Catalogação na Fonte do Departamento Nacional do Livro [Fundação Nacional do Livro]
Wanner, M.C.A, Gondim, Raoni e Almeida, Tarcisio Pó.Boi.Pedra - Percografias / org. Celeste Wanner, Raoni Gondim e Tarcisio Almeida Salvador: Ed Cian Gráfica, 2014 144p. ISBN: 978-85-60619-19-1 CDD 700 1. Arte Contemporânea; 2. Processos Criativos / I. Título
Tarcísio: A linguagem no espaço da Percografia é um veículo pós-sedente, apresentase como um meio de conectividade para que o exercício... o diálogo aconteça. É uma válvula para a alteridade, entretanto o pensamento não se atenta a ela [a linguagem], mas ao instante da manifestação, a experiência. Estamos falando de um modo de ler as coisas e não em como essa leitura se dá. Raoni: Exatamente, porque o modo já está atrelado à experiência. O modo como a pessoa lida é o corpo que aquela pessoa é; corpo-território. T: Então como ela apresenta aquilo? [Como a linguagem se configura?] Como ela apresenta é uma questão particular que independe, que é intransferível. R: É aí que entra a questão da narrativa. Ainda que a experiência seja uma coisa e a narrativa, outra, existe, a posteriori, uma experiência da narrativa. T: Dá ou sobre? R: Ambas, porque ainda que a narrativa seja uma coisa, que é posterior à experiência, há um certo atropelo, uma confusão de ordem entre elas. T: Ela precede a experiência?
O DIÁLOGO E SEUS PORQUÊS
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R: Podemos pensar que sim [mas não quer dizer que isso seja uma questão exclusivamente temporal]. Pois, o atropelamento da experiência, pela narrativa, suprime certo grau de contemplação, e nesse sentido poderíamos pensar que a narrativa seria um problema, seria um obstáculo [...]. Mas não é tão cartesiano assim, existe [ou melhor, acredito que...] a experiência da narrativa, na forma como você experiencia um livro por exemplo, nesse caso, entraria a questão de quem narra [autor?] e quem “recebe” [leitor?]. Ainda assim, ao narrar [aqui o narrar é a condição do interpretante, num âmbito imagético, a fricção entre experiência, memória, palavra-leitura e imagem; configura-se como um ato complexo, fragmentado e necessariamente fronteiriço, no sentido de que a condição do interpretante é necessariamente primeira, ele dá sentido, reinventa, atribui emoção, logo] acessamos outras coisas, e isso também seria conteúdo da experiência. T: Daí eu volto nessa ideia [...] de uma acepção equivocada entre linguagem e modo de pensamento. Porque, se a gente volta a pensar na questão dos territórios enquanto rede, lá na questão de Anne Cauquelin, né? Que a experiência do contemporâneo é essa trama de uma só rede, todos esses atravessamentos, eles se interrompem, eles se confundem, eles são coadjuvantes dentro de um mesmo plano, né? Então é a narrativa é a experiência, isso está tudo dentro de um aprofundamento horizontal, isso não tá mais dentro de uma escala [quantitativa ou qualitativa?]. T: Sim. É a existência. R: Então, é relevante pensar que você se refere à existência como um mesmo plano [...], a existência é qualquer coisa, não é um mesmo plano, mas uma infinidade de níveis [que confabulam uma] existência. T: Isso é interessante [pausa] Eu não sei se pensar na existência como um plano comum... Não perderíamos a ideia de sobreposição... R: Seria a partir dela... T: Eu não sei se essa existência, que é um plano comum, é uma sobreposição de camadas, ou é uma experiência em rede. R: Por mais que ela seja em rede, ela só se torna uma rede a partir do momento em que você toma a consciência da instância. Por que o que é a existência? É o acordar, sentir vontade, necessidade, saudades, ter que pagar uma conta, trabalhar, achar graça em algo... Isso são instâncias de realidade T: Sim, mas o que você tá propondo são essas sobreposições de camadas [realidade]. R: Sobreposições no sentido em que são níveis de sensibilidade, de sensorialidade. T: Mas isso tudo traz uma ideia de verticalização. R: Acho que é mais helicoidal. T: Mas ainda assim isso traz um movimento que vai de uma ponta e outra ponta, por mais que seja infinito. O que eu estou pensando, enquanto plano comum, é essa experiência da rede...
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R: O que é o mesmo plano? O mesmo plano na verdade é a vida...
R: Mas uma trama, ela também é sistemática, ela não é feita de pontos aleatórios. T: Mas, enquanto existência, são diversos pontos... Que se aproximam e se distanciam... R: Ela se torna uma trama pelas recorrências, por onde se criam os nódulos. T: Não é por recorrência, mas por conexão. R: Por conexão e recorrência, pontos onde as conexões são mais fortes. T: Pontos onde essas questões se aproximam. R: E criam os nódulos... T: Exatamente, mas a existência desses pontos... eles existem de forma independente, né? [o plano comum, as sobreposições são um terreno e não uma narrativa, a narrativa é uma intenção que passa a habitar o plano comum]...
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R: Sim. T: O acordar, o ir ao banheiro, ao trabalho... São pontos, mas esses pontos inteiros, eles se organizam num lugar comum, que eu estou chamando de existência. Mas o que eu estou querendo discutir com você é que talvez a imagem que isso suscite nesse gráfico, não é uma imagem acumulativa, não é de sedimentação, não é como um solo é formado, que você vai ali, período por período, e depois mede a escala quântica vertical, helicoidal que seja... Não sei mais se a percepção [do plano comum e dos nós em rede - Deligny e as linhas erráticas pode ser compreendida assim]. R: Mas ao mesmo tempo eu não sei... Acho que nem uma coisa e nem outra, acho que ela é “tridimensionalizada”, um acontecimento que é a mistura de tudo isso. T: Sim, porque isso aqui [aponta para um livro] é uma tentativa bidimensional. R: Exatamente, acho que é mais quântico... T: Eu diria que ainda é quadridimensional, tempo, espaço, volume e percepção. R: E reação. Tempo, espaço, volume, percepção e ação e reação em cima disso... mas tudo isso... É muito fácil atribuirmos qualquer coisa à experiência, tanto do mais profundo ao mais superficial e medíocre... Então é atribuir o que a gente entende por existência, que é isso, um todo, um complexo. T: Esse traçado em plano comum. Por exemplo, a Virgínia Kastrup [...] é uma das pessoas que estuda essa relação da produção de uma zona cartográfica [a aranha e a teia em Deligny], essa ideia do plano comum veio dela, ela fala que essa perspectiva cartográfica é pensar essa tentativa de traçar um plano comum como forças que conectam heterogêneos, que é exatamente isso, são forças heterogêneas, são forças que, dentro da sua microexistência, não se conectam... E ter um pensamento cartográfico é fazer essas forças, que não se conectam, criarem algum sentido naquele momento – que é na verdade o princípio curatorial de edição da publicação [referência à publicação Buracos Negros Não Têm Cabelo, editada em junho de 2014], que é, na verdade, o princípio que você estabelece quando você transpõe em linguagem a sua experiência, porque você conecta [pensou talvez na política do bom vizinho, proposta por Didi-Huberman, ao estudar a produção do historiador Aby Warburg]
diversos fatores ali, que não estão associados em tempo e espaço. R: Isso, então a cartografia seria uma transposição em linguagem. E o por quê da Percografia? Porque ela é anterior a isso, ela não tem uma preocupação em transpor. T: ... Em linguagem. Não há uma intenção em linguagem. Mas aí é quando eu falo (bafora o cigarro) que, dentro da minha experiência, o que eu vejo é um estudo equivocado da ideia da cartografia, porque eu vejo as pessoas associando isso a um modo de linguagem e não a um modo de pensamento. Porque, se você pensa que o princípio cartográfico é um elemento que vai oferecer possibilidades de percepção sobre as questões e automaticamente questões – eu quero dizer ao processo de criação restringido mais especificamente ao trabalho artístico já que estamos falando dessa instância –, ela não pode se restringir a uma linguagem, porque, se o cara trabalha só com pintura, mas ele tem um modo de perceber o processo dele enquanto um processo cartográfico de recombinação, de associação, de dilatação, nessa percepção de tempo espaço, ele é tão cartógrafo quando o que transforma tudo isso apenas numa questão de linguagem... Então, talvez pensar essa relação Deleuziana [Devir e Cartografia] dentro deste trabalho e tudo o mais, seja falar exatamente sobre essa questão. R: Mas é isso, eu acho que não precisa, porque eu parto de uma poética do caminhar. O que é uma poética do caminhar? Ela é uma representação... R: Mas, na verdade, ela está associada à experiência, e a experiência é anterior à cartografia, porque o caminhar numa perspectiva filosófica e mitológica está atrelado ao que há de mais ontológico no ser humano, que é essa mobilidade. Então, por exemplo, todos os mitos relacionados ao herói – O que é o herói? Campbell diz que ele é o homem da submissão autoconquistada, é o homem comum, aquele que se redime, aquele que tem a resiliência para seguir esse caminho da existência, desapegado. Ele passa por todos os percalços e esses percalços modificam sua percepção. Essa é a questão da filosofia, essa é a perspectiva filosófica do caminhar [a qual embasa o propósito da Percografia... Como um ato de enfrentamento], que é estar atrelado à perspectiva do homem comum. T: Eu penso que há de se ter um cuidado nesse discurso... Porque é um discurso que é manifestado em linguagem, e é a linguagem que se propõe ao diálogo [linha de frente na batalha], concorda comigo até essa parte? Porque esse discurso que estamos propondo é um discurso que se propõe ao diálogo, porque ele é feito para o outro. R: Sim, ele é aberto... T: Ele se propõe ao diálogo, e se estamos falando de linguagem, a gente chega lá no outro extremo disso tudo, que é a manifestação material disso tudo. Não de materialidade do que é palpável, mas do que se concretiza para o outro, em algum espaço de discussão, que pode ser um trabalho onde você senta e conversa com as pessoas sobre isso, ou até um trabalho que você apresenta um vídeo, ou uma fotografia, ou uma publicação... E toda essa linguagem
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T: ... Um trabalho de cartografia.
também passa por uma série de outros filtros, que são filtros da ordem da estética, porque estão na ordem da forma, concorda comigo? R: Concordo... T: Então, há de se ter um cuidado nessa discussão, que é o de não entrar também nesse campo da permissividade, da gratuidade da experiência pela experiência, e isso de entrar como um selo de validação desse espaço, dessa permissividade que eu digo que é... R: ... Dessa preocupação num tipo de edição, de um critério... T: Porque se estamos falando que vamos fazer um livro que fala sobre a experiência como linguagem, estética, como um caminho de pensamento... Não se pode esquecer que tudo vai ser organizado num suporte... R: ...Numa unidade.
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T: Então, criar um espaço de permissividade no campo da estética, que é muito perigoso... R: Dentro da existência existem nuanças, e, para mim, por exemplo, separar uma questão que é artística, científica, religiosa, filosófica, matemática, pragmática, quântica... Eu enxergo isso como instâncias de uma mesma realidade, [pausa] então, isso me traz uma noção de resiliência, uma perspectiva mais resiliente mediante as coisas, porque você passa a aceitar essas fronteiras que são cambiantes, mas que num termo crítico – que eu retomo sempre da questão filosófica do pensar sobre a existência, do refletir sobre a existência, sobre uma melhor existência, sobre uma qualidade de vida sobre essa existência, elas acabam caindo sobre essa reflexão, sobre essas fronteiras, é por isso que eu me identifico, ao retomar a perspectiva do herói em Campbell. [O herói de mil faces], ao falar sobre a barriga da baleia, que ele cita vários exemplos de mitos pelo mundo, [...] onde o homem é engolido: por uma baleia, por um lobo, pela sogra, pela vó... Isso em cultos e mitos do mundo inteiro, e o que isso significa? Significa que o homem que é engolido, ele retoma sua casa interior, é aquele homem que retoma a si mesmo num espaço puramente inconsciente, que é esse espaço do devaneio, que é esse caminho de certa forma do herói, nesse sentido da submissão autoconquistada, e aí entra essa questão da experiência em Larossa, por exemplo, quando fala que informação não é experiência, técnica não é experiência e prática não é experiência. E uma prática empírica também não é experiência. A experiência é um corpo que está fora da gente, que a gente se associa a ele, associada, por exemplo, a paixão; quando estamos apaixonados, nós queremos aquilo que está fora da gente, que não é a gente, então, a gente se liga a uma coisa que não é, nesse momento nós não somos incompletos, pela perspectiva de que precisamos de uma outra coisa, então a experiência seria essa extensão. A experiência é essa passividade, esse pathos, essa frustração, aquilo que não está completo, porque o homem completo [o que será que isso significa?], ele não passa pela experiência, e por não passar por isso, ele não está suscetível à possibilidade do erro. T: No mistério da serpente, Aby Warburg fala exatamente sobre isso, ele chama de Pathosformeln, que é a experiência do phatos, da origem que detona a questão de aproximação e distanciamento daquelas imagens que ele contingencia. [...] Ele investiga esse entre espaço,
de recorrência, ele volta pra essa ideia do pathos, como esse espaço de origem que tá imbuído na imagem, mas eu não falo de uma imagem bidimensional [polaridades amontoadas, empilhadas, emaranhadas, montadas sobre]. R: A imagem como imaginário... T: A imagem como índice [...], um índice potente de várias questões que estão ali latentes e aí eu preciso retomar a ideia da linguagem como um espaço de manifestação da materialidade. Que esse espaço de manifestação da materialidade é a corporificação desse índice e esse índice, ele tá dentro de uma questão de aproximação e distanciamento, que independe do tempo [...], o que estamos falando reconta toda essa experiência do imaginário que está em torno disso, e assim é um espaço da questão e não da afirmação. R: E aí a gente entra na questão de que o tempo é a atribuição direta da narrativa, porque você tem que organizar experiência em tempo, essa organização é uma narrativa, porque você tem que montar uma linha de início, meio e fim... T: Não sei se de início, meio e fim, mais uma linha. R: Uma linha, ainda que o início seja o meio... T: Eu ainda não estou convencido que a experiência Deleuziana não faça parte disso tudo... R: Mas ela faz...
R: Mas é que a linha aqui em questão não seria só o Devir, mais um Devaneio. Porque ela é um devaneio, porque ela vem direto do inconsciente [...] Mas, assim como Deleuze, nós estamos pensando num modo de ver a vida, então não podemos associar sempre a essa cartografia o tempo inteiro como um exemplo de algo que funciona [e não queremos cair no conforto de uma constante referencialidade que limita a capacidade de reflexão – de uma perspectiva que está aí]. T: Eu me atenho sempre a essa experiência do devir como esse espaço de conexão entre as coisas, dessa conexão que é real, que é visível e até quantificável em algumas questões, justamente para me proteger, pra que eu proteja meu espaço cognitivo desse campo da permissividade. Por que o que me faz atrair por A e não por B? Ambos são narrativas, experiência, devir, devaneio... R: Entendi... T: O que me faz atrair por A e não por B? Por que eu gosto de A e não gosto de B? Porque no primeiro tem questões objetivas, essa cor, essa forma tipográfica, que em algum momento se acopla a minha experiência de desejos e imaginário, que B não faz isso. Pode fazer para você, e aí não é discutir um juízo de valor, mas é discutir uma coisa que existe em A e não existe em B, e que os dois tratam da mesma coisa. E o que eu digo sobre o campo da permissividade é que dentro dessas experiências subjetivas, se eu justificar tudo por essa questão (subjetiva) eu faço com que A esteja no mesmo patamar que B, que pra mim não está.
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T: Porque, por exemplo, disso tudo até agora que nós estamos falando é da narrativa como devir...
R: Concordo. E sim, é isso... e é complexo. T: Citando outro exemplo[...] a curvatura do impacto do diálogo, ou seja, se nós estamos falando que a linguagem é a materialização para o diálogo, se essa curvatura desse diálogo não é efetiva, e se nós falamos que diálogo é linguagem, e linguagem é a maneira como você materializa a narrativa da experiência. Tem uma coisa aí que faz com que ambas sejam diferentes, se não nós seríamos a mesma pessoa... R: A coisa, eu acho que antes de tudo é a experiência... [pausa] T: Mas, no campo da experiência, a gente não pode questionar o outro, eu não posso mensurar, eu não posso criar dados quantitativos a partir da experiência, porque a minha é tão válida quanto a sua, e são diferentes por natureza [seria natureza o melhor termo?] R: Mas elas são válidas exatamente porque elas são em instâncias específicas... T: Eu digo isso tudo não como uma questão de afirmação, mas como uma grande questão... R: É o paradoxo. T: Algo que sempre se instaura quando eu vejo algo.
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[pausa] E de fato, eu acho que determinadas coisas elas acontecem, elas são feitas independente da percepção de tempo e espaço. Porque a obra de Fernand Deligny só veio à tona, agora? Um cara que trabalhou durante 80 anos da vida, e aqueles desenhos foram só compreendidos dentro do campo terapêutico e agora a estética e a filosofia absorvem aquilo. Há cinco anos atrás, se pegássemos os documentos referentes à experiência com os alunos do nono ano do Capão e apresentássemos aquilo como um trabalho, o que aconteceria? [Estamos falando de um deslocamento do ponto de vista? Ou sobre as consequências de uma leitura da prática?] [...] No livro de Bourriaud, quando ele fala da ideia do homem semionauta, esse artista que conecta os signos e que é global por essência [...]. O Oiticica já estava falando dessa experiência e intervenção urbana [desse espaço de relacionamento e do deslocamento dessas forças “não artísticas” em “artísticas”], e que hoje ainda é tema de uma bienal, por exemplo. O que também já traz outras coisas, porque quando você pega uma perspectiva dessa e coloca dentro de um espaço [atualização e recombinação], ocorre uma espécie de co-criação. Então, eu fico pensando sobre essa linguagem... [confuso, seria toda atividade convertida em linguagem o espaço do poder e de enunciado? Ou o Agir e Fazer discutido por Pál Pelbart ao falar do Deligny?] R: Dessa vastidão, o que, para mim se torna cada dia mais imprescindível, é traduzir [ou transcriar?] esses “Issos”... Que estejam vinculados, em sua essência, a um sistema de sensações apreendidas nesses instantes percográficos. Uma coisa que seja simples e passível...
I. O homem errou a pedra. A pedra acertou o homem.
III. Água se viu na pedra. Pedra sorriu. IV. Águas passam. Pedras permitem. V. Águas transbordam. Pedras permitem. VI. Águas caem. Pedras permitem. VII. Tamanho de pedra, encontro das águas. VIII. Águas sobre pedras. Água entre pedras. IX. O quando das águas, só as pedras sabem.
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II. O homem se impõe às águas. A pedra se dispõe.
A experiência, a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos toque, requer um gesto de interrupção, um gesto que é quase impossível nos tempos que correm: requer parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar, e escutar mais devagar; parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar os outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço. Até aqui, a experiência e a destruição da experiência. Vamos agora ao sujeito da experiência. Esse sujeito que não é o sujeito da informação, da opinião, do trabalho, que não é o sujeito do saber, do julgar, do fazer, do poder, do querer. Se escutamos em espanhol, nessa língua em que a experiência é "o que nos passa", o sujeito da experiência seria algo como um território de passagem, algo como uma superfície sensível que aquilo que acontece afeta de algum modo, produz alguns afetos, inscreve algumas marcas, deixa alguns vestígios, alguns efeitos. Se escutamos em francês, em que a experiência é "ce que nous arrive", o sujeito da experiência é um ponto de chegada, um lugar a que chegam as coisas, como um lugar que
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recebe o que chega e que, ao receber, lhe dá lugar. E em português, em italiano e em inglês, em que a experiência soa como "aquilo que nos acontece, nos sucede", ou "happen to us", o sujeito da experiência é sobretudo um espaço onde têm lugar os acontecimentos.
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Em qualquer caso, seja como território de passagem, seja como lugar de chegada ou como espaço do acontecer, o sujeito da experiência se define não por sua atividade, mas por sua passividade, por sua receptividade, por sua disponibilidade, por sua abertura. Trata-se, porém, de uma passividade anterior à oposição entre ativo e passivo, de uma passividade feita de paixão, de padecimento, de paciência, de atenção, como uma receptividade primeira, como uma disponibilidade fundamental, como uma abertura essencial. Vamos agora ao que nos ensina a própria palavra experiência. A palavra experiência vem do latim experiri, provar (experimentar). A experiência é em primeiro lugar um encontro ou uma relação com algo que se experimenta, que se prova. O radical é periri, que se encontra também em periculum, perigo. A raiz indo-europeia é per, com a qual se relaciona antes de tudo a ideia de travessia, e secundariamente a ideia de prova. Em grego há numerosos derivados dessa raiz que marcam a travessia, o percorrido, a passagem: peirô, atravessar; pera, mais além; peraô, passar através, perainô, ir até o fim; peras, limite. Em nossas línguas há uma bela palavra que tem esse per grego de travessia: a palavra peiratês, pirata. O sujeito da experiência tem algo desse ser fascinante que se expõe atravessando um espaço indeterminado e perigoso, pondo-se nele à prova e buscando nele sua oportunidade, sua ocasião. A palavra experiência tem o ex de exterior, de estrangeiro, de exílio, de estranho e também o ex de existência. A experiência é a passagem da existência, a passagem de um ser que não tem essência ou razão ou fundamento, mas que simplesmente "ex-iste" de uma forma sempre singular, finita, imanente, contingente. Em alemão, experiência é Erfahrung, que contém o fahren de viajar. E do antigo alto-alemão fara também deriva Gefahr, perigo, e gefährden, pôr em perigo. Tanto nas línguas germânicas como nas latinas, a palavra experiência contém inseparavelmente a dimensão de travessia e perigo. O sujeito da experiência, se repassarmos pelos verbos que Heidegger usa neste parágrafo, é um sujeito alcançado, tombado, derrubado. Não um sujeito que permanece sempre em pé, ereto, erguido e seguro de si mesmo; não um sujeito que alcança aquilo que se propõe ou que se apodera daquilo que quer; não um sujeito definido por seus sucessos ou por seus poderes, mas um sujeito que perde seus poderes precisamente porque aquilo de que faz experiência dele se apodera. Em contrapartida, o sujeito da experiência é também um sujeito sofredor, padecente, receptivo, aceitante, interpelado, submetido. Seu contrário, o sujeito incapaz de experiência, seria um sujeito firme, forte, impávido, inatingível, erguido, anestesiado, apático, autodeterminado, definido por seu saber, por seu poder e por sua vontade. Se a experiência é o que nos acontece, e se o sujeito da experiência é um território de passagem, então a experiência é uma paixão.
A paixão funda sobretudo uma liberdade dependente, determinada, vinculada, obrigada, inclusa, fundada não nela mesma mas numa aceitação primeira de algo que está fora de mim, de algo que não sou eu e que por isso, justamente, é capaz de me apaixonar. Se a experiência é o que nos acontece e se o saber da experiência tem a ver com a elaboração do sentido ou do sem-sentido do que nos acontece, trata-se de um saber finito, ligado à existência de um indivíduo ou de uma comunidade humana particular; ou, de um modo ainda mais explícito, trata-se de um saber que revela ao homem concreto e singular, entendido individual ou coletivamente, o sentido ou o sem-sentido de sua própria existência, de sua própria finitude. Por isso, o saber da experiência é um saber particular, subjetivo, relativo, contingente, pessoal. Se chamamos existência a esta vida própria, contingente e finita, a essa vida que não está determinada por nenhuma essência nem por nenhum destino, a essa vida que não tem nenhuma razão nem nenhum fundamento fora dela mesma, a essa vida cujo sentido se vai construindo e destruindo no viver mesmo, podemos pensar que tudo o que faz impossível a experiência faz também impossível a existência.
A experiência tem sempre uma dimensão de incerteza que não pode ser reduzida.
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Se o experimento é genérico, a experiência é singular. Se a lógica do experimento produz acordo, consenso ou homogeneidade entre os sujeitos, a lógica da experiência produz diferença, heterogeneidade e pluralidade.
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PRIMEIRA PARTE DEUS/ PARS PRIMA: DEO
DEFINIÇÕES 3. Por substância compreendo aquilo que existe em si mesmo e que por si mesmo é concebido, isto é, aquilo cujo conceito não exige o conceito de outra coisa do qual deva ser formado. 4. Por atributo compreendo aquilo que, de uma substância, o intelecto percebe como constituindo a sua essência. 5. Por modo compreendo as afecções de uma substância, ou seja, aquilo que existe em outra coisa, por meio da qual é também concebida. 6. Por Deus compreendo um ente absolutamente infinito, isto é, uma substância que consiste de infinitos atributos, cada um dos quais exprime uma essência eterna e infinita. Explicação. Digo absolutamente infinito e não infinito em seu gênero, pois podemos negar infinitos atributos àquilo que é infinito apenas em seu gênero, mas pertence à essência do
que é absolutamente infinito tudo aquilo que exprime uma essência e não envolve qualquer negação. 7. Diz-se livre a coisa que existe exclusivamente pela necessidade de sua natureza e que por si só é determinada a agir. E diz-se necessária, ou melhor, coagida aquela coisa que é determinada por outra a existir e a operar de maneira definida e determinada. 8. Por eternidade compreendo a própria existência, enquanto concebida como se seguindo, necessariamente, apenas da definição de uma coisa eterna. Explicação. Com efeito, uma tal existência é, assim como a essência da coisa, concebida como uma verdade eterna e não pode, por isso, ser explicada pela duração ou pelo tempo, mesmo que se conceba uma duração sem princípio nem fim.
