Lua de Sangue

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RibeirĂŁo Preto, SP - 2016.


Cris Eliot

1ª Edição Copyright© 2016 Editora Selo Jovem. Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009. Capa Aldemir Alves Diagramação Selo Jovem Revisão / Adaptação Rennan Rezende

Sindicato Nacional dos Editores de Livros / SP. Eliot, Cris 1. Literatura estrangeira 1 Fantasia. 2 Romance. Vendas: www.selojovem.com.br CDD: 869.93 CDU: 821.134.3(81) -3

ISBN: 978-85-66701-00-0 Ribeirão Preto - 2016, São Paulo. É proibida a cópia do material contido nesse exemplar sem o consentimento da editora. Esse livro é fruto da imaginação do autor e nenhum dos personagens e acontecimentos citados nele tem qualquer equivalente na vida real. Direitos concedidos à Selo Jovem. Publicação originalmente em língua portuguesa. Comercialização em todo o território nacional. Formatos digitais e impressos publicados no Brasil.


Para minha irmã, sem cujo apoio essa história não passaria de um delírio. Para Philip, por me mostrar que eu estava delirando muitas vezes. Para você, querido leitor, se for louco o bastante para virar a página. O amor é assim. Faz-nos cometer loucuras.

Transmitia um sentimento que era como o calor do sol e era com este que agora me banhava. (Jane Eyre, Charlotte Brönte)

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CAPÍTULO 1 PASSAGEM O céu estava escuro, quase não havia estrelas, e as poucas nuvens, reunidas mais ao norte, próximas às elevadas montanhas que rodeavam Avem. Em contrapartida, a lua, que parecia ter engolido o sol por sua vermelhidão, fulgurava praticamente solitária. Eu a olhava enfurecida por ter revelado tão descaradamente minha localização na floresta negra. Ao sair às pressas de casa, eu corria descalça o máximo que podia, desviando dos obstáculos da estrada como pedras escorregadias, cobertas de musgos recentes, e galhos pontudos quebrados. O pânico liberou uma dose de adrenalina que fez meu sangue circular vigorosamente, enquanto meu coração batia num ritmo acentuado. — Volte aqui, sua desgraçada! — esbravejou Isaac. Eu supunha que meu marido estava embriagado menos do que o normal. Sua voz saíra límpida. Podia ouvir suas passadas pesadas e descontroladas sobre a folhagem seca, uma vez que o outono havia deixado sua marca ao despir boa parte da Floresta da Desolação. O barulho aumentava à medida que eu também pisava nas folhas amontoadas pelo terreno, ajudando-o sem querer nessa caçada. Devido à chuva que caíra mais cedo nas redondezas, onde morava com ele a quatro quilômetros da cidade, meus pés estavam sujos de lama. A aparente estiagem era uma exceção que me surpreendera. Nem o vento gélido que soprava em mais uma noite de medo evitou que o suor com abundância umedecesse as costas e pingasse das têmporas. Com os caminhos clareados, meu predador me encontraria sem dificuldade e imobilizaria sua presa pelos cabelos. Eu passei a ziguezaguear entre as altas árvores para despistá-lo até correr para uma área, que conhecia melhor, embora com mais pedregulhos no chão, o que tornaria mais difícil o percurso. Começou a crescer uma raiva que até não sentira contra Isaac. Passei a mão debaixo do queixo, o ferimento estava coagulado. O incômodo durou alguns minutos. A minha sorte foi o corte ser longo, mas superficial, caso contrário, a blusa estaria ensopada de sangue. Na hora que me agachei e pulei para fora do muro, senti um galho me espetar acima do pescoço que se agarrou e se arrastou na pele. Os espinhos afiados que se destacavam dos arbustos que muravam o jardim de minha casa causaram pequenos cortes em meu rosto. No desespero tive que passar por ali. Ele com astúcia trancara o portão principal antes de sinalizar sua chegada. Pedaços de minha roupa podiam ser vistos presos entre os galhos e

