Gisele Jord達o renata r. allucci
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Coral Meninos do Araçuaí, Grupo de Teatro, Universidade de Música Popular e uma legião de “operários” transformaram a cidade de Barbacena, no interior de Minas Gerais, em um dos maiores centros de cultura do País. Por Gustavo Novo • Fotos: Paulinho de Jesus 111
Quem visita os casarões da antiga Sericícola – primeira fábrica de seda do País –, restaurados e preservados sob a tutela do Ponto de Partida, se espanta com a organização, beleza e movimentação no local. Transitam por lá alunos com seus instrumentos musicais, livros e mochilas; além de músicos consagrados e atores. O lugar respira cultura – e ar limpo da região montanhosa de Barbacena, interior de Minas Gerais. Ali, em dois casarões do século XIX, estão instalados dois projetos da companhia: o Grupo de Teatro e a Bituca – Universidade de Música Popular, uma escola gratuita que atende mais de 180 jovens músicos de 72 cidades diferentes do Brasil. Mas o Ponto de Partida não limita a sua atuação apenas à sua vocação artística: traz um comprometimento visceral com a sua cidade, região, estado e País. Um exemplo disso surge sem querer, durante a produção desta matéria. No segundo dia de acompanhamento do grupo, dentro de sua sede administrativa, o telefone tocou com a denúncia de uma queimada, provavelmente criminosa, nas redondezas. Com a notícia, dois atores partiram para impedir um estrago maior às matas ainda preservadas da região. Em quinze minutos, as chamas estavam apagadas. Este é apenas um exemplo da visão que o Ponto de Partida tem de seu papel social. Apresenta, um pouco, o engajamento de seus integrantes e de uma mentalidade que torna arte e artistas elementos mais próximos de um processo de transformação mais amplo em sua comunidade.
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“A nossa primeira sacada foi não nascer como um grupo de teatro, mas sim como um movimento cultural.” Regina Bertola
De Meninos de Araçuaí à Universidade de Música O nome Bituca é uma referência ao apelido de infância de Milton Nascimento – uma espécie de padrinho musical da Universidade de Música Popular de Barbacena. O cantor conheceu o grupo pelo trabalho realizado ao lado do Centro Popular de Cultura e Desenvolvimento na formação do coral Meninos de Araçuaí, no Vale do Jequitinhonha. Em 2002, juntos, estrearam o espetáculo “Ser Minas tão Gerais“. Desde então, o músico acompanha de perto o trabalho realizado também na cidade-sede. “Quando as pessoas conhecem nosso trabalho, elas se encantam e não se desligam mais”, orgulha-se Regina Bertola, diretora do grupo. Pitágoras Silveira estava entre os primeiros adolescentes a fazerem parte da Casa de Morada – projeto que oferece lar a jovens do coral que demonstram condições técnicas para estudar na Bituca e que têm o desejo de seguir na carreira artística. Lá passou a aprofundar seus estudos em música. Pianista e colaborador da Universidade de Música Popular, ele ainda fazia parte do projeto Meninos de Araçuaí quando viu pela primeira vez um piano. Foi na casa do mestre, Milton Nascimento. “Ele (Milton) começou a tocar e aquele som era lindo. Fiquei prestando atenção nos movimentos. Quando parou, disse que a gente podia brincar com o piano. Comecei a tocar. Ele voltou e perguntou: ‘quem te ensinou a tocar isso aí?’ Eu
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respondi que nunca tinha visto um piano na vida”, lembra Silveira. Quando voltou para casa, outra surpresa: um teclado. Presente do mestre. Regina, que os acompanhava, lembra. “Ele disse para mim: ‘é obrigação sua fazer esse menino continuar estudando música’. Talvez um pouco da Universidade de Música Popular gratuita tenha sido gerada naquele momento”.
Um presente para Araçuaí O grande investimento na formação musical dos meninos e meninas do coral – sob a direção de Gilvan de Oliveira, que também é um dos mestres na Bituca – logo trouxe frutos. Os espetáculos, CDs e DVDs alcançaram enorme sucesso. O grupo passou a ter dinheiro para novos investimentos. Após levantarem aproximadamente 40 propostas – todas relacionadas à cultura –, decidiram que a cidade precisava de um Cine Teatro. A verba não era suficiente, mas eles adaptaram o projeto, buscaram novos parceiros e, durante as comemorações pelos dez anos do Meninos de Araçuaí, em 2008, deram de presente para Barbacena o primeiro cinema da região – com 105 lugares, projeção em 35 mm, som de alta qualidade e ar condicionado. O espaço ainda conta com uma galeria de artes, ambiente para convivência, sala para produção de vídeos e adotou à sua arquitetura peças artesanais produzidas pela Cooperativa Dedo de Gente – programa que atende jovens do Vale do Jequitinhonha e norte de Minas de Gerais, hoje com dez fabriquetas que valoriza a cultura local a partir da educação profissional.