AXIOMAS 1. Tudo o que existe, existe ou em si mesmo ou em outra coisa.
3. Da uma causa dada e determinada segue-se necessariamente um efeito; e, inversamente, se não existe nenhuma causa determinada, é impossível que se siga um efeito. 4. O conhecimento do efeito depende do conhecimento da causa e envolve este último. 5. Não se pode compreender, uma por meio da outra, coisas que nada têm de comum entre si; ou seja, o conceito de uma não envolve o conceito da outra. 6. Uma ideia verdadeira deve concordar com o seu ideado. 7. Se uma coisa pode ser concebida como inexistente, sua essência não envolve a existência.
PROPOSIÇÕES Proposição 2. Duas substâncias que têm atributos diferentes nada têm de comum entre si. Demonstração. [...] o conceito de uma não envolve o conceito de outra. Proposição 3. No caso de coisas que nada têm de comum entre si, uma não pode ser causa de outra. Proposição 4. Duas ou mais coisas distintas distinguem-se entre si ou pela diferença dos
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2. Aquilo que não pode ser concebido por meio de outra coisa deve ser concebido por si mesmo.
atributos das substâncias ou pela diferença das afecções dessas substâncias. Proposição 7. À natureza de uma substância pertence o existir. Demonstração. Uma substância não pode ser produzida por outra coisa. Ela será, portanto, causa de si mesma, isto é, a sua essência necessariamente envolve a existência, ou seja, à sua natureza pertence o existir. Escólio 1. Como, na verdade, ser finito é parcialmente, uma negação e ser infinito, uma afirmação absoluta da existência de uma natureza, segue-se, portanto, simplesmente pela proposição. 7, que toda substância deve ser infinita.
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Escólio 2. [...] A definição verdadeira de uma coisa não envolve nem exprime nada além da natureza da coisa definida. Disso se segue que: 2. Nenhuma definição envolve ou exprime um número preciso de indivíduos, pois ela não exprime nada mais do que a natureza da coisa definida [...] Mas como [...] à natureza de uma substância pertence o existir, sua definição deve envolver sua existência necessária e, como consequência, sua existência deve ser concluída exclusivamente de sua própria definição. Mas, de sua definição, não pode se seguir a existência de várias substâncias. Proposição 9. Quanto mais realidade ou ser uma coisa tem, tanto mais atributo lhe competem. Proposição 31. Um intelecto em ato, quer seja finito, quer seja infinito, tal como a vontade, o desejo, o amor etc., deve estar referido à natureza naturada e não à natureza naturante. Demonstração. Por intelecto, com efeito (como é, por si mesmo, sabido), não compreendemos o pensamento absoluto, mas apenas um modo definido do pensar, o qual difere dos outros, tal como o desejo, o amor etc. Portanto, ele deve ser concebido por meio do pensamento absoluto, isto é, por um atributo de Deus que exprima a essência eterna e infinita do pensamento, de maneira tal que sem esse último ele não pode existir nem ser concebido. Por isso, ele deve estar referido à natureza naturada e não à natureza naturante, o mesmo ocorrendo com os demais modos do pensar.
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SEGUNDA PARTE: A NATUREZA E A ORIGEM DA MENTE/ PARS SECUNDA: DE NATURA ET ORIGINE MENTIS
AXIOMAS 3. Os modos de pensar tais como o amor, o desejo, ou qualquer outro que se designa pelo nome de afeto do ânimo, não podem existir se não existir, no mesmo indivíduo, a ideia da coisa amada, desejada etc. Uma ideia, em troca, pode existir ainda que não exista qualquer outro modo de pensar. 5. Não sentimos nem percebemos nenhuma outra coisa singular além dos corpos e dos modos do pensar. PROPOSIÇÕES Proposição 1. O pensamento é um atributo de Deus, ou seja, Deus é uma coisa pensante.
Escólio. [...] Com efeito, quanto mais coisas um ente pensante pode pensar, mais realidade ou perfeição concebemos que ele contém. Portanto, um ente que pode pensar infinitas coisas, de infinitas maneiras, é, em sua capacidade de pensar, necessariamente infinito. Como, pois, considerando apenas o pensamento, concebemos um ente infinito, então o pensamento é, necessariamente, um dos atributos de Deus, tal como queríamos demonstrar. Proposição 3. Existe necessariamente, em Deus, uma ideia tanto de sua essência quanto de tudo o que necessariamente se segue dessa essência. Demonstração. [...] ele pode formar uma ideia de sua essência e de tudo o que necessariamente dela se segue [...] Não confundir a potência de Deus com a potência ou a jurisdição humana dos reis. Proposição 7. A ordem e a conexão das ideias é o mesmo que a ordem e a conexão das coisas. Demonstração. Com efeito, a ideia de qualquer coisa causada depende do conhecimento da causa da qual ela é o efeito. Corolário. Segue-se disso que a potência de pensar de Deus é igual à sua potência atual de agir.
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Demonstração. Os pensamentos singulares, ou seja, este ou aquele pensamento, são modos que exprimem a natureza de Deus de uma maneira definida e determinada. [...] O pensamento é, pois, um dos infinitos atributos de Deus, o qual a essência eterna e infinita de Deus, ou seja, Deus é uma coisa pensante.
Escólio. [...] Tudo o que pode ser percebido por um intelecto infinito como constituindo a essência de uma substância pertence a uma única substância apenas e, consequentemente, a substância pensante e a substância extensa são uma só e a mesma substância, compreendida ora sob um atributo, ora sob o outro [...] sempre que considerarmos as coisas como modos do pensar, deveremos explicar a ordem de toda a natureza, ou seja, a conexão das causas, exclusivamente pelo atributo do pensamento. E, da mesma maneira, enquanto essas coisas são consideradas como modos da extensão, a ordem de toda a natureza deve ser explicada exclusivamente pelo atributo da extensão. Proposição 8. As ideias das coisas singulares não existentes, ou seja, dos modos não existentes, devem estar compreendidas na ideia infinita de Deus, da mesma maneira que as essências formais das coisas singulares, ou seja, dos modos, estão contidas nos atributos de Deus.
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Corolário. [...] e, quando se diz que as coisas singulares existem, não apenas enquanto estão compreendidas nos atributos de Deus, mas também enquanto se diz que duram, as suas ideias envolverão também a existência, razão pela qual se diz que elas duram. Escólio. [...] O círculo, como se sabe, é de tal natureza que os retângulos compreendidos pelos segmentos de duas retas que se cortam no seu interior são iguais entre si. No círculo está contida, portanto, uma infinidade de [pares de] retângulos iguais entre si. Não se pode, entretanto, dizer que qualquer deles exista a não ser à medida que o círculo existe, como tampouco se pode dizer que a ideia de qualquer desses [pares de] retângulos exista a não ser à medida que está compreendida na ideia de círculo. Suponha-se agora que, dessa infinidade [de pares] de retângulos, só dois existam, a saber, E e D. Nesse caso, é certo dizer que as suas ideias existem, não apenas à medida que estão compreendidas na ideia de círculo, mas também à medida que envolvem a existência desses [dois pares de] retângulos, o que faz com que elas se distingam das outras ideias dos outros [pares de] retângulos. Proposição 9 – Demonstração. A ideia de uma coisa singular, existente em ato, é um modo singular do pensar, e um modo distinto dos demais [...] Portanto, tem Deus por causa, apenas enquanto ele é uma coisa pensante. Mas não enquanto Deus é, absolutamente, coisa pensante, e sim enquanto é considerado como afetado de outro modo de pensar, do qual Deus é igualmente causa enquanto afetado de outro modo do pensar, e assim até o infinito. Ora, a ordem e a conexão das ideias é o mesmo que a ordem e a conexão das causas. Logo, a causa de uma ideia singular é outra ideia, ou seja, Deus enquanto é considerado afetado de outra ideia, da qual ele é igualmente a causa, enquanto afetado de outra ideia ainda, e assim até o infinito. Demonstração. De tudo o que acontece no objeto de uma ideia, existe a ideia de Deus, não enquanto ele é infinito, mas enquanto é considerado como afetado de outra ideia de uma coisa singular. Mas a ordem e a conexão das ideias é o mesmo que a ordem e a conexão das
coisas. Portanto, o conhecimento do que acontece num objeto singular existirá em Deus, enquanto ele tem a ideia desse objeto. Proposição 10 – Escólio. Não existem duas substâncias da mesma natureza. Como, por outro lado, podem existir vários homens, o que constitui a forma do homem não é, portanto, o ser da substância. Proposição 11. O que, primeiramente, constitui o ser atual da mente humana não é senão a ideia de uma coisa singular existente em ato. Proposição 13. O objeto da ideia que constitui a mente humana é o corpo, ou seja, um modo definido da extensão, existente em ato, e nenhuma outra coisa. Demonstração [...] Logo, o objeto da ideia que constitui a mente humana é o corpo, e o corpo (pela prop. 11) existe em ato. Ademais, como não existe nada de que não se siga algum efeito, se, além do corpo, existisse ainda outro objeto da mente, deveria necessariamente existir em nossa mente a ideia desse efeito. Logo, o objeto de nossa mente é o corpo existente, e nenhuma outra coisa. Lema 1. Os corpos se distinguem entre si pelo movimento e pelo repouso, pela velocidade e pela lentidão, e não pela substância. 28
AXIOMAS Axioma 2. Definição. Quando corpos quaisquer, de grandeza igual ou diferente, são forçados, por outros corpos, a se justaporem, ou se, numa outra hipótese, eles se movem, seja com o mesmo grau, seja com graus diferentes de velocidade, de maneira a transmitirem seu movimento uns aos outros segundo uma proporção definida, diremos que esses corpos estão unidos entre si, e que, juntos, compõem um só corpo ou indivíduo, que se distingue dos outros por essa união de corpos. Axioma 3. Quanto maiores ou menores são as superfícies mediante as quais as partes de um indivíduo, ou seja, de um corpo composto, se justapõem, tanto mais ou menos dificilmente, de maneira respectiva, elas podem ser forçadas a mudar de posição e, como consequência, tanto mais ou menos dificilmente pode-se fazer com que esse indivíduo adquira outra figura. De acordo com isso, direi que são duros os corpos cujas partes se justapõem mediante pequenas superfícies; que são moles, por sua vez, os que se justapõem mediante pequenas superfícies; e que são fluidos, enfim, aqueles corpos cujas partes se movem por entre as outras.
POSTULADOS
1. O corpo humano compõem-se de muitos indivíduos (de natureza diferente), cada um dos quais é também altamente composto. 2. Dos indivíduos de que se compõe o corpo humano, alguns são fluidos, outros, moles, e outros, enfim, duros. 3. Os indivíduos que compõem o corpo humano e, consequentemente, o próprio corpo humano, são afetados pelos corpos exteriores de muitas maneiras. 4. O corpo humano tem necessidade, para conservar-se, de muitos outros corpos, pelos quais ele é como que continuamente regenerado.
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5. Quando uma parte fluida do corpo humano é determinada, por um corpo exterior, a se chocar, um grande número de vezes, com uma parte mole, a parte fluida modifica a superfície da parte mole e nela imprime como que traços do corpo exterior que a impele. Proposição 17. Se o corpo humano é afetado de uma maneira que envolve a natureza de algum corpo exterior, a mente humana considerará esse corpo exterior como existente em ato ou como algo que lhe está presente, até que o corpo seja afetado de um afeto que exclua a existência ou a presença desse corpo. Escólio. Vemos, assim, que pode ocorrer que, muitas vezes, consideramos como presentes coisas que não existem. É possível que isso se deva a outras causas. Entretanto, para mim, é suficiente ter mostrado uma única causa, que me permita explicar por que isso ocorre, e é como se eu tivesse indicado sua verdadeira causa. Não creio, entretanto, ter me afastado muito da verdade, pois todos os postulados que adotei não contêm praticamente nada que não seja estabelecido pela experiência, da qual não nos é lícito duvidar, após termos demonstrado que o corpo humano existe tal como o sentimos. Além disso, compreendemos claramente que é a diferença entre, por exemplo, a ideia de Pedro, que constitui a essência da mente do próprio Pedro, e a ideia do corpo humano, as quais envolvem tanto a natureza do corpo humano quanto a natureza dos corpos exteriores. Em segundo lugar, digo que essa concatenação se faz segundo a ordem e a concatenação das afecções do corpo humano, para distingui-la da concatenação das ideias que se faz segundo a ordem do intelecto, ordem pela qual a mente percebe as coisas por suas causas primeiras, e que é a mesma em todos os homens. Compreendemos, assim, claramente, por que a mente passa imediatamente do pensamento de uma coisa para o pensamento de uma outra que não tem com a primeira qualquer semelhança. Proposição 19. A mente humana não conhece o próprio corpo humano e não sabe que ele
existe senão por meio das ideias das afecções pelas quais o corpo é afetado. Demonstração. A mente humana, com efeito, é a própria ideia, ou o conhecimento do corpo humano, ideia que existe em Deus, enquanto ele é considerado como afetado de outras ideias de uma coisa singular. Ou ainda, como o corpo humano depende de muitos outros corpos, pelos quais ele é como que continuamente regenerado, e como a ordem e a conexão das causas, essa ideia existirá em Deus, enquanto ele é considerado como afetado das ideias de muitas coisas singulares. Deus tem, assim, a ideia de corpo humano, ou seja, conhece o corpo humano, enquanto é afetado de muitas outras ideias e não enquanto constitui a natureza da mente humana, a mente humana não conhece o corpo humano. Entretanto, as ideias das afecções do corpo existem em Deus, enquanto este constitui a natureza da mente humana, ou seja, a mente humana percebe essas afecções e, consequentemente, percebe o próprio corpo humano, e percebe-o como existente em ato. É, portanto, apenas enquanto tal que a mente humana percebe o próprio corpo humano.
TERCEIRA PARTE
DEFINIÇÕES 2. Digo que agimos quando, em nós ou fora de nós, sucede algo de que somos a causa adequada, isto é, quando de nossa natureza se segue, em nós ou fora de nós, algo que pode ser compreendido clara e distintamente por ela só. Digo, ao contrário, que padecemos quando, em nós, sucede algo, ou quando de nossa natureza se segue algo de que não somos causa senão parcial. 3. Por afeto compreendo as afecções do corpo, pelas quais sua potência de agir é aumentada ou diminuída, estimulada ou refreada, e, ao mesmo tempo, as ideias dessas afecções. Explicação. Assim, quando podemos ser a causa adequada de alguma dessas afecções, por afeto compreendo, então, uma ação; em caso contrário, uma paixão. Postulados. 2. O corpo humano pode sofrer muitas mudanças, sem deixar, entretanto, de preservar as impressões ou os traços dos objetos e, consequentemente, as mesmas imagens das coisas.
***
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A ORIGEM E A NATUREZA DOS AFETOS/ DE ORIGINE ET NATURA AFFECTUUM
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[...]
Deixe-me fazer o oposto. Vou assumir que a evolução ocorreu e quero indagar sobre a natureza da homologia. Perguntemos o que determinado órgão é segundo a luz da teoria evolucionária. O que é uma tromba de elefante? O que é ela filogeneticamente? E o que a genérica diz que ela é? Como você sabe, a resposta é que a tromba do elefante é seu “nariz”. (Mesmo Kipling sabia disso!) Coloquei a palavra “nariz” entre aspas porque a tromba está sendo definida por um processo interno de comunicação no crescimento. A tromba é um “nariz” por um processo de comunicação: é o contexto da tromba que a identifica como um nariz. O que fica localizado entre dois olhos e ao norte de uma boca é um “nariz”, e ponto final. É o contexto que determina o significado, e deve certamente ser o contexto receptor que fornece significado para as instruções genéticas. Quando chamo aquilo de “nariz” e isso de “mão” estou transcrevendo – ou transcrevendo errado – as instruções de desenvolvimento no organismo em crescimento, e transcrevendo o que os tecidos que receberam a mensagem imaginaram que ela significa.
Existem pessoas que prefeririam definir narizes de acordo com sua “função” – a de cheirar. Entretanto, se vocês decifrarem essas definições, chegarão ao mesmo lugar utilizando um contexto temporal em vez de um espacial. Vocês vinculam um significado ao órgão, encarando-o como se ele executasse um dado papel, em sequências, de interação entre a criatura e o meio ambiente. Chamo a isso de contexto temporal. A classificação temporal corta transversalmente a classificação espacial de contextos. Em embriologia, entretanto, a primeira definição deve ser sempre em termos de relações formais. A tromba fetal não pode, em geral, cheirar nada. A embriologia é formal. Deixe-me ilustrar um pouco mais essa espécie de conexão, esse padrão de ligação, citando uma descoberta de Goethe. Ele ordenou o vocabulário da anatomia macroscópica comparativa das plantas florescentes. Ele descobriu que uma “folha” não é satisfatoriamente definida como “uma coisa verde plana” ou “caule” como uma “coisa cilíndrica”. A maneira de encarar a definição – sem dúvida, nas profundezas dos processos de crescimento da planta, é dessa maneira que a coisa é conduzida – é observar que os brotos (isto é, pequenos caules) se formam nos cantos das folhas. Partindo daí, o botânico constrói as definições com base nas relações entre caule, folha, broto, canto, e assim por diante. “Um caule é o que carrega folhas.” “Uma folha é o que tem um broto num canto.”
Tudo isso é – ou deveria ser familiar. O próximo passo, entretanto, talvez seja novo. Existe uma confusão paralela no ensino de línguas que nunca foi corrigida. Linguistas profissionais hoje em dia podem saber o que é o quê, mas as crianças no colégio ainda aprendem tolices. Ensinam a elas que o “substantivo” é o “nome de uma pessoa, lugar ou coisa”, que um “verbo” é “palavra de ação”, e assim por diante. Quer dizer, elas são ensinadas em uma tenra idade que a maneira de se definir uma coisa é pelo o que ela supostamente é em si mesma, e não através de sua relação com outras coisas. Quase todos podemos nos lembrar de termos aprendido que um substantivo é “o nome de uma pessoa, lugar, ou coisa”. E podemos lembrar o completo aborrecimento de analisar orações. Hoje, tudo isso deveria ser mudado. As crianças poderiam aprender que um substantivo é uma palavra que tem uma determinada relação com um predicado. Um verbo tem uma certa relação com um nome, seu sujeito, e assim por diante. A relação poderia ser usada como base para a definição, e qualquer criança poderia então ver que existe alguma coisa errada com a frase “ir é um verbo”. Lembro-me do tédio de analisar frases e o aborrecimento posterior, em Cambridge, ao aprender anatomia comparada. Os dois assuntos, como eram ensinados, eram tortuosamente
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“Um caule é o que foi uma vez um broto naquela posição.”
irreais. Poderíamos ter aprendido alguma coisa sobre o padrão que liga: que toda comunicação necessita de um contexto, que sem contexto não há significado, e que contextos fornecem significados porque existe classificação de contextos. O professor poderia ter argumentado que crescimento e diferenciação devem ser controlados pela comunicação. A estrutura da entrada deve conter um análogo gramatical porque toda anatomia é uma transformação de material de mensagem que deve ser contextualmente formada. Finalmente, formação contextual é somente outro termo para gramática.
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Assim voltamos aos padrões de ligação e à proposição mais abstrata, mais geral (e mais vazia) de que, realmente, existe um padrão de padrões de ligação.
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MARIA Cresci trabalhando lá nas Angélicas, era longe. Ia pegar macela, palmito, no tempo em que podia [...] A gente logo foi sofrido, ia pra Serra, a gente pegava aquelas bananas finas, descascava, capeba, bredo e colocava na lata, quando a gente chegava lá em cima, naquela Serra, não tinha farinha... Era antes de ensinar a gente a plantar. A gente ralava aquela mandioquinha fininha no ralo, tínhamos um forninho e de 15 em 15 íamos torrar aquela farinha no forninho e enchia uma meia lata daquelas de casa e passávamos como Deus queria. [...] comendo godó e farinha [...] O lugar mais longe que eu fui andando foi o Paty, isso tem uns 10 anos [...] Fui apanhar macela. E há 35 anos eu tenho este pôr do Sol maravilhoso, até de manhã cedo. 6 horas da manhã eu já acordei, mas meu marido Genésio acorda primeiro que eu e prepara um chá de capimsanto e erva cidreira e giranda e me leva na cama. Giranda é boa pra pressão, pra acalmar a pessoa. O capão surgiu com o garimpo. Porque muitos não tinham nada, aí ia pro garimpo e pegavam o mosquitinho (pedra pequena). Meu marido era garimpeiro andou pegando uns diamantes fininhos, mas desistiu porque é muito difícil. Ele garimpava no Palmitá e ficava semanas por lá e eu ficava aqui com os sete filhos na casa da minha tia Lôra. Ia com a filharada todinha pra lá. Nunca fui pro garimpo.
Eu fico muito por aqui, na Vila eu vou quando tem reza na igreja e nas festas, que é quando eu vou ajudar a cozinhar pra festa de São Sebastião. Eu adoro cozinhar. [...] Eu pego a jaca nova e ponho numa vasilha de água com sal por causa do visgo, aí depois descasco pico e cozinho na água pra não ficar preta. Depois, refogo com os temperos verdes e aí tá pronta. Misturo na massa, ou no pastel ou come com arroz.
GENÉSIO Nós que construímos aqui, eu e Maria. A estrutura de madeira, candeia ou madeira roliça de mato mesmo. O lugar que eu fui mais longe aqui na chapada, andando, foi pelo garimpo... Assim perto de Lençóis. Andei muito por estas terras. Trabalhei no garimpo por 20 anos. Era moderno e trabalhava para o garimpo. Mas não ganhei muito dinheiro com o garimpo não, era um trabalho de vida muito difícil.
MARIA
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Antigamente, nós íamos debaixo dos pés de jaca pra derrubar aquelas jaquinhas novas, ou então as jacas com os gomos... e achávamos uma beleza. Pegava e furava a jaca no meio e com pau espetávamos duas ou três jacas e vinhamos com aquele pau nas costas. Cortava os gomos, bem cortadinho e fritava com temperos e o caroço da jaca de vez, cozinhava e ralava pra fazer a farinha pra engrossar. Fritava na banha com aqueles temperos todinhos e colocava a farinha pra engrossar, era a coisa mais gostosa do mundo. Agora é difícil, só faço assim quando pedem de encomenda. E o que eu mais gosto é a torta de palmito de jaca... Desde pequena, o que eu mais lembro é da jaca, com 12 anos eu já trabalhava pra ajudar em casa.
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Tudo inundado. Tudo. Tapetes. Almofadas encharcadas. Pés de mesa. Pé de sofá completamente banhado. Cesto de lixo do banheiro a ensaiar o Lago dos Cisnes na sala de estar. Copa e cozinha mer-gu-lhadas. Talheres, panos de prato, copos plásticos, potes e baixelas a boiar em gavetas e armários. Torneira a jorrar violentamente. Pia a compor cascata. Queda d’água a alimentar o chão. Córrego a seguir pela área de serviço ao encontro da rua. Lago a animar papéis de bala, bitucas de cigarros e santinhos. E Narciso ali, atônito. Perplexo com o alagamento que corria de dentro pra fora. Fazia apenas duas semanas que ele tinha trocado o calor da sua cidade natal pela frieza daquela grande metrópole. Uma xícara com chá de rooibos e uma robusta confiança lhe garantia o sono naqueles primeiros dias. Porém, a melodia e o aroma fresco daquelas águas ludibriaram os sonhos. Horas depois, Narciso despertou. Acompanhado da sede, desceu as escadas rumo à cozinha e se deparou com uma manhã líquida e assombrosa. Narciso temeu as águas. Desesperado, correu pra desligar o registro. Buscou um rodo e arranhou, arranhou, arranhou. Raspou todo o líquido pra fora de casa. Exausto, apoiou as costas no azulejo frio. Reparou o chão. Sentiu desassossego. Chorou. Tentou encaixar as gavetas no compartimento ainda úmido. Sem êxito, ligou pra um marceneiro. Parou. Sentou. Esperou. Seus assombros pesaram mais que o remorso por provocar inundação justo em período de racionamento. Arcaria com todo o prejuízo. Pagaria a conta com a SABESP – pensou. Afundou em si. Interrogou o silêncio: Água corrente nos arrasta pra frente ou pra trás. Corrente de água liberta ou aprisiona. Respirou fundo. Olhou mais uma vez pro chão. Imerso, Narciso permaneceu à espera. Seus dedos dos pés repeliram o tapete gelado. O homem do conserto, não vem.
Mas essa noite era de muitas lições.
O que me esqueci de perguntar era se você também queria calma quando veio para cá.
O estudo da linguagem demonstra.
Uma boa caminhada queima caloria e acaba com o estresse. Para quê você quer calma? Remoção médica. Ermelina fingiu-se estar tão surpreendida que olhou de boca entreaberta. Namastê. Sem limite para a internação. O homem se revolveu no escuro. Cinco voluntários. Raciocínio de retrocesso.
