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TIÃO ROCHA, “ O R E I N V E N T O R D A R O D A” C A R LOS R IB A S
Missão difícil essa de que me incumbiu a direção da “Pequi Magazine’: escrever sobre Tião Rocha, educador, antropólogo e folclorista. Não porque ele não nos dê subsídios pra isso; muito menos por não nos dar inspiração. Justamente pelo contrário. Justo por ser uma figura que nos oferece tantas possibilidades de abordagem...
T IÃO R O C HA - O reinvento r d a ro d a
Tião Rocha, educador por excelência, tem rica trajetória de vida, sobretudo nas ações que desenvolve em busca do crescimento do ser humano e da preservação de seus melhores patrimônios: o meio ambiente e a cultura popular. Por isso vi dobrada a responsabilidade de escrever sobre ele. Então me apropriei da manchete de uma entrevista que ele concedeu a uma revista de grande circulação nacional, por acreditar que nada melhor que ela expressaria essa entrevista da PM. E me apropriei também de um texto meu, feito para um especial que dirigi para o jornal Estado de Minas, TV Alterosa e Banco BMG, no qual ele foi escolhido como um dos “Mineiros de Ouro”. Como disse, escrever mais sobre hão Rocha é chover no molhado. Reitero, porém, que ainda são poucas as loas para homenageá-lo. E, pro sertão, toda chuva é bem-vinda. Ele merece mais, muito mais. Mas acredito que o próprio Tião, que já é nacionalmente conhecido (como entrevistado ou como tema de importantes programas em rede nacional, a exemplo de “Roda Viva”, da TV Cultura de São Paulo; “Gente que Faz”, “Criança Esperança”, dentre outros), talvez prefira o anonimato (terror das celebridades) à frivolidade das ribaltas (caminho contrário ao que ele escolheu). Como bom mineiro, prefere a retaguarda e as grandes ações. E as suas são verdadeiramente grandes. Afinal, investe na construção da base dos valores da cidadania e do futuro projetado nessas bases, muitas vezes utópicas, mas que com ele ganham contornos de realidade. Segue, portanto, o textinho que fiz e, na sequência, a entrevista concedida por ele à PEQUI, com exclusividade. Boa travessia...
Tião e a roda A roda se distingue por não ter ângulos. Utopia! Pois foi nela que Tião Rocha se inspirou pra criar seu projeto de educação. Educador por mérito, sonhador por ofício, não é à toa que ele é tão condecorado. Proativo, criativo, ativo no ideal de formar: priorizou o “Humano”. Nato! De Belo Horizonte resolve conquistar o mundo. Seguiu as entrelinhas do “Rosa” e foi parar no “Grande Sertão”... Confirmou que o início e o fim da “Travessia” vinha de lá... Nonada! Fez-se a luz
Pequi do saber! Cidadania, coletividade, caráter, cultura e ação projetada, eis o moto-contínuo dos valores que Tião acredita e reinventa, como um verdadeiro Dom Quixote do Sertão.
ENTREVISTA PEQUI - Você pensa a educação de forma revolucionária. Essa postura lhe traz ou já lhe trouxe contratempos? TIÃO - Não sei se sou de fato revolucionário. Pelo menos não me considero como tal. Agora, desde sempre percebo que a educação precisa mudar. Já aos 7 anos, sofri verdadeiro trauma. Na sala de aula, a professora começou a ler passagens do livro “As mais belas histórias”, de Lúcia Casassanta. A narrativa se iniciava assim: “Era uma vez, num reino muito distante, um rei e uma rainha”. Então eu disse: “Professora, eu tenho uma tia que é rainha”. Ela me repreendeu e mandou que eu ficasse quieto. Depois me disse que isso não existia, era história da carochinha. Da terceira vez, foi mais ríspida, ordenando-me que calasse a boca. Por fim me levou à sala da direção, argumentando que eu estava atrapalhando a aula. A diretora ameaçou chamar minha mãe, me transferir, me expulsar, essas coisas. Fiquei tão traumatizado, que deixei de tocar no assunto por um bom tempo. No ginásio, tudo se repetiu. O professor de História falava sobre os reis de Portugal. Então eu lhe contei da minha tia que era rainha. E ele: “Não me encha o saco, meu filho. Olhe seu nome, sua cor...”. Fiquei calado. Tempos depois, em Ouro Preto, eu me dei conta de que não conhecia nada sobre aquela cidade. Lembrei-me de minha tia rainha, já falecida. Em Belo Horizonte, decidi estudar História. Depois fui fazer Antropologia. PEQUI - Afinal, a sua tia reinava onde ou em quê? TIÃO - Ah, sim. Essa minha tia foi rainha perpétua do congado, e eu tinha muito orgulho de ter uma tia assim: uma rainha de carne e osso, que me punha no colo e me levava aos festejos da irmandade. E eu nunca pude falar disso na escola. Esses episódios me fizeram perceber que educação e escola são coisas distintas. Escola é meio, enquanto educação é fim. Talvez o fato de separar escola de educação, isto sim, seja algo de
