CRACOLÂNDIA TERRITÓRIO DO
ABRAÇO
LINCOLN SPADA
Adesaf - Associação de Desenvolvimento Econômico e Social às Famílias
CRACOLÂNDIA TERRITÓRIO DO
ABRAÇO 1ª EDIÇÃO SANTOS 2016
Copyright © 2016 by Lincoln Spada Direitos desta edição reservados por Adesaf – Associação de Desenvolvimento Econômico e Social às Famílias Edição, Projeto Gráfico: Márcio Barreto Revisão: Fabíola Girardin Preparação: Bruno Nunes Fotos: Bruna Stephanie e equipe da Adesaf Capa: Edu Fernandes A capa deste livro foi inspirada na obra da beneficiária Fátima Reis, que, durante as atividades do DBA, fez uma pintura em tela baseada nos traços do pintor Pablo Picasso. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
___________________________________________________________ Spada, Lincoln, 1991 – Cracolândia : território do abraço / Lincoln Spada. – – 1. ed. – – Santos, SP : Imaginário Coletivo, 2016. Bibliografia ISBN: 978 – 85 – 5749 – 001 – 7 1. Adesaf – Associação de Desenvolvimento Econômico e Social às Famílias – São Vicente (SP) – História 2. Drogas – Abuso – Obras de divulgação 3. Organizações não–governamentais 4. Políticas públicas – São Paulo (SP) 5. Programa de Braços Abertos – História 6. Serviço social 7. Viciados – Assistência em instituições 8. Viciados – Reabilitação I. Título. 16 – 00143 CDD – 362.29 ___________________________________________________________ Índices para catálogo sistemático: 1. Drogas : Abuso : Problemas Sociais 362.29 Tiragem: 1.200 exemplares Imaginário Coletivo Avenida Bartolomeu de Gusmão, 85/608, Aparecida | 11045-401 | Santos | SP | Brasil 55 (13) 3467-4387 | mb-4@ig.com.br
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Prefácio Se fosse um livro de poemas, eu pediria ao autor desta publicação, Lincoln Spada, uma breve licença poética para, democraticamente, dar “pitacos” nestes textos traduzidos por ele a partir da observação no campo de batalha, ou melhor, em Campos Elíseos. No campo, onde colhemos experiências, histórias, emoções e fôlego. Muito fôlego para seguir em frente através de túneis que deram vazão a personagens reais, abalando a estabilidade da consciência de todos que, de alguma forma, ousaram olhar de frente e toparam o mergulho na complexidade dos usuários de substâncias psicoativas que vivem na chamada Cracolândia. Então, se não é uma obra de gênero literário poético, pode estar longe de se enquadrar em uma classificação de ficção científica, drama, suspense, terror ou autoajuda? Poderia ser um mix, ou mais do mesmo, considerando horas afinco que o autor se dedicou a entrevistas e pesquisas (cultural, histórica e política) para contextualizar o leitor sobre diversos aspectos, que culminaram na formação da Cracolândia, na implantação e nos progressos do programa De Braços Abertos (DBA) – iniciativa da Prefeitura Municipal de São Paulo, relatando o comportamento estatal e da imprensa sobre o tema, além de informar acerca dos efeitos e da chegada do crack no Brasil. Embora eu não tenha conhecimento técnico ou competência acadêmica específica que me capacite quanto à sugestão da linha de gênero desta obra, solicitei ao amigo Lincoln, por muitas vezes, a tal “licença” que poderia fazer com que qualquer “expert” em literatura ficasse irritado. Afinal, foram muitos pedidos ansiosos para incluir um assunto, personagem ou capítulo. Meus frequentes pedidos basearam-se no receio de que alguma passagem daqueles dois anos ficasse fora. Ainda bem que a gentileza do CRACOLÂNDIA: TERRITÓRIO DO ABRAÇO – Lincoln Spada (Imaginário Coletivo) – Adesaf
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autor me permitiu algumas “orelhadas”. Mesmo assim, não caberiam neste livro todas as centenas de histórias marcantes e emocionantes vividas lá. No entanto, é confortante concluir que as vivências foram capturadas e compactadas em flashes e déjà-vu que a memória generosamente guardou em instantes, para que jamais nos esqueçamos. Emoções e lembranças tão intensas e profundas quanto àquelas sobre a dedicação e a sensibilidade de cada colaborador da Adesaf, que se aventurou em Campos Elíseos. Aliás, aproveito-me novamente e, agora, sem pedir licença, para quebrar o protocolo do livro e colocar, aqui, meus agradecimentos especiais pela companhia aguerrida na árdua caminhada da Adesaf, nos últimos dois anos, quando toda a equipe esteve ainda mais unida. Nós sabemos! Aqueles que, pela coragem e lealdade, serão lembrados com orgulho. Muitas outras passagens e pessoas merecem destaque pelo trabalho acelerado, em ritmo frenético, para manter em pé a nossa gestão no DBA, como carinhosamente foi apelidado o programa. Por isso, não poderia deixar de citar Sandra Faé, secretária adjunta municipal da Secretaria do Desenvolvimento, Trabalho e Empreendedorismo (SDTE), gestora institucional do convênio firmado com a Adesaf. À frente da gestão governamental do DBA, ela esteve firme na empreitada de fazer acontecer o programa. Inúmeras vezes, Sandra deixou transparecer – com sua paciência histórica – palavras, gestos, cobranças e, muitas vezes, lágrimas, o sentimento latente para a verdade revelada. O DBA é uma grande missão, daquele tipo que só se sustenta quando há um desejo real de transformação social, solidariedade, compromisso e consciência política, impossível de dissimular ou ludibriar. Apenas se conecta com quem acredita verdadeiramente na capacidade que o ser humano tem de se reinventar e contribuir para um mundo melhor. A ideia inicial do livro era apresentar ao leitor um único ângulo para descrever a atuação da Adesaf no DBA, no entanto, o autor acabou instigado a ampliar seu leque de pesquisa e observação, movido, claro, pela CRACOLÂNDIA: TERRITÓRIO DO ABRAÇO – Lincoln Spada (Imaginário Coletivo) – Adesaf
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curiosidade e interesse que lhe são peculiares, mas, especialmente, por outra razão. Por perceber, assim como eu e todos que convivem no território, que a nossa participação no universo de tantas e tantas ações que são desenvolvidas, ali, representa uma pequena parte da trama que compõe a corda – nem tão invisível assim – que cerca a Cracolândia e demarca impiedosamente a linha entre aqueles que preferem não ver e aqueles que se beneficiam das condições dos que habitam ou frequentam o local. Para que lado essa corda vai estourar? Surgiram tantas perguntas... Por isso, é para ser apreciada com o espírito e a mente bem abertos: uma imersão na obra. Para tanto, será preciso até optar entre machucar ou não o coração, despir-se de preconceitos e evocar um dos mais sublimes sentimentos: o amor que não julga, não pune, não impõe e, especialmente, não discrimina. Com este espírito, ainda que não tão aguçado à época, foi que me deparei diante da decisão de submeter toda a equipe aos riscos e à pressão em trabalhar com um programa tão marginalizado por boa parte da sociedade. Em 24 meses, por todos os dias, houve dúvidas e receios de encarar o desafio da gestão; o entendimento superficial e, às vezes, deturpado, de tradicionais veículos de comunicação; o território; as consequências; o meu futuro, e o da Adesaf, depois do DBA. Parecia tão óbvio, e a certeza de desistir me convencia no caminho de volta, ao volante, na descida da Serra do Mar que separa a Baixada Santista da Capital, a cada dia que retornava de Campos Elíseos. Mas a maior angústia era quando as certezas chegavam durante as minhas longas noites em claro, em que tratava seriíssimas conversas comigo mesma a respeito de tudo e todos que habitam a dimensão do DBA.
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Certas lembranças até pareciam insignificantes, quando bem antes da experiência do DBA, vinha à mente a história de superação de um amigo meu. Ele trocou a busca das drogas pela busca da qualidade de vida de uma cidade inteira, da qual será o maior protagonista. As lembranças, sem que eu entendesse bem, não chegavam por acaso. Vinham para pesar na balança e para inspirar mais. Era possível, real, mais uma inspiração! Para estar no DBA é preciso acreditar! Nas inspirações, dúvidas e todo o cenário hostil que o território do DBA apresentava, tentava achar respostas, até na conjuntura astral, que pudessem explicar o porquê de continuar – embora tudo jogasse contra a decisão de permanecer à frente de um programa tão complexo – e não tirar o time de Campos Elíseos. As respostas não vinham dos céus, mas poderiam ser comparadas às estrelas pelo brilho escondido no olhar de vários beneficiários do DBA. Aliás, foi a rajada de um brilho escapado destes que me deu um sinal no primeiro dia em que pisei no território. Fazia sol naquela quarta-feira do 1º dia de outubro. Estava com tanto medo que parecia que o céu estava sem cor. Em frente ao prédio que seria a sede da Adesaf/DBA, eu levantava a cabeça mais do que o necessário, pois o prédio parecia ser mais altivo do que realmente era. Os três lances de escada tinham mais jeito de via sacra, do que, de fato, de degraus que me levariam a começar um bom trabalho com a equipe recém-formada da Adesaf São Paulo. Em meio a papéis, rostos novos e uma avalanche de informações, concretizava-se o início da transição da gestão do DBA para a Adesaf. Depois de horas, com a mente atordoada devido a tanto falatório, desci para um costumeiro cigarro na companhia de João, morador do território, já conhecido no DBA e, então, novo funcionário da Adesaf, que auxiliaria nos serviços gerais da sede. Apelidado de João, ele também faz questão de ressaltar com orgulho o seu nome de batismo, porque foi escolhido por sua mãe. E durante todo tempo, aqui, o chamaremos de João, como Leila é conhecida por todos. CRACOLÂNDIA: TERRITÓRIO DO ABRAÇO – Lincoln Spada (Imaginário Coletivo) – Adesaf
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Seu jeito era sisudo, com ares de “não me toque”. Ele fazia questão de simular um campo magnético em volta de sua pouca altura para manter a fama de “poucos amigos”. Em fração de segundos, aquela “rajada” que escapou revelou a amenidade no olhar de João, a primeira pessoa que amei na Cracolândia. Tudo parecia melhor depois de João. Mas, no dia seguinte, ao cair da noite, ainda estávamos lá tentando encontrar o fio da meada para iniciar a nossa gestão, quando fiquei sem ação ao receber, com Brandão, coordenador do programa, e outro colaborador da Adesaf, a primeira ofensiva de um beneficiário do DBA: pois este acreditava que, desse modo, estaria defendendo seu território. Nesta altura, eles ainda não sabiam quem nós éramos. Tratavamnos como intrusos em uma terra que achávamos ser de ninguém. Aos poucos, entre conflitos e muito diálogo, foram se estabelecendo a confiança, os vínculos e a autoridade – sem autoritarismo. Encontramos a linha condutora que definiria o nosso modo de gestão no DBA. O respeito pelos beneficiários e por todos do território deu-nos a possibilidade de ficar. Com os beneficiários, estabelecemos regras e mecanismos para que o controle e a transparência na gestão do programa fossem capazes de fortalecer a iniciativa municipal e que, principalmente, tivessem como premissa a convivência honesta e próxima com eles. Seguia o primeiro ano no DBA, com o suporte diário e as madrugadas adentro da equipe Adesaf São Vicente e o trabalho incansável do time de São Paulo. A expectativa de êxito parecia prosperar, mesmo que tudo não fossem flores. Contudo, no ano seguinte, o massacre de grande parte da imprensa ainda não dava trégua. O fenômeno que tomava o País contra os “políticos” e a corrupção, que, estranhamente, parecia ter um só endereço, criava uma legião de “técnicos e especialistas em políticas públicas”. Em consonância com a dita grande mídia, a expertise dessas pessoas crescia vertiginosamente e atacava em cheio programas sociais, CRACOLÂNDIA: TERRITÓRIO DO ABRAÇO – Lincoln Spada (Imaginário Coletivo) – Adesaf
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como o DBA, e, de quebra, tentava afetar a dignidade humana dos beneficiários. Declarações, matérias e postagens em redes sociais golpeavam e colocavam em risco todo o esforço e todas as conquistas que os beneficiários e a equipe tiveram até ali. Em pleno processo eleitoral, as críticas destrutivas não apontavam uma melhor alternativa sobre política de redução de danos, e os discursos vazios eram enxertados com palavras de ofensas à população da Cracolândia e aos beneficiários do DBA. Quase como uma ação de rebote, na primeira quinzena de setembro de 2016, a Adesaf realizou, com a Secretaria do Desenvolvimento, Trabalho e Empreendedorismo, a 1ª Exposição Por Dentro do Abraço. O objetivo era elevar a moral tão ferida dos beneficiários que participaram de todo o processo de construção do evento, além de dar visibilidade a tudo que foi produzido por eles nos dois anos de gestão da Adesaf no DBA, pelo âmbito do trabalho. As más notícias de que grande parcela dos políticos repudiava o DBA não abalaram o empenho e a presença dos beneficiários nas atividades do programa, tampouco tiraram o brilho e o entusiasmo dos dias em que se deleitaram na exposição – ação na qual eles eram atores principais do filme que passava na cabeça de cada um, ao apreciar suas obras expostas, e que estavam à disposição para quem quisesse ver. Mas alguns não viram. Aqueles “políticos” e “especialistas” (ah!) não foram até lá. Era a prova incontestável e materializada de que é possível o estabelecimento de pactos de compromisso para a construção de uma nova política pública, que tenha como protagonista o próprio usuário. Onde será que os beneficiários estavam antes da produção das telas e esculturas? Antes do mapa que quantificava a distância em metros de quanto varreram e colaboraram para a limpeza urbana? Onde estavam antes do DBA? A equação era simples. Ao menos, o que conforta, é que naqueles dias da exposição não esperávamos esses especialistas, e, sim, os “matemáticos”.
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Não foi diferente no mês seguinte, quando a atividade de Formação Cidadã Cultural, comum à rotina do DBA, foi tomada pela manifestação pacífica e legítima dos beneficiários que se sentiam ameaçados pelo prenúncio do término do programa. No mesmo casarão que abrigou a exposição, o sentimento, agora, era de defesa pela continuidade do DBA. A escrita virou a arma dos beneficiários, que apontava em mira certeira para o papel onde recebeu a “bala”, com o intuito de atingir a sensibilidade de todos que, por “vocação”, já deveriam saber o que aquelas palavras queriam dizer. Diferentemente de quando chegamos ao programa, nenhum beneficiário se importava mais em aparecer. Inclusive, eles próprios solicitavam o registro fotográfico ao executar suas atividades, ao lado de suas criações, com seus colegas e membros da equipe da Adesaf. Era o resultado do processo de ressignificação da vida, da autoimagem, do acolhimento, do território, do abraço... Efeitos do DBA! Em meio aos cliques eloquentes das máquinas fotográficas e aparelhos celulares, a exposição transcorria tranquilamente quando a euforia, não aquela causada pela droga, dava lugar ao objeto mais cobiçado pelos beneficiários: o microfone. Havia quem desejasse usá-lo e aqueles que esperavam ansiosos as canções que embalariam aquele dia tão especial. Começou com o improviso dos beneficiários, que se revezavam cantarolando de clássico popular a rap de própria autoria. As letras tinham como preferência aquelas que expressavam suas próprias histórias, ou, as que representavam a história de vida a qual se empenhavam ter. Márcio chamou minha atenção desde o primeiro dia em que o conheci no programa. Foi neste evento, quando cantou, que me encantou, assim como de outras maneiras também me encantaram Cleiton, Sueli, Sorriso, Gaspar, Leandro, Dagoberto, Marcelo, Andrea, Fernanda e tantos outros que escancararam suas potencialidades e particularidades, demonstrando abertamente seus anseios e expectativas. Eles me deixaram – e se deixaram – aproximar. CRACOLÂNDIA: TERRITÓRIO DO ABRAÇO – Lincoln Spada (Imaginário Coletivo) – Adesaf
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Faziam com que cada vez mais eu me empenhasse em ficar, com o foco na dedicação pela continuidade do programa, visto que, em pleno período de transição do comando da Prefeitura de São Paulo, nós não podíamos perder as esperanças frente à posição declarada do mais novo gestor da Capital. Com suas árvores e paisagem tranquila, o Museu da Energia, casarão que fica no entorno da Cracolândia, destoava do clima do burburinho do território. Foi o local que recebeu as atividades da mostra, as telas, as esculturas e os vasos estáticos que ficavam sob a inquieta contemplação dos beneficiários, felizes pelos grandes feitos. Em meio à admiração das obras e a uma conversa e outra, uma conexão entre beneficiários e toda equipe da Adesaf se destacava no momento da cantoria de Márcio. O beneficiário-cantor pedia para que todos o acompanhassem, além das vozes em coro. Foi prontamente atendido. O som das palmas era como se houvesse um instrumento a mais. Todos seguiram no ritmo dos acordes do violão emprestado, que dava vida à canção. Até hoje, não sei como surgiu aquele violão – talvez aquela tal explicação astral –, já que o aparecimento do instrumento foi como uma providência do rei Sol, para que os dias seguintes do rapaz fossem mais acalorados. Com seu jeito autêntico, deixava a voz rouca sair sem se preocupar em mesclar estilos musicais, empolgado com o sentimento de presságio já que flertava com o violão alheio. O figurino era comum a todos, pois Márcio costumava frequentar assiduamente o curso de Estética e Beleza oferecido pelo DBA, intercalando seus poucos ternos e camisas sociais. Para incrementar o visual, Márcio sempre andava com “ela”. Pequena, com menos de 30 centímetros, a “buchudinha” envolta em um couro surrado era sua companheira a tiracolo, onde levava o líquido inebriante e ardente de suas viagens – em que ela não podia faltar. Após a cantoria, Márcio devolveu o violão. Foi como um rompimento prematuro de um relacionamento que durou muito pouco para lhe causar qualquer tipo de sofrimento, só pesar. Foi o que me fez propor: “Troco isso por um CRACOLÂNDIA: TERRITÓRIO DO ABRAÇO – Lincoln Spada (Imaginário Coletivo) – Adesaf
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violão” – apontei para a pequena a tiracolo. “Eu tenho muito carinho por ‘ela’. Está comigo há muitos anos” – disse Márcio, enquanto já ensaiava movimentos de separação, transpassando o cordão para fora do corpo. Sem pestanejar e prosseguindo com as recomendações, as mãos afinadas de Márcio traziam até mim a “rapariga” – era assim que ele chamava a “buchudinha”: fiel companheira e testemunha de toda tristeza de Márcio. Este, órfão de pai desde a infância, e de mãe já no início de sua juventude, sente também pela ausência de seu filho. Aqui, cabe um reparo à expressão mais utilizada por Márcio: não é tristeza, é saudade – que nem ouso imaginar traduzi-la. Na semana seguinte, a troca foi feita e o substituto da “rapariga” chegou. Ele ganhou o novo violão. Agora era dele e podia levá-lo quando e aonde quisesse. O instrumento passou a ecoar muito mais do que notas musicais, que alegravam todos na sede da Adesaf e na roda de amigos de Márcio. Comparado a um amuleto, enxergava como se as curvas do violão pudessem representar um caminho para a investida de tentar, mais uma vez, superar a dependência do crack e do álcool. E se esse livro fosse uma canção de Márcio? Poderia ser funk, romântica, bossa-nova, sofrência... ou de qualquer estilo musical. Mas, esta definição, assim como o gênero literário, é o que menos importa, porque a proposta a seguir deverá ser lida e sentida sem padrões, sem amarras. O ritmo e o gênero serão definidos pelo leitor. Aqui, me despeço, mas só do livro! Porque mesmo que por todo tempo eu respeitasse o conselho do meu melhor e mais querido amigo, que dizia que era hora de zarpar do território, falou mais alto o afeto por cada beneficiário do DBA, a quem dedico nossa estada e continuidade no programa. Boa leitura! Fernanda Gouveia Fundadora e diretora-presidente da Adesaf – Associação de Desenvolvimento Econômico e Social às Famílias
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Sumário Introdução ..............................................................................................19 Prólogo – Retrato Azul ..........................................................................21 Parte 1 – Contexto do DBA ..................................................................29 Capítulo 1 – Pauliceia Desvairada ...........................................................33 Capítulo 2 – Ponta de Lança ....................................................................41 Capítulo 3 – Poesia Vária ........................................................................52 Parte 2 – Início do DBA ........................................................................59 Capítulo 4 – O Farol ................................................................................63 Capítulo 5 – O Ritmo Dissoluto ..............................................................72 Capítulo 6 – Os Operários .......................................................................87 Parte 3 – Adesaf no DBA ....................................................................101 Capítulo 7 – Vida Pura ..........................................................................105 Capítulo 8 – Marco Zero: Chão ............................................................ 115 Capítulo 9 – Magnificat .........................................................................122 Capítulo 10 – A Alegria é a Prova dos Nove ........................................128 Capítulo 11 – O Despertar de São Paulo ...............................................137 Capítulo 12 – Carta à Minha Noiva .......................................................147
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Capítulo 13 – O Homem Amarelo ........................................................156 Capítulo 14 – Pont Neuf ........................................................................165 Epílogo – La Rentrée ...........................................................................173 Referências ...........................................................................................181 Fotos ..............................29, 30, 31, 32, 59, 60, 61, 62, 101, 102, 103, 104
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Introdução Como autor deste livro, durante toda a elaboração dele, recebia o espanto de amigos e conhecidos ao citar sobre o trabalho de visitar o território nacionalmente conhecido como Cracolândia. “Você está louco?”, “Você foi assaltado lá?”, “Como eles se comportam?” eram as típicas frases que escutei em rodas de conversa. A relevância desta publicação é simples. Trata-se de documentar o trabalho da Associação de Desenvolvimento Econômico e Social às Famílias (Adesaf), junto às falas de gestores públicos, demais profissionais e, principalmente, dos beneficiários do programa De Braços Abertos (DBA), iniciativa inédita de redução de danos e de baixa exigência para toxicodependentes em situação de alto risco em vulnerabilidade social em São Paulo e no Brasil. Devo esta oportunidade ao amigo Bruno Nunes, assessor de comunicação da Adesaf. Foram imprescindíveis o seu voto de confiança e a parceria para este livro sobre a experiência da Adesaf, entre outubro de 2014 e outubro de 2016, em convênio com a Prefeitura de São Paulo para gerenciar o DBA no âmbito do trabalho. Esta obra essencialmente só foi possível pela acolhida e pelo incentivo da presidente da Adesaf, Fernanda Gouveia. Leitora voraz e gestora perseverante, seu olhar sensível foi determinante na revisão, ampliação e publicação. Ela compreendeu toda a liberdade criativa e ofertou todo o apoio de sua equipe para a realização do livro. O convite para a iniciativa ocorreu em julho de 2015, em caráter voluntário. Dessa forma, também é fundamental agradecer a outra voluntária nessa jornada, Bruna Stephanie, quem guiou a sua câmera fotográfica para relatar as experiências no DBA. As nossas visitas ao programa na Capital foram entre julho e setembro de 2015 e de agosto a CRACOLÂNDIA: TERRITÓRIO DO ABRAÇO – Lincoln Spada (Imaginário Coletivo) – Adesaf
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setembro de 2016. Assim, a equipe da Adesaf contribuiu com outras imagens sobre a trajetória da organização no DBA. Este livro foge à regra de uma publicação institucional. Enquanto jornalista, empresto à narrativa o meu olhar de convidado da ONG sobre o programa. Portanto, é difícil precisar o gênero dessa publicação, já que acrescento dezenas de referências – ora acadêmicas, ora jornalísticas – e, principalmente, relatos dos beneficiários da iniciativa paulistana. Por exemplo, o título reúne conceitos do imaginário popular (Cracolândia), das ciências sociais (território psicotrópico) e das políticas públicas (DBA). Por sua vez, batizo cada capítulo com obras da literatura e das artes plásticas: todas de artistas modernistas ou integrantes da Semana de Arte Moderna de 1922. Entendo que o ímpeto da antiga geração, de repensar a identidade cultural de São Paulo e do Brasil, tem a mesma gana da Prefeitura de Fernando Haddad, que ousou inovar nas políticas públicas sobre drogas na Capital e no País. O prólogo da narrativa, que inclui um microconto da minha primeira visita ao programa, pincela o cenário da região onde acontece grande parte do DBA. A primeira parte do livro aborda o contexto sóciohistórico na região da Luz, o consumo do crack e seus efeitos, e um panorama geral sobre o olhar da Adesaf no DBA. A etapa seguinte apresenta o início do projeto municipal, com falas de autoridades públicas, pesquisadores e jornalistas. No terceiro ato, apresento os relatos da equipe da Adesaf e dos beneficiários do programa, a rotina de suas atividades e como o DBA colabora na redução de danos e, também, na reinserção social de centenas de pessoas. Por fim, o epílogo abrange, como uma crônica da minha última visita, perspectivas dos presentes na abertura da exposição Por Dentro do Abraço.
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Prólogo
Retrato azul1 São Paulo, 21 de julho de 2015 “Ele está nesse inferno?”, sussurrou a mulher com um celular nada touch screen na mão, que, na tela, mostrava a imagem pouco resoluta de um homem de meia idade, meio apático como em quaisquer retratos de documentos oficiais. A queixa concisa dela consistia num oceano de centenas de ajuntados no trecho da Alameda Dino Bueno, entre a Rua Helvétia e o Largo Coração de Jesus. O cenário: poucas dezenas de casarios baixos, sendo um edifício de no máximo três andares. Embora a maioria dos endereços fosse residencial, eram visíveis certos portões de aço de enrolar, fechados, típicos de comércios de pequeno e médio porte. Tão camuflados quanto às demais fachadas da via, estas entre grafites e pichações. Todo esse trecho – tão comum à arquitetura dos grandes centros – destoa pela multidão que por lá preenche cada metro do asfalto e da calçada, próximo das 10 da manhã daquela terça-feira. Como em tantas outras quartas, quintas, sextas... O crack, a pedra maldita que identifica aquele território, é a mesma razão que leva a maioria do mar de anônimos a atravessar dias na clandestinidade. Na Cracolândia, erguida bem no coração da maior capital da América Latina, os ângulos transmitidos nos telejornais precisam ser escondidos, ter rostos com tarjas, vozes de outros timbres e nomes omitidos. A omissão de certas partes do passado, aliás, é percebida como 1
Retrato Azul é o nome de uma tela de Tarsila do Amaral. Neste prólogo, também se refere à tela do celular da mulher relatada. CRACOLÂNDIA: TERRITÓRIO DO ABRAÇO – Lincoln Spada (Imaginário Coletivo) – Adesaf
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regra de ouro para a convivência, e dos vínculos que os usuários estabelecem com os servidores e autoridades públicas, missionários religiosos e ativistas, universitários e, principalmente, repórteres. Apenas a desconfiança da presença de uma câmera fotográfica ou de um gravador de voz ao redor é capaz de tumultuar os ânimos desta microcidade, já rondada por devoção com viaturas da Guarda Municipal e equipes das secretarias de Saúde e de Assistência e Desenvolvimento Social. O incômodo dos usuários de drogas se deve ao constante ir e vir de acadêmicos e jornalistas que, há décadas, persistem em documentar a trajetória da população local. Por vezes, holofotes sobre pessoas intensificam a humanidade delas. Mas muitos dos usuários de drogas reclamam de que um jogo de luzes mal cruzado pode potencializar o viés irracional de quem se vicia. Pode sugerir um laboratório a céu aberto, intensificando a interpretação popular de que estão como bichos sem correntes, coleiras ou grades. Parcela daqueles sobreviventes do crack reconhece grades, e intrinsecamente, o uso da droga ilícita, alinhado com a ficha policial, corrobora com a vontade de não estamparem mais e mais capas de tabloides. Perímetro do crack A maré contrária em posar para as lentes não é avessa às batidas das rádios. Com o advento e avanço de novas tecnologias, equipamentos eletrônicos repassam pelas mãos dos transeuntes. Rádios de pilha, fones de ouvido, aparelhos de som tocam hits distintos em simultâneo. Naquela ocasião, os romances do axé, a poética do rap e os brados do funk ritmavam em ondas sincronizadas. Existe quem se deitasse a dois, quem se acobertasse no meio-fio e uma boa parte a circular em saudações e desencontros. Uns de chinelos, tênis e outros poucos de destacáveis sapatos. Os trajes diversificavam em cores, tecidos, cortes e se podia encontrar quem modelava em bermudas, jaquetas compridas e bonés. Bonés são os mais comuns, embora essa falta CRACOLÂNDIA: TERRITÓRIO DO ABRAÇO – Lincoln Spada (Imaginário Coletivo) – Adesaf
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de estereótipos comprove que quem passa ou fica na Cracolândia ainda contempla muito mais da sua individualidade do que uma população homogênea. Na reunião incidental daquela manhã, estigmas e padrões escapam de nossos olhos. O tom de seus pulsos varia de branco, pardo e negro. Algumas mãos mais joviais, algumas marcadas pela meia-idade, outras com as rugas profundas de quem já envelheceu. Mãos masculinas, mãos femininas. E há também homens que dançam como elas, e elas que se sentem como eles. Não vemos crianças. Talvez as poucas características em comum sejam os dedos e as unhas que se encardem no contato com o cachimbo e a droga psicotrópica. O odor forte não vem do entorpecente, pertence aos seus efeitos que fazem a pessoa desatar aos poucos os laços com a consciência de autopreservação e higiene. Os suores, as sucatas e parte de sobras embaraçam os sentidos à primeira vista. A ponto de consternar a mulher que estava com o telefone na mão, no início deste prólogo. Maria – assim a nomeio – percorre metros até providenciarmos uma cadeira perto de uma tenda municipal instalada na Rua Helvétia. Esposo desaparecido Com copo na mão já meio sem água, Maria tende a relembrar em prantos que o crack enterrou seu primogênito, anos antes. A procura desesperada desta vez é pelo seu marido, recentemente liberto da penitenciária. Ela varava sóis a pino para trocar minutos com o esposo aos fins de semana na sala de visita. Submetia-se às costumeiras revistas íntimas no tal centro estadual, desnudando-se para terceiros, os agentes, até poder reencontrar o homem que pagava seu delito com a liberdade. A saída do seu companheiro da prisão se resumiria no retorno à vida conjugal no litoral sul paulista, na cidade de Itanhaém. Mas o calendário seguia sem notícias do marido, que permaneceu na caótica capital, especificamente naquele entorno. Após uma ligação telefônica, foi com a roupa do corpo, e a camisa de gola molhada pela tensão, que Maria CRACOLÂNDIA: TERRITÓRIO DO ABRAÇO – Lincoln Spada (Imaginário Coletivo) – Adesaf
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fez uma jornada de 115 quilômetros para buscar quem ela enxerga como a sua cara-metade. A melancolia atordoou novamente os olhos e, entre palavras espaçadas, engasgava-se no seu testemunho. Mostrou-me o rosto do seu homem. Maria teclou os números do aparelho do seu marido. Na segunda vez em que digitou o contato, a voz dele respondeu. Ela limpou o rosto quando repetia o endereço para o reencontro. Era a primeira vez que estávamos lá – sequer a conhecíamos minutos antes –, portanto, após a mulher se recompor, seguimos até o destino com um colaborador da Adesaf. Programa municipal A Adesaf é a organização não governamental gestora do programa municipal De Braços Abertos (DBA) no âmbito do trabalho. Regulamentado pelo decreto 55.067/2014, o DBA é uma iniciativa pública que visa à promoção e à reabilitação psicossocial de pessoas em situação de vulnerabilidade social e uso abusivo de substâncias psicoativas. É uma ação intersetorial das secretarias municipais de Saúde; de Direitos Humanos e Cidadania; de Assistência e Desenvolvimento Social; de Desenvolvimento, Trabalho e Empreendedorismo; e de Segurança Urbana, com a sociedade civil organizada. Criado em janeiro de 2014, o programa de redução de danos com baixa exigência é a principal verve da Administração Municipal para criar uma conversa franca de reinserção social com a população de um microcosmo que crescia em monólogo desde 1989. Um crescimento alardeado por ações de antigas gestões da Prefeitura e do Governo Estadual, e registradas pela imprensa de forma negativa apontando os transtornos em atuações de repressão policial. O DBA é a primeira experiência no Brasil baseada em alternativas executadas na Holanda e no Canadá que obtiveram êxito em redução de danos e combate às drogas. Em síntese, mais de 450 beneficiários participam do projeto, atuando em diferentes frentes de trabalho e CRACOLÂNDIA: TERRITÓRIO DO ABRAÇO – Lincoln Spada (Imaginário Coletivo) – Adesaf
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capacitação profissional, e tendo como contrapartida R$ 130 semanais (valor à época), além de hospedagem e alimentação. Esse ineditismo da experiência foi o que me despertou interesse em relatar o convênio celebrado entre a Prefeitura de São Paulo e a Adesaf. Ao lado da fotógrafa Bruna Stephanie, seguimos de carona naquela manhã, antes do encontro com Maria. O carro era dirigido por Rafael Bruder, gerente do DBA pela Adesaf. Era a nossa primeira visita ao programa, em julho de 2015. Pequenos gestos O timbre grave e a rouquidão de Rafael, que se agregam a uma voz similar à de Batman ou de qualquer super-herói imaginado nas histórias em quadrinhos, combinam com a altura de 1,80 m e os ombros largos. O porte atlético dele parece acompanhar os variados tons da faixa de jiu-jítsu. Tendo essa arte marcial como ofício anterior, ele se empenha para o desenvolvimento de seus alunos e aprendizes. Bom de papo, o mestre descreveu os expedientes nos tatames, as consecutivas medalhas e as aulas em uma associação vinculada à Prefeitura de São Vicente, cidade no litoral paulista. Enquanto professor voluntário, com aulas terças e quintas-feiras numa entidade esportiva, ele confessou que, há uns seis anos, um menino golpeou a sua sensibilidade. É que mesmo com uma deficiência física, o garoto se esforçava em cada treinamento. “A partir daí, o meu principal objetivo na carreira é me sentir útil para as pessoas, sabe?”, declarou ainda dirigindo o automóvel. “Pequenos gestos, palavras, mesmo”, completou. Das frases da Cracolândia, recordou o agradecimento de um pai, porque reencontrara o filho de banho tomado e trabalhando nas ruas do entorno. O banho e a atividade ocorreram devido à inscrição do rapaz no DBA. “Um banho... Ele estava feliz, porque o cara tinha a possibilidade de tomar um banho”, afirmou. Percebe os detalhes?
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Na mesma singeleza, Rafael se propôs a guiar Maria pelos caminhos afora da Cracolândia. O esposo não desaparecera naquele fluxo de pessoas – fluxo é um termo comum para a movimentação de usuários de drogas nesse entorno –, estava em pé, à espera, numa praça distanciada. Com passos largos, saímos da tenda de rua. Ali, além da área coberta, há um centro de atendimento por onde circulam as equipes de assistência social e de saúde. Os primeiros usam coletes verdes, os outros, azuis. Os colaboradores da Adesaf utilizam uniformes vermelhos. Assim, torna-se mais fácil para beneficiários, demais usuários de drogas e até a vizinhança reconhecer os profissionais e solicitar atendimentos. Vínculos de confiança Por termos chegado há pouco, somente Rafael usava crachá, o que não distinguia da rotina que cobrava ligações para o grupo espalhado de operadores sociais da Adesaf, sequer de ser interrompido pelas próprias chamadas. “Rafael, Rafael”, acenava uma das beneficiárias que se atrasou no serviço do dia. Um pedia procedimentos para atestar a saúde. Dois se achegaram solicitando a inscrição imediata na frente de trabalho. Nesse caso, a lista de futuros participantes da iniciativa é encaminhada pela Secretaria de Assistência e Desenvolvimento Social. Ainda recordo que outra beneficiária correu em nossa direção apenas para nos abraçar. Os pequenos gestos. O gerente do DBA sorriu com a saudação, logo engatilhando a conversa para destrinchar as necessidades da moça: hospedagem, alimentação, andamento do trabalho. Poderia aqui batizar cada um deles que chamaram a atenção do Rafael em pouco menos de 15 minutos, no entanto, o problema é que ele tem melhor memória, chamando pelo nome todos que lhe dirigiam a palavra. O “vínculo de confiança” é um dos termos que mais escutei, tanto pelos testemunhos dos agentes da Adesaf no DBA, quanto pelas entrevistas com os beneficiários. O relacionamento cordial e estreito entre os dois
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lados soa como uma das principais diretrizes para que o programa alcance o sucesso desejado pelo Poder Público naquele ambiente na região da Luz. Se entendermos que o nome Luz se contrapõe à minha descrição do território meio nebuloso, também parece contraditório ao cenário o nome do bairro onde se localiza a popularmente conhecida Cracolândia: Campos Elíseos. Na mitologia helenística, os gregos se referiam assim ao paraíso ou à terra dos bem-aventurados. “No mínimo, contraditório aqui se chamar assim, não?”, atentoume em outra oportunidade Silva (nome fictício ou n.f.), um beneficiário do DBA que ainda filosofaria com outras boas reflexões durante nossas visitas à iniciativa governamental. Rede de possibilidades Como já bem dito, este programa intersetorial é vislumbrado em diferentes espaços. Na tenda de rua, por exemplo, os usuários de droga são atraídos pela cobertura estruturada, uma tevê e um display com preservativos. Nele, uma breve pichação: “Gibi, tem alguém que ama você”. Na verdade, o recinto é repleto de ares lúdicos, certos desenhos de grafite e uma tabela de memórias, em que os transeuntes anotam sentenças quase como versos urbanos: “O certo não pode passar por errado”, “Não troco ‘oxente’ pelo ‘ok’ de ninguém” e “O que você sonhou hoje?”. São possibilidades e tentativas de aproximar os moradores em situação de rua para que desejem se reinserir na sociedade e se habilitar aos demais serviços públicos oferecidos pela Prefeitura. À frente da tenda, localiza-se o edifício do Recomeço, iniciativa estadual também de apoio a dependentes químicos, voltada ao tratamento de internação. Na esquina mais adiante, outra área do mesmo programa, com uma tenda de rua e demais serviços prestados à população. Quanto ao DBA, havia mais equipamentos: como o prédio administrativo e outro de capacitação para os participantes, ambos no
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Largo Coração de Jesus2, além de um galpão para atendimento, manutenção de material de trabalho e atividades recreativas, este na Alameda Barão de Paranapiacaba, no mesmo quadrante. No entanto, nenhum deles pode ser visto no trajeto em que Rafael, Maria, Bruna e eu percorremos naquela primeira terça-feira. De pontos altos, dois logo são notados, como a torre da Estação Júlio Prestes e o monumento de Cristo de braços abertos no cume do Santuário Sagrado Coração de Jesus, mas ambos distantes do horizonte rumo à Praça Princesa Isabel. Dezenas de metros distantes do fluxo, a nossa caminhada se tornou mais silenciosa entre comércios, bares, pequenos hotéis e cortiços da área. Os ponteiros ainda não marcavam dez e meia quando Maria correspondeu ao aceno do esposo. A mulher se apressou ao atravessar a faixa de pedestres. O semáforo nem se esverdeara para nós. Do lado de lá, o marido levantou o polegar na direção de Rafael. Mais um pequeno gesto! “E, então, se sente útil?”, retruco, esperando que o diálogo forte que a esposa se antecipava para convencer o amado a regressar ao lar fosse tão intenso como a relação que a Adesaf/DBA tem de reinserir aquela parte da comunidade que se faz fluxo no bairro de Campos Elíseos.