O que nas trevas os pássaros haviam percebido a acidez da aurora. Escangalhavam-se as pilhas. O mundo político. Consultas, exames e internações clínicas e cirúrgicas. Depende. Coleta seletiva. A vida é uma festa. Como eu podia suportar? Boas caminhadas descarregam adrenalina.
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A RESPOSTA
Prova de formalidade.
Outro símbolo tinha sido por estocado
Fique, precipitou-se ela com dureza.
Às 11:00 horas.
Para raciocínio de retrocesso de novo
O amor é o calor de quem aquece.
Quero falar.
Namastê
Vamos dissolver a organização.
A prioridade é o motor da aprendizagem.
Consulte seu médico.
Melhorar o que já foi feito.
Equívoco não discernível.
E este vai e vem de atitudes.
Altivo agradeceu com o nariz.
Solte suas feras.
Não! Disse então depressa e implorante.
Mas vai além.
Mas tinha passado as rosas.
Não contava com o tempo e o coração da moça.
Indecisas.
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As mais terríveis. Solte suas feras, Ele se lembrou dela. Os vitimados fugiram. Com a grande chuva a natureza. Quem tem saúde tem tudo. Para as noites brumosas. Não vá sonhar outra vez com ela Lembrar do diário de bordo. Ordem alfabética. Perto de mim Verificar cartão e livro do usuário. Made in China. Doações convenientes.
Até agora somos cinco voluntários. Uma boa limpeza. Tronco sob os quadris. Estamos quase prontos. Ele está chorando! Disse o defunto na lapela. Juscilene? Outros idiomas Vitória Lembrar Oferecer a uma mãe. Alcançar a melhora do que já foi feito. Uma boa limpeza Nada é mais importante do que a sua saúde. Estrelas eram com ele
Do semear depende uma boa colheita
Passa algum tempo
Coleta seletiva
Nesse ínterim o que aconteceu
Balaio de pipocas
Um criado
Mostre a mão direita
Doenças infectocontagiosas
Este folheto contém informações resumidas
Renata fez uma lista
Ainda mais seguras
No sinistro
A manifestação cultural do Brasil
Bem vejo como se poderá levar longe este último ponto
A vida é um livro
Pitoresco
Antártida
Nenhum
Corpo amoroso
Solte suas feras
A violência não faz mais do que aumentar o tráfego
Da minha história
A banda de uma coisa Folhas simples Faltam alguns detalhes As surpresas da paixão Momento presente Urgências emergentes Lembrar o parto da nacionalidade e a entrada da modernidade Recém-nascido Morte Degas voltou para a França
Conferências maçantes Um rebuliço Sérias divergências Estou chorando porque não estou com fome Na infância, mas hoje gosta de tudo. Ele estava com fome Blackout Um dia de jantar Um meio de comunicação voltado para a civilização. D’baixo do aqueduto Elas que se danem Como eram os particulares detalhes da sua
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A largueza do mundo, alargar penosamente em seu peito
Já foi feito
vida
Seria isso mesmo?
Sagacidade
Vai assumir configurações bastante específicas
A caçar e melhorar Receosa Na verdade
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Aceitar as mais bizarras deformações de seus reais
Ia começar a história Eu e o Dr entramos no carro Entre asa cabeças Mas onde andarão?
Vestibular ou mofar
Saúde
Aline é recebida com ferro
A injúria equilibrou-me
Tomava cada período
Confira
Uma gratidão
Ela adivinhara
Mas era modesto demais
Oceania
Estimulado pelo abandono
Mas vai além
Pois é! Disse ele em elegância
Mas foi só de noite
National Geographic
Nitroglicerina pura
Um transmissor, um telefone ou um tocadiscos.
Normalmente muito dos benefícios
Acomodação para acompanhante em caso de hospitalização O mal estava na terra Dois meses se passaram sem novidade alguma
Diante da comissão Ama aquele que muda contra o destino Bomba Sem limites Reconstrução do mundo
E dessa vez com a linguagem dos outros
Fez brilhar
E o dono pregava um cadeado
No campo das profundezas
No dia seguinte
Diante do eterno
Tive de acomodar a gravura
Teto baixo
Em consequência
A via ainda
Aparelho feito em casa contendo um cristal de galena
Qualquer trepidação fazia com que se perdesse. O retorno
Um rebuliço extraordinário
Explicava na carta
Poesia x versos e prosas
Não deveríamos passar de um grande treinamento
Passagem de ida e volta Nesse intervalo amanheceu Embaixo da casa Buraco aberto pela agulha Livre escolha Permitiram os carpinteiros Enquanto o homem lutar pelo poder O lado do tapete Era quase um suplício chinês
O mundo Abusado Europa Durante suas viagens Outros idiomas As pessoas que o encontravam Olhem para si mesmos S.O.S Às cegas, embora e tendo como bússola apenas a intenção
Assistência 24 horas Quer fazer de mim um coração no meio do caminho Assim passei alguns dias Com a mesma potência Da garganta sagrada da Kunderim Alimentação da dieta Não importa. Seis meses Amor no escuro Eu me sentia pequeno Primeiros raios de sol Até que chegasse de novo ao instante em que o grande equívoco uma vez se dera provocado a vastidão inútil mundo Com o tempo A idade do serrote A linha reta Um casal passava abraçado Voltas de um amor
Mirando
Deu pronto
Através da rede
Fechou?
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A ideia ganhava terreno
Sofrer a mais uma grande comoção
Portanto, ao receber esse desafiante convite, algumas questões vieram à minha mente: o que realmente vem a ser a leveza? Quando é que algo nos parece leve ou quando nos sentimos leves? Sentir-se leve, pode ser uma condição de liberdade? Liberdade do pensamento Durante muitos anos, cultivei o sonho de conhecer um determinado lugar. Muito desse desejo veio por meio da obra de alguns escritores, poetas e naturalistas, que lá viveram, no século XIX. Como clássicos da literatura desse gênero, seus textos são repletos de imagens que levam o leitor ao devaneio, proporcionando viajar por essas paisagens imaginárias, vivas apenas em nossos pensamentos.
CONVITE À LEVEZA
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Há alguns anos atrás, talvez não fosse possível aceitar o convite para escrever sobre a leveza da semiótica, pois para que um assunto seja considerado leve, é preciso que haja intimidade e a compreensão associada à experiência. Enquanto estamos envolvidos com o processo de aprendizagem, certamente todos os nossos esforços estão voltados para algo que nos é novo e dirigido, guiado pela razão e não pelo sentimento livre. Somente depois de dominar esse conhecimento, e com a experiência advinda dele, é que podemos passar a pensar na criação, na improvisação.
Imaginava essa paisagem em sua diversidade; nas estações do ano. Nas mudanças de cores nas árvores; na neve que cobria tudo de branco até a primavera, e nos verões ensolarados. Alguns desses autores também narravam, com o uso de uma linguagem figurada, a experiência de suas longas caminhadas, o que veio a se constituir em tratados sobre a filosofia da natureza, associando o seu encantamento com o reino espiritual à divindade da natureza e do espírito caminhante. Partes desses textos convidam o leitor a contemplar os fenômenos naturais – como um pôr e um nascer do sol –, com a existência da espiritualidade na contemplação. Nessas ilustrações narrativas [paisagens], a caminhada não é apenas uma ação com deslocamento físico. É possível caminhar enquanto se contempla a natureza. Difícil não sonhar com um lugar bem longe dos burburinhos dos homens e mais perto de uma linguagem tal como a dos pássaros. A experiência narrada por outra pessoa jamais poderá competir com a experiência de estar no próprio lugar. Como imagens mentais, elas não são fixas, mudam a cada instante; são efêmeras e brincam com toda a liberdade que os pensamentos vagos permitem. Na maioria das vezes, como nos sonhos e nas fantasias, elas surgem e desaparecem, são evanescentes e esvoaçavam livremente... Também como os pássaros. 54
Representação de imagens O contato com as fotografias silenciosas e fixas desse lugar, por serem representações figurativas, são índices e se esgotam em seus devidos suportes, não indo além de uma imagem impressa. (Ainda que a imagem nos leve a uma experiência, não se volta desse devaneio com as bochechas coradas do sol). Depois de muitos anos, das imagens intramentis que fazem parte do nosso imaginário e da ilusão – mas que também podem ser consideradas reais enquanto existentes em si mesmas - viajo até esse lugar. Com enorme ansiedade e expectativa, não há tempo para juntar tudo o que foi imaginado. Ali me encontro e não percebo. Perco-me na estrada, mesmo tendo lido numa placa a direção. A estrada de asfalto, larga, repleta de carros dá indícios de que estou numa área de turismo, em pleno verão. De longe, avisto vasta extensão de água, mas ainda procuro por trilhas de terra e floresta, montanhas isoladas.
O sol de meio-dia lava as cores da paisagem. Aceito que é assim esse lugar e me ponho a caminhar, desviando-me do grupo de pessoas, com a esperança de encontrar um lugar paradisíaco, aquele narrado e descrito por tantos poetas. Não posso negar a beleza do lugar, mas também sinto o peso do real; daquilo que existe e que eu não posso mudar. Não posso fazer com que ele seja igual ao que sempre imaginei, nem posso mudar sequer a posição de uma árvore; retirar banhistas da água. Por fim, toco as árvores frondosas que ainda existem. Elas são muitas. Ando descalça; sinto a textura da terra nos meus pés; respiro o ar que emana da mata e a brisa que vem da água; molho meus pés e as minhas mãos nessas águas. Vejo tudo com os meus próprios olhos e apreendo o espaço através do meu próprio corpo.
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Sem interesse em passar mais do que duas horas nesse lugar, sinto que uma história ali se encerra. Diferentemente do que havia lido, entendo que esse lugar já não faz parte do espírito do século XIX, um tempo em que essa área era isolada, realmente longe do burburinho dos homens, e caminho de volta sobre um solo, com a certeza de que ele possui muitas histórias, mas o que eu contemplo, nesse momento, é um ícone e um símbolo, seu nome encerra toda uma história de Natureza e liberdade, Walden Pond. Então, a leveza se encontra na sutileza dos sentimentos, do efêmero. Da experiência, o encontro com tudo aquilo que não podemos mudar, do que chamamos de real. Daquilo além das imagens mentais, das imagens impressas, da saudade de um momento irretornável ou da sensação de um sentimento habitado somente em nossas paisagens internas, é a realidade contida durante todo esse trajeto. Tudo nasce, cresce, multiplica, em processo de semiose.
é mais linear – dissolveu-se na zero-dimensionalidade. Esta imagem é a imagem de um “tempo” amorfo, que não nos permite formular mais um conceito de começo, meio e fim. Esta é a pós-história. O “tempo” tem hoje duas dimensões significantes: a objetiva e a subjetiva – a material e a imaterial; ou, em outras palavras, a dimensão da história e a da memória. O “tempo” histórico é o da linearidade dos acontecimentos, e o “tempo” memorial é o da permeabilidade dos acontecimentos. A entropia é, portanto, o limite do “tempo” objetivo, e a morte a do “tempo” subjetivo...
Enquanto sentava ali, após ter lido essas palavras, e ao observar o tom azulado daquele momento, minha mente saiu vagando... ao passo que meus pensamentos começaram a se fundir aos conceitos daquele pequeno texto, comecei a pensar sobre a morte e organismos. Este vagar, eventualmente me guiou a um pensamento tentativo: a morte de um organismo, sendo ao mesmo tempo objetiva e subjetiva, seria, portanto, um ponto final? Um fim? Será que poderíamos ir além desta imagem? E ao passo em que penso mais sobre isso, sinto que sim, é possível ir além, mas somente se trocarmos nosso foco de interesse. Tentarei explicar: hoje, seria perfeitamente possível formular o conceito de que o verdadeiro objetivo da vida é a entropia, e não o oposto. Ou, em outras palavras: sem decadência orgânica, não haveria vida na Terra. A vida depende da decadência. Toda vida existe para que seja decomposta, servindo então de combustível para uma nova vida. Um organismo morto, inerte, na verdade, pulsa cheio de vida até que esteja completamente decomposto. Recentemente, pesquisas
O TEMPO IMEMORIAL
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O “tempo” é hoje um abismo. Nossa imagem do tempo se modificou. O “tempo” é hoje, mais uma vez, permeável. Não
sobre a decomposição da matéria orgânica demonstraram que, durante o processo de decomposição, os átomos que constituíam aquele organismo são reciclados e retornam, como parte integrante de novos organismos vivos. Ou seja: átomos são reciclados constantemente. Portanto, todos os átomos que formam nosso organismo, hoje, já passaram por diversos outros organismos, durante a história da Terra. Átomos permeiam o tempo. Poderia, então, o objetivo da vida ser a morte? Um paradoxo? Enquanto sentava ali, após ter lido essas palavras, e ao observar o tom azulado daquele momento, ainda não conseguia me lembrar de onde teria lido aquele texto. A única coisa que tinha em mãos eram fragmentos de anotações copiadas em uma letra de mão frenética, sem nenhuma referência; nenhuma indicação de onde as havia encontrado, originalmente. Isso me deixou perplexo, durante alguns momentos, enquanto aquele tom de azul se transformou em amarelo. E ao continuar sentado neste mesmo lugar, agora imerso neste tom amarelado, inerte aos movimentos do universo ao meu redor, minha mente começa a vagar novamente, e ainda sobre o mesmo assunto.
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Seria possível, então, imaginar que nossos corpos contêm átomos que já foram parte de diversos outros organismos, tais como dinossauros, peixes, plantas etc.? É interessante brincar com essa imagem, na qual átomos não só permeiam através da barreira das espécies, mas também, e com maior significância, a barreira do tempo. Mas, e quanto às barreiras dimensionais? Poderiam os átomos que estão agora no meu corpo também integrar outros organismos, em diferentes dimensões? Teoricamente, sim. Essa imagem me detém por alguns instantes. Agora, imagino átomos viajando não somente através da linha horizontal do tempo, mas também através da linha vertical da escala dimensional. Nenhuma barreira. Nada fixo. É uma ideia estonteante. O resultado, na minha mente, é a imagem do tempo como algo amorfo e caótico. E nesta visão do tempo como campo zero-dimensional, tanto o tempo objetivo como o subjetivo dissolvem-se um no outro. No entanto, do ponto de vista subjetivo, ainda tenho a experiência do tempo, de forma linear: o que vivi de acordo com os anos e com a sequência dos eventos. Mas após os eventos terem migrado para a minha memória, o tempo linear se desmancha novamente. Para mim, a imagem do tempo memorial, como um “campo”, é a mais adequada. Porque, na minha memória, após o seu desmanche linear, o tempo não é mais apenas fluxos ou processos, mas também agrupamentos, amálgamas, misturas, e seus reversos. Aquilo que vivi aos quatro anos de idade se mistura com aquilo que vivi ontem e ainda aquilo que projeto como possíveis vivências futuras. O tempo objetivo impõe-se a mim, mas o tempo subjetivo não só parte de mim, mas está sujeito a mim, ou seja, eu o crio e descrio, ao sabor do momento. Portanto uma questão: objetivamente, será que o tempo existe? Outro paradoxo? Agora, sentado aqui, observando o tom avermelhado do momento, minha mente retorna mais uma vez àquelas palavras iniciais. E agora que penso mais sobre isso, será que elas poderiam ter vindo de minha própria mente? Poderia imaginar-me tendo escrito aquelas linhas? Sim, definitivamente, posso imaginar, mas não consigo me lembrar.
arredondado como um globo, um mapa-múndi. O resto é um pergaminho já escrito”. Michel Onfray, 2009.
The Piper at the Gates of Down é o título do primeiro álbum da banda britânica Pink Floyd, lançado em agosto de 1967 (véspera da eclosão das barricadas de 68, em Paris). Até hoje, sempre acreditei que em lugar do r houvesse um s: The Pipes at the Gates of Down – os tubos/os cachimbos e não o flautista. Talvez de algum modo associasse o cachimbo – os tubos, as conexões – a Magritte, acreditando encontrar assim um modo caminhante de promover uma quebra de contrato com o realismo. O cachimbo, as tubulações – fumaça em cores, sangue azul, as rótulas dos joelhos servindo a sola dos pés, o túnel. Aproveitava as faixas do álbum para olhar os relevos do papel grafado em braile, avançar com o pincel nos espaços em branco, escrever/manchar/rastrear.
AT T H E G AT E S O F D O W N
na carne, pelas horas do ventre materno,
THE PIPER
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“Ninguém se torna nômade impenitente a não ser instruído,
O pontilhado da escrita em braile, os tons em aquarela, a frase (repetida em centenas de folhas: Você olha para o umbigo e pensa nos bueiros, na escavação subterrânea feita por forasteiros), o título (que vem de caput, cabeça) adulterado, o s no lugar do r como se numa espécie de mutação genética, o branco do papel, seu formato quadrilátero recheado de sinuosidades espiraladas, a gramatura das folhas, sua opacidade tátil roçável, a montagem do conjunto numa recombinação infinita de peças, linhas, cores, posições. Corpo. Corpus. Seja r ou seja s, ainda que desnecessário, o descolamento é quase inevitável: a frase não conduz ao traçado da aquarela, que não envia ao pontilhado do que está escrito em braile, que não remete aos arranjos do primeiro álbum da banda britânica e muito menos ao seu idioma – ainda que, de algum modo, tudo se conecte aqui, através de um cruzamento de tubos e conexões invisíveis. A circularidade desta marca preta mínima demarcada por uma letra, posicionada apenas como sinalização espacial neste breve atalho semovente, súbito me faz pensar que à medida que sou lançada às cores da escrita, em vez do suíço Magritte, eu poderia estar falando com o russo Kandinsky – ou seria Leonilson, com suas linhas naïfs, autobiograficamente imprecisas? Kandinsky misturava as cores em acordes musicais, distanciando-se da figuração, da forma pura, como se estivesse plainando. Talvez a germinação da cor em cada pincelada pedisse um ritmo, anunciasse um vulto cromático, ou melhor, a exuberância de uma “percografia” específica – indecifrável “a olho nu”, discernível apenas às lâminas dos pés de barro e xisto.
Como um galho que acaba de ser podado, a primeira pilha de papéis que encontrei estava a ponto de ser removida do balcão de entrada para a sala de repicagem. A qualidade do papel e a ilegibilidade dos relevos, chamou-me a atenção. Perguntei algo à funcionária, que informou que naquele calhamaço estava contida a programação cultural de cada mês, a qual, por haver chegado o último dia, deveria ser destruída e substituída por outra. Toquei o papel, circulei sobre a disposição dos pontilhados, senti a velocidade do vento agitando os calhamaços e parei. De alguma maneira, aqueles signos indecifráveis pontilhados em branco conduziam-me aos círculos pretos dos dados de Mallarmé, às paredes de taipa de pilão das casas do interior, às cicatrizes de barro nas paredes de pau a pique. O sertão. A deserção. Intrigada por aqueles grafismos (para mim) ilegíveis, busquei um modo de acumular ainda mais folhas. Descobri, então, numa escola municipal, novas pilhas também destinadas ao
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Enquanto um cego atravessaria os relevos do texto passando por cima das cores, da frase ainda húmida escrita em alfabeto latino, nós mergulhamos na tinta e nos tons da planície, sem decifrar o teor do entorno montanhoso. Ambos refreados por alguma cegueira, cientes de que jamais ninguém está/estará apto a compreender tudo de todo, que embora o olhar possa captar as escalas de profundidade da paisagem, suas formações e deformações podem ser percebidas apenas no roçado. Pois, enquanto ia arando entre os pontilhados, grafando a mesma combinação de caracteres em cada folha, as letras iam se repetindo como desenho no papel e como vibração sonora na memória.
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descarte. Nesse acúmulo (que já conta com mais de 500 folhas) comecei a intervir com diferentes tipos de tinta. Até que a frase – guardada há meses – emergiu das gavetas junto com o aquoso da aquarela. Você olha para o umbigo e pensa nos bueiros, na escavação subterrânea feita por forasteiros. Enquanto grafava, pensava no que me seduzia tanto naqueles pontilhados, no que parecia se esconder por debaixo, no que poderia estar do outro lado do muro, em volta de casa, nas estações de ferro abandonadas, nos calabouços, nas matas, nos morros, nos becos, nas torres… Lembrei-me então da anedota contada por Andrea Tonacci, em uma fala na Mostra Cinema de Garagem, em Fortaleza. Dizia Tonacci que durante as gravações de Serras da Desordem, se deparou com um problema: não sabia como dar início à sequência de abertura do filme – uma das mais importantes e emblemáticas em toda a sua filmografia. Para pensar um modo de resolver os impasses surgidos até então, ele improvisou um lanche e foi passar o dia na locação escolhida, no meio da floresta. A sequência tratava do assassinato da família do índio Carapirú, protagonista do filme. Tonacci deixou-se ficar por horas, observando os entroncamentos, as tramas, as trilhas, as texturas... até que encontrou um rastro de verde sobre o verde, em diferentes tonalidades e ramificações. Seguiu o rastro e deparou-se com uma pedra de anos atrás, outro lugar, só que ali, no mesmo espaço-tempo. Dizia Tonacci que a pedra estava envolta em um lodo exuberante carregado de um certo brilho. Ao tentar removê-la, uma parte do solo onde estava encaixada cedeu e uma torrente de água começou a jorrar. Ficou a olhar a torrente com muito entusiasmo: naquele instante, o plano se resolveu: a invasão sobre os índios se daria como aquele jorro. De imediato começou a podar alguns galhos e a posicionar a câmera para captar a vinda dos homens fardados… De fato, não basta pensar a pedra no meio do caminho, sua interposição e resistência, mas também a insurgência que se dá no que ela, quando removida, desvela e afeta. Sobre a pedra, em O homem e a Terra, Eric Dardel nos diz:
<< A consistência age de modo absoluto na pedra, no rochedo, na escarpa: ‘antes de tudo, a pedra é’. Ela é o existente por excelência, aquilo que resiste e subsiste, aquilo em que se tropeça e que nos suporta. É uma qualidade diretamente experimentada, à qual se estendem todos os seres pelo endurecimento. A pedra é um acontecimento em si própria e uma possibilidade para os outros seres. Certas línguas têm um verbo significando ‘tornar-se pedra’. A pedra tem um significado que ultrapassa a noção mineralógica que nós temos. Ela provém de alguma coisa: entre os aranda da Austrália, as pedras são os ancestrais visíveis no território dos descendentes, signos sensíveis de uma perpetuidade, onde os vivos são a manifestação ‘atual’. Assim essas pedras e esses rochedos são os mitos incorporados ao torrão natal (terroir), onde a dureza (durus) não é mais que a duração (durare) tangível. Aquilo que parece mais distante da vida contém e manifesta sem dúvida uma presença viva. >>
“A pedra é um acontecimento em si própria e uma possibilidade para os outros seres”. Nada que esteja no mundo se distancia da apreensão humana. A própria distinção entre orgânico e inorgânico foi antes incorporada por nós, diluída, mas não desmanchada – e por isso em
constante transmutação ambiente-bios. Em Stalker, de Andrey Tarkovski, a coloração exegética da pedra é retomada de outra maneira, ainda que também – e inevitavelmente – em consideração ao corpo. Aqui, o cineasta trata esse atravessamento de perspectivas transitando entre a citação de um poema de seu pai, Arseni Tarkovski (1907-1989) e os diversos episódios adaptados da obra Roadside Picnic, dos irmãos Strugatsky. << Deixa que tudo o que foi planejado se torne realidade. Deixa-os acreditar... Deixa-os rir de suas paixões. Porque o que eles chamam paixão não é um tipo de energia emocional, mas a fricção entre suas almas e o mundo exterior. O que é ainda mais importante: deixa-os acreditar neles mesmos. Deixa que permaneçam desprotegidos como crianças, porque a debilidade é algo grande, enquanto a força não é nada. Quando nascemos somos débeis e flexíveis. Quando morremos somos duros e insensíveis. Quando uma árvore está crescendo, ela é terna e dócil, mas quando se torna seca e dura, ela morre. A dureza e a força são companheiras da morte. O vigor da existência se manifesta através do dócil e do flexível. O que se torna duro não pode vencer. >>
Além da pedra em Dardel e em Tarkovsky, não poderíamos nos esquecer de Drummond, (ainda que) a meio do caminho. Carlos nos devolve ao obstáculo, à remoção: de fato, mesmo em sua condição inerte, o objeto inanimado pode vir a se interpor, crescer como barreira à passagem de um corpo, à construção de seu campo de visão. Mas a pedra pode ainda, se considerada em sua força de duração e resistência, resguardar outra operação vivente, outra perspectiva expandida, como se cada corpo guardasse um raio de alcance temporal, uma inacessível e inegociável diplomacia que, ainda assim, serve ao convívio. Entretanto, que convívio? Onde as quatro quinas de uma encruzilhada convergem para um canteiro? Quando o caminho começa? Quando ele estaca, emperra, termina? O flautista do álbum clássico da psicodelia dos sessenta fala de gnomos e contos de fadas, a partir de uma fábula onde um rato e uma toupeira buscam um animal perdido, o que os conduz a uma experiência religiosa. Logo sou levada a pensar em Pã, metade homem, metade carneiro; mas também no conto folclórico do flautista de Hamelin. Incumbido de afastar os ratos que infestavam a cidade alemã, o flautista cumpre com o prometido, hipnotizando os ratos com sua flauta. Entretanto, por não haver sido devidamente recompensado, o flautista decide se vingar, exilando desta vez as crianças da cidade. Muitas delas desaparecem, conseguindo escapar apenas três: uma cega, que se perde pelo caminho, uma surda, que não ouve a flauta e uma deficiente, que perde as muletas pelo caminho. O que nos
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Uma possível tradução para Stalker é “o espreitador”, “aquele que se esgueira”. Um atravessador de mundos, de muros, alguém que guia o outro para outro de si. O filme foi rodado em zonas abandonadas de usinas radioativas da Estônia. Três dos atores principais e alguns dos integrantes da equipe de produção morreram poucos anos depois, em razão de tumores, possivelmente originados da exposição às instalações industriais. A transposição de mundos e alteridades às vezes pode ser demasiado drástica. A dureza da pedra pode vir a colar-se no corpo da ideia e descobrir a morte. A flexibilidade da carne pode vir a tornar-se tão rarefeita a ponto de plasmar tumores. São muitos os caminhos e as velocidades da caminhada.
leva a pensar que assim como a salvação das pedras está em seu permanente esquecimento, sua incapacidade de obedecer a sinais exteriores, no caso da fábula, a deficiência das crianças é a condição capaz de desvirtuá-las dos comandos do flautista, fazendo com que elas escapem de seu jugo encantador através de uma manobra do acaso, de algo contingencial. Deste modo, assim como o pluriverso inacessível das pedras, a alteridade descoberta pelas crianças na continuação de seus caminhos-desvios, ao contrário daquela conduzida pelo flautista, jamais poderá ser deduzida por nós, enquanto espectadores distantes.
