REVISTA DO
CREMEPE Ano 3 | Nº 4 | Mai/Jun/Jul 2018
MULHERES Avança a luta pela igualdade de gênero ENTREVISTA Eduardo Jorge fala sobre a importância das vacinas
FESTA Cremepe comemora 60 anos de atuação
revista cremepe capa 4c.indd 2
revista do C
HANS MANTEUFFEL
EDITORIAL
A FORÇA DA MULHER D o ponto de vista institucional, o Conselho Regional de Medicina de Pernambuco sempre desempenhou suas funções cartoriais, judicantes e fiscalizatórias, desde a sua criação, há seis décadas. A partir do início do ano 2000, o Cremepe ampliou sua visão de mundo e enveredou também pelo caminho das ações sociais. Foram criados programas para ouvir da população menos assistida do Estado quais suas demandas mais necessárias, como é a assistência à saúde de quem vive afastado do entorno da capital e suas condições também de trabalho,
segurança e educação. Essa ação social recebeu o nome de Caravana. Foram percorridos municípios de todas as regiões de Pernambuco. A cada Caravana realizada é elaborado um relatório com todos os dados levantados e entregue ao Governo do Estado, Tribunal de Justiça e Ministério Público com a cobrança das providências necessárias. Realizamos também seminários e encontros para discutir a questão da microcefalia, da dengue e das doenças raras. Agora, chegou a vez de o Cremepe ampliar sua atuação social e agregar outras causas
também. Nesta edição da “Revista do Cremepe”, a matéria especial de capa aborda a igualdade de gêneros, que é a busca por um equilíbrio entre homens e mulheres em todos os aspectos. A reportagem mostra os efeitos da Lei Maria da Penha, criada para coibir a violência do homem contra a mulher, o combate ao assédio sexual, a questão do feminicídio e traz ainda o perfil de médicas que escolheram especialidades que antes só eram procuradas por homens, como ortopedia, urologia e a cirurgia cardíaca. Pois é, os tempos mudaram. E nós que fazemos o Conselho Regional de Medicina de Pernambuco temos que acompanhar essas mudanças para que possamos estar sempre alinhados com os novos tempos!
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SUMÁRIO
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FOTOS: HANS MANTEUFFEL
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OPINIÃO Os 60 anos do Conselho Regional de Pernambuco
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ENTREVISTA O pediatra Eduardo Jorge fala sobre vacinas para evitar várias doenças
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CAPA É hora da igualdade de gênero
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CIENTÍFICA A homeopatia e os avanços tecnológicos
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ESPECIAL A febre que voltou a assustar a população
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NA PONTA DA LÍNGUA Os segredos do nosso vocabulário
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MÚSICA A alma do Carnaval pernambucano
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PATRIMÔNIO Um gabinete cheio de riqueza
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GASTRONOMIA Um prato que surgiu quase sem querer
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ARTE & CULTURA Para ficar ligado nos livros, filmes, artes visuais e música
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HISTÓRIA A febre que chegou ao Brasil no século XIX e ainda não foi embora
COLABORADORES
MAYRA ROSSITER jornalista, da Assessoria de Imprensa do Cremepe
MARIANA OLIVEIRA Professora da Maurício de Nassau e editora executiva da revista Continente
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EX P ED I EN T E
JOELLI AZEVEDO Jornalista, da Assessoria de Imprensa do Cremepe
PRESIDENTE DO CREMEPE André Dubeux
COORDENAÇÃO EDITORIAL Ítalo Rocha
PROJETO GRÁFICO E ARTE Luiz Arrais
VICE-PRESIDENTE João Guilherme
ASSESSORIA DE COMUNICAÇÃO Mayra Rossiter Joelli Azevedo
IMPRESSÃO RB Gráfica
CONSELHO EDITORIAL André Dubeux João Guilherme Ricardo Paiva
REPORTAGEM Mariana Oliveira Mariana Araújo
TIRAGEM 15.500 Exemplares Os artigos assinados são de responsabilidade de seus autores.
OPINIÃO ANDRÉ DUBEUX Presidente do Cremepe
Os 60 anos do Cremepe
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REPRODUÇÃO
m 1958, com base na Lei Federal 3268, foram criados os Conselhos de Medicina pelo presidente Juscelino Kubitschek, que também era médico, concedendo aos mesmos autonomia para a fiscalização do exercício profissional. Aqui, no nosso estado, um grupo de médicos, sob a liderança do dr. Antônio Figueira, criou o Conselho Regional de Medicina de Pernambuco, que teve como primeiro presidente o próprio Antônio Figueira. Nesses 60 anos, a Medicina sofreu uma incrível transformação, tanto nas formas de diagnóstico como no tratamento. A ultrassonografia, método revolucionário, foi lançada pouco antes da criação dos Conselhos, sendo seguida pela tomografia e pela ressonância. Atualmente, estamos na época das cirurgias robóticas, impressoras 3d e o projeto genoma. Todas essas evoluções não podem se dissociar do maior dos alicerces na Medicina, que é a humanização. O nosso Código de Ética Médica e o nosso juramento hipocrático mostram que precisamos buscar sempre o melhor para nossos pacientes, curando quando for possível, confortando e aliviando sofrimento quando nossos limites humanos assim determinarem. Desde sua criação, o Cremepe já passou por quatro sedes. A primeira, em uma sala no Edifício Tabira, na Avenida Conde da Boa Vista. A segunda, na Rua da Hora, no Espinheiro.
Convite para reunião da primeira diretoria do Cremepe, na sede do Ed. Tabira
A terceira, na Rua José Maria, na Encruzilhada, e desde a década de noventa que o Cremepe voltou para o Espinheiro e hoje está instalado na Rua Conselheiro Portela. Contamos com três delegacias, nas cidades de Caruaru, Serra Talhada e Petrolina, visando oferecer aos colegas do Interior e à população em geral os serviços prestados pela sede. Até a presente data, o Cremepe já contou com 18 presidentes, de várias especialidades. No começo, éramos apenas 251 inscritos no Cremepe. Hoje, esse número já se aproxima dos 25 mil inscritos, com 21 mil médicos em atividade, mostrando a importância do nosso estado no contexto da formação e atividade profissional. Todas as gestões estiveram focadas em criar e aperfeiçoar práticas que garantam à sociedade uma proteção quanto à má prática médica. Atualmente, temos um ex-presidente, Carlos Vital Tavares Corrêa, dirigindo nossa maior entidade, o Conselho Federal de Medicina (CFM), com extrema prudência e honestidade, motivo de orgulho para todos nós. Como médicos, dividimos as incertezas e as angústias de grande parte da sociedade e procuramos atuar em defesa da saúde dos brasileiros, ameaçada pela falta de investimento público. Os desafios são enormes. Todavia, nós conselheiros do Cremepe sempre estaremos na defesa de uma Medicina mais humana, alicerçada na ética e no zelo profissional.
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E N T R E V I S TA
Eduardo Jorge 4 | REVISTA DO CREMEPE
“As vacinas estão sendo vítimas do seu próprio sucesso” PEDIATRA, PROFESSOR, COORDENADOR DA RESIDÊNCIA MÉDICA DO IMIP E PRESIDENTE DA SOCIEDADE DE PEDIATRIA DE PERNAMBUCO, O MÉDICO EDUARDO JORGE FALA SOBRE A COBERTURA VACINAL NO CAMPO LOCAL, NACIONAL E INTERNACIONAL | ENTREVISTA A MARIANA OLIVEIRA No final de fevereiro deste ano, uma informação divulgada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) chamou a atenção de todos. As manchetes de vários periódicos atestavam que os casos de sarampo na Europa haviam crescido 400% em 2017. Naquele mesmo período, ministros da Saúde de 11 países do continente se reuniram para debater o modo de combate ao surto e a importância da imunização. Naquele momento já se contabilizava que a doença teria afetado 21,3 mil pessoas na Europa em 2017, sendo 35 pacientes vítimas fatais. Segundo a OMS, esse aumento nos casos de sarampo na Europa se relaciona às falhas nos programas de imunização, seja pela interrupção da aplicação da vacina ou pela pouca cobertura de grupos marginalizados. Além disso, segundo especialistas, o movimento antivacina (aqueles que defendem que as crianças não sejam imunizadas, tanto por motivos religiosos como ideológicos) teria sua parcela de responsabilidade nesse processo. Tanto é assim que a Itália, país no qual o movimento antivacina vem ganhando força, foi o segundo país com o maior número de casos de sarampo na região em 2017. Esse surto, inclusive, levou o governo italiano a criar uma lei que
gerou muita polêmica e discussão. Todas as crianças de até seis anos de idade devem ser vacinadas contra 12 doenças comuns antes de serem matriculadas em escolas públicas. Caso isso não aconteça, os pais podem ser multados em até 2.500 euros. Tendo como gancho esse contexto mundial, convidamos o pediatra, professor, coordenador da Residência Médica do Imip, presidente da Sociedade de Pediatria de Pernambuco e membro do Departamento de Imunização da Sociedade Brasileira de Pediatria, Eduardo Jorge da Fonseca Lima para falar um pouco da situação da imunização no Brasil e comentar, é claro, esse cenário mundial que tem afligido médicos e pesquisadores de todos os cantos do planeta. Como está o cenário das vacinas, hoje, no mundo, diante desses grupos antivacina que vemos surgir? As vacinas estão sendo vítimas do seu próprio sucesso. Por muitos anos, tivemos uma cobertura vacinal adequada e isso ocasionou a diminuição de casos de algumas doenças infecciosas e desaparecimento de outras. Com o passar dos anos, o controle dessas enfermidades passou uma falsa impressão de que essas doenças
tinham desaparecido. Associado a isso, nós temos um triste marco na história. Em 1998, o médico Andrew Wakefield publicou um artigo na prestigiada revista Lancet ligando o uso da vacina tríplice viral (sarampo, caxumba e rubéola) com a possibilidade de desenvolvimento de autismo. Isso gerou um impacto negativo que até hoje, 20 anos depois, gera discussões. Posteriormente, esse médico foi obrigado a desmentir e confirmar que se tratou de uma fraude em associação com um grupo de advogados, para ganhar processos usando famílias de crianças autistas. Ele foi julgado e teve o registro médico cassado no Reino Unido. Foi a primeira vez que a revista retirou um artigo de circulação. Mas o estrago já estava feito, a semente já estava plantada. Essa história coincidiu com o aumento do diagnóstico do autismo e as pessoas juntaram as duas coisas, ficou essa ideia no subconsciente. Também começou a surgir um discurso em algumas comunidades mais isoladas na Europa e EUA contra as vacinas e essas ideias passaram a ser propagadas nas mídias sociais, de modo irresponsável, com informações anônimas e sem embasamento científico. Esses grupos populacionais isolados que
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E N T R E V I S TA recusam vacina; os movimentos antivacina; as informações propagadas nas redes sociais; a impressão do desaparecimento das típicas doenças da infância pela própria implantação das vacinas ocasionaram esse triste cenário que vivemos hoje. Vemos o retorno do sarampo – com alguns casos letais – em países como a Itália, a Alemanha, Portugal, Espanha. O retorno dessa doença com letalidade. Isso é um retrocesso, algo que vemos com muita preocupação. O que o senhor acha das chamadas “festas da catapora” nos EUA?