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eram mais uma comprovação da sua brutalidade insana. Numa situação normal, eu teria conseguido me ocultar até que meu caçador estivesse fatigado e arrependido por sua embriaguez involuntária como costumava alegar em sua defesa. Porém, aquela conjuntura me era desfavorável. A visão foi aguçada pela claridade vermelha da lua e a audição pela folhagem... Não havia nada que pudesse conspirar a meu favor. Ao longo de anos, suportei calada, tentando contornar a situação para ter um casamento estável, e fazendo vista grossa de muitos abusos que sofria, perdoando-o por tudo, já que estava fadada a não ser feliz mesmo, ao menos, podia manter um nível razoável de decência. Eu não iria aceitar um tratamento desses mais. Nunca mais. No meu interior, sempre alimentei uma compaixão por ele estar atado ao vício da bebida. Uma verdadeira cadeia sem celas, sendo suas próprias mãos as algemas que o acorrentavam a uma garrafa de álcool barato. A pena que sentia naquela noite foi convertida numa ira silenciosa que foi ocupando cada parte do meu coração. Cerrei os punhos. Após uma corrida alucinante de mais de um quilômetro floresta adentro rumo ao leste, minhas pernas estavam trêmulas e vacilavam quando mudava de direção bruscamente. Eu o ouvi xingar e pareceu ter tropeçado pelo som que fez, o que o atrasou um bocado. Consegui me distanciar mais. A dor em meus pulmões aumentou quando respirei mais forte para suprir a falta de fôlego que estava sentindo. Não aguentava mais correr... Exausta de fugir, parei por um instante e olhei para trás. Isaac se aproximou muito rápido ao ponto de ficar a poucos metros. Corria cambaleando, mas com certa constância. Naquele momento, parecia inevitável a minha captura, já podia sentir seu cheiro de vinho. Um odor acre e, ao mesmo tempo, repugnante, que depunha a rendição de um homem fraco e covarde, dominado pelo álcool. Contraí o rosto escutando meus dentes estalarem. — Peguei você! — vociferou. Suas mãos se prenderam a meus braços com agressividade para me conter. Eu parei imediatamente. Não tinha mais forças para continuar... Fechei meus olhos. Meus dentes trincaram e o estalo foi maior que da primeira vez. Meus ombros estavam arfados pela parada abrupta. Tentei me acalmar, porém foi em vão. Abaixei minha cabeça, ao menos, para sinalizar minha desistência e pronta para me entregar. Quando estava me virando para encarar meu algoz com um mínimo de honradez, como um animal abatido que enfrenta seu perseguidor nos olhos para mostrar que a queda se devia às circunstâncias e que não dependia só da destreza da vítima em se desvencilhar, ouvi uma voz que saiu de dentro para fora com um rotundo não.

