainda continuo defendendo a palavra performance, porque a gente já comeu. E a gente já fez dela uma outra coisa. Não se trata de dizer “a palavra é importada”. Claro que é uma palavra importada. Claro que corremos o risco de ficarmos fazendo performance como se fazia há muito tempo, usando o modelo da RoseLee Goldberg, que era a única narrativa que existia. Mas ao mesmo tempo, existe uma potência nossa que engoliu isso e fez disso outra coisa. Então, quando os travestis usavam a palavra performance, quando os rappers usam a palavra performance e outros usam a palavra performance e fazem performance, a performance já não
88
é mais aquilo. Por isso que eu adorei quando os meninos lá do Nordeste fizeram o Circuito BodeArte, pegaram a palavra body e transformaram em “bode”... E, particularmente no Rio Grande do Norte, tem uma centralidade... Você fazer bodearte pode ser um outro nome pra performance. A performance no Brasil é a arte do bode, que é na verdade o teatro. Tem aquela história do bode de que o Zé sempre fala, do bode ritual... O sacrifício do bode. Então, tem muitas tentativas disso. E isso também é parte do processo. Voltando ao início, não só não tem definição como o próprio termo é escandalosamente instável... Já é, isso daí vai ficar te perturbando. “Eu sou a mosca que pousou na sua sopa.” É pra perturbar mesmo, é essa instabilidade mesmo. Mas, pra gente lá na universidade, é um problema isso... A performance também é uma arte pra gente aprender com as crises.
89
Café com pão Dalva Garcia adaptação poética de Natalia Barros
Lembro-me da minha vó Luiza fazendo pães. Com dois dedos decepados por um acidente na serra
cobria a bacia. Minha avó tirava um pedacinho daquele corpo consistente e opulento, fazia uma bo-
elétrica de meu avô, que era marceneiro, ela nos acordava com a promessa de seus pãezinhos. Fazia
linha delicada e graciosa e a colocava no copo com água, vizinho do copo do preto velho. “Quando a
café com seu coador de pano de saca de açúcar e enchia o copo de café bem doce, pro preto velho. Colocava o copo no beiral do vitrô da cozinha. No silêncio, eu indagava por que o preto velho não tomava café na mesa. Mas logo eu inferia que era porque a mesa estaria ocupada com a massa do pão. Pegávamos as latas com os ingredientes e fazíamos malabarismos engraçados, tentando domar
bolinha subir, a massa estará pronta para assar.” Como eu queria entender o segredo que continha os dois copos comunicantes! No copo do preto velho o café se tornava denso, no copo d’água a bolinha da massa ensaiava o seu levitar.
os ovos que queriam correr na mesa. Iniciava-se a mistura e, naquele momento, os dedos cortados da minha avó cresciam, iam ganhando corpo na miscelânea de ingredientes. Enfiávamos a mão na bacia para descobrir o tecido da massa que trazia
quanto reescrevo a receita, que sei de cor. Sinto o cheiro do café e o sabor do pão. Sinto a falta.
os dedos da minha avó de volta, mas aos pouquinhos a massa se desprendia dos dedos e podia ter qualquer forma. Era hora de a massa descansar, de fazê-la dormir para que crescesse. Um crescer que não envolvia ação, apenas uma misteriosa ebulição que se ocultava embaixo do pano de prato que
se expandir para sentir os aromas que permanecem no ar dos tempos imemoriais, e que nos inebriam. Agradeço pela presença – comunicante e comunicável – da fome e da sede. Exatamente por essa falta é que posso hoje, 40 anos depois, assar o pão e coar o café.
Revivido, nessa súbita lembrança, o passado vibra, roçando de leve os dedos da minha mão, en-
A vida nos oferece presentes tão raros que, quando pensamos neles, nosso pulmão parece querer
90
91
90
91
92
93
O banquete Primeiro ato: o cozinheiro. Um homem, sozinho, no meio do palco. Com um avental amarrotado, de algodão grosso, amarelado pelo uso. Afia facas, uma na outra. Um longo tempo em silêncio. Apenas o barulho agudo do metal no metal: do metal no metal do metal no metal do metal no metal Sem pressa, olha longe, como um marinheiro, no cais, olha e espera que um navio venha (que venha) e apareça no horizonte, a caminho do porto. Prepara-se sem saber quais serão os ingredientes para o prato do dia a dia Cada conviva interferirá na receita consumindo-se de fato em fogo brando
Natalia Barros
Neste instante: afia as facas Nas esferas desejantes [do nada que somos e que vibra] agora Gira na alta fervura Na cozinha : talheres caldeirões, e cerimoniais à mesa aprende pela boca palavras, mordeduras, paladares, língua e linguagem da casa da fome olhares da fome espessa do animal faminto do animal espesso e absoluto da espécie humana
desejante ato puro do arcar explícito do gesto que vem e vai ao encontro da órbita do metal do aço arcaico neste banquete [tudo ou nada] arde enquanto o cozinheiro afia as facas.
94
95
94
95
A Cozinha Performática no facebook
Essas imagens são um passear pelos devaneios gerados no processo dos jantares da Cozinha Performática. Por meio das redes sociais, criamos essas paisagens. Esperamos que vocês consigam realizar suas próprias inferências e conexões do que representou compartilhar olhares e inspirações naqueles espaços “sociais”. Cada imagem é uma narrativa poética por onde passearam nossos olhares.