Um verdadeiro absurdo. Alguns pais acham que a vacina de varicela não é necessária e que seria melhor expor seus filhos aos vírus da doença. Importante ressaltar que embora em crianças saudáveis a doença possa não trazer complicações, isso não é uma certeza e várias complicações da varicela como infeções de pele secundárias, pneumonite e encefalite podem ocorrer. A vacina administrada em duas doses têm uma eficácia de 95%. E no Brasil, como está a situação? No Brasil, esses grupos antivacina ainda não estão muito organizados,
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“O médico inglês Andrew Wakefield assustou a todos ao associar o uso da vacina tríplice viral ao desenvolvimento do autismo”
a ver para algumas vacinas taxas de 83, 85%. É importante chamar a atenção para a chamada “imunidade de rebanho”. Quando você vacina um indivíduo, a comunidade inteira se beneficia da vacina. Retomando a questão dos grupos antivacina, uma preocupação é o direito à proteção coletiva. Eu posso ate me sentir responsável legal pelo meu filho e decidir não vaciná-lo contra uma doença como coqueluche, como sarampo. Porém, no momento em que essa criança tem a doença e a transmite para a coletividade estou sendo irresponsável. Trata-se de um pacto social. O pensamento precisa ser coletivo. Por isso as autoridades precisam cobrar o cumprimento do calendário vacinal. No Brasil, as escolas são obrigadas a solicitar aos pais a caderneta de vacinação dos filhos na hora da matrícula. Mas só essa cobrança, sem a devida verificação individual de cada caderneta, não ajuda muito. Acho que nossa situação hoje também tem muita relação com o fato de não vermos mais essas doenças, logo a população relaxa, porque julga que elas de fato sumiram.
cobertura vacinal, uma das poucas coisas que resistiu a todos os planos econômicos, a todos os governos. O Plano Nacional de Imunização (PNI) é de 1973 e segue em ampliação. Trata-se de um calendário vacinal bastante amplo, que conta com vacinas restritas a alguns países, como varicela, hepatite A, a vacina de HPV. Na América do Sul, apenas o Uruguai tem um calendário tão amplo quanto o do Brasil. Entretanto, nos últimos cinco anos, já começamos a ver uma diminuição da cobertura vacinal. Nós tínhamos taxas de cobertura superiores a 90%, mas começamos
Em pesquisa recente, o Ministério da Saúde detectou que a média da vacinação no Brasil era de 81,4%, enquanto que na classe A era de 76,3%. Por que isso está ocorrendo justamente nesta faixa da população, em teoria, mais bem informada? Esta é uma questão séria e complexa. Desde 2016 que as taxas de cobertura vacinal vêm diminuindo no País. Pode ser o fortalecimento dos grupos anti-vacina ou a falta frequente de algumas vacinas que ocorreu nos últimos anos e outras questões ainda não esclarecidas. Tudo isso precisa ser avaliado. As famílias com condições socioeconômicas mais favoráveis têm mais facilidade de acesso a serviços
não têm muita força sozinhos, são ações de pais que compartilham nas redes sociais o temor pelos “efeitos deletérios” da vacinação na saúde dos filhos e também no meio ambiente. Alguns levantam o problema dos perigos do mercúrio e alumínio, que fazem parte de algumas vacinas. Mas eles não têm o conhecimento que se trata de uma quantidade irrisória, sem qualquer malefício para o ser humano. Inclusive, hoje, poucas vacinas têm essas substâncias. É esse pensamento que tem estimulado o surgimento desses grupos. O Brasil sempre foi um país símbolo da
de saúde alternativos, à homeopatia e a medicina antroposófica, que podem em algumas circunstâncias containdicar a vacinação. Tudo isso precisa ser melhor avaliado. Estamos orientando uma tese de doutorado que está avaliando a cobertura vacinal em Pernambuco em um período de 25 anos. Vamos tentar aprofundar estas respostas. O que o senhor acha da autorização dos pediatras norte-americanos poderem recusar o atendimento aos pais com filhos não imunizados? Desde setembro de 2016 que os pediatras americanos podem se recusar a atender estas famílias. Isso é baseado que uma escolha que a princípio é individual pode afetar toda uma população. Acredito que o pediatra deve esclarecer com toda as evidências atuais sobre os benefícios da vacinação e também dos seus baixos riscos de eventos adversos. É um direito legítimo dos médicos observando os critérios éticos se negar a acompanhar estas famílias, após todos os esclarecimentos. As reações provocadas pelas vacinas seriam então um dos motivos de alguns pais rejeitarem as mesmas? As vacinas, como os demais remédios, não são 100% eficazes e também não são 100% isentas de efeitos adversos. Então, existem vacinas que são mais imunogênicas e outras menos; algumas vacinas acarretam menos reações, e outras mais. Tudo precisa ser avaliado na relação de custo/ beneficio. Os eventos adversos da maioria das vezes são efeitos adversos locais como dor local, vermelhidão, febre baixa, incomparáveis com o risco de uma meningite, uma coqueluche, por exemplo. Além disso, a recusa das vacinas também é decorrente da preocupação com o transtorno do espectro autista, como já mencionado,
prejuízo no sistema imunológico da criança e desenvolvimento de doenças auto-imunes. Questões sem embasamento científico. E ainda existem as falhas vacinais, que são de dois tipos: as falhas primárias e as secundárias. A falha primária é decorrente da não-soroconversão, como acontece com muitos idosos acima de 70 anos, gerando uma cobertura vacinal em torno de 70%. A falha secundária é quando a resposta imunológica após a vacinação vai declinando com o tempo. Por isso, para algumas doenças são necessários os reforços. A vacina de varicela
Comente um pouco o calendário vacinal brasileiro. Falta vacina hoje? Nosso calendário vacinal é referência, todos têm acesso à vacina. Nos últimos anos, têm acontecido alguns desabastecimentos temporários, o que desperta alguma preocupação. Inclusive a vacina BCG, a que é ministrada nos recém-nascidos, está passando por uma certa dificuldade de abastecimento. A causa disso é que a fábrica que a produz no país está passando por uma reforma para expansão, o que vem atrapalhando sua produção.
“As vacinas, como os demais remédios, não são 100% eficazes e também não são 100% isentas de efeitos adversos. Tudo precisa ser avaliado” é um bom exemplo. Em relação à vacina de varicela, recentemente vinha acontecendo uma falha vacinal secundária: a criança recebia a vacina aos 15 meses, se protegia, mas quando chegava aos 4, 5 anos de idade, já na escola, tinha varicela porém mais branda. Então se adicionou esse reforço entre os 4 e 6 anos. Os médicos se queixam muito, porque cada ano temos um calendário novo, com novas vacinas. Isso acontece porque epidemiologicamente vão surgindo mudanças. São novos momentos epidemiológicos, que pedem novas condutas no calendário vacinal.
Por que existem diferenças no calendário vacinal público e privado. E por que algumas dessas vacinas são oferecidas apenas no privado? Como saber o que de fato é necessário? Os calendários estão em constante alteração em virtudes de mudanças epidemiológicas, surgimentos de novas vacinas etc. O calendário do PNI segue a lógica do foco na saúde coletiva e o controle de surtos e epidemias. Tem que levar em conta a disponibilidade de vacina para um país continental como o Brasil, determinação dos grupos de maior risco, a possibilidade de produção
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pelos laboratórios nacionais, o custo beneficio da vacina. Já os calendários recomendados pelas sociedades médicas levam em consideração, além da imunidade coletiva, a saúde individual. Então, novas vacinas são mais rapidamente incorporadas aos calendários das sociedades. O que mudou no cenário da imunização no Brasil quando se criou o Plano Nacional de Imunização.O PNI começou a ser desenhado em 1973, anterior ao SUS. Até aquele momento cada estado era responsável por suas campanhas. A organização do calendário vacinal, a disponibilidade dos imunobiológicos na rede pública, e as metas de vacinar todas as crianças nascidas a cada ano foram fatores essenciais para os crescentes índices de cobertura vacinal que o Brasil conseguiu ao longo dos anos. Outra vacina bastante questionada é a do HPV. Por quê? O Brasil conseguiu uma distribuição da vacina do HPV para meninos e meninas no início da adolescência, mas ainda assim não está conseguindo uma cobertura superior a 50%. Por que isso ocorre? É uma questão complexa. Tem essa ideia de que ao dar a vacina os pais estariam dando um aval para o início da vida sexual dos filhos. Mas não é só isso. Na primeira dosagem da vacina de HPV se conseguiu uma cobertura de 91%. Depois, na segunda dose, houve uma queda vertiginosa. Tivemos o caso de três meninas que tiveram um estresse agudo pós-vacina de HPV e isso ganhou destaque na mídia e claro que a divulgação de histórias como essa colaborara com essa queda na procura. É preciso que se entenda que as vacinas são um dos melhores investimentos no que se refere à saúde pública, só perdendo para o saneamento básico. A cada um dólar investido em vacina, se economiza
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“É necessário que os médicos aprofundem o conhecimento em vacinas. Verificamos que na graduação e residência esse tema é pouco estudado” 20. A vacina do HPV é fundamental no combate ao câncer de colo do útero. Ela não exclui a necessidade do papanicolau, mas certamente em 20 anos veremos uma sensível redução nos números de casos dessa neoplasia. E a da gripe? A influenza é um vírus altamente mutável. E nem sempre conseguimos fazer com que as cepas que estão na vacina sejam as mesmas do vírus que está circulando. Mas já temos muitas pesquisas que atestam as vantagens dessa vacina. Há indicações de que bebês cujas mães tomam a vacina na gestação são muito menos atendidos nas emergências nos primeiros meses de vida. Como o médico deve agir quando se deparar com uma família que se nega a vacinar seus filhos? À família vai caber a opção de vacinar ou não, mas o médico precisa registrar num prontuário que orientou a tomar tais vacinas. Você vai explicar, argumentar e registar que orientou a tomada da vacina. Tem um exemplo clássico de uma família inglesa que processou o pediatra alegando que ele não tinha sido suficientemente enfático de que a vacina era necessária. Como eles estavam com medo dessa
vinculação sugerida do autismo com a tríplice viral, optaram por não vacinar a criança e, ao final, processaram o médico. Em consultório o senhor já se deparou com uma situação que precisasse ser enfático quanto à necessidade de uma vacina? Eu já tive que argumentar, explicar em detalhes os riscos e benefícios da vacina. Tive um caso de um paciente que tinha um histórico de diarreia e que os pais foram sugestionados a não dar a vacina do rotavírus, pois isso poderia piorar o quadro. Tive que intervir. Boa parte dos grupos antivacina utiliza o argumento de que elas são oferecidas a nós devido ao poder da indústria farmacêutica que quer vendê-las. Esse pensamento persiste? Como desconstruí-lo? É necessário que os médicos possam aprofundar o conhecimento em vacinas. Verificamos que na graduação e nos programas de residência este tema não é suficientemente estudado. A melhor arma para desconstruir estas colocações são estudos sérios que avaliam a efetividade das vacinas E a vacina da febre amarela, tão falada hoje. Deve ser tomada? Por quem? Em que contexto? Infelizmente, estamos assistindo a este retorno da Febre Amarela no país. Em todos os estados onde a vacina está recomendada, as pessoas de 9 meses a 60 anos devem fazer uso da vacina para tentar controlar este surto, assim como as pessoas que se deslocam para estas áreas. Infelizmente, após a grande procura inicial a cobertura nesses estados ainda está bem abaixo do esperado. Inclusive, já temos agora uma nova recomendação da vacina de Febre Amarela em toda a população e em Pernambuco a partir de março de 2019.
CREMEPE 60 ANOS
Uma noite festiva para ficar na história
Cremepe garante melhorias em unidades básicas de Petrolina DIVULGAÇÃO
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uitos nomes da Medicina de Pernambuco, além de representantes de várias esferas do poder público e também do Ministério Público de Pernambuco (MPPE), estiveram reunidos no Teatro de Santa Isabel, na noite do dia 8 de março, para celebrar os 60 anos do Conselho Regional de Medicina de Pernambuco (Cremepe). O evento contou com a presença de ex-presidentes do Conselho, como o atual presidente do CFM, Carlos Vital, além de funcionários da entidade. O show do cantor e compositor Maciel Melo encerrou a noite comemorativa. “O Cremepe é uma ponte para um futuro melhor de paz, cidadania e saúde para todos”, afirmou André Dubeux, presidente do Cremepe. Em sua fala, Carlos Vital fez um resgate histórico e citou o avanço tecnológico do Cremepe nas últimas décadas com “a criação do portal da
transparência, projeto contínuo de planejamento estratégico, além do trabalho social com a Caravana e a Feira do Bem, assim como no lado científico com a Escola Superior de Ética Médica (Esem)”. O Cremepe foi criado com base num decreto de 1958, assinado pelo presidente da República, Juscelino Kubitscheck, que também era médico. Aqui em Pernambuco, a instalação do Conselho Regional de Medicina coube a um grupo de médicos liderados por Antonio Figueira, que foi seu primeiro presidente. A primeira sede funcionou numa sala alugada do Edifício Tabira, na Avenida Conde da Boa Vista, no centro do Recife. No começo, eram 251 médicos inscritos, hoje esse número chega a 25 mil médicos. Com sede própria, o Cremepe funciona desde os anos noventa num casarão da Rua Conselheiro Portela, no Bairro do Espinheiro, na Zona Norte do Recife.
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ssa história começou em julho de 2017, quando as entidades médicas de Pernambuco estiveram nas Unidades Básicas de Saúde (UBS) da Zona Rural de Petrolina. Identificaram prédios sem condições para o funcionamento de um serviço médico, falta de insumos básicos e medicações. O Cremepe instaurou um procedimento e notificou a prefeitura com um indicativo de interdição ética. O documento deu 30 dias para a gestão regularizar os serviços. Após reformas e contratações, a fiscalização do Conselho voltou às unidades e confirmou a ‘desinterdição’. Para o 2º secretário do Conselho, Sílvio Rodrigues, as irregularidades foram sanadas e a gestão cumpriu com os acordos, porém, ainda há déficit de recursos humanos na UBS Pedrinhas e questões estruturais. “Após a primeira fiscalização onde houve o indicativo de interdição, principalmente por problemas relacionadas à estrutura física, uma nova fiscalização demandada pelo MPPE avaliou que as unidades estão em condições de funcionamento necessitando de ajustes que não inviabilizam o atendimento”, explicou Rodrigues. UBS Bebedouros - Após duas situações de desabamento do forro, em 2015 e 2016, finalmente a Unidade Básica foi montada em uma estrutura regular, segura e com condições dignas para o atendimento médico. Um ano atrás as fichas estavam sendo realizadas em uma mesa, no sol, perto das duas salas improvisadas. Agora, a unidade está funcionando na casa cedida pela cooperativa dos agricultores que foi totalmente adaptada.