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Meu corpo enrijeceu. Um frio mortal o atravessou como um raio, o que fez meus pelos eriçarem. Assim que o ar entrou pelas minhas narinas, senti um vigor novo. Eu me virei me soltando de seu toque e determinada a fazer com que ele não desse mais um passo em direção a mim. Meus lábios se moveram contra minha vontade. — Pare! Balbuciei num tom ainda hesitante, recuando um pouco. Isaac deu uma risada debochada e, ao tentar andar, suas pernas estavam inertes como que fincadas ao solo. Ele me olhou boquiaberto como se não pudesse acreditar nos próprios olhos e os esfregou para se certificar de que seu corpo estava realmente paralisado ou se não seria um efeito colateral da embriaguez. Depois que sua descrença o trouxe à realidade, começou a me insultar. — O quê fez comigo, sua bruxa? A última palavra saiu com especial amargor. Nem eu mesma tinha a resposta... Eu estava tão descrente quanto ele no que acabara de ocorrer. Não foi algo que eu pudesse controlar e prever, ao menos, até aquele momento não tinha sido. Simplesmente sabia que a voz que parecia ser outra que não a minha e que o fez paralisar já estava incorporada a mim. Eu recobrei mais confiança de que por algum modo misterioso a ordem que dera o imobilizou. — Cale a boca, Isaac! Seus lábios se juntaram e ele não proferiu mais uma palavra. Ouvi-o tentar falar qual cão amordaçado que se esforça para latir sem sucesso e choraminga em represália. Passei a escutar outro coração bater forte como o meu, mas mais aceleradamente como se fosse estourar no peito. Como era possível? Deduzi que fosse o de Isaac e ele estava a quase um metro de distância. Afastei-me mais por uma mistura de precaução e nojo. No fundo, uma certeza se formava, embora sem aparente sentido, que bastava um simples comando de minha parte para que seu coração parasse de bater. Mate-o, mate-o... Esse zumbido latente soava como um convite. Resolvi experimentar e, com um breve pensamento meu, escutei o ritmo cardíaco diminuir e aumentar. Eu estava tão entorpecida pela revolta que não me dei conta de quão fora do normal era o que estava se passando diante de mim e, não só, como também por causa de mim. Era como se o coração dele estivesse em minhas mãos. Podia quase tocá-lo com meu indicador. Quando eu o imaginava reduzindo as batidas, elas refreavam. Comecei a notar o sangue arrefecer do rosto de Isaac e a ficar lívido como cera. A violência com que se sacudia para tentar escapar do meu pare foi esmorecendo e estava como que diante de um doente terminal, cuja vida se esvai a olhos vistos.

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Toda a força daquele homem alto, viril e temível foi sendo reduzida a de um animal inofensivo. Eu ri daquela inação e a achei justa. Uma risada estridente e maligna. Estávamos a sós. A presa e o caçador... Agora, porém, a situação havia se invertido. E eu não entendia o porquê o destino havia mudado as regras do jogo enquanto a partida estava em ação. Mas eu estava adorando o fato de ditar como as coisas deveriam ser. Era, em alguma medida, tão familiar. Como quem encontra um tesouro que lhe pertencia desde sempre. As batidas no seu peito se resumiram a um tic-tac espaçado e tênue e, pela sua expressão desgastada, Isaac percebia o fio pelo qual agora estava pendurado o seu destino, prestes a ser cortado por uma tesoura afiada e impiedosa como a das Erínias. A ousadia que as animava no seu ofício era instigante. Não pediam permissão a ninguém em seu ato de realizar o corte derradeiro. Algumas lembranças esparsas assaltavam meus pensamentos. De quando brincávamos ainda crianças no parque ou de esconde-esconde na fazenda do seu paii; do primeiro beijo em que me deu na região das macieiras... A cena na floresta, que se repetiu tanto que, depois da décima vez parei de contar, parecia extraída de um filme de terror e era tão incompatível com a trajetória de amizade entre nossas famílias e de tantos momentos bons que passamos juntos. O perigo que poderia encontrar dormindo na floresta era menor que o que me esperava dentro da segurança do meu próprio lar. Tinha que suportar as intempéries de Avem, se quisesse resguardar a dignidade que eu sabia possuir. Após sucessivas violações, cheguei a duvidar de mim mesma ao ponto de acreditar que Isaac tinha razão, de que eu era só um objeto para o atender. Acordava de manhã e queria que fosse apenas um pesadelo; que a noite passada tivesse sido um sonho ruim e que um simples despertar pudesse apagá-la e deixá-la relegada ao terreno da imaginação. Entretanto, as marcas das agressões em meu corpo, os objetos quebrados pela casa, o fedor de álcool que se impregnava no lençol, atestavam a duríssima realidade da qual preferiria evitar e, se possível, esquecer para sempre. Só não me desvencilhava por não ver meios possíveis para tal. Queria que meus pais estivessem comigo, mas se foram logo assim que me casei. Poderiam fazer algo por mim. Não tinha para onde ir. Apenas um tio vivo que morava no outro lado do Atlântico, porém brigara feio com minha mãe antes dela morrer. Perder Isaac, mesmo com aquelas fatalidades, parecia uma sentença de miséria e de abandono. Já se passaram quatro anos desde o trágico dia em que aceitei a proposta de um casamento arranjado, mais por pressão do meu pai para cumprir uma tradição tola do que por vontade própria. Isaac estava com vinte e um anos, ingressando na vida adulta, enquanto eu era uma garota, com dezessete, criada com toda a proteção possível e que acreditava em príncipe encantado. Eu só queria um casamento feliz e duradouro como o dos meus pais. Não