96
97
96
97
proteína ARÍCIA MESS _ Comendo sem culpa, Arícia Messias da Silva, metabolizada em Arícia Mess, provoca soluços em doses intensas. Evita qualquer dor de barriga ou mesmo prisão de ventre, já que estimula diferentes tipos de espasmos. Qual é a autoestima do Negro no brasil? Qual é a autoestima do negro no Brasil?
self portrait | Yuri Pinheiro 2013 #datribo #atoron #naarea
mineral YURI PINHEIRO _ Sentindo o sabor com insaciedade, este mineral come e é comido até acabar o pote, o pacote, a panela. Pode provocar indigestão em alguns metabolismos. comendo tecnologia “a experiência sensorial de utilizar o iphone sem nenhuma capinha protetora é muito simbólica. essa semana vi um garoto no metrô, super style, se jogou no chão e fez a viagem deitado no chão, com um iphone sem capa, digitava numa rapidez ímpar; eu já meio véia não tive a mesma coragem instantânea, mas saquei a dele. depois fui mexer no bichinho peladinho… wow, a sensação de tocá-lo foi muito interessante, duas chapas finas de vidro, o peso ideal, uma estrutura perfeita, achei arquitetura. é uma sensação de poder interessante, um minicomputador que roda bem. nós vivemos naquele futuro e ele é palpável.”
#artist
#acozinhaperformatica
yuripinheiro.com
kaleidoscopic | Alessio Migliardi
detail | spring | Philip Treacy 2013
respirando URLs | Eu por Yuri Pinheiro 2013
Arícia Mess – black is beautiful | créditos por Arícia Mess, no metrô de Londres Castanha (x) Chocolate (x) Clara (x) Café com leite (x) Jambo (x) Laranja (x) Café (x) Feijão (x) Canela (x)
“índia meio canadense tipo japonegah mutante do sarcasmo, loka lúcida assumida, rápida, imagética, performática, catalisadora da atenção, «interferente da proponência» e usa rímel acessível do «brasil esquerdista do luxo» misturado com rímel italiano kiko, pop em todas as camadas. Sheila Ribeiro, você não existe existindo!!!” https:// www.facebook.com/hashtag/datribo
“Angola proíbe operação de todas as igrejas evangélicas do Brasil no país por ‘se aproveitarem das fragilidades do povo angolano’”
www.ariciamess.com
por Arícia Mess, na Lapa
98
99
QUEIMAÇÃO
vitamina MARCOS MORAES _ No forno: O.U. – outros usuários (uma dança-twitter, DETOX-INTOX, de Marcos Moraes e Sheila Ribeiro).
é sheilaribeiro.net e chamandoela.com Muitas comidas gostosas são indigestas pra saúde artística. As não gostosas, as sem-graça, as mais caras, as que precisam da mão certa ou as que demoram pra cozinhar, às vezes, trazem pratos estupendos.
Marcos Moraes (@marcosexpress) replied to one of your Tweets!
PRATO-FEITO PRÊT-à-PORTER Marcella Haddad 98
Sheila Ribeiro
A COZINHA PERFORMÁTICA tem comida: nutrientes importantes para o funcionamento do organismo artístico, claro. Prazer no que se experimenta; sacrifício pra não manter a forma. Dieta sofriiiiiiiiida!!!
Reset… https://twitter.com/marcosexpress
O foodscape dançante de Marcos Moraes e Ana Teixeira brinda o prazer e a azia de comer o outro, a si mesmo – e os outros que estão por aí (e em si mesmo). Em um metabolismo entre sentir fome e controlar o alimento, termina um desejo, começa outro. Vamos às propriedades: 99
Sobre as páginas duplas de um livro em movimento Edith Derdyk aqui é lugar : onde o território é movente agora é tempo : a presença do movimento em ondas, no folhear das páginas duplas aqui é volume : a mesa posta agora é onde os olhos habitam : visão tátil que toca as palavras aqui é o corpo : acorda imagens por virem da memória, em contínua resolução agora são as ações : o livro é partitura coreográfica aqui são as páginas duplas : site-specific agora são palavras e imagens : ingredientes vitais – alimentos para a forma livro aqui são espaços em trânsito : num contínuo ir e vir das folhas de papel agora são narrativas que se desdobram : recombinam-se num jogo duplo liberando temporalidades aqui são ritmos : convocação de tempos e espaços conjugados, simultaneamente agora : um dia fui convidada para fazer parte de um banquete em que um grupo de pessoas, vindas de nascentes diferentes, muitas delas nunca tendo se encontrado antes, iriam conjugar o tempo, destilar desejos, saborear sons em formas de palavras, sem pressa alguma. Sentados à mesa distendemos o tempo como se fosse um elástico, como se as horas que passam fossem capazes de ficar suspensas para os segundos demorarem mais e mais, gotejando líquidos um a um. Degustamos cores, pesamos texturas e tons, engolimos sons, olhamos aromas e ventanias, tal qual um banquete de Babette em que saberes e sabores se fundem e se diluem, navegando sem conhecer o rumo
100
101
aqui o corte da faca : fresta vazada entre os 2 cadernos, um vão livre que atravessa o volume do livro tal como a arquitetura seca de Matta-Clark agora o corte seco na matéria úmida : a experiência de Food de Matta-Clark incorporada na proposição lançada por Marcos Moraes e Ana Teixeira nos banquetes da Cozinha Performática: possíveis alumbramentos nos encontros gerando fricções entre os corpos, para além dos corpos, nos corpos aqui os corpos : ligas, argamassas e nutrientes efusivos, fusionais e passíveis para nossas ações - os cozinheiro/as: juntar, amassar, triturar, embolar, esquentar, esfriar, cortar, misturar, separar, multiplicar paradoxos, temas, narrativas e dramaturgias fugazes, pretextos perdidos, conteúdos desejantes de formas aqui : a surpresa do encontro entre palavras e imagens : alternâncias que desafiam, desfiam e desafinam os elos dramatúrgicos que, em si, sempre desejam aglutinar as partes num todo coeso agora : as narrativas convivem em suas diferenças Como conjugar num corpo só – o livro – múltiplos repertórios e conteúdos, distintas linguagens, diversas experiências de vida e arte para habitarem este território movente? Como gerar uma argamassa que dê liga aos ramos e às raízes – da filosofia à performance, da poesia ao vídeo, das artes plásticas à música, da comida às palavras, dos desejos à materialização em formato de editais, dos foques, desfoques, lances, desenlaces, dos encontros e desencontros que se debatem atavicamente no impulso de construção de algo que não se sabe ainda mas que se deseja como movimento?