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A primavera das mulheres NOS ÚLTIMOS ANOS, O MOVIMENTO FEMINISTA VOLTOU COM FORÇA À PRAÇA PÚBLICA E TEM LEVANTADO IMPORTANTES DEBATES E DISCUSSÕES, INCLUSIVE NO CAMPO DA SAÚDE TEXTO MARIANA OLIVEIRA FOTOS HANS MANTEUFFEL 10 | REVISTA DO CREMEPE
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o 5 de abril de 2017, a fisioterapeuta Mirella Sena era assassinada em um flat da zona sul do Recife por um vizinho. O fato chocou todos os pernambucanos e intensificou a atenção aos crimes ligados à questão de gênero. Este ano, o dia 5 de abril transformou-se no Dia Estadual de Combate ao Feminicídio. Ainda em abril de 2017, a figurinista Susllem Meneguzzi Tonani contava no blog Agora é que são elas, do jornal Folha de S. Paulo, que havia sido assediada diversas vezes pelo ator global José Mayer. Esses fatos rapidamente tomaram as redes sociais. Não fazia muito tempo uma campanha intitulada #primeiroassedio conclamava que as mulheres revelassem seu primeiro assédio, mostrando às outras que elas não estavam sós, que todas, em algum momento, haviam passado por uma situação parecida. Pouco antes do carnaval deste ano, o bordão “Não é não” dominou as redes e também ganhou as ruas, na busca por uma conscientização de que um não dado no meio do
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Roda de conversa sobre aborto e direitos sexuais no 8 de março. Ao lado, a psicóloga Suely Oliveira que atua no movimento feminista desde a década de 1980
Carnaval segue sendo e valendo como um não. Nos últimos anos, a discussão de gênero voltou ao centro do debate, num momento batizado de Primavera das Mulheres. Uma nova geração de ativistas se articulou com os coletivos mais antigos e ganhou as ruas e as redes sociais recolocando o feminismo em pauta e transformando-o em uma das articulações políticas mais potentes do Brasil hoje. Segundo Suely Oliveira,
psicóloga, ligada aos movimentos feministas desde a década de 1980, a chamada Primavera das Mulheres surge justamente no momento que o país vive um momento difícil, com o questionamento de alguns direitos conquistados pelas mulheres. “Na verdade o movimento feminista nunca morreu, ele é como uma onda, passa por ciclos, com momentos de maior ebulição e outros de mais encolhimento. Mas eu acho que algumas perdas em questões básicas, na promoção de igualdade, na questão dos direitos humanos nos últimos anos fizeram os movimentos sociais reagir e, nesse contexto, também ganha força o movimento feminista e suas lutas”, explica. De fato, um dos pontos que reacendeu o debate de gênero foi um contexto social e político que fez surgir, por exemplo, o projeto de lei cuja proposta é obrigar as mulheres que engravidaram num estupro e que desejam abortar a serem apresentadas a imagens de desenvolvimento de fetos antes da interrupção da gravidez; ou um outro cujo objetivo central é alargar a licença maternidade de mães de bebês prematuros, mas que afirma que o direito à vida é inviolável desde a concepção, o que inviabilizaria o aborto legal, autorizado em caso de estupro e de risco à saúde da mãe ou casos de anencefalia. Ou ainda o texto
que ficou conhecido como Bolsa Estupro, o qual sugeria acompanhamento psicológico às vítimas de estupro e a garantia, caso a mãe não tivesse condições, de um auxílio financeiro bancado pelo Estado até a identificação do pai ou que o bebê fosse adotado. Dentro da proposta, a mãe seria obrigada a estabelecer vínculo com o autor do estupro, pois se o agressor for identificado ele deverá pagar pensão alimentícia à criança, o que pressupõe contato regular da mulher violentada com o seu abusador. Mas a resistência vai além desses temas tidos necessariamente como relevantes para as mulheres. O movimento feminista é, hoje, compreendido numa perspectiva ampliada. As mulheres são diversas e tanto serão os feminismos quantas serão as mulheres. A luta das trabalhadoras rurais pela propriedade da terra pode ser considerada uma luta feminista; a grita contra a reforma trabalhista e a reforma previdenciária também pode ser entendida como uma pauta do feminismo. As mulheres jovens que estão denunciando cada vez mais cedo os assédios que sofrem, denunciando a violência sexual, lutando pelos seus direitos sexuais e reprodutivos não são as únicas vozes no movimento, há espaço também para lutar pelas idosas e o processo de violência que sofrem, ao serem infantilizadas e terem seu lugar no mundo suprimido. Ou seja, segundo Viviane Santiago, feminista, gerente técnica de gênero, da Plan International Brasil, existem vários feminismos. “A gente vive um momento muito bom para a pauta
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feminista no sentido de organização das mulheres, sobretudo das mais jovens que começam a se aproximar cada vez mais cedo das pautas, se organizando em torno delas. É um momento de muita efervescência, mas também de resistências muito vigorosas a essa luta”, complementa. Obviamente, a constituição da chamada Primavera das Mulheres também contou com uma forte ajuda da tecnologia e das redes sociais. A timeline dos usuários virou um espaço de denúncia e reflexão sobre questões ligadas ao feminismo, ao lugar das mulheres na sociedade. Quando se inicia uma campanha como a #primeiroassedio e muitas mulheres passam a compartilhar seus relatos nas redes, cria-se um processo de irmanamento, mostrando que há muitas coisas que unem as mulheres, inclusive as vivências opressoras em uma sociedade misógina. A criação dessa rede também tem contribuído para desconstruir a ideia de que as mulheres estão sempre em competição umas com as outras na disputa por uma figura masculina. Nesse sentido, uma das palavras que passou a ser usada e reusada é sororidade, que seria justamente essa irmandade entre as mulheres. A briga para desconstruir o pensamento machista, iniciado ainda em meados do século passado, de fato trouxe avanços claramente vistos e registrados. Suely Oliveira conta que no início da sua trajetória chegou a assistir julgamentos em que os homens que haviam matado suas companheiras justificavam sua atitude em nome da honra. “Como a legitima defesa da sua honra poderia ser atribuída a outrem? Isso só veio cair do código penal na década de 1990”, lembra. Outro ganho importantíssimo foi a Lei Maria da Penha que há 11 anos foi decretada com o objetivo de coibir a violência contra a mulher. “Antes esse tipo de
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FOTOS: DIVULGAÇÃO
C A PA
A ginecologista Tânia Pires acredita que o médico tem um papel fundamental no empoderamento da mulher Viviane Santiago, ao lado, destaca a maior participação das jovens no movimento feminista
O feminismo é, hoje, visto de modo amplo. As mulheres são diversas e tanto serão os feminismos quantas serão as mulheres agressão era vista com menor potencial agressivo, o homem batia na mulher e sua pena era dar cestas básicas. A violência contra a mulher é uma questão de saúde pública, uma violação de direitos humanos”, afirma Suely. Já mais recentemente houve a tipificação do assassinato de mulheres, o feminicídio. Usualmente os homens são mortos no contexto da violência urbana, por pessoas que não conhecem, já no caso da mulher o agressor faz parte do seu ciclo de relações, de intimidade, de confiança, pai, marido, namorado, ex-namorado.
Trata-se de um crime de condição de gênero. Em julho de 2015, o Governo de Pernambuco decretou uma lei que impunha que os boletins de ocorrência tipificassem o crime como feminicídio. A imprensa também deveria passar a adotar esse termo. Textos como “matou por ciúme”, “não suportou o fim da relação”, “crime passional” não devem ser reproduzidos, pois, de algum modo, colaboram com uma visão machista e patriarcal que põe a mulher não como vítima, mas como culpada pela reação do homem. De fato, é a reeducação que poderá ajudar a transformar a sociedade e buscar um equilíbrio entre os gêneros. Os homens são criados para a rua e às mulheres ficam reservadas as funções do cuidar, da casa, cuidar dos filhos, da família, somada agora também à jornada de trabalho. A mulher moderna vive uma sobrecarga pela tripla jornada de trabalho, uma vez que ela assumiu o papel de também prover a família, mas os papéis que sempre exerceu no âmbito privado não foram compartilhados com o homem. “A violência atravessa a vida
das mulheres não só numa perspectiva simbólica, mas também numa perspectiva bastante concreta. Elas são socializadas para cuidar de todo mundo e nem sempre para cuidar de si”, pontua Viviane Santiago. Segundo Suely Oliveira, as mulheres estão sempre com suas crias e quando não podem estar recorrem a outras mulheres para cuidar delas. A população feminina aprendeu a ser cuidadora, não é algo que se possa imputar a natureza. “Fomos ensinadas a isso. Já os homens não. É por isso que as mulheres são as maiores usuárias do serviço de saúde, 80%, porque, além de buscarem cuidar de si, são quase sempre elas que acompanham todos os familiares nesse processo”, disse.
FEMINISMO E SAÚDE A luta feminista sempre esteve ligada às questões da saúde. “Faço parte do movimento de mulheres feminista desde os anos 1980, sou da Rede Feminista de Saúde e Direitos Sexuais e Reprodutivos, essa e uma rede muito importante, conhecida como Rede Saúde. Ela tem um papel muito importante porque articula todos os universos da saúde. Uma das bandeiras de luta do movimento das mulheres feministas é a luta pela saúde e isso se reflete em vários universos”. Paula Viana, do grupo Curumin, também aponta que desde o início houve essa interação. “Os movimentos feminista e sanitaristas sempre estiveram muito interligados na construção da política nacional de saúde e de uma política nacional de saúde da mulher”. Os grupos de mulheres participaram ativamente, na década de 1980, da formação do SUS e desde sempre tiveram um espaço importante, seja na questão da mortalidade materna, na questão do aborto legal, no atendimento às mulheres vítimas de violência.
“Nós lembramos dos escândalos de esterilização forçada das mulheres negras, a questão da violência obstétrica, o atendimento às gestantes nas maternidades, o tratamento que as pacientes receberam na área da saúde mental, o racismo com as negras... Então, de fato, a violência contra a mulher está muito ligada à questão da saúde”, diz Viviane Santiago. Ainda hoje as mulheres passam por situações difíceis quando procuram a rede de saúde. Aquelas que buscam o atendimento após um episódio de aborto, muitas vezes, são tratadas com desdém pelos profissionais que fazem um julgamento daquela condição. Também existem relatos de violência obstétrica durante o parto quando algumas mulheres escutam frases como “Não fez, agora aguenta”. “A gente precisa que os serviços de saúde atendam verdadeiramente às demandas das mulheres, indo além da relação de hierarquia do saber médico sobre o corpo, respeitando a vida e o corpo das mulheres na sua diversidade de ser no mundo. Temos uma medicina muito hetero normativa. Todos os processos de cuidado pressupõem que as mulheres adultas
fazem sexo apenas com homens, não consideram a mulher trans, as lésbicas”, salienta Viviane. Paula Viana conta que os grupos feministas têm trabalhado no sentido de garantir às mulheres esse atendimento integral na saúde e em sua diversidade, lutando pela implantação de políticas de saúde sexual e reprodutora, que passam pela questão da maternidade, do planejamento familiar, da prevenção das DSTs, e do atendimento às mulheres vítimas de violência. “Lutamos pela implantação desses serviços. Hoje já temos pontos de atendimento para a realização do aborto legal em vários locais do estado. Antes isso estava centralizado no Recife. Também temos conseguido levar serviços de assistência integral a mulheres vítimas de violência a todo o estado, isso também tem sido uma grande conquista”, pontua.
EMPODERAMENTO E é na ponta do atendimento das mulheres que a ginecologista e obstetra Tânia Pires atua. Para ela, a sua especialidade é focada no cuidado da mulher, não apenas do ponto de vista médico, mas também psicológico. “Na verdade o meu despertar para a ginecologia tem uma relação direta com esse objetivo de cuidar da mulher, no ajudar a mulher a se conhecer como pessoa”, diz. A médica faz parte do Ambulatório de Câncer de Colo do Útero do Hospital das Clínicas e atende em consultório particular. Em ambos, transforma a consulta num momento de orientação sobre saúde, direitos sexuais, sexualidade.... “Trabalho com mulheres
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ALISON MATIAS
C A PA A cardiologista Gabriela Montenegro encontrou seu espaço na hemodinâmica
que têm uma lesão e chegam achando que vão morrer porque dizem ter um câncer, quando, muitas vezes, trata-se do que chamamos de pré-câncer. Eu recebo essa paciente, converso com ela, acalmo, peço para ela trazer a irmã para também fazer o exame, pergunto se ela já vacinou a filha contra o HPV, pergunto se usa camisinha, anticoncepcional, peço a sorologia para outras doenças sexualmente transmissíveis. Quem é que pode exercer esse papel de orientador e educador dessa mulher se não o ginecologista?’, pergunta a médica. Ela conta que, no dia a dia, com suas pacientes se depara com situações que refletem muito a violência psicológica e física vivida por elas. Como as lesões relacionadas ao câncer de colo do útero estão relacionadas ao vírus do HPV, transmitido através da relação sexual, elas muita vezes são motivo para suas pacientes serem pressionadas e até agredidas. Como as lesões masculinas decorrentes desse mesmo vírus são difíceis de serem diagnosticadas, a manifestação pode acontecer apenas nas mulheres, o que
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faz com que os seus companheiros as pressionem querendo saber onde elas “pegaram” o vírus. “Então, além dela estar ali, achando que tem um câncer, ainda está sendo pressionada pelo marido que acredita que ela adquiriu o vírus em outra relação. Elas ficam desnorteadas, sofrem assédio de todos os tipos, físicos, psicológicos, morais”, detalha a médica. Ela lembra que essa opressão das mulheres nesse momento de fragilidade pode ser reforçada quando o homem vai ao urologista e escuta dele a seguinte frase: “diga à médica da sua mulher que você não tem nada”. Falar isso sem contextualizar, explicar, conversar com o paciente, é quase a mesma coisa de dizer “veja por onde sua mulher anda”, e jogar a responsabilidade para o outro.