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Em vez de seixo – pedra arredondada, ornamental –, xisto – rocha metamórfica com a propriedade de dividir-se em finas lâminas; em vez de espaço geométrico – homogêneo, neutro – espaço geográfico – modelagem, cor, densidade. Acima de qualquer suspeita, a permanência das pedras é cúmplice da perecibilidade da carne. Húmus – homem. Você olha para o umbigo e pensa nos bueiros, na escavação subterrânea feita por forasteiros. O axis mundi (em latim “centro do mundo”, “pilar do mundo”) é um símbolo ubíquo que opera em vários lugares ao mesmo tempo, representando no mais das vezes o encontro entre o céu e a terra, por meio da indicação do espaço que vira a funcionar como o do omphalos (na mitologia grega, este era o nome da pedra deixada por Zeus no centro do mundo), umbigo, ponto de partida. Considerando o fato de que o axis mundi é uma ideia que perpassa diversas imagens concretas no acontecimento de uma mesma carga simbólica, muitos lugares acabam ocupando o centro do mundo ao mesmo tempo – dentre os mais conhecidos temos o oráculo de Delfos, o Monte Olimpo, a Esplanada das Mesquitas, o Monte Sinai, o Monte das Oliveiras, o Calvário (Gólgota), Meca, Kunlun, Ararat, Huayna Picchu, Corcovado, Monte Fuji, Monte Nebo, Monte Kailash, Song Shang, Etna, a Montanha Croagh Patrick... de modo que é o afastamento e a direção que definem a situação. Se no axis mundi a simbologia dos povos entrecruza céu e terra, pensamento e corpo, aqui, em nosso arquipélago, por onde transita a figura de alguém à espreita, que se esgueira, o mineral se confunde com a debilidade de uma criança, desafia as ondas dos sons da flauta, e apresenta as muitas curvas de um sistema tubular entrevisto, por onde crescem unhas e cabelos. Tubulações enterradas/tubulações aparentes: sistemas de conexão. O mineral dos cabelos embaraçados, as calçadas desmanchadas em cascalho, a ponta do grafite em sinuosidades neobarrocas/barrosas, a tampa dos bueiros, o clandestino, o citadino, o ilegítimo, o esquecido, o rio e a árvore, o pastor e o camponês, a montanha e a estepe, o lobo e o homem: omphalos, o umbigo. Do ponto de vista da eternidade, a geografia triunfa e a história não é mais que espuma. Em Caymmi, o mar não deixa de ser povoado de corais.
Nesse intervalo, existe apenas uma vaga possibilidade de acepção tanto da equação da identificação imaginária – alienação especular – necessária para o surgimento do eu, como do sujeito do inconsciente – fruto da inscrição da linguagem. Segundo Jacques Lacan, o eu é uma entidade imaginária em direção à qual um corpo, até então fragmentado, se antecipa e se aliena, ao recorte especular inicialmente fornecido pelo olhar da mãe e, posteriormente, circunscrito pela linguagem. Lacan utiliza-se do esquema óptico para demonstrar justamente esse processo de alienação especular através do qual o eu será constituído. De forma sucinta, o corpo está aí representado pelo vaso e as pulsões pelas flores. As imagens dos objetos reais refletidas no espelho côncavo criam, em um ponto específico, no espelho plano, uma ilusão de óptica, onde vaso e flores comparecem enquanto unidade. Esse ponto específico remete justamente ao recorte especular investido pelo olhar do Outro materno, que delimita uma unidade corporal. O infans, a criança situada neste intervalo pré-linguagem, é caracterizado exatamente pela impossibilidade de se utilizar da língua corrente – na qualidade de código compartilhado – para nomear a si e a suas experiências, internas e externas. Apenas a partir da aquisição da
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Em um momento primevo do processo de constituição do sujeito, ou da formalização do aparelho psíquico, há um intervalo potencialmente interessante para o diálogo com a ideia das percografias. Trata-se do período que precede a aquisição da linguagem.
linguagem torna-se possível dar sentido a seu universo de imagens, sons, afetos e sensações. A linguagem presume a inscrição de uma lei fundada desde uma perda constitutiva. Antes disso, as experiências do infans terão a característica de se situarem fora do sentido. O elemento ímpar que escapa à simbolização adquire uma dupla função: além de assegurar a própria constituição subjetiva, jamais cessará de insistir, inaugurando um primeiro esboço do sujeito do inconsciente. O sujeito do inconsciente é, portanto, cindido, portador de uma falta ante a qual lhe resta apenas a vã tentativa neurótica e impossível de, incessantemente, atribuir sentido a sua existência. I Eu
Imaginário
Sujeito
S
alíngua
Real
R
linguagem
Simbólico
S
Esse intervalo pré-linguagem, caracterizado por um período de lalação, recebeu o nome de lalangue, ou alíngua. Embora nessa etapa os registros do Simbólico e do Imaginário não estejam plenamente constituídos, o processo de inscrição dos traços mnêmicos, ou seja, de memorização, no que se refere ao aparelho psíquico, seria o mesmo. As experiências de excitação ou estimulação levam a experiências de satisfação, que grafam suas marcas de gozo na forma de traços mnêmicos. O primeiro desses traços, o traço unário, é absolutamente único e irrepresentável, como inclusive tudo que é da ordem da alíngua. Essas marcas de gozo levam a fenômenos de repetição, pois justificam sempre o retorno àquele lugar. Elas promovem o automatismo de repetição, enquanto algo que irrompe e cuja força o sujeito não possui o domínio. Naquilo que se repete na experiência subjetiva há algo da identidade do sujeito. Algo sempre vivo e atual, que nunca passa. O fenômeno da repetição interpela o sujeito como algo que não cessa de se escrever.
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Ainda que a língua compartilhada não tenha sido apreendida, o infans se encontraria, provavelmente, desde sua estadia intrauterina, imerso em um banho de significantes. Banho que, paulatinamente, ganharia complexidade – a depender de nuanças na qualidade do contato humano oferecido, ou seja, pelos outros primordiais envolvidos em seus cuidados – até a entrada na linguagem propriamente dita, com suas leis internas e sua devida ordenação do mundo.
Pcpt
Mnem Mnem
Ics
Pcs
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[Reprodução do esboço do primeiro aparelho psíquico freudiano
‒ Freud, 1895]
Rastros inomináveis de traços inscritos pela satisfação de experiências pulsionais e parciais deixam marcas em um corpo ainda experienciado como fragmentado. É apenas na medida em que se dá a construção do Imaginário que o corpo pode ser construído e percebido enquanto unidade. Ou seja, ainda que sem um corpo (registro imaginário) plenamente constituído e sem recursos simbólicos suficientes para metabolizar as experiências, traços se inscrevem e, em sua elementaridade, se atualizam das mais diversas e repetidas maneiras, de modo a confrontar o sujeito em seus recursos discursivos. O corpo, território desses traços, estaria destinado a repeti-los de novo, de novo, e de novo. Trata-se então de reconhecer o caráter inarredável de marcas que se encontram no alicerce de todo psiquismo enquanto indecodificáveis. Deparamo-nos com essas marcas toda e cada vez em que, frente a uma experiência, somos convocados por algo que simplesmente escapa a nossa capacidade de representar. O engodo situa-se justamente no impossível de se traduzir em palavras, elementos que, de maneira tão estranhamente familiar, insistem em restar enigmáticos. Segundo Lacan, em seu seminário Mais, Ainda, os efeitos de alíngua vão bem além de tudo o que o ser que fala é suscetível de enunciar. O que se sabe fazer com alíngua, ultrapassa em muito o que se pode dar conta a título de linguagem. Alíngua tem um caráter de ex-sistência, ou seja, ela ex-siste fora da linguagem. Certamente, frente àquilo que escapa ao alcance da linguagem, pode o artista fazer surgir uma resposta mais digna.
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Outra abordagem do tema da imaginação, a partir do capítulo 29 do Tratado IV, 3 [27], surge com a problemática da memória (μνήμ). O licopolitano está interessado em compreender a quem pertence a memória: ao vivente, à alma, ou ao intelecto? Se o que pertence à memória é algo adquirido – diz ele – que pode resultar de um aprendizado, ela não pertence a quem não está no tempo. Por conseguinte, o intelecto não tem memória. A memória, em linhas gerais, pode ser a faculdade das imagens que conservam as sensações, mas não corresponde a uma conservação direta das sensações, elas mesmas. Além disso, também há memória de coisas que não dependem das sensações, nem do corpo, tais como a lembrança dos conhecimentos adquiridos através das ciências, por exemplo, dos conceitos, e também dos inteligíveis. Disso se depreende que: 1. A memória não pertence ao vivente, mas à alma, e 2. Não pode ser atribuída à faculdade da sensação. Por conseguinte, a memória deve pertencer a uma faculdade que se relacione tanto com os αίσθητα, como com os νοητά. Nessa formulação, ocultase o problema da constituição unitária do processo perceptivo, pois há um pressuposto estabelecido anteriormente, segundo o qual o vivente sente devido à sua constituição corporal, mas é a alma do vivente que retém em atos as imagens da sensação, as quais são objetos
da memória. Como observa Trotta, a argumentação plotiniana aqui torna-se mais ambiciosa: Posto que a síntese entre sensação e memória seja constitutiva do próprio processo perceptivo, Plotino pretende captar este processo perceptivo no ato do seu constituir-se, quando a sensação ‘evanesce’ na memória. A posição plotiniana do problema é, portanto, radical: a indagação sobre a memória ambiciona tematizar as condições que a tornam possível. (1997, p. 83)
1 Segundo Rizzerio, a imaginação tem a capacidade de sentir, mas, diferentemente da sensação, pois sua modalidade de sentir é precisamente é de criar imagens e coincide então com uma atividade e não com uma afecção (RIZZERIO, L. “Plotin et la notion d´imagination”, p. 99) Haveria um equívoco nesta formulação: ao invés de capacidade de sentir, a imaginação não teria a capacidade de perceber? Para responder, será necessário investigar a distinção entre sentir e perceber.
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Nesta perspectiva, a imaginação surge com a condição de unidade do processo perceptivo, sendo a ela que está ligada a memória. Diz Plotino: “O objeto da sensação consiste, para quem recorda, em uma imagem (φάνταµα), cuja memória e retenção devem-se à imaginação (φάνταστικόν), que é outra faculdade”. Feita a ligação entre a imaginação e a memória, resta compreender como funciona a imaginação, que antes consideramos uma faculdade intelectiva, e não mero receptáculo de imagens advindas da sensação, e agora surge como a faculdade que possibilita a retenção de tais imagens. Plotino segue explicando que a imaginação é como que o fim da sensação, pois nela estão presentes as imagens sentidas, quando já não há mais sensação. Sendo assim, se nela está presente uma imagem do que já não está mais presente, então já se está recordando. A conclusão de Plotino é que a memória é própria da imaginação e que o recordar tem por objetivo coisas imaginadas. Por exemplo, a imagem de certa árvore permanece na alma, mesmo depois de não se estar mais olhando para a referida árvore; esta permanência, ainda que possa durar por pouco tempo, é uma recordação. Mas, nesse caso, se a memória atua como recordação de uma sensação precedente, não deveriam ser ambas, memória e recordação, uma mesma faculdade? Plotino recusará tal hipótese, pois a imagem está presente na imaginação mesmo quando já não há sensação, ao passo que, na sensação, a imagem só está presente no momento exato do sentir.
Narrar a experiência é torná-la cognoscível. E neste ponto nos deparamos com o impossível. É no litoral da linguagem, em seu limite, que se situa a arte. Ao nomearmos a experiência do artista, perdemos seu componente mais elementar, justamente aquele que escapa ao sentido. Falamos aqui da narrativa do impossível. Percorre-se no Imaginário os rastros e traços de uma escrita grafada no corpo, que permite articular o inarticulável subjacente à falta. O presente artigo propõe, a partir das percografias, retomar alguns pontos sobre a leitura de Jacques Lacan acerca do conceito de sublimação, assim como promover uma
N A R R AT I V A D O I M P O S S Í V E L
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A entrada na linguagem só é possível a partir de uma perda originária, de um gozo extraído, subtraído. Perda que cifra a falta e circunscreve o vazio dando-lhe contorno e corpo. O simbólico, registro e campo da palavra, é engendrado a partir de uma metáfora fundadora. Pode ser descrito como o movimento metonímico de deslizar entre palavras e, através de uma narrativa, representar o mito individual e imaginário que cada sujeito construirá a partir de sua perda inaugural. O aspecto elementar ao qual o artista se engaja – seu ato de criação – remete ao campo do Real; logo, ao que escapa à significação. São encontrados, na obra do artista, marcas, traços e letras que, justamente por se esvaziarem de sentido, permitem ao apreciador a construção de sua própria narrativa imaginária. A obra de arte pode ser abordada como uma construção ao redor do vazio. Em sua singularidade ela é um primeiro fragmento de proximidade com a alteridade e invoca um fora do sentido que confere ordem, levando em conta a perda. Ao mesmo tempo, ela introduz e expulsa a queda.
discussão em torno de aspectos diferenciais, no tocante à obra de arte e sua narrativa.
A Coisa e a Causa
NP DM
.
DM X
NP .
A Falo
O desejo da mãe (DM) é, portanto, substituído pela metáfora paterna (NP, Nome-do-Pai). Ou seja, o que supostamente atendia à satisfação de uma necessidade é elevado à condição de enigma (x). É a partir da metáfora paterna que Outro e objeto são barrados, permitindo que eu e outro se relacionem através de uma linha imaginária (a-----a’), promovendo desta forma a alteridade. A experiência encontra vias simbólicas de representação. 1 DUNKER, Christian Ingo Lenz. Transitivismo e Letramento: Constituição do Sujeito e Entrada no Discurso. Conferência apresentada no dia 18/10/2011, como parte das atividades do Projeto CAPES/OBEDUC, da linha de pesquisa Linguagem e Subjetividade, do Programa de Estudos Pós-Graduados em Fonoaudiologia da PUC-SP.
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Das Ding, ou A coisa, pode ser descrita como a mítica presença de uma potência materna desprovida de limites, que, em um suposto primeiro momento, atendera plenamente à satisfação das necessidades do bebê, formando, a partir desta dupla, a ilusão de uma totalidade. As idas e vindas maternas, quer sejam do seio que alimenta ou dos cuidados prestados, introduz desde muito cedo a díade presença-ausência. Ou seja, lentamente furos e carências vão se dando a ver neste primeiro avatar do Outro, até então tomado como portador do objeto garantido de satisfação da necessidade. A decepção fundadora do sujeito centra-se na impossibilidade de fusionar-se ao Outro, completando-o. Resta ao sujeito, enquanto objeto, senão a função de resto, aquilo que despenca, dando vazão, portanto, ao vazio. Aparece de fato uma disjunção entre o desejo da mãe e o bebê que, subtraído da condição de objeto (falo imaginário) da mãe, poderá se questionar sobre o que ela deseja e ser, ele próprio, inserido em uma dialética do desejo. É importante ressaltar que este não é “um fenômeno dual no qual um se confunde com o outro, mas, triádico, pois é para um Outro que a criança apela em busca de um testemunho que trará a realidade faltante à experiência. A referência a 1 este terceiro é crucial” para a entrada na linguagem.
Faz-se necessária aqui a introdução do conceito de objeto a, condensador de gozo e objeto causa do desejo, que lançará sempre adiante o sujeito, em uma infindável busca pela ilusão da possibilidade de restituição deste objeto perdido. A partir do nó borromeano, Lacan concebe o sujeito como a junção de três registros: Real, Simbólico e Imaginário. No centro destes registros, promovendo seu enodamento, encontra-se o objeto a. Ding seria senão a face deste objeto, situada para além do princípio do prazer, no leito da pulsão de morte. Encontramos nos demais registros, Simbólico e Imaginário, os únicos meios possíveis de a-bordar o vazio. De Ding só conhecemos as bordas, ao seu conteúdo mortal não é permitido outro acesso que não o de seu contorno. Essa proposta fornece uma orientação na compreensão da obra de arte. Ao retomar o conceito freudiano de sublimação, em seu seminário sobre a Ética da Psicanálise, Lacan situará o vazio como o principal correlato de das Ding, e postulará que a sublimação eleva o objeto a dignidade de Coisa. Entre os diferentes fins dados à sublimação, ganham destaque a ciência, a religião e a arte. (Es) S
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A sublimação e seus destinos
Neste momento de seu ensino, Lacan apontará os diferentes destinos da sublimação, em sua relação com o vazio. A ciência seria uma modalidade de criação vetorizada pela tentativa de rejeitar o vazio. O desejo epistemológico busca, de modo sedento, incansável e fracassado, alcançar um saber absoluto que por fim daria cabo ao vazio existencial do homem. Conflituosamente, o motivo do fracasso desta busca pelo saber é também o que o propulsiona. O verdadeiro ato de criação da ciência de fato implica um sujeito desejante, que é, por definição, portador de uma falta. A religião, por sua vez, é abordada por Lacan como uma tentativa de evitação do vazio. Ainda
que essa concepção venha a passar por muitos desdobramentos em sua obra, parece certo afirmar que em tantos contextos religiosos a noção de falta esteja de fato situada à margem. Deslocada do centro. A arte, em contrapartida, apresenta seu aspecto diferencial, em decorrência de ser uma construção ao redor do vazio. Ao discorrer sobre a criação ex-nihilo (do latim nada, no sentido de provindo da não existência), Lacan se ocupa de uma das mais antigas obras de arte: o vaso.
É justamente o vazio que ele cria, introduzindo assim a própria perspectiva de preenchê-lo. O vazio e o pleno são introduzidos pelo vaso num mundo que por si mesmo não conhece semelhante. É a partir deste significante modelado que é o vaso, que vazio e pleno entram como tais no mundo, sem mais nem menos, e com o mesmo sentido. (Lacan. O Seminário, Livro 7)
Narrativa e Obra
O artista é muitas vezes convocado a inserir sua obra em uma narrativa. Não é à toa que denominamos a linguagem como um muro, dado que existe nela um limite. Alienamo-nos na linguagem para nos distanciarmos deste lugar impossível de fusão com o objeto. Narrar a obra é, portanto, subtraí-la. Ao nos lançarmos no discurso do artista sobre sua obra, temos acesso apenas a sua possiblidade de imaginar tal conteúdo. Deste modo, deixamos a obra rumo a um discurso no qual nos alienamos. Neste sentido, encontramos na obra de arte algo de sublime. Ela nos absorve em um universo sensorial e imagético, para em seguida nos cuspir para fora, delimitando aquilo que escapa à nossa possibilidade de simbolizar. Desta forma, desvela o radical da alteridade. A obra de arte aliena e separa, ela nos causa enquanto sujeitos da falta.
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A arte encontra em Ding sua força motriz. Des-cobre na falta uma orientação que baliza sua obra. Parte do nada. Grafa no nada sua marca. Arranca-lhe pedaços, desfere marteladas, pinta-lhe a carapaça. E oferece este produto canhestro, presença de ausência, simulacro não representativo do objeto – dado que representa outra Coisa – em sua mais plena e vazia dignidade.
Muitos especialistas têm alertado para o nível de precisão verificado no registro de ciclos astronômicos, entre povos arcaicos e primitivos. Monumentos como as pirâmides do Egito ou os alinhamentos de Stonehenge, na Grã-Bretanha, constituem matéria de continuados estudos e repetidas especulações há mais de um século. E, realmente, o conhecimento atual confirma a validade desses registros, corretos a ponto de surpreenderem cientistas do nosso tempo. Como e por que povos primitivos desenvolveram observações e experiências, que lhe possibilitaram entender essa complexa mecânica? São as perguntas que vários autores se fazem, não sem estranheza. Entretanto, o mistério não é tão denso quanto aparenta. Algumas teorias mitômanas, associadas a esses elementos, somente se justificam pelo fato de autores superficiais considerarem os povos arcaicos mais primitivos do que realmente eram. O conhecimento desses fenômenos parte de necessidades materiais elementares do homem e é condicionado por elas. Na realidade, a ciência astronômica funda-se em observações e
ERAM OS ÍNDIOS ASTRÔNOMOS?
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Uma pedra encontrada na Paraíba possui signos estilizados que recordam os que foram utilizados pelos alquimistas medievais. Representam os planetas Mercúrio, Vênus, Marte e a própria Terra. No Brasil, como em diversas partes do mundo, encontramos monumentos antiquíssimos, que eram verdadeiros observatórios astronômicos. Por ironia, o homem primitivo, olhando o firmamento e anotando nas pedras, conseguiu prever fenômenos meteorológicos com precisão maior que o homem moderno, com seus computadores.
registros bastante corriqueiros. No estágio da coleta, alguns povos já haviam associado os ciclos vegetativos das plantas e o hábito de acasalamento dos animais ou a periodicidade das secas e das enchentes aos ciclos de estrelas e constelações. Com o apogeu da revolução agrária e a instalação das primeiras sociedades urbanas, as técnicas de contagem do tempo se firmariam como a transformação do coletor no domesticador criou a necessidade de registrar a passagem do tempo. As técnicas agrícolas obrigaram o primitivo a prever, pois que o sucesso do plantio dependia do planejamento, em função, principalmente, das chuvas.
O fluir e refluir dos astros O ponto de partida para a elaboração de um calendário está na constatação de que existem, na natureza, certas uniformidades, que regem o ciclo das estações. Ao amanhecer, o pastor observa que o Sol surge em pontos diferentes, nas diversas épocas do ano, mas sempre no mesmo lado do horizonte. Da mesma forma, vê o Sol se pôr, também, em pontos diferentes, conforme a época do ano, mas sempre no lado oposto do horizonte. Assim, o pastor começa a distinguir um horizonte leste-nascente, e o oeste-poente.
Assim, os primitivos acabaram por se familiarizar com algumas estrelas, e verificaram que elas mudavam de posição, da mesma forma que o Sol, à medida que a noite avançava. Quando levantaram os primeiros pilares de pedra, a fim de assinalar a passagem do dia (pela direção e o comprimento da sombra projetada), notaram que a sombra do meio-dia se orientava sempre para o mesmo ponto do horizonte. E que, durante a noite, a Estrela Polar permanecia, exatamente, acima daquele ponto, enquanto outras estrelas giravam ao seu redor. Os pescadores familiarizaram-se com outras indicações. Através da observação das marcas dos cais deduziram que, no espaço de um dia e uma noite, o nível das águas duas vezes se eleva (preamar), e duas vezes baixa (vazante). Muito mais decisiva, entretanto, foi a descoberta de que essas variações cíclicas correspondiam a fases diversas da natureza. Através dessas observações fortuitas, concluíram que certos fenômenos naturais se reportavam ao aparecimento e desaparecimento de determinadas estrelas. Assim como o avanço do dia era indicado pela posição do Sol, o avanço do ano o era por certas estrelas, ao nascer e pôr do Sol. Ou seja, haviam percebido que o Sol e as estrelas funcionavam como ponteiros do relógio celeste.
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De madrugada, quando sai da cabana, observa que as estrelas surgidas no oeste, no anoitecer, rolam até desaparecer no horizonte. E quase essas estrelas não eram sempre as mesmas, no decorrer do ano.
A posse desses conhecimentos constituiu-se no primeiro passo para a elaboração de um calendário fixo. Então, para determinar a época de um acontecimento importante para o grupo social, bastaria observar os ciclos das estrelas ou constelações, que se reportavam àquele acontecimento. A partir daí, iniciou-se a catalogação dos céus, que não terminou ainda.
Ilações astronômicas e sociais Nessas primitivas observações, as Plêiades se revestiram de singular importância. Apesar de constituída de estrelas pequenas, esta constelação foi valorizada por diversos povos, pelo fato de seu aparecimento coincidir com importantes fases do ciclo vegetativo. Um relato sobre os bosquímanos ilustra como povos bastante primitivos chegaram a essas conclusões, relacionando os ciclos de estrelas com o das estações.