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devia ser um pedido excessivo, já que Isaac sempre se mostrara terno e doce desde quando éramos amigos de infância. Porém, depois de alguns problemas financeiros, a bebida se colocou entre nós. Uma muralha intransponível foi erguida em nosso relacionamento. Talvez estivesse pagando um preço alto ao destino por ter consentido com uma união sem amor. Apesar da pouca diferença de idade, a aparência de Isaac era de um homem feito. Um cabelo curto muito preto acima de sobrancelhas grossas; olhos bem verdes iguais aos da mãe; a cor morena clara como a do pai. O duro trabalho rural contribuiu para que seu porte físico se fortalecesse. O sol, escaldante só no verão, fez com que o tom de pele escurecesse mais. Não fazia academia, embora não perdesse para nenhum amigo com corpo atlético, o que o auxiliava a me alcançar com facilidade. Por fora, era belo e atraente, no entanto, estava apodrecido por dentro. Nos últimos dias, ele havia bebido mais do que costumava e eu não tinha tomado a iniciativa para aparar a grossa barba em seu rosto, o que dava um aspecto ameaçador a ele. Como ela crescia rapidamente, tinha que ser feita com regularidade. Nem ele havia pedido para eu fazê-la. Talvez mal tivesse se dado conta. Curava sua ressaca se entregando aos pesados serviços na fazenda. Devido à crise, era como tirar água da pedra. As dívidas se avolumavam e o lucro era insignificante. Os preços do milho e trigo despencavam no mercado, não cobrindo os gastos com a produção. Por um momento, eu me distraí. Isaac conseguiu se mexer com relutância de onde estava preso. Tentou caminhar com dificuldade em minha direção e com a raiva em cada linha do seu rosto. Transpirava. Bufava. Rosnava. A forma como estendia as mãos para cima meio dormentes demonstrava que queria me alcançar a todo custo para me ferir e se vingar da situação a que eu o coloquei. Deu alguns passos vacilantes e retomei a tempo o controle da situação com um desejo de impedi-lo. Uma sensação de poder realmente avassaladora invadiu meu corpo. Outro risinho macabro se formou em meus lábios quase sem querer com meus olhos extasiados de uma força letal. Nada poderia me impedir. À minha direita, havia uma pedra de uns cinquenta quilos que sozinha não conseguiria levantar. Ordenei como um teste que ela fosse lançada para perto de uma árvore robusta que estava a cerca de um metro e meio de distância. Assim foi feito. Para minha surpresa. A pedra se partiu na colisão e fez um barulho desconcertante. Esse ato, que não envolvia uma vingança direta a Isaac, tirou um pouco do meu torpor. Como eu conseguira realizá-lo? E por quê? O quê havia ocorrido comigo? Não sabia o que pensar. Quem sabe Isaac estava certo e eu havia me tornado uma feiticeira por alguma causa também oculta? Se fosse verdade, minha vida seria mudada completamente. Tentei em vão encontrar uma explicação razoável naquela turbulência.