MÉDICAS Mas não são só as pacientes que sentem o preconceito de gênero. As médicas mulheres também passam por momentos desconfortáveis. Quando uma jovem médica se gradua
e vai escolher sua especialidade se ela optar pela dermatologia ou pediatria será bastante incentivada. Afinal, espera-se, sim, que uma médica mulher goste de crianças, de cuidar delas, e se interesse também por questões que envolvem a saúde e beleza da pele. Por outro lado, se ela pensar em seguir carreira como cirurgiã, ou enveredar no campo da urologia ou da ortopedia não terá o mesmo estímulo. De todas as especialidades, é a ortopedia com maior disparidade de gênero em todo o mundo. Uma recente newsletter da SICOT – Societé Internationale de Chirurgie Orthopédique et de Traumatologie discutiu o avanço das mulheres na especialidade e mostrou o quanto a discrepância ainda é grande. A médica Amparo Gomes, da Colômbia, contava que quando conseguiu seu título, em 1990, só havia uma ortopedista pediátrica e uma R4 de ortopedia em todo país. Na Suécia, que tem a melhor situação, as mulheres representam 13% dos ortopedistas do país. Já a médica Ruiba Jaimallail, da Arábia Saudita, contou o preconceito que sofreu de um paciente, que gritou que uma mulher não poderia resolver o problema do seu cotovelo. Fez questão de um ortopedista homem. No Brasil, os números não são muito diferentes e a grande maioria dos médicos que ingressam na especialidade são homens. O ambiente dos grandes traumas, das cirurgias pesadas, que muitas vezes necessitam de certa força física do médico parecem não se configurar como um lugar para mulheres. No caso da urologia, não é diferente. Dados do Cremesp apontam que dos 1306 urologistas, 98% são homens. Ou seja, de cada 100 urologistas, apenas duas são mulheres. Na mesma pesquisa, o Cremesp aponta que 77% dos dermatologistas
DIVULGAÇÃO
A cirurgiã cardíaca Manuella Muniz enfrentou muito preconceito em sua trajetória
são mulheres. Esses dados realmente reforçam a construção cultural de que as mulheres serão bem recebidas em áreas mais próximas a questões estéticas e de beleza. Em 2015, num ponto alto da chamada Primavera das Mulheres, a residente de cirurgia geral Ana Cecília Borges escreveu o artigo “A primavera não chegou no bloco cirúrgico”, para o blog Agora é que são elas. Ela contava como já havia escutado diversas vezes de pacientes a frase: “É você quem vai me atender? Eu achei que seria atendido pelo cirurgião”. “Eu garanto que o fato de sermos poucas mulheres cirurgiãs não passa pelo desinteresse do feminino pelo que tange o sofrimento agudo, pelo doente gravemente enfermo que demanda atitude rápida e precisa, pela inabilidade de firmeza, precisão e delicadeza necessários em cirurgia. (...) Centenas de mulheres bem esclarecidas que ainda escolhem a profissão pelo preconceito e medo de serem tachadas de menos mulheres”, escreveu. A cirurgiã oncológica Cristine Miranda conta que ainda no início de carreira ouviu de alguns colegas
homens, que tinham uma visão mais limitada do campo de trabalho, que ela deveria buscar uma área mais “leve”, mas hoje não encontra mais qualquer dificuldade. “Sou respeitada entre os colegas pela competência. Há busca espontânea de clientes pelas características atribuída a mulher de ser mais cuidadosa, delicada, detalhista, perfeccionista, e consequentemente competente”, destaca. Manuella Muniz se encantou pela cirurgia e pela cardiologia ainda durante a graduação na UPE quando passou pelo Procape. Resolveu, então, juntar as duas coisas e especializarse em cirurgia cardíaca. O trajeto, segundo ela, não foi fácil. Ela entrou grávida na residência em cirurgia geral e depois tornou-se a primeira residente mulher em cirurgia cardíaca do Instituto do Coração no RHP. “Eu pensei vou casar, vou ter filho e vou ser cirurgiã cardíaca. Acho que tive que me esforçar muito mais que meus colegas homens para ser devidamente reconhecida, tive que fazer um esforço muito maior para ter minha competência confirmada. Passei e passo por esse árduo caminho e acho que as coisas precisam mudar”, diz. A proctologista Cláudia Justo concorda que a cirurgia ainda é uma área muito associada aos médicos homens. Ela conta que em termos de consultas as médicas proctologistas são bastante procuradas, mas alguns pacientes ainda acham estranho a
médica assumir a cirurgia. “Tenho pacientes que não sabiam que eu também realizava cirurgias”, conta. A cardiologista Gabriela Montenegro também foi bastante desestimulada quando resolveu enveredar pela área da hemodinâmica. Muitos duvidavam que com seu porte ela fosse capaz de usar o capote que protege da radiação, outro ponto negativo, segundo colegas, pois seria um impeditivo para uma futura gravidez. “As pessoas te desestimulam claramente, colocam muitos empecilhos. Mas eu corri atrás e consegui”, comemora. No caso da urologista Regina Pacis, o estímulo para seguir na especialidade veio do pai que era urologista o que, de algum modo, facilitou e fez com que todo o processo fluísse de modo mais natural. Segundo ela, houve, claro, quem comentasse que a área cirúrgica não seria muito adequada para as mulheres, mas, assim como as outras médicas citadas aqui, ela não deu ouvidos a tais comentários. “Eu tenho uma experiência muito boa, não tenho rejeição, mesmo sendo vista como uma raridade quando digo que sou urologista. De modo geral sempre fui respeitada pelos colegas, mas já senti, na época da residência, um certo preconceito velado, mas que só serviu como estímulo para mostrar minha competência”, salienta a médica. Provavelmente, a presença feminina nessas especialidades, antes tidas como espaços masculinos, tende a aumentar. Afinal, o percentual de graduandas médicas está superando a de médicos e isso é uma tendência mundial. Mas há muito ainda a ser feito. Afinal, dados do estudo Demografia Médica Brasileira apontam que as médicas brasileiras têm a mesma jornada de trabalho que os homens e, ainda assim, recebem menos.
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INTERVIEW CIENTÍFICA
Homeopatia
TEXTO CARLOS EDUARDO DANZI
O
bserva-se um grande alcance da homeopatia em doenças crônicas, como alergias (eczemas atópicos, asma, ...), enxaquecas, dismenorreia, etc. Essas patologias são de difícil tratamento pela medicina convencional que somente consegue aliviar e/ou espaçar as crises. Nestes casos, observa-se o desequilíbrio do sistema orgânico que apresenta a sintomatologia. A homeopatia age estimulando o organismo, através da medicação, para que retome o equilíbrio perdido promovendo assim a cura. Em outros casos, ela pode entrar como tratamento coadjuvante acelerando a cura, abrandando os sintomas e reduzindo os efeitos adversos do tratamento convencional. A Homeopatia vem se desenvolvendo e vendo explicados fenômenos que antes só eram identificados pelo resultado do tratamento. A consulta homeopática, como toda consulta médica, compõese do interrogatório sintomatológico,
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exame físico e solicitação de exames complementares. Aliado a isso, é imprescindível a abordagem do perfil psicológico do doente, sua maneira de ser e reagir frente aos fatos e à doença. Esse conjunto de informações levará à escolha da medicação que mais se adequa ao caso. A medicação é produzida por farmácias especializadas, com técnica preconizada pelo Conselho Federal de Farmácia que tem como uma das fases a diluição. O tratamento requer a observação da evolução do caso tanto do ponto de vista clínico, fisio-patológico como o psicológico. Como as demais especialidades médicas, para a legalidade da prática homeopática é necessário o curso de formação de especialista com carga horária definida pela AMB e posterior prova de título ou residência na área. A formação leva o profissional a um pensamento diferenciado sobre o ciclo do adoecimento. O paciente é visto numa integralidade onde se mescla atividade e atitudes físicas com
comportamentais. Esta racionalidade diferenciada é um dos fatores do afastamento da homeopatia pelos profissionais que a desconhecem. O diferente é visto com cautela e para se adentrar neste mundo, que possui uma lógica diversa da mecanicista na qual foram formados, a rejeição se torna o caminho mais fácil. Aqueles que se permitem conhecer essa outra racionalidade logo identificam semelhanças com a medicina com as quais estão acostumados e percebem que a ação tem o mesmo objetivo de afastar o sofrimento e a busca da saúde do paciente. Aos alunos da grande maioria das faculdades é furtada a possibilidade de conhecer esta especialidade constante do rol de especialidades da AMB desde 1980. Esse prejuízo é notado quando o profissional perde a oportunidade de lançar mão no cuidado dos seus pacientes desta medicina idealizada pelo médico alemão Samuel Hahnemann. A especialidade médica, dependendo do caso, pode agir sozinha ou como adjuvante aos tratamentos convencionais. A homeopatia ainda estimula a humanização da prática médica, cujo avanço tecnológico vem afastando do exercício profissional diário. Na homeopatia, a relação médicopaciente é base da consulta pois a investigação da doença inclui o componente psicológico só observado quando a humanização participa do processo. Neste diapasão, buscase não só a normalização das taxas e funcionabilidade orgânica, mas também o bem-estar geral da pessoa. Conclui-se assim a necessidade de maior difusão do conhecimento homeopático com o objetivo de ampliar o arsenal terapêutico na busca da saúde integral do paciente. Também esse processo auxiliará sobremaneira o programa de humanização e integralização da medicina com a revalorização da relação médico-paciente.
EM DIA
Cremepe apresenta Resolução de diretores técnicos em todo o Estado os diferentes plantonistas, bem como assegurar a disponibilidade de insumos e medicamentos essenciais para diagnóstico e tratamento das doenças, além de garantir que todos os doentes internados tenham seu médico assistente. Os diretores técnicos contam ainda com a possibilidade de suspender – de forma integral ou parcial – as atividades no estabelecimento assistencial médico. Essa interrupção pode ser prolongada até a solução do caso, com aval do Conselho.
O
Cremepe esteve nas 12 Geres de Saúde de Pernambuco, em 2017, para apresentar e esclarecer a Resolução CFM Nº 2147/2016 que definiu novos critérios para atuação dos médicos que ocupam cargos de diretor técnico e clínico nos estabelecimentos de assistência médica em todo o Brasil. “Apresentamos a resolução CFM Nº 2147 em todas as regionais de saúde. No primeiro momento da reunião, era apresentada a resolução sobre as responsabilidades dos diretores técnicos e clínicos e na sequência tiramos as dúvidas”, explicou o 2º secretário do Cremepe, Sílvio Rodrigues. De acordo com a norma que entrou em vigor em abril de 2017, são atribuídos aos médicos a responsabilidade de atuar com objetividade na manutenção da qualidade da assistência médica e garantia de condições técnicas para o exercício ético da profissão. Cabe aos médicos que atuam como gestores a observação de tarefas que afetam diretamente o funcionamento das unidades. Assim, o diretor técnicomédico responde administrativa e eticamente pela organização e manutenção do funcionamento para o atendimento, desde a chegada das pessoas à recepção até a garantia
da continuidade do abastecimento de energia ou gases medicinais nos diversos ambientes médicos do estabelecimento assistencial. Outra tarefa relevante é responder pela elaboração e cumprimento das escalas de plantão. Tem também a responsabilidade de averiguar a capacitação dos profissionais que se apresentarem para trabalhar em consultórios, ambulatórios, prontossocorros e hospitais sob sua direção, obrigando-se a verificar a sua procedência e a validade dos diplomas e da inscrição no CRM do estado onde pretenda atuar. Dessa forma, coibirá o exercício ilegal da Medicina por pessoas não graduadas ou que, graduadas no exterior, não tiveram seus diplomas revalidados ou, ainda, que se apresentem como especialistas mas não tenham seu certificado registrado no Conselho. Ao diretor clínico são atribuídas as tarefas relativas à qualidade da assistência, como a de dirigir e coordenar o corpo clínico da instituição, supervisionando a assistência aos doentes e zelando também pelo cumprimento do regimento interno e demais normas balizadoras da boa prática médica. É sua obrigação garantir o fluxo de informações sobre os pacientes internados entre
SAÚDE SUPLEMENTAR A norma traz uma novidade sobre um tema que antes não contava com definição legal: a responsabilidade dos diretores técnicos médicos de planos de saúde, seguros-saúde, cooperativas médicas e prestadoras de serviço em autogestão. Segundo as definições da Resolução CFM, cabe ao diretor técnico médico zelar para que a operadora respeite as cláusulas pactuadas nos contratos firmados com pessoas físicas ou jurídicas por eles credenciados, contratados ou referenciados. Em relação a faturas de prestação de serviço, ficou definido que é do diretor técnico médico a obrigação de zelar para que, na ocorrência de glosas, sejam descritas as suas razões, ou seja, o porquê da recusa das operadoras em pagar as faturas, exigindo dos auditores os fundamentos dessas negativas. Do mesmo modo as glosas devem ser remetidas por escrito, os médicos (quando pessoas físicas) ou o diretor técnico médico (quando pessoa jurídica) que deverão oferecer esse retorno por escrito. Com a nova norma, caberá a estes a cobrança das condições do que ficou pactuado nos contratos com médicos ou estabelecimentos contratados, conveniados ou referenciados.