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Ainda em 2015, a Adesaf/DBA mudaria a sua sede administrativa para um prédio maior e mais adequado às ações de capacitação e oficinas, na Alameda Nothmann, 385, Campos Elíseos. CRACOLÂNDIA: TERRITÓRIO DO ABRAÇO – Lincoln Spada (Imaginário Coletivo) – Adesaf
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PARTE 1
Contexto do DBA Adesaf/Divulgação
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Adesaf/Divulgação
“Não abandono o desejo de ser instruído, e minha curiosidade enganada é sempre insaciável”, Silva, beneficiário do programa, recita Voltaire
Bruna Stephanie
“Enquanto programa de redução de danos, o DBA é um caminho”, comenta Genivaldo Brandão, coordenador do DBA. “Para mim, é um bom caminho”
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Adesaf/Divulgação
Presidente da Adesaf, Fernanda Gouveia, o beneficiário Márcio (à esquerda) e o funcionário João (à direita)
Adesaf/Divulgação
Muitos são os elos que se formam num expediente de amizade entre os beneficiários do DBA e os colaboradores da Adesaf CRACOLÂNDIA: TERRITÓRIO DO ABRAÇO – Lincoln Spada (Imaginário Coletivo) – Adesaf
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Adesaf/Divulgação
Múltiplas atividades são ofertadas para os beneficiários do DBA
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Capítulo 1
Pauliceia Desvairada3 Estalos diminutos dos cristais incinerando no cachimbo a ponto de nomear o crack. Ouvimos nenhum na nossa ida para onde se localizava, à época, a sede administrativa da Adesaf/DBA, no Largo Coração de Jesus, ao lado do fluxo de usuários de drogas. Nem o clima ameno e cinzento daquela terça-feira fazia dissipar ou nublar por completo as reconfigurações recentes de Campos Elíseos. As últimas três décadas e meia teimam em tornar o bairro uma terra assombrosa, em decorrência de uma comunidade em situação de rua que se concentra em busca do crack. Aos poucos, o DBA desenha um novo ambiente no local que vive em metamorfose nestes anos. Na antiga sede de dois andares, da janela avisto o largo com playground, duas quadras poliesportivas, uma base comunitária da Polícia Militar, guardas civis e, em tempos, poucas pessoas por ali contemplando a manhã. Outras são os beneficiários do DBA, a varrer as folhas caídas, embalagens jogadas e demais sucatas que cercam o local. No entanto, a torre do Santuário Sagrado Coração de Jesus é o que hasteia nosso olhar, bem do outro lado do largo. Atraem tanto os sete metros do Cristo Redentor a estender os braços para seus admiradores, como os outros 55 metros da torre onde o monumento observa o bairro. Construído entre 1880 e 1901, o templo de estilo clássico-renascentista e de formato basílica era notável por ser um dos três pontos mais altos da São Paulo de um século atrás. O centenário 3
Pauliceia Desvairada é o nome do livro de poemas do modernista Mário de Andrade. Neste capítulo, refere-se à cidade de São Paulo e ao contexto da formação da área denominada Cracolândia. CRACOLÂNDIA: TERRITÓRIO DO ABRAÇO – Lincoln Spada (Imaginário Coletivo) – Adesaf
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espaço junto ao liceu mantido por religiosos são um dos poucos remanescentes do contemporâneo Campos Elíseos. Bairro planejado De todos os 1.521 km² que abrigam a sociedade paulistana, somente a parcela de 1 a 3 km² de Campos Elíseos foi loteada na década de 1870 como o primeiro bairro planejado da Capital. Com a inauguração da antiga rede ferroviária São Paulo Railway e, futuramente, do serviço de abastecimento domiciliar de água da extinta Cia. Cantareira, a região que correspondia à Chácara do Charpe era esquadrinhada de lotes para abertura de ruas e residências. Ou melhor, palacetes com ares franceses do século 16. Como um paralelo à célebre avenida parisiense Champs Elysées, onde fica o Arco do Triunfo, herdou o nome com lares que nada se confundiam com os sóbrios casarões e moradias de taipa de pilão da era colonial, tão comuns na província paulistana. Em menos tempo, a localidade crescia com as vias homenageando famílias, como Andrada e Gusmão, e personalidades, como General Osório e Duque de Caxias, ainda no final do século 19. Até os anos 1930, o bairro despontava como um dos mais nobres de São Paulo, a ponto de ser morada de bispos e de presidentes da Província de São Paulo (equivalente aos atuais governadores), com direito a Liceu Coração de Jesus (1885), Palácio Campos Elíseos (1899), Estação Pinacoteca de São Paulo (1900) e Estação São Paulo (1875), substituída pela atual Estação Júlio Prestes (1938). Além do templo e do colégio, a Congregação Salesiana ampliava suas áreas, construindo nestes tempos áureos o Centro de Integração Social Coração de Jesus, um casarão de três andares que é patrimônio tombado em nível estadual. Este, bem ao lado da primeira sede administrativa da Adesaf/DBA, de onde admirávamos o largo. Aliás, o edifício também era usado pela ONG como centro de capacitação para os beneficiários.
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Referência e travessia Juntas, as famílias de barões e a ordem religiosa modelaram o espaço que, aos poucos, adquiria as cores mais populares. A crise do mercado do café em 1929 e a aceleração de um ciclo industrial na década seguinte marcaram a reviravolta de Campos Elíseos, adiantando o bairro de referência como um de travessia, na inauguração da Estação Rodoviária da Luz, em 1961. O imenso trânsito diário de cerca de dois mil ônibus e múltiplos pontos de táxis espicharam as instalações de comércios. Restavam a eles movimentar os paulistanos naquele epicentro, sendo que o gradativo ronco dos automóveis, congestionamentos mesclados à insegurança de furtos, e o crescimento da zona sul incentivaram o êxodo de uma camada de moradores de classe alta e média. Os domicílios do tempo áureo foram sendo reocupados por hotéis de pequeno e médio porte, além de cortiços. O colapso do trânsito na região findou em 1982 com a desativação da rodoviária que, consecutivamente, levou à ausência dos passageiros e turistas. Muitas lojas, bares e lanchonetes precisavam se reinventar mediante a concorrência do comércio de ambulantes. A rede hoteleira perdeu parte dos imóveis que se transformaram em zona de prostituição, principalmente de baixo meretrício. Próximo ao bairro da Santa Ifigênia, Campos Elíseos tangenciava a rota da “Boca do Lixo”. Entretanto, o cinema marginal e as pornochanchadas gravadas nos redutos do centro paulistano mal representavam a neblina que tomava o ex-paraíso de inspiração parisiense. Intervenções estatais, como palacete e estações sediando órgãos estaduais nos anos 1970, não fizeram estagnar o tempo fechado. Houve até uma vontade de empresários em revitalizar a região pela localização central. Ali, entretanto, a travessia dos anos 1980 levou à ramificação para o tráfico de drogas. A manhã não se fez presente no bairro, como boa parte da região da Luz, cada vez mais “vilanizado”. Foi quando alguns jornais registravam a área como Cracolândia, em 1989. Confesso que a origem do termo CRACOLÂNDIA: TERRITÓRIO DO ABRAÇO – Lincoln Spada (Imaginário Coletivo) – Adesaf
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popular é uma incógnita em minhas pesquisas. Como se a droga sitiasse um território que não mais vingaria. Um vivo-morto. Pedra anti-herói “Sinto-me às vezes um morto-vivo, um zumbi, saca?”, cumprimentou-me o beneficiário do DBA, Silva (n.f.), quando desci do prédio. Logo nos apresentamos – eu, Lincoln, e a ele, ofereço o anonimato. “O vício me faz sentir um pouco assim. Preciso sair dele”, desabafou, com a barba grisalha por fora do capuz do seu casaco escuro. As mãos tremiam, não de efeito do crack, mas da fome de ver a capa de um livro de crônicas que tenho comigo. “Não abandono o desejo de ser instruído, e minha curiosidade enganada é sempre insaciável”, disse me encarando. “Conhece o autor? É Voltaire”, tão cético e filósofo como Silva. Veio de Limeira (cidade no interior paulista) e por um atrito familiar e desilusões de outras instituições, melhor se acolheu num vínculo com as ruas e as drogas, em que persiste desistir agora por meio do DBA. Mais esperto e literato que eu, meu livro não foi um presente a Silva, talvez sempre o pertencesse. Após a conversa, um orientador social da Adesaf se aproximou: “Ele é diferenciado, é inteligente, gosta de ler bastante, sabe muito. Você vai perceber durante as suas visitas”, como se todas outras centenas também não fossem diferenciadas. O problema é que a dependência do crack insiste em bloquear as habilidades raras de seus adeptos. Das dezenas de apelidos dados ao entorpecente, a kryptonita talvez seja a melhor atribuição que recebeu nos anos 2000, principalmente em comunidades do Rio Grande do Sul. A metáfora da rocha, que fragiliza o maior mito dos gibis, tem contornos próximos na vida dos dependentes do crack, a ponto de ser referida como “a pedra que derruba até Superman”. Este paralelo é delineado em artigo de Freud Lacan – Escola de Estudos Psicanalíticos, escrito por Bernardo Mantovani, em 2012. Dois aspectos são relevados em seu discurso. O primeiro é sobre o sentido de
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onipotência que o prazer da droga oferece, e o segundo, o contato com ela que também se reflete em uma queda simbólica. “A pedra não mata, mas apenas inscreve os sujeitos no registro da castração, aproximando-os da condição de homens normais, mortais e incompletos.” E é esta fragilidade que aproxima o Super-Homem de outro mundo, fora de sua origem. Na fala dos seus entrevistados, “o uso do crack faz com que eles, imaginariamente, se sintam pertencentes a um grupo, ou inseridos a um movimento”. Mama Coca O crack em si é um derivado da cocaína – uma substância alcaloide, ou seja, com propriedade de base capaz de reagir com ácidos como a cafeína e a nicotina. Está presente na planta Erythroxylon coca, a coca natural da região dos Andes, onde era cultivada pelos incas em seus rituais de fertilidade por milênios, até o século 16. O termo coca é traduzido pela língua aymara como planta ou arbusto. Segundo a tradição, folhas mascáveis de Mama Coca, como as tribos a chamavam, empoderaram homens para vencer um deus maligno e, com elas, os privilegiados nobres, soldados, mensageiros e poucos camponeses suportavam a fome e a fadiga em altas altitudes. A planta foi levada no mesmo período pelos navegadores europeus ao Velho Continente. No decorrer dos séculos, eufóricos botânicos e pesquisadores a nomeavam de “tesouro da matéria médica”, “saudável e condutora da longevidade” e até “evocadora da potência do organismo”, embora poucos se interessassem pelos efeitos da constância do medicamento. Em 1860, o químico alemão Albert Niemann isolou o alcaloide principal, batizando-o de cocaína. Três anos depois, o vinho de Ângelo Mariani a base da substância (com 30 a 70 miligramas por copo) seria um fortificante capaz de curar doenças, sendo o comerciante saudado pela rainha da Inglaterra, o rei da Grécia, o czar da Rússia e condecorado com uma medalha pelo papa Leão 13. Na década de 1880, Freud aplaudia a cocaína para inibir a melancolia CRACOLÂNDIA: TERRITÓRIO DO ABRAÇO – Lincoln Spada (Imaginário Coletivo) – Adesaf
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e a hipocondria, e, mais tarde, afirmaria que o consumo desmedido abraçava sintomas paranoicos, alucinações e deterioração físico-mental. No Brasil, bebidas derivadas da coca aliviavam laringites e tosses nas farmácias, sem registro de abusos da cocaína até 1920. Neste tempo começou a haver uma redução de produtos com o seu teor, pois a sociedade passou a fazer campanhas de saúde contra o uso de remédios sem indicação médica. Droga erotizada A cocaína enquanto usufruto do tráfico de drogas estampou páginas policiais na América nos anos 1970, junto ao crack, o seu primo lucrativo na mesma ilegalidade. Estudos relatam que um quilo de cocaína pode ser dividido em até 10 mil porções de crack, que, mesmo vendidas entre R$ 5 e R$ 10 cada, têm comércio 25 vezes maior que o do pó ilícito. No auge dos anos 1980, a cocaína era vista como “a droga da elite dos Estados Unidos”. Uma substância que, inalada, era provedora de energia, autoestima e ambição para jovens profissionais de alto escalão ou workaholics (viciados em trabalho). Tamanha fama a erotizava ainda mais na sociedade. E, repentinamente, as suas carreiras eram trocadas por cachimbos nas camadas mais pobres de Los Angeles, principalmente entre negros e latinos que tentavam se inserir no mercado de trabalho. “Nesse contexto, a guerra às drogas figura apenas e tão somente como mais um estratagema do capitalismo para culpabilizar os grupos sobrantes pelos problemas gerados pela formação social dominante”, argumenta, em sua tese na Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo, Marcel Segalia Bueno Arruda. Se as drogas utilizadas pelos mais ricos resultavam, no máximo, em artigos de saúde, as que se popularizavam entre os migrantes, pobres e negros eram logo associadas a crimes violentos. Claro que o preço baixo do entorpecente equivale ao seu nível de pureza. Ele é um composto de cristais formados pela pasta-base da cocaína CRACOLÂNDIA: TERRITÓRIO DO ABRAÇO – Lincoln Spada (Imaginário Coletivo) – Adesaf
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refinada com bicarbonato de sódio e água, e por vezes, com outros resíduos. Segundo reportagem de O Estado de S. Paulo nos anos 90, a droga encontrada na Capital era misturada também com soda cáustica, solução de bateria de carro, água sanitária, cimento e hormônio para a engorda de gado. Consequências do gozo Embora mescle demais materiais, a fumaça do crack inalada no cachimbo improvisado é encaminhada agressivamente aos pulmões que, por sua vez, fazem a distribuição para toda a corrente sanguínea. Mal leva 15 segundos para que atue no cérebro, potencializando a química da dopamina, serotonina e noradrenalina entre os neurônios. A trinca de substâncias estimula euforia, um prazer tão forte quanto a de um orgasmo prolongado e um estado de alerta com a aceleração da respiração e dos batimentos cardíacos. Passado o intenso efeito da porção de toxinas, o corpo reage com certa ansiedade para a próxima dose. Tal relacionamento quando ilimitado gera, de acordo com estudos, irritações em diversos órgãos humanos, como problemas cardíacos (taquicardia, hipertensão), enfraquecimento do sistema respiratório (mais suscetível à tuberculose e pneumonia), rouquidão, febre, tremores, dilatação das pupilas, coceiras e demais sinais de hostilidade e depressão gerados pela falta do uso do crack. “Continuando-se o consumo em doses mais altas, surgem ilusões perceptivas (visuais e auditivas) e finalmente a psicose cocaínica, extrema hipervigilância, delírios paranoides e alucinações”, sintetiza o artigo Crack e os perigos de uma viagem sem retorno, publicado na revista acadêmica do Centro de Ensino Superior de Maringá, em 2007. Outra característica comentada no texto é a intoxicação pelo alumínio, quando os cachimbos são improvisados em latas de refrigerante. Devido ao excesso do alumínio aspirado, o rim “não consegue eliminar toda a impureza pela urina, fazendo com que o alumínio continue na corrente sanguínea e se deposite em dois pontos principais do corpo: o CRACOLÂNDIA: TERRITÓRIO DO ABRAÇO – Lincoln Spada (Imaginário Coletivo) – Adesaf
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cérebro, onde se une às proteínas, e os ossos”. Por consequência, os resíduos podem colaborar no avanço da falta de memória ou mal de Alzheimer, enquanto o esqueleto perde proteínas. Há pesquisas que agravam esse quadro. O contato permanente com o forte entorpecente causa o ressecamento e enrugamento da pele, bloqueia o oxigênio no cérebro desregulando o raciocínio e a memória, além de diminuir o instinto de segurança e de higiene. Assim, tanto o período do uso, quanto o da fissura distante das porções inebriam as pessoas a ponto de reduzir os hábitos de alimentação, emagrecendo e perdendo mais nutrientes. Ponto do meio-dia Fato que boa parte da população cadastrada no DBA e que passa pelas ruas vigiadas pela Guarda Municipal, até pelo histórico de antes morarem em situação de rua, mostra as características descritas nos quilos de papéis acadêmicos que trago na bolsa. Em uma volta pelo largo, avisto pouco antes do meio-dia uma fila se formar no galpão da Adesaf/DBA, no meio da quadra seguinte, na Alameda Barão de Paranapiacaba. Dezenas de beneficiários uniformizados se achegam para entregar vassouras, lixeiras, pás e outros materiais de trabalho. Com os crachás, registram presenças, bem ao lado dos orientadores sociais do programa. Cada um estabelece o vínculo e acompanha a rotina de, em média, 25 cadastrados pela iniciativa. Muitos são os elos que se formam num expediente de amizade. Daí, a necessidade de manter a confiança entre o colaborador e o beneficiário. “Vamos almoçar?”, convida-nos Rafael, o gerente da Adesaf/DBA. “Hoje quem vai voltar com você e a Bruna é o Brandão. Ele é bom de conversa também”, brincou, ao caminharmos pelo largo até a Alameda Glete, onde um estabelecimento comercial serve almoço com valor tabelado para a equipe da entidade. Por lá, o tal de Brandão ainda no celular, recém-saído de uma reunião, cumprimentou-nos. Apesar da agenda de urgências, pausadamente prometeu com um manso sussurro: a entrevista com ele será no fim do expediente. CRACOLÂNDIA: TERRITÓRIO DO ABRAÇO – Lincoln Spada (Imaginário Coletivo) – Adesaf
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Capítulo 2
Ponta de Lança4 “A pizzaria Brandão é da sua família?”, falamos brincando enquanto o automóvel corta a Sé. Brandão, ou melhor, Genivaldo Linhares Brandão, balança verticalmente a cabeça e, fitando o retrovisor interno, continua o gracejo com uma seriedade ímpar: “E amanhã, a rodada é por minha conta”. Todos riem. O motorista em questão é o coordenador do projeto DBA pela Adesaf. Os trajes sociais, da camisa ao sapato e o suspensório, emanam o lado centrado do cubatense, incrementado ainda mais pela armação retangular dos óculos. A aparência soa mais de prudência do que sisudez ou braveza. Do seu cavanhaque, a maioria de suas palavras é em tom baixo, embora quando ecoem em demasia, mantêm o mesmo senso didático e pausado. Mas guardar o silêncio é uma virtude espontânea de Brandão que, ao lado de Rafael, coordena o programa, desde o primeiro dia do convênio com a Prefeitura, em 1º de outubro de 2014. É a mesma qualidade tranquila a ser permeada na sede administrativa com a equipe de trabalho. Longe de mostrar desinteresse, Brandão não costuma cruzar os braços em diálogos, ele coloca as mãos no bolso. Mesma conduta adotada naquela noite, rumo ao litoral paulista, ao volante.
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Ponta de Lança é um livro que compila textos opinativos e vanguardistas do modernista Oswald de Andrade. Neste capítulo, refere-se à vanguarda do De Braços Abertos na perspectiva do coordenador do DBA pela Adesaf, Genivaldo Linhares Brandão. CRACOLÂNDIA: TERRITÓRIO DO ABRAÇO – Lincoln Spada (Imaginário Coletivo) – Adesaf
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Redução de danos A mala carregada diariamente por Brandão vive acompanhada de papéis, geralmente estudos sobre o crack. “Pode anotar: Dartiu Xavier”, em seguida, soletrando o nome do doutor em Psiquiatria e Psicologia Médica e professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Na época, ele observava com interesse os argumentos do docente sobre o uso de maconha como redução de danos do crack. Na revista científica californiana Journal of Psychoactive Drugs de 1999, há o relato de Dartiu, em uma situação controlada, em que 50 dependentes em estado grave de crack utilizaram por um ano a maconha quando sentiam vontade de fumar a pedra. A erva, também ilícita, contribuiu já no primeiro trimestre. “Resultado: 68% abandonaram o crack depois dessa experiência”, relembrou o acadêmico em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, em 2013. Inclusive, os pacientes orientados se distanciaram dos cigarros de maconha. Pela Unifesp, ele atua no Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes (Proad), atendendo toxicodependentes, em situação de rua ou não, além de capacitar agentes municipais para serviços semelhantes. Um levantamento similar foi realizado por meio de entrevistas com dez pacientes em centros de atenção psicossocial em Santa Maria (RS), em que a maioria colocava a maconha como inibidora da compulsão pelo crack. Contudo, a repercussão maior na mídia é o apoio público de Dartiu para a iniciativa do DBA. Em maio de 2015, a Folha de S. Paulo intitulou uma reportagem que “4 em cada 10 desistem de ação anticrack de Haddad”, referente ao DBA. Ou seja, o título da notícia não privilegiou que, dos 798 beneficiários que aderiram ao programa nos primeiros 16 meses, 60% continuavam o tratamento. Dartiu rebateu: “Antes dele, nove em cada dez viciados desistiam. O programa tem muitas coisas a serem melhoradas, mas algo sim já mudou, e para o bem. Esta é uma forma menos intolerante de lidar com a população da Cracolândia”. CRACOLÂNDIA: TERRITÓRIO DO ABRAÇO – Lincoln Spada (Imaginário Coletivo) – Adesaf
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Ilegalidade consentida “Cracolândia, não”, Brandão me corrigia enquanto me levava para casa. “Não gosto de chamar aquela região de Cracolândia.” Respeito. Então, pergunto, “como se refere a ela?”. “Campos Elíseos, é o nome do bairro. E o território do fluxo, na verdade, posso chamar de ilegalidade consentida.” A classificação jurídica tem razão: Brandão advoga desde que se graduou em Direito há poucos anos, numa carreira em busca do segmento de defensoria e área penal. Concluída em 2003, a faculdade aconteceu em simultâneo com sua profissão como engenheiro químico no Polo Industrial de Cubatão, onde trabalhou até 2010. A escolha do novo ofício correspondia a uma vontade de querer defender os direitos das pessoas mais humildes ou em marginalidade. Engatando o tema sobre a população que tangencia a lei, ele continua “os beneficiários vivem há anos nesta ilegalidade consentida e de menor potencial ofensivo. Até porque, não sejamos hipócritas em tratarmos todos os usuários de drogas como bandidos. A dependência é uma questão de saúde pública”. O coordenador do DBA pela Adesaf repete a bater a hipocrisia social, “no sentido de que algumas drogas são lícitas e outras não. Por exemplo, o álcool que alguns bebem para se alegrar, reduz a lucidez e o raciocínio. E, para muitos, a bebida alcoólica serve como porta de entrada para demais dependências”. São muitos os exemplos que confirmam a análise do advogado que jamais teve o hábito de beber ou sequer provou um cigarro na vida. Exército silencioso Dos 1.742 entrevistados com idade de 14 a 25 anos no 2º Levantamento Nacional de Álcool e Drogas (Lenad), em 2012, praticamente metade dos jovens consome álcool, sendo a taxa de 26% entre CRACOLÂNDIA: TERRITÓRIO DO ABRAÇO – Lincoln Spada (Imaginário Coletivo) – Adesaf
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os adolescentes. Desta população, grande parte relata fazer uso nocivo do álcool, e destes, mais de um terço bebe de forma abusiva semanalmente. Tal droga legalizada está tão enraizada na cultura brasileira, que pode servir de dobradiças para sustentar e apresentar outras janelas de maior desvio. Por sua vez, o crack já foi experimentado alguma vez na vida por 2 milhões de brasileiros, de acordo com a amostra do 2º Lenad: 1,8 milhão de adultos e 150 mil adolescentes, sendo respectivamente 1 milhão e 18 mil que fumaram a pedra no prazo de um ano. Uma parcela que corresponde ao maior mercado de usuários no mundo em crack, dado que repercute em diversas reuniões de jornalistas, pesquisadores, gestores de políticas públicas e demais formadores de opinião. Preocupa que a primeira experiência da cocaína e do seu derivado aconteça, boas vezes, na adolescência. Entre os usuários entrevistados no levantamento nacional, 45% o conheceram ainda antes da maioridade. No Estado de São Paulo, o índice é de 36%, estimando um universo de 600 mil paulistas que já utilizaram o crack. Contudo, o dado mais alarmante vem de uma pesquisa de 2013, da Fiocruz, do Ministério da Saúde, que indica que, nas capitais do Brasil, há 370 mil pessoas que usam regularmente o crack, o que equivale a 0,8% da população destes municípios. “É preciso ter alternativas diante dessa realidade, porque é um exército de pessoas que silenciosamente cresce e quantas iniciativas atacam esse problema do vício?”, avalia Brandão enquanto atravessamos um túnel. Teoria da vocação O rumo na carreira do coordenador é uma rota comum, para ele, na sua vida comunitária junto à família e na igreja. Por mais que evite impor Deus, milagres ou abordar religiosidades nas conversas do DBA, ele tem uma relação estreita com a fé desde adolescência. Por volta dos 15 CRACOLÂNDIA: TERRITÓRIO DO ABRAÇO – Lincoln Spada (Imaginário Coletivo) – Adesaf
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anos, ingressou na Sociedade São Vicente de Paulo, movimento que contribui com famílias em situação de vulnerabilidade, por vezes com doações de cestas básicas. “Vejo o meu trabalho como uma vocação, sabe? Tenho uma teoria que, para tudo na vida, tem que haver vocação. Não é um pré-requisito, não é apenas uma habilidade ou técnica. Vocação seria algo interno, mais para o intangível, que está adormecido em nós e, de repente, vem à tona”, busca definir Brandão. Naquela mesma semana, ele estava começando a esboçar um retiro espiritual para casais com amigos da igreja. Terapias religiosas Ele comenta que leu algumas reportagens em que é maior o êxito de comunidades terapêuticas religiosas, tradicionais ou pentecostais, em recuperar os toxicodependentes de seus vícios do que os diferentes tratamentos sem relação com a espiritualidade. Como se esta relação com a fé colaborasse na conscientização dos internos sobre a reinserção social. Grupos cristãos e espíritas vão periodicamente a Campos Elíseos clamarem por novos adeptos em seus tratamentos. Muitos desses missionários são toxicodependentes recuperados que fazem das suas vidas uma campanha hercúlea com quem está na situação de rua. Antes da carona, uma sessão de louvor promovida por alguma instituição religiosa ocorria bem ali, a céu aberto, no Largo Coração de Jesus. Após entoarem no alto-falante Deus de Promessas, um homem pregava como imbuído pelo Espírito: “O Senhor vem para te libertar! O Senhor vem te dar a verdadeira paz! Porque, muitas vezes, nós buscamos alegrias em tantos lugares e hoje o Senhor quer ser a sua fonte de toda alegria, todo amor, ele vem ao seu encontro, ele vem te buscar!”. E prosseguia no chamado diante do fluxo: “Você é capaz de muita coisa, porque o Senhor te ama, te ama muito mais do que a sua família, te ama acima de tudo. Por isso te convido até aqui e vem rezar com a gente,
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porque sei que você precisa de uma palavra. Irmão, irmã, te convido até aqui e não tenha medo, porque o amor de Deus nunca se perderá!”. Não reparei se algum usuário de drogas seguiu o missionário. Nesse tipo de atendimento, quem aceita participar da iniciativa, permanece por cerca de um mês em um alojamento para cuidar de sua abstinência e, se quiser continuar a enfrentar o vício, migra por alguns meses para as casas terapêuticas. São lugares mais afastados, reclusos. Os mais famosos do gênero se localizam em fazendas no interior paulista. Segundo monografia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, a antropóloga social Patrícia Melotto cita que, entre os usuários de drogas, “a eficácia da igreja evangélica parece ser associada também à relação estabelecida com os pastores durante os cultos”. Nestes centros terapêuticos, o sucesso “nesses locais e a adesão às suas rotinas é estreitamente ligada à adesão aos princípios religiosos estabelecidos”. Tratamentos de internação Assim, na inexistência do devido amparo familiar, as instituições religiosas tentam pastorear os filhos de Deus para os bons valores. Hospitais gerais e centros especializados são outros caminhos a serem trilhados pelos usuários de drogas. O programa estadual Recomeço, por sua vez, aposta neste viés, com um trabalho integrado dos Poderes Judiciário e Executivo, atendendo, desde janeiro de 2013, usuários e seus familiares, que buscam a internação. A depender dos encaminhamentos, a internação dos pacientes pode ser voluntária ou compulsória. Nestas residências terapêuticas ou moradias assistidas, também existe uma equipe multiprofissional acompanhando os internados e colaborando com os familiares. Mas a recaída é o calcanhar de Aquiles na maioria dos centros de internação, governamentais ou religiosos. É que, ao se deparar com o retorno às cidades, os antigos pacientes não recebem o mesmo apoio intensivo das entidades, possibilitando o seu retorno às drogas e, CRACOLÂNDIA: TERRITÓRIO DO ABRAÇO – Lincoln Spada (Imaginário Coletivo) – Adesaf
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consecutivamente, o desânimo ao cair no vício nas vezes seguintes. O contexto piora para pacientes que estavam em situação de rua, já que após as internações, continuam sem lar e vínculos de amparo. Ao mesmo tempo, essas ações de reinserção são mais efetivas que outras incluídas pelo Poder Público nas últimas décadas em tal território de ilegalidade consentida. O Plano de Ação Integrada Centro Legal, desenvolvido em 2012 na Capital paulista em conjunto com a antiga Administração Municipal e Governo Estadual, foi analisado como ineficiente por parte do Ministério Público Estadual (MPE). Intervenções policiais A estratégia consistia na ocupação policial da região, barrando a chegada dos traficantes e entrando em prédios abandonados; na ação ostensiva da Polícia Militar (PM) para incentivar os consumidores de crack a procurar ajuda; e, em seguida, manter os resultados estimados pelo Poder Público. Trata-se da popular Operação Sufoco. Passados seis meses, o consumo e o acesso às drogas continuavam inalterados. Em pesquisa da Unifesp com 151 usuários de drogas, 70% disseram que ainda frequentavam a região, 58% ainda a ocupavam desde o início da operação policial e 22% relataram ter sofrido alguma violência. Dentre elas, a maioria sofreu agressões verbais, e outros enfrentaram o uso de spray de pimenta, espancamento e agressão física leve. Para metade dos entrevistados, o consumo não alterou e somente um terço recebeu alguma oferta de tratamento contra o vício. Pior, para 25%, a operação não impediu que o acesso ao crack aumentasse na região. A cada dez, sete disseram que continuavam a comprar as porções com facilidade e oito garantiram usar a mesma quantidade. Na época, uma entrevista à imprensa da Prefeitura de São Paulo e da PM respondia que não houve falha na Operação Sufoco. Naquele semestre, os dois órgãos informaram que ocorreram mais de 850 internações de usuários nesta ação, 7,5 mil encaminhamentos para serviços CRACOLÂNDIA: TERRITÓRIO DO ABRAÇO – Lincoln Spada (Imaginário Coletivo) – Adesaf
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de saúde, 542 prisões em flagrante por tráfico e apreensão de 66 quilos de entorpecentes. No entanto, o psiquiatra Ronaldo Laranjeira, um dos fundadores da Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas, avaliava: “A política lá deveria ser mais sustentada, uma política de tirar as pessoas da área, de modo a influenciar o tráfico”. De acordo com ele, embora tivesse apoio da população, a operação não contou como uma integração dos órgãos públicos de forma mais coesa e com credibilidade. Segundo artigo da doutora em Antropologia, Taniele Cristina Rui, em 2013, “em suma, a operação gastou dinheiro, obrigou os usuários de crack a vagar pelas ruas do centro, atrapalhou a rotina dos moradores do entorno, usou de violência gratuita para nada”. Como consequência dessa desarticulação, o resultado foi dispersão para outros bairros. As palavras da antropóloga ressaltam uma ação civil pública de promotores do MPE, que analisou justamente a ineficácia da Operação Sufoco, o prejuízo para as poucas iniciativas que agiam no local e o impedimento de direitos da população em situação de rua. Na ação do MPE, “quanto ao sagrado direito de ir, vir e ficar, as pessoas o perderam, quanto ao vir e ao ficar, só podiam ir. Não lhes era possível permanecer nas vias públicas; tinham que circular, ainda que a esmo e sem destino, dando voltas nos quarteirões, em bizarros movimentos que a imprensa denominou procissões”. Segurança pública e assistência social Temas como esse de segurança pública, Brandão entende bem. É que em 2011, ele foi convidado pela prefeitura de Cubatão para chefiar um departamento de Segurança Pública, com objetivo de articular a pasta como uma futura secretaria – instituída em 2012. No mesmo ano, atuou como secretário de Turismo, e entre 2013 e meados de 2014, chefiou a Assistência Social. “Um segmento que trabalha prioritariamente para a emancipação do indivíduo, para que ele tenha mais consciência de seus direitos e deveres.” CRACOLÂNDIA: TERRITÓRIO DO ABRAÇO – Lincoln Spada (Imaginário Coletivo) – Adesaf
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Convidado pela Adesaf para o DBA, o desafio o estimulou ao seu novo ponto de partida, confidenciou-me ao chegar à frente de meu lar. “Não tenho a pretensão de que o programa seja a principal alternativa. Enquanto iniciativa de redução de danos nesses moldes, inédito no Brasil, ele ainda é um caminho, porque não tem tempo suficiente de execução. Para ser considerado um projeto maduro, levam-se anos. Mas, para mim, é um bom caminho.” Polêmica redução de danos O programa paulistano é uma alternativa de redução de danos de baixa exigência do prefeito Fernando Haddad, filiado ao Partido dos Trabalhadores (PT). Trata-se de um modelo de política pública que ganhou visibilidade a partir do mandato de sua correligionária, a ex-prefeita Telma de Souza, em Santos, no litoral paulista, em 1989. Naquela época, a cidade litorânea era conhecida como a capital nacional da Aids, mal vista pelos munícipes e cidades vizinhas, ainda mais porque o vírus do HIV despontava com estigmas sexuais. As poucas informações sobre origem, prevenção e tratamento da doença reforçavam o preconceito contra os enfermos. De acordo com a Organização Mundial de Saúde, a cidade com o maior porto da América Latina tinha 60% dos consumidores de drogas com o vírus HIV, taxa de sorologia superior à de Sidney (5%), Rio de Janeiro (38%) e Nova York (45%). Para combater esse caos, a prefeitura foi pioneira na distribuição gratuita de preservativos à população, além de seringas descartáveis aos usuários de drogas injetáveis. As medidas polêmicas resultaram em dois mandados de prisão, quase a vias de fato, para Telma, para o então secretário de Saúde, David Capistrano, e até para outros agentes, como o infectologista Fábio Caldas Mesquita. Uma ampla campanha para justificar as ações rebateu paulatinamente o preconceito e diminuiu os índices da epidemia. A exprefeita santista até hoje é conhecida pelo pioneirismo, David foi seu sucessor no Paço Municipal, e Fábio hoje compõe a equipe sobre HIV, STI e Hepatites Virais da Organização Mundial de Saúde. Parece-me um tanto CRACOLÂNDIA: TERRITÓRIO DO ABRAÇO – Lincoln Spada (Imaginário Coletivo) – Adesaf
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natural que investimentos em redução de danos demorem mais tempo para garantir o apreço popular. Inspirações estrangeiras Outras duas iniciativas foram as responsáveis por instigar a Prefeitura de São Paulo a lidar com a redução de danos no território de Campos Elíseos. Uma pelo Serviço de Saúde Pública em Amsterdã (Holanda) e outra pela organização Portland Hotel Society, que desenvolve a Insite, em Vancouver (Canadá). Na capital holandesa, também há um ambiente de uso controlado de drogas, mas lá o vício da heroína é um dos males maiores da população. Assim, a distribuição de seringas descartáveis é feita para evitar o índice de HIV e, ao mesmo tempo, o Poder Público oferece metadona como substância alternativa à heroína. A metadona produz os mesmos efeitos, mas age com maior duração e diminui sintomas de abstinência. “Como resultado, de 1992 a 2012, houve grande queda no número de usuários que se tornaram portadores de HIV; e queda, também, na faixa etária dos usuários de heroína. Atualmente, mais de 60% desses usuários têm mais de 50 anos, o que demonstra a diminuição do consumo entre os jovens”, discursou Marcel Buster, do Serviço de Saúde Pública de Amsterdã, num Seminário Internacional de Políticas sobre Drogas, realizado pela Prefeitura de São Paulo, em novembro de 2014. O evento contou com a presença de Liz Evans, diretora executiva do Portland Hotel Society (PHS). Ao visitar o DBA, a canadense chorou: “São Paulo está tendo uma ótima oportunidade inicial. O que o Poder Público apoiou nos últimos dois anos, nós precisamos lutar sozinhos por 20, até contar com apoio governamental”. Inicialmente, a PHS oferecia a troca diária de agulhas entre usuários de drogas injetáveis. Com o programa Insite, desde 2003, propõe o consumo supervisionado de drogas e o acolhimento de usuários com hospedagem e alimentação como estratégias de redução de danos. No centro comunitário, o hóspede tem acesso a tratamentos de saúde (cuidados CRACOLÂNDIA: TERRITÓRIO DO ABRAÇO – Lincoln Spada (Imaginário Coletivo) – Adesaf
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dentários e desintoxicação) e participa de atividades esportivas, oficinas de cidadania e de profissionalização. Assim que o beneficiário entra no mercado de trabalho e se sente capaz da reinserção social, é desvinculado do programa. O Insite existe num dos bairros mais vulneráveis de Vancouver, onde há 12 mil usuários de heroína. Em seu site oficial, a PHS explica que opera em um modelo que se esforça para diminuir os efeitos adversos à saúde, consequências sociais e econômicas do uso de drogas, sem exigir a abstinência de uso delas. Entretanto, com o acolhimento, é natural que caiam as estatísticas de toxicodependentes. A mesma razão em que se baseia o DBA.