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Canopo e Sírio são visíveis no inverno e relacionadas ao frio. Em função desta experiência, dividem seu ano e regram suas atividades. Os hotentotes relacionam as Plêiades ao inverno e chamam-nas “estrelas da geada”, pois que seu aparecimento marca noites frias. Tribos da Vitória Ocidental controlam as estações também pelas estrelas. O surgimento de Arcturo marca a colheita das larvas de formigas, importante alimento do grupo; e as estrelas da Vega indicam que é tempo de colher os ovos das galinhas “mallee”. Quando as Plêiades forem avistadas no Oriente, pouco antes da aurora, será tempo de visitar os amigos e tribos vizinhas. Os moanas das ilhas do Almirantado orientam-se em terra e no mar pelas estrelas, e reconhecem por meio delas a estação das monções. Quando as Plêiades (tjasas) aparecem no horizonte, ao escurecer, o vento noroeste começará a soprar; quando, porém, a Arraia (Escorpião) e o Tubarão (Altair) surgirem à noite, virão os ventos de sudeste. A Canoa dos Pescadores (Órion) desaparecendo no horizonte, ao anoitecer, o vento sudeste tornar-se-á violento; quando surgir à tarde, a estação chuvosa e os ventos noroeste não tardarão.
A astronomia tupinambá No Brasil, a crermos nos religiosos franceses que conviveram com os tupis do Maranhão, estes haviam levado a observação dos céus a um nível raramente atingido entre povos do seu estágio cultural. 1
Refere o padre Claude d’Abbeville que “poucos entre eles desconhecem a maior parte dos astros e estrelas do seu hemisfério, e chamam cada um pelos nomes que lhes foram dados
pelos seus antepassados”. O céu é Eivaque. O Sol-Coaraci, e a Lua-Jaci. As estrelas são Jaci-tatá. Entre as que melhor conhecem estão as simbioareraiobare (queixada), urubu e sichuiura, prenunciadoras das chuvas. Seichu são as Plêiades. Aparece em meados de janeiro e traz a chuva. Suanram e Tungaçu são anunciadoras; aparecem cerca de 15 dias antes. E Uenhomoan (Caranguejo) aparece no final das chuvas. Jauare (Cão) é uma estrela muito vermelha, que acompanha de perto a Lua; por isso, dizem que a estrela corre atrás dela, como um cão, para devorá-la. Quando, após o inverno, a Lua surge avermelhada, os homens batem com seus tacapes no chão, repetindo: Eicobé cheramoan goé, goé, goé...(meu grande pai esteja sempre bom). Enquanto isso, as mulheres choram e rolam pelo chão. Segundo a explicação dos indígenas, eles acreditavam, nessas épocas, que todos morreriam; então, os homens se regozijavam pela oportunidade de reencontrar seus antepassados (que saúdam no canto), enquanto as mulheres se desesperavam porque temiam a morte.
Segundo o relato, os indígenas distinguiam muito bem umas das outras, conhecendo seus nascentes e poentes. Através da longa prática, conheciam as várias fases da Lua e atribuíam-lhe o fluxo e o refluxo do mar. Distinguiam as duas marés grandes, que precediam o pleni e o novilúnio. O eclipse lunar era chamado de Jaci-pouiton (a noite da Lua). Conforme relato de um cronista religioso, os tupis daquela região contavam perfeitamente seus anos de 12 meses pelo giro do Sol, indo e vindo de um trópico a outro. Sabiam que, vindo do Ártico, trazia ventos e brisas e, ao contrário, quando em sua ascensão para nós, trazia chuvas. As Plêiades (Seichu) aparecem alguns dias antes das chuvas e desaparecem no fim delas, para somente reaparecerem no mesmo tempo e em igual época. Desta forma, aqueles indígenas reconheciam, perfeitamente, o interstício, o tempo de um ano completo. Também no Nordeste do Brasil as Plêiades desempenham papel importante, conforme testemunha 2 Nilsson.² Os índios siusis forneceram ao ilustre estudioso um pormenorizado relato sobre a marcha das constelações, pela qual determinavam as estações. Estes indígenas ilustravam suas explicações com três esquemas desenhados na areia. O 1º mostrava três constelações: um “segundo Câncer”, composto de três estrelas brilhan-
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Jaci-tatá-uaçu é a estrela da manhã e Pirapanem, a estrela da tarde. Esta é também chamada de “piloto da lua”, por surgir adiante dela. Japuican levanta-se antes do Sol e desaparece quando principiam as chuvas. Criça é o Cruzeiro. Jaci-tatá-uê é uma estrela muito brilhante, em louvor da qual compuseram uma bonita canção.
tes, a oeste de Leão; o Câncer, composto das estrelas principais de Leão; e as Jovens (Plêiades). Quando estas se põem, caem chuvas contínuas e o rio começa a subir – é o início da estação chuvosa e época de plantio da mandioca. O 2º esquema mostrava duas constelações: a Cesta de Pescar (Órion) e Kukudzuta (parte norte Eridano). Quando estas estrelas desaparecem, chove muito e o nível das águas atinge seu ponto mais alto. O 3º era a Grande Serpente (Escorpião). Quando esta se põe, as chuvas estão no fim e o rio desce ao seu nível mais baixo. Pelos ciclos destas constelações, os siusi conhecem as estações e regram suas atividades coletoras e agrícolas.
Astronomia e religião
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Muitas vezes, a mente primitiva é incapaz de associar os fenômenos e suas causas; assim, quando as estrelas prenunciam determinado acontecimento, são consideradas suas autoras. Então, a observação dos céus – a experiência a princípio especulativa – confunde-se com as elaborações mítico-religiosas. Os exemplos expostos ilustram a forma pela qual fatos correntes na vida de uma comunidade – coletora ou agrícola – preparam o caminho para a confecção de um calendário fixo e o advento de uma religião. A separação de uma casta, incumbida de determinar a sequência das estações, marca o começo da história escrita. O registro permanente dos acontecimentos e dos dimensionamentos torna-se uma necessidade. Neste momento cultural, surgem os magos-astrônomos, dominadores das verdades científica e religiosa, já que, de início, ambas se entrelaçavam e confundiam. Como diz Elliot Smith – a magia de hoje é a ciência rejeitada ontem. A evolução do conhecimento astronômico esteve intimamente ligada ao processo de conservação da fertilidade. A organização do calendário foi uma necessidade imposta pela fertilidade sazonal dos aliados biológicos do homem. Como forma de sobrevivência, o homem foi obrigado a planejar sua vida segundo periodicidades. Paralelamente, o homem ligava o seu próprio processo de fertilidade aos ciclos astronômicos, identificando a tensão fálica do despertar com o levantar do Sol, e o ciclo mensal da mulher aos fenômenos lunares. A ciência e o cerimonial religioso constituíam, então, um foco comum da necessidade social, cujo porta-voz era o sacerdote-astrônomo. No 4º Milênio a. C., os sacerdotes egípcios já haviam estabelecido um ano de 365 dias. Esta contagem se baseava no aparecimento heliacal de certas estrelas. O número de dias
compreendido entre o aparecimento heliacal de uma estrela e seu desaparecimento, e o momento em que o fato se repete, é o período em que o Sol volta à mesma posição que 3 ocupava. O ano egípcio era contado pelo aparecimento heliacal de Sírio. Portanto, o reconhecimento do ano como unidade de tempo é anterior ao surgimento das grandes civilizações que dispuseram de calendários.
Os mapas estelares No interior do Brasil, encontram-se algumas inscrições rupestres, que parecem associadas ao registro dessas primitivas observações. Apesar das distantes regiões em que ocorrem, estas insculturas se caracterizam por uma tipologia comum. Nos exemplares dispersos pelos vários Estados, repetem-se os mesmos signos geométricos. São círculos simples ou duplos concêntricos; elipses e semielipses; parábolas e cruzes. Estes elementos estão presentes na Pedra Riscada (GO), na Pedra do Sol (SP), e nas inscrições de Diamantino (GO) e da Lagoa Guaíba (MT).
As características desses conjuntos lembram verdadeiros mapas celestes. Na década de 1930, muito antes que tivessem início as aventuras danikeneanas, o brigadeiro Lysias Rodrigues propunha que as inscrições da Pedra Riscada, no rio Tocantins, constituíam “um mapa dos nossos céus no signo de Áries”. Após o sucesso de duvidosas obras de literatura arqueológica, tornaram-se corriqueiras as “descobertas” de mapas celestes, entre as inscrições existentes em todo o mundo. É evidente, no entanto, que raros desses exemplares propostos se enquadram nesta ordem de registros. Na maioria dos casos, a busca do sensacionalismo fácil levou seus autores a tomarem rudes inscrições como verdadeiras cartas astronômicas. Às vezes, pelo simples fato do primitivo haver pintado um sol ou lua em meio ao conjunto. Equívoco similar ocorre na interpretação do exemplo brasileiro da Lapa Lagoa de Cima, em
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Em exemplos mais requintados, como a Pedra do Retumba, no Norte da Paraíba, juntam-se outros signos bastante estilizados. Alguns deles recordam as notações que seriam utilizadas, milênios depois, pelos alquimistas medievais. Nos antigos tratados alquímicos, estes eram os signos que, além de simbolizarem elementos químicos, sinalizavam também os planetas Mercúrio, Vênus, Marte e a própria Terra. Este importante documento pré-histórico foi coberto pelas águas de um açude, podendo ser observado apenas durante os períodos de prolongada estiagem. E sua observação, hoje, é de menor valia, já que os signos se acham muito gastos, e o conjunto bastante desfigurado. Afortunadamente, existe uma cópia do original, executada no início do século, bastante precisa, pelo que observamos, através dos detalhes que se conservaram.
Varzelândia (MG), onde certo autor quis ver representações do nosso sistema planetário, 4 além de discos e charutos voadores. Interpretações como esta decorrem do desconhecimento da simbologia que rege essas manifestações. Antes de mais nada, o que é necessário considerar é que a linguagem do primitivo – manifestada nos mitos e na arte – é essencialmente simbólica. E não cabe, portanto, interpretar literalmente uma linguagem que é, por excelência, simbólica. O fato que chega a constituir erro grosseiro vem frequentemente manifesto nas teorias desses autores. Nos primitivos documentos rupestres, Sol e Lua não constituem imagens, mas símbolos que podem e devem ser interpretados segundo variados contextos. Via de regra, estas figurassímbolos se reportam a esquemas familiares e correspondem, respectivamente, aos princípios masculino e feminino. Existe um mito parintintim, que é muito claro, não deixando margem a dúvidas, quanto ao acerto da posição. Conta o referido mito que: Baira criou o Sol e a Lua. O Sol é homem. A lua é mulher. Por isso, o Sol anda de dia,
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e a Lua sai à noite. Este parece ser o caso das pinturas de Varzelândia, que se enquadram na fase mais primitiva da arte rupestre brasilíndia. A tipologia do conjunto depõe em favor da função propiciatória (visando à fertilidade e à fartura de alimentos). Mesmo quando parece evidente a associação dessas insculturas aos esquemas estelares, como é o caso daquelas pedras gravadas, ainda assim, não podemos eliminar a hipótese de interpretações paralelas. Até pouco tempo, mostravam-se acirradas as disputas entre os especialistas, a propósito da função dos alinhamentos de Stonehenge. Estes estudiosos defendiam teorias exclusivistas. Para uns, o monumento constituía templo dedicado aos cultos solares de Borvon; para outros, seria o santuário, onde tinham curso ritos ligados ao culto dos mortos e antepassados; e, havia ainda quem o considerasse apenas um observatório, um relógio solar. O problema mostrava-se de difícil solução, pois argumentos concretos confirmavam umas e outras ideias. Hoje, a questão é proposta de outra forma, havendo uma tendência de se aceitar a pluralidade funcional do conjunto. Os monólitos demarcam o santuário onde teve lugar um cerimonial dedicado aos cultos solares e aos mortos e antepassados, ao mesmo tempo que assinalavam importantes coordenadas astronômicas. O mesmo verifica-se com respeito às pirâmides, que se constituíram, concomitantemente, em verdadeiros relógios do tempo e centros de ritos iniciáticos. Portanto, nos monumentos mais primitivos, como as gravações do Brasil, a pluralidade simbólica parece ainda mais flagrante. Sendo mais primi-
tivos, devem ser, obrigatoriamente, menos especificados. Erram assim os autores que veem certas itacoatiaras pura e exclusivamente como tábuas astronômicas, acreditando-as cientificamente corretas. Nossos indígenas possuem uma infinidade de mitos sobre as origens do Sete Estrelo, as Plêiades, da Cobra Grande, o que não indica, em absoluto, que tivessem chegado a conclusões acertadas sobre a matéria que para a ciência atual é ainda motivo de estudos e hipóteses. Normalmente, estes mitos não ilustram qualquer conhecimento cosmogônico, mas servem, antes, como pretexto para ensinamentos e registros sociais, morais e religiosos. Entre os exemplares de nosso território, talvez os únicos a se enquadrarem num esquema mais avançado sejam a Pedra do Retumbá, a Pedra do Sol e a Pedra Riscada. Os demais constituiriam apenas registros alegóricos.
Essas construções mais complexas teriam, infalivelmente, surgido no Brasil, não fosse truncada a evolução dos brasilíndios. Esta antiga e complexa arquitetura, que tem seus alicerces mais remotos nos rústicos alinhamentos de pedras, constitui o mais antigo e intrigante dos nossos almanaques. Nestas experiências estão a gênese da ciência astronômica, da meteorologia e várias especialidades afins. De certa forma, parece irônico que, hoje, uma tecnologia superespecializada se incumba de programar, com segurança apenas relativa, fenômenos que nossos recuados ancestrais foram capazes de prever, simplesmente olhando para o firmamento.
1 Claude d’Abbeville – História da Missão dos Padres Capuchinhos na Ilha do Maranhão. 2 Nilsson – O Cômputo Primitivo do Tempo. 3 Aparecimento heliacal: surgimento de uma estrela concomitantemente ao surgimento do Sol. 4 EBECKEN, Hernani. Einstein e a relatividade.
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A possibilidade de registros mais complexos, em nosso país, é corroborada pela existência de alinhamentos, segundo os mesmos esquemas daqueles da Europa atlântica. A existência desses monumentos (por nós descobertos no Centro-Sul da Bahia) supõe sociedades organizadas, que identificaram ciclos astronômicos e vegetativos, e dominaram a contagem do tempo. E, mais uma vez, se confirma a pluralidade funcional. Os pilares, que seguramente foram levantados obedecendo a coordenadas astronômicas, demarcam também a área sagrada, onde tinham curso ritos em função da fecundidade/fertilidade e do culto aos mortos e antepassados. Os povos pré-históricos do Brasil parecem não ter ultrapassado este estágio de construção. A partir daí, floresceriam os verdadeiros templos-observatórios. Os templos com portais dispostos estrategicamente para assinalar a passagem da estrela tutelar pelo meridiano, ou para captar um feixe de luz solar do nascente ou poente, nos solstícios ou equinócios. Os cromlechs, como o de Stonehenge, mostram sua mira orientada para o nascente do solstício de verão.
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yube inu é o huni kuin; yube xanu é o encantado da jiboia; ela vivia no igarapé, lago bem grande; dentro do lago tem muitos pássaros encantados cantando: bem-te-vi, gavião, japó, japinim, nambu; ele só ouvindo zoada, lindo; voltando, encontrou uma comida, que as cotia comeu nesse instante uma semente de ouricuri; yube inu vem voltando, fez tocaia; aí fez um buraquinho pra esperar esses animais, pra poder flechar; lá vem o jacamim sozinho; vem pertinho passando na frente dele, ele flechou; foi lá pegar o jacamim, diz que tem nariz furado, uma semente, usando, o jacamim; o yube inu vem olhando ele, pensou que o povo dele criava esses animais; demorou um pouco vem barulho grande; olhando no buraquinho, aí vem anta, no rumo do yube inu; o lago bem pertinho; um lado, caindo a fruta do jenipapo; anta vem devagar, olhando o rumo onde vem, olhando o rumo onde vai, escutando, caçando; aí, outra hora não é mais anta não; virou, pra cá, perna igual nós, pra cá cabeça do anta, virou huni kuin; aí que o yube inu ficava mesmo agora admirado, ficou agora mirando; vem anta, virou gente; aí já encantou-se, falando o anta; caçando a fruta do jenipapo; yube inu só olhando, observando; aí foi, desceu um pouquinho, ficou em pé, jogando três frutas de jenipapo no meio do lago; um embaixo, outro no meio, outro em cima; aí demora um pouco vem banzeiro; saindo muita espuma embaixo do lago; no meio da espuma saiu a mulher; uma princesa, linda; dois encantados agora; aí a menina chegou, sem nada de roupa; menina nova, abraçou anta e fez sexo; aí depois namoro, a mulher subiu debaixo da água no lago e a anta seguiu pra floresta; (...)
chegou lá na tocaia dele, esperando amanhecer o dia; amanheceu; umas oito horas do dia; saiu da tocaia, caçando, encontrou três frutas que deixou anta; aí desceu, no mesmo canto onde anta fez, aí fez falando mesma coisa: lá vai teu nane; jogou em baixo; lá e vem nane; jogou no meio; lá vai teu nane, huriwe (vem logo), jogou em cima; demorou um pouco, vem espuma; e o yube inu não teve coragem não porque é a primeira vez encontrando; vou esconder um pouco, esconde um pouco no sacupema, não vou mostrar minha cara não; aí chegou a menina muita linda, encantada mesmo; caminhando perguntando, onde é que você foi, quem que me chamou; aí yube inu pegou de surpresa; aí a menina fica susto; não virou mais menina não, virou jiboiona; enrolou tudo agora; aí o yube inu fica fechando o olho; olhando não era mais menina não; pensou, eu não peguei jiboia não, eu peguei menina; segurando; segurando, diz que não pode fazer isso, aí outra hora virava um tigre muito grande, outra hora virava um touro bem grande não tem como segurar; outro dia, assim dia todo tirando com esses, mostrando esses encanto, outro dia, amanhecemo o dia virava um espinho de murmuru, uma palmeira que espinho bem comprido, cheio daquela pontinha, furando tudo, mas aguentava segurando, que não posso fazer isso; e tem que falar porque ele viu, não faça isso eu te vi bem pertinho lado mesmo eu te vi, mas quero saber você é da onde; eu não vou te pegar nada, eu só quero saber você é da onde mesmo; (...)
(...) aí começava de feitio da mulher dele yube xanu; passava um tempo agora mostrando segredo que ela tem; aí mostro dela, ela vem desse lado, a jiboia vem desse lado, levou ayahuasca, nixi pae; preparou no fundo das águas; aí yube inu participou, o que é que ele tá fazendo; ele falou: olha, essa é nossa bebida, nós mesmo que, nosso mesmo, nosso nama, nama é o sonho; eu tô fazendo isso pra mim ver, do meu futuro, o que é que eu vou fazer lá; o que é que eu tô chegando lá; também eu vê meus povo mais antigo; aquele, alguma coisa que você já passou ele te mostra; eu via três coisa pra mim ver: ver a presente, do jeito que nós fez; ver a passado, nós já vinha; vê a futuro, onde nós vamo chegar lá; (...) yube inu participando do trabalho; aí hora certa chamava ele: yube inu, vem aqui agora, você vai participar; aí de novo, repetindo de novo; olha, eu vou te dar três pinguinho; aí você engole; você vai ficar sentado aqui do lado; pode prestar atenção que nós vamos cantar; não vai olhá um lado, olha outro lado não; só você mesmo seguindo seu rumo mesmo; você vai diferenciar seu corpo inteiro; aí yube inu fica mais cada vez mais curiosidade; deu três pinguinho na
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aí a menina voltou e namorou com yube inu; aí depois que namorou pegava a folha, botava em cada junta do yube inu, no olho; aí yube inu encantou-se; não é mais yube inu não, agora virou jiboia; aí seguindo mais ele, pegou o braço, aí tuuu desse lado, fundo das águas, igual desse lado que nós tamo vivendo;
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pontinha da língua dele; aí yube inu engoliu essa saliva com tudo três pingo; mais outra hora um tipo de moleza; um tipo de frio, tremoso; abrindo a boca; abrindo a boca, cada vez, uma coisa maneira; outra hora não é mais igual que tá sentindo não; já vem colorido; preto, branco, verde, amarelo, cobrindo e cada vez mais subindo; desse mesmo tempo, mas não é desse lado não, ele já tá ligado no outro lado do mundo; olhando do lado; agora começava a família dele cantando, esses encantado começa cantando; o sogro, a sogra, a esposa; olhando virando dele, o sogro dele já é jiboia, ao lado esposa dele jiboiona, ao lado, sogra mesma coisa, cunhado dele, tudo aquele mesmo da família agora já virou tudo jiboia, tudo colorido; aí yube inu aguentando; aí começava cantando o sogro dele, aí tava cada vez chamando mais a luz; agora yube inu, não tem mais jeito não; outro lado olhando, sogro dele levantou, começa engolindo; aí ficava na barriga do sogro dele no sonho, tava sonhando; aí yube inu ficava gritando, mexendo a mão dele; deu tapa pro sogro dele, exeika; exeika agora queria mesmo de afirmar engolir sério mesmo; aí ninguém deixava não; aí cantando pra ele yube inu até melhorou; foi embora a miração; diz que viu tudo; durante esse trabalho; descobriu; e agora depois aquela família ficava preocupada com yube inu: rapaz, ele viu, yube inu; mirou? mirou; então, falou tudo segredo que nós tem; melhor: vamos comer yube inu; vamo deixar não; se ele for embora, ele leva todos conhecimento nosso; vamo comer yube inu; ah, então embora preparar pimenta, pimenta malagueta; cada um mastigando pimenta malagueta; queria derrubar mesmo, matar mesmo esse yube inu; (...) um pouco esquecido, aquele peixe deu um rabudo, deu uma tapa; aí yube inu vinha igual sonhando; aí desmaiou na hora que deu o tapa; aí chegou desse lado; chegou onde o pico dele de caçada, buio; rapaz, eu me escapei agora, eu vou voltar; chegou; o ixkin, aquela jiboia queria pegar o ixkin, o ixkin vem fugindo também, foi embora; entrou no buraquinho do oco do âmago; (...) aí a filha chegou, ah você tá aqui meu pai, agora te descobri; tu não vai mais, não tem jeito não, nós vamo te levar; agora vê: ele viu no miração, a jiboia tava engolindo, agora vê presente que tá acontecendo, filho dele engolindo; ton, segurou perna dele; chamava dois irmão srim, srim... aí já comunicou tudo srim, srim, srim... chegou rapidinho dois filho mais velho; um, foi aquele mais velho, bota na cintura; ah, nós não temos como levar não nosso pai, vamo chamar nossa mãe; yube xanu, chega aqui, nós tamo encontrando yube inu, nosso velho; aí yube inu começa gritando, eeehhh; pra família dele agora desse lado; chega aqui, eu tô todo jiboia; nem mais pertence filho não, a jiboia pegaram mesmo, queria me levar, que tá me engolindo; a família dele gritando, leva todo tipo de arma, já quebrou tudo; a cintura pra baixo levou, fica tudo quebrado; ficava vivo pra cá; aí pegaram ele; levou pro kupixaua; ficava no kupixaua; deitado na rede; tá falando agora, não tem mais jeito, eu vou morrer, antes de eu me estragar tudo, eu vou falar último que a gente viu; o motivo de que fez isso pra mim; eu
tomei ayahuasca, nixi pae; antes de eu me apodrecer vocês vão caçar, traz todo tipo de cipó; traz todo tipo de cipó; nada, nada; até uma acertaram, um tempo; é isso, é isso que eu fiz; agora você traz folha; aí a família do yube inu todo dia trazendo a folha diferente, folha diferente, até conseguimo a kawa; é isso, é isso que eles temperou; então vocês vão tirar mais, vocês vão temperar; agora vocês vão bater e cozinhar agora; a família dele tirava esse ayahuasca, batendo mesmo, falando, acompanhando, narrando aquele yube inu e acompanhava tudo, cozinhava; aí tardecendo, a noite, agora vocês vão tomar nixi pae, essa é o nixi pae; comungando essa nixi pae ele vê miração forte; aí yube inu vem cantando; aí finalmente yube inu falou, olha, eu vou morrer e vocês vão me enterrar, eu vou nascer dessa bebida, desse nixi pae; (...) no meio do pessoal que tava sofrendo, chegava yube inu dentro da miração cantando; trazendo essa miração diminuindo a força; aí a família dele diz yube inu tá junto, ele parou aquele mesmo de muito forte, ficava tudo agora mirando certo; yube inu chegou agora falando no meio da miração e miração foi embora e até hoje que nós tamo ainda preservando dessas história; dessas história surgimento da bebida, é isso que é o surgimento da bebida ayahuasca que surgiu; yube inu e yube xanu; história que vem nosso povo, origem mesmo do huni kuin; 98
... sugeridos para uma noção e uso de morfônimos como progressão poética do ser-pessoa desde a realidade obrigatória
Essas constelações tendem a atingir o firmamento, de acordo com as concepções obrigatórias de quem as articula e "lê". Sua observação a olho nu é um dos modos de olhar para o céu que estou dizendo. A postergação do enfrentamento suscitado por uma constelação de definições rumo ao infinito vetorial da gravidade atesta a necessidade de transformação intrínseca ao estado (estatuto) do "leitor" enquanto outrem. XLIV IV
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XXX URSA MAIOR
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ESCORPIÃO
ÓRION
CONSTELAÇÕES DE ARTICULAÇÃO A sujeição do "leitor"/poeta não é proposta e não busca encontrar resposta. Ele só precisa pensar, receber a "leitura" com o pensamento. Essas constelações de Articulação partem dos princípios onde a concepção consciente (sequencial) do si deve atingir o seu ponto zero. As articulações propõem formas-técnicas de atuação no imaginário pessoal e sobretudo paraficcional do "leitor"/copensador.