Como ser um coro coletivo, feito de vozes dissonantes e plurais em acordos simbióticos sem perder o leque das singularidades, pessoais e intransferíveis? Impulsos, atrações, distanciamentos, matéria do pensamento em ebulição, pensamento da matéria em conjugação, conectando ingredientes que se relacionam ora por antipatia, ora por empatia ou simpatia – ali reside um querer quase que involuntário em luta com a forma pré- datada. O suor e o bafo, o calor do fogo e o estado natural dos alimentos, o corte seco e a escolha dos grãos, os temperos e os humores – tudo é motivo para o livro incorporar uma genética que atualize uma cozinha – sempre efêmera. Como pensar a publicação de um livro que fixa substâncias mas sem âncoras, enunciando os desejos de não somente anunciar os registros e referências deste caminho compartilhado, mas de ser ele mesmo, o livro, outro corpo em si, capaz de nos movimentar? Como fazer com que a argamassa espremida destas fricções se aproprie da leve densidade e da densa leveza que cola gruda liga linka e conecta, sem deixar escapar cada grão e célula do é e do que foi feito para o que virá? Como abrigar nesta casa-livro os espaços móveis e combinatórios, sem perder de vista o detalhe e o todo, o mapa e o território, os impulsos desejantes da Cozinha Performática?
102
103
102
103
Dança e publicação Ana Teixeira
O que tem impulsionado os artistas da dança da cidade de São Paulo, no caso, a se interessarem por registrar suas histórias e seus fazeres? Desde a implementação do Fomento à Dança no ano de 2006, muitos são os projetos que se lançaram na aventura de deixar registradas, para a posteridade, trajetórias artísticas, publicadas no formato de livros, cadernos, revistas digitais, revistas impressas, catálogos, sites, blogs, redes sociais, documentários ou filmes. As reflexões trazidas nessas publicações se ancoram no desejo de dar visibilidade ao pensamento de dança desses artistas, seguindo uma timeline ou buscando promover discussões com teóricos convidados, a partir de um tema específico, e com outros artistas, que discutem os seus processos criativos. Ao longo dos oito anos de vida do edital de Fomento à Dança, podemos citar as publicações da Cia. Borelli de Dança, Revista Murro em Ponta de Faca e Sonhos intranquilos; da Taanteatro Cia., Taanteatro: 105
104
105
teatro coreográfico de tensões e Mandala de energia e danças [im]puras; da companhia Nova Dança 4, Trilogia em revista; da Caleidos Cia. de Dança, Arte em questões; da Cia. Fragmento de Dança, Pontes móveis; do Grupo Musicanoar, Musicanoar 20 Anos: deslugares?; da Cia. Perdida, Peças curtas para desesquecer (publicação digital); da Corpos Nômades, Catálogo Corpos Nômades; do Núcleo de Improvisação, Sobre o imprevisível; do Plataforma Desaba, Arqueologia do futuro; da Thelma Bonavita COMO_clube, Jardim equatorial (fascículos digitais); do Núcleo LuisFerron, Sapatos Brancos CD-ROM; de Ângelo Madureira e Ana Catarina Vieira, Em busca de novos caminhos para a dança contemporânea (textos digitais); da Cia. Danças, Caderno da Cia.; da dona orpheline | Sheila Ribeiro, Catálogo chamando ela. Nesse sentido, parece haver um ímpeto de grifar, de distintas maneiras, a existência desses profissionais da dança. Por que esse interesse? Será que ele faz parte do momento midiático em que vivemos, em que qualquer situação da vida é publicada no Facebook, no Twiter, em blog, em site…? Seria uma forma de evitar o desaparecimento, ao qual as produções estão fadadas, uma vez que, não há a cultura do registro em nosso país? Será que faz parte da famosa “contrapartida” de qualquer edital? Será que o desejo por arquivo, memória e história está latente no contexto dos artistas paulistanos? Ou…?
Uma das grandes queixas na área da dança é a falta de bibliografia. Aqui, parece haver um paradoxo, pois bibliografias vêm sendo publicadas, cada vez mais, no âmbito do fomento paulistano. Mas são bibliografias? Ao consultarmos o dicionário,1 lemos, entre as definições de bibliografia: “Disciplina que tem por objeto agrupar textos impressos segundo critérios diversos (cronológico, autoral, temático, histórico etc.), visando facilitar o acesso a eles”. No entanto, uma coisa é certa em relação a essas publicações: são documentos que permanecerão no tempo e que poderão ser consultados, já que é prerrogativa da maioria dos artistas disponibilizá-los na rede de ensino – universidades públicas e privadas que adotam a dança em seus currículos –, em bibliotecas públicas, em centros de documentação etc. Essa questão da escrita acompanha a dança há muito tempo. Sem me debruçar sobre os documentos 1 HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009, p. 284. 2 A produção dos tratados está vinculada à preocupação vigente, no Humanismo, em estabelecer regras para normatizar a vida individual e social de uma comunidade. De cunho religioso, essa prática preconizava que, através do exercício, era possível modelar o corpo, discipliná-lo, organizá-lo, agindo-se assim sobre a saúde da alma. 3 Termo emprestado da música que na arte da dança se refere a um sistema gráfico de transmissão do movimento. Substituirá, na modernidade, o termo “tratado”..