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ESPECIAL
A febre amarela volta a assustar CASOS NO SUDESTE DO PAÍS ACENDEM O ALERTA. PERNAMBUCO NÃO TEM REGISTRO DA DOENÇA TEXTO MARIANA ARAÚJO 18 | REVISTA DO CREMEPE
A
febre amarela voltou a tomar conta do noticiário nacional e a deixar em alerta a população, médicos e pesquisadores da doença. Desde o ano passado, são registrados casos da doença na sua forma silvestre em Estados da Região Sudeste do País. Em São Paulo, por exemplo, as medidas de proteção à população levaram ao fechamento de parques onde macacos – as primeiras vítimas – foram encontrados mortos, portadores do vírus da febre amarela. Dados do Ministério da Saúde mostram que, de 1º de julho de 2017 até o dia 13 de março de 2018, foram confirmados 920 casos da doença no País. Desse total, 300 foram à óbito.
Outros 769 estavam em investigação. Comparando o período de 1º de julho de 2016 a 13 de março de 2017, foram registrados 310 casos a mais. O órgão considera o período de análise entre 1º de julho a 30 de junho do ano subsequente. Em Pernambuco, não foi confirmado nenhum caso. Mas em janeiro de 2018, um morador de 45 anos da cidade de Bezerros, no Agreste, foi diagnosticado com a doença. Porém, a febre amarela não foi adquirida no Estado. O homem esteve na cidade de Mairiporã, interior de São Paulo, área considerada de risco da doença. A ausência de registros de casos em Pernambuco não
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ESPECIAL Para a professora Vera Magalhães, da UFPE, Pernambuco enfrenta um risco menor da doença se tornar um surto
significa que a população deva relaxar. Mas também não quer dizer que se precisa entrar em pânico e buscar a vacina da febre amarela com urgência. A vacinação – a única forma eficaz de evitar a doença – só é indicada para quem vai viajar para as áreas de risco. Em março deste ano, o Ministério da Saúde anunciou que todo o território brasileiro será incluído na área de recomendação para a vacina contra a febre amarela. Isso inclui o Estado de Pernambuco, que estava fora da área considerada de risco. A ampliação da cobertura será gradual, iniciando em julho e seguindo até abril de 2019. Pernambuco será incluído em março de 2019 e a população receberá a dose padrão, diferente da imunização fracionada que atualmente ocorre nos Estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Bahia. Pernambuco e outros Estados que
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estavam foram da área de risco foram incluídos porque o vírus circula, cada vez mais, em áreas de maior contingente populacional, como as regiões metropolitanas. É uma medida para evitar a expansão da doença. A grande busca pela imunização levou à falta da vacina em postos de saúde do Recife, problema já resolvido. Em São Paulo, um dos Estados mais afetados (com 376 casos confirmados), houve filas com horas de espera. Além de São Paulo, a doença teve casos confirmados em Minas Gerais (415), Rio de Janeiro (123), Espírito Santo (5) e Distrito Federal (1), segundo o boletim do Ministério da Saúde divulgado no dia 15 de março de 2018. Para a professora Vera Magalhães, médica infectologista e professora titular de doenças infecciosas da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Pernambuco enfrenta um risco pequeno da doença se tornar um surto. “A febre amarela é uma doença endêmica na Região Norte e Centro-Oeste, mas no Sudeste e Sul não tínhamos tanta febre amarela. Foi de 2016 para cá. Esse quadro é preocupante. Pernambuco não teve ainda nenhum registro de febre amarela silvestre”, explicou. Segundo a professora, a febre amarela se espalha por continuidade, ou seja, em locais próximos dos primeiros
focos, e Pernambuco está distante desses locais. O surgimento do surto pode estar ligado ao desastre natural ocorrido na cidade de Mariana, em Minas Gerais, quando uma barragem de uma mineradora foi rompida, em 2015. A professora cita estudos de biólogos sobre o assunto. “Isso pode ter afetado a migração de animais. Uma das possibilidades é que pode ter sido ali a origem da descompensação, com a migração dos macacos”, explica. Diante do crescimento do surto, a médica defende a inclusão da vacina contra a febre amarela no calendário vacinal do Brasil. Hoje, a vacina não faz parte nem do calendário da criança nem do adulto. “A vacina é uma excelente forma de prevenção porque independe de mudança de comportamento, de hábito. A pessoa vacinada está imunizada. Há uma tendência a ser incluída. Se houver uma manutenção desse surto ou de expansão, haverá necessidade de vacinar o maior número de pessoas possível”, alerta. A Fiocruz afirma que a vacinação faz parte da rotina de municípios com recomendação de vacinação nos Estados do Acre, Amazonas, Amapá, Pará, Rondônia, Roraima, Tocantins, Goiás, Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, Bahia, Maranhão, Piauí, Minas Gerais, São Paulo, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Paraná, Rio Grande do Sul e Santa Catarina e no Distrito Federal. “É importante a vacinação de pessoas que estão em risco, ou seja, residentes de áreas onde está havendo surto e áreas endêmicas, ou pessoas que vão viajar para essas áreas. É importante vacinar inicialmente essas pessoas porque forma uma barreira epidemiológica. Dessa forma, além da pessoa não adoecer, não vai haver a passagem para além daquela área onde está havendo o surto”, acrescenta Vera Magalhães.
POR QUE MACACOS? O vírus da febre amarela que está circulando no País é do ciclo silvestre, que aparece em áreas florestais. O vetor da febre amarela é principalmente o mosquito Haemagogus e do gênero Sabethes. As primeiras vítimas da febre amarela são os macacos, porque eles vivem em matas. Os mosquitos vivem nas copas das árvores e como os macacos estão nos altos das árvores, são as primeiras vítimas. “Os casos de febre amarela ocorreram ou porque cortou a árvore e esses mosquitos desceram, ou porque os macacos morreram - eles são as primeiras vítimas porque estão lá em cima. Não tendo mais sangue de macaco, eles pegaram o sangue humano, que está embaixo”, explica a gerente do Programa de Vigilância das Arboviroses da Secretaria Estadual de Saúde (SES), Claudenice Pontes. Por serem os primeiros a serem contaminados com os vírus, a preservação das matas e dos macacos
O surgimento do surto pode estar ligado ao desastre natural ocorrido na cidade de Mariana, em Minas Gerais, quando uma barragem de uma mineradora foi rompida, sugerem alguns estudos é tão importante para se ter um controle sobre a doença. “Se tiver macacos, podemos saber se uma área tem o vírus da febre amarela circulando. Por isso, a importância de manter uma vigilância de óbito de macacos”, diz Claudenice. “Os
macacos são os primeiros alertas de que o vírus está circulando. Matando o macaco, o mosquito vai procurar se alimentar de outras formas, chegando até os humanos, e deixará de ser o sentinela”, acrescenta Vera Magalhães. Pernambuco já teve 24 notificações até março de 2018 de óbitos de macacos, mas até agora, todos deram negativo para o vírus. O último caso de febre amarela urbana registrada em Pernambuco foi de 1936. E a febre urbana no Brasil teve o seu último caso em 1942. O ciclo urbano é transmitido pelo Aedes Aegypit, o mesmo mosquito que transmite a dengue, a zika e a chicungunha. O risco de haver um surto do ciclo urbano no Brasil, por enquanto, é considerado baixo por pesquisadores. Segundo a SES, um estudo do Instituto Evandro Chagas (IEC), vinculado ao Ministério da Saúde, observou que o Aedes que circula hoje no Brasil é da linhagem asiática, diferente da linhagem
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MIVA FILHA/SES
ESPECIAL
A gerente do Programa de Vigilância das Arboviroses da Secretaria Estadual de Saúde (SES), Claudenice Pontes, diz que a preservação das matas e dos macacos é importante
africana que transmitiu a doença há 80 anos no Brasil. Em janeiro deste ano, pesquisadores do IEC anunciaram que foi detectada a presença do vírus da febre amarela na forma silvestre também no Aedes albopictus (apelidada “tigre asiático”). Esses mosquitos foram capturados em 2017 em áreas rurais das cidades de Itueta e Alvarenga, em Minas Gerais. Segundo os pesquisadores, são necessários mais estudos para saber se tal espécie de mosquito pode transmitir a doença. Pesquisas desenvolvidas por alunos principalmente de mestrados e doutorados da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE) e da UFPE ajudam no monitoramento das matas e dos primatas. Ao todo, são estudados animais que vivem em seis localidades de matas de Pernambuco, entre áreas públicas e particulares. Os estudos envolvem a captura de animais e a coleta de amostras de sangue e de pele dos macacos, além dos parâmetros comportamentais
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e fisiológicos. “A gente sempre está se comunicando e repassando essas informações que podem auxiliar no monitoramento da febre amarela para o pessoal da Secretaria de Saúde”, explica a professora Maria Adélia Oliveira, do Departamento de Morfologia e Fisiologia Animal da UFRPE. Maria Adélia reitera a necessidade de conservação das matas. “Infelizmente, nós estamos em uma situação muito vulnerável. A questão ambiental está sendo deixada em última prioridade pelo governo, de um modo geral, e pelas pessoas também”, alerta.
VACINA E TRATAMENTO Não existe tratamento específico com drogas anti-virais direcionadas, o que leva os médicos a aplicarem um tratamento suportivo dos sintomas em humanos. Os sintomas da doença são semelhantes aos de outras viroses, como febre, mal estar, mialgia e cefaleia, o que
pode levar o paciente que adquire a doença na sua forma leve a pensar que se trata de uma virose comum. Apenas de 15% a 25% das pessoas infectadas podem ter a forma mais complicada da doença, geralmente, os mais notificados. Desses, de 20% a 50% vão a óbito. Na forma mais grave, os pacientes apresentam hemorragia, insuficiência renal, insuficiência hepática e insuficiência respiratória. O tratamento, geralmente, é feito em UTI. A vacina deve ser aplicada em pessoas que vivem em áreas endêmicas ou que irão viajar para esses lugares. No Brasil, a vacina era aplicada uma vez e a dose era reforçada a cada dez anos. Porém, em maio de 2014, a Organização Mundial da Saúde (OMS), entendeu que a dose única é suficiente para manter a imunização. Portanto, pessoas que foram vacinadas até esta data, não precisam reforçar a dose. “É desnecessário ter uma dose a mais. Como a gente tem uma possibilidade de ter mais sensibilização, a gente tem mais chance de ter reação adversa. O paciente estará recebendo vírus atenuado que pode ter risco para a saúde”, afirma Claudenice Pontes. A partir de janeiro, o Ministério da Saúde distribuiu a dose fracionada da vacina. Quem recebeu esse modo, deve repetir a imunização em oito anos. A vacina não é indicada para crianças menores de seis meses, pessoas que estejam fazendo quimioterapia e radioterapia, pessoas com alergia a ovo, pessoas que vivem com HIV e têm contagem de células CD4 menor do que 350 e pessoas com doenças ativas ou condições que diminuem as defesas do corpo. Gestantes e mulheres que estão tentando engravidar, porém não têm certeza sobre a gestação, também não devem se imunizar.
N A P O N TA D A L Í N G U A ÍTALO ROCHA Jornalista
O intelectual e o barqueiro
U
m escritor foi coletar dados para um novo livro e fez uma incursão pela área rural da cidade onde morava. Em determinado momento, precisou atravessar um rio. Se dirigiu ao único barqueiro disponível para fazer esse tipo de trabalho. Tratava-se de um senhor bem humilde, já massacrado pelo sol e pelo tempo. O intelectual, que praticamente não convivia com os “pobres mortais”, perguntou à queimaroupa ao barqueiro: – Quanto queres em recompensa pecuniária para transportar-me deste polo ao hemisfério?
– Cemitério? – respondeu o barqueiro. Irritado com a resposta do humilde barqueiro, o intelectual disparou: — Se for por falta de bases e conhecimentos intelectuais, perdoálo-ei. Mas se queres zombar de minha vasta prosopopeia, dar-te-ei uma pancada do mais alto impulso no teu occipital que cairás exposto sobre o solo prático, virando cinzas cadavéricas. E ao barqueiro, assustado, restou apenas um último comentário: — Não posso levar o senhor, doutor, porque com essa bagagem toda meu barquinho afunda!