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Capítulo 3
Poesia Vária5 Cantarola Caetano Veloso há anos que “cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é”, toda vez que Dom de Iludir entra em seu repertório. Os músicos Renato Teixeira e Almir Sater escreveram, em Tocando em Frente, que “cada um de nós compõe a sua história, cada ser em si carrega o dom de ser capaz e ser feliz”. Ambos versam como se nossas vidas fossem poesias de autoridade para além do papel e das notas musicais. Daí, batizo este capítulo como uma aglutinação de demais vozes que tentam, atravessam ou tangenciam em pontos ao definir um perfil e os hábitos da plural comunidade usuária de crack e em situação de rua na região que compreende Campos Elíseos. Portanto, antes de explicar sobre a implantação do programa DBA, é importante destacar as facetas obscuras do vício no território psicotrópico na região. Começo tal prelúdio com outras rimas. De Carl X, rapper que vivia no fluxo do bairro, mas não pertencia ao DBA. “São Paulo à noite, o mundo se divide em dois. / Pra quem não me conhece, meu nome é Carl X. / Muito prazer! / Vou levar o outro mundo que ninguém quer ver: / O mundo em que não se distingue o amor da maldade, / O mundo que ganha a vida quando se escurece a nossa cidade”. A canção foi entoada no programa Repórter Record Investigação (abril de 2015). O programa de TV montou uma cabine próxima ao fluxo para que quaisquer usuários de drogas contassem sua vida – beneficiários ou não do DBA. Gravou gente de Alagoas, Minas Gerais, Bahia, Ceará e de 5
Poesia Vária é o título de um livro do modernista Guilherme de Almeida. Neste capítulo, o nome sugere as diferentes narrativas dos frequentadores do fluxo da Cracolândia. CRACOLÂNDIA: TERRITÓRIO DO ABRAÇO – Lincoln Spada (Imaginário Coletivo) – Adesaf
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diferentes profissões. Antônio Carlos, de 45 anos, é conhecido como Carl X nas redondezas. Esteve dois anos preso por tráfico de drogas e, ao sair das grades, voltou nos últimos dois para o vício no território. “A reação da família? A saudade é grande e sei que a deles também”, felicita-se o rapper, mais à vontade para retornar ao doce lar. A reclusão ao céu aberto, longe de casa, tem lá suas razões, anotam Aparecida Alvarez, Augusta Alvarenga e Nelson Fiedler-Ferrara em artigo na revista Psicologia & Sociedade (2004). “O sentimento da vergonha foi manifestado por eles [moradores de rua e usuários de crack na Bela Vista], face à situação em que viviam (...). Os adultos – inclusive os aparentemente maduros e não neuróticos – mostram-se muito sensíveis à possibilidade de um vergonhoso descrédito”. O artigo relaciona a vergonha como o ato de impulsionar a esconder o rosto e, consecutivamente, de se afundar no chão. O rapper chega à noite, abraça toda a família, principalmente a sua mãe, em prantos. “Minha porta sempre esteve (aberta) pra ele. Ele é meu filho, ele é filho do meu grande amor, que Deus já levou.” A alegria dura minutos na TV e na vida real. Dia seguinte, o músico abandona o clima festivo dos parentes e, rumando ao avesso de um filho pródigo, desaparece novamente do convívio da mãe, esposa e enteada. Sobreviver nas ruas Carl X é um exemplo do perfil socioeconômico da população de moradores de rua no centro paulistano. Em 2010, uma pesquisa da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo (USP) avalia que a maioria das pessoas nesta situação vive sem nenhum grau de parentesco, embora tenha filhos. “É importante constatar que a maioria de homens e mulheres entrevistados trabalhava antes de perder a moradia e chegar à vida de rua.” O elenco de ocupações vai desde categorias simples até administrativos mais especializados. O levantamento salientava o abismo entre o emprego formal e aquela fatia da população. Satisfaziam-se com a renda de coleta de lixo, serviços de carga e descarga, flanelinha ou outros de baixo custo. Em consequência, “no dia da entrevista, quase a metade tinha auferido pequena renda em atividades CRACOLÂNDIA: TERRITÓRIO DO ABRAÇO – Lincoln Spada (Imaginário Coletivo) – Adesaf
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típicas de rua, incluindo a mendicância. E gastaram no mesmo dia para consumir o que consideram essenciais: comida, cigarro, bebida e drogas”. Em artigo para a Revista Brasileira Adolescência e Conflitualidade (2011), Luciane Marques Raupp e Rubens Adorno apresentam dois casos de usuários de crack em Porto Alegre (RS). O primeiro é o casal de jovens Galo e Ágata que, respectivamente, atuava num lava-jato e numa cooperativa de limpeza urbana. Semanas depois, “converso com Ágata e ela conta ter largado seu emprego por considerá-lo ‘muito trabalhoso’. Seu namorado foi demitido porque o posto de gasolina no qual trabalhavam foi vendido. Estão sem lugar para morar”. A rua foi de opção para realidade. Lisbela representa outro relato forte, de uma jovem que pouco restabelecia ligações afetivas em seus momentos de abstinência de crack. Os autores resumem assim: “Desde a saída de sua casa própria para viver nas ruas devido ao uso intenso de crack, passando por temporadas em albergues ou na casa de conhecidos ou empregadores e, posteriormente, voltando a residir em um abrigo até ser expulsa do mesmo e voltar para a rua”. A perdição longe da morada e dos vínculos também é a escolha de um jovem que protagoniza a edição especial sobre a Cracolândia, em 2013, no programa Conexão Repórter (SBT). São inúmeras as razões para o crack entorpecer mais e mais brasileiros e colocar o País no topo do tráfico e uso da pedra. Em perfil sociodemográfico e de padrões de uso entre dependentes hospitalizados, veiculado na Revista Saúde Pública (2003), os autores observam quatro pontos: a maior disponibilidade do crack nas cidades; a migração de usuários de drogas injetáveis para o crack em decorrência das infecções via agulhas; o baixo custo; e a diferença na potência dos efeitos entre a cocaína inalada, a heroína e o crack, sendo este “equivalendo-se ou até mesmo ultrapassando os efeitos da administração por via endovenosa”.
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Desigualdades sem estigmas Por três meses, aprofundei-me em mais de trinta artigos nacionais e internacionais referentes à população em situação de rua ou de usuários de crack. Com razão, parte deles anseia características comuns a quem entra no ciclo do vício. O interesse para a prevenção é também de toda a sociedade. Entretanto, nenhum apresentará como fatores de influência características inatas ou religiosas. O que quero constatar, é que, sim, há maiorias na comunidade de Campos Elíseos, como homens, não brancos, acima de 30 anos e de escolaridade baixa ou média, além de certa prevalência de pessoas que assumam orientação não heterossexual. Como se o espaço da marginalização de todos os preconceitos possíveis de nossa nação-líder consumidora do crack (racismo, homofobia, contra pobres e migrantes etc.) se deparassem no ambiente mais hostil e cruel que a humanidade desejaria ao seu semelhante: a rua. Mas é notório que, se há um idoso dos subúrbios, o asfalto acolhe também o violinista que tocava na Sinfônica de São Paulo. Existem negros e brancos; pobres e ricos; homens e mulheres; heterossexuais e não heterossexuais. Essas características, portanto, não são causas ou consequências para a entrada do vício. São somente circunstâncias, tendo em vista que o crack não faz distinção. As escolhas e curiosidades que acarretam infelizmente em dependência química partem, em maioria, de questões individuais. Estabelecer o padrão de uma pessoa usuária de drogas é se aceitar como um míope social. No entanto, há circunstâncias externas que podem corroborar nas quedas e recaídas. A liquidez nos elos desgastados com a família, a pressão em prol do sucesso profissional, as condições de desigualdade de renda... Sempre é bom lembrar que o Brasil ainda é um país marcado pela desigualdade social, por mais que tenha havido uma ascensão e milhões saíram da linha da miséria na última década em programas de transferência de renda. É que, mesmo assim, as cidades (principalmente as capitais e centros urbanos) pouco evoluíram para estruturar melhor quem está nas CRACOLÂNDIA: TERRITÓRIO DO ABRAÇO – Lincoln Spada (Imaginário Coletivo) – Adesaf
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periferias. Estamos longe do ideal nas condições de qualidade pública de ensino, saúde, segurança, geração de renda, lazer, cultura, mobilidade e desenvolvimento urbano. Contextos maiores que, aos poucos, limitam o ânimo da nação em se desenvolver ou arranjar melhores oportunidades, fazendo com que o país amargue o topo do ranking mundial referente ao tráfico e consumo do crack. Absurdos pela fissura A pedra maldita pela sociedade gera a compulsão de seus usuários. O que denota em prejuízos na saúde das pessoas, e ainda em “fissuras” que os tornam tão obsessivos a ponto de incitá-los a mentir e a dissimular diálogos, perdendo a confiança dos familiares e amigos ao redor. Um desgaste mútuo na relação, conforme artigo na Revista de Saúde Pública (2011), assinado por Tharcila Chaves, Zila Sanchez, Luciana Ribeiro e Solange Nappo. “Os entrevistados mostraram ter consciência dessa mudança na personalidade e da perda da confiança de muitas pessoas. Mesmo após o abandono do uso de crack, os ex-usuários relataram não recuperar a confiança das pessoas próximas”, escrevem as acadêmicas. Não difere muito de um exemplo registrado pelo programa Profissão Repórter, da TV Globo, em 2014. Numa edição, acompanham o caso de uma jovem de 21 anos, que há três revezava a semana entre o fluxo e a sua casa. De carreira promissora, como ex-professora de inglês e exuniversitária em Enfermagem, ela tem uma relação conturbada com a mãe, que diz: “Não criei minha filha para o crack. Criei para ela subir na vida”. Os absurdos em busca da droga são incontáveis, de acordo com o Repórter Record Investigação. Entre os depoimentos, “perdi o carro, perdi família, perdi o respeito”, “celular de R$ 1 mil, troquei por R$ 20” e, o que mais me impressionou, uma mulher que se “prostitui há 15 anos em troca das drogas”.
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O programa de TV apresenta a queda de uma ex-campeã paulista de caratê e ex-jogadora de futebol em relação ao vício. E ainda um último caso, de Vânia de Castro, de 28 anos, que aceita se reabilitar, grávida do terceiro filho. Inseriu-se no vício em decorrência da ausência da figura materna na infância. “Quero de verdade uma mudança”, afirmou numa clínica servindo de modelo de superação. Vulnerabilidade feminina Entendendo-a como modelo, fecho este capítulo tratando sobre as mulheres. Em todas as pesquisas, elas se apresentam em menor número enquanto população em situação de rua. Em levantamento da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da USP (2010), o perfil socioeconômico da população no centro paulistano é predominantemente masculino, sendo 14% das entrevistas feitas com mulheres. A maioria também era de não brancos, com idade entre 30 e 50 anos. Desses, 74% abusavam de alguma droga. É interessante destacar aqui quão essa parcela se encontra ainda mais em vulnerabilidade quando está nas ruas. De acordo com relatório da Organização das Nações Unidas (ONU), a diferença salarial entre homens e mulheres era de 29% em 2007. Já em Estatísticas de Gênero 2014, elaboradas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a renda média das brasileiras correspondia a 68% da dos homens. Para mulheres em situação de rua, a dificuldade potencializada pelo gênero para reinserção no mercado de trabalho é ampliada pela obrigação de conviver com a situação de prostituição para manter o vício do crack. “Metade das mulheres entrevistadas relatou já ter se prostituído em troca de crack”, identificam Lúcio Garcia de Oliveira e Solange Aparecida Nappo, em artigo na Revista Saúde Pública (2008). O documento aponta outro dilema na época, quando foram ao território das drogas na Capital. “Atualmente, tem-se identificado a prostituição compulsória, em que homens ‘emprestam’ suas esposas a traficantes ou a outros usuários em troca de crack.” CRACOLÂNDIA: TERRITÓRIO DO ABRAÇO – Lincoln Spada (Imaginário Coletivo) – Adesaf
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A própria Vânia comenta para o telejornalismo da Record que sofreu dois estupros ao estar nas ruas, um deles após o uso de crack. Repete a trajetória de parte das mulheres em situação de rua, vítimas de violência sexual. Estas experiências traumáticas certamente devem compor o imaginário de parte das frequentadoras do fluxo em Campos Elíseos. “Vem comigo, loira”, disse um personagem para Larissa, interpretada por Grazi Massafera em Verdades Secretas, assim que começava uma sequência de estupro coletivo, em que a viciada em crack sofreria no território, na telenovela do horário das 11 da TV Globo, em 2015, de autoria de Walcyr Carrasco. Em artigo na Revista Saúde e Sociedade (2014), Rubens Adorno e Walter Varanda ressaltam que “o grau de exposição das mulheres que vivem nas ruas não permite que elas possam ora dizer sim, e ora dizer não a parceiros sexuais na própria rua”. A dupla continua: “algumas delas não conseguem se defender quando são forçadas a praticar sexo, outras usam a bebida ou assumem comportamentos bastante agressivos para se defender e enfrentar os homens que insistem em ter relações sexuais”. Uma infeliz cena de um cotidiano anterior e que, mesmo sendo reduzida na atualidade, precisa ser transformada pelo DBA em melhores oportunidades de reinserção social a esta população.
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PARTE 2
Início do DBA Bruna Stephanie
Beneficiário do DBA durante atividade laboral “Caminhos da Prevenção”
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Adesaf/Divulgação
Somente a tela que reflete as vias de Campos Elíseos constam de maneira ininterrupta na antessala do gabinete do prefeito Haddad
Adesaf/Divulgação
Iniciativa oferece oficinas que vão desde a inclusão digital e reparo de bicicletas até artes plásticas e corte de cabelo
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Adesaf/Divulgação
Em pesquisa municipal, mais de 52% dos beneficiários recuperaram o contato com a família, condição importante para a reinserção social
Bruna Stephanie
DBA é um programa construído no diálogo e no compromisso permanente com a população CRACOLÂNDIA: TERRITÓRIO DO ABRAÇO – Lincoln Spada (Imaginário Coletivo) – Adesaf
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A população toxicodependente em situação de rua votou no nome da iniciativa municipal. Venceu: De Braços Abertos
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Capítulo 4
O Farol6 O fluxo descrito no início do livro tem mais peculiaridades no televisor enorme do prefeito Fernando Haddad. Da antessala de seu gabinete, além da vista da janela para o Viaduto do Chá, o gestor pode acompanhar simultaneamente o caminho das pedras em um dos vários telões que o cercam. Segundo reportagem do El País (2015), há quadros que retratam a entrada da Prefeitura, o trânsito das marginais e viadutos, os alertas de enchentes. Visões substituídas aleatoriamente por outras centenas de câmeras de monitoramento da sexta maior cidade do planeta. No entanto, somente a tela que reflete as vias de Campos Elíseos funciona de maneira ininterrupta na sala de situação. As imagens reproduzidas ao vivo são de câmeras que zelam o território, circulando por meio dos ônibus da Guarda Civil Metropolitana. Em outubro de 2013, a Prefeitura adquiriu cinco veículos entregues pelo Governo Federal à Prefeitura para trafegar pelas ruas da Capital. Cada transporte tem capacidade para monitorar 26 câmeras: duas internas, cinco do lado de fora e mais 19 móveis, colocadas numa área de 3 km². Quando a repórter do El País questiona: “por que a imagem da Cracolândia sempre, prefeito?”. O gestor é enfático. “É o projeto que eu mais tenho vontade de resolver. É uma coisa que tem que persistir todos os dias. Não pode desistir do território. Se você desiste do território, ele vira outra coisa.” A condição que tanto evita é o retorno do bairro para as mãos dos traficantes. Não à toa, sempre que necessita ir de helicóptero a um 6
O Farol é um quadro da artista plástica modernista Anita Malfatti. Neste capítulo, o nome remete à criação do DBA como forma de iluminar a região de Campos Elíseos. CRACOLÂNDIA: TERRITÓRIO DO ABRAÇO – Lincoln Spada (Imaginário Coletivo) – Adesaf
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ponto da cidade, Haddad pede no retorno para observar do alto a região da Luz – sim, o piloto segredou esta observação que trago à tona neste livro. O universo que desfiei de usuários de crack era bastante diferente no início do programa DBA, efetivado na terça-feira, 14 de janeiro de 2014. Na época, a estimativa governamental é que até dois mil usuários se encontravam no bairro, rumando às amiúdes do vício. Cenário diferente das minhas visitas ao local, em que, no máximo, encontrava um exército de 300 se combalindo diante das inestimáveis kryptonitas. Acolhendo a população A viabilidade do DBA festejada perenemente pela Administração Municipal é fruto do pulso e da postura afinca do Poder Público, aliado às mãos e vontades da população que frequentava o fluxo. Um dos primeiros acenos veio com a abertura da tenda e a unidade municipal na Rua Helvétia, em 22 de julho de 2013. Na época, a via e todo o quarteirão eram tomados de barracos de madeira ou lona. Os alojamentos improvisados nas calçadas concebiam um ambiente de favela intransitável para quem não pertencesse à sociedade do crack. Os lares para o tráfico e uso de drogas ganhavam também os endereços dos pequenos hotéis ao redor. Com o expediente do equipamento público às favas, os assistentes sociais bancaram as montanhas atrás de profetas Maomé. A cada abordagem, uma profecia ditava o apocalipse, segundo quem vivia naqueles barracos: temiam que a Prefeitura realizasse a internação compulsória. Ao trocar as lonas azuis da tenda por transparentes, um êxodo natural levaria a comunidade da “favelinha da Cracolândia” a frequentar o espaço público. Entre sopões e refeições servidas periodicamente, os usuários cresciam o timbre: em vez e voz. Já não necessitariam de outros profetas para intermediar as conversas com a Prefeitura. As questões de moradia, alimentação e recolocação profissional eram observadas pela maioria dos CRACOLÂNDIA: TERRITÓRIO DO ABRAÇO – Lincoln Spada (Imaginário Coletivo) – Adesaf
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depoentes nas rodas de conversa. Com o convívio, os próprios votaram no nome da futura iniciativa municipal: De Braços Abertos. O anseio deles aumentava simultaneamente com a ansiedade de Haddad em iniciar o projeto. Uma parte da população do território passaria horas no Palácio do Anhangabaú. Face a face com o prefeito, que mal se incomodava com as fichas corridas dos representantes – gente que já cumpriu pena de 12 a 23 anos de detenção. “Desde aquele dia, estamos tentando a manutenção da relação de confiança”, garantiu Haddad em entrevista ao Estúdio Fluxo (2014). Em uma ação inédita envolvendo uma equipe intersetorial da Prefeitura e a Polícia Militar vinculada ao Governo Estadual, ainda na primeira quinzena de 2014, aproximadamente 300 usuários de crack seriam transferidos de seus barracos para os hotéis da região. Na primeira semana, o prefeito ressaltava: “Passamos seis meses avaliando como reocupar aquela região pelo Poder Público, sem disparar um tiro, sem soltar uma bomba, sem um cassetete, sem ninguém apanhar. Só o que aconteceu nesses três dias é suficiente para chamar a atenção nesta mudança de paradigma”. Consequente redução do tráfico Embora o DBA seja um programa de redução de danos de baixa exigência, consequentemente ele colabora na redução do tráfico de drogas na região. Costurado minuciosamente, o pacto de palavras entre o fluxo e Prefeitura é uma metáfora do quão demonstra que a população em alto risco de vulnerabilidade pode ser protagonista na construção de uma rede de suas próprias políticas públicas. Um diálogo permanente que contribui para coibir o tal “poder paralelo” e mais estigmas ao fluxo. Logo nos dez primeiros dias, foram 1.131 pedras de cracks apreendidas e 25 pessoas detidas por tráfico de entorpecentes. Paralelamente, em um ano de projeto, as 6,3 mil abordagens da Guarda Civil Metropolitana (GCM) e da PM já tinham resultado em 319
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detenções na região, sendo 91 relativas ao tráfico de entorpecentes (foram 2,4 mil pedras apreendidas), além do dinheiro do comércio ilícito. No início de 2015, a GCM contava com efetivo de 168 agentes na área, distribuídos em quatro turnos, utilizando-se 14 viaturas, quatro motocicletas e dois ônibus, além das unidades de videomonitoramento. Simultaneamente, as estatísticas do Governo Estadual registravam uma queda na criminalidade. Em 2014, a PM anotou 17 furtos de veículos e 392 furtos a pessoas. No ano anterior, foram 34 e 582, respectivamente, determinando queda de 50% e 33% no mesmo comparativo. Outro dado revelou que as prisões de traficantes pela polícia saltaram 83%, partindo de 96 registros, em 2013, para 176, em 2014. Momentos de risco Embora os números demonstrem o êxito da iniciativa, há situações que relevam a importância da liga entre os órgãos públicos, e também com a comunidade. Três momentos colocaram à prova um desatar da teia de relações de confiança. Foi por volta das 15 horas de 23 de janeiro de 2014, quando policiais civis do Departamento Estadual de Prevenção e Repressão ao Narcotráfico (Denarc) fizeram uma ação para prender um traficante. O que poderia unir as vontades dos governos e da comunidade se esvaziou em uma ofensiva de alguns traficantes e adeptos de um lado, contra policiais que efetivaram o cerco em dez viaturas. A mídia tradicional e livre registrou bombas de lacrimogêneo. Três policiais e dois dependentes químicos feridos, além de 34 detidos, sendo quatro prisões efetuadas de fato. O clima de pânico não perdurou. A Prefeitura retornaria ao diálogo com a comunidade e os toxicodependentes. Meses depois, a presença de traficantes e usuários se diluiria, mas ameaças violentas de criminosos na região fizeram com que o Poder Público, em pacto com parte dos usuários, CRACOLÂNDIA: TERRITÓRIO DO ABRAÇO – Lincoln Spada (Imaginário Coletivo) – Adesaf
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instalasse em 14 de maio de 2014 um cercado de metal na esquina da Alameda Cleveland com a Rua Helvétia. As polêmicas barreiras foram interpretadas pela administração como um meio de monitoramento e de que os traficantes não acessassem a área. Já que toda leitura se dá em diferente perspectiva, outra parte dos usuários de crack e acadêmicos viu a ação como um modo de higienizar o bairro. No dia seguinte, os próprios toxicodependentes reavaliaram e derrubaram tal bloqueio. O direito primário de ir e vir voltaria em pauta quase um ano depois. Gradativamente foram sendo erguidas lonas para que os usuários de crack residissem na mesma esquina. O risco de que as tais moradias abrigassem traficantes fez com que a Prefeitura desarmasse mais uma vez a nova “favelinha”, em 29 de abril de 2015. Um acerto bem visto se o desencontro das operações públicas não colidisse com uma ação da Polícia Militar. À paisana, às 14 horas, policiais foram “descobertos” por alguns usuários e surgiu um novo confronto. Até as 17h30, a Folha de S. Paulo detalhava um policial ferido, dois toxicodependentes baleados, uma tentativa de incêndio em ônibus, outro coletivo depredado na Praça Princesa Isabel e uma barricada de fogo na região. A tensão bélica de horas se tornou num novo fracasso, pois nem a Prefeitura, nem a Secretaria Estadual de Segurança Pública sabiam das ações paralelas no mesmo dia – situação que ambos os órgãos evitariam repetir. Dignidade aos beneficiários Mesmo com episódios emblemáticos e legendas partidárias diferentes, o petista Haddad jamais desafiou ou se colocou em oposição ao governador de São Paulo, Geraldo Alckmin (PSDB). A cordialidade é recíproca em coletivas e entrevistas. “O programa (De Braços Abertos) é
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muito louvável”, destacou o governador tucano em declaração ao jornal O Estado de S. Paulo (2014). Esta relação estabelecida de confiança é primordial ao públicoalvo da iniciativa municipal: os usuários de crack que desejam a reinserção social e de direitos. Oferecer alimentação no restaurante popular Bom Prato e hospedagem em estabelecimentos de Campos Elíseos e de outros bairros, e, consecutivamente, o ciclo de sono saudável são essenciais para o desenvolvimento de qualquer pessoa. Não são poucos os cientistas e pesquisadores que sugerem uma relação direta de saúde e boa alimentação. Uma árdua tarefa minha seria descrever cada um dos benefícios de uma dieta equilibrada. A riqueza dos nutrientes nas refeições diárias promove uma maior eficácia do sistema circulatório, digestivo, cerebral e melhora progressivamente os sentidos e o raciocínio. Não sei como você se comporta quando atrasa uma boa refeição no seu dia a dia, qual sua vontade de se relacionar com quem está perto, como fica sua autoestima e qual sua produtividade no trabalho no período a seguir. Talvez seja tão pior quanto se perder uma hora de sono. Imagine esta situação ocorrer repetidamente com um usuário de drogas e que está sujeito às demais vulnerabilidades enquanto morador em situação de rua. O efeito compulsivo do crack aliado a entorpecentes e drogas lícitas ou ilícitas estimula muito a privação de sono. Adicionando outros fatores, como a ausência do senso de autopreservação, relacionado principalmente à higiene, e a impossibilidade de ter uma hospedagem fixa, dificulta ainda mais a tentativa de reinserir a pessoa na sociedade como um cidadão. Os estados de abandono ou de necessidade de sobrevivência atingem níveis altos na população de beneficiários do DBA. Assim, estes dois tratamentos diferenciados (o auxílio à alimentação e à moradia) já poderiam ser bem-vistos. Entendendo que a cidadania tem como vertente o trabalho e o serviço à população, proporcionar o retorno às frentes de trabalho e à capacitação, mesmo que CRACOLÂNDIA: TERRITÓRIO DO ABRAÇO – Lincoln Spada (Imaginário Coletivo) – Adesaf
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em meio período, já é suficiente para criar o empoderamento destas pessoas. De coadjuvantes para protagonistas. A experiência do DBA ainda é mais ampla, no sentido de que os beneficiários, ao se inscreverem na tenda do programa com assistentes sociais, têm a possibilidade de serem atendidos pela Secretaria Municipal de Saúde. Após anos, pela primeira vez, eles terão a oportunidade de tratamento de saúde preventiva no território, facilitando o acesso às políticas específicas do setor para este público. De acordo com a Prefeitura de São Paulo, são realizadas centenas de exames clínicos completos, como coleta de sangue, hemograma, glicemia, medição de pressão arterial, taxa de colesterol e sorologias para doenças como Aids, sífilis e tuberculose. Os agentes de saúde acompanham os beneficiários e, quando necessário, fazem o encaminhamento aos leitos de internação em casos de doença. Também em crises de abstinência, eles podem ser encaminhados a hospitais gerais para que cuidem da saúde mental. Ingressando no programa A participação no DBA acontece com o cadastro na tenda da Administração Municipal. A partir de sua listagem, ocorre o remanejamento do beneficiário para um dos hotéis inscritos no programa. A Adesaf, por sua vez, efetua o pagamento das vagas de hospedagem, gerencia a rotina nas frentes de trabalho e atividades de capacitação profissional e cidadã, também sendo responsável pelo auxílio pecuniário (pagamento semanal para os participantes destas ações). Sob a gestão da Adesaf, os cadastrados podem ser encaminhados e escolher diferentes opções para o seu expediente no programa nos dois anos seguintes. A varrição nas ruas, limpando as vias de Campos Elíseos e de bairros próximos; a jardinagem na Fábrica Verde; a distribuição via bicicleta de preservativos a lugares vulneráveis, como hotéis e zonas de prostituição; atuação na lavanderia de roupas dos beneficiários e vizinhança, instalada na tenda municipal; e, na área de manutenção predial, CRACOLÂNDIA: TERRITÓRIO DO ABRAÇO – Lincoln Spada (Imaginário Coletivo) – Adesaf
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entre outros cuidados de zeladoria nas hospedagens dos próprios beneficiários. Outras contrapartidas são oficinas de formação cidadã (encontros semanais sobre direitos humanos e cidadania), socioculturais e capacitação profissionalizante. Em 2016, por exemplo, havia turmas voltadas à inclusão digital, ecoartesanato (reciclagem de resíduos sólidos), criação de móveis com pneus, artes plásticas (de quadros a esculturas), reparo de bicicletas, costura e crochê, e cabeleireiro. A Secretaria de Desenvolvimento do Trabalho e Empreendedorismo (STDE) mantém parceria com uma escola de salão de beleza, que faz corte de cabelo e barba aos cadastrados do DBA na sede da Adesaf. Em 2015, houve um curso profissionalizante de manicure. Durante a trajetória da ONG na iniciativa municipal, aconteceram ainda cinedebate, passeios turísticos dos beneficiários para parques e praças da Cidade, confraternização em datas comemorativas, além de um espaço em seu galpão para pingue-pongue. Reinserindo no Largo Outra iniciativa que merece destaque foi um projeto de revitalização do parque do Largo Coração de Jesus, em junho de 2014, numa intervenção do Poder Público com a empresa Porto Seguro. O espaço de lazer conta com base comunitária da Polícia Militar, duas quadras poliesportivas, academia ao ar livre, bancos grafitados, playground e coreto, além da tradicional área verde. Na época, a reinauguração teve até na programação um campeonato de futebol com os beneficiários do DBA. Este conjunto de atividades do calendário da iniciativa municipal é deslumbrado por muitos usuários de crack como a chance de voltarem a ter uma vida mais digna. Os constantes pactos de confiança e as idas e vindas do programa experimental contribuem, a ponto de a Secretaria Municipal de Saúde indicar, ainda em abril de 2014, que os cadastrados reduziram de 50% a 70% o consumo de crack nos dois primeiros meses.
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Analisando estes fatos, é difícil que eu me considere imparcial quanto ao êxito do DBA. Por ingenuidade ou bom senso, a cada registro, atrevo-me a concordar com boa parte dos objetivos e ações colocadas em prática do programa. Do nascimento aos primeiros passos. Da primeira refeição às novas casas. As próximas páginas terão esta perspectiva e, como bom autor, desejo que saiba antes que minhas convicções atuais pendulam para a continuidade deste álbum. Muito mais amplo do que se pode perceber somente nas telas do gabinete do prefeito.
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Capítulo 5
O Ritmo Dissoluto7 Uma política pública intersetorial e pioneira visando à reinserção social como modelo de redução de danos. A mudança de paradigma dada com os vínculos de confiança diretamente entre a Prefeitura e a população usuária de crack. Ousado, o DBA é um dos variados projetos paulistanos que são alvejados de polêmicas e tensões, ao mesmo tempo em que recebe aplausos de outros tantos. Um ritmo dissoluto de opiniões que convergem ou divergem desde o primeiro dia da operação. Ao cumprimentar Haddad na perene vontade de incluir os usuários de crack no debate de sua política pública, parafraseio-o numa entrevista ao Estúdio Fluxo (2014). “Infelizmente, acho que a direita e a esquerda têm um ponto em comum sobre o problema da droga. Elas tomam os dependentes químicos como objetos, elas jamais veem aquelas pessoas como sujeito, capazes de firmar um contrato com o Poder Público.” O gestor prossegue a argumentação: “A direita, em geral, pela crueldade com o que trata aquelas pessoas com uso da violência, sempre tem uma visão higienista, policialesca, repressiva. Sempre tem o lado da limpeza, tratando aquelas pessoas como objeto a ser removido daquele local. E a esquerda não faz melhor (...), porque mesmo vendo aquela pessoa como gente e não como bicho e coisa, mas tem a visão de tutela. Não imaginam que aquelas pessoas podem fazer um contrato e que eles saibam o que é melhor para eles”.
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O Ritmo Dissoluto é o título do livro que marca o espírito modernista do poeta Manuel Bandeira. Neste capítulo, o nome remete aos diversos tons da mídia e de políticos sobre o DBA. CRACOLÂNDIA: TERRITÓRIO DO ABRAÇO – Lincoln Spada (Imaginário Coletivo) – Adesaf
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O prefeito resume bem a tempestade de críticas que recebe por causa desta iniciativa. Embora a direita não seja mais tão higienista, e a esquerda nem tanto faça papel de tutela. Mas as desconfianças se expandem ainda mais com a força da mídia nas redes sociais. A pioneira é o estigma da Bolsa Crack, que, aliás, nem pertence ao programa. O termo foi um apelido dado inicialmente em 2011, por uma ação do governador Antonio Anastasia (PSDB) em Minas Gerais ao oferecer auxílio financeiro às famílias que contavam com dependentes químicos internados. A alcunha manchetou jornais paulistas em 2013, quando o governo Alckmin criou o mesmo benefício no Programa Recomeço em São Paulo. Escândalo moral Se o DBA fosse lançado oficialmente no dia 14 de janeiro de 2014, à uma hora do dia seguinte, o colunista da Veja, Reinaldo Azevedo, descreveria o programa como a Bolsa Crack do PT. Conhecida por sua linha editorial de direita, a revista veiculou no seu site oito textos de Reinaldo contra o programa. Os argumentos eram de que “o programa da Prefeitura de São Paulo é só uma forma de financiar os viciados” e que os auxílios governamentais permitem concluir que “ser viciado, em São Paulo e no Brasil, é moralmente superior a ser apenas pobre”. Ainda na primeira crítica, Reinaldo afirmou que desaprova políticas de redução de danos. Nomeou o programa como um “escândalo moral em si mesmo”, “um fracasso por definição”, porque “em que país do mundo o Estado garante o fluxo de dinheiro da atividade sob o pretexto de que está promovendo a integração dos viciados?”. Nas avaliações seguintes, desconfiou que “até algumas pessoas que votaram nele achavam que seria um mau prefeito. Mas nem os adversários mais convictos imaginaram que pudesse ser tão ruim”. Para ele, o DBA “dá com os burros n’água”, que oferecer auxílios aos usuários de crack é “um desastre”, e que não sabe quantos anos vai levar São Paulo “a se recuperar das consequências trágicas da gestão desse senhor”.
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Embora tenha boa lógica, Reinaldo vai na contramão dos dados apresentados nesta publicação. O então âncora do SBT Brasil, Joseval Peixoto, complementou a crítica no ângulo do colunista. “Bemintencionadas [as iniciativas], nenhuma delas trouxe uma alternativa viável para os usuários de crack. Os viciados não conseguem sair das ruas, muito menos sair do vício”, em 22 de abril de 2014. O Cortiço A mesma desconfiança foi compartilhada pela psiquiatra Ana Cecília Marques, em entrevista ao Jornal Nacional logo no primeiro dia do DBA: “Eu acho que é uma medida ingênua, bem-intencionada, mas infelizmente boas intenções não funcionam numa situação tão grave como essa. Eu não vejo muita coerência em você promover a reinserção antes de fazer o tratamento”. No dia 29 de abril de 2015, a reportagem da Veja São Paulo compararia os hotéis do centro contratados pelo DBA com as linhas de Aluísio de Azevedo em O Cortiço: “[Um local a] minhocar, a esfervilhar, a crescer, um mundo, uma coisa viva, uma geração, que parecia brotar espontânea, ali mesmo, daquele lameiro, e multiplicar-se como larvas no esterco”. A quantidade de entulhos, banheiros entupidos e a presença de ratos em alguns estabelecimentos visitados registraram uma condição de insalubridade dos espaços. “O risco de incêndio é agravado pela ausência de extintores, roubados para virar moeda de troca por pedras de crack, o mesmo destino de vários outros itens”, atenuou a reportagem. Uma ocorrência de que uma beneficiária ateou fogo e destruiu dois quartos no último andar de um hotel está nas páginas. Prezam-se também as reclamações de alguns beneficiários. Duvido que seja este o acolhimento entendido como ideal pelo Poder Público, dos locais que conheci, minha percepção não era nada luxuosa, mas também não tão desoladora como a citada na matéria. De qualquer modo, trata-se de um dos poucos ataques tão bem argumentados de um CRACOLÂNDIA: TERRITÓRIO DO ABRAÇO – Lincoln Spada (Imaginário Coletivo) – Adesaf
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veículo e, a meu ver, como bom jornalismo, serviram para serem apurados em seguida pela Administração Municipal. A matéria também mostraria o outro lado, de beneficiários que se empregaram graças ao programa, nas atividades oferecidas pelo DBA através da Adesaf. Vitrine para domesticação Voltada à linha editorial de esquerda, a Carta Capital, em 16 de maio de 2014, seria mais incisiva na crítica, quando a Prefeitura criou o cerco de metal. O texto opinativo nem mostrou o lado da Prefeitura. Foi enfático. “Após a instalação das grades, os usuários dirigiram-se para a tenda Braços Abertos, base do programa da prefeitura na região, e negaram-se a participar do bizarro zoológico humano.” Noutras situações, o veículo concordaria com a diretriz do programa. Em artigo de Nabil Bonduki (setembro de 2014), o programa estaria no caminho certo, mesmo com as resistências. Nabil redige que “essas iniciativas de Haddad enfrentam resistência, em especial dos setores mais conservadores, que percebem que aos poucos estão perdendo seus privilégios. O programa ‘Braços Abertos’ é mais um que ainda encontra muita resistência. Apesar de ser um programa com o desafio de transformar os papéis sociais e que tem como modelo a humanização, romper com o passado tão recente ainda demanda muito esforço”. Consecutivamente, descreveria as medidas estaduais de repressão e a Operação Sufoco em 2012. Um dos mais atuantes na Pastoral da População de Rua na Arquidiocese de São Paulo, o Padre Júlio Lancellotti considerou o programa “uma vitrine, onde foram investidos em milhões” em entrevista ao site Ponte.Org (maio de 2015). “O que é resultado? Que todos ficassem varredores e fossem morar no hotel? Esse é um resultado de domesticação, de controle social”, dispondo aos beneficiários, em sua opinião, apenas a miséria e sem voz para incomodar a população. Ao Brasil de Fato (janeiro de 2014), o religioso veria que “a operação pode ter seu aspecto de redução de danos e está tendo agora muita CRACOLÂNDIA: TERRITÓRIO DO ABRAÇO – Lincoln Spada (Imaginário Coletivo) – Adesaf
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visibilidade. Mas a gente tem que ver como isso vai se dar no cotidiano. Há uma preocupação política de querer se diferenciar de outros. Mas também há um pragmatismo. Pensa-se que tem que ter um resultado. Não se foi à causa das questões, está se trabalhando por enquanto com os efeitos”. Neste caso, as discordâncias são para outro aspecto, ainda de desconfiança dos resultados da política pública, mesmo sem definir se há necessidade de resultado de redução de danos. Um debate longo que não dá para esmiuçar nesta obra por inteiro. Para o padre, a iniciativa pode ser considerada como um novo molde para promover a higienização e uniformização trabalhista na Cidade em vez do empoderamento dos beneficiários. Até mesmo, porque, segundo ele, “São Paulo está inserida dentro de um modelo de competição, de premiação por consumo, não é uma cidade voltada para agregar”. Por se tratar de um programa recente, e de pacto com os usuários de crack, não deixa de ser controverso sermos contundentes se isso ocorre ou não. Iniciativa populista Ainda nas ideologias de esquerda, a Associação Brasileira de Saúde Mental, a Associação Inclui Mais, o Setorial de Cooperativismo Social e os movimentos nacionais de Direitos Humanos e da População de Rua lançaram uma nota pública em tom de cobrança, em janeiro de 2014, para que o programa não fosse pontual, mas “incorpore representante de entidades e movimentos sociais, para monitorar, acompanhar e propor ações para o fortalecimento da consolidação de uma política intersetorial pública”. As opiniões contrárias se estenderam ainda no aspecto de saúde pública. Um dos idealizadores do DBA, Dartiu Xavier, reclamaria no blog SP no Divã (maio de 2014) da falta de equipes médicas e de seu treinamento para trabalhar com redução de danos, ao mesmo tempo, do sucesso que a Administração Municipal tende a relevar de seu programa. Por sua vez, o coordenador da iniciativa estadual Recomeço, o psiquiatra Ronaldo Laranjeira, também se mostraria em demais entrevistas CRACOLÂNDIA: TERRITÓRIO DO ABRAÇO – Lincoln Spada (Imaginário Coletivo) – Adesaf
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um pouco cético quanto às ações de redução de danos. Até pelos atendimentos que realizou com dependentes em alta vulnerabilidade, a internação seria para ele o caminho mais exitoso para a recuperação desta parcela da população. O presidente nacional do oposicionista PPS, o deputado federal Roberto Freire, endossaria as críticas em fevereiro de 2014, ao perceber a então baixa frequência de beneficiários. Ele reclamaria ainda que o aumento do fluxo de dinheiro apenas movimentaria mais o mercado do crack. “Trata-se, na verdade, de uma iniciativa populista própria de quem imagina que a simples distribuição de bolsas é capaz de resolver todos os problemas. Não resolve e, como se vê, ainda pode agravá-los.” Sem modelos ideais Ao revisar todos os capítulos, caro leitor, é interessante perceber que qualquer iniciativa que ouse fugir dos padrões para o tratamento de usuários de crack enfrentará resistência das mais diversas, seja de viés ideológico ou partidário. No entanto, saliento que, na maioria das vezes, a chuva torrencial de críticas que lava negativamente o projeto é muito recente à implantação do DBA ou pouco construtiva. O vereador do PSD, Andrea Matarazzo, por exemplo, em janeiro de 2015, fez um novo artigo que trata como “equívoco” o olhar transversal do programa à população da Cracolândia. “Os dependentes químicos não podem ser tratados enquanto vivem ao lado dos traficantes, e não serão curados trabalhando em locais cercados por outros dependentes sem nenhum tratamento.” Em seguida, ele elogiou o modelo do projeto Recomeço, do governo estadual, da mesma legenda em que já participou. Sem antes citar, “ainda não temos um modelo ideal”. De currículo inestimável na área cultural, Matarazzo era conhecido como “o Xerife da Cidade” quando foi subprefeito da Sé (de 2005 a 2007) e secretário coordenador das subprefeituras (de 2007 a 2009), embora neste período não tenha contribuído com diferentes alternativas diretas para os
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dependentes químicos, além da repressão policial contra o tráfico, ou de tombamento de patrimônios e chamada de empresas para ocupar a região. Manchetes negativas Jornais também opinaram em seus editoriais, e, por opinião, entendemos que acompanham ou fazem tendências. Os diferentes raciocínios, aliás, são necessários até mesmo para enriquecer o debate de possíveis riscos. Até por isso, cito-os neste livro enquanto registro. Porém, dois casos são emblemáticos. A arte do jornalismo é informar e, para isso, necessariamente manipular e analisar os dados de interesse editorial ou do público para descrever as suas criações. A metonímia é uma figura de linguagem em que uma parte pode representar o todo. Em 17 de janeiro de 2014, após dois dias do programa, o jornal O Estado de S. Paulo publicou, bem na sua capa, uma foto de uma das beneficiárias consumindo crack com o uniforme do DBA. “A decisão de publicá-la transmite miopia por parte do jornal em não tentar compreender e explicar para o leitor o que são as estratégias de redução de danos ao uso de drogas, fulcrais na visão da Organização Mundial da Saúde”, apontou o psiquiatra e professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Luís Fernando Tófoli. O acadêmico complementou: “Não bastasse isso, a identificação compromete seriamente o processo de tratamento da pessoa fotografada, e há notícias de que a cena de capa teve um impacto negativo na usuária”. E, de fato, ao jornal Rede Brasil Atual, a moça da capa chorava enfurecidamente no hotel, de acordo com a descrição. Outra matéria de grande repercussão foi veiculada pela Folha de S. Paulo, em 17 de maio de 2015. A polêmica não foi por causa do infográfico do jornal, garantindo que o programa fez com que de 70% a 80% dos beneficiários assistidos reduzissem o consumo de drogas. Nem que 60% dos usuários cadastrados estavam firmes na iniciativa, que tem validade de dois anos.