iconográficos da pré-história, sublinharei aqui alguns dos manuscritos, tratados2 e notações3 de dança datados de muitos séculos atrás. Partindo do Renascimento italiano, lembremos do primeiro tratado até agora encontrado, De arte saltendi et choreas ducendi, do italiano Domenico de Piacenza (13901470), escrito por volta de 1435. Dois discípulos de Piacenza, considerado o primeiro mestre e bailarino da história do Quatrocentto,4 Guglielmo Ebreo (1420-1481) e Antonio Cornazzano (1430-1484), também deixaram seus manuscritos: De practica seu arte tripudii (1463) e Libro del arte de danzare (?), respectivamente. Il Perfetto ballerino (1468), do italiano Rinaldo Rigoni (?), também faz parte dessa lista. Nesses tratados, buscava-se colocar no papel um patrimônio técnico que serviria à transmissão de um conhecimento, de uma prática que se pretendia conservar, já que ela era realizada no seio da corte, distante das danças tradicionais. É importante frisar que esses manuscritos, além de renovarem a transmissão de um saber (a transmissão oral era vigente à época), reivindicavam um estatuto profissional ao mestre de dança. Ele tinha o domínio da escrita de textos de dança, ou seja, tratava-se de um discurso sobre a dança que sinalizava os primórdios da sistematização de uma técnica. No século seguinte, também na Itália, Fabritio Caroso (1527?-?) escreveria Il ballerino (1581), considerado, segundo Lehner,5 nesse contexto europeu, o primeiro livro completo da história
da dança. Era dividido em duas partes: uma explicava os passos de base e suas combinações referentes a cada estilo da dança, além do comportamento que deveria ser adotado para dançá-los; a outra consistia numa série de 81 coreografias dedicadas às damas da sociedade. Diz-se que esse documento é “completo” no sentido de dispor de informações importantes, ricas em detalhes, e de ser escrito de forma a permitir uma fácil leitura, configurando-se como um sistema de notação. O fato de dar às danças o nome de uma dama tinha como objetivo a aproximação com a nobreza, uma forma de criar “clientela”.6 Nesse passeio pelos registros de dança, muitos ainda poderiam ser trazidos, como Cesare Negri (1535-1605) e seus manuscritos La grazia d’amore (1602) e Nouve invenzione di balli (1604), além daqueles que nunca foram publicados. É importante lembrar que quem financiava a publicação desses documentos era a sociedade laica, que o fazia a partir de seu julgamento de importância. Passemos para a França e lembremos de L’Art et instruction de 4 Terminologia utilizada, no século XV, para se referir ao conjunto dos eventos culturais e artísticos na Itália 5 LEHNER, Markus. “Le ‘Sermoneta Code’ ou l’anotation de la danse en Italie au XVIe siècle”. In La Notation chorégraphique: outil de mémoire et de transmission. Stipa-Montreuil, 2007, p. 25 6 NORDERA, Marina. “Pourquai s’écrire la danse? Italie XVe–XVIe siècle”. In La Notation chorégraphique: outil de mémoire et de transmission. Stipa-Montreuil, 2007, p. 17.
106
107
106
107
bien danser, considerado o primeiro livro impresso, editado no final do século XV por Michel de Toulouze (?), em Paris; de Orchésographie (1596), de Thoinot Arbeau (1520-1595); e do sistema de notação de Raoul-Auger Feuillet (1653-1710), com o título de Chorégraphie ou L’art de décrire La danse (1700), já muito próximo do sistema proposto por Pierre Beauchamps (1636-1705) (que, aliás, não foi publicado), o que fez Beauchamps acusar Feuillet de plágio em 1704. Vale frisar que Arbeau se preocupava com a transmissão da dança aos seus contemporâneos, pois, se ela não fosse escrita, estaria fadada ao desaparecimento, mesmo que cada geração produzisse o seu próprio repertório. No caso de Feuillet, seu sistema, patrocinado pelo rei Luís XIV (1638-1715), foi tomado como obrigatório na corte francesa, sendo utilizado como modelo aos outros mestres de dança do reinado. Assim, o ensino poderia ser unificado – lembrando que todos os que participavam dos bailes, no palácio, deveriam saber dançar. A dança era uma constituinte da vida na nobreza. As propostas desses escritos lançados a partir dos séculos XV, XVI e XVII, pelos mestres de dança, se vinculavam à ideia de “codificar”, de “sistematizar” modos de se dançar nos salões de baile e, posteriormente, nos balés; são manuais que forneciam e fornecem pistas para se entenderem os gestos, os passos e as músicas, como também os aspectos da vida em sociedade da época.
No Brasil, o primeiro livro lançado de dança foi o de Pierre Michailowsky (1888-1970), A dança e a escola de ballet, de 1956, publicado pelo Departamento de Imprensa Nacional do Rio de Janeiro – o que não inviabiliza a existência de outros escritos que por algum motivo não chegaram ao domínio público. Nele, o mestre e coreógrafo russo dá ênfase à história do balé europeu, destacando a proeminência do balé russo, e chega até o ensino do balé clássico no Brasil. Do ano de 1956 até os nossos dias, muitas são as publicações que vão para as prateleiras das livrarias e bibliotecas, em sua maioria contando histórias sobre a trajetória de artistas e de companhias e sobre fatos históricos que marcaram o nosso entendimento de dança. É claro que os artistas pesquisadores nacionais e internacionais dos séculos XX e XXI não estão interessados em criar manuais e tratados nos moldes dos séculos anteriores, mas podemos citar algumas iniciativas especiais e importantíssimas que pensam a dança para além de uma narrativa linear que contemple trajetórias, como as propostas por Lenora Lobo, Dani Lima, Klauss Vianna (1928-1992), Rudolf Laban (1879-1958), Marta Graham (1894-1991), Ted Shaw (1891-1972), William Forsythe, Steve Paxton, Anne Teresa de Keersmaeker, e muitos outros. Algo neles se alinha à investida anterior, à pesquisa do, no e com o corpo que dança – a dança como linguagem, que produz sentidos, que produz conhecimento, que,
108
109
108
109
portanto, comunica. E é nesse sentido que eu proponho este texto: para se pensar numa publicação que cruze saberes, que problematize, que seja indisciplinar, e não um museu com coleções de dados textuais e iconográficos de percursos. No entanto, nada impede que, mesmo que invista num conteúdo que enlace o fazer e o refletir e que busque abarcar outras áreas do saber que não somente a dança, essa proposta ainda se configure numa moldura que precise, ela também, ser repensada. Afinal, uma publicação está em estado movente, não se encerra nas suas páginas, como se estivesse trancada com um cadeado. O texto se ressignifica a cada leitura, a cada manusear, e é por isso que devemos estar atentos ao que propomos com uma publicação.
junto com, nos lampejos que estimulavam as conversas. Música, dança, filosofia, artes plásticas, performance, comida, encontros, tropeços, discussões acirradas operavam como os ingredientes necessários para uma receita que se fazia e se refazia a cada instante. Minha tarefa, neste projeto, foi entender como era possível trazer à luz tal empreitada. Não farei uma apresentação dos textos desta publicação, pois, se ela precisar de um prefácio, significa que não conseguiu comunicar a que veio.