Moral da história: De um modo geral, mesmo sendo detentor de tanta cultura, de tanto conhecimento, é mais recomendável usar uma linguagem fácil de entendimento no diálogo com as pessoas. ============ Em tempos de luta por igualdade de gênero, nada mais oportuno do que lembrar como a língua portuguesa é machista. Começa logo pelo plural das palavras. Se numa roda estiverem conversando nove mulheres e um homem, serão chamados de “eles”. Se a polícia fizer uma apreensão de armas (feminino), munições (feminino), drogas (feminino) e documentos (masculino), temos que dizer “foram apreendidos....”. ============ Algumas dicas importantes de Português. A palavra “rubrica” se pronuncia do jeito que se escreve e não “rúbrica”. O verbo “intervir” é composto do verbo “vir”. Portanto, quando for dizer que alguém se meteu na discussão para acalmar os ânimos diga que fulano “interveio” e não “interviu”. E sobre o verbo “ver”, muito cuidado também na sua conjugação quando se trata do futuro do subjuntivo. Muita gente fala assim: “Se você ‘ver’ fulano, diga que estou querendo falar com ele”. O correto é: “Se você ‘vir’ fulano, diga que estou querendo falar com ele”. Lembre-se de uma música belíssima cantada por Chico Buarque: “Quando meu bem querer me ‘vir’, estou certo que há de “vir” atrás”.
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MÚSICA
A voz da folia
NENA QUEIROGA É A PURA ALMA DO CARNAVAL PERNAMBUCANO TEXTO MARIANA ARAÚJO
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arioca de nascença e pernambucana de coração e de título recebido pela Assembleia Legislativa, Nena Queiroga é uma das principais artistas populares do Estado, atualmente. Quando se fala na voz feminina da folia recifense, lá está ela, reinando nos palcos e nos trios. A simpatia e o compromisso com a cultura pernambucana levaram Nena a ser a homenageada do Carnaval do Recife em 2018, ao lado do compositor Jota Michiles. “A música é parte da minha vida. Não me lembro de um
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só momento em minha vida que não houvesse música. Na minha família, a gente não escolhe ser músico, a música nos escolhe”, diz a cantora. Nena conta que recebeu a notícia da homenagem do Carnaval com muita surpresa e emoção. “Eu realmente não esperava! Fiquei muito emocionada e chorei muito, quase alaguei a prefeitura”. Depois que a ficha caiu, entendeu que subir ao palco da maior festa da cidade, situação comum em anos anteriores, em 2018 teve outro significado. “Depois recebi
com muita alegria, pois pensei no tanto que eu poderia representar as mulheres e em especial reverenciar a memoria da minha mãe”. A cantora cresceu entre os ensaios das orquestras, acompanhando a mãe. Pegou gosto e, ainda criança, gravava jingles publicitários. Aos 16 anos, já cantava em orquestras de frevo. Sua primeira gravação em estúdio foi em um disco de frevos do cantor Expedito Baracho produzido por Claudionor Germano. Em 2006, foi indicada ao Prêmio TIM de Música, hoje chamado
LÉO MOTTA/PREFEITURA DO RECIFE
de Prêmio da Música Brasileira, na categoria de Melhor Cantora, disputando com Daniela Mercury e Ivete Sangalo. Quando ela fala que a música escolheu a família, não estava brincando. Nena é filha do radialista Luiz Queiroga e da cantora Mêves Gama. A família tem, ainda, o irmão mais velho da cantora, o cantor e compositor Lula Queiroga. Foi casada com o Maestro Spok, pai dos seus dois filhos - Ylana Queiroga, cantora e compositora, e Yuri Queiroga,
músico guitarrista, arranjador e produtor musical. Tudo isso contribui para a união da família. “Eu amo isso, todo mundo fala a mesma língua. Somos uma família muuuito feliz e unida. Um ama o que o outro faz, compartilha, se envolve. E dá pitaco, ajuda no que pode. É uma vida louca e instável, mas não trocaria por nenhuma outra”, explica. A quarta geração já está sendo formada. Nena é avó de três netos: Bento, de 11 anos, Tomé, 9, e Flora, 3, que já participaram de shows e gravações. Mais conhecida como uma compositora e intérprete de frevos, Nena tem também trabalhos voltados para o forró. São dois ritmos bem temporais, ouvidos nas épocas das suas festas. O desafio é manter a agenda ao longo do ano. Para isso, participa de dois projetos executados entre o Carnaval e o São João. Um deles é o Dois de Paus e uma Dama, onde divide o palco com o violonista Renato Bandeira e o baixista Bráulio Araujo, fazendo um repertorio mais acústico, voltado para eventos corporativos e festas fechadas. O outro projeto é o Baile da Nena, fazendo apresentações com sua banda cantando sucessos de ritmos dançantes. “É um desafio sim, mas a gente vai sacudindo daqui e dali e conquistando os espaços”, conta. A falta de uma manutenção de apresentações da cultura popular pernambucana é uma das preocupações de Nena. É comum o turista chegar a Buenos Aires e Paris, por exemplo, e assistir a shows de tango argentino e nos cabarés reformados da capital francesa. No Recife, são poucos os incentivos. “Os poucos espaços que têm quase ninguém toma conhecimento. O Palácio do Galo (na sede do Galo da Madrugada) vem tentando um pouco disso com as Quintas do Galo, mas ainda é pouco valorizado. O grupo
Guerreiros do Passo se mantém nem sei como, com suas aulas do projeto Frevo na Praça, na praça do Hipódromo nas tardes de sábado. Mas acho que deveríamos ter espetáculos todos os fins de semana no Marco Zero, por exemplo, dos nossos ritmos e danças. Assim como acho que a Escola de Passistas Fernando Borges deveria estar aberta pra visitação em suas aulas todos os dias, como ponto turístico, como hoje temos o Paço do Frevo e o Cais do Sertão. Sinto falta dos espetáculos do Balé Popular do Recife”, lamenta. O lado social também está presente na vida de Nena. Frequentemente, ela participa de shows e eventos beneficentes e mantém seus próprios projetos nas duas instituições que adotou, a Creche Manoel Quintão, em Olinda, e o Projeto Sertânia Sem Fome, na cidade do interior pernambucano. Os dois precisam de voluntários, avisa Nena. A cantora também já participou da Caravana do Cremepe, na gestão do ex-presidente Ricardo Paiva, hoje membro da diretoria do Conselho. Ela lembra com muito carinho dos momentos de atuação no projeto. “Viajamos pelo Agreste fiscalizando possíveis pontos de prostituição infantil, conversando sobre cidadania, fiscalizando os hospitais. Foi uma experiência incrível”, afirma. Claro que o engajamento na música também está presente. Nena faz parte do Coletivo Pernambuco, um grupo formado por cerca de 15 artistas do Carnaval que lutam juntos buscando unir os artistas aos gestores em busca de reformular a política cultural. Entre os principais assuntos tratados, está uma questão que sempre vem à tona após festas como Carnaval e São João, tais como atrasos de pagamentos de cachês e a valorização dos artistas que escolheram viver aqui defendendo a cultura do Estado e da cidade.
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PAT R I M Ô N I O
Ares de Portugal PRESTES A COMPLETAR 168 ANOS, O GABINETE PORTUGUÊS DE LEITURA PASSA POR UMA REVITALIZAÇÃO QUE TORNA A INSTITUIÇÃO AINDA MAIS ATRATIVA TEXTO MARIANA OLIVEIRA FOTOS HANS MANTEUFFEL
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orria o ano de 1850, o Recife era uma das mais importantes cidades do país. Como não podia ser diferente, era habitada por muitos portugueses que vieram para o Brasil atraídos pela possibilidade de fazer fortuna por aqui. Essa comunidade, bastante saudosa de sua pátria natal, buscava um local onde pudesse se reunir periodicamente para discutir desde questões econômicas a eventos que cultuassem a cultura portuguesa. Foi com esse objetivo – assim como está descrito em seu estatuto: “unir os portugueses residentes em Pernambuco, fomentando a sua unidade moral e consagrando-os no culto à Pátria Portuguesa e amor ao Brasil” – que surgiu o Gabinete Português de Leitura no Recife. Mais ou menos no mesmo período, as cidades do Rio de Janeiro e de Salvador também ganharam seus gabinetes nos mesmos moldes. Quem primeiro pensou na criação da instituição foi o comendador Miguel José Alves, à época chanceler do Consulado de Portugal no Estado. Mas foi o cirurgião e jornalista João Vicente Martins quem, de fato, operacionalizou a fundação no dia 3 de novembro de 1850, sendo sua diretoria constituída pelos primeiros associados, que, juntos, conseguiram viabilizar, poucos meses depois, a primeira sede do Gabinete na antiga Rua da Cadeia, hoje Marques de Olinda. Depois, a instituição passou por um antigo prédio (já demolido) onde hoje
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se situa a Secretaria da Fazenda do Estado, e, em 1909, foi iniciada a construção do imponente casarão em estilo eclético na Rua do Imperador, cuja obra foi concluída apenas em 1921. E é nesse prédio que o Gabinete Português de Leitura segue em atividade até os dias de hoje. A construção faz parte da série de edifícios importantes e tombados pelo Iphan na Rua do Imperador. O GPLPE é aberto ao público, diariamente, de segunda a sexta. Além de conhecer o interior do prédio, seu imponente salão nobre e as escadarias, o lugar guarda um tesouro: uma biblioteca com cerca de 40 mil exemplares, incluindo edições raras, o que torna o lugar um verdadeiro paraíso para pesquisadores e estudantes. O prédio do gabinete passou, recentemente, por um processo de restauração que teve uma importante parte finalizada há poucos meses. Segundo o atual presidente do Gabinete, Celso Stamford Gaspar, toda a fachada do prédio foi restaurada e pintada, a calçada também passou por um restauro e manteve todas as pedras portuguesas. O projeto ganhou um gradil externo. “Na verdade todos os imóveis desse quarteirão pertencem ao GPL-PE. E já estamos construindo há algum tempo um grande projeto para esses edifícios. O Real Hospital Português alugou o prédio ao lado para instalar sua Escola de Enfermagem e reformou o edifício. Nós aproveitamos o
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PAT R I M Ô N I O momento para iniciar a reforma do prédio também”, disse. Ele conta que, além da escola, o projeto para o quarteirão do Gabinete inclui a instalação de um elevador no prédio, tornando-o totalmente acessível, sem comprometer a originalidade do projeto. Está prevista a construção de um estacionamento de 60 vagas nos fundos do edifício que tenha tanto acesso à rua quanto diretamente à instituição, facilitando a chegada das pessoas ao local. Nessa parte de trás, devem ser construídas mais 10 salas. “O passo que demos vai marcar a história do GPL-PE. A partir de agora podemos projetar mais a instituição e fica mais fácil inseri-la no circuito turístico do Recife, já que é um lugar bonito e com história”, reforça Celso Stamford Gaspar. Além desse cuidado mais patrimonial, a gestão está modernizando a biblioteca adotando um novo sistema de catalogação e arquivamento de todo o acervo, incluindo as obras raras dos séculos 17, 18 e 19. E não são poucas as obras especiais que podem ser vistas por lá. Há um belo exemplar de Os Lusíadas, uma edição crítica, de 1880, comemorativa do terceiro centenário da morte do grande poeta Luís de Camões, com dedicatória ao imperador Pedro II. Em grande formato, a obra traz belas ilustrações em aço. Há ainda uma edição do clássico As pupilas do Senhor Reitor, de Júlio Diniz, sem data registrada de publicação; uma edição de 1876 de Dom Quixote de La Mancha; uma biografia de Frei Bartolomeu dos Mártires, editada em 1850; o famoso Brasília I Mauritti Historia, de Gaspar Barleus, publicada em Amsterdã, em 1647; além de material importante do grande escritor português Eça de Queiroz. A diretoria do GPL-PE está em negociação com a Companhia Editora de Pernambuco (Cepe) para
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O Salão Nobre é o grande destaque da instituição e é utilizado nas solenidades especiais
dar início ao processo de digitalização do seu acervo.