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O problema foi outro. O título. “Em SP, 4 em cada 10 desistem de ação anticrack de Haddad.” Assim, mesmo com a matéria positiva, a edição preferiu o lado negativo (e minoritário) dos beneficiários, aqueles que optaram pela desistência, e personificou o programa ao nomear o prefeito. “A única coisa realmente negativa na reportagem é a manchete canalha, típica de uma mídia que aposta no mundo-cão”, publicou a radialista Lelê Teles no Portal Fórum, dois dias depois da reportagem da Folha. De Wall Street a The Guardian “Se o prefeito altamente impopular de São Paulo, Fernando Haddad, fosse o chefe de San Francisco, Berlim ou alguma outra metrópole, ele seria considerado um visionário urbano.” É assim que o Wall Street Journal, em setembro de 2015, enxergou a gestão do prefeito, citando, entre outros projetos, o DBA. O maior jornal impresso em circulação no Canadá, The Global and Mail, esmiuçou a iniciativa em reportagem em maio de 2014. Comparando o crack como um rei no Brasil em decorrência do forte tráfico e situando os aspectos bons e ruins do DBA, o jornal ainda assim descreve que o “o programa fez uma grande diferença na sensação das ruas da Cracolândia”. Entre os entrevistados, o diretor do Centro de Saúde Mental da Universidade de Vancouver, Benedikt Fischer, classifica que dar moradia segura e trabalho vai “ajudar a estabilizá-lo [o beneficiário]”. Ele salienta a marginalização dos usuários de crack e que a dependência é alta. Para o diretor de prevenção da Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas do Ministério da Justiça, Leon Garcia, o programa “tem de gerar reação social – um lugar para morar, lugar para trabalhar, a possibilidade de voltar a estudar. É uma oferta de tratamento, e é uma oferta de cidadania, e não se está dizendo que você tem que cumprir uma antes de ter a outra”.
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Dos demais veículos internacionais, The Guardian é o mais imparcial, classificando-o como “controverso” logo no título, embora a seguir o considere “holístico” pela sua transversalidade de ações. “Os proponentes dizem que ele poderia ser um modelo para outras cidades da região. Os críticos temem que isso vá atrasar a reabilitação de dependentes.” Ainda não deixa de apontar as críticas a outros projetos, como o Recomeço e as comunidades terapêuticas religiosas. Muito humano Especialistas de renome mundial foram na contramão das posições negativas. Quem mais tratou do assunto abertamente foi Carl Hart, Doutor em Neurociência da Universidade de Columbia (EUA), e que defende alternativas de redução de danos. De passagem pelo Brasil, o profissional concedeu entrevista à Folha de S. Paulo (agosto de 2015). “Eu tenho muito orgulho deste programa [DBA], porque ele é muito humano e lida com as necessidades básicas do ser humano: abrigo, alimentação e trabalho para o sustento pessoal e da família (...). A pergunta não é se eles estão ou não usando drogas, mas se estão aparecendo pra trabalhar e arcando com as suas responsabilidades. Essa é a medida do sucesso e aquilo no que deveríamos focar. Se essas pessoas não estiverem nas ruas, cometendo pequenos crimes, é um grande avanço. Se você não tem suas necessidades básicas satisfeitas, é uma escolha racional roubar alguém que parece ter de tudo em abundância. Então, programas como esses fazem com que todos fiquem mais seguros na sociedade”, afirmou. O acadêmico não tratou dos resultados por considerar ter poucos dados, “mas o fato de haver gente inscrita no programa é um ótimo sinal, porque essas pessoas não estão o tempo todo nas ruas”. O neurocientista até refutou o título negativo do jornal quanto às desistências. “Se há mais gente permanecendo no programa do que abandonando, avalio como algo bom”. E questionou as razões de desistência, exemplificando que ele mesmo certa vez abandonou um pós-doutorado na Universidade de Yale. “Podemos dizer, com base nisso, que Yale é um fracasso? Não.” CRACOLÂNDIA: TERRITÓRIO DO ABRAÇO – Lincoln Spada (Imaginário Coletivo) – Adesaf
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Exemplo de sabedoria Com Pós-Doutorado em ciência política em Harvard (EUA) e fundador e diretor da ONG norte-americana Drug Policy Alliance, Ethan Nadelmann enalteceu a iniciativa paulistana. “É a coisa certa a se fazer. É um exemplo de sabedoria, pragmatismo e coragem política, que são essenciais para que o Brasil dê um passo adiante na questão das drogas de maneira mais inteligente. Se as lideranças políticas persistirem na política fracassada do passado, o problema só aumentará”, respondeu à Folha de S. Paulo (outubro de 2014). Outra personalidade que fez questão de visitar o programa foi o príncipe Harry, o quarto na linha de sucessão ao trono do Reino Unido. De acordo com nota da embaixada britânica, o membro da realeza veio ao Brasil, em junho de 2014, mais do que apenas acompanhar os jogos de seu país na Copa do Mundo, mas de conhecer iniciativas sociais que pudessem inspirar acordos ou ações semelhantes na Europa. “Ele demonstrou interesse em saber como uma cidade grande como São Paulo, maior ainda do que Londres, está lidando com um problema tão grave como o vício em drogas.” O príncipe não se dispôs a conversar com a imprensa no dia 26 de junho. Assim, não há um registro da sua avaliação sobre o projeto. Ele fez questão, porém, de falar reservadamente com o prefeito e beneficiários do DBA. A sua visita causou um alvoroço em Campos Elíseos, envolto em gritos de “príncipe, I love you”. Houve até um rumor de que ele concordaria em colaborar com a iniciativa. Abordagem emancipatória À população brasileira, a defesa do projeto é realizada diretamente pelos gestores públicos. Para o Jornal GGN (janeiro de 2014), o prefeito Haddad disse: “Removi 300 pessoas da rua sem um gesto de violência a elas”. Em relação ao programa estadual de internação, “[Ela] não se opõe a outras formas de abordagem. Na verdade, existem pessoas que, sim, terão que ser internadas. [...] Mas numa cidade que você tem 60 mil usuários de CRACOLÂNDIA: TERRITÓRIO DO ABRAÇO – Lincoln Spada (Imaginário Coletivo) – Adesaf
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crack, imaginar a internação compulsória voluntária é uma incapacidade lógica, física. Então o tratamento de massa é ambulatorial [como o DBA]. [...] As estatísticas demonstram que é de 90% a recaída depois da internação, você tem tanto quanto possível de criar condições para que a pessoa mantenha os seus vínculos”. Segundo pesquisa da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em média, nove em cada dez dependentes de crack internados pelo Estado voltam a usar a droga em até três meses. Outro índice interessante é que 43,4% tiveram de se internar até cinco vezes ao longo de três anos. Outros artigos científicos apontam que a recaída pode chegar a um terço. Algumas, mais positivas, consideram que o vício acomete o retorno de internações em 45%. Mesmo assim, números não tão muito diferentes dos desistentes do DBA em seu primeiro ano. O baixo índice sobre a recuperação de internados por desintoxicação é ecoado em artigo assinado pelo próprio Ronaldo Laranjeira, coordenador do Programa Recomeço, na Revista Saúde Pública (2011). Lá, é descrita uma pesquisa com 131 dependentes de crack que foram acompanhados no período de 1992 a 2006. Após anos de alta do hospital onde foram desintoxicados, somente 43 (32%) conseguiram se abster do crack. Já 22 (17%) ainda eram usuários, 13 (10%) estavam presos, 27 faleceram (20,5%), dois (1,5%) desapareceram e os demais 24 (19%) não foram identificados. Para o Estúdio Fluxo (maio de 2014), o prefeito mencionou outros índices. “Dos 400 inscritos [na época], 318 estão trabalhando. Uns trabalham um dia, outros cinco dias, mas todos na perspectiva de ampliação de expediente. [...] Nós já temos 120 [cadastrados] com toda documentação, com certidão de nascimento, RG e carteira de trabalho”, citando que 40 já se encontravam aptos para ingressar no mercado de trabalho profissional. “O programa está no caminho certo”, repetiu em entrevista à webTV Candeia (junho de 2015). Em maio de 2016, no 5º Congresso Brasileiro de Saúde Mental realizado no campus Indianópolis da Universidade Paulista, o prefeito CRACOLÂNDIA: TERRITÓRIO DO ABRAÇO – Lincoln Spada (Imaginário Coletivo) – Adesaf
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voltou a apresentar os bons índices do DBA. Segundo a Administração Municipal, desde 2014, 88% dos beneficiários da ação afirmaram ter reduzido drasticamente o consumo de crack. Os dados compõem uma pesquisa feita por assistentes sociais que atuam junto a dependentes químicos. Os indicadores mostram ainda que, antes do DBA, o uso de crack por pessoa era de, em média, 42 pedras por semana, e agora é de 17 pedras, uma queda de 60% entre as pessoas cadastradas. Segundo a Prefeitura, dos mais de 450 beneficiários, 84,66% estão em tratamento de saúde e 72,75% estão trabalhando. “Outro dado importante é que 52,52% dos beneficiários recuperaram o contato com a família, condição importante para a reinserção social do dependente químico. A atuação da Prefeitura também gerou a queda de 1.500 para 300 frequentadores na região conhecida como Cracolândia.” Melhorias em assistência e saúde Ainda em abril de 2014, ao Jornal GGN, a primeira-dama Ana Estela Haddad se manifestou em defesa do DBA. “Um dado que foi positivo é que todas as crianças [de famílias cadastradas] estão nas escolas. As gestantes estão recebendo um trabalho diferenciado também, e no hotel, para fazerem seu pré-natal. É uma gestação de risco, porque muitas vezes terão um parto prematuro.” Na área da saúde, o então secretário-adjunto municipal Paulo de Tarso Puccini destacou para a Rede TVT (janeiro de 2014), que “agora se intensificam também [os trabalhos] na área da saúde. Então retomar a possibilidade de trabalho [deles] e, junto com isso, o apoio psicológico, terapêutico etc., é o nosso caminho de busca alternativa a essas pessoas”. “A região sempre sofreu com programas erráticos, intervenções de cunho autoritário e a lógica da higienização. Agora, São Paulo se conecta a essa nova tendência de fugir da abordagem da ‘guerra às drogas’”, comemorou o titular da secretaria, Alexandre Padilha, em entrevista à Carta Capital (abril de 2016). Na reportagem, o entusiasmo era seguido dos dados públicos que apontavam que apenas 5% dos beneficiários CRACOLÂNDIA: TERRITÓRIO DO ABRAÇO – Lincoln Spada (Imaginário Coletivo) – Adesaf
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afirmam permanecer sob o efeito da droga o dia inteiro. Antes de o programa ter início, 65% diziam estar sob essa condição. Em vídeos publicados nas redes sociais, Padilha retomaria as boas novas dois meses depois, quando readequaram a tenda do DBA na Rua Helvétia. “Um ambiente mais digno, acolhedor e que agora, além dos chuveiros e banheiros, conta com uma lavanderia que será operada pelos trabalhadores do programa. Aqui tem espaço para oficinas, café da manhã e sopa no almoço. Mais um passo rumo a criar as condições que permitam que a pessoa que faz uso abusivo de drogas possa juntar forças e sair do uso destrutivo das drogas, voltar a trabalhar e reatar os laços sociais e familiares.” Passo à segurança e cidadania A perspectiva intersetorial teve reforço do secretário de Segurança Pública e coordenador do DBA pela Prefeitura, Benedito Mariano. Em artigo à Folha de S. Paulo (março de 2016), o gestor anota: “Com o tratamento em meio aberto, inserindo essas pessoas em alta vulnerabilidade na sociedade, teremos mais êxito do que com as políticas tradicionais. O programa propõe atenção integral aos usuários de substâncias psicoativas, garantindo a eles moradia, alimentação, trabalho e cuidados de saúde”. O coordenador municipal do DBA foi um dos gestores públicos que defendem de modo mais contundente o programa. Em seu artigo, “temos três opções para tratar os usuários que perderam os vínculos familiares e foram colocados à margem da sociedade. A primeira, já testada e fracassada, é a repressão. A segunda é fazer de conta que não os vemos. A terceira é incluí-los e colocar o poder público para acolhê-los de braços abertos”, comparando o DBA com a “trincheira mais visível da luta antimanicomial e da reforma psiquiátrica brasileira”. Na mídia, o DBA recebeu o mesmo tratamento na voz do exsecretário de Direitos Humanos e Cidadania Eduardo Suplicy. Em Mariana Godoy Entrevista (agosto de 2015), ele testemunhou: “Há pouco CRACOLÂNDIA: TERRITÓRIO DO ABRAÇO – Lincoln Spada (Imaginário Coletivo) – Adesaf
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mais de dois meses, o prefeito chamou todos [os cadastrados], e ouviu os depoimentos de diversos deles. Por exemplo, um dizia que estou aqui há dez meses, e me acostumava a consumir de 30 a 40 pedras por dia, agora estou consumindo apenas duas. Agora passei a conviver outra vez com a minha família e inclusive estou estudando. É possível que eu faça o Enem, e assim por diante”. A apresentadora sorriu. “Esta experiência é a mesma da maioria dos depoimentos que ouvi durante todas as visitas ao programa”, disse-me certa vez Suplicy num tom vibrante. “Acredito que a pessoa em situação de rua e usuária de drogas terá uma vida mais digna quando tem uma devida assistência social, atendimento na área da saúde e que possa ser encaminhada em frentes de trabalho e atividades, que a estimulem a deixar as drogas. Acredito realmente no DBA.” Outra que endossa o DBA é a secretária de Assistência e Desenvolvimento Social, Luciana Temer. “A Prefeitura de São Paulo está investindo muita energia, de forma muito corajosa [...]. Nós temos uma diminuição muito grande do chamado fluxo [...]. Como disse, 70% do consumo desses beneficiários diminuiu, e alguns, posso garantir, deixaram mesmo, e já estão no trabalho formal”, avaliando como um projeto de resultados muito animadores e positivos, em entrevista ao Jornal da Câmara de SP (fevereiro de 2015). “[Ao todo] 41 destas pessoas voltaram para suas famílias.” De entrevistas a narrativas A todo instante, os gestores públicos foram sabatinados sobre o andamento do DBA à mídia tradicional, mídia livre e até por universitários. A secretária adjunta do Desenvolvimento, Trabalho e Empreendedorismo, Sandra Faé, foi uma das entrevistadas por Roger de Oliveira Franco, na pesquisa A Política paulistana de redução de danos ao uso abusivo de substâncias psicoativas sob a ótica de um jurista, da Universidade Federal de Santa Catarina.
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No estudo, Sandra abordou a disputa de narrativas na imprensa. “Parte da mídia, por sua vez, insiste em colocar o DBA na arena de disputa política [partidária]; dessa forma, não relata os pontos positivos e os avanços do programa, pautando-se muito mais nas questões frágeis, por meio de um processo negativo. As informações que são divulgadas normalmente não relatam o esforço empreendido pelo Poder Público, tampouco reporta à sociedade os progressos obtidos; e muito menos o que significa na vida daquelas pessoas o programa DBA.” A secretária-adjunta complementa “o programa traz a perspectiva do trabalho como um dos pilares centrais para o tratamento da dependência química que, por sua vez, é uma questão de saúde pública. As ações do programa são desempenhadas de forma articulada e intersetorial, obtendo com isso melhores resultados e maior adesão dos beneficiários, que passam a se enxergar enquanto cidadãos e cidadãs. Esta abordagem, pautada na ótica de redução de danos e com estímulo à atividade laboral, se mostrou muito mais eficaz que a política de repressão adotada na região até então.” Em seu trabalho acadêmico, o recém-graduado ressaltou: “É possível concluir a importância do programa DBA como política oficial de saúde. Tomando o exemplo da cidade de São Paulo, a redução de danos também deve ser incorporada pelos outros Entes (União, Estados e Municípios), sempre de acordo com as especificidades de cada região e moldando-se aos diferentes contextos”. Descrevendo a monografia com o objetivo de desconstruir o senso comum que se difundiu no início por parte da imprensa, o pesquisador relatou que a sua expectativa para o DBA é de que “renda ótimos frutos, que já estão sendo percebidos pelos participantes do programa, para o fim de restabelecer vínculos de confiança e sociabilidade”.
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Capítulo 6
Os Operários8 “O De Braços Abertos foi um dos programas que não apareceu no plano de metas do prefeito nas eleições de 2012, até porque ele não tinha uma proposta fechada de como tratar essa questão. Mas ele visava muito este problema [da população de rua e em drogadição em Campos Elíseos]”, sublinhou o secretário municipal do Desenvolvimento, Trabalho e Empreendedorismo, Artur Henrique. “E já havia um debate entre as pessoas que atuam no nosso partido, das áreas da saúde, da economia solidária, da luta antimanicomial e da política antidrogas, entre outros.” Durante a entrevista na sede da secretaria, Artur firmou o orgulho sobre a atuação partidária na Capital, principalmente do correligionário petista, o prefeito Haddad. “A Cracolândia não começou em 2013. E o que a gente assistia antes era à higienização, o que piorava, pois além de estar espalhando a população [toxicodependente], tentava esconder aquelas pessoas debaixo de viadutos, num processo de violência e de perseguição.” Didaticamente, argumentou com os exemplos internacionais de política de redução de danos, salientando que “o DBA é um programa construído no diálogo e no compromisso permanente com a população”. Não à toa, os termos diálogo e compromisso percorreram toda a sua fala entusiasmada e quase ininterrupta durante 50 minutos. Aos 55 anos, Artur é um articulador em constante ascensão. Aos 21, o eletricitário era eleito representante dos trabalhadores em sua empresa. Aos 26, ingressava na diretoria do Sindicato dos Eletricitários de Campinas e 8
Os Operários é o nome do quadro da modernista Tarsila do Amaral. Neste capítulo, o título faz alusão à trajetória do titular da Secretaria de Desenvolvimento, Trabalho e Empreendedorismo de São Paulo. CRACOLÂNDIA: TERRITÓRIO DO ABRAÇO – Lincoln Spada (Imaginário Coletivo) – Adesaf
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Região. Aos 27, formava-se em sociologia, conhecendo o movimento estudantil. Aos 33, era um dos porta-vozes contra as privatizações no Brasil. Aos 38, era o mediador da Central Única dos Trabalhadores (CUT) com o meio acadêmico. Dos 39 aos 42, dirigia a formação da CUT de São Paulo. Dos 45 aos 50, presidia a CUT Nacional. E, desde os 52 anos, assumiu o cargo na Prefeitura. Na sua jornada, participou de tratativas sobre inúmeros temas. Dentre as causas a que se opôs, as demissões em massa, a desvalorização do salário e a sondagem para privatização da Petrobras. Como todo bom acadêmico, organizou um livro sobre a sua atuação como presidente da CUT, onde relatou as lutas pelo salário mínimo, previdência social e autonomia dos sindicatos. Todos estes temas estão presentes em suas análises num blog verborrágico com milhares de publicações entre 2009 e 2012. Faz parte da essência do atual secretário imprimir a sua visão de mundo num ritmo incessante. O histórico de sociólogo-sindicalista induz a um timbre cadenciado de sentenças incisivas em quaisquer rodas de conversa. Bom frasista, entoa análises em diversos veículos ligados à ideologia de esquerda. Não poupa críticas a si mesmo ou a quem o acompanha – a CUT fez o dobro de greves na Era Lula (PT) em relação à Era FHC (PSDB). Respostas cobradas Artur Henrique tornou-se secretário municipal do Desenvolvimento, Trabalho e Empreendedorismo em março de 2014, dois meses após o começo do DBA. Ele rememorou ruídos do programa em seu processo inicial: as diferentes percepções das secretarias sobre políticas de redução de danos e a baixa exigência dos beneficiários; problemas com manutenção dos hotéis (alguns beneficiários não se adaptaram e vendiam pertences dos estabelecimentos para consumir drogas); as reportagens negativas na imprensa tradicional; e o próprio conflito da Prefeitura no aguardo dos resultados. CRACOLÂNDIA: TERRITÓRIO DO ABRAÇO – Lincoln Spada (Imaginário Coletivo) – Adesaf
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“A sociedade, as várias instituições exigiam uma resposta [rápida]. Nós mesmos nos cobrávamos, esperando um resultado imediato, mas precisamos entender que se tratava da construção de uma saída. Não dá para resolver o problema de uma hora para outra”, disse o gestor. Por ser um programa inédito, a ONG que inicialmente assumia o programa não tinha experiência anterior. Então, em seu primeiro semestre à frente da pasta, Artur publicou um chamamento público em conjunto com as secretarias de Saúde e de Assistência e Desenvolvimento Social para contratar uma entidade responsável pelo DBA. Artur argumentou com duas razões: “Uma é que precisávamos de um rodízio de equipes e visões, pois aprendemos no DBA todo dia. Outra é a necessidade de ter uma organização já com uma história nesse tipo de política pública [de redução de danos]”. A Adesaf venceu o edital em setembro do mesmo ano, “e já começamos a perceber que a entidade passou a solucionar os problemas. Por exemplo, no controle do expediente dos beneficiários nas frentes de trabalho. Hoje, no ponto de vista de sistematização e acesso à informação, não há como negar o avanço em relação à situação no início do DBA”. O gesto simples de o beneficiário conseguir registrar o ponto é evidenciado pelo secretário não somente por ser mais justo nos auxílios pecuniários, mas também por diagnosticar os dias de maior ou menor atuação nas frentes de trabalho. Por isso, “trouxemos para dentro do DBA a economia solidária, com capacitações sobre artesanato, cerâmica, pintura, roupas. Do ponto de vista social, essas produções são o resultado do esforço dessas pessoas em redução de danos. Sem o programa, elas não teriam essa parada, esse tempo para se dedicarem a essa questão”. De quem reinseriu profissionalmente até quem voltou à sua família, Artur coincide cada argumento com um exemplo positivo do DBA ao envolver os beneficiários em frentes de trabalho e oficinas. “Defendo que o trabalho em si não transforma a sociedade, o que ele transforma é o homem, e que este sim transforma a sociedade.
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O trabalho deve ser visto como forma de se relacionar consigo mesmo e com os demais”, vislumbra o secretário. “Até aqueles que são cabeça de planilha, que só enxergam números e custo-benefício, reconhecem que o investimento num beneficiário na política de redução de danos é metade do valor de uma internação.” Perfis avaliados Para os chamados cabeças de planilha, um estudo realizado pela Plataforma Brasileira de Política de Drogas ilustra melhor o DBA. Doutora em antropologia social, Taniele Rui coordenou uma equipe de 10 pesquisadores para o relatório de avaliação preliminar do programa, aplicado entre maio e julho de 2015. O trabalho foi baseado no universo de beneficiários da iniciativa paulistana à época. Então, havia quase 400 inscritos, sendo 370 acima dos 18 anos. Como já registrado em outros levantamentos, o perfil da população em situação de rua e em estado de drogadição na região da Luz é variado. Em modelo de amostragem, foram entrevistados 80 participantes do DBA, tendo 95% de coeficiente de confiança. Na relação de gênero, 58% são homens, 37% mulheres e 5% transexuais. “A proporção considerável de transexuais pode ser um indicativo de sua maior vulnerabilidade e da difícil inserção desse grupo no mercado de trabalho”, apontou o estudo. Quanto à orientação sexual, 18% se declararam não heterossexuais, o que também pode configurar que esta população em situação de baixa renda sinalize um grupo de maior vulnerabilidade social. Na autodeclaração racial/étnica, 68% são pardos ou negros e 23%, brancos. Quanto à idade, 77% da população inserida no DBA é acima de 30 anos – cerca de 40% entre 30 e 40 anos; e 27% de 40 a 49 anos. Entre os entrevistados, cerca de 60% nasceram na Grande São Paulo, quase 75% tinham filhos (30% tinham mais de três filhos). Durante a realização da pesquisa, 47% se declararam solteiros e 29% casados ou vivendo juntos.
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Na escolaridade, a grande maioria sabe ler (96%) e estudou o Ensino Fundamental (79%), mas poucos chegaram a concluir o Ensino Médio (20%), índice próximo à realidade da escolarização da população de baixa renda, de acordo com o levantamento. Na vida profissional, 51% atuaram no setor de serviços, 10% na construção civil e 8% como comerciários. Mais de 90% dos entrevistados apontaram uma ocupação principal – embora 54% afirmem não ter carteira de trabalho. Assim o relatório indicou: “A valorização do trabalho demonstrada pelos beneficiários do DBA pode ser entendida como tradicional na sociedade brasileira. Os beneficiários se orgulham em falar sobre trabalhos que fazem, que já fizeram e que poderiam vir ainda a fazer”. Percepções mensuradas Ainda na etapa quantitativa, o relatório da Plataforma Brasileira de Política de Drogas apresentou a percepção dos beneficiários sobre o seu diagnóstico de saúde: 19% têm tuberculose, 18% hepatites, 14% hipertensão e 12% são soropositivos. Na época, sobre o uso de drogas, “65% dos beneficiários afirmaram ter reduzido o consumo de crack depois de ingressar no DBA e mais de 50% disseram ter reduzido o consumo de tabaco e cocaína aspirada”. Um avanço, se considerar que o levantamento destacou que 51% já realizaram tratamento anterior na luta contra as drogas, 32% foram internados em clínicas específicas, 29% passaram por tratamento ambulatorial, 26% em grupos como Alcoólicos e Narcóticos Anônimos e 21% por tratamentos espirituais e religiosos. Sobre vínculos e relacionamentos, 47% disseram não contar com apoio de amigos, e 36% já não tinham mais relação com familiares. Ainda, em relação aos seus históricos de vida, 66% alegaram ter passado por uma prisão, cerca de 25% foram internados por delitos ainda na adolescência. Entre quem já ingressou por sistema socioeducativo, 54% foram acusados de cometer roubo, 15% em relação ao tráfico de drogas. CRACOLÂNDIA: TERRITÓRIO DO ABRAÇO – Lincoln Spada (Imaginário Coletivo) – Adesaf
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Por terem vivido à margem de seus direitos, não à toa uma parte dos beneficiários do DBA disseram ter medo da polícia (30%) e de traficantes (19%). Para 95% dos beneficiários, o DBA impactou positivamente as suas vidas. 76% participam da frente de trabalho, e, entre esses, 97% aprovaram as atividades – neste período, já gerenciadas pela Adesaf. Quem não aderiu às frentes de trabalho, alegou entre as principais razões não se adaptar ao tipo de atividade, casos de licença médica ou maternidade, ou outras ocupações (como a reciclagem). Em menor grau, parte dos beneficiários do programa estava insatisfeita e avaliou negativamente as condições para estar na frente de trabalho (14%), as condições das hospedagens (36%) e com o cardápio alimentar oferecido pelos restaurantes estaduais (55%). Segundo o relatório, o DBA precisaria avançar em alguns pontos, entre eles: abertura de canais de comunicação entre profissionais e beneficiários, aprimoramento no cadastro, ampliação dos locais de moradia e uma frente de trabalho para manutenção predial. Todas as ações que a Adesaf assumiu no decorrer do convênio com a Prefeitura. Um fio de esperança “Não pode ser ruim um programa que dê um teto a uma pessoa, que ela possa comer todos os dias, que ela tenha respaldo emocional e, na área da saúde, que ela participe de outras atividades, enfim”, disse Fernanda Gouveia, presidente da Adesaf, entidade gestora do DBA. “Particularmente, acredito muito no programa.” A afirmação foi feita ao sairmos da sede da Secretaria de Desenvolvimento, Trabalho e Empreendedorismo. Diariamente, Fernanda troca telefonemas com o órgão municipal. Para Brandão, o coordenador do DBA pela Adesaf, são, pelo menos, trinta ligações por semana, além de emails, SMS ou aplicativos de envio de mensagens. Na vez em que fui à sede da Adesaf em São Vicente, poucas vezes a linha telefônica do escritório da presidente estava desocupada. CRACOLÂNDIA: TERRITÓRIO DO ABRAÇO – Lincoln Spada (Imaginário Coletivo) – Adesaf
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Embora a organização assuma outros projetos com prefeituras da Baixada Santista e Governo Estadual, “o DBA é a menina dos olhos da Fernanda”, contou-me certa vez um funcionário da Adesaf. Ela mesma garante que o programa “não é comparado a nenhuma outra ação que já realizamos”. Do litoral, ela monitora a situação da equipe, a presença dos beneficiários, acompanha os pagamentos, atestados e ausências da população participante do DBA. Todo um histórico possível a partir de um software de integração de dados e monitoramento criado pela própria instituição. De ritmo ágil, Fernanda consegue narrar com perspicácia sobre datas importantes da trajetória da Adesaf, a ponto de precisar dias da semana; além de citar nomes das centenas de beneficiários do DBA e seus respectivos perfis na redução de danos; e ainda relembrar frases de seus interlocutores. Em especial, quando em um congresso, Fernando Haddad pediu a ela: “O De Braços Abertos sempre está por um fio, mas não desistam dele”. A corda bamba é pela pressão de adversários políticos, da mídia tradicional, e os próprios problemas internos de um programa em fase de implantação. Mesmo em São Vicente, a equipe também se familiariza com o projeto a 80 quilômetros de distância. Quando um beneficiário do DBA faleceu na Capital, o clima amargou na sede do litoral, pois os funcionários acompanhavam a recuperação dele sobre o uso de drogas. A presidente evita chorar com a equipe ao entorno, mas o meio acadêmico já tem o consenso de que uma boa memória é fruto de quem tem tamanha sensibilidade. Décadas de democracia O primeiro ápice do altruísmo enquanto alimento dos sentidos de Fernanda ocorreu ainda na adolescência. A sala de aula foi o ponto de encontro com outros ativistas, onde começou suas vivências na militância por causas sociais: “Presidi a União Municipal dos Estudantes Secundaristas em São Vicente, participei ativamente do movimento dos CRACOLÂNDIA: TERRITÓRIO DO ABRAÇO – Lincoln Spada (Imaginário Coletivo) – Adesaf
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caras-pintadas com o Fora Collor (impeachment do presidente Fernando Collor, em 1992) e militei na União Nacional dos Estudantes, a UNE”. Na redemocratização do Brasil, os partidos políticos se tornaram robustos rapidamente, no entendimento que a filiação partidária colaborava para um país há 25 anos sem eleições diretas. Nesse contexto, Fernanda atuou em movimentos juvenis, enquanto ingressava na faculdade de Comunicação Social. Numa nova guinada, concluiu o curso de Pedagogia e escolheu sair das bandeiras partidárias. “Não é uma crítica, mas uma constatação, que os partidos orbitam dentro de um sistema, que eu já não me sentia mais parte. Queria realizar outras iniciativas, em outras frentes, de um modo independente de partidos, apesar da mesma bandeira da justiça social.” O apreço pelos valores sociais vem de casa – principalmente do pai –, e partilhado hoje com sua família, em especial com a sua filha. No plano comunitário, o principal gesto concreto de tamanha sensibilidade se dá ao lado de amigos desenvolvendo projetos pela ONG. Milênio do terceiro setor A ONG Adesaf foi fundada em 1º de abril de 2001 com objetivo de contribuir para um mundo mais justo e igualitário. Tendo como visão ser referência no terceiro setor em relação às políticas públicas, hoje desenvolve trabalhos relacionados aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, campanha da ONU. Fundadora e presidente da organização, boa parte do dia a dia de Fernanda ocorre no seu segundo lar, a sede da Adesaf. Um prédio próprio de 700 m², no bairro Parque São Vicente, com acessibilidade nas diferentes salas administrativas, de atividades formativas, de gravação e edição audiovisual, foyer, além de um salão amplo para atividades e oficinas artesanais. Ali se reúne a equipe, formada por profissionais nas áreas de gestão administrativa, comunicação social, financeira, recursos humanos, assessoria jurídica, empresarial e contábil.