Esta é a questão central deste livro: como dar visibilidade a um processo vivido em um projeto de dança que tinha em vista uma publicação sem que ela fique encarcerada no domínio do privado, tornando-se, em vez disso, propriedade pública? Como colocar, no papel, as experiências poéticas e estéticas vividas por um grupo de artistas, de áreas distintas, que se encontrou durante alguns jantares, trazendo cada um a sua visão de mundo para se repensar o fazer artístico? Nessa troca intensa, o “desejo” por estar ativo, vivo, inquieto era recorrente entre todos os participantes, refletindo-se na partilha, no compartilhamento, na colaboração, no estar
110
111
110
111
Embora eu acredite que eu sou eu, ... uma pessoa, com nome, sobrenome, CPF, gostos, memórias, parentes, ex-amantes, desejos, contas a pagar, frases ditas apressadamente, silêncios necessários ou indecifráveis, atividade mental acelerada, misoginia, histórias para contar, dentes um pouco tortos, cabelos caindo, pensamentos autorreferentes, timidez nas abordagens, lutos aceitos ou ainda mal resolvidos, erros acumulados, medos ignorantes, título de eleitor, reações espontâneas etc. (bota et cetera nisso), e embora eu ainda goze plenamente de minhas faculdades mentais, na verdade eu não existo. Isso, que tem tudo isso, é uma invenção. Preferiria pensar que, pelo menos em parte, é uma invenção minha. Mas é mais razoável supor que seja uma invenção majoritariamente dos outros, do mundo. Talvez prefiramos pensar que somos nossa própria criação como forma de reassegurarnos, reafirmar-nos, permanecermos lúcidos. Ilusão?
Seu Desejo é Uma Desordem Natália Barros
112
113
Tudo está misturado. O fogo arde. Os pequenos vazios circulares aparecem no fundo, unem-se aos poucos, sobem e explodem na superfície. Blop. Brindaremos com as taças e o vinho que nos une. Em breve vamos comer. Em breve terá passado. E tudo começará de novo. O desejo se coloca em movimento. Ou: o desejo é movimento. Aquilo que nos move é do terreno dos mistérios. Quando começamos esta edição d’A Cozinha Performática, havia várias questões em jogo. Como boas provocações, muitas permaneceram ao longo destes meses e geraram more&better blues. Pensou-se em produzir um ambiente no qual, embora não nos constituíssemos como coletivo, trabalhássemos em rede. As singularidades em rede constituem algo social e ao mesmo tempo se beneficiam de toda a concentração presente no individual: essa invenção de muitos. Encontros foram propostos, ocorreram e reverberaram nos participantes e na rede. O que nos move? O que se move quando eu me movo? Estava posto o convite para possíveis parcerias. Tudo aquilo que nascesse de nossos desejos criativo-estéticos. No caminho, produzimos dois ensaios fotográficos e um ensaio videográfico, registros poéticos que abriram nossos olhares para o outro; apresentamos eles numa instalação em que o público podia assistir aos trabalhos e degustar uma comidinha feita ali mesmo, na
hora, o cheiro como testemunha. Antes mesmo de a experiência se constituir com claridade, recebemos convites de trocas em outras cidades e fizemos jantares em colaboração com artistas de Goiânia e Ipatinga. Trabalhamos, depois, a partir do corpo e do movimento; começamos a compor uma obra; estamos compondo-a ainda, enquanto se escreve; é um solo de três pessoas. Também trabalhamos com a cultura digital e a analógica, pensando em Twitter e aplicativos, e isso virou/ está virando outra obra, de duas pessoas. Fizemos esta publicação que você folheia, cheia de mãos e cabeças que pensam com sua propriedade e seus talentos; são muitos os indivíduos que dela participam. Gravamos um vídeo desafiante com muitos colaboradores e participações ilustres, que queimou nossos miolos até que estivéssemos no ponto.1 Assamos o porco. Espaços compartilhados, encontros produzindo alteridades e “mesmidades”, traçando a trama dos possíveis e imaginários que nos esforçamos por controlar, inutilmente; atravessados por milhões de estímulos/bits por segundo. O corpo faz o que pode de si mesmo. Mas o faz porque pode e porque quer. Ah, os desejos de um corpo… Recomeço a me mover. Movendo, reencontro padrões corporais e descubro novos lugares. O 1 Para um olhar mais detalhado sobre o projeto, ver www.acozinhaperformatica.com.br
repertório de um corpo com passado/presente na dança carrega informações específicas mescladas às experiências da vida: e joelho partido, pé doído, coluna cheia de curvas. E determinismos, e revoltas, o aqui-agora, as presenças, as crenças, sobretudo a amarra das crenças, suas diretrizes e minha rebeldia, em permanente negociação. Ajustes. Não se entende nada. Parece arte contemporânea. Com a palavra exigimos a compreensão. Seres pensantes, ocidentais, seu apuro em busca de sentido, sua censura a tudo o que não seja racional, explicável. Não sei se nos entendemos. Imagino que sim. E se você imagina que sim, sorrimos, talvez, de uma compreensão compartilhada das coisas, afinal. O que importa é que é bom comungarmos, sorrirmos, partilharmos de uma sinapse qualquer, porque, então, de fato, existimos. Como corpo transpessoal, existimos. Sozinho, eu não existo. Como corpo pan-individual, existimos. Não como uma massa compacta que se move hipnotizada pelas promessas de um fascismo qualquer – e eles abundam. Mas como um campo de permeáveis que se tocam e percebem seus afetos. Cria-se à nossa imagem e dessemelhança. A Cozinha Performática mistura ingredientes, deixa espaços, oferece pratos cheios e outros