SALÃO NOBRE O Salão Nobre do Gabinete é o grande destaque do edifício. A escadaria principal conduz o visitante até o amplo salão reservado exclusivamente para solenidades importantes, ornado ao centro com um belo vitral. Todo o mobiliário do local tem estilo manuelino e é lá que estão expostas
algumas das obras do acervo da biblioteca. O salão abriga o pequeno bureau com uma antiga coleção sobre a história de Portugal, livros que deram início ao Gabinete Português de Leitura, ainda no século 19. Também podem ser vistos os registros e a hélice da primeira travessia feita por avião no Atlântico Sul, em 1922, e a primeira noturna e sem rota, em 1927. O imponente salão é palco da realização das duas principais
A biblioteca do GPL guarda cerca de 40 mil títulos. Abaixo, à esq.: Celso Stamford Gaspar, atual presidente do GPL, está comandando a revitalização e os projetos de ampliação
comemorações realizadas no gabinete. Uma delas é o Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas, comemorado em 10 de junho data da morte de Camões, sendo também este o dia dedicado ao Anjo Custódio de Portugal. Anualmente, toda a comunidade portuguesa se reúne ali para não deixar a data passar em branco. Outro momento de celebração é o aniversário do próprio Gabinete, em 3 de novembro. É lá também que todas as autoridades portuguesas que passam pela cidade são recebidas. “Já recebemos, em 2016, o presidente da República de Portugal, Marcelo Rebelo, recebemos ministros, deputados, os reitores de renomadas universidades como as de Lisboa, Porto, Coimbra. Todas as autoridades portuguesas ou de países de língua portuguesa terminam passando por aqui”, conta Celso Stamford Gaspar, lembrando que a instituição firma parcerias com países da
comunidade portuguesa. Por toda essa atividade e culto à cultura e à língua portuguesa, o GPL-PE já recebeu as mais altas condecorações dadas pelo governo português. Uma das mais recentes foi a Ordem do Infante Don Henrique, em 2016. O GPL-PE possui uma sala de exposições e um auditório que são utilizados para diversos eventos ao longo do ano, tais como mostras, recitais de poesia, cursos, lançamentos de livros e afins. Há ainda uma sala de estudos aberta ao público com capacidade para cerca de 50 pessoas, climatizada, com wifi, liberada para o uso, que conta com edições diárias de jornais pernambucanos e portugueses. No espaço é possível conferir também edições da revista Encontro (fundada em 1983), publicação do próprio gabinete que tem como intuito justamente promover o intercâmbio literário entre os países. Além do informativo A Cidade e as Serras, que veicula noticias de interesse da comunidade portuguesa.
A manutenção desse espaço tão rico culturalmente é feita pela comunidade portuguesa que zela há anos pela instituição. Os associados colaboram como podem para manter vivo no Recife um espaço com ares de Portugal. Segundo o presidente Celso Stamford Gaspar, toda reestruturação em curso tem como um dos seus objetivos buscar novas fontes de renda para a manutenção do Gabinete. E esse culto à terra natal e a toda a sua cultura tem palavra bem portuguesa que justifica. Saudade. A grande força motriz do GPL-PE é a saudade de Portugal. Como nos conta o grande poeta Fernando Pessoa, valeu a pena, sim, cruzar o atlântico. A alma não foi pequena. Valeu a pena.
Mar Português De Fernando Pessoa
Ó mar salgado, quanto do teu sal São lágrimas de Portugal! Por te cruzarmos, quantas mães choraram, Quantos filhos em vão rezaram! Quantas noivas ficaram por casar Para que fosses nosso, ó mar! Valeu a pena? Tudo vale a pena Se a alma não é pequena. Quem quer passar além do Bojador Tem que passar além da dor, Deus ao mar o perigo e o abismo deu, Mas nele é que espelhou o céu.
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GASTRONOMIA
A caldeirada de Itapissuma CRIADA QUASE SEM QUERER NO INÍCIO DOS ANOS 1980, O PRATO HOJE É UMA REFERÊNCIA CULINÁRIA DO ESTADO TEXTO MARIANA ARAÚJO | FOTOS HANS MANTEUFFEL
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e um improviso nasceu uma tradição. A caldeirada de Itapissuma, uma referência culinária de Pernambuco, foi criada meio sem querer. Isso ocorreu no início dos anos 80. Maria Irene da Silva, a Dona Irene, tinha uma barraca na beira do Canal de Santa Cruz, que separa a cidade da Ilha de Itamaracá, onde servia petiscos de peixes e frutos do mar. Um dia, um grupo de clientes veio
fazer uma comemoração já no final do expediente. Depois de servir tudo que tinha e a clientela pedindo mais, Dona Irene juntou todos os mariscos, coco ralado, manteiga e farinha de mandioca, mexendo com o caldo do cozimento. Assim nasceu a caldeirada. “Eu não quis cobrar, porque fiz com ingredientes de outros pratos. Aí os clientes disseram que tinha que botar um nome. Depois de
muita brincadeira, bati em cima da mesa e disse ‘o nome desse prato é caldeirada!’”, lembra. Na semana seguinte, os clientes já chegaram pedindo a caldeirada. Ela passou a oferecer como uma amostra e, quem gostava, pedia mais. Hoje, aos 89 anos, Dona Irene olha para a sua trajetória com orgulho. “Tenho muito orgulho, arrumou emprego para todo mundo. Quem me pedia, eu ensinava a
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GASTRONOMIA fazer”, diz. O prato pegou fama e a sua barraca vivia cheia, a ponto de gerar conflito entre quem estava esperando. “Era tanta gente no fim de semana que eu não aguentava. Hoje, vem gente de todo o Brasil e do mundo comer a caldeirada”. Pouco tempo depois, a barraca deixou de existir quando a prefeitura organizou os comerciantes e criou o Centro Comercial Jaime Ferreira do Rego, com boxes de alvenaria. Há 24 anos, Dona Irene deixou de estar à frente do negócio. Ela passou o comando para o filho, Alberto Luiz da Silva, de 47 anos. “Quando ela me disse que ia vender o box porque ia se aposentar, eu disse que isso não podia acontecer. Ela me ensinou a fazer a caldeirada e eu toquei o negócio. Mas ela não acreditou que eu ia durar. Me deu seis meses para desistir”, afirma Alberto, conhecido entre os clientes como Goiaba. Ele morava em Aracaju e veio assumir o negócio da família, que ajudou Dona Irene a sustentar os 16 filhos que teve, de dois casamentos. Hoje, oito estão vivos. Dona Irene vive atualmente em Igarassu, morando com familiares. Já tem tataranetos e se diverte fazendo fuxico, aquelas trouxinhas de tecido que, costuradas, lembram uma flor. “Eu não sou fofoqueira, sou fuxiqueira”, diz, brincando. Vaidosa, recebeu a reportagem do Cremepe e só aceitou fazer foto depois que trocou de roupa. O preparo da “Caldeirada Irene” leva ostra, sururu, marisco, filé de siri, filé de aratu, camarão, arraia e, quando está na época de pesca, lagosta. Depois de lavados, os mariscos são cozinhados separadamente. Em seguida, é feito o molho verde, com tomate, cebola e coentro. Leva-se tudo para uma panela grande com coco ralado e farinha de mandioca. Todos os
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produtos são comprados a pescadores da região. “Hoje, Itapissuma é conhecida como a cidade da caldeirada”, diz Alberto. “Me sinto muito feliz em ver o que minha mãe fez com o nome dela. Várias pessoas ganham o seu sustento hoje com a caldeirada, o prato criado pela minha mãe, servido em outros bares”, acrescenta. No seu box, a caldeirada para duas pessoas custa R$ 65,00; para quatro pessoas é R$ 70,00 e para seis pessoas sai por R$ 80,00. Vem acompanhado com arroz branco e pirão. Nos fins de semana de verão, os mais lotados, Alberto chega a servir até 200 pratos de caldeirada. “Adoro o que faço, foi a
Lidiane já ganhou festival gastronômico com sua receita
Espaço abriga restaurantes que servem o prato no cartão postal da cidade. Abaixo: Alberto toma conta da tradição criada pela mãe, Irene
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GASTRONOMIA Dona Irene, a criadora do prato que ficou famoso
melhor coisa que aconteceu na minha vida. Só estudei até a 4ª série, mas aprendo muito com os meus clientes”, pontua. Uma dessas pessoas que Dona Irene ensinou a receita é a comerciante Lidiane Pereira da Silva, de 39 anos. Ela tem um box no centro comercial e trabalha há 10 anos no local. Dona Irene fala com muito carinho da “pupila”. “Ela me chama de minha rainha e eu a chamo de minha princesa”, diz Dona Irene. O carinho é retribuído. “Ela me ensinou bastante”, afirma Lidiane. Depois de ficar à frente de um bar por dois anos e meio, a comerciante foi para os boxes e aprendeu a receita.
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O preparo da “Caldeirada Irene” leva ostra, sururu, marisco, filé de siri, filé de aratu, camarão, arraia e, quando está na época de pesca, lagosta. Depois de lavados, os mariscos são cozinhados separadamente
“Procuro trabalhar com a caldeirada mais completa possível”, diz. A sua receita leva polvo, siri mole, lagosta, arraia, siri, camarão e sururu. Em 2011, Lidiane ganhou o Festival Gastronômico de Itapissuma. Pouco tempo depois, participou de um festival gastronômico promovido pelo Senac na cidade de Goiana. O desafio era preparar o prato na hora. “Sou muito feliz fazendo o que faço. Tenho minha clientela boa e sempre estou fazendo o melhor para o cliente”, afirma. O prato da caldeirada é servido para três pessoas (R$ 60,00) e para cinco (R$ 100,00). Num fim de semana, são cerca de 100 pratos servidos aos clientes.
ARTE&
CULTURA
LIVROS P.36 VISUAIS P.38 MÚSICA P.39
DISCUTINDO DIFERENÇA, PRECONCEITO E BUYLLING | PÁG. 37
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LIVROS | MAR IANA ARAÚJO
FOTOS: DIVULGAÇÃO
PARA LER, FREVAR E CANTAR
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uas biografias sobre compositores que fazem parte de todos os nossos carnavais foram lançadas este ano. Maestro Duda: Uma visão nordestina e Getúlio Cavalcanti: Último regresso integram a coleção Frevo Memória Viva, da Cepe Editora. Os livros, assinados pelo autor Carlos Eduardo Amaral, são uma forma de conhecer os compositores de músicas que estão cantando e dançando. Amaral já assinou a biografia, dentro da mesma série, do Maestro Formiga (Maestro Formiga: Frevo na Tempestade) e prepara uma nova sobre Jota Michiles, que será lançado até o Carnaval de 2019. A ideia de fazer a série surgiu ao enxergar um vácuo sobre a falta de conhecimento sobre os compositores contemporâneos de frevo. Em 2017, o ritmo completou 110 anos. “Todo mundo ouve cantar, tocar e reger, mas não tem nenhuma referência básica para o público em geral, nem o meio acadêmico, nem a crítica”, afirma o autor. Apesar de contemporâneos, os dois compositores adotaram segmentos bem distintos dentro do frevo. Maestro Duda, além de ser regente de frevo e compositor, também é um dos maiores arranjadores do Brasil. Ele foi eleito um dos maiores arranjadores da MPB no século passado pela crítica do eixo Rio-São Paulo. “Ele é uma pessoa presente na maioria da discografia pernambucana nos últimos 40 anos. Como arranjador, ele teve a oportunidade de trabalhar com quase todos os grandes nomes da música pernambucana, fazendo arranjos para todo tipo de gênero que se imaginar, não apenas o frevo”, relata Amaral. Já Getúlio Cavalcanti é descrito pelo autor como o “rei” do frevo de bloco. “Em todo Carnaval, quando se ouve um bloco lírico, todo ele canta pelo menos ‘O último regresso’, de Getúlio”, afirma. Quem não conhece os versos “Falam tanto que meu bloco está dando adeus para não nunca mais sair” e que mais para frente afirma que o Recife tem “o Carnaval melhor do meu Brasil!”. Getúlio tem cerca de 200 canções lançadas. Maestro Duda: Uma visão nordestina - Cepe Editora - 160 páginas - R$ 30,00 Getúlio Cavalcanti: Último regresso - Cepe Editora - 160 páginas - R$ 30,00
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UM RETORNO À INFÂNCIA Mauricio de Sousa fez parte da infância de boa parte dos brasileiros. Com a sua Turma da Mônica, tornou-se referência de leitura para milhões de crianças no Brasil e no mundo. Se você, em algum momento foi fã dos gibis, deve ler este livro. A trajetória do desenhista que vendeu 1 bilhão de revistinhas é narrada na biografia Mauricio – A história que não está no gibi, desde a sua infância no interior paulista, onde fazia “bicos” de desenhista para anúncios de comerciantes, passando pelas primeiras publicações de tirinhas em jornais até o império que se tornou o seu nome, com o licenciamento de milhares de produtos estampados com a turminha. O último capítulo, uma carta dedicada a todos os leitores que o ajudaram a se sentir estimulado para seguir na carreira, é de ler com lágrimas nos olhos. Deixe o lenço a postos. Mauricio - A história que não está no gibi Editora Sextante - 336 páginas - R$ 49,90 O MISTÉRIO DA HUMANIDADE O livro Sapiens – Uma breve história da humanidade, de Yuval Noah Harari, professor de História da Universidade Hebraica de Jerusalém, especialista em história mundial, medieval e militar, traça a história da humanidade desde o surgimento da espécie humana até os dias atuais, através de pontos principais que ele chama de “revoluções”: a cognitiva, quando o homem se torna inteligente e percebe isso; a da agricultura, quando aprende a usar a natureza para se alimentar e criar as primeiras civilizações; e a cientifica, quando passa a dominar técnicas que nos fazem pensar que somos deuses. O autor prevê mais um passo que daremos: a extinção da raça humana nos próximos séculos. Os motivos podem ser os mais variados e já vistos nos apocalípticos filmes de ficção cientifica. Seremos destruídos pelos nossos atos, ou porque alcançaremos os poderes de deuses e o fim virá dos conflitos gerados por isso, ou porque destruiremos o meio ambiente. Sapiens - Uma breve história da humanidade Editora L&PM - 464 páginas - R$ 35,20
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CINEMA | MAR IANA OLIVE I RA
UM MENINO EXTRAORDINÁRIO
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m menino que ama viagens ao espaço e é fã do Star Wars. Sonha em entrar num foguete e chegar à lua. Além disso, gosta de tomar sorvete, andar de bicicleta, jogar Xbox e criar seu mundo Minecraft. Esse é Auggie (Jacob Tremblay) protagonista do filme Extraordinário (Wonder). Mas o que faria de um garoto típico como o descrito acima alguém extraordinário? O pequeno Auggie nasceu com alguns problemas e foi preciso que houvesse muitas intervenções cirúrgicas, 27 como ele mesmo conta no filme, para que conseguisse realizar coisas ordinárias como respirar, enxergar... Para esconder seu rosto marcado por todos esses procedimentos, ele passa boa parte do tempo com a face coberta por um capacete de astronauta. Toda a narrativa do filme gira em torno da necessidade de Auggie finalmente ir a uma escola regular. Ao longo dos anos iniciais, diante de seus problemas, a família faz a opção de mantê-lo em casa, no esquema homeschooling, tendo a mãe Isabel (Julia Roberts), como professora. Mas chega a hora de encarar a escola regular. O medo toma conta não só de Auggie, mas de todos os familiares. Numa escola típica, as diferenças são sempre motivo para conflitos. E, claro, para Auggie enfrentar esse ambiente social será bem complicado. O filme vai levantar a questão do buylling de modo muito claro, ao mesmo tempo em que vai falar de amizades verdadeiras, que florescem naturalmente. A escola e esse convívio social que usualmente é difícil para qualquer criança toma proporções maiores para Auggie. Impossível não se emocionar com o filme, com a dor da mãe que sente que está lançando seu filho aos lobos, com a leveza e irreverência do pai que busca sempre levantar o astral da família, e do amor e ciúme da irmã que se viu colocada em segundo plano depois da chegada do irmão mais novo que requer tantas atenções e cuidados. O filme emociona naturalmente, sem precisar de grandes truques melodramáticos. A sua estrutura é toda baseada em capítulos, em cada um deles vemos a história pela ótica de um dos personagens, nos apresentando perspectivas distintas. É só quando vemos, por exemplo, a história pela ótica de Via que percebemos que, por maior que seja o seu amor pelo irmão e dedicação a ele, ela sente o fato de tudo na sua casa girar em torno dele, o sol, e nunca dela. Um sentimento real e factível numa estrutura familiar como essa.