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Executando e discutindo políticas públicas, a entidade enquanto sociedade civil já compôs os conselhos municipais de São Vicente nas áreas da Criança e do Adolescente; de Defesa do Patrimônio Histórico, Arquitetônico, Cultural e Turístico; de Segurança Alimentar; de Defesa do Meio Ambiente; de Assistência Social; e, em nível nacional, do Conselho da Juventude, entre 2010 e 2012. Em seus 15 anos, a ONG encampou mais de 40 iniciativas pelo Estado de São Paulo. Em políticas de juventude, realizou ações de voluntariado jovem, projetos de protagonismo cidadão, inclusão social, atendimento às vítimas de violência ou exploração sexual, e foi polo universitário de Educação a Distância e do programa federal Primeiro Emprego, entre outras ações. Sobre geração de renda, fez parcerias de cursos com o Senai, a Via Rápida, e gerenciou cursos de qualificação no mercado de trabalho, e de capacitação em moda e artesanato sustentável. Na área da saúde, administrou programas de Saúde da Família e os agentes comunitários, de redução de danos para grupos de risco em Aids e doenças sexualmente transmissíveis (DST), de enfermagem em saúde materna, e de instalação do Método Canguru em maternidade pública. Em relação à assistência social, formou profissionais do setor, desenvolveu uma rede de proteção social com outras entidades e coordenou um programa de atendimento familiar. No segmento educacional, capacitou centenas de monitores para creches e executou o programa para elevação da escolaridade e de qualificação profissional de jovens, o ProJovem Urbano, do Governo Federal. Na área cultural, fez curadoria de exposições fotográficas e de artes plásticas sobre a história de São Vicente, realizou espetáculos artísticos, concurso dramatúrgico, cursos de audiovisual, teatro, música e artesanato, e administrou com o Museu de Ciências Naturais Joias da Natureza, com monitoria para quase 15 mil alunos. CRACOLÂNDIA: TERRITÓRIO DO ABRAÇO – Lincoln Spada (Imaginário Coletivo) – Adesaf
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Noites de Guinness Entretanto, quanto a números, “o maior projeto até então que tínhamos assumido foi a gestão da Encenação da Fundação da Vila de São Vicente entre 2010 e 2012”, contou-me a presidente quando voltávamos de carro para a Baixada Santista. Ao todo, mais de mil atores da comunidade participam de um espetáculo protagonizado por celebridades sobre a história da cidade na semana de seu aniversário – janeiro –, em plena temporada de férias letivas. Escalação de atores, ensaios e produção artística, viabilização de figurinos, de cenografia, de estrutura com arquibancadas e mostras paralelas são algumas das atribuições que o gestor precisa ter para realizar a temporada do maior espetáculo teatral em areia de praia do mundo, conforme Guinness Book. Todo um preparo para receber mais de 50 mil espectadores anualmente. Com tamanha vivência, a Adesaf assumiu uma encenação em formato semelhante em Ubatuba, cidade no litoral norte paulista, em 2012. A ONG manteve outros projetos ao longo de 2016. Disponibilizando mostras virtuais sobre diversos temas (ciências naturais, história vicentina, democracia brasileira, e Porto de Santos), a entidade tem dois convênios com o Poder Público. Com a Prefeitura de Cubatão, oferta cursos gratuitos de qualificação profissional e oficinas de geração de emprego e renda em bairros em situação de vulnerabilidade, além de fornecer pessoal especializado para atuar no Sistema Único de Assistência Social, o SUAS. Com o Governo Estadual, presta serviços aos mais de 90 mil artesãos paulistas cadastrados na Subsecretaria do Trabalho Artesanal nas Comunidades (Sutaco), administrando emissão de notas fiscais, lojas física e itinerante, divulgação e qualificação profissional a artesãos cadastrados em todas as regiões de São Paulo. Como em outros convênios, a possibilidade de gerir o DBA surgiu ao ver uma notícia num site específico de chamamentos públicos e editais. “Foram semanas para elaborar o programa e se inscrever no chamamento”, recordou Fernanda que, enquanto desenvolvia o projeto de gestão, CRACOLÂNDIA: TERRITÓRIO DO ABRAÇO – Lincoln Spada (Imaginário Coletivo) – Adesaf
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convidou Brandão para coordenar a futura equipe devido à sua experiência anterior como ex-secretário de Assistência Social em Cubatão. Semana de desafios Um misto de entusiasmo e medo entornou a primeira semana da Adesaf no DBA. Não houve interação com a ONG anterior na transição de gestão, mediada pela Prefeitura. “Logo que chegamos, na quarta-feira, tivemos que trocar a roda com o carro andando”, relembrou Fernanda. Além da adaptação do trabalho, o susto aconteceu no segundo dia. Em um território que preza pela confiança, qualquer ação tomada pela nova organização gerava boatos na vizinhança. Numa transição, é comum mudar a equipe de colaboradores. Inicialmente, apenas um terço da equipe do DBA tinha sido alterada pela Adesaf – há técnicos ainda hoje que atuam desde o início do programa. Mas também houve quem não gostou de saber de certas demissões. Na quinta-feira, Fernanda, Brandão e mais um técnico elaboraram uma estratégia para os pagamentos, quando, ao perceberem o anoitecer, desceram as escadas da Adesaf/DBA, à época no Largo Coração de Jesus. “Quando estamos descendo, chega um rapaz, falando: ‘Vocês que mandaram fulano embora? Vocês estão achando que vão sair lá da Baixada e vir aqui numa boa na Capital? Vocês vão morrer!’”, narrou a presidente da ONG. “Todo mundo ficou paralisado.” Enquanto o homem avançava os passos, Brandão pediu alto o nome dele. Evitando responder, saiu em gritos de ameaça. Mais tarde, saberiam que era um beneficiário do DBA, que sairia dias depois do programa por conta própria. Talvez pelo repertório jurídico de Brandão e o porte do gerente da Adesaf/DBA, Rafael Bruder, “sempre que a gente passava, havia quem imaginasse que fôssemos da polícia. Houve muita retaliação por parte de alguns beneficiários e, por isso, tivemos que dialogar muito para desconstruir essas percepções equivocadas”, disse Fernanda. O impacto da primeira semana foi sentido por ela em momentos de “pensar duas vezes
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em continuar no programa e por três meses de lágrimas”. Um choro eventual solitário, pois, já lhe bastavam as preocupações ao redor. Meses para transformação Confidenciou-me que a sua filha tinha um receio recorrente nos primeiros meses. “Ela ligava e eu tinha que dizer que não estava na Cracolândia, porque ela estava insegura com o local.” Hoje em dia, a tensão se desfez no lar. “Converso muito com minha família sobre essa questão das drogas, de como isso se dá no seio familiar.” Agora é a filha quem pede: “Mãe, a Adesaf não pode sair da Cracolândia, não abandone eles”. Mas a eterna militante guarda um dilema sem respostas. “No final, essa é uma reflexão mais solitária. Porque é uma emoção forte se preparar para o DBA. E por ser um programa de redução de danos, os participantes se expõem mais, são mais abertos sobre os vícios, e é tudo muito diante de você.” A vivência em Campos Elíseos leva ao autoquestionamento. “Além das drogas, a questão da falta de infraestrutura, de educação, de desigualdade social, que problemas podem levar estas pessoas a tal situação? E, repensando estes temas, inclusive imaginar em que parte dessa engrenagem nós colaboramos com isso, seja pela maneira de como lidamos com as relações, de como educamos nossos filhos, de como desempenhamos nosso papel na sociedade. Até que ponto essa situação não teve a colaboração de todos nós, cidadãos?”, pensa alto. Fernanda anseia pelo menos contribuir para a melhoria da população. “Daí, se todos esses beneficiários, que carregam um histórico familiar triste, ou que têm dificuldade contra a dependência química, levantam diariamente para estar lá, contribuindo para a limpeza urbana, fazendo oficinas, então sou eu que vou fraquejar ou ir embora? Se cada um de nós fizer a sua parte…”. Portanto, a Adesaf não recuou do programa, priorizando o desenvolvimento dos vínculos de confiança com os participantes, e evitou qualquer conversa com grupos do território que pudessem representar conflito de interesse. CRACOLÂNDIA: TERRITÓRIO DO ABRAÇO – Lincoln Spada (Imaginário Coletivo) – Adesaf
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“Se você pegar todas as reportagens na mídia, desde a nossa entrada, as reclamações foram diminuindo. Não porque a gente se paute pela imprensa, mas porque fizemos adaptações para melhorar a gestão do DBA.” Em seis meses, a ONG lançou um sistema eletrônico que controla a frequência do beneficiário no programa. Todos os participantes usam um crachá. “Muitos não queriam tirar foto, mas num processo de pacto com eles, explicamos que era necessário para prestação de contas da ONG, para fazer os pagamentos, e para eles mesmos serem identificados. Caso fossem abordados na rua, mostrariam o crachá, ‘eu tenho nome, participo do DBA’”. Calendário com ternura O sistema revela todas as passagens em vagas de hospedagem e frentes de trabalho dos beneficiários, como também as suas ocorrências e situações. Além disso, a Adesaf pôs em prática em sua sede uma espécie de ouvidoria das demandas dos inscritos. Próximo do aniversário do convênio com a Prefeitura, a entidade começou ações formativas de cidadania com os grupos participantes. No segundo ano, aumentou a sede com um novo endereço, ampliando as oficinas, abrindo contas bancárias individuais para o auxílio pecuniário e oferecendo à equipe de colaboradores uma supervisão institucional. Todas essas etapas são descritas no decorrer do livro. Já mais perto do litoral, o automóvel de Fernanda foi tomado de outros nomes. “O segredo é escutar as pessoas”, disse ao mencionar as melhoras na vida de Rodolfo, Maria (n.f.) ou Kátia (n.f.). A última citada é uma jovem beneficiária que cuida de seu filho e irmãos menores. “Ela tem um leve distúrbio e a mãe dela também está no programa. Ambas são usuárias de tíner [solvente para tinta ou verniz], e, vira e mexe, tínhamos que buscá-la no fluxo. A Kátia é bem animada, espevitada, só que teve várias recaídas e não se encaixava em nenhum grupo de trabalho.”
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Deu-se bem justamente numa oficina de corte e costura. Pouco usa a máquina, felicita-se em trabalhar com as mãos. “Por isso, mesmo que algumas atividades tenham poucas pessoas já valem a pena, porque o beneficiário precisa ser entendido individualmente”, vibraram radiantes os olhos de Fernanda, próxima ao fim daquela carona. Antes de sair, divagou com ternura. “Um dia você precisa ver o amanhecer em Campos Elíseos. O sol dá esperança de um dia novo àquela população.”
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PARTE 3
Adesaf no DBA
Adesaf/Divulgação
Com diversas frentes de trabalho e atividades, a iniciativa vai além de Campos Elíseos e seu entorno
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Bruna Stephanie
Assobios, cliques de celulares e aplausos correspondiam aos beneficiários que modelavam sobre o tapete vermelho
Bruna Stephanie
Placas são esculpidas e ganham argamassa para a superfície lisa. Estrelas gigantes, quimeras animais e um par dançando estão presentes
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Bruna Stephanie
Uma vizinha torce: “Ele é um homem que sonha, que quer trabalhar, que quer ter um barraco. Ele fala isso todos os dias e vai conseguir”
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Bruna Stephanie
O desejo de Rodolfo é que o DBA seja uma boa passagem, para caminhar com a jovem filha por muitos amanhãs
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Capítulo 7
Vida Pura9 “Não é bom usar crack, não”. O amigo de Rodolfo Pereira de Almeida o alertou antes de abrir a mão mostrando o cachimbo e a pedra a acender. Isso ainda aos 15 anos. O amigo sabia das paranoias e dos deleites do consumo, era colega de classe de Rodolfo. A coerção era tão alta quanto as notas do boletim do adolescente. Pouco adiantou, era maior a curiosidade de sentir o sabor da pedra enquanto ela fumaceava naquele show de rock na Grande São Paulo. O gosto extasiante foi o suficiente nas pioneiras tragadas. A atração pelo vício de prazeres era antiga. Começou ainda na infância. Uma batida de limão. Não uma, a batida. O primogênito de uma família de Perdizes, bairro considerado nobre na zona oeste paulistana, apreciou o sabor do álcool com a fruta cítrica no Ensino Fundamental. Escondidinho, certa vez em que seu pai lhe pediu para ficar de olho do outro lado do balcão de um bar. Sol a pino. O estabelecimento era administrado pelo pai de família. “Meu pai comprou o comércio na zona leste de São Paulo. Ele nem desconfiou de nada do gole, e os litros passaram a se esvaziar com o tempo.” Experiências simultâneas com a aprendizagem do garoto, o expert do fundão da classe da Escola Estadual Antônio Adib Chammas. Foi dividindo o dia com o colégio, o lar próximo, em Santo André, e o comércio do pai em São Paulo, onde Rodolfo passou por boa parte da infância e adolescência. Das aulas favoritas, o nerd amava os debates 9
Vida Pura é uma composição do maestro Heitor Villa-Lobos, membro da Semana de Arte Moderna de 22. Neste capítulo, remete à entrevista com o beneficiário do DBA. CRACOLÂNDIA: TERRITÓRIO DO ABRAÇO – Lincoln Spada (Imaginário Coletivo) – Adesaf
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literários e as questões geopolíticas. História e geografia eram seu forte. “Só não leio sânscrito”, brincou o entrevistado, que versou com brilhantismo sobre personagens e páginas de Laranja Mecânica, de Anthony Burgess; 1984, de Orwell; e 50 Tons de Cinza, o best-seller de E. L. James – “como esse livro é horrível”. O longo romance com os títulos de bibliotecas surgiu de um affair pelas aulas da professora de sociologia. “Puxa, não vou me lembrar do nome dela. Só digo que com ela que tomei mais interesse em discutir a sociedade.” Os ares do Grande ABCD Paulista (assim denominado por abranger os municípios de Santo André, São Bernardo do Campo, São Caetano do Sul e Diadema) e seu polo industrial reforçavam as vontades de Rodolfo. “Naquele tempo, os sindicatos eram muito fortes por lá”, relembrou, juntando às memórias os debates de um professor de língua portuguesa sobre trabalhos e teorias de Marx e Engels. O jovem se devotou a acompanhar palestras políticas. Com a sua geração, mesmo. E todo fim do mês, o rock arrasaria as ruas. Da mesma maneira que se libertava por estas vertentes questionadoras e críticas, começaria a se acorrentar no contato com as drogas. Os riffs de rock ainda embalam sua playlist - Natiruts, Coldplay, Radiohead, Kane e Carcaças. Em relação às drogas, durante a entrevista em agosto, disse que se abstinha do crack há semanas. O namoro forjado com o vício fez com que Rodolfo, de 48 anos, pai de família e então ex-funcionário público, divorciasse e abandonasse o emprego por tempos. Há seis anos, frequentaria por mais vezes a área de Campos Elíseos. Estaria entre idas em comunidades terapêuticas e vindas ao fluxo até ser um dos primeiros inscritos no DBA. O nosso diálogo foi em uma tarde, na antiga sede da Adesaf no DBA. Gordo, careca e casado A Adesaf fez uma avaliação com 224 dos 334 beneficiários do programa que estavam aptos e ativos nas suas frentes de trabalho, no primeiro semestre de 2015. Do universo de entrevistados, Rodolfo é um CRACOLÂNDIA: TERRITÓRIO DO ABRAÇO – Lincoln Spada (Imaginário Coletivo) – Adesaf
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dos mais entusiastas e de lucidez invejável sobre sua própria trajetória. O seu exemplo cabe bem no recorte do perfil traçado pela Adesaf em 2015. A maioria dos beneficiários é formada por homens (63%), tem mais de 30 anos (81%) e já é pai (76%). Para ser mais exato, há quem tenha de 18 a 29 anos (19%), de 30 a 45 anos (57%), de 46 a 60 anos (23%) e ainda 1% na terceira idade. Para quem tem prole, há pais e mães de um a três filhos (48%), de quatro a seis crianças (20%) e acima de sete (5%). Quanto à escolaridade, “fica evidente que a maioria é alfabetizada. E que, ainda, há beneficiários que têm formação em alguma área de graduação, bem como, pós-graduação”, avaliou o levantamento da Adesaf. O nível de escolaridade é diversificado. A maioria não é só alfabetizada. Tem, pelo menos, mais de oito anos de escolaridade (67%). Além das variadas faixas etárias, o programa contempla analfabetos (4%), quem não concluiu Ensino Fundamental (17%) ou já concluiu (17%), quem começou o Ensino Médio (26%) e quem de fato o terminou (26%). Ainda há, em menor escala, quem iniciou o Ensino Superior (5%), quem alcançou um diploma universitário (1%) e até se tornou pós-graduado (1%). A pesquisa atravessa as expectativas e desejos dos inscritos. Entre os entrevistados, 42% estimam querer um emprego formal em primeiro lugar, outros 34% querem concluir os estudos, e há os demais 24% que têm vontade de receber uma capacitação profissional. Aliás, o sucesso profissional e acadêmico seria a maior realização de 14% dos beneficiários. Outros 14% priorizam a saída do mundo das drogas. O sonho da casa própria é o principal objetivo de 20% deles, mas a busca por uma nova vida familiar – seja o retorno do vínculo com pais, irmãos, cônjuges ou filhos – é o principal projeto de vida da maioria, 30%. “Um entrevistado escreveu que o sonho dele era envelhecer careca e gordo ao lado da família”, destacou-me certa vez o coordenador Brandão. Ainda entre os dados, outros 17% não souberam escolher, 4% evitaram responder e 1% se concentra no êxito nas artes e esportes. CRACOLÂNDIA: TERRITÓRIO DO ABRAÇO – Lincoln Spada (Imaginário Coletivo) – Adesaf
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O isolamento social é a maior queixa dos inscritos (38%) e incomoda bem mais do que serem obrigados a tomar atitudes que não os agradam (23%), agirem contra seus valores (22%) ou não serem reconhecidos por suas realizações (17%). A maioria dos que conheci, por exemplo, detestava estar tão intrinsecamente ligada ao crack. Segundo a Prefeitura, inicialmente sete em cada dez cadastrados tinham ficha policial e, mesmo assim, queriam sair desta marginalidade. Portanto, não que os participantes pouco se importassem com o vício e a criminalidade, mas o maior desânimo deles advém da distância e desistência dos entes que os abraçavam no passado. Culpa em casa O pai de Rodolfo é definido por ele como um senhor fechado. As poucas conversas se silenciaram quando veio a falecer de câncer. “Peguei esse exemplo para mim quanto às drogas. Por mais que possa parecer terna ou natural, a droga é uma quebra enquanto pensamos para o alto”, disseme, sintetizando a perda como uma distopia. O abalo foi maior quando não contou mais com os momentos ao lado de sua mãe. A senhora observaria as consecutivas quedas do filho em sua fase adulta. Nos últimos seis anos de vida da mãe, ele se renderia de vez ao crack. Independente das confraternizações de aniversário, Natal ou AnoNovo, as últimas memórias que ela guardaria remeteriam ao seu estado ébrio do vício. “Tenho muita culpa por minha mãe ter morrido sem nunca ter me visto sóbrio.” A ex-mulher não teve maior sorte nos 12 anos em que dormiram sob o mesmo teto. Do casamento, eis uma menina de 15 anos. A separação foi por causa da vida paralela ao vício. Por parte dele, “pois ela me amou muito”. As contas a atrasar e se acumulando na mesa de cabeceira. As noites sucessivas em que ele não regressava à sala de estar. Os períodos em que ele se ausentou no expediente como escrevente em órgãos públicos. “Tirei férias de 40 dias para saber se conseguiria me readaptar ao trabalho, mas depois usava cocaína no fim de semana.” Sua antiga companheira CRACOLÂNDIA: TERRITÓRIO DO ABRAÇO – Lincoln Spada (Imaginário Coletivo) – Adesaf
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ainda estava ali, do seu lado. Descrevendo uma cena, exemplificou como a última das memórias o fez optar pelas ruas: o dia do próprio aniversário. Certa vez, esposa e filha passaram manhã e tarde aproveitando a sua saída para decorar a sala com balões e enfeitando com suas compras toda a morada. Convidaram familiares e até o avisaram para receber o carinho na festa-surpresa. “Só que sumi quando consumi a droga num fluxo. Voltei cinco dias depois [do aniversário]. Quando cheguei, minha esposa não estava em casa e tinha deixado sobre a cama toalha e sabonete e, embaixo, um par de chinelos.” Rodolfo continuou o relato citando as peripécias da esposa em participar dos encontros com outras pessoas na mesma situação (o grupo Amor Exigente) e as suas visitas em todos os fins de semana quando esteve na comunidade terapêutica. Noutros cotidianos A busca por recuperação também foi por vontade própria. Viveu oito meses na Cristolândia, uma casa de tratamento, mesmo seguindo uma programação de atividades religiosas da qual ele era contrário. “Bem, hoje temos médico aqui em Campos Elíseos, assistentes sociais. Se você quiser parar, tentar, consegue”, embora ele mesmo sofresse da recaída tempos seguintes à internação. A superação talvez viesse da comunidade terapêutica Bezerra de Menezes, em São Bernardo do Campo. “Geralmente nestas casas, a gente acorda umas 7 horas, às 9 h tem uma roda de partilha com os internos, uma hora de almoço e a tarde costuma ser livre. Nesta segunda comunidade, o que gostava era da vivência do ‘confronto médico’. Trata-se de uma hora em que escrevemos um texto nosso avaliando nossa vida e, depois, o médico nos confronta em como superarmos as situações.” No seu acompanhamento, escutava muito que ele teria outro caminho desde o início, que ele poderia escolher. E quanto a traumas ou decepções anteriores, vivesse o bom e velho Carpe Diem. Apesar dos esforços, a abstinência surgiu logo na primeira semana de volta à rotina
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normal. Pouco valeriam estas experiências para ele, se as internações e desintoxicações fossem longe do fluxo e do cotidiano. Cada vez mais distante dos parentes e sem acordo com as pregações de fé, as raízes para encaminhar uma luz no túnel eram imprecisas, imprevistas. Ruas sem personalidades Para se assumir na condição de marginalidade das ruas, Rodolfo enjeitava “bicos, porque nunca fui de furtar”. Revela até que teve uma tentativa no Mercado Municipal, “e em seguida, fiquei apreensivo quanto a mim mesmo”. O antigo melhor estudante da classe estava à mercê dos dissabores do fluxo. Do crack. “A euforia quando você o consome passa muito rápido. Depois, quando acabava a pedra, logo vinha depressão.” Rodolfo crê que o meio faz a pessoa e, em relação ao vício, “aos poucos, ele vai tirando tudo de você. Caráter, compreensão, dó pelos outros. Além de não ter lugar para ficar”. Os albergues da região não seriam muito diferentes antes do DBA, “rolava muito mais álcool do que hoje”, por exemplo. “E os efeitos são terríveis, desde suor excessivo a um ânimo de esgotamento, sabe?”, quando discorreu sobre as crises de abstinência. O corpo tão adaptado à droga mal reage. A luta precisa ser enfrentada individualmente, no aspecto psicológico, segundo o entrevistado. O vício não vê raça, cor, gênero ou diploma. “Já conheci na Cracolândia professor, advogado, médico, universitário. Teve até um dentista que era muito bem-sucedido e vendeu todos os equipamentos por causa do crack”. A solução foi se inscrever na iniciativa paulistana de redução de danos, quando anunciada em janeiro de 2014. Rotina de rockstar A participação de Rodolfo na iniciativa foi ao encontro de seus sonhos, no sentido de uma busca por vida plena, um alcance de novas CRACOLÂNDIA: TERRITÓRIO DO ABRAÇO – Lincoln Spada (Imaginário Coletivo) – Adesaf
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perspectivas. Ele garante que quer voltar a trabalhar com paper toy e stickers (bonecos de papel e adesivos grafitados). Descolado, o anarquista tatuado com o nome da família veio ser entrevistado com a blusa de rockstar e uma pulseira típica do gênero musical. “Estou me sentindo o the best (o maioral)”, gabou-se dos avanços em seu tratamento. No tempo livre, pode se ocupar frequentando museus e centros culturais da Cidade. No DBA, a mesma amostragem realizada pela Adesaf indica as preferências do seu público-alvo. Por exemplo, 69% dos inscritos preferem atividades externas. Da Capital, gostariam de visitar mais exposições artísticas (29%), cinemas (28%), bibliotecas (13%) e, principalmente, os parques públicos. Rodolfo se dá bem com ações voltadas ao meio ambiente e artes. Entre os beneficiários, essas preferências correspondem a respectivos 17% e 21%. As demais parcelas do levantamento indicam desejos por mais vivências, cursos ou capacitações nas áreas de maquinário e Exatas (27%), atividades físicas (16%) ou contato com animais (19%). A partir de suas trajetórias, os cadastrados apontaram suas principais habilidades para o dia a dia, como lidar com natureza e animais (21%), falar em público (18%), confortar os mais necessitados (18%), resistência física (16%), apresentações artísticas (15%) e transmitir conhecimento (11%). O levantamento da Adesaf também pontuou os hábitos ou predileções no tempo livre, como assistir à TV (23%), praticar esportes (15%), envolver-se com arte (13%), ler livros (12%), produzir coisas (11%), consertá-las (10%) ou reformá-las (7%), além de cuidar de jardins ou hortas (9%). Por sua vez, Rodolfo escolhe passar o seu tempo livre no dormitório do hotel, “jogando videogame ao som de Rolling Stones, e lendo todos títulos possíveis, como a revista do Sesc (publicação mensal de agenda e entrevistas), O Mundo de Sofia, A Cabana. Aliás, chorei muito com esse livro”. CRACOLÂNDIA: TERRITÓRIO DO ABRAÇO – Lincoln Spada (Imaginário Coletivo) – Adesaf
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Andar de bicicleta O presente de Rodolfo e o seu futuro já não se referem mais ao crack. O paulistano é uma das centenas de beneficiários que, por meio do DBA, reduziu o consumo de drogas drasticamente. Quase nove em cada dez cadastrados diminuíram o contato com cachimbos ao se envolverem nas atividades do programa, segundo a Prefeitura. O dia a dia do protagonista deste capítulo é um exemplo. Mal chega sete da manhã, ele já está de saída de seu dormitório. Banho tomado, cama ajeitada, caminha para o café-da-manhã no Bom Prato – a primeira de três refeições diárias, lá no Largo Coração de Jesus, 28. “Sou adaptado à rotina e a dieta é boa. A comida é simples, supre as necessidades. Passei de 78 para 85 quilos. Um bom peso para quem tem 1,87 m”. Certos colegas de hospedagem acordam um pouco depois, quando os orientadores sociais da Adesaf vão buscá-los para o início da rotina. Por volta das oito horas, ele sorri em cima da bicicleta do DBA, após ter a presença registrada com o código de seu cartão no galpão da sede. “Nunca tive uma bicicleta”, diverte-se o beneficiário uniformizado, carregando pacotes de preservativos a serem distribuídos em lugares e públicos com maior vulnerabilidade para Aids e outras doenças sexualmente transmissíveis. “Levo camisinhas nos ‘inferninhos’, nos cinemas pornôs, em boates. Isso é ótimo, porque precisamos mesmo estar atentos à prevenção. Temos que bombardear com mais campanhas sobre o tema.” Antes do meio-dia, ele entrega o veículo no galpão da Adesaf/DBA e, com o cartão, registra o fim de expediente. Raramente falta, apenas se houver algum problema de saúde e nunca por indisposição. O bom humor ultrapassa o almoço. Fica atento ao calendário complementar oferecido pela Adesaf/DBA. Às quartas-feiras, aparece no Centro de Integração Social Coração de Jesus10, no mesmo Largo, onde é 10
Meses depois, houve a transferência da sede administrativa da Adesaf/DBA. CRACOLÂNDIA: TERRITÓRIO DO ABRAÇO – Lincoln Spada (Imaginário Coletivo) – Adesaf
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um dos mais disciplinados alunos do curso de capacitação de cabeleireiro. A retomada da vida profissional é o próximo passo. “De vez em quando, consulto o Jornal dos Concursos para ver as possibilidades”, garantiu ao ajeitar os óculos. Tem um único grau de miopia. Porém, mantém a visão ótima para demais horizontes. No mesmo centro , acontece às segundas-feiras o cinedebate organizado pela Adesaf, regado a filmes, debates e pipocas. “Fui eu que indiquei O Mistério da Libélula. O pessoal ficou meio preguiçoso durante o longa, mas Kevin Costner é demais. E o filme tem uma grande lição, que nos anima nesta procura incessante do melhor, ainda mais nesse ambiente um pouco pesado em que vivemos”, amenizou, aconselhando que a melhor forma de continuar em abstinência é evitar ao máximo cruzar com o fluxo bem perto do largo. 11
“Enfim, o programa me ajudou a ter gradualmente mais autocontrole, saca? Noutros dias, passeio. Fui ao Centro Cultural Oswald de Andrade, já conferiu a exposição de lá? Ontem, fui ao laboratório digital do Sesc. Aproveitei e assisti online O Pianista. Drama bom.” Se o lazer geralmente é gratuito, parte do dinheiro que acumula semanalmente custeia “as besteirinhas, salgadinhos. Coisas pra beliscar à tarde e à noite. O resto economizo”, comentou um pouco antes de ir jantar no Bom Prato. Antes de dormir, rascunha e rabisca fanzines, um hobby que o acompanha desde a época de bom menino. Conquista maior é o recomeço com a família. Com a filha, em especial, seu xodó. “O DBA me fez reaproximar dela, conversamos tão quanto conversávamos antes. Lembro-me da gente indo ao shopping, que é a praia do paulistano”, declarou rindo. Toquei-me ao ouvir os papos virtuais que ele mantém com sua querida herdeira. Naturalmente o seu
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Tanto o curso de cabeleireiro, quanto o cinedebate passaram para o novo prédio da Adesaf/DBA na Alameda Nothmann, 385, a 350 metros do antigo endereço. CRACOLÂNDIA: TERRITÓRIO DO ABRAÇO – Lincoln Spada (Imaginário Coletivo) – Adesaf
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desejo é que o DBA seja uma boa passagem, para caminhar com a jovem por muitos amanhãs. Em felicidade plena.
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Capítulo 8
Marco Zero: Chão12 Bem ali, nos bancos do parque do Largo Coração de Jesus, 15 beneficiários do programa DBA improvisavam uma roda, ainda às 11h30 daquela manhã de agosto. Vassouras e coletores repousavam no chão que eles mesmos haviam clareado antes. Um casal de participantes se aproximava enquanto o orientador social da Adesaf seguia em busca de outros três, no entorno da praça. De uniforme, uma beneficiária estava no fluxo. O colaborador da ONG responde com um olhar de desaprovação, apressando o passo para o largo. Ela, cabisbaixa. “Ao todo, são cerca de 25 beneficiários que supervisiono. É preciso estar atento com todos da minha frente de trabalho, justamente porque a área onde eles fazem a varrição é aqui, muito próximo do fluxo. A maioria costuma vir trabalhar, já quem falta no serviço, passo quase todo dia nos hotéis para ver o que aconteceu”, relatou o orientador social, José André Aniceto dos Santos. Aos 33 anos, o alagoano vive desde o início da maioridade na Capital paulista, sempre observando os mais vulneráveis. Em sua nova cidade, amparou desde moradores em situação de rua no albergue até idosos como cuidador em casas de acolhimento. A vivência profissional supera a acadêmica, pois entrou em Serviço Social, “mas não tenho vergonha na cara, não, é que não consegui sair [com o diploma]”. A cada metro, detalhou-me o acompanhamento que faz com cada um dos inscritos. “Aqueles dois senhores”, apontou, “não faltam nunquinha desde
Marco Zero – Chão é um romance do escritor e dramaturgo modernista Oswald de Andrade. Neste capítulo, refere-se à frente de trabalho de varrição nas ruas de Campos Elíseos, marco zero do DBA. 12
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que entraram, há uns quatro meses. Logo vou tentar arranjar um emprego pra eles.” Nogueira (n.f.) o cumprimenta. Um mulato baiano de 44 anos que, como um daqueles coronéis das fazendas de outros tempos, apruma-se com chapéu de valente, cinto com fivela prateada, corrente cor d’ouro no pescoço e as mãos pesadas de tantos anéis. “Reza a lenda que o seu Nogueira já engravidou 28 mulheres desde que chegou a São Paulo”, falou José André ao me apresentar como jornalista. “Vinte e nove”, corrigiu Nogueira antes de se encaminhar para os lados do fluxo. Ornamentos como correntes, pulseiras, bonés e anéis não são exceção do último transeunte. A boa parte dos dependentes químicos presentes em Campos Elíseos, no fluxo ou no DBA, leva consigo uma espécie de amuleto ou tatuagem com um significado transcendente. Artefatos ou nomes remanescentes da esperança natural de voltar a cirandar em coletivo, em sociedade. “Estamos todos trabalhando tão bem que merecemos uma pizza”, convocou um dos presentes na roda de beneficiários, no parque. Os demais aplaudiram. Território familiar “Calma lá, quero silêncio e respeito. Vou ressaltar alguns pontos que estamos discutindo, tudo bem?”, atentou-se José André, caminhando no meio do círculo dos participantes. “O primeiro é que vocês têm que registrar a presença no galpão pela manhã, quando buscam o material, porque, se esquecem o horário, não vão poder receber o auxílio financeiro do dia e isso é chato. Eu não quero isso. O segundo é o respeito entre a equipe. Percebo que há algumas situações e... Respeito é bom e a gente gosta.” Uma das participantes do grupo atropelou a fala do orientador, fulminando o olhar para o ex-marido. A colega ao lado pediu calma, a terceira fez troças. “Por favor”, disse José André, prontamente atendido.
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Em sua equipe, há três casais de beneficiários. Os affairs, namoros, casamentos e fins em tom de briga são comuns em qualquer comunidade, seja Paquistão, seja Chile ou em outro canto do mundo. As mesmas situações são recorrentes no território de Campos Elíseos, ainda mais quando os elos com a família e antigos entes são raros. Em dezembro de 2014, eram cinco mães de recém-nascidos cadastradas no DBA, parte delas grávidas após a sua entrada no fluxo. A urgência das afetividades é mais latente. Principalmente porque isso é o que difere a população em situação de rua e drogadição daquela região com as demais que se espalham entre marquises e vielas da Cidade. Os encontros e reencontros com companheiros em igual e infeliz condição fazem dali um gueto característico por mais de duas décadas. Reunida pelo vício do crack, quase como uma família. Falando em família, o ex-marido riu quando empurrado pela antiga parceira. Outras duas amigas a impediram de prosseguir tumultuando. O mau humor era acumulado com a abstinência da pedra. “Pronto? Podemos voltar à roda? A terceira coisa é que estou enxugando a lista da minha equipe para entrada de novos cadastrados. Então, por favor, só não venha trabalhar se realmente não tiver condições, mesmo”, aquietando a todos. “Todos nós temos um vício, não consigo viver sem cigarro. Então vamos criar um pouquinho de responsabilidade e fazer um esforço para redução de danos, tudo bem?” O último membro do grupo chegou atrasado e, descuidado, quase sentou em cima de um coletor de lixo deitado e recheado de lama. “Cuidado com o lixo, seu Ferreira (n.f.). Vai sentar onde está cheio de merda”, alertou um. “Merda? Redução de merda?”, gargalhou outro. Risadas e piadas descontraem a maioria. “Eu ia elogiá-lo, seu Ferreira, justamente porque está conseguindo diminuir o consumo de crack”, ponderou o orientador. Do meu lado, cochicho entre dois rapazes: “O problema é que quando volto a fumar, fumo dobrado”, declarou um deles. “Isso é complicado. E eu que ainda tenho HIV e sífilis?”, completou o outro. Por
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tempos, José André fez abertamente recomendações a cada um dos participantes. Das ruas à universidade Fulano é aconselhado a evitar o consumo, pois está em fase de medicação. Sicrano precisa tomar jeito, já que vai ser pai. “Eu quero ver cada um de vocês bem. E você (fita a moça grávida), vive por dois, hein?” Beltrano tem brilho nos olhos. “Se continuar assim, aguarde, porque vem novidade boa para você”, comentou o orientador, como a possibilidade de um emprego. “Vejam a Cláudia (n.f.), ela merece uma salva de palmas. Começou neste mês a fazer faculdade.” O grupo ovacionou, minutos antes do meio-dia, já recolhendo seus objetos rumo ao galpão na esquina à frente. Cláudia nasceu Cláudia com corpo de Cláudio, há 20 anos, em Ribeirão Preto. “Uso maconha e cocaína, faço tratamento também no Centro de Atenção Psicossocial.” É comum que os beneficiários sejam encaminhados para outros serviços municipais. A moça está há cinco anos na Capital, dois no território, especificamente. “Tenho que cuidar de mim, vim pro projeto porque gosto de ser independente. Tenho um filho, pago pensão para ele. E tenho que comprar minhas coisas, sonho muito.” Ela complementou que muito do seu entusiasmo provém da amizade com José André. “Não o vejo como orientador, ele é um amigo.” Os notórios vínculos de confiança, o leitor lembra? “Desde que o conheci, aprendi a confiar nele e nos outros, a interagir mais. Agora estou no primeiro semestre de Engenharia Civil. Estou seguindo minha meia-irmã, quatro anos mais velha. Ela mora na Itália e já me falou que vai arranjar um emprego na área por lá quando me formar”, afirmou com emoção. Fora das grades A razão de cair no vício foi o envolvimento com a marginalidade na adolescência. Sete em dez cadastrados do DBA contam com registros em delegacias. Três outros relatos exemplificam melhor. Um é de um idoso simpático, que varria a Rua Barão de Limeira, seu Douglas (n.f.). “Flagrei CRACOLÂNDIA: TERRITÓRIO DO ABRAÇO – Lincoln Spada (Imaginário Coletivo) – Adesaf
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minha mulher com amante e na minha terra não tem essa de perdão”, confessou mansamente os assassinatos. “Não tinha onde enterrá-los, então guardei no terreno da minha casa, no interior paulista.” As investigações policiais cavaram suas palavras e os corpos das vítimas. Seu Douglas atravessou anos na cela do Carandiru, até escapou do banho de sangue que o presídio vivenciou no Massacre de 1992, que resultou no extermínio de 111 detentos. “Desde então, como levar uma vida normal?”, questionou-se agora aos 60 anos, esforçando-se para evitar o álcool e demais drogas. “Tenho certeza de que vai ter um amanhã que vou sair daqui e voltar a ter uma casa”, apontando para o céu. Ainda anotei o depoimento de Renato (n.f.), beneficiário bemhumorado que também atua na varrição, vindo do interior paulista. “Sou um caipirão que veio pra cá procurar emprego. Na minha cidade era só roça, osso. Mas aqui, pelo amor de Deus!”, complementando que foi bem na região central da capital que provou o crack. “Quando cheguei, encontrei uns ladrões no meio do caminho que levaram todas as minhas roupas. Aí fui atrás procurando, e já vejo na estação da Luz um noia com minha blusa”, declarou ele, arrancando risos da gente ao redor. “Perguntei pro cara o que ele tava fazendo com minha roupa, aí ele me levou na Cracolândia e vi no fluxo uma barraquinha vendendo tudo o que eu tinha. Foi mil graus”, gesticulou com exageros, afirmando ter assim começado uma amizade no local. O enredo encerra quando conta que se vicia com os cachimbos do território. Fim da linha. “Passei seis anos preso. É, é um passado obscuro, por causa de um artigo que fiz, o 157 [referente a roubo, segundo o Código Penal].” Outro testemunho é de um ex-traficante. “Infelizmente fui querer experimentar o crack e não parei mais. Bem, meus primos eram todos ligados ao tráfico lá na periferia. Eu cheguei a tirar de uma só vez R$ 25 mil por dia.” Apesar da cifra, ele prefere hoje continuar firme e desviando do caminho das pedras com o DBA. “Agradeço a Deus todo dia.” As conversas com um Pai celeste, anjos e orixás são corriqueiras no cotidiano dos beneficiários do programa. CRACOLÂNDIA: TERRITÓRIO DO ABRAÇO – Lincoln Spada (Imaginário Coletivo) – Adesaf
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Instinto transcendente A religião tem uma dimensão fundamental para muitos, ganhando tonalidades mais incisivas em relação à sociedade em geral. Ora porque a crença em universos pós-vida terrena seja um tema instintivo aos humanos, ora porque seja uma das questões que mais influenciam na cultura e comportamento das pessoas. Talvez, para quem esteja à margem da sociedade, a religiosidade represente o pouco vínculo que resta com o sentido do coletivo. Ou talvez porque as casas terapêuticas onde a maioria dos cadastrados foi internada tenham a fé como uma modalidade preponderante em suas rotinas. Divagações à parte, conto o causo de uma visita na semana seguinte ao largo. Foi vez de Ayrton (n.f.), beneficiário do DBA, tratar da relação com Deus. “Falo com ele toda noite. Choro muito e sinto que ele me abraça quando leio a Bíblia. Meu irmão que a me deu”, comoveu-se entre tosses. “Desculpa, tenho pneumonia, Aids, uma penca de doenças como a maioria”, disse, mostrando as cicatrizes de dois tiros que levou anos atrás no abdome. “Olha, o programa é bom, tem hotel, cama pra dormir, não tenho que passar a noite no meio-fio. Mas gostaria de um trabalho registrado”, declarou, sacando a carteira e folheando os carimbos quando era auxiliar de serviços gerais. Quem me cumprimenta em seguida é Silva. Parceiro de capítulos anteriores, ele passou a manhã relatando sua origem. “A minha história começou antes de nascer, Lincoln. Meu avô era mestre de obras da Sabesp e estudou as duas únicas filhas que ele tinha. E o pessoal resolveu destruir minha família. Nasci bem depois e todo o estigma da família caiu em cima de mim.” As frases catalisaram uma visão apocalíptica sobre o seu pretérito imperfeito. “Aos 27 anos, descobri que minha mãe tinha participado de um ritual satânico para me oferecer ainda bebê para resgatar a sua parte na herança de meu avô.” A crença que dispõe os contratempos como responsabilidade de um pacto na geração anterior dizimou qualquer vocação de Silva. “Quando eu soube, aquilo destruiu a minha cabeça. Foi aí que eu entendi porque dei CRACOLÂNDIA: TERRITÓRIO DO ABRAÇO – Lincoln Spada (Imaginário Coletivo) – Adesaf
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vários problemas em casa quando jovem, que saí de casa e briguei com a família.” Apesar de ser um dos mais compreensivos e de bom coração, segundo alguns orientadores e colegas, Silva preferiu se cobrir de solidão. “Hoje só consigo me encontrar nos livros. Através dos livros, continuo a ser são”, declarou, fazendo com que me sentisse um pouco cético, um pouco desnorteado. O gerente da Adesaf/DBA, Rafael Bruder, aproveitou minha pausa para me levar a outros pontos de varrição. Em cada dez beneficiários aptos para trabalhar, sete são divididos para as equipes de limpeza urbana. Cada grupo é acompanhado pelo seu devido orientador, como o de José André, no Largo Coração de Jesus, próximo daqueles que limpam o quadrante do cruzamento da Alameda Cleveland com a Rua Helvétia. Ao norte do largo, mais uma equipe cuidava do quadrilátero entre as alamedas Ribeiro da Silva, Cleveland, Glete e Avenida Rio Branco. Esta última via ainda dividia outros dois grupos. Um que compreendia seus serviços entre as alamedas Eduardo Prado, Nothmann e Barão de Limeira; o segundo fazia a cobertura das alamedas Nothmann, Barão de Limeira e Rua Helvétia, em limite à Praça Princesa Isabel. As últimas três equipes eram mais afastadas da sede da Adesaf/DBA. Uma fazia o percurso de limpeza entre as ruas Helvétia, Guaianases e as avenidas Duque de Caxias e São João. Outra cooperava na praça principal da Freguesia do Ó. A última cobria o Largo do Arouche, para onde Rafael me levaria. Em média, cada equipe varre diariamente 0,9 km de perímetro.