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LEÃO
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PÉGASOS
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PEIXES
P R O L E G Ô M E N O S A U TO P L U R I C O N S T E L A R E S . . .
CONSTELAÇÕES DE DEFINIÇÃO
TRAÇOS DE CARÁTER Há um desenho que reivindica "eu" ao mim, que reclama suas ações para si e de certa forma expande o acesso de "eu" às suas ações pessoais. Essas ações que não passariam de pássaros derivados do reclame de mim ao "eu". Nesse sentido experimenta-se um desprendimento efetivo. Muitas vezes revolucionário. Como quando se evidencia a problemática das tramas assim urdidas entre "eu" e outrem. VI
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XLVII PERSEU
HÉRCULES
Prolegômenos são estrelas para constelar <I> Ortônimo é a forma do desígnio que precede, no pré-indivíduo, a faculdade da poesia. <II> Morfônimo é o rastro da vida-que-caligrafa sobre as linhas nascidas (corpo-território de um desígnio) e que em tensão com/põem a pessoa poética do ser-pessoas. O percurso que produz esse rastro se dá a partir do ortônimo. <III> Ser-pessoas: estado de direcionamento a uma emancipação radical de mim em relação a "eu". A liberdade recaindo em mim, posso criar, posso ser poesia. A forma etimológica correta desta expressão é composta de um singular plural, visto que, ao dizer <mim>, estou dizendo o campo do ser comum a todas as pessoas, subjacente às suas personalidades projetadas ("eu[s]"). <IV> Ortônimo: nome que convenciona o desígnio (dá largada a uma primeira ideia de personalidade) por meio de um padrão de arranjo de caracteres no campo do registro metodológico (a priori) do ser-pessoas. Com o fim de melhor inseri-lo (assujeitá-lo) à realidade obrigatória. <V>Realidade obrigatória aponta para outra: o duplo (ou triplo, quádruplo: o Desencadeado) ou a revolução do caráter (o "outro lado da lua", a sombra do indivíduo submetido pela civilização prévia). <VI>Caráter: isolamento exponencial ao nuclear de um dos caracteres com que se escreve/"lê" a narrativa de uma experiência. <VII> Primeira demonstração de morfonímia: anagrama. Dado o ortônimo Edson Roig Maciel, obtém-se o morfônimo Edson Migracielo pela função-anagrama inerente ao desígnio submetido a um caráter. <VIII> Anagrama: do grego ana = "voltar" ou "repetir" + graphein = "escrever". <IX> O segredo das
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CISNE
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narrativas é que elas guardam, no que se poderia chamar de consciência anagramática de seus caracteres, o trauma e o drama de inacessibilidade ao instante-experiência que as antepõe enquanto aparecimento, enquanto surgimento espontâneo. <X> O que convenciona o ortônimo? Registro genealógico; documentação e arquivamento de dados cívicos no campo convencionado da multidão/civilização circunscrita por acordos de poder e posse sobre territórios e corpos-território; possibilidade de afabulação caracterológica de uma linhagem (linha) e seu atravessamento por outras linhas em combinações genéticas. <XI> O morfônimo, enquanto metamorfose, enquanto transfiguração, indica o resultado de um desprendimento, de um pôr-se a caminho empreendido pelo âmago do ser-pessoas. Esse pôr-se a caminho é a própria experiência do desprendimento rumo à transfiguração. <XII> Frente à poesia do indivíduo, o ortônimo demarca uma ancoragem e o morfônimo desatraca o veleiro para fazê-lo voar. Ele se comparte em voo e deriva: devaneia. <XIII> Tanto o ortônimo quanto o morfônimo estão sujeitos (são assunto) à progressão inerente e não-convencionável da escrita/"leitura" poética. <XIV> O que chamamos comumente o <<designar-mo-nos>> é também o grilhão da realidade obrigatória sobre os dados de vida codificados pela voz que os comunica. <XV> Realidade obrigatória: efeito de coação do ser-pessoas pelo sujeito (configuração sistêmica de caracteres mediante sujeição antepoética). <XVI> Segunda demonstração de morfonímia: ampliação semiológica. Dada a utilização da expressão <Realidade Obrigatória>, obtém-se a partir das iniciais <R> e <O> a sigla ®. Este signo (®) já existe; a morfonímia expande-o e instaura novas relações de significado com a linguagem convencionada, descortinando progressivas realidades e corpos que lhe subjazem. <XVII> A® "ancora". No contexto dessa ancoragem, a instauração do morfônimo inaugura o vislumbre de um voo: quando o corpo vira território, descortina-se um novo horizonte. <XVIII> No contexto da poesia, a experiência impera sobre a narrativa quando o ser-pessoas se multiimplica / põe-se em movimento com suas coexistências. <XIX> O ortônimo é a ancestralidade manifesta da ®. É a "matéria de poesia" do mundo individual. O trabalho poético do ser-pessoas se exerce sobre ele, sobre o que o ortônimo conjuga e circunscreve. <XX> O vigorar do nome de um ser-pessoas não se restringe à forma conveniente de seu ortônimo, o que equivale a dizer que o desprendimento experimentado no âmago pensador e poético de um indivíduo não está necessariamente atrelado às convenções do mundo anteriores a esse exercício de pensamento e de poesia. <XXI> A liberdade pensante e poética do ser-pessoas é uma utopia? Um lugar imaginário? <XXII> A poesia transforma o mundo; a metamorfose que ela empreende é uma herança dos mecanismos de desprendimento dos indivíduos em relação à ® onde se encontram imersos seus órgãos de sentidos (e portanto de conhecimento). <XXIII> Ortônimos são emergências da ®; morfônimos são indicações de percurso, registros de transfigurações dessa realidade. <XXIV> A pessoa poética demarca o desprendimento do ser-pessoas em relação à ® enquanto grilhões de NADA (de coisas nascidas). <XXV> NADA = [res] nata = coisa nascida <XXVI> As palavras (matéria de poesia) demarcam o renascimento das coisas. <XXVII> A realidade obrigatória (®) é necessária porque estabelece o campo do exprimível. A partir daí, há poesia.
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<XXVIII> Não se trata de uma herança apenas cognitiva de novidade, mas o legado de uma paisagem nova, de uma configuração inaugural de imagens recém-firmadas. Essa herança não tem um valor necessário no sentido materialista da posse e da mercadoria, mas sim no sentido materialista da transformação da matéria. <XXIX> Panorama: paisagem muito dilatada que se contempla desde um ponto de vista. <XXX> Morfônimo: trabalho de composição da memória (enquanto poesia) sobre o panorama (enquanto ortônimo). <XXXI> O panorama é um recorte do imaginário enquanto disponibilidade progressiva de imagens. <XXXII> As imagens compõem ou são oriundas das circunstâncias? <XXXIII> Movimento do imaginário = Cinematógrafo. <XXXIV> Imagens abrem-se em paisagens. Descortinamse em panoramas contemplados desde o âmago do ser-pessoas. <XXXV> As paisagens que a poesia (enquanto memória) instaura são sempre inaugurações e como tal sustentam o mundo em suas metamorfoses, para além da troca material dos valores de compra e venda. <XXXVI> Os valores instaurados pela poesia são de outro tipo: espírito-rituais. <XXXVII> O conteúdo do valor vigora a partir da retirada das associações dos sonhos. A própria instauração de um valor novo é produto da matéria bruta de que são feitos os sonhos. <XXXVIII>A realidade obrigatória (®) não enxerga. Possui os olhos nas mãos e por isso sua ação é cega, desenfreada. <XXXIX> Caixas de ilusões: armazenamentos de vazios decompostos. <XL> O que chamamos um <<pseudônimo>> é, enquanto arranjo de caráter, um vocábulo forjado para suavizar o impacto da poesia sobre o <<designar-mo-nos>>. <XLI> pseudo = falso. <XLII> morphosis = sequência ou modo de desenvolvimento ou mudança em um organismo ou qualquer de suas partes. <XLIII> morfônimo * pseudônimo. <XLIV> O morfônimo resgata o outro a partir do mim mesmo. O pseudônimo conjuga-se à ® a partir de um perso- nagem. <XLV> Terceira demonstração de morfonímia: anagrama + ampliação semiológica. Dado o morfônimo Edson Migracielo (de acordo com a primeira demonstração por anagrama), a morfonímia por ampliação semiológica expande-o para o morfônimo &dson Migracielo, ou &. Migracielo. <XLVI> Morfonímia: trans/posição do corpo desencadeado para o papel a partir da escrita/"leitura", da caligrafia enquanto manifestação cursiva de uma voz (um chamamento) que conserva, através da tinta e dos movimentos caligráficos, o seu calor. <XLVII> Esse calor demarca a realidade obrigatória da transposição do corpo para a linguagem, ou da exploração do corpo-território enquanto paisagem.
El libro de los seres imaginários - Jorge Luis Borges
Primeiro, quero dizer sobre a minha alegria em estar de volta a Salvador e agradecer sobretudo ao meu amigo e porto-colo Tarcísio Almeida, por ter sido convidada para este encontro, para esta ação-exposição singular. É com modéstia que penso nos artistas que nasceram e/ou habitaram este lugar antes de nós: João Ubaldo, Gregório de Mattos, Glauber Rocha, Waly Salomão, Pierre Verger, Família Caymmi, os ferreiros de santos dos Arcos da Montanha, dos artistas do MUSAS, os anônimos a quem me reverencio e que fazem a história deste Estado e do nosso cenário cultural. Vou explorar aqui as características do meu percurso como artista e pesquisadora dentro dos conceitos “atalho “e “torno” deste evento. Quero, antes de mais nada, refletir sobre o termo “atalho” aqui colocado como um “desvio” e estendê-lo ao sentido de senda. Senda como um percurso marcado por rastros e resíduos. Fico pensando o que não é o trabalho de Raoni Gondim e de Tarcísio Almeida senão a configuração – o torno, a ferramenta que dá a forma – dos vestígios de um imaginário que pertencem a todos os homens? Pensando bem, como não situar Atalho e Torno como uma poética contemporânea, no ponto
N I N F A S P A R A ATA L H O E T O R N O
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Los antiguos les oferendaban miel, aceite y leche. Eran divinidades menores; no se erigieron templos en su honor.
da fratura nas vértebras citadas por Giorgio Agamben?
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“Por isso o presente que a contemporaneidade percebe tem as vértebras quebradas. O nosso tempo, o presente, não é, de fato, apenas o mais distante: não pode em nenhum caso nos alcançar. O seu dorso está fraturado, e nós nos mantemos exatamente no ponto da fratura. Por isso somos, apesar de tudo, contemporâneos a esse tempo. Compreendam bem que o compromisso que está em questão na contemporaneidade não tem lugar simplesmente no tempo cronológico: é, no tempo cronológico, algo que urge dentro deste e que o transforma. E essa urgência é a intempestividade, o anacronismo que nos permite aprender o nosso tempo na forma de um “muito cedo” que é, também, um “muito tarde”, de um “já” que é, também, um “ainda não”. E, do mesmo modo, reconhecer nas trevas do presente a luz que, sem nunca poder nos alcançar, está perenemente em viagem até nós.”
É inevitável associar as imagens-documentos do sertão de Tarcisio Almeida e as imagens urbanas de Raoni Gondim a uma tentativa de manter aceso o momento mágico entre o passado e o futuro e mais do que isto, nos colocar neste intervalo fraturado para que seja possível contar a nossa própria história, neste mundo tão bombardeado de imagens, como coloca radical e pertinentemente Didi-Huberman. 2
Nunca mostrou tantas verdades tão cruas; nunca, sem dúvida, nos mentiu tanto solicitando nossa credulidade; nunca proliferou tanto e nunca sofreu tanta censura e destruição. Nunca, portanto, — esta impressão se deve sem dúvida ao próprio caráter da situação atual, seu caráter ardente —, a imagem sofreu tantos dilaceramentos, tantas reivindicações contraditórias e tantas rejeições cruzadas, manipulações imorais e execrações moralizantes. Como orientar-se em todas estas bifurcações, em todas estas armadilhas potenciais?”
Assim sendo, me concentrarei na experiência que tive ao ser contaminada por estas imagens de Atalho e Torno e interlocuções que resultaram na publicação Vitamina #2 – Buracos 3 negros não têm cabelos. Colocarei em questão como esses diálogos afetaram e ainda afetam poeticamente o percurso dos meus trabalhos e pesquisas. Ainda no encalço da publicação Buracos negros, parto do princípio que a menor distância entre dois pontos não é reta, mas sim uma geodésica. Ou seja, para relacionar a Percografia de Raoni Gondim e Tarcísio Almeida com o meu percurso artístico, vou traçar um relato sinuoso. Um marco da minha atividade artística foi a minha dissertação de mestrado sobre 4 os parangolés do Helio Oiticica . Na dissertação, tratei dos diálogos que o artista estabelecia com o critico Mário de Andrade, o poeta Haroldo de Campos e o crítico ingles Guy Brett. Nesta pesquisa pude perceber o caráter rizomático e imaginativo do parangolé: cada
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“Nunca a imagem se impôs com tanta força em nosso universo estético, técnico, cotidiano, político, histórico.
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estandarte ou roupa funcionava como um elo fértil que invarialmente produzia outros parangolés e obras. Sob ótica teórica e acadêmica, a relação Oiticica e seus interlocutores produziram conteúdos políticos e intelectuais importantes para a história da arte do Brasil. No entanto, meu real interesse nos parangolés não residia somente neste ponto. Tratava-se de um desafio a ser superado. Havia uma diferença entre mim e os parangolés. Eu havia sido incapaz de experimentá-los durante uma exposição em São Paulo. Naquela ocasião, meu 5 olhar foi capturado por um dos parangolés em uma clara definição de Didi-Huberman quando ele escreve que “o que vemos só vale – só vive – em nossos olhos pelo que nos olha”, no paradoxo joyceano6do “fecha os olhos e vê” a experimentar “coisas a ver de longe e a tocar de perto, coisas que se quer ou não pode acariciar”. Ao olhar os parangolés sem corpos, melancólicos e pendurados nos cabides fui arremessada a uma imagem da minha infância: um mendigo que costurava roupas de saco de farinha em uma rua transversal à que eu morava. Suas roupas eram geométricas, eram quadrados e retângulos costurados que desobedeciam as curvas do corpo. Três coisas eram especialmente insólitas e belas: 1. as meias-botas com requintes de um prisma que buscavam uma forma tridimensional para acomodar o movimento dos pés, 2. Mãos rudes, nodosas e queimadas de sol que faziam dançar, com delicada atenção, as agulhas e o tecido e 3. As roupas imaculadamente brancas em contraste com a calçada de cimento cinza e empoeirada. Na minha visão não era um mendigo, um ser humano privado de sua dignidade , mas era um ser mágico cuja vida transcendia a uma vida comum. Dupla epifania: na imagem da infância e na sobrevivência desta imagem escondida na memória por intermédio de uma obra de arte. Imagens recuperadas e paralisia redimida graças à leitura e audição dos diálogos entre Haroldo de Campos e Helio Oiticica, aonde o poeta chamava os parangolés de asa-delta para o êxtase. Da interlocução de Campos e Oiticica “nasce” o parangolé 30 capa 23. O ponto em comum entre o poeta e artista era a peça de teatro Nô Hagoromo, o manto de plumas, do dramaturgo japonês Zeami Motokiyio (sec. XV) traduzido/transcriado por Campos. Hagoromo é a estória de uma ninfa lunar que perde seu manto na terra, o qual é achado por um pescador que hesita em devolvê-lo.
[…] Tennin (ninfa): e agora: sou ave sem asas querendo voar não posso sem o manto divino […]
Hakuryô (pescador):
sobre o pinheiral de Miho
espere: ouvi sobre as danças angelicais
nuvens de Ukishima sobre
- o manto te devolvo -
os cumes de Ashitaka e do Fujiyama
se dançares
sublimes!
[…]
dissolvem-se no céu
Coro:
do além-céu
a esquerda e à direita
sempre esvoaça
pétalas de lótus ornam
imutável no semprecéu
suavemente as mangas
o manto de plumas
esvoaçam
a visao se extravia: cálidocosmos
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sinuosas e agitadas as mangas dançarinas
o álacre sol nascente vários bailados o anjo - cândido como a lua no céu limpo ao fim da segunda semana (a)tinge: a lua clara bela e rara vários tesouros-veneráveis chovem e ao reino dá o manto guardado a sete-chaves o tempo passa assim como o vento o manto de plumas
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baila
O contato com a interlocução potente de Hélio Oiticica e de Haroldo de Campos se configurou como um ponto de inflexão no meu percurso artístico. Sem espanto, percebo que seres dançantes com vestes diáfanas – agora em sincronia com os parangolés – sempre fizeram parte do meu imaginário e eis que a partir deste momento, o meu encantamento multiplicado – parangolés + memória – tem dobras reflexivas: O que me interessa, de fato, no fazer artístico? Em que medida, os “produtos artísticos” derivam dos “produtos teóricos” e vice-versa? Não seriam os diálogos, a pesquisa, os vestígios, a trajetória, os momentos proustianos de dúvidas e deleite, tão poéticos e vivos quanto os “produtos”? Em muito, estas reflexões tributam o olhar de Giorgio Agamben para o Pathosformel do historiador alemão Aby Warburg.
“um conceito como o de Pathosformel que torna impossível separar a forma do conteúdo, pois designa o indissolúvel entrelaçamento de uma carga emotiva e de uma fórmula iconográfica revela que seu pensamento não pode jamais ser interpretado em termos de oposições superestimadas do tipo forma/conteúdo ou história dos estilos/história da cultura. O que lhe é peculiar, em sua atitude científica, é, mais do que uma nova maneira de fazer a história da arte, uma tensão voltada para a superação dos limites da própria história da arte, tensão que
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acompanha logo de início seu interesse por essa disciplina, e assim podemos acreditar que ele a escolheu unicamente para semear o grão que a faria explodir. O “bom deus” que, segundo seu célebre ditado, “se esconde nos detalhes” não era para ele um deus tutelar da história da arte, mas o demônio obscuro de uma ciência inominada da qual começamos, só hoje, a entrever os traços.” 8 (…) “os Pathosformel de Warburg são um híbrido de matéria e forma, de criação e performance, de primavoltità e repetições.” 9
Pathosformel é, em paráfrase, o procedimento cartográfico aonde história e crítica da arte, história da cultura, interlocuções, produções artísticas e imagens borram os seu limites. Tudo pode ser índice ou elemento para tecer imaginários latentes. No evento Atalho e Torno reside um desejo de justaposição poética entre o artista, o critico e o outro. Abarcando o 10 poético, nas palavras de Júlio Cortázar, como “aquilo que lhe pode dar graus de ser alheios à específica condição humana”. A despeito desta vocação ser vertiginosa demais, evoquei as ninfas de Jorge Luís Borges na epígrafe: as ninfas não têm templos, portanto, não temos por que cultuá-las. Embora elas habitem a mitologia de diversas culturas, o livro Ninfe de Giorgio Agamben, a prancha 46 do Atlas Mnemosyne de Aby Warburg, o parangolé 30 capa 23 de Hélio Oiticica, Hagoromo de Zeami, Hagoromo de Haroldo de Campos e os meus trabalhos, o propósito aqui é alentá-las. Então, à estes seres – símbolos do consciência perfeita na duplo imagem-sombra – uma dádiva com mel, azeite e leite!
1 AGAMBEN, G. O que é o contemporâneo e outros ensaios. São Paulo: Ed. Argos, 2009, p. 65 e 66. 2 DIDI-HUBERMAN, G. Quando as imagens tocam o real In: Pós: Revista do Programa de Pós-graduacão em Artes da Escola de Belas Artes da UFMG. Disponível em: <http://www.eba.ufmg.br/revistapos/index.php/pos/article/view/60>. Acesso em: 05 nov. 2014. 3 Vitamina #2 é uma publicação independente editada por Suzy Okamoto e Tarcísio Almeida em 2014. Entre diversos colaboradores está Raoni Godim com a série de imagens fotográficas intituladas Percografia. 4 OKAMOTO, S. Parangolés, a dança do intelecto: diálogos entre a crítica e a arte. 2004. Dissertacão (Mestrado em Artes Visuais) – Instituto de Artes, Universidade Estadual Paulista Júlio Mesquita Filho – UNESP, São Paulo, 2004. 5 DIDI-HUBERMAN, G. O que vemos o que nos olha. São Paulo: Editora 34, 1998, p. 29. 6 JOYCE, J. apud DIDI-HUBERMAN, 1998, p.29. 7 CAMPOS, H. Hagoromo de Zeami. São Paulo: Estação Liberdade, 2006. 8 AGAMBEN. G. Aby Warburg e a ciência sem nome In: BARTHOLOMEU, Cezar. (org.). Dossiê Warburg. Disponível em: <http://www.ppgav.eba.ufrj.br/wpcontent/uploads/2012/01/ae22_dossie_Cezar-Bartholomeu_Aby-Warburg_Giorgio-Agamben1.pdf.> Acesso em: 06 nov.2014
ripetizione.” Do original em italiano e em tradução livre, mantendo o neologismo “primavoltità”, que significa “personagem pela primeira vez”. AGAMBEN. G. Ninfe. Torino: Bollati Boringhieri, 2007, p. 17. 10 CORTÁZAR. J. Valise de cronópios. São Paulo: Editora Perspectiva, 1993, p. 98.
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9 “le Pathosformel di Warburg, sono degli ibridi di matéria e di forma, di creazione e performance, di primavoltità e
Pesquisando um pouco sobre você e o seu trabalho, foi recorrente a compreensão da trajetória como um espaço de construção. Da construção de uma postura sensível como modo de partilha. Como você compreende essa relação? Conte um pouco de sua construção até a chegada ao Acre... Onde você está sediado e construindo... Então, eu poderia chamar o Espírito da Floresta de trajetória? Explique de forma breve os elementos e personagens envolvidos... Não precisa ser cronológico nessa contação...
Concordo com esse conceito de trajetória, isso foi claro para mim, desde o início. Sempre quis ser escritor; e para quem trabalha com linguagem é difícil pensar em curto prazo; entendo o poema como uma composição de palavras e tempo; os processos são misturas que se dão ao longo do tempo; os devires não precisam ser imediatos, para serem intensos ou vertiginosos. Já pensava assim desde o começo, em relação à literatura; para mim, a literatura sempre teve algo de absorção; via meus escritores favoritos, menos como engenheiros e mais como drogados ou bêbados, numa visão bem romântica; minha leitura também era assim, nunca consegui ler muitas coisas ao mesmo tempo; precisava de tempo para absorver um autor, um texto; quando me interessei por Rosa e li Grande Sertão Veredas, só fazia isso, ou só
A C U R VA D O S E N C A N TO S
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PARTE 1 – Quarta-feira, 20 de agosto de 2014
queria fazer isso, como se precisasse entrar por todos os poros; isso me pareceu óbvio, com a antropologia e a etnomusicologia; parecia-me que não teria muito sentido, se não fosse para viver a experiência; pensando bem ou olhando hoje, talvez seja outra ordem de causalidade: não se trata apenas de morar na Amazônia para estudar essa música, mas também estudar essa música para poder morar na Amazônia.