vazios, derruba tudo, reorganiza. Serve ou não serve. Self-serve. Acho que seria bom falar por que comecei a dançar. Não sei a resposta, já mudou mil vezes. Sei que, se não tivesse começado, já não estaria aqui. Isto eu sei: eu não tenho paciência para a densidade da matéria. A carne é fraca, o fogo vai curtindo, vai queimando; enquanto vou ardendo, a carne se mistura a outras carnes, os erros a outros erros, suas surpresas e sua ignescência. Uma escrita inscrita: O Corpo. O corpo é multidirecional, escapa-nos o seu verdadeiro mover. Tudo está no suceder. Eu, você, meus desejos, os seus, os nossos, os daqueles que não conhecemos, estamos todos no suceder. Em um momento me alegram as boas palavras. Em outro me parecem tão tolas. Reconheço o lugar arquetípico. Tento jogar com ele, já que ele certamente joga comigo. Cabe a mim equilibrar o jogo. Talvez haja, atualmente, mais radicalidade naquilo que não dizemos, naquilo que podemos escutar por dentro. No espaço-tempo que nos sustenta, algo nos reduz a pó instantaneamente. É preciso adicionar água, uma brecha, e então as coisas talvez possam voltar a ser coisas. Por isso a própria escrita clama pela dimensão poética e por seus vazios, como na frase de
114
115
114
115
Donald Schüller que citamos nesta publicação: “Deixemos para amanhã o que não é possível assimilar hoje. O prazer está nos buracos, nas falhas.” Acho que, para um trabalho em colaboração realmente acontecer, é preciso mais atenção ao espaço entre as coisas e as pessoas do que aos seus enunciados sequenciais e constantes. E tempo. É preciso tempo, pois as alteridades se cozinham em fogo lento, ou se queimam. Meu desejo é uma desordem, meu desejo é uma derrota do ego. Meu desejo é uma festa. Meu desejo é ser devorado. Meu desejo é ser desejado. Virar comida de outrem. Às vezes prazerosamente. Às vezes indigesto. Ficar dando-lhe volta no estômago, como o lento deglutir de uma jiboia. Meu desejo é célebre e desimportante. Meu desejo é o seu desejo. A Cozinha teve como ingredientes: Ana, Arícia, Artur, Bahia, Beto, Candida, Claudio, Christine , Dalva , Daniel, Danielle, Debora, Edith, Elielson, Fernando, Ferron, Francisca, Gustavo, Jaqueline, José Carlos, José Júnior, Leonardo, Lucio, Marcelo, Marcella, Marcos, Marcus, Mauro, Natalia, Osmar, Osvaldo, Rosa, Ruth, Sheila, Silvia, Talma, Waldomiro, Yuri... Antes do fim deste banquete, é provável que outros ingredientes sejam adicionados. 2 Nada como um bom dicionário de sinônimos.
O fogo segue queimando. Abrasando, ardendo, ateando, conflagrando, incendiando, inflamando, acalorando, animando, assanhando, atiçando, entusiasmando, estimulando, exacerbando, excitando, incitando, instigando, arrebatando, encantando, enlevando, maravilhando, transportando, brilhando, cintilando, fulgurando, iluminando.2 Ao final desta edição da Cozinha, teremos compartilhado sete jantares, dois espetáculos, dois ensaios fotográficos, um ensaio videográfico, uma videodança, uma publicação e uma enormidade de posts e relações em rede que seguem se articulando e relacionando saberes, sabores, aromas, odores. Frutos do desejo, desiderium, do sideral; frutos do ato de olhar as estrelas, de ouvir os ventos do espírito indomável, de ouvir o roçar das taças de vinho, de imaginar o não imaginado, de produzir realidade que dê conta da existência, de fortalecer nossos laços humanos, nossos afetos, nossos sentidos. Dividi-los com você é um risco, como cada encontro. Compartilhar os olhares pode ser irresistível. Uma paixão ou desencanto podem nos atropelar quando menos se espera. O prato está servido. É o que temos pra hoje. Marcos Moraes
116
117
116
117
Ana Teixeira é artista, professora e pesquisadora. É doutora e mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, membro do Centro de Estudos em Dança (CED), coordenado pela Profa. Dra. Helena Katz, e professora do curso de Comunicação das Artes do Corpo (PUC-SP) e do CLAC (Centro Livre de Artes Cênicas – SBC/SP). Como bailarina profissional, dançou em várias cias., entre elas o Balé da Cidade de São Paulo (BCSP), do qual também foi diretora artística assistente (2003 a 2009), e a Staatstheater Kassel (Alemanha). É membro da Associação Paulista dos Críticos de Arte (APCA).
Christine Greiner é professora do Departamento de Linguagens do Corpo da PUC-SP, onde ensina no Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica e na graduação em Comunicação das Artes do Corpo. É autora dos livros O Corpo em crise – Novas pistas e o curto-circuito das representações (2010), O Corpo – pistas para estudos indisciplinares (2005), entre outros. Atualmente prepara, com o apoio da bolsa de produtividade do CNPq, o livro O corpo no Japão – Murmúrios e reverberações.