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Capítulo 9
Magnificat13 O carrão buzinou no Largo do Arouche. Um senhor de terno, gravata saiu do automóvel e foi em direção aos beneficiários do DBA, que lá limpavam as vias sujas de folhas invernais e os resíduos descartados pelos transeuntes. Conversavam, sentavam. Conversavam mais. A vizinhança estava nas janelas para pra vê-los conversar. Pedestres se atraíam por conversarem. A conversa finda num sorriso mútuo fez com que o trabalhador em questão ganhasse o dia. Foi a primeira das inúmeras cenas de incentivo que a equipe do local foi agraciada no decorrer do programa municipal. Quando lá chegamos, era mais um inscrito ansioso. “Você viu? Aquele cara virou pra mim e disse ‘bom dia’!”, animou-se um dos beneficiários do DBA para o orientador social da Adesaf. “Respondeu a ele, não?”, riu tímido. “Antes do programa, você não tinha comunicação entre os toxicodependentes e a população. Essa é a vertente da iniciativa que precisa ser mais explorada. O vínculo com a comunidade.” Apesar do tom sempre reservado, o colaborador da Adesaf compreende a importância dessas singelezas e saudações. Registros como esse foram veiculados na mídia. Para a Rede TVT (janeiro de 2014), um beneficiário dizia estar com “Ansiedade, né? Primeiro dia, né? O pessoal encara a gente de outra forma”. Orgulhando-se do uniforme, mostra para a câmera. “Não encaram a gente como drogado, usuário [de crack], ladrão. 13
Magnificat é uma composição do maestro Heitor Villa-Lobos, membro da Semana de Arte Moderna de 1922. O termo é famoso na tradição cristã como o canto da prima de Maria ao saber das boas-novas de sua gravidez. Neste capítulo, remete às boas-novas dos beneficiários a partir de experiências no DBA. CRACOLÂNDIA: TERRITÓRIO DO ABRAÇO – Lincoln Spada (Imaginário Coletivo) – Adesaf
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Encara a gente como trabalhador já. Até no comércio, o pessoal dá ‘bom dia’, oferece cafezinho. Ontem já não era assim”, comemorou. Em época semelhante, a TV Brasil gravava o primeiro dia de varrição de Sidney, outro dependente químico em Campos Elíseos. “Ontem eu não usei nada, só para descansar o corpo pra hoje, né?” As demonstrações de apoio também foram transmitidas pelo Profissão Repórter, da TV Globo em maio de 2014. Uma mulher da vizinhança dizia à reportagem sobre um beneficiário: “Ele é um homem que sonha, que quer trabalhar, que quer ter um barraco. Ele fala isso todos os dias e ele vai conseguir!”. De fato, o inscrito em questão, Welton de Oliveira, de 27 anos, um ano depois, já sorria, atendendo clientes como auxiliar de cozinha num restaurante de shopping. Por meio do DBA, cessou com o consumo da droga e, aos poucos, foi se transferindo para outras iniciativas municipais, onde recebe tratamento psicológico e assistencial. A esposa e os dois filhos também estão cadastrados noutros serviços públicos e caritativos. Condição de visibilidade Antes, a população em geral via tais usuários de crack como “noias”, à parte da sociedade. Em artigo de Luciane Raupp e Rubens de Camargo Ferreira Adorno, na Revista Ciência & Saúde Coletiva (2011), um jovem da vizinhança afirmou: “Eles são ‘noia’! Ficam por ali usando a droga deles e não mexem com ninguém. Pelo menos comigo ninguém se mete! E ai deles se se meterem! Não são loucos!”. A probabilidade de roubos, segundo ele, é após as 21h, quando na época havia maior circulação de dependentes e traficantes na então Cracolândia. O par de acadêmicos ressaltou que, na época, a indiferença era comum de ambos os lados. “Existem pensões populares em frente às quais se podia sempre avistar residentes com suas famílias, conversando ou ouvindo música, e parecendo não se importar com os usuários por perto.” Portanto, um acordo mútuo de invisibilidade entre sociedade e
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marginalizados. Claro que o resgate da autoestima gerado com o vínculo da vizinhança é importante para a recuperação dos toxicodependentes. Às vezes, isso se dá com o próprio cartão de identificação do DBA. Até completar o cadastro no sistema eletrônico desenvolvido pela Adesaf, os participantes atravessaram um longo processo de se conscientizarem sobre a importância do documento na prestação de contas de suas atividades e acompanhamento de seu progresso no programa. Assim, permitiram o registro com fotos 3x4 e o uso do crachá. “À medida que usavam o crachá, muitos passaram a ser conhecidos pelo entorno, eram chamados pelo nome. Então alguns até se orgulham do cartão a ponto de ser usado como um documento de identidade. Sentem-se cidadãos de fato”, comentou uma colaboradora da Adesaf. Reitero com mais uma experiência relatada, dessa vez, por uma orientadora social da ONG. Diante de uma frente de trabalho, “começava a passar pelas ruas desejando ‘bom dia, gente!’, e, aos poucos, o pessoal começou a responder os beneficiários. Foi difícil. Ainda andávamos com carrinho com galão de água, porque naquele calor, os comerciantes tinham receio de dar água aos cadastrados”. Ao longo das semanas, um vendedor cedeu uma geladeira, “deixa o galão aqui pra gelar”. Semanas seguintes, uma lanchonete instalada na via passou a oferecer água. Numa alameda adiante, o receio da população tinha argumentos mais fortes. Um beneficiário do DBA evitava passar por lá, por já ter assaltado os estabelecimentos para revender por crack. Depois de muita insistência, quando o dono de uma loja o reconheceu, ele o olhou nos olhos para pedir desculpa. A orientadora recordou: “Até 2014, ninguém podia descer na Estação Júlio Prestes, porque sempre havia aquele medo de ser roubado pelos usuários de crack. Agora os assaltos diminuíram na região, até porque acontece dos beneficiários varrerem as calçadas em frente às lojas, rola uma identificação com os comerciantes. Eles não roubam mais e, pelo que sei, brigam quando alguém pensa em assaltar um estabelecimento na rua onde trabalham”. Efeito colateral do DBA. CRACOLÂNDIA: TERRITÓRIO DO ABRAÇO – Lincoln Spada (Imaginário Coletivo) – Adesaf
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Abraço de verdade A menor área da frente de trabalho de varrição e a mais afastada do fluxo, o Largo do Arouche é o retrato da relação harmoniosa entre beneficiários do programa, comerciantes e vizinhança. Durante o expediente, os uniformizados têm tratamento como qualquer cidadão e pequenos mimos, como cafezinho diário, água, uso do banheiro e um papear com garçons de um restaurante ou taxistas que pairam no logradouro. “O De Braços Abertos é ótimo pra mim, ele me acolhe muito bem. Hoje a gente se sente bem de chegar aqui”, garantiu Rodrigo (n.f.). “Tenho lugar pra dormir, comer, beber, posso fazer curso, minha cabeça pensa em outras coisas ao invés do vício. Tenho um carinho enorme pela equipe da Adesaf. Eu sinto isso, eu sinto um abraço de verdade deles. Abraço de carinho”, comoveu-se, abrindo os braços para o seu orientador. Órfão de mãe desde o nascimento, Rodrigo veio de Sorocaba, no interior paulista. Casou aos 18, foi pai aos 20 e teve mais duas crianças. “O crack não escolhe as pessoas, não. No interior, também a pedra custa R$ 10.” O vício teria encerrado ao assumir nova vida na Cristolândia, “e fui missionário dela na Cracolândia, de evangelizar, mas tive uma recaída. Parei de ir à igreja, minha mulher esteve internada, passei a dormir na rua”. Agora discerne melhor dos custos do vício e, com o dinheiro, tenta não comprar a pedra. “Reduzi bastante, mas uso ainda o crack. É horrível, nem quero comentar.” Mal diz sobre isso quando conversa com a esposa. “Digo que estou bem, minto. Mas tenho que mentir, porque ela e meus filhos esperam me ver bem e logo.” As suas economias vão semanalmente à família, até realizar o seu sonho: conseguir um novo carimbo na carteira de trabalho. Sempre é bom salientar que o rompimento com a família é um dos principais fatores para a ida e vinda dos toxicodependentes. Em um perfil de usuários publicado no Observatório do Crack, pesquisadores apontam que a perda dos pais na infância e o baixo nível de habilidades sociais CRACOLÂNDIA: TERRITÓRIO DO ABRAÇO – Lincoln Spada (Imaginário Coletivo) – Adesaf
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contribuem para a desistência de tratamentos, tanto quanto transtornos mentais na família ou dependência de álcool associado, entre outros. Mães, esposas, filhos Os dados ressoam em artigo de Luciane Raupp e Rubens Adorno na Revista Toxicodependências de Lisboa (2010). Nele, a solidão era uma razão para o abuso de drogas entre os entrevistados, “revelando a presença de um imaginário comum, sempre acessado para a justificação desse consumo”. O artigo continuava explicando que um universitário de jornalismo largou tudo, pois brigou com a mãe, ciente de seu envolvimento com o crack. A figura materna, por sua vez, também é determinante para evitar as drogas, segundo outra pesquisa da Revista Gaúcha de Enfermagem (2013). “No que tange a prevenção da experiência com drogas, estudo mostra que a maior influência tem sido a mãe e o melhor relacionamento tem sido com ela do que com o pai. Os jovens que buscam respeitar os sentimentos da mãe parecem ter maior influência na decisão de não usar drogas”, anotam os acadêmicos. Eles também citam um estudo em 14 capitais brasileiras, em que muitos dependentes químicos iniciam essa vivência por problemas familiares, além da influência de amigos, busca por prazer e conflitos pessoais. Ainda no Largo do Arouche, Adriana (n.f.) explicou que conheceu o crack quando foi obrigada a viver nas ruas. “Vim de Salvador com minha mãe aos dois anos. Aos 15, ela me mandou embora porque conheceu um novo homem. Fui apresentada às drogas.” Após seis anos, caiu na detenção por porte de entorpecentes. Com um companheiro, adquiriu uma casa em Praia Grande, litoral paulista, onde teve dois filhos. Uma briga causaria o novo êxodo para São Paulo, dessa vez, trabalharia como cabeleireira morando com a tia e suas crianças, até recebendo visitas de sua mãe. “Quando chega num belo dia, minha mãe sumiu com meus filhos, recebo a notícia que o pai das crianças foi preso e, na mesma semana, minha tia morreu.” Num dissabor de abandono familiar, CRACOLÂNDIA: TERRITÓRIO DO ABRAÇO – Lincoln Spada (Imaginário Coletivo) – Adesaf
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retornou à marginalidade há quase dois anos. O desejo agora é largar as drogas e recuperar sua prole. O tom de melancolia se dissolveu no instante seguinte. Com os pais, vizinhos da praça, uma criança se aproxima de Adriana saudando com ‘bom dia’. Ela retribuiu com sorriso e esperança.
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Capítulo 10
A Alegria é a Prova dos Nove14 O espírito natalino pairou mais cedo no DBA, mais precisamente na antevéspera da festividade, em 23 de dezembro de 2015. Cada dezena de beneficiários do programa colaborou para a data comemorativa: parte deles confeccionou guirlandas com material reciclável, outra parte tratou de cuidar da árvore de natal, houve ainda quem ajudasse na ambientação do espaço. Naquele dia, 150 participantes se reuniram com a equipe de colaboradores da Adesaf na sede do DBA. Contemplando um aspecto formativo, o evento contou com um curta-metragem sobre a origem cristã do Natal, seguido de uma intervenção teatral. O simbolismo da confraternização se fez presente com o “bom velhinho”. Legado do sincretismo cultural de diversas lendas, o Papai Noel é o mito que reúne a tradição de um deus nórdico de barbas brancas que distribuía presentes aos mais novos; a generosidade de um santo bispo que ajudava às crianças mais vulneráveis; e o dia atribuído ao aniversário de nascimento do homem mais cultuado no Ocidente. Cá entre nós, Papai Noel é a figura tradicional que mais nos remete a nossos primeiros lares, à família e à infância. Portanto, independente de quem revisite tal fantasia, o reencontro é regado com emoções. Cada um que se acomodava ao lado do personagem e seu trono, “ganhava um kit, que era uma foto com o Papai Noel, um porta-retrato e um panetone para celebrar depois”, explicou o gerente da Adesaf/DBA, Rafael Bruder.
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A alegria é a prova dos nove é um dos versos mais célebres do Manifesto Antropófago, realizado pelos modernistas. Neste capítulo, faz alusão a confraternizações e excursões desenvolvidas pela Adesaf/DBA. CRACOLÂNDIA: TERRITÓRIO DO ABRAÇO – Lincoln Spada (Imaginário Coletivo) – Adesaf
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A alegria preencheria no semestre seguinte outra confraternização, em uma manhã formativa voltada às tradições juninas. Na verdade, duas manhãs, cada uma estimando receber de 70 a 80 participantes. Nesta oportunidade, a decoração do espaço foi organizada somente pelos colaboradores da Adesaf. Durante o evento, músicas nordestinas, quadrilhas juninas e pratos típicos como canjica, pipoca e até cachorro quente foram apreciados pelos beneficiários do programa. Como todo mundo Mesmo de caráter singelo, as festas pontuais têm uma boa razão. Para a pesquisa desenvolvida pela Plataforma Brasileira de Política de Drogas sobre o DBA, as confraternizações, momentos de conversa e atividades externas são as formas de lazer mais desejadas, numa lista em que parte dos beneficiários faz alusão do uso de drogas para o entretenimento. Logo, a iniciativa paulistana vai além de Campos Elíseos e seu entorno. Em suas vivências, a equipe da Adesaf/DBA realizou excursões para parques e praças municipais. Uma ex-técnica da organização comentou: “Já os levei para o Parque Villa-Lobos umas quatro vezes. Na primeira, a gente teve uma conversa explicando sobre a postura deles, pra não usarem drogas, nem fumarem lá. O passeio ocorreu bem. Ah, é outro ar, energia, tem um monte de verde e de bichos. Eles também foram pro Ibirapuera, duas vans lotadas. Aí faltavam três lugares, ofereci meu carro, porque todos gostam muito desse contato com a natureza.” Ela até relembrou que, certa vez, o segurança do parque se achegou a ela: “Esses são os meninos do crack do Haddad? Eles são muito melhores do que qualquer criança de colégio particular”. Apesar da má comparação, o elogio de certa forma explicita o vínculo construído entre profissionais e cadastrados. “Eles depois falaram na van, ‘você viu como a gente foi tratado aqui? Como todo mundo!’”. Outra equipe de varrição contou com um dia de lazer no parque Jardim da Luz. “Correu tudo bem, claro, à medida do possível. Não tinha CRACOLÂNDIA: TERRITÓRIO DO ABRAÇO – Lincoln Spada (Imaginário Coletivo) – Adesaf
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como, porque alguns tentaram ir aos brinquedos infantis”, rememorou, rindo, um antigo orientador social da Adesaf. “Teve uma aceitação legal, foram à academia ao ar livre. Devido até à euforia, muitos pediam pra que eu os fotografasse com celular. Gostaram muito da experiência, um senhor da minha equipe, até, disse que teve outra visão sobre parques, pois antes só ia para fumar lá.” A equipe de técnicos com quem conversei e, principalmente, o coordenador Brandão foram unânimes, de que precisavam avaliar como ter mais passeios em espaços ao ar livre. Quem tem mais aptidão com o mundo verde, pode explorar a frente de trabalho que acontece na Fábrica Verde. Terapia, flores e salada Por lá, longas fileiras de pés de cenoura, beterraba, verduras e temperos. Muitos temperos. Uns cultivados pelas mãos de Renan (n.f.). Observando os detalhes dos grãos e da terra, tímido, ele conversou pouco. “É muito bom, ficar aqui é meio que terapêutico. E dá uma segunda chance pra gente querer sair dessa vida. Quando nos internam, a gente tem logo uma recaída. Aqui, a gente tem tempo e fica mais à vontade pra melhorar.” O seu colega de grupo é Alan (n.f.). “Graças a Deus, a gente tem a oportunidade pra sair da vida na rua. Na boca do lixo, é o seguinte, é uma vida de loucos, de altos e baixos. Agora, olha, posso sair de uma balada ou lugar e ir para o meu lar. Tomar um banho, trocar as roupas. Posso sair de casa sabendo que amanhã cedo tenho um lugar quando quiser ir embora. Posso ir ao funk, dar uns rolês na Ipiranga, no Centro, e dizer, ‘ó, vou embora. Não vou deitar na praça, vou pro meu quarto’”. Para o papo, ofereceu uma salada. A pausa no trabalho é o momento da equipe da frente de trabalho alimentar-se do saladão da própria colheita. O recanto possui uma estufa com sementeira e uma área maior, onde é possível cultivar frutas, hortaliças, temperos, plantas medicinais, ervas e flores, como lírio-da-paz. O ambiente fértil rende de pimentas a morangos, de boldo a arruda. No
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espaço, os participantes do DBA aprendem técnicas de jardinagem e de compostagem até a colheita dos frutos. A Fábrica Verde está localizada no Complexo Prates, na Rua Prates, 1.100, no bairro do Bom Retiro. O equipamento público municipal abrange uma área de 11 mil m² com quatro edificações, que, juntas, somam 5 mil m² de área construída. Inaugurado em março de 2012, o local reúne centro de apoio integrado para crianças, espaço de convivência, centro de acolhida para adultos e espaço de atendimento psicossocial, onde profissionais de saúde pública e assistência social podem acompanhar e reinserir as populações em situação de rua, dependentes químicos e em grau alto de vulnerabilidade. Território para ensinar “É sensacional ver a vida em germinação, é maravilhoso trabalhar com a terra. Por aqui, tem margaridas, hortelã, capim-santo, plantas medicinas. Nossa, são muitas espécies”, disse-me uma vez a então orientadora social da frente de trabalho, Josineide de Oliveira Almeida, de 34 anos. Até os 18, Josi trabalhava com agricultura em São Raimundo Donato, no Piauí. "Com a cara e a falta de juízo, escolhi morar em São Paulo", hospedando-se na casa de uma tia aos 23 anos. A parente realçava que, mesmo atuando como empregada doméstica na metrópole, o expediente era melhor remunerado do que no sertão. Depois de um mês tentando se adaptar na Capital, Josi disse; “comecei a trabalhar numa casa de família. E meus patrões me incentivaram muito nos estudos”. Na universidade, realizou o sonho de ser docente. O estágio aconteceu no último ano de sua licenciatura em Geografia. Com o afastamento de uma professora na rede estadual, assumiu turmas da segunda etapa do Ensino Fundamental e todo o Ensino Médio. “É maravilhoso dar aulas. Primeiro, porque são pessoas com a vida inteira pela frente para descobrir o mundo. Segundo, porque é possível assim plantar no coração delas tudo o que precisam para seguir um futuro CRACOLÂNDIA: TERRITÓRIO DO ABRAÇO – Lincoln Spada (Imaginário Coletivo) – Adesaf
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melhor”, relacionando o ofício do ensino à arte de semear a terra. Suas metáforas muitas vezes são em decorrência das vídeos-palestras de seu intelectual predileto, o filósofo e educador Mario Sergio Cortella. Após o período de substituição, em pleno ano letivo, Josi conseguiu se empregar numa lanchonete. A partir do aviso de uma amiga professora, foi procurar uma vaga na Adesaf/DBA. “Olha, toma cuidado, porque ali é a Cracolândia”, recomendou um guarda civil quando foi fazer a entrevista de emprego. “Mas é ali mesmo onde quero trabalhar.” Entusiasmou-se com o novo emprego, embora se deparasse com outra realidade, já que pouco tinha escutado sobre este território. Madrinha das costuras O primeiro grupo de beneficiários que ela orientou foi o da Fábrica Verde. Noutras vezes que visitei o programa, ela estava iniciando uma oficina dedicada à costura e ao crochê. “São nove pessoas na lista, entre homens e mulheres”, enumerou, ressaltando que poucos tinham noção de pregar um simples botão, mas já avançam e utilizavam bem a máquina de costura. Em meio à turma, dois homens se destacavam fazendo de fuxicos a toalhas de mesa. Mas o vínculo maior da colaboradora da Adesaf é Kátia (n.f.), “beneficiária que justamente sequer sabia pôr uma linha na agulha, mas se identificou muito, muito, com o projeto. Hoje a maioria das peças confeccionadas é dela, que já sabe produzir, à mão, sacolas retornáveis, colchas e outras obras”. Uma evolução em menos de três meses para a jovem costureira, que é usuária de tíner, como sua mãe. Irmã mais velha de quatro filhos, a moça cuida da família, mas também se preocupa com a professora. “Josi, nunca tive uma madrinha. Você quer ser minha madrinha?” A orientadora marejou os olhos só de lembrar no convite que aceitou de prontidão. Vontade maior seria de aplaudir Kátia e os demais participantes num futuro desfile com as próprias roupas que confeccionaram ou restauraram.
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Melhor é impossível O modelo de grupos de trabalho ou oficinas para um número menor de inscritos no programa se tornou comum no decorrer do convênio da Adesaf com a Prefeitura, objetivando personalizar o máximo possível o crescimento das aptidões e habilidades dos beneficiários para geração de renda. Em 2014, o Centro de Integração Social, no Largo Coração de Jesus, sediou boa parte destas ações diferenciadas. Pioneiro foi o projeto de cinedebate, em abril de 2014. As primeiras tardes concentravam de três a cinco pessoas. Em agosto, o público que se esbaldava em pipoca era de 20 a 25 beneficiários. “Eles voltam a serem crianças, toda semana escolhemos um filme com fundo didático. Para tirar algo de proveito. Então uma semana, escolho o filme. Noutra, os espectadores elegem de modo bem democrático”, divertia-se uma ex-colaboradora da Adesaf ao relatar os causos. Na filmografia, 12 Anos de Escravidão, Os Intocáveis, Amor sem Fronteiras (muitas lágrimas nesta tarde!), Bastardos Inglórios, Melhor é Impossível, Anaconda e King Kong. A ex-funcionária gracejou: “Teve uma que saiu, porque não queria ver o macaco morrer. Aí, quando saí da sala, ela perguntou, ‘ele morreu de novo?’”. Após os longas-metragens, uma discussão que trata desde capitalismo, coragem, morais motivacionais ou esperança de um futuro próspero. Visual de autoestima O prédio de três andares também recebeu outros eventos e formações. Se o cineclube era realizado às segundas-feiras, as tardes das quartas-feiras foram reservadas para salão de beleza. Em uma data, os homens acertavam barba, cabelo e bigode. Em outra, as mulheres davam um trato no look. Tudo gratuito para os inscritos do DBA. O novo visual é uma estratégia para recuperar a autoestima dos participantes. “É muito comum às mulheres se olharem no espelho após o corte de cabelos e dizerem, ‘nossa, agora eu me sinto gente’”, testemunhou uma CRACOLÂNDIA: TERRITÓRIO DO ABRAÇO – Lincoln Spada (Imaginário Coletivo) – Adesaf
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técnica da Adesaf. Os cortes são feitos por um grupo de profissionais do Salão de Beleza Teruya Cabeleireiros – a entidade é parceira do programa por meio da Secretaria de Desenvolvimento do Trabalho e Empreendedorismo –, e de seus alunos, já que o estabelecimento também é uma escola no segmento. O salão ainda oferece às tardes de terça e quinta-feira a capacitação de duas horas para cabeleireiro e manicure15. “Olha, a mulherada que corta o nosso cabelo tem crachá e apostila iguais aos nossos. Vou receber o diploma igualzinho a elas”, alegrou-se um dos beneficiários. No último andar do edifício, subi com a fotógrafa desta publicação, Bruna Stephanie, ao som da banda Skank. A música instrumental, porém, pertencia ao dedilhar de Iuri (n.f.), um dos três beneficiários que são capacitados em corte de cabelo pela Teruya. “O grupo é mais empenhado que outros alunos, logo já poderão abrir um salão de beleza”, apoia a professora do Teruya, Jacira dos Santos. Encerrando um penteado diferente na peruca da manequim, Iuri estava a incentivar os colegas por meio de canções. Fazia com acordes os hits de Titãs e Capital Inicial, animando também as alunas de manicure, ali presentes. “Os cursos são de pouca duração, de até três meses. Gosto muito de aprender com eles, porque quando você vê essa realidade pessoalmente ao invés da TV, é outra coisa, não? São pessoas muito capazes, veja, jamais saberia tocar violão”, respondeu Rose Abreu, outra professora do Teruya. Por sua vez, ela ensinou a quatro mulheres o ofício de manicure. “Elas estão muito bem, mostram interesse e até já sabem fazer bem as mãos. A gente nem tem tanto trabalho para ensinar, é mais um aperfeiçoamento.” Rose detalhou que, entre as aulas, elas aprimoram
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Com a nova sede da Adesaf, no segundo semestre de 2015, a capacitação de corte e cabelo foi transferida para a Alameda Nothmann, a 350 metros do antigo endereço. CRACOLÂNDIA: TERRITÓRIO DO ABRAÇO – Lincoln Spada (Imaginário Coletivo) – Adesaf
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técnicas para pintar unhas, fazer cutícula, higienização e até postura diante do cliente. Mal completou a frase, surgiu uma nova canção de Iuri. Da sarjeta à apostila Iuri tem um sotaque puxado como todo carioca da gema. Nasceu no Complexo do Alemão. “Perdi mãe, pai e irmão na praça.” Envolveu-se no tráfico de drogas local e, aos 27 anos, vivenciou a caçada do governo carioca quando o espaço seria reocupado em 2010 para a futura instalação de uma Unidade de Polícia Pacificadora. “Passei uma semana inteira debaixo do bueiro para não morrer. Acho que você viu, passou no jornal uma caminhonete que fugiu pela estrada, perseguida pela polícia. Recebi um tiro no pé.” De volta ao Complexo, passou mais uma vez escondido no bueiro por 20 dias. “Nesse tempo, não sabia o que era pior, cair na desgraça da polícia ou das facções. Olha, já vi muito bandidão, maioral, ser queimado pelo comando. Bem, sou usuário de cocaína, cheirava de verdade, gostava muito de cocaína.” Para escapar das perseguições, vestiu-se com calça social, sapato brilhoso e uma bíblia na mão. Fingindo-se de missionário, foi para Petrópolis, na região serrana do Estado do Rio de Janeiro, onde por intermédio de um amigo trabalhou como gerente industrial de uma cervejaria. Por lá, trabalhou dois anos, até que sofreu um acidente facial. “Tenho dois filhos, guardei o dinheiro da indenização para cada um deles. Já que parte da família mora em São Paulo, vim morar pra cá, mas no trajeto já usava drogas. Pensei que seria o bam-bam-bam. Nada disso. Na abstinência da cocaína, conheci o crack e chegava a gastar R$ 800 por dia. Fui morar numa favela em Tucuruvi e aí ouvi falar na TV sobre o DBA”. Foi desesperado conversar com Brandão, que conseguiu a vaga para ele e sua esposa. Entre a fissura e a fome, cometeu um delito logo no dia em que entrou no projeto. Passou quatro meses detido e, somente após sair do presídio, pode recomeçar a sua vida. Depois de tantas desventuras, tomou CRACOLÂNDIA: TERRITÓRIO DO ABRAÇO – Lincoln Spada (Imaginário Coletivo) – Adesaf
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a decisão da sua vida. “Sou dependente ainda, mas hoje em dia, posso falar, se fumo duas pedras por dia é muito. Se falar que é fácil não fumar é mentira”. A partir daí, levanta e exibe o seu visual. “Mas olha, poder ter celular, ter tênis original com dinheiro próprio, é muito bom. Graças a Deus posso voltar a trabalhar, estudar e tenho uma mulher maravilhosa.” Ao preferir a vida honesta e regrada, Iuri anda para cima e para baixo com a apostila do curso de cabeleireiros. Nas páginas, há lições de como fazer enrolamento com bobes, caracóis abatidos para trás, ondas horizontes, enrolamento de bigodim e até uso de bouclê. Porém, a capa tem a lição mais valiosa. “Que esse curso mude as nossas vidas. Conte sempre comigo. Te amo, marido.”
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Capítulo 11
O Despertar de São Paulo16 Quando o pé alcança o pedal e o move para trás, os rolamentos conduzem enquanto correntes fazem rodar o segundo pneu. O outro, dianteiro, movimenta-se em sequência, no contato com o solo, e serve para a direção. Por meio de um guidão, o ciclista pode dirigir o veículo, em média, à velocidade de 20 km/h. Em junho de 2015, a gestão de Haddad expandiu de 63 para mais de 330 quilômetros as ciclovias na Capital. Os benefícios da bicicleta são inúmeros, sendo o mais visível a não emissão de carbono, ao contrário dos veículos motorizados. Quem circula sobre duas rodas também tem mais saúde. De acordo com um levantamento da Escola de Economistas de Londres, ciclistas adoecem 7,4 dias por ano, sendo que não adeptos passam enfermos, em média, 8,7 dias. Pedalar evita a obesidade, melhora a articulação corporal e fortalece os sistemas respiratório e cardiovascular. Ciente disso, Gilberto (n.f.), paranaense de 41 anos, é um dos mais animados do grupo Caminhos da Prevenção. Trata-se da frente de trabalho em que parte dos beneficiários vai de bicicleta distribuir preservativos em áreas mais vulneráveis. Às seis e meia da manhã, ele desperta da cama para o café e, em seguida, circula fazendo campanhas de prevenção no seu trabalho matinal. “Enxergo essa como uma oportunidade na minha vida de sair do crack e de me sentir útil ajudando as pessoas.” A entrega de camisinhas e folders informativos ocorre nos Centros de Testagem e Aconselhamento (CTAs) referentes a DST/Aids. “Nesta 16
O Despertar de São Paulo é o título de um livro do modernista Menotti Del Picchia. Neste capítulo, o nome faz alusão às manhãs da equipe de Caminhos da Prevenção, frente de trabalho da Adesaf/DBA. CRACOLÂNDIA: TERRITÓRIO DO ABRAÇO – Lincoln Spada (Imaginário Coletivo) – Adesaf
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terça-feira, a gente atua na região central, que cobre as ONGs, os hotéis e os prédios de ocupação popular”, detalhou o ciclista entusiasmado. Como ele, cerca de meia dúzia de inscritos contribuem nesta frente de trabalho. O beneficiário se transferiu com a família para Sorocaba (SP) na infância. A mudança para São Paulo com sua irmã, na fase adulta, foi para conquistar melhor posição salarial. “Trabalhava como pintor de obras, mas aí vem uma conta alta em decorrência do crack. Uns amigos me ofereceram na balada.” Aos poucos, o jovem que fazia trabalhos voluntários e era um ás da capoeira foi estagnando o seu amanhã. “Comecei a perceber o quão era ruim, descontrolou a minha pressão arterial. Eu estava perdido. Perdido sem este programa”, Gilberto lamentou. Citou o quão seus irmãos reclamavam de que ele não era capaz de se recuperar do vício. Restaram vontade e as orações da mãe. “Ela é a única que não desiste de mim. Diz que errar é humano. Quero voltar melhor, porque quando saí de casa, ela me falou, ‘vai, vai que vou ter muito orgulho de você’”. Frente de carrinheiros Não é apenas Gilberto que pedala feliz todas as manhãs, garantiu o então orientador socioeducativo da Adesaf, na frente Caminhos da Prevenção, Flávio Jesus. “Antes íamos a pé distribuir preservativos. Mas, quando foram prometidas e as bicicletas chegaram, os inscritos pareciam crianças. É um trabalho diferente da varrição, quase um ato lúdico.” Flávio reforçou a necessidade da constante inovação do programa. “Tudo que é novo se torna muito importante pra eles, e eles acabam abraçando. Pode ver, a frequência desta equipe é alta, não temos mais problemas de faltas.” Quando conversávamos, ele observava três inscritos – a proximidade de agentes com grupos menores de beneficiários permite uma maior relação de confiança. “Tem vezes que já fomos ameaçados, xingados por eles, talvez pela fissura, e, no dia seguinte, já vêm pedir desculpas. Há um vínculo que CRACOLÂNDIA: TERRITÓRIO DO ABRAÇO – Lincoln Spada (Imaginário Coletivo) – Adesaf
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criamos com eles que acaba sendo muito forte.” Quem complementa é o ex-técnico da Adesaf Gauberto Gonçalves Costa. “Sabe, já reparei que eles se apegam muito ao orientador. Para eles, a gente acaba sendo da família, confiam em nós, têm consideração por nós. Eles passam a nos entender, e também entendemos o lado deles.” O antigo funcionário chegou a acompanhar outra frente de trabalho: o grupo de carrinheiros. Cerca de 20 inscritos no programa que já trabalhavam recolhendo papelão e outros resíduos descartados nas ruas. O catador de lixo reciclável é um emprego informal importante no mecanismo de descarte de resíduos sólidos. Com seus carrinhos de mão, aproximadamente 25 mil pessoas circulam pelas ruas da Capital paulista em busca de materiais, como papelão e plástico, a fim de revender para postos de coleta ou triagem. Em 2014, o índice de reciclagem de São Paulo chegava a 1,8%, a maior parte em função dos carrinheiros. Segundo alguns artigos e um mapeamento de carrinheiros em Santos (2015), geralmente quem assume este trabalho são homens, migrantes e acima dos 40 anos, sendo parte significativa casada, com filhos e até com local para morar. Certamente essa última característica não pertence ao público cadastrado no DBA. “Estão polvorosos querendo voltar a trabalhar na coleta reciclável, mas ainda não há previsão”, comentou Gauberto em setembro de 2015, quando estávamos no galpão da Adesaf/DBA. “Você sabe que a Cracolândia é como um microcosmo em que se ajuntam as pessoas das mais diversas. E de diversos cantos. Tem um nigeriano que está cadastrado e venceu diversos campeonatos como atleta. Toda semana ele vem aqui se divertir jogando pingue-pongue17 com outros inscritos”.