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Aproveitei a oportunidade para dar uma demonstração a fim de que ele soubesse que sua esposa inerme havia desaparecido junto com esses novos poderes. Olhei ao redor e vi uma árvore aparentemente nova. Pensei em repetir o que havia feito com a pedra. Seu tronco não estava espesso, nem suas raízes profundas. — Raízes profund...? Mas como eu sabia que as raízes estavam rasas? Não era algo que se via pela visão comum. Talvez estivesse enlouquecendo ou sonhando. Tentei identificar de onde obtive a informação de as raízes serem curtas. Nada. Só sabia que eram assim. Quando mexi as mãos para secar as gotas de suor que se acumularam na testa com a blusa, a árvore se sacudiu, deixando a terra. Ainda atônita, completei o movimento com a mão para cima como se puxasse uma muda de planta e a árvore saiu inteira com facilidade e rapidez, inclusive com suas raízes curtas ainda sujas. A prova estava ali diante de meus olhos. O quê estava acontecendo? Não obteria resposta tão cedo. Eu a mantive suspensa no ar e desejei que fosse arremessada ao lado de Isaac. Não demorou até que se movesse e voasse com ímpeto contra ele. Esperava que esse gesto fosse suficiente para intimidá-lo e o pavor do que havia me tornado se encarregaria de deixá-lo mais dócil. Os galhos passaram raspando em seu braço direito e o cortaram superficialmente, fazendo com que seu suéter cinza ficasse molhado com uns pingos de sangue. Em seguida, o estrondo da árvore caindo no chão se ouviu. O pânico estava estampado nos seus olhos. Eu sabia o que era viver debaixo do império do medo quando me agredia com tapas e palavras para mostrar que eu não passava de uma vagabunda. Essa recordação dolorosa tão clara me fez ficar enojada e com mais ódio. — Quem é a vagabunda agora? Seus lábios se descolaram assim que aguardei sua resposta. — Pare, Elise, você vai me matar! — uma voz rouca e frágil implorou. Elise. A forma suplicante com que me chamou fez uma torrente de memórias desabarem sobre mim. Minha visão ficou embaçada e fechei meus olhos para tentar limpá-los. Uma luz esbranquiçada cobriu tudo. Sabia do mesmo modo que as raízes eram curtas, que poderia atualizar os momentos mais distantes e esquecidos com nitidez. A luz cedeu espaço a um episódio que era real por uma convicção íntima, embora não perdesse em nada na sua essência para um sonho bom, contudo muito esquisito. Eu era ainda um bebê. Minhas mãozinhas, pequeninas e frágeis, agitaram-se ao brincar com um laço branco acima de minha cabeça que estava amarrado na alça de uma espécie de cesto, onde estava deitada. Uma manta púrpura cobria meu corpinho. Eu vi mamãe... Parecia o sol num dia nublado que com seus raios afasta as