Cláudio Bueno é artista multimídia e doutorando em Artes Visuais na ECA-USP. Apresentou sua pesquisa nas instituições Casa Tomada, Whitechapel Gallery (Reino Unido) e Humboldt University (Alemanha), e em diversas universidades brasileiras. Participou de exposições na Galeria Luciana Brito, no Itaú Cultural, no Paço das Artes, na La Chambre Blanche (Canadá), entre outros. Recebeu prêmios e apoios, como: Menção Honrosa no Prix Ars Electronica (Áustria); Prêmio Transitio_MX (México); Rumos Arte Cibernética; Videobrasil em Contexto; Festival Arte.Mov.
Dalva Aparecida Garcia, graduada em Filosofia pela Unesp com mestrado em Filosofia da Educação pela USP, é professora de filosofia no Ensino Médio da rede estadual de São Paulo e professora do Departamento de Filosofia da PUC-SP. Foi coordenadora do Centro Brasileiro de Filosofia para Crianças, em que atuou com projetos de formação de professores em diferentes áreas. Atualmente participa do Grupo de Pesquisas em Ética e Política da PUC-SP.
118
119
118
119
Edith Derdyk é artista plástica, ilustradora, educadora e escritora. Prêmios e residências: 2013 – Can Serrat, Espanha; 2012 – Prêmio Funarte Artes Visuais; 2007 – The Banff Centre, Canadá; 2004 – Prêmio Revelação Fotografia Porto Seguros; 2002 – Bolsa Vitae de Artes; 2002 – Categoria Tridimensional (APCA); 1999 – The Rockefeller Foundation Bellagio Center, Itália; 1993 – Vermont Studio Center, EUA; 1990 – Bolsa Fiat, Artes Visuais. www.edithderdyk.com.br Jaqueline Vasconcellos é artista, produtora e articuladora, atuando em ações na América Latina. Tem mestrado em dança (2012) pelo programa de Pós-Graduação em Dança da UFBA. Trabalha como articuladora cultural no Conexão ZAT (www.conexaozat.org). Ganhou diversos prêmios entre 2011 e 2013, como Klauss Vianna 2012 (Funarte), Iberescena 2010, em duas categorias, e Prêmio Meses Temáticos 2013 (Funceb). Lucio Agra é professor de performance na graduação em Comunicação das Artes do Corpo da PUC-SP, mesma instituição na qual doutorou-se em Comunicação e Semiótica. Sua produção artística mescla a poesia, a performance, a música e as tecnologias. É presidente da Associação Brasil Performance (BrP) e líder do Grupo de Estudos da Performance da PUC-SP, além de curador de algumas mostras realizadas na cidade de São Paulo (Paço da Artes, Sesc e Abrace). Marcella Haddad é fotógrafa, formada em fotojornalismo e pós-graduada pela Universidade de Cardiff, País de Gales. Paulista, residiu em Londres por mais de 20 anos, fazendo trabalhos em várias partes do mundo para grandes agências de desenvolvimento, tais como Cafod, Cese, Christian Aid, War on Want, Kinetika e, também, British Council e Arts Council. Nos últimos anos, tem incorporado a seu trabalho autoral o vídeo. Marcos Moraes, formado em dança e em técnicas psicocorporais pelo Espacio de Desarrollo Armónico – Río Abierto de Montevideo, é artista performativo, docente e produtor cultural. Ativista em prol das políticas públicas para a cultura, foi coordenador de dança da Funarte/MinC. Atualmente, dirige o projeto Cozinha Performática, uma plataforma de pesquisa e criação em dança e performance fundada na colaboração com profissionais de diversas especializações e movida pelo desejo.
Natalia Barros é escritora, cantora e paisagista. Trabalhou com os grupos XPTO (de teatro) e Luni (de música). Participou dos programas Fanzine (TV Cultura) e Telecurso (Globo). Apresenta-se num show em que canta e fala os poemas de Caligrafias, seu primeiro livro de poemas e minicontos, contemplado pelo ProAC 2011. Continua escrevendo por isso, e apesar disso. Osmar Zampieri é artista, bailarino e videomaker. Atuou em várias cias. de dança, entre elas o Ballet Stagium, o Balé da Cidade de São Paulo e o Staatstheater Kassel (Alemanha), onde iniciou sua pesquisa em vídeo e movimento. Participa da direção artística do Grupo Grua, que tem se apresentado em importantes festivais de dança e vídeo no Brasil e no exterior, entre eles a Mostra Sesc Cariri de Cultura (Ceará, 2012) e o Atelier Carolyn Carlson (França, 2013). Rosa Hercoles é eutonista formada pela Escola de Eutonia da América Latina. Foi aluna e assistente de Klauss Vianna nos anos 1980, atua como dramaturgista da dança desde 1997 e possui mestrado e doutorado em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. É professora do curso de Comunicação das Artes do Corpo, desde 2000, e chefe do Departamento de Linguagens do Corpo, ambos na PUC-SP. Sheila Ribeiro é uma artista transmídia que gosta de cruzar beleza (a sua e a dos outros) com novas tecnologias, dança, cinema, moda e saúde mental. Interessada pelas dinâmicas da comunicação contemporânea, poetiza tensões estético-políticas. dona orpheline é sua zona de colaboração. Vive e trabalha em trânsito com seu marido, Massimo Canevacci. Sheila Ribeiro é sheilaribeiro.net Yuri Pinheiro é um artista multidisciplinar paulistano autodidata, atuando desde 1991. Possui várias especializações: clarinete pela Universidade Livre de Música Tom Jobim (ULM); fotopublicidade por Talles Trigo; luz de cinema por Waldemar Lima Jr.; engenharia de som pelo Instituto de Áudio e Vídeo (IAV); web design e estrutura da informação pelo Senac; direção de fotografia para cinema pela Academia Internacional de Cinema (AIC); entre outros.