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O galpão da Adesaf/DBA chegou a ter um espaço com mesa de pingue-pongue para beneficiários, mas a atividade foi substituída por outras ações durante o ano de 2015. CRACOLÂNDIA: TERRITÓRIO DO ABRAÇO – Lincoln Spada (Imaginário Coletivo) – Adesaf
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Solicitações e semanadas Situado na Alameda Barão de Piracicaba, o galpão da Adesaf/DBA reúne um depósito de uniforme e material de varrição, outras frentes de trabalho e seis guichês de atendimento aos beneficiários. Durante o expediente, os colaboradores anotam as ocorrências e solicitações feitas pelos participantes do programa. Por volta de 30 são escritas por semana. Também ali o mutirão apresenta diariamente o cartão de registro para começo e fim do expediente. É por lá que receberiam o auxílio pecuniário semanalmente – na gíria, semanadas –, às tardes de sextas-feiras18. Após o almoço, por volta das 14 horas, mais de uma centena vai buscar o ganha-pão. O auxílio financeiro é tabelado por meio de decreto, tendo em vista a presença diária dos beneficiários. Ao participarem de uma frente de trabalho, ganham R$ 35 em um dia. A partir daí, vão acumulando um aumento de R$ 15 a R$ 25. Se atuarem dois dias, ganham R$ 50; três, R$ 65; quatro, R$ 105; cinco, R$ 130. Já que o primeiro dia útil do expediente é a sexta-feira, mesmo que o usuário venha a perder este dia e em seguida se esforce para participar das atividades subsequentes de segunda a quinta-feira, ele ganha uma fatia maior no salário. Como uma espécie de bônus para animar o comparecimento. Remuneração cidadã Entre outubro de 2014 e agosto de 2016, o DBA contabilizou um total de 692 beneficiários, sendo que parte deles foi inativada do programa – por ausência nas atividades durante mais de um mês, tratamento médico
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Na época, os participantes do DBA recebiam em espécie. Em 2016, a Adesaf/DBA abriu conta bancária para os inscritos e instituiu o depósito via cartão magnético, em comum acordo com a Prefeitura. CRACOLÂNDIA: TERRITÓRIO DO ABRAÇO – Lincoln Spada (Imaginário Coletivo) – Adesaf
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ou recolocação no mercado de trabalho. Geralmente, o DBA acompanha grupos de 450 inscritos. Partimos para números práticos. Em agosto de 2016, a iniciativa contava com esta média de inscritos no programa, a maioria (cerca de 290 ou 65%) presente em seus serviços. Assim, os demais cadastrados já eram definidos como inativos – muitas vezes pela debilitação física –, e, por isso, continuavam recebendo os outros atendimentos do DBA, como hospedagem e alimentação. Do total de contemplados, 35,5% estavam à frente da varrição (5% na região da Freguesia do Ó); 7% na oficina de artes plásticas e de reutilização de pneus e madeiras; 6% na Fábrica Verde; 6% na oficina de corte de cabelo, e de crochê e costura; 4% na manutenção de bicicletas ou nos Caminhos da Prevenção; e, entre as oficinas mais recentes, 3% na lavanderia comunitária e 3% na inclusão digital. A média de inscritos ativos que cumpriam diariamente a rotina era de 50%, sendo que outra boa parcela frequentava de três a quatro dias por semana, portanto, um número mais acima receberia a bolsa com os devidos descontos do expediente. Ainda recebem o auxílio financeiro quem se encontra em estágio diferenciado: está com laudo médico, internado, licença-maternidade ou na experiência para um emprego formal. A título de comparação, em dezembro de 2014, eram cerca de 80 classificados nestas situações específicas. Em outubro de 2016, o número caiu para cerca de 30 no mesmo contexto, demonstrando os efeitos da redução de danos do DBA, em fazer os beneficiários migrarem para o status ativo. Ressalta-se, ainda, que quem for detido pela polícia, se cometido delito, é excluído do programa automaticamente. É importante destacar o valor que há em receber um pagamento quando se presta um serviço à comunidade. A remuneração por uma espécie de trabalho é um fator indissociável da cidadania no mundo em que vivemos. “No momento em que não estou recebendo uma esmola, mas vou receber pelo meu trabalho, e vou poder dormir em uma cama, vou poder CRACOLÂNDIA: TERRITÓRIO DO ABRAÇO – Lincoln Spada (Imaginário Coletivo) – Adesaf
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tomar banho, vou poder ter três refeições por dia: eu me sinto pessoa novamente”, destacou o desembargador Antônio Malheiros em uma entrevista à TV Record (abril de 2015), ao abordar a iniciativa paulistana. Autodiscriminação Sentir-se humano é algo inusitado para usuários de crack em alto grau de vulnerabilidade. Em determinada manhã, era justamente para um técnico da Adesaf, que uma inscrita desabafava, aos berros, a situação com seu ex-esposo. Sim, a mesma que surtou em ameaças no Largo Coração de Jesus outro dia. “Eu acho que vocês só precisam ter mais compreensão um com o outro”, ponderou um agente da Adesaf. Minutos depois, a mulher em prantos saía: “Desculpa, nenhum orientador é ruim. Nós que não temos valor. A gente fuma, bebe, ninguém é obrigado a estar conosco, a aguentar a gente”. Tal condição de peso na consciência e autodiscriminação é bastante comum entre os cadastrados na iniciativa, comentou a técnica Priscila Basilo de Oliveira Medeiros. Ela argumentou: “Eles mesmos se discriminam e acabam reagindo com todos com desconfiança, por já terem sofrido preconceito noutras vezes”, considerando que os próprios inscritos se reservam dos estigmas que foram vitimados. De fato, as populações vulneráveis carregam “o sentimento de desconfiança na sociedade, nos provedores externos e na própria capacidade para enfrentar suas necessidades e desejos mais urgentes”, observam Aparecida Alvarez, Augusta Alvarenga e Nelson Fiedler-Ferrara em artigo na revista Psicologia & Sociedade (2004). Por isso, o trio aponta um único jeito para tratamento: “o restabelecimento de um estado de confiança seria o requisito básico para a terapia”. A mesma questão norteia uma publicação de Bruno Ramos Gomes e Rubens de Camargo Ferreira Adorno na Revista do Centro em Rede de Investigação em Antropologia (2011). Quanto aos usuários de crack observados por outra organização, “o redutor de danos da ONG costuma estabelecer uma relação de proximidade com os usuários, tentando evitar CRACOLÂNDIA: TERRITÓRIO DO ABRAÇO – Lincoln Spada (Imaginário Coletivo) – Adesaf
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conflitos e estimular o autocuidado (...). O redutor é percebido também como alguém que está ali para interferir na existência deles, surgindo assim uma ideia de cuidado”. É este o vínculo de confiança tão almejado nas rodas de conversas de técnicos e orientadores da Adesaf. Ajeitando-se com brincos, colar e batom, Priscila, aos 33 anos, trabalha há oito anos na área social. “Na minha carreira, aprendi a me colocar mais no lugar do próximo, a me dispor mais por ele”, disse, recordando a experiência em uma brinquedoteca com crianças em situação de risco. Compromisso consciente Também encontrei diversas vezes no galpão da Adesaf/DBA o extécnico Eduardo Fidelis. “Desde 2004, atuo na Cracolândia. Comecei com um projeto na área da saúde para população em situação de rua, justamente após o ‘Massacre da Sé’. Era uma solicitação dos movimentos de luta para esta população.” O massacre se refere a 15 agressões com golpes na cabeça contra moradores em situação de rua, entre os dias 19 e 22 de agosto daquele ano. Sete foram assassinados e, até hoje, ninguém foi preso pelos crimes. “Era o início de carreira, mesmo, tinha 22 anos. Fiquei sabendo da oportunidade pelos órgãos de assistência social. Desde então, não saí mais, sou apaixonado pela área social, é muito gratificante trabalhar com pessoas e por pessoas”, disse Eduardo. O então colaborador é uma testemunha ocular das mudanças que aconteceram e acontecem em Campos Elíseos. “Nos últimos anos, um dos casos mais extremos foi ter que resgatar um cara em surto, numa boca que fizeram no sobrado abandonado. Antes, os prédios eram interditados pela Prefeitura. O governo queria tirar o pessoal da Cracolândia à força. Agora, essa Prefeitura está com esse olhar diferente, de redução de danos, de fortalecer vínculos”. “Acredita no sucesso dele?”, perguntei. “Acredito muito no DBA.”
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Dos pontos que destaca, é que “se antes o cara ia ficar três dias virado com a droga, agora ele tem motivo para parar. Ele começa a gerar um comprometimento pra trabalhar, pra se reinserir. Aos pouquinhos, a gente vai trabalhando no sentido de ele ficar bem”. Eduardo estava no programa desde o início, no primeiro semestre de 2014, antes de a Adesaf assumir no âmbito do trabalho. A ONG administra o programa ligado ao DBA desde o fim de contrato da Prefeitura com a entidade gestora anterior. Noutra gestão, o então técnico era responsável por acompanhar as hospedagens onde estavam os cadastrados. “Rolava esse papo franco com eles, de perguntar sobre a rotina, os sonhos. Hoje também, é que nesse caso eles vêm ao galpão para fazer as solicitações. Tem casos de recaídas em drogadição e, infelizmente, vão ao fluxo. Aí retomam a consciência e vêm aqui, porque, no fundo se incomodam. Eles não querem ver drogas nos quartos deles. Eles querem é ter uniforme de trabalho, pra trabalhar mesmo. É nítido.” Moradas em reparo Até outubro de 2016, a Adesaf também era a responsável pelos pagamentos das vagas de hospedagens dos beneficiários, a partir do controle e autorização da Prefeitura via Secretaria de Assistência e Desenvolvimento Social. Nestes dois anos, dez estabelecimentos foram cadastrados dentro do programa, instalados entre os bairros de Campos Elíseos, Santa Ifigênia e Freguesia do Ó. Neste período, alguns foram descredenciados por condições inadequadas. Dos oito ainda participantes até setembro de 2016, o contrato previa a reserva de até 448 leitos, sendo que há edifícios com capacidade variada, de 40 até 72 vagas. Os orientadores da Adesaf também fazem busca ativa dos beneficiários nos endereços, acompanhando a sua trajetória no programa. No segundo semestre de 2016, o DBA ampliou esse atendimento à hospedagem, passando a gerir o Hotel Parque Dom Pedro, no Centro. Detalho melhor este endereço no próximo capítulo.
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Do mesmo modo que houve cenas em que se registram revenda de itens da hospedagem por crack, existe uma maioria de situações em que os residentes se prontificam a colaborar para harmonia da vizinhança. A ONG também zela pelo patrimônio ao destinar uma frente de trabalho específica para a manutenção predial. Trata-se de um quarteto de inscritos que realizam serviços de reparos sob a regência do orientador da Adesaf, Sílvio de Campos. O nosso primeiro encontro ocorreu quando ele media a eletricidade das tomadas no refeitório da sede administrativa. “Opa, bom dia, Sílvio. Ele é nosso técnico de manutenção”, apresentou-me Rafael Bruder. O orientador socioeducativo fez uma pausa para o café. “O grupo que estou acompanhando, vira e mexe, está aí com seus uniformes colaborando comigo em pequenos reparos nos hotéis e no próprio prédio da Adesaf, sede do DBA.” De acordo com Sílvio, “os problemas maiores do grupo que oriento estão mais ligados ao álcool do que à dependência do crack. E ao beber junto de inalar, pronto, dá-se um choque. A proposta que estou fazendo para eles, faz um mês, é de fora do horário de trabalho, no final de semana, assistirmos a futebol ou conversarmos em algum comércio. Mas devem maneirar no álcool”. Uma alternativa para intensificar o vínculo social e de redução de danos. Um participante destas rodas da manutenção predial é Henrique (n.f.), paulistano de 32 anos. “A minha entrada nessa vida, no vício, deuse porque estava morando num prédio [ocupado] que foi demolido e, então, passei seis meses tendo que viver na ‘favelinha’, num barraco com minha mulher e duas crianças. Imagina um barraquinho”, demonstrou a pequenez estendendo pouco os braços. “Aí entrei no DBA, mas minha mulher foi embora com minhas filhas. Sei que é complicado, mas meu sonho é poder reintegrar a família de novo.” Henrique sempre é otimista. Descreveu que se enxergava num futuro próspero mesmo quando seus pais o expulsaram de casa, “pois não aceitavam minha esposa. Bem, os momentos mais importantes da minha CRACOLÂNDIA: TERRITÓRIO DO ABRAÇO – Lincoln Spada (Imaginário Coletivo) – Adesaf
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vida foram o nascimento de nossas filhas”. Ele, que, quando não está consertando coisas, está caminhando no Centro aos fins de semana (“é muito interessante ver praças, teatros, museus”), concluiu seu depoimento com uma dose de positividade. “Acho bárbaro que se cada um despertasse e fizesse ou desse um pouquinho de si para o outro, não estaríamos na situação em que estamos hoje. Aliás, precisa de alguma ajuda?” Sorrio com o copo de café vazio.
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Capítulo 12
Carta à minha noiva19 A última vez que Robson Carlos da Silva usou drogas não causou prazer algum. O momento pertencia a um Robson de ontem, de uma década atrás, quando iniciou os vícios por meio do álcool. Nos últimos anos, “fumava bastante, usava crack por uns três dias da semana. De sexta-feira, eram dez pedras. E umas quatro, cinco barrigudinhas”. Trata-se do formato das garrafas de cachaça, bebida que acelera a circulação do sangue nas extremidades do corpo e da pele, falseando a sensação de aquecer o usuário. Por isso, tão querida por moradores em situação de rua para amenizar as noites de baixa temperatura. Por uns três anos, Robson sobreviveu neste contexto. Em setembro de 2016, aos 33 anos, ele é um homem com noiva, filhos, emprego e quase um ano sem ingerir drogas – na vez citada acima, um arrependimento nocauteou o vício. A razão é Marizânia, de 35 anos, a sua noiva. Como beneficiário do DBA, ele conheceu a moça, que era funcionária do Restaurante Bom Prato. “Eu me apeguei muito a ela, porque ela me deu a maior atenção, enquanto meu coração estava jogado às traças.” A troca de olhares por umas semanas o inspirou a convidá-la para um passeio no Jardim da Luz, onde se beijaram pela primeira vez. Abraçando a amada, ele me disse que, horas depois de deixá-la no ponto de ônibus, teve uma recaída. “Pensei com que cara vou olhá-la amanhã? Bateu uma depressão muito grande, deu um baque.” 19
Carta à minha noiva é o nome de um livro do modernista Guilherme de Almeida. Neste capítulo, remete à declaração de amor de um ex-beneficiário do DBA para quem o inspirou a cessar os vícios. CRACOLÂNDIA: TERRITÓRIO DO ABRAÇO – Lincoln Spada (Imaginário Coletivo) – Adesaf
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Para alcançar o autocontrole na luta contra as drogas, a jornada do belo-horizontino Robson foi longa. De temperamento rebelde, o menino católico que participava de missas com a mãe cresceu sem concluir a oitava série, ao contrário do irmão mais velho, que chegou ao ensino profissional. Quando jovem, entre vinhos e cervejas, foi atraído pela cachaça. “Passei a beber demais quando minha primeira esposa engravidou e perdeu o bebê.” Perdeu o matrimônio de cinco anos, o emprego e a independência financeira, voltando a morar com a mãe. Arroz, feijão e amor “Fui um cara muito rebelde”, lamentou. A vinda para São Paulo foi aos 25 anos, então para a residência de uma tia, mas ele não se adaptou. O triste caminho das pedras o conduziu para uma casa de convivência, ser carrinheiro, trabalhar com reciclagem e morar nas ruas. Por meio de uma ex-parceira, ingressou no programa no final de 2014. Pela rede pública, fez uma cirurgia no pulmão, utilizando medicamentos simultâneos por causa de tuberculose e pneumonia. “Sem autoestima, só vivia dentro do quarto, enfurnado no hotel, sem vontade até de tomar banho.” Passado o tratamento penoso de oito meses, “o DBA foi uma mão na roda para mim, porque venci a tuberculose, a pneumonia e eu já tinha pensamento de parar de beber. Claro que, no começo, não foi fácil e que dei dor de cabeça à equipe. Mas só tenho a agradecer a paciência que tiveram comigo. Cresci muito no projeto, aprendi a dar valor para família, a não ser mais rebelde, até a dar mais valor para o dinheiro, recebendo-o toda semana”. Foi esse homem mais consciente que Marizânia convidou para uma ceia de Natal em 2015. Quando Robson entrou na casa de sua companheira, conheceu a família dela: mãe, padrasto, tia, irmãos, sobrinhos e seus dois filhos. Celebraram o jantar antes da meia-noite, por causa dos pequenos. Hoje, ele já divide o teto com a dupla de enteados. “Ainda vou fazer a festinha de aniversário do mais novo”, anima-se sempre agradecendo a Deus cada CRACOLÂNDIA: TERRITÓRIO DO ABRAÇO – Lincoln Spada (Imaginário Coletivo) – Adesaf
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frase. O carinho é comprovado com cesta de chocolate ou urso de pelúcia à esposa. “E não pode faltar arroz, feijão, amor. Não pode faltar nada em casa.” Beijo de bom dia O novo lar é acompanhado de uma nova rotina. No início de 2016, o casal de patrões no hotel onde ele estava hospedado pelo DBA o empregou para trabalhar na recepção de outra pousada perto de Campos Elíseos. “É uma vida diferente, graças a Deus, porque eles me veem com outros olhos. Eles não me veem como cara encrenqueiro, eles dizem que estou mais sadio, mais bonito, que engordei”, enumerou rindo a lista crescente de elogios. “Eles vão me dando força todo dia.” Atualmente, o beijo matinal é o primeiro compromisso de Robson e Marizânia às quatro horas. Em 40 minutos, tomam xícara de café e se aprontam para irem juntos ao ponto de ônibus. Ele a deixa no restaurante, onde fazem a primeira refeição, por volta das 6h30. Caminha até as 7 horas para o expediente de trabalho. Às 15h, reencontra a amada e, de mãos dadas, rumam para o lar, onde jantam por volta das 18h, e depois acompanham os estudos dos meninos. O próprio Robson ressaltou que toda essa mudança também se atribui à sua passagem como beneficiário do DBA, acompanhado pela Adesaf. Pela iniciativa paulistana, atuou na frente de varrição, inclusão digital e ganhou um diploma pelo curso de móveis ecossustentáveis com uso de pneus. “Com todo o material em mãos, em até três horas você já faz um pufe”, detalhando os processos de costura do móvel, como grampeá-lo com espuma, inserir rodas e confeccionar uma capa. Casa nova A oficina foi ministrada na nova sede da Adesaf/DBA, em novembro de 2015. Mais afastado do fluxo psicotrópico, o prédio é localizado a 350 metros do edifício anterior. O equipamento de três andares era uma antiga loja de roupas e escritório. Bem maior do que o espaço CRACOLÂNDIA: TERRITÓRIO DO ABRAÇO – Lincoln Spada (Imaginário Coletivo) – Adesaf
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anterior no Largo Coração de Jesus, substitui as atividades realizadas pela ONG no Centro de Integração Social, no mesmo endereço. Repleto de sinais de alarme e câmeras de monitoramento, o prédio acinzentado e de portões de aço tem no piso térreo um salão amplo para formação cidadã e rodas de conversa, e, ao lado, um ambiente para curso de cabeleireiro e um conjunto de salas-aquário, onde são realizadas as oficinas de móveis com pneus e artesanato com materiais recicláveis. Ali, todas as divisas das estantes contêm garrafas de vidro grafitadas, três espelhos contornados por conchinhas, um filtro de barro colorido em estilo indígena e mesas manchadas de guaches e tintas a óleo. Um porta-moedas em formato de gavião de 30 centímetros ganha ostentação com pinceladas em preto e branco. “Essa tela aqui é sobre um super-herói que inventei”, mostrou-me Bernardo (n.f.), fã de histórias em quadrinhos. As artes plásticas ajudamno a externar toda sua paixão pela Marvel e DC Comics, contando-me sobre o diálogo clássico entre Coringa e Batman no final de A Piada Mortal, a origem de Deadpool exibida nos cinemas e que ele se imagina na legião dos X-Men. A saga dos mutantes fala de pessoas fora dos padrões e mal acolhidas pela sociedade. Afinal, o grupo liderado pelo Dr. Xavier vive uma trama sobre o respeito ao próximo e a luta por direitos civis. Com idade mais avançada, meia dúzia de beneficiários assumiu o protagonismo na sala. Em especial, Fernando (n.f.), que há dez dias está montando o esqueleto de um barco de quase meio metro de comprimento, feito somente de galhos de árvores que encontra pelas ruas, laçado em cordas ou arames. Para ele, a oficina tem o caráter terapêutico, pois afirma pensar o dia inteiro em como construir sua obra-prima, em vez de se afundar com cachimbos de crack. “Todo mundo deste lugar acaba reduzindo o consumo por meio da arte.” Os demais consentiram com a cabeça. Dos reparos aos passeios No primeiro andar do edifício, há o refeitório e a sala de reuniões da equipe, onde há, além da costumeira mesa e cadeiras, um armário com CRACOLÂNDIA: TERRITÓRIO DO ABRAÇO – Lincoln Spada (Imaginário Coletivo) – Adesaf
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romances literários de Júlio Verne, Chico Buarque e Aluísio Azevedo, entre outros. Existe ainda, numa sala-aquário, a oficina de manutenção básica de bicicletas. Nas manhãs de terças a sextas-feiras, quase uma dezena de participantes do programa faz reparos de veículos no espaço. Pelas paredes, cartazes de eventos de bike e um quadro cheio de ferramentas – chave de fenda, alicate e roldanas. Muitas roldanas. “Fazemos em torno de dois a três atendimentos por semana, já que a própria vizinhança encaminha bicicletas para o conserto”, explicou o extécnico Ricardo de Souza Queiroz Xavier. A oficina também conta com bicicletas específicas para treinamento de reparos. Ajuste de câmaras de ar, reparos de pneus, trato na caixa de direção e o temido conserto do sistema de freios, já que exige maior dificuldade. “Há mulheres inscritas, mas a maioria são homens acima dos 30 anos. Um até já trabalhava exclusivamente neste ramo de bicicletas”, comentou Ricardo. Vira e mexe, as sextas-feiras são o dias em que os beneficiários passeiam de bicicleta. Além de maior interação, o grupo aprende o uso de ciclovias pela cidade e as leis de trânsito. Atravessam uns seis quilômetros até o Parque da Juventude, onde descansam e conversam antes de retornar à sede da ONG. Ateliê da lua incendiária Por sua vez, último andar do prédio contempla o setor administrativo e o escritório exclusivo de Brandão, coordenador do programa pela Adesaf. Do outro lado do edifício, os visitantes acessam salas de corte e costura, artes plásticas e visuais. No ambiente maior, mais de 60 telas estão espalhadas ou encostadas nas paredes claras, boa parte sem moldura. Cavalete, estante com tintas e balcões extensos completam o ar de ateliê. Um dos inscritos se sente honrado com a presença de um amigo para visitar seus quadros expostos na sala. O amigo traz mais um amigo. Que traz mais um amigo, João, da equipe da Adesaf/DBA. “Nossa, tá muito louco esse quadro, hein? Você que fez?” O autor concorda e aponta explicando a motivação para cada produção artística. Outro aponta para CRACOLÂNDIA: TERRITÓRIO DO ABRAÇO – Lincoln Spada (Imaginário Coletivo) – Adesaf
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um homem nu desenhado e cai na gargalhada. Os risos são cortados por uma viagem à imaginação, em que cada um interpreta uma história diferente para cada figura do ambiente. Numa imagem, uma mulher beija um bichinho de estimação em poucos traços. Noutra, uma lua vermelha de referências orientais incendeia a tela violeta. Uma borboleta de cores primárias ocupa todo outro painel com um estilo de duplicação da imagem. Há quem pinte jardins com rosas e copos de leite, uma musa com vinho na mão, quem desenhe casais bailando tango em tons pastéis, além de quem prefira estudar os movimentos dos traços, em uma obra monocromática. Em seguida, um beneficiário me entrega uma pilha de papéis com tracejado bem definido de lápis. Um índio contemplando a paisagem, um admirável fisiculturista levantando um jipe e o retrato de uma princesa são alguns dos desenhos do rapaz. O que mais se destaca é um autorretrato, começando a vestir uma jaqueta no meio da rua, com uma flor nascendo no canto do asfalto e do sulfite. Vem acompanhado de um poema: “O mal não domina sobre todas as coisas, porque Deus é o oposto do mal e mantém as coisas em equilíbrio”. O versátil gentleman É mais do que comum que as figuras sejam fruto de lembranças dos participantes do DBA. “Tem um senhor que desenha muito a exesposa. Outro sempre teve vontade de ter um carro, então vive esboçando um”, enumerou a orientadora socioeducativa, Jéssica Formigoni Araújo. Em geral, os inscritos no programa tardam de dois a três dias para concluir seus trabalhos. O que mais exige concentração são as esculturas. A partir de rascunhos no papel, placas de isopor são esculpidas e ganham uma argamassa suficiente para ter sua superfície lisa. Estrelas gigantes, quimeras animais e um par dançando estão presentes no local. Entretanto, Jéssica não é a responsável por ministrar as atividades do ateliê, mas Roberto Vivas. “Ele é uma pessoa cheia de sabedoria, muito humilde e tem bastante paciência, compreensão com os alunos. Ele gosta CRACOLÂNDIA: TERRITÓRIO DO ABRAÇO – Lincoln Spada (Imaginário Coletivo) – Adesaf
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mesmo do que faz, e de ensinar as pessoas o mundo das artes.” De paletó cinza e roupa social, Roberto Vivas é um cavalheiro à moda antiga, que colabora com rápidos retoques e longos conselhos a cada um dos beneficiários. Aumenta o tom de voz apenas para elogiar ou incentivar um de seus pupilos. Na casa dos 80 anos, Roberto Vivas guarda o sotaque argentino, embora more no Brasil desde os anos 1970. Já fez residência também na Europa e nos Estados Unidos. Especializou-se em artes urbanas (grafite), artes plásticas (quadros) e esculturas (de bronze, pedra, alumínio ou prata), numa compilação de mais de duas mil obras – metade em telas, metade em esculturas, boa parte delas em mansões, galerias e hotéis no cenário nacional e internacional – até na casa de ex-presidentes do Brasil. Pelas ruas, assina a escultura na entrada do SESC Interlagos e o Monumento ao Tango, em Higienópolis, entre outros patrimônios. Cabides de roupas limpas Outras atividades formativas também integram o calendário do DBA. Por exemplo, uma lavanderia instalada no prédio municipal da Rua Helvétia, onde se concentra uma tenda, sendo espaço de interação entre a população em situação de rua ou em drogadição com os agentes das secretarias de Saúde e de Desenvolvimento e Assistência Social. Nos fundos do terreno, um balcão rodeia a porta de entrada do mais recente serviço oferecido do programa municipal. Inaugurada em junho de 2016, a lavanderia foi elaborada durante todo o semestre, sendo que cerca de uma dezena dos beneficiários do DBA se inscreveu em curso de capacitação em lavanderia industrial pelo SESISP. Com duração bimestral, a formação apresentava métodos de planejamento e controle de produção, aplicando procedimentos de segurança e saúde no trabalho. “Quando entrei no curso, pensei que era coisa de mulher”, disse um dos alunos, Orlando (n.f.). Aos 45 anos, perdeu o preconceito: “Até porque, além de operar as máquinas, posso lidar com o público, ter contato CRACOLÂNDIA: TERRITÓRIO DO ABRAÇO – Lincoln Spada (Imaginário Coletivo) – Adesaf
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com as pessoas. Agora a gente vê as pessoas sem roupas ruins.” Além dele, 14 participantes formam o serviço comunitário, que tem como objetivo atender não somente os inscritos no DBA, mas principalmente as pessoas em situação marginalizada. Mais de mil peças foram limpas neste serviço no primeiro bimestre. Ao entregar a roupa, o usuário recebe uma comanda e o traje passa pelo processo de pré-lavagem, lavagem em uma das duas máquinas presentes, segue no varal da área externa e, depois, é guardado em cabides ou embrulhado, permanecendo na estante de alumínio da lavanderia comunitária. Etiquetas enumeradas na gola das peças fazem relação às comandas dos clientes. Todo o processo é gratuito e leva três dias. A atividade está em fase de avaliação e pode merecer uma reestruturação. “É uma questão de saúde, de higiene, porque, por vezes, as pessoas em situação de rua usam uma mesma roupa por três, quatro dias seguidos e logo descartam”, comentou a orientadora socioeducativa Perla Gardênia Sousa Marques. “Escutamos muito que, com o DBA, eles sentem prazer de ter um banho, e hoje uma roupa limpa para usar. É também um resgate da cidadania, da humanidade.” Por lá, são encaminhadas camisas de grife e até blusas presenteadas há anos pelos pais dos clientes. Há ainda quem confunda pedindo doação de agasalhos. “O bairro é conhecido por ser muito frio, e você mesmo pode ver que a maioria das roupas que lavamos é de inverno”, antecipou a técnica da Adesaf, Renata Dias Almeida. De suas recordações do projeto, declarou: “Dois momentos mais me emocionaram. Um foi o comentário de uma mãe de um beneficiário, dizendo que toda noite decide orar pela equipe da Adesaf porque ajudamos seu filho a diminuir o seu vício e mudar seu comportamento. Outro foi uma carta do Orlando (n.f.), agradecendo-nos, pois a iniciativa o animou tanto, que hoje já se controla mais e só bebe uma vez por semana”. Acaso conspira por e-mail O entusiasmo também é dividido por outros participantes do DBA: os recém-formados no curso de inclusão digital, realizado no Centro de CRACOLÂNDIA: TERRITÓRIO DO ABRAÇO – Lincoln Spada (Imaginário Coletivo) – Adesaf
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Apoio ao Trabalhador – CAT Luz. A parceria começou no primeiro semestre de 2016. A formação é dada num ambiente climatizado no segundo andar do edifício municipal. O laboratório de duas fileiras de dezenas de computadores e cadeiras estofadas (25 equipamentos individuais nas bancadas) contém lousa e câmera de segurança. Com o projetor, o orientador social da Adesaf, Glauber Cruz, exibe as ferramentas do Excel ao grupo de alunos. Na verdade, a tela já apresentou ações no Pacote Office, navegação na internet (redes sociais são de uso restrito) e também Photoshop, Movie Maker, Publisher e outros programas e aplicativos virtuais. “A ideia inicial era apresentar o básico, mas cada um procura e gosta de certo tipo de programa. E aí partilhamos o conteúdo em conjunto.” Só que sempre tem um “caxias” que prefere aprender o Excel. “No fundo, é ele quem me ensina, porque ele vai pesquisando e descobrindo como aplicar várias fórmulas”, admitiu Glauber. Na sala de aula, são seis beneficiários mais interessados, que vão toda a semana de manhã para o CAT Luz. Não faltam declarações de amor em PowerPoint, feitas por um casal de participantes. Outro passa horas mandando currículos por e-mail para empresas em busca de emprego. “E tem o Matheus (n.f.), que, por incrível que pareça, através do Google achou o e-mail da irmã dele. Foi puro acaso, já que não se falavam há mais de 10 anos. Pela internet, reencontraram-se e ele abraçou a mãe, os irmãos e sobrinhos”, contou Glauber. “Hoje ele gosta de entrar em chats para fazer amigos, partilhar sobre a vida e trocar e-mails. Certeza que assim ele já fez um monte de amizades.”
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Capítulo 13
O Homem Amarelo20 Cruzou as pernas, cobriu-se com lençol e mirou longe. “É, eu não sei de onde vim.” Aos 56 anos, Yuhki (n.f.) sabe bem que é descendente de imigrantes orientais, mas já não reconhece seu pai, sua mãe ou possíveis irmãos. A idade ele suspeita a partir de um cartão de cadastro que guarda no casaco. “Conheço Quércia, Covas, Maluf [ex-governadores de São Paulo], mas não me lembro de mim.” Alegando ter sua memória atrelada a flashes distantes, “nem sei dizer se tive infância”. Há mais de 30 anos é usuário de crack e, por boa parte desse período, desconfia ter vivido sem lar. Desconfia, pois ele mesmo não tem destreza para afirmar se o que lhe vem à mente são memórias ou ilusões. De um modo silabado, afirmou saber “cinco línguas. Elas surgem espontaneamente quando encontro um estrangeiro na rua” e ter visitado “todas as capitais do Brasil”. Entre raciocínios dispersos, informou que uma voz materna o desejava médico, portanto, formou-se psicólogo, também tem diploma em Jornalismo no interior paulista e foi programador cultural em Pernambuco. Entretanto, se as recordações podem enganá-lo, as telas no seu quarto contam sobre um artista em anonimato. Os dedos expressionistas se esbaldam em uma porção de 40 tintas estrangeiras. Nas telas, serpentes em tons psicodélicos e contornos de casais em sua intimidade. Eterno solteiro, Yuhki guarda sua libido para a criação artística. Geralmente, ao anoitecer, sente uma força inspiradora que, de modo relâmpago, toma-lhe a razão e o quadro. Foi assim com uma obra de 1,5 m 20
O Homem Amarelo é o nome de um quadro da modernista Anita Malfatti. Neste capítulo, refere-se à origem do artista beneficiário do DBA. CRACOLÂNDIA: TERRITÓRIO DO ABRAÇO – Lincoln Spada (Imaginário Coletivo) – Adesaf
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próxima à sua cama: uma criança a correr. O tripé trocado no fluxo de drogas, uma moldura encontrada na rua e um retrato para finalizar entregue por alguém da vizinhança. Tudo integra o espírito pueril da peça montada em menos de uma semana. Criança peculiar Ele atribuiu o dom de colorir a “Painho, guia de todos os pertences que vêm as minhas mãos”. A estante é repleta de livros doados, como O Vendedor de Sonhos, de Augusto Cury, e O Orfanato da Srta. Peregrine para Crianças Peculiares, de Ransom Riggs. “Eu me sinto um pouco criança e me sinto um pouco peculiar. Já leu esse livro? É um orfanato que fica numa ilha bombardeada na Segunda Guerra Mundial.” Yuhki alertou sobre spoiler: “Assim, a senhora do título, que é um gavião, cria uma fenda no tempo para que todo dia seja o mesmo no orfanato, salvando as crianças. Só que todas elas têm poderes especiais”. Contudo, o seu livro predileto é sobre quadros de Van Gogh. Em vez da solidão de Van Gogh ou da teoria de espera por um amigo, familiar ou uma amada, a terceira versão de Quarto em Arles é uma visão futurista, segundo o beneficiário do DBA. A iluminação no chão da figura representa, para ele, as sombras dos prédios de uma metrópole. Se antes morava debaixo de uma árvore na Praça Júlio Prestes, há quase dois anos ele está inserido na iniciativa paulistana. Com o programa, ele tem acompanhamento psicológico, medicamentos, assistência social, alimentação diária e hospedagem – todos esses direitos até então eram inimagináveis para Yuhki. Fazer quadros em vez de estar no meio do fluxo “é uma oportunidade que só a Adesaf e o DBA puderam fazer por mim”. Num clima festivo, afirmou: “A Adesaf e a Prefeitura são responsáveis por todas as coisas que realizo, por tudo aquilo que consigo desempenhar hoje. Graças, Painho. Não sei votar, nem título de eleitor tenho, mas queria agradecer, porque não conheço na história de São Paulo, uma prefeitura que fez tanto por nós, como essa [atual gestão]”.
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Identidade guardada Conheci Yuhki em seu dormitório, perto de suas produções artísticas, roupas lavadas e sua prateleira de livros. Uma condição de preservar parte de suas memórias e identidade através do DBA. O seu quarto é compartilhado com outro beneficiário no Hotel Dom Pedro, destinado ao DBA e gerido pela Prefeitura com outra ONG no Centro da cidade. O edifício de oito andares contempla 28 quartos, sendo quatro por andar, com exceção do último. Há apartamentos com quartos para casal, outros com dois a três quartos coletivos, todos com banheiros e, em alguns, hóspedes levam eletrônicos ou pequenos eletrodomésticos. No último andar, uma sala de convivência reúne sessões de cinepipoca e café comunitário. A agenda é proposta e fixada nos dois elevadores do equipamento, bem ao lado da escada caracol. No térreo, um depósito e um estabelecimento comercial dividem espaço e a fachada. A experiência do novo hotel teve início em agosto de 2016. Um hotel, sob gestão do Poder Público com o terceiro setor, surgiu de uma visita do coordenador municipal, Benedito Mariano, ao modelo de estabelecimento da Open Society, no Canadá, que atua em redução de danos a toxicodependentes. Em setembro de 2016, cerca de uma centena de cadastrados estava hospedada no Hotel Dom Pedro. Os demais se distribuíam em leitos nos hotéis Alaíde, Avaré, Impacto, New Luz, Santa Maria e Semer. Em cada um, existem históricos próprios com relação ao programa. Expulsa de casa, acolhida no hotel Em especial, um levantamento em 2015 da Plataforma Brasileira de Política de Drogas apresenta relatos do Hotel Alaíde, cujo nome é inspirado em sua proprietária. “Além de oferecer o serviço gratuito de lavanderia para os beneficiários, sendo que é ela mesma que lava as vestimentas e as roupas de cama de seus hóspedes, Alaíde complementa o
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salário – do próprio bolso – de uma beneficiária que também mora no local, encarregada de fazer a limpeza geral.” De acordo com a pesquisa, a funcionária do local era Marcele (n.f.). Expulsa de casa aos 14 anos pelo jeito afeminado, a travesti trabalhou como doméstica em troca de comida e de teto. Foi obrigada a se prostituir até a maioridade, quando se mudou para a Itália, ainda no mesmo ramo, sendo deportada aos 20 anos. Em São Paulo, no ano seguinte, apaixonou-se por um usuário de crack. Ele a fez ingressar no vício e também saqueou seus pertences. Seguindo a vida como prostituta, viu seu antigo namorado ser assassinado em um acerto de contas. Daí, Marcele também se viu como traficante para sustentar seu vício. Após várias detenções, morando num dos barracos de Campos Elíseos, e passado o tratamento de uma pneumonia dupla, conseguiu entrar no DBA. Com a nova jornada, ela “deixou de fumar crack todos os dias, só fuma aos finais de semana, cuja frequência de consumo ela não julga em nada problemática. Ao contrário, está ciente de que o trabalho, a casa, as relações mais amistosas e tranquilas do hotel, ajudaram-na a reduzir o consumo”, conclui o relatório. Salve, João A mesma pesquisa contrapõe que houve alguns hotéis de Campos Elíseos e seu entorno que não tinham condições ideais para atender o DBA, e foram descredenciados pela Prefeitura. Cabe à Administração Municipal cadastrar os comércios e reservar os leitos, enquanto é a Adesaf que efetua os pagamentos aos estabelecimentos por vagas de hospedagem. Entretanto, a entidade foi alvo de protestos como se fosse a responsável pela situação. Em outubro de 2015, manifestações, cartazes ofensivos e ameaças foram feitas contra a ONG, que teve sua sede invadida, ainda no Largo Coração de Jesus. No mês seguinte, a entidade foi transferida para outro endereço, a 350 metros. Quem se solidarizou com a Adesaf/DBA no fatídico dia de protestos foi João. Morador do bairro, ele foi contratado ainda no primeiro dia pelo programa paulistano. CRACOLÂNDIA: TERRITÓRIO DO ABRAÇO – Lincoln Spada (Imaginário Coletivo) – Adesaf
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“Era uma pressão enorme por conta do descredenciamento do hotel, só que as famílias culpavam a ONG, porque queriam que a Adesaf continuasse pagando a vaga delas lá. Num dia em que faltei, eles entraram e até encurralaram os funcionários. Daí, queriam preparar uma manifestação”, detalhou João, que antes tinha aconselhado uma das beneficiárias. “Olha, se você quer uma casa, uma moradia, você não tem que condenar os funcionários, não temos culpa”. A resposta foi em xingamentos. Noutra vez, quando parte da equipe de colaboradores findou o expediente, dezenas de manifestantes seguiram à sede no Largo Coração de Jesus. João passou dia e noite anteriores conversando com a comunidade do bairro para se antecipar ao evento. Estava realmente tenso. Enquanto a Guarda Municipal planejava como proteger a sede da entidade, ele teve uma ideia com uma das manifestantes: “Menina, você já ouviu o Chico, bora ouvir o Francisco?”, falou, mediando um encontro entre um grupo de representantes do protesto e a coordenação da ONG no DBA. As queixas cessaram após a conversa. “A verdade é que o DBA é muito bom. O pessoal está reduzindo muito o consumo. É muito diferente da Cracolândia de dois anos antes. Hoje já tem gente voltando para as famílias, voltando a trabalhar, sentindo gosto de ter uma vida melhor”, comentou. “Até a polícia mudou a abordagem. Eu sei que a Adesaf se reuniu com eles para não tratar mais os usuários de drogas com bombas de gás, isso não é jeito de tratar pessoas.” Caminho triste Nascido no interior de Minas Gerais, João atravessou uma grande jornada até ser, aos 32 anos, colaborador operacional da Adesaf na capital paulista. “Minha mãe faleceu quando tinha seis anos. Éramos 12 irmãos, seis deles gêmeos, entre eles, eu. Nem tínhamos documento, porque minha mãe não sabia ler ou escrever, até os sobrenomes são diferentes de alguns.” Introvertida, o trauma da perda a fez se calar por um ano e dois meses.