UM TOURO QUE NÃO QUERIA SER TOURO Baseado no livro homônimo, do norteamericano Munro Leaf, O touro Ferdinando publicado originalmente em 1936 e traduzido para mais de 60 idiomas, conta a história de um pequeno touro que não gostava de fazer as coisas típicas que um touro supostamente deveria fazer: correr, pular, dar cabeçadas... O que ele realmente gostava era de sentir o cheiro das flores e admirá-las. Mas o destino lhe prega uma peça e ele termina sendo lançado numa arena de touros em Madri. Num desfecho emocionante, Ferdinando termina mostrando à plateia, de modo pacífico, vale dizer, que não só de touradas vive um touro e que ele pode, sim, definir sua forma de levar a vida. Uma história linda e emocionante que mostra a necessidade do respeito às diferenças e aos desejos de cada um. Bastante pertinente em tempos de intolerância. NOVA TEMPORADA Em tempos de debate feminista a série The Handmaid’s Tale, cuja segunda temporada estreou em abril, é uma ótima escolha para refletir sobre temáticas emergentes. A série é baseada no romance da canadense Margaret Atwood, publicado em 1985. O texto já inspirou um balé, uma ópera, um filme e até uma graphic novel. A primeira temporada da série venceu oito Emmys, três Critics Choice Awards e dois Globos de Ouro. O enredo se passa num futuro distópico, numa Nova Inglaterra, que passou por um golpe teocrático, com a ascensão de regime tirânico e opressor, o Gilead, no qual homens impõem castigos brutais às mulheres, incluindo o estupro, legalizado pelo estado já que se vive uma crise de infertilidade e é preciso procriar. A atriz Elisabeth Moss (a Peggy do não menos fantástico Mad Men) interpreta June/Offred, uma mulher fértil, que, como as outras, são chamadas de handmaids e levam também o nome dos seus proprietários.
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VISUAIS | MAR IANA OLIVE I RA
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EXPOSIÇÃO REUNIU 11 ARTISTAS MULHERES
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o início de março, entrou em cartaz, na Galeria Amparo 60, a exposição A noite não adormecerá, que reúne 15 trabalhos de 11 artistas mulheres. O objetivo da curadora, Julya Vasconcelos, foi desconstruir a visão limitada de uma suposta expressividade feminina. As obras em exibição tocam em questões ligadas à violência, anarquia, crítica política entre outros, através da poética de artistas bastante diferentes entre si (Juliana Lapa, Amanda Melo da Mota, Alice Vinagre, Gio Simões, Clara Moreira, Regina Parra, Virgínia de Medeiros, Marie Carangi, Regina Galindo, Juliana Notari e de Mariana de Matos). Segundo a curadora não se trata de uma exposição que tem o feminismo como tema, mas é uma reunião de artistas mulheres que prezam pelo tensionamento do “feminino”, extrapolando seus limites e tratando de questões urgentes de maneira complexa. A inspiração para o título da mostra foi o poema A noite não adormece nos olhos das mulheres, de Conceição Evaristo, com o intuito de reforçar a ideia de emergência de se falar dessa produção. Boa parte das artistas participantes é do Recife ou vivem na cidade, como é o caso de Juliana Lapa, que entrou recentemente no casting da galeria e está apresentando trabalhos de grandes dimensões da série Breu (foto acima). De fora do estado, foram convidadas as artistas Regina Parra (SP), Virgínia de Medeiros (BA) e Regina Galindo (da Guatemala) que trazem reflexões bem fortes. A noite não adormecerá – Curadoria: Julya Vasconcelos. Galeria Amparo 60 Califórnia (Rua Artur Muniz, 82. Primeiro andar, salas 13/14) Boa Viagem, Fone: 3033.6060
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A RELAÇÃO DO HOMEM COM A NATUREZA Está em exibição, na galeria Janete Costa, no Parque Dona Lindu, a exposição Cativa [A natureza da natureza], da artista visual mineira, que mudou-se para o Recife há alguns anos, Flora Assumpção. Seu pensamento visual propõe uma reflexão crítica e estética sobre a relação do homem com a natureza e sua condição paradoxal de ser parte integrante da natureza, enquanto se crê diferente, travando uma constante disputa de forças com o natural. Trata-se de uma grande instalação (work in progress) criada em diversos materiais cotidianos retirados da indústria e de seus usos corriqueiros. É a artista quem compõe manualmente o trabalho, destacando o processo do fazer manual, algo nem sempre valorizado no cenário da arte contemporânea. Flora trabalha reproduzindo formas primordiais da natureza que se repetem tanto no corpo humano como nas máquinas de criação humana. ARTISTAS EMERGENTES Alguns dos novos talentos das artes visuais brasileiras estão reunidos na II Mostra Bienal CAIXA de Novos Artistas, em exibição na Caixa Cultural Recife. São 37obras de 30 artistas emergentes de todas as regiões do país: Bahia, Distrito Federal, Espírito Santo, Goiás, Minas Gerais, Pará, Pernambuco, Piauí, Paraná, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e São Paulo. Os trabalhos se apresentam nos mais diversos suportes, passando pelos tradicionais desenhos e esculturas até as intervenções e instalações. A temática que norteia esta segunda edição do projeto são as relações urbanas no mundo contemporâneo, algo muito debatido atualmente. Nessa discussão, gênero, raça, consumo, política, ética, meio ambiente e afirmação de direitos humanos emergem com força nas obras. Essa exposição está em itinerância por oito capitais do Brasil desde 2017. Depois do Recife, ela passará ainda por Salvador, Curitiba e Porto Alegre.
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MÚSICA | MAR IANA ARAÚJO
A PERIFERIA MOSTRA A SUA FORÇA
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C Loma pode até se tornar intérprete de uma música só, como muitos nomes que surgem a cada temporada, mas já passou por um grande teste e sobreviveu ao carnaval de 2018. O feito de Roberta Silva Santos (nome real da adolescente de 15 anos) e das duas amigas Mirella e Mariely Santos, as Gêmeas Lacração, já é de se aplaudir. Despretensiosamente, as três adolescentes gravaram uma música e um vídeo usando o celular e as próprias casas como locação. E caíram nas graças das redes sociais e da classe média que bomba os serviços de streaming. Foi após o Youtuber Felipe Neto descobrir o clipe e a visualização passou dos sete dígitos. Dias depois, foi a vez de Anitta, a musa pop da atualidade, saudar MC Loma e suas amigas gêmeas igualmente por redes socais. Não durou, claro, até que uma gravadora enxergou o trio. Outras músicas já foram lançadas, com clipes profissionais, mas sem a mesma repercussão que o hit “Envolvimento”, do carnaval – “esse hit é chiclete, na tua mente vai ficar”. MC Loma e suas amigas são de Prazeres, em Jaboatão dos Guararapes. As músicas que elas compõem, um misto de funk carioca com o tecnobrega importado do Pará e com toques das bandas que fazem sucesso no Recife, são a cara da periferia, daquelas ouvidas nos carrinhos de CDs piratas vendidos em feiras livres, que muitos já defendem como a nova e atual música popular brasileira, ao lado dos sertanejos “sofrência”. Além do hit instantâneo, o trio é responsável também pela popularização da gíria recifense em todo o Brasil. Quem ainda não ouviu falar em “escama só de peixe”? A expressão é bradada no meio das músicas. MC Loma explicou em um vídeo que circula nas redes sociais. As pessoas marginalizadas nas comunidades são conhecidas como “escamosas” e a expressão seria uma resposta a isso. Pode-se até repelir a música e o estilo das adolescentes, mas negar o conto de fadas que estão vivendo, mesmo que momentâneo, é, no mínimo, maldade.
A VOLTA DO CORDEL Uma das bandas de maior repercussão em Pernambuco na primeira década dos anos 2000, o Cordel do Fogo Encantado, anunciou que está de volta e com novo disco. A banda retoma as atividades com a sua formação original, com Lirinha (voz e pandeiro), Clayton Barros (violão e voz), Emerson Calado, Nego Henrique e Rafa Almeida (percussão e voz). O novo álbum, Viagem ao coração do sol, tem produção de Fernando Catatau. Outra novidade é que os três discos da banda - Cordel do Fogo Encantado (2001), O palhaço do circo sem futuro (2002) e Transfiguração (2006) - estão disponíveis em plataformas digitais.
UM DISCO QUE É UM MARCO O ano de 2018 fica marcado pelos 45 anos de lançamento da obra-prima The Dark Side of the Moon, do Pink Floyd. A obra vendeu 50 milhões de cópias, alcançou o recorde da revista Billboard e ficou 741 semanas consecutivas, entre 1973 e 1988 no chart de LP & Tapes. O disco foi o oitavo da banda e é considerado uma verdadeira revolução musical e estética. Canções como “Money”, “Time”, “Us and Them” e “Breathe” provam isso. Apesar da idade, o álbum continua atual e moderno na visão de especialistas e críticos. Tanto que, ainda hoje, é um dos mais vendidos da Amazon, iTunes e em diferentes formatos MP3, vinil e CD.
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HI STÓ RIA
Charge da décade de 1870 mostra o pesadelo constante. Acima, a febre amarela deixa a cidade, seguida por um cortejo
A epidemia de febre amarela
O
s médicos não sabiam o que era, o governo não sabia como controlar, a imprensa não perdoava ninguém: a trágica epidemia de febre amarela devastou o Rio de Janeiro no verão de 1850. Era uma época marcada por grandes bailes na Corte, nos quais se ostentavam o luxo e a riqueza. A economia estava em alta com o comércio crescendo intensamente. Neste ambiente de otimismo exarcebado ninguém poderia prever a intromissão de um vírus microscópico no cotidiano da população. A epidemia de febre amamrela se espalhou pelas ruas da cidade, ceifando, de acordo com as estatísticas oficiais, 4.160 vidas somente naquele ano. Dizem que a doença havia chegado por um vapor trazido da Bahia, onde tinham acontecidos muitos casos. Outros acreditavam que vinha de navios negreiros oriundos da África. Também a falta de salubridade das ruas da capital, com sua fedentina terrível, era dada como culpada. Segundo o médico da Corte, José Pereira Rego, cerca de 90 mil pessoas, mais de um terço da população carioca, foram atingidas. A imprensa responsabilizava com vigor as autoridades que, diante da pressão, convidou membros da Academia Imperial de Medicina e professores da Faculdade de Medicina do Rio para formar a Comissão Central de Saúde Pública. O órgão ficou responsável pela elaboração de um Regulamento sanitário dirigido ao combate emergencial da moléstia. Apesar de todos os esforços, somente no Rio, sucessivos e repetidos surtos de febre amarela mataram, até 1889, cerca de 28 mil pessoas, segundo relatórios do Ministério do Império. (LA)
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