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revolucionário, como foi dito há pouco. É muito nítido para mim: a educação, ou seja, o aprendizado, não tem de se dar necessariamente na escola, entendida aí como espaço físico. PEQUI - O projeto Sementinha, criado e desenvolvido em Curvelo, foi uma iniciativa pedagógica das mais aplaudidas. Como surgiu? TIÃO - Surgiu exatamente disso que eu acabo de contar. A gente se fez uma pergunta: Seria possível fazer educação sem escola? Haveria como fazer uma boa educação debaixo de um pé de manga? Respondemos positivamente: sim, é possível. Aprendemos com isso que o fundamental na boa educação são os bons educadores. Essa nossa experiência pedagógica virou política pública sistematizada e premiada. Hoje está implementada em mais de 20 cidades, 5 estados e 3 países. PEQUI - Ainda existe, no meio acadêmico, preconceito em relação aos saberes populares? TIÃO - A escola, ao longo dos tempos, tem baseado seu currículo no conceito da academia, que é eminentemente elitista e se guia pelas próprias verdades, ditas científicas. A academia torce o nariz para tudo que é do conhecimento popular. Por isso, o preconceito em relação ao nosso trabalho (que eu não considero trabalho, mas diversão) ainda existe, sim, e é muito grande. Os preconceituosos são os que se julgam donos do saber e se sentem ameaçados pelo diferente. Não tenho e nunca tive a intenção de bater de frente com quem quer que seja. Só entendo que nossas crianças têm direito tanto à sofisticação da tecnologia de ponta quanto à riqueza da tradição oral, dos brinquedos, das cantigas. PEQUI - Esse preconceito já lhe trouxe dissabores (perseguições políticas, por exemplo)? TIÃO - E como! A visão que temos sobre questões educacionais incomoda. Em Curvelo mesmo, quando começamos a desenvolver o Sementinha, eu fui considerado persona non grata, inimigo público número 1. Diziam que eu era comunista e perigoso. Na época, congregamos muitas pessoas da comunidade em torno da causa da educação, e isso “ameaçava” a tranquilidade de algumas figuras detentoras de cargos públicos. Levou um bom tempo pra essa turma reacionária perceber que não estávamos atrás do poder pelo poder, do poder político-partidário. Queríamos a afirmação do povo na sua cultura, na sua identidade, na sua autonomia. PEQUI - Qual o segredo do sucesso de iniciativas como o Ser Criança, o CPCD e a Dedo de Gente?
TIÃO - Insistimos em que nunca quisemos pura e simplesmente contestar alguém, isto ou aquilo. Não. Sempre nos preocupamos em buscar a aprendizagem. A gente formula perguntas, identifica os desafios e corre atrás do aprendizado. O projeto Ser Criança, por exemplo, surgiu quando tentávamos responder à pergunta: É possível a meninada aprender brincando, por meio da roda, da amarelinha, do futebol, da peteca etc., de forma alegre e prazerosa, ou só é possível aprender mediante a técnica medieval do sofrimento, da chatice, tipo serviço militar obrigatório aos 7 anos, ou aos 6, como querem hoje? Concluímos que é possível, sim, aprender brincando. Na brincadeira, a criança estabelece relações de grupo, aprende a utilizar o espaço e a conviver com as diferenças, desenvolve a disciplina, os códigos de conduta. Agora, a brincadeira não deve ser transformada em algo chato. Você não deve dizer: “Faça música para aprender matemática”. Isso não. Tudo tem de se realizar com prazer, com espontaneidade. É por causa dessa nossa visão que os projetos dão certo. Costumo dizer que, na Dedo de Gente, não somos criadores de produtos para o mercado que aí está. Somos criadores de formas. Buscamos um novo jeito de ver as coisas, as sucatas, os objetos retirados do lixo, dependendo da maneira como manuseamos essa matéria-prima: madeira, ferro, papel, tinta etc. Se o que criamos se tornará um produto vendável, aí são outros quinhentos. O segredo do sucesso da Dedo de Gente talvez seja isto: a Cooperativa não atua no mercado formal, mas cria o próprio mercado, com inovação e respeito ao meio ambiente. E vale ressaltar: sem nenhum discurso eminentemente ambientalista. Tudo na prática mesmo. PEQUI - Para encerrar, diga-nos como se sente hoje. O Tião continua brincante? Está realizado? TIÃO - Não, não me sinto plenamente realizado ainda. Tenho muito a fazer e a aprender. Ou melhor: temos. É extensa a nossa plataforma de desenvolvimento social, elaborada a partir da experiência de Curvelo. Há muitos desafios a serem vencidos. Continuarei brincante a vida inteira. Já disse e repito: não encaro o que faço como trabalho, mas como uma gostosa brincadeira. Se houver tempo e eu der conta, ainda brincarei muito (risos).