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Ele não guarda boas lembranças do pai: com problemas de alcoolismo, agredia a prole. O Conselho Tutelar foi chamado por um vizinho. Quando o juiz reconheceu que seu genitor já não tinha condições de criar as crianças, João tinha nove anos. Do orfanato para um novo lar não tardou muito, só que seu pai biológico não permitiu a primeira adoção. Noutra vez, quase foi separado de sua gêmea, daí quem negou o pedido foi a Justiça. “Em toda a adolescência, fui adotado oito vezes e abandonado oito vezes.” Coração bom Sem se enturmar com uma nova vida familiar, nos estudos, não concluiu o Ensino Médio. “Fui expulso de cinco ou seis escolas. Passei a aprontar muito.” Ainda na adolescência, recorda-se de passagens pela antiga Febem e prestando serviços socioeducativos (varrição em cemitério e praças, e como voluntário em ONGs). Por um período, envolveu-se no tráfico de drogas. João não explicou quem o levou para o mercado ilícito, mas disse que, desde os nove, experimentou algumas drogas. Para ele, cada produto resultou em uma reação, excluindo a possibilidade de qualquer outro vício. Também detesta álcool. O seu temperamento anti-herói, de um realismo a ponto de soar seco, pode ter sido contribuição de outras experiências negativas. Segundo ele, duas vezes teve meningite, ambas com efeitos temporários: ora amnésia, ora mudez. Ainda criança, também presenciou tentativas de abuso sexual com irmãs e sobrinha, defendendo-as de seus agressores. “Eu passei a ser egoísta, sem educação, ignorante. Fui muito maldoso, mas sempre tive um bom coração.” A prisão ocorreu em decorrência do tráfico, sendo transferido para uma penitenciária em São Paulo, aos 23 anos. Católico, atribuiu a sua saída por causa da fé em Deus. E ai de quem diz na sua frente que duvida da força divina. “A vida me ensinou com meus tombos, minhas dores”, contando seus casos de pneumonia e tuberculose. “Depois que Deus me deu a mão, parei de aprontar. Pedi desculpas às pessoas que machuquei.” CRACOLÂNDIA: TERRITÓRIO DO ABRAÇO – Lincoln Spada (Imaginário Coletivo) – Adesaf
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Em São Paulo, passou a viver em pousadas e barracos na região, até que soube do DBA. Logo no primeiro dia, ofereceu auxílio para a antiga entidade, e, perseverante, teve a sua carteira de trabalho assinada. Com o tempo, ele que também ajuda com reforço escolar às crianças do bairro em horas vagas, passou a amar a iniciativa paulistana. “E, com a Adesaf, passei a fumar menos, agora são raras vezes. O DBA não pode acabar. O que vai ser de todo mundo se voltar à rua? Sei que é difícil, que teve funcionário que desmaiou, que voltou no meio do caminho na Cracolândia... Só que não desistam de nós.” Convívio diário Como disse João, há um esforço afetivo por parte da equipe da Adesaf/DBA, em decorrência do território psicotrópico. Segundo técnicos do grupo, a redução de danos permite maior confidencialidade entre os participantes e seus orientadores, já que podem falar abertamente sobre o consumo de drogas até alcançar seu controle. Há ainda os vínculos desfeitos porque algum beneficiário falece por questões de saúde ou em casos de violência. “Uma beneficiária que estava em minha frente de trabalho foi morta a facadas pelo companheiro no sábado à noite, no semestre passado”, rememorou uma orientadora socioeducativa. “Recebi a notícia no domingo, mas foi na segunda que senti o baque, quando estava com os demais participantes.” Lágrimas foram inevitáveis. Em rodas de conversa em 2015, a Adesaf percebeu a necessidade de uma supervisão psicológica. Desde janeiro do ano seguinte, o psicólogo vicentino Arlindo Cândido Pereira Filho acompanha semanalmente o grupo: técnicos e operadores socioeducativos. Conhecendo o trabalho da Adesaf em antigos encontros e seminários, Arlindo é especialista no enfrentamento e prevenção à violência doméstica e já trabalhou em outras entidades, atuando tanto em psicologia clínica, quanto em supervisão institucional. “O trabalho com essa população é um trabalho dentro do campo da humanidade, pois nós somos nem um pouco diferente deles.” De cabelos grisalhos e estatura alta, CRACOLÂNDIA: TERRITÓRIO DO ABRAÇO – Lincoln Spada (Imaginário Coletivo) – Adesaf
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ele se curvou levemente para me ouvir. Vive interessado em conversas sobre os mais diferentes assuntos, principalmente sobre políticas públicas. Arlindo sublinhou: “Dentro da abordagem que trabalho, como conceito fundamental da psicanálise, todos nós humanos somos permeados pela posição de morte, por isso que soa bonito um poema que fala sobre a perda, porque ali expressa a posição de morte humana. E o DBA está diretamente em contato com esse processo, e nós nos transformamos com essa posição de morte todo dia, é claro que o grau de destruição das pessoas que estão ali no território [psicotrópico] é muito mais alto”. Dores para lidar De acordo com o psicólogo, o programa de redução de danos faz com que a ONG e a Prefeitura não observe a droga só como uma substância, mas como uma substância que alivia algum sofrimento pessoal. A pergunta é o que daria sentido à vida dos beneficiários, a ponto de ele se livrar de um processo danoso? “A questão é como fazer com que o sujeito transforme a sua posição de morte em outros jeitos de viver, seja pelas frentes de trabalho, seja pelas oficinas. E que, com essa experiência, reflita a sua relação consigo mesmo e com o mundo.” Nesse sentido, o supervisor citou que, como política pública, o DBA facilita um marco conceitual. “O programa não quer usar uma concepção ideológica para que essa pessoa se torne um revolucionário ou um servo de Deus, mas um homem que transforma a sociedade enquanto cidadão.” A questão é atender a população em situação de rua e em drogadição não se sentindo superior, nem para projetar a própria dor. “Há quem vem dar pratos de sopa para dizer, ‘ajudo esses miseráveis na rua, não tenho problemas na minha vida’.” Ao mesmo tempo, exemplificou com quem sente ingratidão por se doar demais aos outros, que, em drogadição, não diminuíram ou pararam o consumo. “Mas você o achou bem tarde da vida, por que a pessoa tem que mudar agora? A supervisão, portanto, trabalha para a espera e a garantia do momento desse encantamento, vínculo entre o agente da CRACOLÂNDIA: TERRITÓRIO DO ABRAÇO – Lincoln Spada (Imaginário Coletivo) – Adesaf
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Adesaf e o beneficiário.” E quem mais está na marginalidade, mais reconhece a humanidade do outro. “Não é fácil você conviver todo dia com essa situação, de lidar com a dor do outro e de lidar com a sua dor.” Ação reflexiva Muitos artigos e pesquisas foram lidos, relidos por Arlindo para acompanhar o grupo, demonstrando duas perspectivas culturais como dilemas dos colaboradores da ONG. De um lado, a redução de danos é algo muito recente no Brasil, como política de não ferir a individualidade do outro. E ainda existe o conservadorismo forte na Cidade, de culpar quem usa drogas. Esse novo tipo de enfrentamento às drogas é pressionado pela sociedade para entregar soluções rápidas. O equilíbrio emocional é preciso para qualquer profissional nesta área. O conservadorismo está presente na percepção de pecado. Ele citou o caso de uma mulher grávida no fluxo: em geral, os usuários de drogas a agridem, e os agentes públicos a tratam com preconceito. Porque, para todos, a figura da mãe deve ser relacionada à santidade ou extrema doação aos filhos. “Ela fica mais desamparada, porque dentro desse território, o feminino e o não heterossexual são os que sofrem mais.” O tema rende uma larga desconstrução coletiva de ideias, até que a equipe enxergue a beneficiária simplesmente como mulher, como humana. “Nós precisamos aprender a nos colocar no lugar do outro”, recomendou Arlindo. Assim, o cotidiano resulta em um sentimento constante da equipe sobre a impotência. “O DBA nos ensina a lidar com nossa impotência. E aí, o que nós devemos fazer? A alternativa é, com sobriedade, sem devolver essa situação de forma passiva ou violenta contra o beneficiário, mas de termos de modo permanente uma ação reflexiva.”
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Capítulo 14
Pont Neuf21 “Francisco, você tá de parabéns! Não faltou um dia! (...) Pessoal, vocês tão com emprego garantido. (...) Até chorei”, animava-se Francisco Jorge Oliveira, ex-usuário de crack que, aos 57 anos, reassume as rédeas de sua vida como faxineiro em uma empresa. O emprego foi obtido graças ao DBA, em meados de 2014, e seu relato foi veiculado pela Veja São Paulo (junho de 2015). Algumas dezenas de Francisco tiveram a mesma sorte, atuando também em funções de limpeza urbana, cargos administrativos em parques públicos, motoristas ou secretários em instituições privadas ou do sistema S. Desses, ainda existe quem está firme no novo posto de trabalho, reinserido na sociedade, e há quem não conseguiu manter o bom rendimento a ponto de regressar ao DBA, em busca de melhor reabilitação. Por exemplo, Antônio (n.f.), que me relatou: “Através do projeto, tive a oportunidade de entrar num serviço registrado. Passados sete meses e vinte dias, pedi desculpas, mas preferi voltar aqui. Não fui mandado embora, não destratei, nem roubei ninguém. Mas preciso de mais tempo. Ainda desejo, sim, poder reconstruir a minha família de novo por meio do trabalho. Porque trabalhar, rapaz, é bonito. O trabalho nos faz enxergar a vida de outra maneira”. O tão almejado emprego a ser conquistado pelos beneficiários no DBA é um fruto coletivo, porque provém da força de vontade e das 21
Pont Neuf é uma obra da modernista Tarsila do Amaral. Em francês, significa Ponte Nova e, paradoxalmente, é a mais antiga que cruza o rio Sena, na capital francesa. Neste capítulo, faz alusão às rodas de conversa dos beneficiários com a equipe da Adesaf/DBA. CRACOLÂNDIA: TERRITÓRIO DO ABRAÇO – Lincoln Spada (Imaginário Coletivo) – Adesaf
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condições de recuperação do beneficiário e, ao mesmo tempo, da qualificação profissional que o programa destina ao seu público-alvo. “Esse é o diferencial do nosso programa que o próprio Ministério da Justiça tem apontado, que é a ousadia de incluir o mundo de trabalho concomitantemente com o processo de redução de danos”, frisou Sandra Faé, secretária adjunta municipal do Desenvolvimento, Trabalho e Empreendedorismo, que por meio da Prefeitura tem o convênio com a Adesaf no DBA. O seu depoimento foi em uma reunião com profissionais da Adesaf, em agosto de 2015. “Comemoro muito o papel da Adesaf na parceria, sempre digo que a primeira etapa como hospedagem, pagamento e frentes de trabalho, a gente já venceu. Agora, tem o desafio grande, dentro desse processo, que é de criarmos alternativas de trabalho. É a questão de construir medidas para a emancipação econômica dos beneficiários.” Sandra justificou as dificuldades na retomada do mundo profissional. “Nós podemos elencar uma série de questões que inviabilizam a atuação deles em uma empresa privada, assalariado. O expediente das 8 às 18 horas, por exemplo, não é simples para quem está em processo de reabilitação. Por isso, esse trabalho transversal da Prefeitura visando, de início, à redução de danos. Agora, temos que aproveitar o momento que eles recebem as bolsas para criar outros modos de geração de renda.” Etapas formativas Em seguida, a própria presidente da Adesaf, Fernanda Gouveia, aproveitou para explicar a nova etapa da ONG, com maior aprofundamento, desde setembro de 2015, próximo da renovação do convênio com a Prefeitura na gestão do DBA. “Nosso modelo de capacitação tem como objetivo promover o desenvolvimento dos beneficiários, criando oportunidades para que eles vivenciem uma qualificação profissional cidadã, de uma maneira clínica e libertadora.” Eis a formação cidadã – idealizada pela secretária adjunta do CRACOLÂNDIA: TERRITÓRIO DO ABRAÇO – Lincoln Spada (Imaginário Coletivo) – Adesaf
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Desenvolvimento, Trabalho e Empreendedorismo de São Paulo, Sandra Faé. Inicialmente a ação foi prevista para ser concluída no último trimestre do ano, num revezamento semanal dos grupos de beneficiários às vivências de terça a quinta-feira, no Centro de Inclusão Social. A vivência ocorre durante o expediente de trabalho e, quem comparecer, logicamente receberia o auxílio financeiro referente ao dia. Com o tempo, a formação cidadã é ofertada de modo perene na atual sede da Adesaf/DBA. “Nosso desejo é de criarmos verdadeiras incubadoras, para que efetivamente eles se insiram no trabalho, para que eles consigam se sustentar também fora do emprego formal das grandes empresas”, discorreu Fernanda. Todo o trabalho desenvolvido pelos beneficiários poderia ser evidenciado em setembro do ano seguinte, na exposição Por Dentro do Abraço. A mostra ocorreu de 5 a 16 de setembro de 2016, no Museu da Energia (Alameda Nothmann, 184, Campos Elíseos). Com entrada franca e atividades abertas à comunidade, o evento foi uma oportunidade para a população do bairro, estudantes e universitários conhecerem as experiências e atividades do grupo atendido pelo DBA. A atividade preparada pela entidade foi um marco do diálogo da ONG com os beneficiários no programa paulistano, reforçado principalmente no decorrer da capacitação cidadã. Cidadania fora da sala Desde as manhãs próximas ao fluxo até as noites com relatórios e pesquisas, a formadora Nayene Carmo é a responsável pela equipe da Adesaf/DBA, que consecutivamente repercutia a capacitação de cidadania aos beneficiários do programa. A bagagem veio dos anos em projetos educacionais, como na coordenação do Projovem Urbano do Ministério da Educação. Como docente, até frequentava a região da Luz, mas era para levar alunos à Sala São Paulo, na Estação Júlio Prestes. Nem imaginava que o território psicotrópico seguia a menos de dois quarteirões.
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Com a Adesaf/DBA, esboçou a etapa cidadã “acompanhando a vida dos beneficiários, o dia a dia deles, conversando com eles. Por que o que adianta dar uma formação sem saber a realidade deles?”. Por uma semana anotou, ainda, a passagem de Liz Evans em São Paulo, em 2014 – Liz é diretora executiva do Portland Hotel Society (PHS), que atua em redução de danos no Canadá. O acúmulo dessas experiências resultou em uma série de práticas pedagógicas que Nayene instiga técnicos e operadores sociais, que, por sua vez, apropriam-se dessas dinâmicas e temas para desenvolver com as turmas de beneficiários. “Eu já vou para os encontros com essas ferramentas pedagógicas para provocar, preparar a equipe quando trabalharem o conteúdo com os participantes. Para eles, é importante entender sobre pedagogia, mesmo que precisasse ter um plano B durante os encontros”, justifica Nayene. Na prática, as rodas de conversa da formação cidadã contemplam uma diversidade de assuntos abordados e vistos como positivos pelos inscritos do DBA: projeto de vida, saúde preventiva, higiene, direitos humanos e mundo do trabalho. TV, Olimpíada, discos Brandão me deu carona nas vezes em que acompanhei a primeira semana da formação cidadã, ainda em setembro de 2015. Ansiava por qualquer atalho para evitar atrasos e, simultaneamente, papeava comigo: “Este passo de capacitação profissional, a gente já tinha, na verdade, só que em iniciativas com pequena adesão e não sistematizadas. A partir de agora, vamos incluir de vez com os conceitos de trabalho, cooperativismo e economia solidária. Certamente contribuirá como uma luz para todos os beneficiários”. Animados, chegamos ao centro onde mais de 30 beneficiários todo dia reviviam suas trajetórias no caminho das pedras e, consecutivamente, na redução de danos. Como a história de Silas (n.f.), um lutador faixa preta em artes marciais, de 51 anos, flagrado com doping na Olimpíada de Seul, em 1988. “Bem, a partir daí, caí no ostracismo. Só me restou a droga e CRACOLÂNDIA: TERRITÓRIO DO ABRAÇO – Lincoln Spada (Imaginário Coletivo) – Adesaf
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comecei a roubar, a fazer tudo que tinha que fazer para usá-la. Fui para a cadeia aos 36 anos, peguei nove anos de detenção.” Hoje casado e futuro pai, Silas agradece o projeto: “O DBA é uma oportunidade de mudar. Quero fazer sim uma oficina para conseguir um emprego, crescer. Quem sabe também formar atletas olímpicos melhores do que eu”. Todos o aplaudem tanto quanto fizeram com Elton Aparecido da Silva. “Por mais de dez anos fui cabeleireiro de famosos, trabalhava para Hebe Camargo, fazia os cabelos de elencos do SBT e da Globo, mas aí veio o crack. Caí”, emociona-se, desejando se recuperar para reabrir o seu salão de beleza. “Já o meu sonho é ser cantor de funk, o pessoal que tá aqui sabe que escrevo funk, mas o empresário não quer boa letra, só música chiclete”, declara, ovacionado, um descolado Laureano (n.f.), há três anos na Cracolândia e há 20 morando nas ruas. “Fui diversas vezes pra minha cidade no interior, fui ver minha mãe. Ela vem atrás de mim, mas não quero ajuda dela. Quando pequeno, ela bebia muito, batia em mim. Acordava de manhãzinha e fazia o diabo para que ela não achasse o cigarro ao acordar. Porque quando fumava, ela me queimava a mão. Fui muito desprezado.” Parentes em perturbação As perturbações nos laços familiares unem a maioria dos usuários de crack inscritos no programa. “Gosto de viver, curtir a vida, e por isso nunca fui de seguir os caminhos dos meus pais. Fui um moleque muito cabeça-dura”, classifica-se Wellington (n.f.). “Então vim morar aqui nas ruas do Centro, tive uma mulher que nem é do DBA. Bem, o meu sonho é poder realizar os sonhos de minha mãe. Tudo que ela quiser, vou entrar na luta.” Os olhos transbordaram. Mineiro de 42 anos, Eduardo Luís (n.f.) não tem contato com a família desde os 14, “fugi de casa, quis me aventurar”. Por volta dos 30, ele que já consumia cola, maconha e álcool, seguiu o viés do crack. “Vi o DBA na TV. Por meio dele, já pude reduzir pela metade o que usava todo dia.” A mesma diminuição de consumo foi relevada por Mathias (n.f.), CRACOLÂNDIA: TERRITÓRIO DO ABRAÇO – Lincoln Spada (Imaginário Coletivo) – Adesaf
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quando discursava sobre sua vida. “Tenho 26 anos, aos 13 conheci o crack, e, pouco tempo depois, saí de casa por causa da droga. Deu briga com meus irmãos e eu fui parar na favela. Mas fumava tanto que os policiais me alertaram pra rumar. Antes do programa acabava trabalhando no farol, vendendo meus artesanatos. Minha vontade é de parar, mesmo, com o crack.” Há ainda Ermelino (n.f.), outro beneficiário órfão. “Não tenho ninguém da minha família, só sobrou eu e Deus.” Sobre as lembranças e diálogos com os parentes, alguns até afirmaram que ligavam de orelhões ou os orientadores emprestavam celulares para retomar tais vínculos. Desde o início do projeto, pelo menos uma dezena de casos resultou no desligamento dos cadastrados, pois eles tinham retornado aos seus antigos lares. Longe de ser a verdade exercida por Silva – personagem frequente noutros capítulos. Durante as vivências, ele abordaria as mágoas com a mãe, o ativismo social quando esteve fora de casa e a vida em mendicância. Das passagens em templos e casas terapêuticas, sobram críticas. “Não suporto nem clero, nem pastor. Para mim, só se recuperam nestas casas de acolhimento quem tem condições financeiras para se sustentar. Não é o meu caso”, definiria. “A ignorância é uma benção e a verdade aborrece.” O seu raciocínio seria mais além. “Faltar com bom ensino é o melhor jeito de gerar renda, não? Porque aí mantém trabalho na saúde, na assistência, sem falar que pode explorar mais os miseráveis. O pobre é muito alienado neste País”, desabafou, em tom de repulsa. A dependência do crack traria apenas a tristeza do passado, “porque a juventude é o bem mais precioso”, e a prioridade de se religar com o transcendente. Por isso, pendurava um búzio num cordão vermelho no braço. Sobre as religiões, dizia-se mais disposto a nomear um ser criador como Alá. Mães de Campos Elíseos Os infortúnios de Silva não eram exceção dos demais inscritos no DBA. Embora cada história seja única. A paulistana de 43 anos, Noemi CRACOLÂNDIA: TERRITÓRIO DO ABRAÇO – Lincoln Spada (Imaginário Coletivo) – Adesaf
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(n.f.), está os últimos cinco na situação de rua no Centro. “Parei de estudar na quinta série, tomei gosto pela profissão de carroceira, tenho meus corres. Mas o que sonho mesmo é achar meu pai e minha mãe. Eles estão aqui na Capital.” Aos 31 anos, Benedita (n.f.) encampa uma luta diferente: “O melhor momento da minha vida foi o nascimento da minha filha, não faça mal a ela, não breque a vida dela, porque nunca vou deixá-la em maus lençóis”. Benedita é casada com outro beneficiário do programa e, fruto de outro casamento, tem uma filha de 10 anos, hoje aos cuidados do pai. O atual esposo explicaria: “Ela veio do interior e está aqui na rua porque veio lutar pra dar um futuro pra sua filha”. Outra mãe que vive no território é Amanda, paulistana de 28 anos. “Graças a Deus, com o programa, já parei com o crack. Não é fácil, não vou dizer que é fácil, fico doente por causa da abstinência, fico em casa deitada. Não é um mar de rosas parar de usar. Minha diabetes ficou alta, tô procurando um médico pra me ajudar. Meu marido tem uma paciência de Jó comigo.” Assim, justifica-se sobre as ausências na varrição. “Choro todo dia, tenho febre por causa da abstinência. A crise é forte. Mas eu preciso ficar boa, porque não quero só ver o meu marido formado e longe do crack. Eu também quero estar boa e com boa saúde pra procurar a minha filha, porque ela foi sequestrada quando vim à Cracolândia.” Os colegas ovacionaram e abraçaram a jovem mãe em prantos. Brandão aproveitaria o intervalo para ressaltar: “Sejam firmes. Venho para cá todos os dias com a convicção de que o ser humano pode sim ser transformado. E todos nós precisamos estar convictos disso todos os dias”. Por sua vez, a baiana Maria (n.f.), de 35 anos, guarda outras necessidades. “Quando meu filho levou um tiro na Cracolândia, arruinou minha vida. Passei a usar crack e perdi tudo, quero reconquistar todos os meus outros filhos, todas as minhas casas que perdi por besteira, quero sair daqui. E se há quem consegue sair, quem sou eu pra não conseguir? Não quero ficar mais apanhando, bebendo, com uma pedra e cachimbo no CRACOLÂNDIA: TERRITÓRIO DO ABRAÇO – Lincoln Spada (Imaginário Coletivo) – Adesaf
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bolso. Me chamam de ‘noia’. Para os outros, a gente não vale nada.” Nas sentenças posteriores, o timbre vibra mais alto. Inspira. “Duvido que, se a gente não der um passo pra frente, a gente vai querer voltar para trás”. Pausa. “Eu dei esse passo pra frente. Sabem quantas pedras fumei hoje?”. Silêncio. “Nenhuma!”. Aplaudem. “Ontem?”. Respira. “Nenhuma. E anteontem?”. Uns tantos bradam: “Nenhuma”. Maria encararia todos, fulminante como se incitasse a maior revolução no interior dos presentes. “Se tive forças para ficar três dias sem fumar uma pedra, todos têm chance também. Porque o nosso sonho é sair da Cracolândia.”
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Epílogo
La Rentrée22 São Paulo, 5 de setembro de 2016. A torrente de aplausos na área livre do Museu da Energia se sobrepôs à entrevista no salão vizinho com Fernanda Gouveia. As frases ligeiras da presidente da Adesaf concorriam com um alto ritmo de funk norte-americano pela atenção do telespectador. “Como vocês podem ver, a gente vai ter a exposição dos trabalhos artísticos feitos pelos beneficiários, como também algumas atividades práticas que já acontecem na sede do programa [De Braços Abertos, o DBA] e que a gente está transferindo nesse espaço.” O volume da música ambiente baixa gradualmente enquanto Fernanda sobe o tom ao falar do objetivo destas ações. “É para que todos tenham a oportunidade de acompanhar o programa, de conversar com o beneficiário, entendendo o dia a dia deles. [...] E que possam conhecer um pouquinho do programa. Por dentro do abraço.” A última frase justamente batiza o nome da iniciativa que aproveita ainda para celebrar o segundo aniversário da Adesaf no DBA. Os dois minutos televisionados da entrevista com Fernanda são guiados pela repórter e por um cinegrafista que percorre o salão. Móveis feitos de pneus, banners sobre a lavanderia, quadros e esculturas dos mais diferentes estilos. Essas dezenas de produções exibidas na câmera
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La Rentrée é o nome de um quadro da modernista Anita Malfatti. O termo em francês significa reabertura ou retorno. Neste caso, o reinício da vida digna dos beneficiários do DBA. CRACOLÂNDIA: TERRITÓRIO DO ABRAÇO – Lincoln Spada (Imaginário Coletivo) – Adesaf
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demonstram um recorte mínimo da exposição que já tinha contado com a presença de uma centena de pessoas naquela primeira manhã. Em seus 12 dias, a mostra Por Dentro do Abraço reuniria em diferentes horários as oficinas de vida verde (jardinagem), de costura e brechó, de artes plásticas e de móveis em pneus, além de debates, ações de cidadania e atendimento à população para reparos de bicicletas. O evento contaria com duas rodas de conversa que destacavam a perspectiva da Adesaf para o êxito do DBA: A contribuição do trabalho na recuperação da dependência química e A importância do vínculo familiar na redução de danos. Um dos pontos altos do cronograma ocorreu, no dia 14, com um sarau congraçando os beneficiários do DBA – com direito a rimas literárias, musicais e instrumentos de percussão. No dia 16, o encerramento previa a entrega de certificado dos beneficiários nas atividades. A exposição incluiu, nas manhãs de sua abertura e do dia 10, as edições de um desfile de moda da turma de costura e crochê. Tanto o look, quanto o casting eram os próprios inscritos no programa. A hora da rave Por isso mesmo, a causa ovacionada paralelamente à entrevista era a fileira de homens e mulheres que modelavam no tapete vermelho na área livre do Museu da Energia. Assobios, cliques de celulares e aplausos de pé da plateia em centena correspondiam para que, por um bom instante, seguissem vazias as cadeiras de plástico no entorno da passarela de mais de dez metros. Hits de pop estrangeiro e música eletrônica ritmavam todo o desfile. “Estou me sentindo numa rave”, comentava uma funcionária do museu. Ao meio dia, a primeira modelo descia as escadas do casarão administrativo do museu. O visual nas unhas e madeixas pertencia à Escola Teruya. A maquiagem foi feita por uma técnica da Adesaf numa das salas, onde seis beneficiários se revezavam nas jaquetas, tomara-que-caia, camisetas e saias. À medida do possível, o nome do programa municipal CRACOLÂNDIA: TERRITÓRIO DO ABRAÇO – Lincoln Spada (Imaginário Coletivo) – Adesaf
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ou até mesmo a sigla DBA estampavam as roupas. De vestido branco, a comportada beneficiária levava um cartaz na estreia do tapete vermelho. O técnico da Adesaf Marco Aurélio, mais conhecido como Mion, fez o papel de mestre de cerimônias, chamando um a um para modelar. O rapaz que abusou do gel para o seu instante de fama; a senhora que sorria ao estar em harmonia com o salto alto mais uma vez; o quarentão que, de caso ensaiado, colocou a jaqueta sobre o ombro na hora do pivô; a jovem mãe que se derretia quando o público bradava seu nome; o homem que mal dormiu para a tão esperada data; e a deslumbrante Kátia (n.f.) com o vestido esverdeado que ela própria ajustou durante o expediente no DBA. Os olhos dela teimavam em derramar emoção. A mesma comoção que Fernanda Gouveia também segurava cada vez que abraçava os modelos, na varanda, degraus acima do ponto de partida da passarela. Em coro, com a equipe da Adesaf/DBA e a plateia, torcia em alto e bom tom pelos beneficiários no tapete vermelho. O assessor de comunicação da Adesaf, Bruno Nunes, estava do outro lado, com celular à mão, próximo do motorista – a dupla que concedeu carona para a fotógrafa Bruna Stephanie e eu naquela manhã. A hora da repactuação Ah, Bruna estava entretida, ora ajoelhada, ora correndo para captar algum relance do evento. Somos muito diferentes. Eu pousei numa das colunas da varanda do museu, já que era o melhor local para tentar ouvir os discursos que antecederam o desfile. Com microfone, roupa social e suspensório, o coordenador do DBA pela Adesaf, Genivaldo Brandão, pedia gentilmente a atenção de todos. “Nestes dois anos [de atuação da Adesaf no DBA], a gente fez muita coisa juntos, e continua fazendo muito. Passa realmente um filme na cabeça da gente sobre tudo o que nós passamos e estamos fazendo.” Em sua breve retrospectiva, Brandão citou a mudança da sede, o processo de formação cidadã iniciado em 2015 e o aumento das alternativas de frentes de trabalho e oficinas. Aos beneficiários, ressaltou: CRACOLÂNDIA: TERRITÓRIO DO ABRAÇO – Lincoln Spada (Imaginário Coletivo) – Adesaf
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“Vejam só o que vocês são capazes de fazer. Estamos muito felizes de viver este momento, de experimentar esta alegria com vocês. Esta exposição é o resultado do trabalho de vocês”. Os aplausos ocupavam o hiato entre as falas das demais autoridades. “Preciso agradecer a cada um de vocês pelo comprometimento com o DBA. São vocês que fazem o DBA dar certo, com todas essas obras e trabalhos que prestam à comunidade”, destacou o assessor especial da secretaria municipal de Trabalho, Desenvolvimento e Empreendedorismo, Robson Silva Thomaz. Consecutivamente, abordou a vontade da sua pasta em levar a oportunidade de geração de renda ao público presente. “Esse é o compromisso que trago para vocês.” A resposta foi em assobios. Os espectadores se animaram ainda mais com as palavras do secretário municipal de Segurança Urbana e coordenador municipal do DBA, Benedito Mariano: “Vamos continuar trabalhando para que esse programa tenha vida longa. Para que outros possam participar e conviver com essa experiência que já deu infinitos resultados, materializados por essa exposição significativa”. Ao garantir o empenho pelo futuro do projeto, Mariano aproveitou para elogiar os beneficiários, as secretarias envolvidas e a equipe da Adesaf/DBA, citando cada frente de trabalho onde atua a plateia. Ele finalizou: “Nós queremos olhar para vocês, estender as mãos e dizer que nós acreditamos na capacidade individual e coletiva de vocês. O DBA dá certo porque acredita que é possível reabilitar as pessoas, acreditando na dignidade delas. O trabalho contribui para reduzir danos e para a dignidade das pessoas, e vocês fizeram este programa acontecer. Parabéns a cada um de vocês.” Momentos antes, Mariano foi tratado como celebridade: em pares ou individualmente, os beneficiários atravessavam suas conversas clamando pela manutenção do DBA. Por isso, reafirmou ao microfone que defenderia junto ao prefeito Fernando Haddad a continuidade do programa.
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A hora do reencontro Nas duas horas que antecederam o desfile, a multidão se dispersava noutros ambientes do entorno do Museu da Energia. Um aroma lúdico envolveu aquela manhã. Nas canções discotecadas, beneficiários do DBA e colaboradores da Adesaf dançavam ora em duplas, ora em rodas. Nos pneus reutilizados como trampolins, uma fila de pessoas a saltitar. Na tenda no estacionamento, um grupo mostrava as habilidades no conserto de bicicletas. Tentei encontrar o beneficiário seu Silva (n.f.), quem sabe aquele momento fraternal não fosse o que ele tanto esperava? Pensei tê-lo visto, mas, miragem. Quem me parou pelo trajeto foi o operador social da Adesaf, José André Aniceto. Queria porque queria me apresentar para Elton Aparecido, a quem já não via há exatamente um ano. Com uma mão na barriga – ele encorpou durante o DBA –, o cabeleireiro que caiu nas drogas após a morte do ex-companheiro, estava bem ali. Reerguido. “Recuperei minha autoestima.” O antigo sonho de montar o seu salão de beleza foi concretizado neste período: abriu as portas de seu próprio negócio com uma amiga no centro paulistano, inspirando reportagens de TV. “As pessoas em geral não me olhavam nos olhos, e eu me sentia muito ofendido com isso. Hoje sou tratado dignamente.” Agora, a nova rotina de trabalho transformou não só o presente, mas o futuro. “Se você realmente quer, cara, o DBA muda as pessoas. Estou mudando porque eu quero”, alegrava-se, já fazendo planos para voltar à faculdade. Mais adiante, com uma bolsa a tiracolo, Rodolfo Pereira de Almeida acenou em minha direção. A nossa conversa durou tempo suficiente para embaçar os óculos de ambos. “Voltei a ser funcionário público. Semana que vem, já vou reencontrar a minha filha. Conversamos bastante pela internet.” A bicicleta e o curso de corte de cabelo foram uma travessia para o seu atual cotidiano. Ainda como beneficiário, o DBA mediou o seu retorno ao emprego anterior, após alguns meses em abstinência, já em 2016. Entre as refeições no Bom Prato e a hospedagem garantida no programa, Rodolfo, o homem novo, reluzia esperança ao CRACOLÂNDIA: TERRITÓRIO DO ABRAÇO – Lincoln Spada (Imaginário Coletivo) – Adesaf
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detalhar todo o envolvimento e a acolhida no seu expediente de trabalho. Mais midiático do que nunca, publica nas redes sociais pelo celular o seu dia a dia. Palavras ternas e de gratidão, videoclipes, cenas de séries e quadrinhos – todas as paixões antigas do artista que se vocaciona para desenhar nos tempos livres. A hora de reerguer Aliás, a ideia dele de um fanzine sobre o entorno de Campos Elíseos e o combate ao crack ecoou. Em abril de 2016, a Secretaria de Direitos Humanos iniciou um projeto de edições mensais de uma revista de artes gráficas e poesias com usuários na região da Luz. “A rua tem vida” é a frase que encerra a primeira tiragem da publicação Pra mim não passar em branco. A trajetória de Rodolfo estamparia outra ação da secretaria, em março deste ano. Na época, a Prefeitura lançara uma mostra fotográfica com banners sobre a história de 16 beneficiários do DBA, no Centro Cultural São Paulo. Um recorte que exemplificou bem a reinserção social promovida pelo programa. Por exemplo, Iuri (n.f.), que conheci como aluno da Escola Teruya durante o programa, passou a ensinar outras pessoas sobre corte de cabelos. “Não sabia desse dom, não. Se o DBA não tivesse me dado essa oportunidade, eu nunca saberia que eu sou um bom cabeleireiro... Vou te dar um salve aí, parceirão. Você quer ser parte da sociedade, cara? Quer ser alguém? Então esquece o crack, cara. Larguei o crack, hoje sou um cabeleireiro truta. Sou um profissional.” Além desta exposição, uma série de congressos, conferências e seminários foi intensificada na agenda da Administração Municipal para apresentar os bons resultados do DBA. Gestores públicos participaram de eventos no Brasil e no exterior afirmando e reafirmando a política de redução de danos de baixa exigência à população da Luz como alternativa viável para reabilitação das pessoas em situação de rua e/ou em dependência química. Revistas, mídias livres e páginas de redes sociais de ideologia política mais à esquerda ressoaram sobre o sucesso obtido pela Prefeitura neste ano. CRACOLÂNDIA: TERRITÓRIO DO ABRAÇO – Lincoln Spada (Imaginário Coletivo) – Adesaf
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Enquanto conferia as notícias nas redes sociais pelo celular, o beneficiário Anderson (n.f.) me interrompeu com uma segunda tela. “Veja os meus quadros que fiz na Adesaf/DBA”, animou-se, ao deslizar as imagens em seu aparelho. Estava empolgado com a possibilidade de seguir a carreira de artista plástico. Na semana anterior, tinha apresentado as fotos para um produtor cultural, quando passeava na Galeria do Rock. Já eram amigos de infância pela quantidade de elogios e oportunidades conversadas para criar novas obras ou montar exposições. Bem, Por Dentro do Abraço era considerada a sua primeira mostra coletiva. A hora de religar Esculturas em tons vibrantes, quadros expressionistas de danças e afetos e telas mais realistas em releitura à paisagem da Capital eram algumas das 305 obras registradas na exposição. Fileiras de obras desses artistas antes anônimos, todos beneficiários do DBA, estavam na área coberta do terraço do Museu da Energia. “A pintura é uma manifestação nossa em se religar com o universo”, definiu o professor do ateliê do DBA, Roberto Vivas. Com o seu típico terno, ele confraternizou comigo que toda expressão artística nos torna instrumentos de algo maior que emana pelo mundo. Foi a partir desta perspectiva mais holística, que ele aboliu cigarros há décadas. “Como uma metáfora, pense que somos antenas que captamos e enviamos energias. Se reaprendemos a nossa visão de mundo, a mudança é muito mais fácil.” Sorriu antes de colocar os óculos escuros. E aquele ambiente realmente foi modificado pela mostra que recebeu centenas de visitantes. A área ainda tinha uma tenda, também movimentada nesta manhã. Cartazes explicavam cada uma das frentes de trabalho e oficinas da Adesaf/DBA – da lavanderia até o mapa dos grupos de varrição urbana. Poltronas em pneus. Cortinas de garrafas grafitadas. Colagens, pinturas e confecção de objetos reciclados. Estantes com uma coleção de CRACOLÂNDIA: TERRITÓRIO DO ABRAÇO – Lincoln Spada (Imaginário Coletivo) – Adesaf
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intervenções artísticas dos beneficiários. Três equipamentos eletrônicos exibiam vídeos com depoimentos de uma dezena sobre a sua trajetória no programa. Lá estava a fotógrafa Bruna assistindo a um dos vídeos. Já Bruno, como bom assessor, acompanhava os passos da presidente da Adesaf. Conversamos e logo depois quis dar uma volta pelo museu. Antiga propriedade do irmão de Santos Dumont, o palacete pertencia a Henrique Dumont, um dos homens mais ricos do Brasil no século 19, segundo a própria instituição. A história da casa reflete todo o processo do bairro: construída na década de 1890, quando a elite cafeeira planejou Campos Elíseos, foi um internato feminino até os anos 1950, depois sendo um centro de assistência social. Nos anos 1980, o patrimônio foi repassado à Secretaria de Estado da Cultura que, por sua vez, na época da revitalização do entorno em 2001, entregou o equipamento à Fundação Energia e Saneamento, atual mantenedora do espaço e de outras unidades no interior e na Grande São Paulo. Da entrada do museu, é possível ver, entre edifícios, o Redentor que reina a poucos metros no Largo Coração de Jesus, novamente acenando de braços abertos para mim. Como uma saudação, afinal, se há quem nos religue ao mundo, este alguém sabia bem que me despedia da Adesaf e do DBA. Foi um longo trajeto na carona dada pela organização do litoral paulista à Capital. Cá entre nós, acordei tão cedo que era possível ver a esperança do amanhecer em plena segunda-feira.
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