O Espírito da Floresta é o nome do primeiro livro de cantos do Ibã, publicado em 2006, durante sua formação no ensino médio. Por outro lado, também foi o nome que foi ficando para o nosso projeto de pesquisa, por sempre nos referirmos ao nosso trabalho como “espírito da floresta”; também ficou como nome do vídeo de 2012; mas o sentido dessa expressão, que atravessa todo o nosso trabalho, tem a ver com isso mesmo, uma trajetória; (falei um pouco a respeito disso, trajetórias e encontros, no Nuits de Incertitud da Fundação Cartier e também no depoimento da FC, você viu o vídeo no youtube né?), é na segunda noite; os pesquisadores desse projeto, os artistas do movimento dos artistas Huni Kuin prestam um tributo a um mestre que já faleceu, o velho Romão, foi ele que aprendeu e ensinou os cantos que estudamos; Ibã é filho de Romão; Bane foi o primeiro desenhista do grupo de
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Sobre o percurso, comecei com os Guarani, foi concomitante, a ayahuasca e os guarani; sempre me interessei pela literatura que flertava com drogas ou xamanismo, a linha dionisíaca da literatura; quando li Eurípedes, foi uma espécie de transe; aquilo é que era literatura para mim: teatro e ritual antropofágico se confundem nas bacantes; assim, a ayahuasca me abriu os ouvidos para a música “ritual”; quando ouvi os Guarani, a primeira ideia foi: como criar uma estratégia para colocar meu corpo, meu ouvido, em contato prolongado com esse conhecimento? O mestrado foi a resposta e passei cinco anos debruçado sobre a música e os rituais dos Guarani; cheguei ao Acre, em 2001, para conhecer o lugar onde a cultura ayahuasqueira dos índios tinha brotado um ramo novo, chamado daime; foi quando conheci Ibã e pude ouvi-lo cantar, ao longo de toda uma noite; quase enlouqueci, literalmente; era muito forte para ser sorvido de uma vez só; entendi como um chamado para poder absorver aquela poesia, criar corpo, criar sustância, espaço, experiência; cheguei no Acre para morar, em 2004; desde 2007, estou no Juruá, no outro extremo do Estado; desde 2008, estou na Universidade Federal do Acre, ano em que pude começar de fato a trabalhar com Ibã, que foi um dos acadêmicos da primeira turma de licenciatura indígena do Campus Floresta; algo interessante é que sempre vivemos essa dupla relação: eu sou ao mesmo tempo docente e aprendiz, ainda que aprenda comigo, ele sempre foi mais meu colaborador e mestre que aluno; ele já tinha uma vida de pesquisa e um livro publicado; partimos dessa experiência; começamos a pensar o que poderíamos fazer na aldeia; eu queria trabalhar com vídeo; em 2009, ele trouxe os primeiros desenhos de Bane para Cruzeiro, durante as aulas; ele passava uns dias em casa e me mostrou os desenhos; foi um estalo; na hora que começou a explicar o sentido dos cantos, a partir dos desenhos, corri para pegar a câmera; ainda tenho essas imagens e trabalho nelas para o novo vídeo, O Sonho do Nixi Pae; daí começou nosso projeto de colaboração: o Espírito da Floresta.
artistas-desenhistas.
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Notei então que esses desenhos aprofundavam questões que já me interessavam há muito, a respeito de uma “lógica” ou uma dinâmica perceptiva própria da música; quando busquei ouvir a música guarani e comecei a ler antropólogos que falavam dos índios Guarani, buscava ler nas entrelinhas, se eles se referiam à maneira própria ou distinta dos índios pensarem ou perceberem, de preferência com relação à música; meu norte era a relação oralidade/escrita ou rito/logos; com raras exceções, como Nimuendaju, que descreve rapidamente um cantodança guarani como um campo intensivo, exatamente o que me interessava (MATTOS, 2005). Os demais antropólogos conduziam o pensamento indígena para um logos que não me interessava; as questões postas pelos mitos são fascinantes, mas eu estava em busca do dionisíaco, por isso abordei o trágico em minha dissertação; e os desenhos de Bane plasmavam essa dinâmica musical que me interessava. O audiovisual tem a ver com toda a nossa concepção do trabalho; não se trata de escrever a respeito dele, trata-se de criar, assim como o desenho faz com a música, criar a partir dela; com o audiovisual, pudemos convergir, articular, dispor, no tempo e na percepção, os cantos e a criação visual, os desenhos; fizemos isso com uma outra linguagem; a linguagem do vídeo pode ser usada de forma a ocultar sua potência criadora, como representação de algo que já existe, numa linguagem supostamente objetiva e que, também supostamente, apresenta uma suposta realidade; para nós, interessa a linguagem do vídeo como possibilidade de criação de realidade; mas não é só a linguagem como pode ser entendida tecnicamente; o vídeo possibilitou fazermos da criação um percurso, ele tornou mais claro que nossa criação era um percurso, que era nesse rumo – da trajetória ou travessia – que nos levava nosso trabalho. Eu gostaria muito de focar esse primeiro momento nos pontos de vista de sua atuação, como colaborador, mediador e participante da experiência de produção audiovisual Huni Kuin. Recentemente, li um pouco mais sobre os empreendimentos relacionais do Fernand Deligny, nos anos de 1960 e 70 e nas propostas dele há sempre a questão do que ele chama de linhas de errância que, de forma grosseira, se relacionariam com o agir, com um movimento não representacional, sem intencionalidade, finalidade, aproximando-se do estado do existir propriamente dito, algo que se antepõe à linguagem, mas que é mobilizador da formação de redes de relacionamento, teias... Você se comporta como a aranha de Deligny, junto ao povo Huni Kuin, interessado na própria rede em detrimento da expressão, das linguagens e do que é desenvolvido? Na medida em que quase nada é previsto, a linha de errância de Deligny seria uma imagem e um processo, ou um conceito muito bem lembrado, apropriado e reinventado; sim, o vídeo pode ter essa presença, essa função de articular e produzir experiências e subjetividades, indo além da representação; no entanto, o que não pode passar despercebido é que essa potência de criação já está na música e na mitologia Huni Kuin; nós vivemos, experimenta-
mos, colocamos isso em prática, mas algo está para além de nós; talvez a aranha nos use para seus propósitos; entendo o que diz, quando fala de sobrepor a rede à expressão, quando busca frisar a inversão da importância, que é dada sempre ao produto, em detrimento do processo; no entanto, parece que se trata de fazer convergir a rede, as relações, com as linguagens e mesmo o produto; mesmo que o produto às vezes possa ser um grande problema, pois nem sempre é fácil lidar com dinheiro e com quem vive de ganhar dinheiro com arte. Quando tenho acesso aos empreendimentos que o seu projeto detona, fica claro o interesse em discutir outras maneiras de existência, de estar... Isso faz sentido? Se sim, como você entende essa mobilização estabelecida? Mediando... Criando pontes... Trazendo o olhar para o entrelugar... Funcionando como uma partilha sensível...
Os processos de subjetivação têm essas duas dimensões, assimilo àquilo que Deleuze e Guattari chamam de máquina de guerra e aparelho de captura; de um lado, há os processos de subjetivação detonados pelo nosso trabalho, o devir-artista, o devir-pesquisador, o devirhuni kuin; esses devires já chegam a um campo social em que o Estado se move, atualizando suas subjetividades, suas identidades e categorias funcionais; o Estado produz e atualiza suas identidades; faz isso por meio de seus processos de subjetivação, seus aparelhos de captura. Há, no entanto, um nomadismo em nossos devires, que não têm nada a ver com as identidades de Estado; mesmo quando registramos o MAHKU como associação, o movimento continua a servir mais para proporcionar outras maneiras de existir, diferentes daquelas esperadas dos órgãos de Estado, do que para registrar quem são os artistas, ou pagar impostos. Como você vê a diferença entre tradução e transcriação, em sua experiência Huni Kuin? Vivência, trabalho, projeto e experiência são palavras que se confundem nessas perguntas... Até agora, essas perguntas, acredito eu, são muito referenciadas pelo meu olhar, como um participante indireto do que é desenvolvido e das conexões feitas... São questões que foram catalizadoras de muitos vetores... O principal está na forma como a ideia de memória e tradição é tratada, ela parece ser vista de maneira universal, anacrônica, anti-histórica, despolarizada... Seria a experiência o ponto
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Sobre essa questão de outras maneiras de existir, gostaria de comentar que, desde o início, tenho a preocupação com o impacto de nossas atividades nos artistas Huni Kuin; uma preocupação constante é: será que podemos vir a estimular alguém a sair da aldeia para ir morar na cidade? Por isso, temos sempre a atenção voltada para os efeitos do nosso trabalho; atualmente temos alguns projetos de futuro que visam criar condições para as pessoas viverem na aldeia e terem outras alternativas do que aquelas com que são assediadas pelo Estado e suas políticas assistencialistas, que têm reduzido a pó as comunidades da floresta, sejam elas indígenas ou não.
central para compreender como as relações são aí estabelecidas?
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Sempre tive interesse pelos desenhos indígenas, mas aqui não estávamos e não estamos falando apenas de desenhos, estamos falando de uma “etnografia”, uma etnografia visual que já é a tradução de uma etnografia feita na música, mas, sobretudo, pela música. O tema da tradução é sempre um tema fascinante; no entanto, vemos alguns problemas nesse mundo dos tradutores; compartilho a opinião de Ibã, de que muitos cantores e músicos indígenas não têm seu trabalho e seu conhecimento devidamente reconhecidos nas obras de pesquisadores e tradutores; nossa intenção é escapar à concepção convencional de texto e de tradução; apesar da noção de transcriação ainda estar atada a uma concepção de texto, de letra, de dimensão gráfica da poesia ocidental, ela aprofunda um problema que já tinha sido colocado pela linguística e pelo estruturalismo: traduzir não se restringe a uma troca de significados (tradução literal); é claro que o problema interessa muito mais, quando se trata de poesia, que consiste no outro da linguagem: limite, jogo com as formas, arte, diferença etc... Tudo isso que é a dimensão selvagem da linguagem; mas o que acontece quando se trata de traduzir cantos de uma cultura para outra, quando se trata do selvagem do pensamento selvagem; já estamos lidando com duas dimensões de tradução, pois, nesse pensamento selvagem, os animais, por exemplo, podem falar; muitos antropólogos já assimilaram o xamanismo indígena à arte de traduzir mundos; o xamã seria uma espécie de tradutor, capaz de entrar em outros mundos, falar sua língua, e voltar para dar o recado; esse tipo de tradução também nos interessa muito.
“Tudo no mundo começou com um sim. Uma molécula disse sim a outra molécula e nasceu a vida”. Clarice Lispector, 1998.
Iniciar o relato da minha experiência com uma tradição da cultura brasileira, especificamente o Cavalo Marinho, com a citação do livro Hora da Estrela, de Clarice Lispector (1998), não foi por acaso. Dizer sim ao início deste encontro era inicialmente fazer escolhas, ouvirme mais, ouvir o outro, estar atenta ao experimento, selecionar anseios, promover encontros afetivos, na busca pessoal e sensível de desejos. A centelha que alimentou este trabalho de pesquisa nasceu no ano de 2006, ao me deparar, através da brincadeira do Cavalo Marinho, com lembranças de minha meninice. Foi a partir deste encontro, que senti o desejo de conhecer mais a fundo esta tradição, principalmente porque reconheci algumas figuras desta brincadeira, presentes na minha infância, e isso me remeteu a uma memória autobiográfica, revelando lembranças armazenadas na minha
CAMINHOS TRILHADOS:
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... aprendendo através da experiência com a brincadeira do Cavalo Marinho
experiência afetiva. Damásio (2000, p. 285) ressalta que a memória autobiográfica “contém as memórias que constituem a identidade, juntamente com aquelas que ajudam a definir nossa individualidade”. O autor afirma que recordar eventos vividos no passado denota o registro de uma história de vida do indivíduo. Essa constatação foi fortemente enraizada, quando percebi que o meu corpo era repleto de memórias que me revelavam, e que traziam imagens, numa contribuição de lembranças. Neste mesmo ano, descobri que o Cavalo Marinho é uma tradição popular brasileira realizada por trabalhadores rurais, localizada em Pernambuco e na Paraíba. Trata-se de uma brincadeira do ciclo natalino, que é composta de diversas linguagens (dança, música, teatro, artes visuais, poesia), apresentando uma estrutura rica e complexa, com enredo fixo e muita improvisação. Mas foi em 25 de dezembro de 2008, no encontro de Cavalos Marinhos, na Casa da Rabeca do Brasil, no bairro Cidade Tabajara, em Olinda-PE, que vivenciei, pela primeira vez, uma brincadeira de Cavalo Marinho.
Não queria perder um momento sequer do que estava acontecendo naquele local. Embora não tenha ficado durante uma noite inteira na brincadeira, essa sensação é presente até hoje. Neste meu primeiro encontro com o Cavalo Marinho, assisti apenas algumas partes da brincadeira, extasiada, fascinada com o que meus olhos puderam captar. Ainda não entendia o que os brincadores estavam dizendo, pois usavam máscaras de couro e as palavras eram ininteligíveis, até então desconhecidas para mim. Mas os corpos dos brincadores eram bastante potentes, preenchidos de muitas gestualidades. Existia um corpo diferente naquela empreitada, uma explosão de ancestralidade festiva (OLIVEIRA, 2006, p. 53) presente nos que participavam e em alguns que assistiam. Acredito que foi a partir deste dia que o meu encontro com o Cavalo Marinho aconteceu efetivamente. Pois bem, retorno ao encontro de Cavalos Marinhos, na Casa da Rabeca do Brasil, depois de dois anos, em 2010. Desta vez, pude participar durante uma noite inteira de brincadeira, com aproximadamente oito horas ininterruptas. E foi a partir deste encontro que tive a oportunidade de conhecer os brincadores e selar um contato direto com a brincadeira, vivenciando e observando como era desenvolvida.
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Lembro-me da primeira sensação que tive, quando cheguei nesta localidade. Ao pisar naquele chão batido, senti como se estivesse entrando num portal mágico, de muitas cores, sonhos, alegria, vida. Saí correndo em direção àquele som ligeiro e embriagante, que entrava pelos meus ouvidos e impulsionava o meu corpo. Tudo era muito colorido, tantas cores, que se formava um mosaico harmônico na minha percepção.
Em conversa despretensiosa com um senhor que coordenava o Cavalo Marinho Estrela do Oriente, este me revelou que assistiu pela primeira vez o Cavalo Marinho com nove anos de idade, no engenho em que trabalhava, e se apaixonou pela brincadeira.
“É assim, o seguinte, eu entrei no Cavalo Marim por paixão, porque eu trabalhava no Engenho Banguê, era minino, muito criança, eu tinha nove anos de idade. Fui olhar um Cavalo Marim e fiquei apaixonado. Apaixonado pelo Cavalo Marim, ficou invertido no meu coração aquele Cavalo Marim, aquela coisa. [...] Me apaixonei pelo Cavalo Marim, entrou no meu peito, gravou no meu coração, eu achei que é uma satisfação, muito linda e especiá”.
Quando o indaguei sobre o seu aprendizado da dança, respondeu que o corpo que dança a brincadeira do Cavalo Marinho é o mesmo corpo utilizado no trabalho do corte da cana. Afirmou que “até pra trabalhar no roçado tem que ter o corpo e postura apropriada”. E reforçou explicando este corpo de forma poética:
“O corpo da gente, é o corpo para trabalhar, é o corpo para se dançar, é o corpo pra você girar, até pra vestir a
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roupa você tem que ter o corpo leve... Tudo isso é movimento, tudo isso é instrução, tudo isso é quem trabalha na cana, tudo isso é quem trabalha no campo”.
Um corpo que é possuidor de uma história de vida, que se alimenta de um processo dinâmico, atravessado por experiências criativas e que está em constante formação e transformação, como afirma Acselrad (2002, p. 98): “O corpo é o eixo de relação com o mundo. É o lugar onde se constituem e propagam as significações que fundam a experiência individual e coletiva”. Aquele senhor, que brindava comigo o encontro e me revelava a brincadeira, um tempo depois, o reconheci como meu mestre, Mestre Inácio Lucindo. Foi a partir dos contatos e observação desta noite que percebi o começo de um novo caminho. Embora o teatro e o Cavalo Marinho se encontrem em universos distintos, identifiquei elementos comuns entre eles, como por exemplo, corpo, jogo, improviso, comicidade, entre outros. Com isso, tracei como trajetória da minha pesquisa adentrar estes elementos encontrados, observando as potencialidades e possibilidades que poderiam proporcionar ao processo de criação cênica. Tudo isso no desejo de construir um caminho pessoal, como artista da cena. A partir daí, pedi licença para adentrar este universo, e retratar o que ouvi, o que vi e o que senti nesta investigação. Mas o caminho de pesquisa obrigou-me a fazer escolhas, o que me levou a refletir sobre qual a direção que queria seguir. Com o alinhavar do tempo, ela foi se
delineando gradativamente. Neste aprendizado, busquei um aprimoramento/aprofundamento da sensibilidade do meu próprio corpo, através de memórias vivenciadas e livres improvisações, por meio de ações físicas e vocais. Toda essa prática contribuiu para refletir sobre a própria brincadeira do Cavalo Marinho, como ela se configura e sobre o meu trabalho de laboratório e criação cênica, tendo esta tradição como base. Nesta intensa e verticalizada pesquisa, criei a aula-espetáculo Trançados de Memória de uma Atriz-Brincante, que revela os caminhos percorridos por mim, no diálogo entre teatro e cultura popular, mais especificamente o Cavalo Marinho da Zona da Mata Norte de Pernambuco. Aí são revelados de forma poética alguns elementos encontrados nesta tradição, e que contribuíram para a construção de um laboratório individual de experimentações cênicas, que perpassam por elementos sonoros e imagéticos, táteis, visuais, entre outros.
Assim brindo e sigo este aprendizado em movimento, em contínua transformação, como um rio que segue seu percurso e nunca se repete, sendo, portanto, repleto de descobertas. Registro aqui o meu respeito pela brincadeira do Cavalo Marinho e por todos aqueles que participam direta e indiretamente desta tradição.
REFERÊNCIAS: ACSELRAD, Maria. “Viva Pareia!” A arte da brincadeira ou a beleza da safadeza – uma abordagem antropológica da estética do Cavalo-Marinho. 2002. 200 f. Dissertação (Mestrado em Sociologia e Antropologia) – Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2002. DAMÁSIO, António. O mistério da consciência: do corpo e das emoções ao conhecimento de si. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. OLIVEIRA, Érico José Souza de. A roda do mundo gira: um olhar sobre o Cavalo Marinho Estrela de Ouro (Condado-PE). Recife: SESC, 2006.
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Todo o caminho de reflexão sobre esta tradição levou-me a entender o aprendizado por meio da experiência. Foi no convívio com os brincadores, nas oficinas e na apreciação da brincadeira do Cavalo Marinho, que consegui apreender um pouco mais sobre esta tradição, ampliando a minha reflexão referente ao jogo e às relações que se estabelecem. Compreendi que aprender também faz parte da construção do próprio conhecimento, e isso reverberou em acessar lugares da minha memória, história pessoal e reflexos da minha vida como artista.
EM CASA
2. Prossiga. O próximo livro é Olhos secos, romance de Bernardo Ajzenberg, publicado pela Rocco, em 2009. Vá até a página 122 e procure pela passagem que começa com “Levantouse…” e termina em “… se arrastou até a cozinha”. 3. “Sobre a mesa jaziam os restos […] não parecia ter sido consumida muita coisa”. Chegamos à nossa terceira contribuição, encontrada em O veredicto/Na colônia penal, de Franz Kafka. Modesto Carone fez a tradução deste trecho, da página 15 – e de todos os outros trechos de todas as outras páginas – da edição publicada pela Companhia das Letras, no ano de 2009. 4. Ainda com Franz Kakfa, mesmo livro, mesmo local, atentem para este importante fragmento: “O pai estava sentado”. 5. “o copo de vinho à mão”, é o que diz Cristovão Tezza, em Um erro emocional, na página 90 deste romance publicado pela Record, em 2010. 6. Novo parágrafo: “– Dê só uma olhada – ele pediu, com”. Assinatura de Orhan Pamuk, página 9 do tocante A maleta do meu pai. A tradução é de Sérgio Flaksman, da obra publicada
P I S TA S D E L E I T U R A P A R A C O M P O R U M C O N T O TA LV E Z C H A M A D O
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1. O primeiro livro a ser aberto é O pequeno vampiro, de Angela Sommer-Bodenburg, publicado pela Martins Fontes, em 1993, com tradução de João Azenha Jr. Abra na página 44 e leia o trecho que vai de “Quando Anton acordou…” até “… tinha torta no forno!”.
cada pela Companhia das Letras, em 2007. 7. Vamos de “a expressão fatigada…” até “…farto de representar”. Nossa sétima contribuição vem de um conto de Lygia Fagundes Telles, chamado “Apenas um saxofone”, incluído na antologia Liberdade até agora, organizada por Márcio Debellian e Eduardo Coelho, e publicada pela Móbile, em 2011. O excerto se acha na página 149. 8. “Depois de”, é a curta, porém decisiva colaboração de Azar Nafisi, autora de Lendo Lolita em Teerã, onde a passagem se esconde na página 196. A tradução é de Fernando Esteves, da obra publicada pelo selo BestBolso da Record, em 2009. 9. O nome “Anton”, do trecho já utilizado do livro de Angela Sommer-Bodenburg. 10. Completamos uma dezena de colaborações! Merecemos comemorações? Adiante! Uma contribuição mais longa da mesma página do Lendo Lolita em Teerã, de Azar Nafisi: “atacar um tomate cereja que ficava continuamente deslizando do seu garfo”. Bonito, não?
12. Opa! Erramos. Há uma segunda contribuição de Hermann Brock. Mesma página, mesmo livro. Glória! Estamos salvos. Vamos a ela: “murmurou: – Cão, cão, falta à sua palavra”. Esse sim… verdadeiro poeta. Concordam? 13. “Tens de mendigar o teu pão”, frase forte de Daniel Defoe, encontrada na página 14, de Robinson Crusoé, em adaptação e revisão de Terra de Sena, da obra publicada pela Minerva, em 1954 (ainda a temos aqui, legível!). 14. “Conheço um lugar melhor para fazer isso”, diz Adriana Lunardi, em A vendedora de fósforos, página 75, publicado pela Rocco, em 2011. 15. Agora três contribuições, em sequência, de Angela Sommer-Bodenburg, do seu O pequeno Vampiro. Lembram-se deste livro? Ah, como era boa a infância! Cada trecho vem de uma página: “Por um momento […] ficou indeciso”: página 37. 16. Avancemos à página 131, indo de “Repuxou…” até “…e sorriu”. 17. “– Eu… vou dormir – disse.”, lá na página seguinte, 132. 18. “– Que palhaçada é esta?” – pergunta o arretado Marcelino Freire, em “Vovô Valério vai voar”, outro conto da já mencionada antologia Liberdade até agora, na página 239.
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11. Um autor tão bom, um livro tão extenso! E dele faremos uso de apenas um curtíssimo fragmento… “o velho”. É isso. Que vergonha. Precisamos seguir. Não antes sem revelar a glorisosa fonte: Hermann Brock, “Pasenow ou O Romantismo”, novela encontrada em Os sonâmbulos. Tradução de Wilson Hilário Borges, editora Germinal, 2003. A página é a alva 105.
19. “– falou”, diz ainda Marcelino, mesmo livro, desta vez na página 232. 20. Façamos um retorno – crucial, diríamos – a Kafka. Operando uma redução em fragmento previamente utilizado, iremos ao encontro de sua contribuição, mais decisiva, um trecho de extrema potência, formado por palavras cuja força expressiva só podemos encontrar em páginas compostas pelas mãos deste mestre: “o pai”. 21. Dorothy Parker, em “Meia-idade, triste idade”, publicado na página 205 da revista Serrote número 7, pelo Instituto Moreira Salles, em 2011, dirige-nos o seguinte apelo: “– Já não há erros; você cometeu todos eles”.
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22. “e não pôde ver… tinha ficado vermelho”. Com esse trecho, novamente da estimada Angela Sommer-Bodenburg, lido na primeiríssima página do seu O pequeno vampiro, nos despedimos. A investigação, no entanto, permanece aberta.