O nascimento de uma fábrica de sonhos
Fábrica de sonhos
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Entre mestres, alunos, atores e colaboradores, são aproximadamente 250 pessoas e inúmeras histórias, sonhos e realizações que giram em torno do Ponto de Partida. Ronaldo Pereira é outro exemplo. De fã, tornou-se integrante do grupo teatral. Ele participou do projeto de renovação realizado em 2004, a “Casa de Arte&Ofício“, e foi um dos seis escolhidos após três anos de curso intenso. “Quando abriram as inscrições eu sabia que era uma oportunidade única”, conta. Na época, com 17 anos, Ronaldo logo percebeu outra forma para estudar arte. “Eu tive um choque muito grande quando vim da escola para cá. A escola trata questões como a leitura e a formação cultural de uma maneira muito quadrada. Aqui todo mundo participa, indica livros, discute textos, troca ideias”. O nome do grupo, aliás, define bem o início do projeto. “Barbacena não tinha nem time de futebol nem banda de música”, conta Regina. “A nossa primeira sacada foi não nascer como grupo de teatro, mas sim, como um movimento cultural”. Seus idealizadores, aproximadamente 20 pessoas, evitaram se aliar com os grupos políticos que dominavam a cidade naquele tempo. “Entendemos que deveríamos fazer, em primeiro lugar, formação de público. Precisávamos conquistar a população. Sabíamos que nossos primeiros aliados deveriam ser as pessoas, não as instituições”, reforça. A cidade é localizada num ponto estratégico: entre Belo Horizonte e Rio de Janeiro e não tão longe de São Paulo. “A gente percebia que tudo passava por Barbacena, mas nada acontecia aqui. Então tínhamos duas alternativas: fazer acontecer ou ficar a vida inteira reclamando”, explica a diretora. Então, aqueles jovens idealizadores passaram a batalhar para colocar a cidade no roteiro cultural do País. E deu certo. Nomes como Paulo Gracindo, Plínio Marcos, Fernanda Montenegro, Elba Ramalho, Luiz Gonzaga e João Bosco, entre outros, passaram a fazer parte das atrações da cidade. Em paralelo a isso, começam a desenvolver novos modelos de encontros, em alguns casos destinados a menores plateias, com artistas menos conhecidos do “grande público”. Enquanto o projeto “Roda Viva” convidava intelectuais para discutir aspectos da vida sociais e políticos do País, o “Bar em Cena” nascia para receber apresentações mais intimistas de artistas competentes, mas ainda distantes dos “holofotes” das grandes mídias.
“A escola trata questões como a leitura e a formação cultural de uma forma muito quadrada.” Ronaldo Pereira
Trabalho em rede Leis de incentivo à Cultura estadual e federal são fundamentais para manter empresas ao lado dos projetos do grupo. Em 2011, Natura, Cemig, Vivo, Usiminas e Vale foram as principais mantenedoras do Grupo de Teatro Ponto de Partida, Bituca e Meninos de Araçuaí. Em 2012, Natura, Cemig, Vivo, Copasa e Vale são as responsáveis por manter os projetos. O processo para atrair novos parceiros, em geral, acontece a partir de editais que, segundo Pablo Bertola, colaborador e filho de Regina, “são formatados de um jeito que deixa todos os projetos iguais”. “Como eu vou apresentar de uma maneira fiel o meu trabalho do jeito que são ‘quadrados’ os editais?”, questiona. Apesar do ótimo time de patrocinadores, os cidadãos da cidade, seus primeiros aliados, ainda são peças fundamentais para tornarem possíveis os sonhos do Ponto de Partida. “Atualmente fala-se muito em trabalho em rede. Nós fazemos isso há muito tempo. Entendemos que isso não era só uma forma de sobreviver, mas uma maneira de construir uma plataforma com os nossos valores, com possibilidade de transformação efetiva”, explica Regina. E esta é a função do CAPP – Clube de Amigos do Ponto de Partida –, que há 25 anos, demonstra a importância e carinho que os barbacenenses têm com o grupo. O número de colaboradores se aproxima de mil em cada ação. Pessoas que permitem que esta “fábrica de produzir sonhos”, como Regina define, não feche as portas para a produção de “seus operários”, e que possa, assim, continuar “realizando o impossível”.
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ISBN 978-85-61020-04-0
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