120
121
120
121
A Cozinha Performática 5
94
Quando algo começa, já está começado Marcos Moraes
O banquete Natalia Barros
15 As inesperadas configurações dos encontros Rosa Hercoles
27 A performance e o risco da inoperância do comum Christine Greiner
36 Pequeno caderno de receitas A alquimia culinária de Gordon Matta-Clark Cláudio Bueno
42
122
96 A Cozinha Performática no facebook
98 QUEIMAÇÃO Sheila Ribeiro
101 Sobre as páginas duplas de um livro em movimento Edith Derdyk
105 Dança e publicação Ana Teixeira
113
REFERÊNCIAs bibliogrÁficas
Embora eu acredite que eu sou eu, ... Marcos Moraes
55
119
conversa com Cláudio Bueno
Biografia
71
124
Entrevista com Lucio Agra
crÉditos
91
126
Café com pão Dalva Garcia
Making off
123
PROJETO A Cozinha Performática
Direção e Coordenação
LIVRO A Cozinha Performática
Créditos Adicionais (ano 2014)
Marcos Moraes
Coordenação Editorial
Ana Teixeira
Transcrição das Entrevistas Diego Marques
Concepção da Publicação
Créditos Fotográficos
Edith Derdyk
Edith Derdyk Pgs. 2-3, 4-5, 42, 43, 82, 88-89, 92-93, 94, 95, 100-101, 103, 104-105, 106, 107, 108-109, 110, 112-113, 114, 115.
Conversas na Cozinha –atividades de extensão com o livro–
Curadoria dos Jantares Performáticos
Ana Teixeira e Marcos Moraes
Ana Teixeira e Marcos Moraes
Produção Núcleo Corpo Rastreado
Produção Jaqueline Vasconcellos (Conexão ZAT)
Video Osmar Zampieri
Assistência de Câmera Daniel Lins
Direção do Solo de Dança Luis Ferron
Projeto Gráfico, Fotografia e Blog Yuri Pinheiro
Performance O Porco e o Cozinheiro Marcos Moraes
Fotografia Marcella Haddad
Ingredientes Ana Teixeira, Arícia Mess, Arthur Kohl, Beto Firmino, Candida Botelho, Claudio Bueno, Christine Greiner, Dalva Garcia, Daniel Lins, Danielle Farnezi, Debora Tabacof, Edith Derdyk, Elielson Pacheco, Fernando Huszar, Francisca Rocha, Gabriela Gonçalves, Graciane Diniz, Gustavo Garcetti, Isadora Greiner, Jaqueline Vasconcellos, José Carlos Catão, Leonardo Almeida, Luanna Jimenez, Lucio Agra, Luís Ferron, Marcella Haddad, Marcelo Burgos, Marcos Moraes, Marcus Moreno, Mauro Martorelli, Mauro Sanches, Natalia Barros, Osmar Zampieri, Osvaldo Gabrieli, Rosa Hercoles, Sheila Ribeiro, Silvia Helena Moraes, Talma Salem, Tom Monteiro, Valdemir Leite, Yuri Pinheiro, Zé Labille Favero Júnior.
Assessoria de Imprensa Leonardo Almeida
Textos Marcos Moraes Rosa HErcoles Christine Greiner Cláudio Bueno Lucio Agra Dalva Garcia Natalia Barros Sheila Ribeiro Jaqueline Vasconcellos Edith Derdyk Ana Teixeira
Assistência de Produção Talma Salem e Luanah Cruz (Conexão ZAT)
Design Gráfico Ruth Alvarez
Jaqueline Vasconcellos Pgs. 96-97 Marcella Haddad Pgs. 1, 6, 8, 11, 12-13, 14-15, 17, 19, 21, 22, 28, 30, 48, 51, 54, 60, 64-65, 66, 68, 72, 77, 80, 84-85, 102, 111, 121.
Yuri Pinheiro Pgs. 7, 9, 10, 23, 24-25, 26-27, 35, 44-45, 46, 48, 52-53, 55, 56, 57, 59, 61, 62, 63, 65, 66, 67, 69, 70, 71, 72, 73, 74, 75, 77, 78, 79, 81, 83, 84, 87, 90-91, 107, 116-117, 118, 119, 120, 122, 123 124-125 Todas as imagens referenciais foram fotografadas de livros ou extraídas de sites. GINOT, Isabelle, MICHEL, Marcelle. La danse au XXe siècle. Postface d’Hubert Godard. Paris: Larousse, 2002. Pgs. 31, 32, 33. Gordon Matta-Clark. IVAM Instituto Valencianoi de Arte Moderno, 1992 Pgs. 38, 39, 40, 41. Pig Roast: site “Collecting” (http://www.ft.com/). Matéria: Frieze Projects: Why 1970s FOOD is back on the menu. Pgs. 36-37 Comidas Criollas: site “Art Nerd New York” (http://art-nerd.com/) matéria: Matta-Clark’s Food 1971/2013 @Friezenewyork Pgs. 40-41
Desenvolvedor e Programador Digital Tatá Muniz
Site do “moma” http://www.moma.org/ Pg. 40 Site “Station to Station” http://stationtostation.com/gordonmatta-clarks-food/ Pg. 41
Fotografias Edith Derdyk Jaqueline Vasconcellos Marcella Haddad Yuri Pinheiro Revisão Juliana Miasso
O projeto A Cozinha Performática é realizado de forma colaborativa. Todos os integrantes participaram artisticamente de sua criação, pelo que estamos profundamente agradecidos.
124
125
www.acozinhaperformatica.com.br
Este projeto foi realizado com o apoio do Programa Municipal de Fomento a Dança de São Paulo
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Moraes, Marcos A cozinha performática [livro eletrônico] / Marcos Moraes. -- 1. ed. -- São Paulo : Árvore da Terra, 2015. 63 Mb ; EXE e APP.
Apoio
Vários colaboradores. ISBN 978-85-85136-37-6 (EXE) ISBN 978-85-85136-42-0 (APP) 1. Arte 2. Arte e dança 3. Dança 4. Expressão corporal 5. Projeto A Cozinha Performática I. Título. 15-06401
CDD-792.8
São Paulo 2015
Índices para catálogo sistemático: 1. Dança : Artes : Ensaios 792.8
124
125
126
127