EU BONECA
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Era uma tarde ordinária de uma semana qualquer. O horário? Período matutino, por volta de umas 10 horas. Era o ano de 1990, antes do mês de outubro, portanto davam-me apenas nove anos de idade. Airton Senna ainda estava vivo; Fernando Collor de Melo assume a presidência do Brasil e, de presente, confisca todo o dinheiro existente nas contas-poupança dos brasileiros; onze jovens são mortos e o evento fica conhecido como a Chacina de Acari; meu avô perde todo o seu dinheiro; e eu encontro uma boneca Barbie usada, no banco de cimento da Associação dos Funcionários Municipais de Londrina (AFML). Éramos sócios deste clube, porque nosso tio era funcionário público da prefeitura, dando direito à minha família, por meio da figura materna, a frequentar as suas dependências. Era período de férias. Talvez mês de fevereiro (na época, eu nem sabia de Iemanjá). Estávamos eu e minha mãe na Associação. Até meus sete anos, eu podia entrar no banheiro feminino, desde que sob seus cuidados. Achava bastante engraçado eu ali, baixinho, numa altura cujo horizonte era os órgãos sexuais de todas as mulheres mais velhas, incluindo-se, nesta lista, as jovens competidoras de natação, com idade superior a quinze anos. Obviamente, eu reparava no corte dos pelos pubianos de todas elas, muito mais do que no desenho de seus grandes ou pequenos lábios. As mais jovens, quando não tinham pelos, possuíam tosa verão e, as mais velhas, mantinham certa protuberância, aparando apenas a chamada “virilha”. Isto são apenas lampejos, porque no dia em que encontrei a boneca, eu estava do lado de fora do banheiro, sentado em um comprido banco de cimento, com cerca de oito metros de comprimento. À minha frente, ficava a piscina das crianças, ao fundo, um pequeno jardim, sem
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flores, apenas grama e quatro grandes árvores; à esquerda, ficava o corredor coberto onde se encontrava a saída das piscinas, a entrada do banheiro feminino, uma mesa de pebolim e outra de pingue-pongue; à direita, estavam o bar e o salão de festas. O bar possuía uma sinalização vermelha, propaganda de alguma cerveja patrocinadora e, para chegar até ele, onde sempre podia comprar deliciosos salgados, era obrigado a subir quatro longos degraus. Havia também suspiros coloridos. Ao fundo da piscina de crianças, existia a rua para o tráfego dos carros e, depois da pista, um enorme bosque, lotado de árvores, sob as quais pequenas choupanas para churrasco, entre amigos ou família. Era um dia lindo, ensolarado, com luz clara e céu extremamente limpo, quase sem nuvens, bastante intenso de azuis. Cansado de esperar minha mãe sair do banho – pois ali não era um espaço apenas para se limpar do cloro, mas também para colocar o assunto em dia, com as amigas do clube, nada de fofocas porque ela nunca foi adepta destes temas, mas sempre gostou de vários dedos de prosa –; fiquei a procurar para onde olhar e o que fazer, quando, ao abaixar meus olhos para o lado direto do banco, avistei uma boneca completamente nua e solitária; abandonada ao tempo. Eu a olhei e ela retribuiu. Seus cabelos eram louros e muito maltratados, talvez fosse uma boneca com certa idade, mas não importava. Hesitei durante alguns minutos, ou apenas alguns segundos – que para mim duraram horas –, e não a roubei. Salvei-a da imensidão física daquele gigantesco espaço recreativo. Coloquei-a imediatamente dentro de minha mochila (era de uma loja chamada Jack-you). Tremia por dentro, menos do que por fora. Meus olhos denunciavam minha atitude, pensava-me errado em fazer aquilo; tinha medo de contar a minha mãe e de ser repreendido, ao mesmo tempo em que meu sangue corria mais rápido, mais quente, mais espesso. Suei. Tremi. Sorri. Era errado aos meninos terem bonecas, eu deveria ter e querer carrinhos ou “transformers”, jamais uma boneca. Recuperei o fôlego, o equilíbrio, minhas pupilas voltaram ao tamanho normal, para um dia tão iluminado e minha boca não mais ficou seca. Sempre quis uma boneca. Não era uma boneca qualquer, era uma Barbie! Não podia ser melhor. No exato momento em que puxava as cordinhas de minha mochila, fechando-a, minha mãe se coloca a minha frente. “Vamos”, disse ela. A adrenalina novamente tomou conta de mim, eu a olhei profundamente para tentar descobrir se ela notara algo diferente em mim, mas não! Fomos para casa. O caminho de volta era grande, igual ao de ida, mas sempre prazeroso. Passávamos por várias chácaras, numa delas plantavam morangos, noutra legumes e verduras e, numa terceira, flores. O caminho era de terra vermelha, sendo adequado apenas em dias como esses, pois a chuva fazia da terra, lama. No meio do caminho, havia um córrego (cujo nome desconheço até hoje) e, atravessá-lo, era uma euforia no bom e no mau sentido, pois existia uma estreita tábua de madeira estendida com cerca de uns cinquenta centímetros de largura. O comprimento eu não lembro, mas sempre achei que fossem quilômetros, porque quando se é criança as dimensões não têm escala. Depois de uma hora e meia de caminhada chegamos em casa. No fim do dia, chamei-a para conversar e contei meu feito. Ela disse: “farei um bustiê e uma saia para ela amanhã, durante o dia, e à noite vamos à casa da Dona Amélia, ela costura roupas para bonecas”. O bustiê era uma tira de Lycra laranja e a saia, de um tecido grosso preto, com botão de
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pressão. Depois compramos um vestido de festa verde, um vestido de renda branco, e um conjunto de camisa xadrez e saia de algodão azul-marinho até o joelho e mais dois pares de sapato, um amarelo e outro rosa. Naquela época, as cores e intensidades eram diferentes das de hoje, mas apenas atualmente descobri que naquele momento eu não queria ter uma boneca, eu queria ser uma boneca. Eu-boneca!
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O PODER DA REFERÊNCIA ESTÁ NO INTERFLUXO DA LINGUAGEM
O ourives Júnio, de São João, no São João. Filho de garimpeiro, veio por trilha para Caeté Açu com um rádio a bateria. Deve R$ 37,00 para a União e entre serviços gerais, faz anéis com moedas ou qualquer objeto esférico que encontra. Cada peça leva em média meio dia para ficar pronta. Sua diária custa R$ 30,00, ou seja, cada anel custa em média R$ 15,00 [se não lhe fizer falta]. Outrora quiseram que ele vendesse um diamante que garimpou por 60,00 dólares para um gringo que passava. Não tendo como pesar a pedra, resolveu então comprar do mesmo gringo uma nota de 1 dólar por 5 reais. Júnio; seu dólar, seu diamante, radiola e calculadas horas de trabalho.
O presente O pintor Lenio Braga da cidade de Salvador da Bahia de Todos os Santos estando de viagem por São Paulo escreveu estes desenhos para sua sobrinha Jurema, no ano da graça de 1964, primavera, dando graças ao céu por ser isto um violão e não um piano de cauda. (Obra)
O canto
Engrenagem Entre 1992/93 adquiriu-se por uma quantia aproximada de 2 mil dólares uma carteira de permissão para exercer o laboro de engraxate no Barclays Bank, localizado no edifício Word Trade Center da cidade de Nova Iorque. Cobravam-se 4 dólares por lustro e 5 pelo lustroplus, que consistia numa espessa camada a mais de graxa a que, com o tempo, quebrava o couro do sapato e então se cobravam mais 4 dólares para remover todas as camadas que, de 4 em 4, pouparam com zelo, a possibilidade de despendiar uma pequena fortuna a respeito de complicações de dente e nos rins. “Me disseram que essas são as piores dores, e eu não gosto de sentir dor”.
***
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Na ensolarada memória de 1973, sob o sol de um oásis libanês, fora chancelada na noite que findava, anunciando a cáfila de camelos no primeiro dedo de sol, o indício de uma maré alta cujas conchas foram datadas baianas. Há rumores que provas deste feito estejam contidas numa folha que fora utilizada como suporte, cunhado em letras de ouro, o canto daquela manhã de iemanjá.
Eu, fluxo. Tu, reflexo; Tudo inflexo
Em cima, circunflexo. Um côncavo, dois convexos
Prospectos: o todo como espectro.
***
Não saber é um estado de graça, domínio do nulo, do buraco. Nesse esteio do vazio, percorro; latomia poética. Interessa-me o que vibra; quando o nada reverbera, constituindo porosidades que me sugam para dentro de cada microcósmico devaneio de espaço e, abduzido por Isso que não me atrevo a narrar coercivamente, transpiro coisas que me borram as fronteiras... Meu-eixo: perpassa. Não estou aqui, estou a caminho. Corpo é índice e as verdades são poentes. 135
SSA - 17: 49
***
Tudo se ampliava enquanto eu, de óculos esfumaçados era levado a uma natureza inescrupulosa de amiúdes. Embriagado de pólen, tentando fazer com que qualquer galho seco viesse a dar flores; nesse momento eu havia percebido que tudo eram cores e quando as tragava, puxava junto ao meu plexo as irrisoriedades daquilo que finge, eu, exfinge... Brotavam em rosas os caules alaranjados de tudo o que era verde. O silêncio, um qualquer lugar... O vento ruía com qualquer clareza. Dentro era oco, era oca e Serpenteava com tanto... Que me fazia sentir concomitante (...) Sobre as águas rasas desciam as virtudes de toda a natureza, espelhava o céu liso em azul, folhas soltas; avessas de continuidade - realidade bruta como todo jardim que se põe encantado. Meio a âmbar-água se pode sentir de longe o grave silêncio do tempo e(s)coando. Para trás, tantos cipós entrelaçados, tanta sombra lutando por luz, tanta fé verde-úmida, que nesse passo [mágico] recorreu aos olhos fechados. Enraizou-se profundamente e então se espargiu: Era o fogo que transMutava. DIAMANTINA - 21: 06 - 2010
Evanescimento vento vento brisa sândalo-plexo paisagem ventovento arrepio-vento vento cinza nebuloso-vento vento- brisa: uma gOta no antebraço vento-passo
*
Ruína: memória | matéria
Corpo-território: Ideia de ciência
Atualização: operação de território
como sintoma; heterogenias...
Sincronia
Serendipidade [entre]
Na memória da pedra
Matéria é território
No inconsciente do barro
Ocupação: Ideia de espaço
Na fluência das águas _______________________________ vazios
...
cheios
(Pleno /
(Mecanismos de
Completo )
apropriação)
Instancias de realidade atribuída (Linguagem) *
A narrativa percográfica seria uma calendos-cópia da experiência... Ou apenas uma pro.esia
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Incorporal é matéria
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O Itinerante Imaginário surgiu a partir da necessidade de se consumar num único nome o meu trabalho plástico e cênico. Eu sou um itinerante: nasci no Chile e saí a viajar pelas estradas de Sudamerica, me alimentado e nutrindo-me de experiências artísticas, sempre a partir do imaginário. De alguma forma, a imaginação é o aspecto criativo da mente. Ela vai criando suas imagens desde uma fonte diferente à da criação intelectual. E a viagem, o estar em viagem, alimenta essa fonte de criação imaginária. Quando criamos a partir da imaginação, criamos a partir de outro estado de atenção, que não o intelectual. É a mesma fonte na qual bebem os sonhos, na qual bebem muitas expressões espontâneas, manifestas. (...) Os personagens que crio com meu corpo também são seres imaginários. Eles vão crescendo na itinerância. O contato com diferentes ambientes e públicos vai despertando novidades neles. E eu sou um ente que faz uma experiência imaginária. A parte cênica de meu trabalho é aquela onde acontece o encontro com o palhaço e o circo – e com a possibilidade que se tem, no circo, de reunir muitas linguagens artísticas. Especialmente no circo de rua, porque nele você cria um palco onde não há um palco, cria uma cena a partir de algo que seria apenas cotidiano, tornando-o especial. Das pessoas ocupadas e atarefadas, surge uma plateia – uma plateia valiosa. Pessoas que, ao saírem de suas casas, não sabiam que seriam plateia nesse dia aparentemente igual aos outros. (...) (...) Enquanto os vou desenhando, entro em um estado em que perco a atenção da forma, daquilo que estou traçando. Começo a meditar. É um estado de introspecção meditativa: a imaginação é um aspecto criativo que tem a mente. (...) A itinerância também tem a ver com a constante adaptação ao novo campo, ao desafio novo e ao contato com pessoas novas – contatos que me trazem também experiências novas de mim mesmo. Assim, itinerar é uma forma de lembrar-me de que somos seres com a capacidade de mudar, de nos transformar – e de que há espaços novos e que sempre se pode voltar a iniciar. Ao mesmo tempo, há uma armadilha: a ilusão de que estou me movimentando por dentro, só porque estou me movimentando por fora. Por isso meu trabalho me é tão importante – porque através dele vou construindo alguma coisa nessa itinerância. Trabalhando, não me perco. Porque eu estaria andando em círculos se itinerasse sem essa troca efetiva com cada lugar por onde passo. Eu não teria nenhum reflexo. (...)
ÍNDICE PÓ.BOI.PEDRA - PERCOGRAFIAS
Fig. 4 : Fotografia digital / Raoni Gondim / Vale do Capão BA / 2014 Fig. 5 : Fotografia digital / Raoni Gondim / Povoado do
Pág. 03 - Fotografia digital / Raoni Gondim / Vale do Capão BA/ 2014 Pág. 04 - Fotografia digital / Raoni Gondim / Vale do Capão BA/ 2014 Pág. 05 - Fotografia digital / Raoni Gondim / Vale do Capão BA/ 2014 Pág. 06 - Fotografia digital / Raoni Gondim / Vale do Capão BA/ 2014 Pág. 07 - Fig. 1: Fotografia digital/ Raoni Gondim / BA/ 2014 Fig. 2: Registro fotográfico / Ocupação Atalho e Torno / BA / 2014 Pág. 08 - Fig. 1: Fotografia digital / Raoni Gondim / Vale do Capão BA / 2014 Fig. 2 : Fotografia digital / Raoni Gondim / Rio de Contas BA / 2014 Fig. 3 : Fotografia digital / Raoni Gondim / Vale do Capão BA / 2014 Pág. 09 - Transcrição de áudio/ O diálogo e seus porquês / Raoni Gondim e Tarcísio Almeida / Salvador BA/ 2014 Pág. 16 - Fig. 1: Registro fotográfico/ Ocupação Atalho e Torno / Salvador BA / 2014 Fig. 2: Fotografia digital / Raoni Gondim / Rio de Contas BA/ 2014 Pág. 17- Fotografia digital / Raoni Gondim / Rio de Contas BA / 2014 Pág. 18 - Fig. 1: Ilustração / Lucas Gondim / Argentina / 2014 Fig.2: Fotografia digital / Raoni Gondim / Vale do Capão BA / 2014 Poesia / Provérbios escutados no silêncio das pedras / Homem Pedra / 2014 Pág. 19 - Fig. 1 : Fotografia digital / Raoni Gondim / Vale do Capão BA / 2014 Fig. 2 : Fotografia digital / Raoni Gondim / Vale do Capão BA / 2014 Fig. 3 : Fotografia digital / Raoni Gondim / Rio de Contas BA / 2014
Mato Grosso / Rio de Contas BA / 2014 Pág. 20 - Citações transcritas / Notas sobre a Experiência e o saber de experiência/ Jorge Bondía Larrosa /BH / trad. 2002 Pág. 23 - Citações transcritas / Ética, Spinoza / Trad. Tomaz Tadeu/ Ed. Autêntica / 2013. Pág. 31 - Fig. 1: Cópia digital / Já Lembrou de Deus Hoje / Zofir Brasil / Rio de Contas BA / 1963-1980 Transcrição / Mente e natureza. A unidade necessária / Gregory Bateson / Ed. Francisco Alves / 1986 Pág. 34 - Fig. 1: Fotografia digital / Raoni Gondim / Rio de Contas BA/ 2014 Pág. 35 - Fig. 1: Fotografia digital / Raoni Gondim / Rio de Contas BA / 2014 Pág. 36 - Fig. 1: Fotografia digital / Raoni Gondim / Vale do Capão BA / 2014 Fig. 2 : Fotografia digital / Raoni Gondim / Povoado do Mato Grosso / Rio de Contas BA / 2014 Fig. 3 : Fotografia digital / Raoni Gondim / Vale do Capão BA / 2014 Fig. 4 : Fotografia digital / Raoni Gondim / Vale do Capão BA / 2014 Pág. 37 - Transcrição de áudio / D. Maria e Sr. Genésio / Vale do Capão BA/ 2014 Pág. 39 - Fig. 1 dir.: Fotografia digital / registro / Flávia Memória / BA-CE / 2013 Fig. 2 : Fotografia digital / registro / Flávia Memória / BA-CE / 2013 Pág. 40 - Fig. 1: Fotografia digital / Série Sempre-Viva / Natalia Cavalcante / Rio de Contas BA / 2014 Pág. 42 - Fig. 1: Fotografia digital / Série Sempre-Viva / Natalia Cavalcante / Salvador BA/ 2014 Pág. 44 - Fig. 1: Fotografia digital / Série Sempre-Viva / Natalia Cavalcante / Salvador BA / 2014 Prosa / Água Corrente / Homem Pedra / 2014 Pág. 45 - Fig. 1: Fotografia digital / Natalia Cavalcante / Rio de Contas BA / 2014 Fig. 2: Fotografia digital / Natalia Cavalcante / Rio de Contas BA / 2014
Fig. 3 : Fotografia digital / Natalia Cavalcante / Povoado
Pág. 68 - Fig. 1 : Fotografia digital / Raoni Gondim / Rio
do Mato Grosso / Rio de Contas BA / 2014
de Contas BA/ 2014
Fig. 4 : Fotografia digital / Natalia Cavalcante / Rio de
Pág. 69 - Artigo / Notas sobre experiências que não
Contas BA / 2014
podem ser ditas / Dante Nery e Fernanda Rios / SP/ 2014
Pág. 46 - Transcrição / Oficinas Percografias / Chapada
Pág. 72,73 e 74 - Registro processo / Oficinas Percogra-
Diamantina BA / 2014
fias / Rio de Contas BA / 2014
Pág. 51 - Fig. 1: Cópia digital / detalhe de obra / Zofir
Pág. 75 - Transcrição / Teorias da imagem na antigui-
Brasil / Rio de Contas BA / 1963-1980
dade / Org. Marcelo P. Marques / Ed. Paulus / 2012
Fig. 2: Cópia digital / detalhe de obra / Zofir Brasil / Rio
Pág. 77 - Artigo / Narrativas do Impossível / Dante Nery
de Contas BA/ 1963-1980
/ São Paulo SP / 2014
Pág. 52 - Fotografia digital / registro de viagem, Celeste
Pág. 81, 82 e 83 - Registro de performance / Yara Pina /
Wanner / Walden Pond / 2013
Goiânia GO / 2013
Pág. 53 - Ensaio / Convite a leveza / Celeste Wanner /
Pág. 84 - Fig. 1 : Fotografia digital / Raoni Gondim /
Salvador BA / 2013
Povoado do Mato Grosso / Rio de Contas BA / 2014
Pág. 56 - Fig. 1 : Registro performance / Yasmin Adorno
Pág. 85 - Transcrição/ Eram os índios astrônomos? /
/ Brasília DF / 2014
Luiz Galdino / Revista Planeta / SP / 1974
Fig. 2 : Fotografia digital / Raoni Gondim / Vale do Capão
Pág. 93 - Registro de acervo / Singoala / Texto sagrado
BA / 2014
s/ folha seca/ Deserto da Líbia/ 1973
Fig. 3 : Fotografia digital / Raoni Gondim / Vale do Capão
Pág. 94 - Fig. 1 : Fotografia digital / registro / Flávia
BA / 2014
Memória / BA - CE / 2013
Pág. 57 - Ensaio / O Tempo Imemorial / Rodrigo Maltez /
Pág. 95 - Transcrição do mito de yube inu / Fragmento
Trad. do autor / Berlim / 2013
do artigo O Sonho do Nixi Pae, a arte do mahku –
Pág. 59 - Artigo / The Piper at the Gates of Down /
movimento dos artistas huni kuin / Ibã Huni Kuin e
Flávia Memória / Fortaleza CE / 2014 Pág. 64 - Fig. 1 : Cópia digital / Uma mão lava a outra e duas lavam o rosto e O trono da arte / Zofir Brasil / Rio de Contas BA / 1963-1980 Fig. 2: Cópia digital / detalhe de obra / Zofir Brasil / Rio
Amilton Mattos / AC / 2014 Pág. 99 - Prolegômenos Autopluriconstelares / &. Migracielo / Vale do Capão / 2014 Pág. 103 - Fig. 1 : Fotografia digital / registro de viagem / Fernanda Rios / Etiópia/2008
de Contas BA / 1963-1980
Fig. 2 : Fotografia digital / Raoni Gondim / Povoado do
Pág. 65 - Fig. 1 : Fotografia digital / Raoni Gondim / Rio
Mato Grosso / Rio de Contas BA / 2014
de Contas BA / 2014
Pág. 104 - Fig. 1 : Fotografia digital / registro de viagem
Pág. 66 - Fig. 1 : Fotografia digital / Raoni Gondim / Vale
/ Fernanda Rios / Etiópia /2008
do Capão BA / 2014
Fig. 2 : Fotografia digital / Raoni Gondim / Povoado do
Fig. 2 : Fotografia digital / Raoni Gondim / Vale do Capão BA / 2014 Fig. 3 : Fotografia digital / Raoni Gondim / Vale do Capão
Mato Grosso / Rio de Contas BA / 2014 Pág. 105 - Ensaio / Ninfas para Atalho e Torno / Suzy Okamoto / São Paulo SP / 2014
BA / 2014
Pág. 108 - Fig. 1 : fotografia digital / registro de viagem /
Pág. 67- Fig. 1 : Cópia digital / detalhe de obra / Zofir
Fernanda Rios / Etiópia / 2008
Brasil / Rio de Contas BA / 1963-1980
Pág. 111 - Entrevista / Curva dos Encantos / Tarcísio
Fig. 2 : Fotografia digital / Raoni Gondim / Rio de Contas BA / 2014
Almeida e Amilton Matos / BA - AC / 2014 Pág. 116 e 117- Cópia digital / caderno de anotações/ Hélio Fervenza / RS / entre 2011 e 2014
Pág. 118 - Fig. 1 : Fotografia digital / Raoni Gondim / Rio de Contas BA / 2014 Fig. 2 : Fotografia digital / Raoni Gondim / Rio de Contas BA/ 2014 Fig. 3 : Fotografia digital / Raoni Gondim / Rio de Contas BA/ 2014 Fig. 4 : Fotografia digital / registro de viagem/ Fernanda Rios / Etiópia/2008 Fig. 5 : Fotografia digital / Raoni Gondim / Rio de Contas BA/ 2014 Pág. 119 - Artigo / Caminhos Trilhados / Flávia Gaudêncio/ Salvador BA / 2014 Pág. 123 - Fig. 1 : Fotografia digital / Luana Brant / Paris / 2011 Fig. 2 : Fotografia digital / Luana Brant / Paris / 2011 Fig. 3 : Fotografia digital / registro de viagem / Fernanda Rios / Etiópia / 2008 Pág. 124 - Registro fotográfico / Colagem Junix / Ocupação Atalho e Torno Salvador BA / 2014 Pág. 125 - Prosa / Pistas de leitura para compor um conto talvez chamado “Em casa” / Leonardo Villa-Forte / Rio de Janeiro RJ / 2014 Pág. 128 - Frame de vídeo / Buraco de minhoca / Martins Neto / Rio de Contas BA / 2013 Pág. 129 - Ensaio / Eu boneca / Fabio Gatti / 2012 Pág. 131 - Fig. 1: Frame de vídeo / Buraco de minhoca / Martins Neto / Rio de Contas BA / 2013 Pág. 132 - Fotografia digital / Alma Lavada / Miguel Castilho / SP Pág. 133 - Transcrição diário / Diários / Raoni Gondim / BA/ 2013-2014 Pág. 137 - Fragmento ensaio / Alvarito / Vale do Capão BA / 2014 Pág. 137 e 138 - Fotografia digital / Raoni Gondim / Vale do Capão BA / 2014
JAQUETA - Fotografia digital / Raoni Gondim / Vale do Capão BA / 2014 ENCARTE - Transcrição de verbetes / Oficinas Percografias / 2014
P E S Q U I S A S E P R O J E TO S Al va ri to Ami l t o n Mato s C e l e ste W an n e r D a nt e N e r y & . M i gr ac i e l o F á b i o G atti F e rna n d a R i o s F l á vi a G au d ê n c i o F l á vi a Me m ó r i a H é l i o Fe r v e n z a Homem Pedra J uni x Le o na r d o V i l l a-Fo r te Lua na B r an t Luca s G o n d i m M a rt i n s N e to M i g ue l C as ti l h o N a t á l i a C av al c an te Ra oni G o n d i m Ro d rigo Mal te z Si ng o al a Suzy O kam o to Ta rci s i o A l m e i d a Ya ra P i n a
Todos os t r ab alh os , r eg is t r os , transc r iç ões e ap r op r ia ç ões quand o não p er t enc ent es à pesquis a p úb lic a f or a m gentilm ent e c ed id os e p r od uz id os pelos d evid os aut or es j unt o à equipe d e p es q uis a d es t e material.
E d i ção 1 S a l va d o r 2014
ORG A NIZA ÇÃ O Cel este Wa n n er Ra on i G on di m Ta r c i si o A l mei da PE S Q UIS A CURATORIA L Na ta l i a Ca v a l c a n te Ra on i G on di m Ta r c i si o A l mei da PROJ E TO G RÁ FICO Ta r c i si o A l mei da RE V IS Ã O Cida Fer r a z
A G RA DE CIME NTOS A n dr ea Ma y Cel este Wa n n er A n a B ea tr i z Costa Fon tes Ma r ta S i m ões Ren a ta G u a l A l v a r i to Fa b ia n a Ca r v a l h o Neidin h a Lee Lor gu s B em Dito Don a Nen a Ma ti l de Fi zin h o e fa m í l i a Moi G a b r iel G a sp a r Pa tr ic i a S a n c h es E q u ip e G a l er ia A CB E U Col égio Cen tr a l E sp a ç o Im a gin á r i os Rio de Con ta s E sc ol a de B el a s A r tes ( UFB A ) em esp ec i a l a Na n c i Nov a es e Ma r c i o Fon tes todos os sá b i os e jov en s de Rio de Con ta s
i mp re s s ão o ff s e t p a p e l p ó l e n b o l d 9 0 g/ m f ont es - H i r agi n o G o th i c , Fl am a Ti ra ge m : 2 5 0 c ó p i as (E d i ç ão 1)
VO L UME:
* Projeto r ea l i za do c om a p oio da Un i v er sida de Feder a l da Ba hia (U FB A ) a tr a v és do E di ta l PROE XT/A r tes 2014
E s t e l i v r o e m b o r a ad o te a m a ior ia d os u s o s e d i to r i ai s e o r to gr áfi c os do â m b i t o br as i l e i r o n ão s e gu e ne ce s s ar i am e n te as c o n v e n ç ões da s i ns t i t u i ç õ e s n o r m ati v as , po i s cons i d e r a a e d i ç ão u m tr ab al h o de cri a çã o q u e d e v e i n te r agi r c o m a p l ural i d ad e e as e s pe c i fi c i d ad es da ob ra .