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pálidas nuvens num pedido de licença para fazer seu espetáculo aos homens. Seus cabelos castanhos desciam depois dos ombros como vários caracóis. Um vestido longo de cetim perolado que ia até os pés escorria perfeitamente por seu corpo e deixava os braços à mostra. Um cinto finíssimo que mais parecia um fio feito de ouro apertava sua cintura e dividia o tecido. — O neném mais lindo do universo... — mamãe cortou a frase esperando minha reação. Eu ri generosamente, batendo as mãozinhas. — É a minha princesa! — acariciou minhas bochechas rosadas. Entre uma risada e outra, seus olhos estavam mais escuros como se nuvens acinzentadas se alojassem sobre eles, mas ela não demonstrou estar se sentindo mal. Não me preocupei mais que a primeira estranheza. Retirou-me do cesto e me pegou no colo. Estávamos num campo belíssimo, em que os raios do sol acentuavam a coloração verde-musgo. As folhas das árvores se agitavam, mesmo que nem uma brisa soprasse. Eu forcei meu corpo para trás. Acenava com as mãos querendo brincar com um colar diferente que estava pendurado em seu pescoço. Brilhava bastante. O lado esquerdo vermelho com o que deviam ser pedras de rubi, ao passo que o lado direito transparente com diamantes. Entre cada uma dessas pedras havia pequenas lascas em forma de espinhos; no meio, havia um objeto pontudo para baixo. Quando consegui tocá-lo, mamãe afastou minhas mãos da joia talvez com medo de que me ferisse. Em seguida, ela me reteve mais em seus braços e literalmente saímos do solo. Começamos a levitar. Ela dava rodopios no ar comigo e eu me comprazia demais... Vi flores abaixo de nós quando me suspendeu e me inclinou para ela. Parou de girar quando notou para onde meu olhar se fixou. Agachou-se, deixando de levitar comigo, e pegou uma pequena violeta, colocou-a perto de meu nariz e me disse. — Você precisa exalar esse odor num mundo fedorento, minha pequena! Eu segurei a flor na palma da minha pequena mão, ela prosseguiu. — A violeta retribui o mal que recebe ao ser esmagada com um aroma fresco. Assim deve ser você. Não porque seja submissa, e sim, por ser capaz de perdoar e ter um coração perfumado. Minha mãe me aconchegou em seu colo, eu fiz que sim com a cabeça como se a entendesse. Ela espremeu a violeta e colocou próximo ao meu nariz para que sentisse o aroma que exalava. — Não se vence o mal com o mal! — declarou pausadamente, deixando que a verdade da afirmação impactasse por si. Antes da nossa vista ser ofuscada por uma luz dourada tão intensa quanto o sol, que aparentemente nos cegou com sua aparição, ouvi mamãe sussurrar ao meu ouvido.

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— Se o grão de trigo não morre, não produz fruto! De repente, eu estava de novo na situação anterior. O ódio e a fúria contra Isaac haviam sumido. Eu o ouvi chorar suplicando para viver. — Pare, Elise, eu lhe imploro. Não a machucarei mais. Estou morrendo. Era verdade. Seu corpo estava desfalecendo. Talvez pelo joguete que havia feito em aumentar e diminuir as batidas de seu coração tivesse me esquecido de mandá-las voltar ao normal. Pobre Isaac, escravo de seu vício... A pena me comoveu e, de repente, um fôlego invadiu aquele homem fadado à decrepitude. A vida retornou como numa lufada de ar. Ele tossiu por uns segundos, fazendo com que seu rosto recuperasse a cor. Soltei-o de sua paralisia e ele veio em minha direção. Deduzi pelo modo como abriu os braços que queria me abraçar. Eu estendi os meus também para recebê-lo dando provas de que não guardava rancor. Ele me deu um tapa fortíssimo no rosto e cambaleei, caindo tonta ao chão. — Maldita! — gritou furiosamente. Quando tentou me chutar, uma parede de terra se ergueu entre nós e me protegeu. Ele xingou ao ver que tinha atingido uma placa duríssima. A minha raiva não voltou com a violência de antes. Parecia imunizada. Levantei-me enquanto ele se recompunha com a mão apertando a bota para aliviar a pancada no pé. Meu rosto latejava de dor. Respirei fundo. Com as mãos erguidas para cima, repeti a levitação como na lembrança com minha mãe que, por uma intuição, sabia que funcionaria. Meu corpo ficou leve de repente e o senti deixar o chão devagar. Estava a mais de um metro do solo e me mantinha no ar com relativa segurança. Não me espantei, por mais extraordinário que fosse, havia uma recente intimidade com esse poder. Era provável que se tratasse de uma herança pouco comum que pais especiais deixam aos filhos. — Acabou! — ordenei de forma ríspida. Os olhos de Isaac se estreitaram, voltando a ficar estático do jeito em que se encontrava. Seu rosto, congelado e surpreso, dirigido para cima, como que vencido por uma descrença maior pela levitação do que em tudo que fizera até o momento. Seu corpo, mesmo imóvel naquela posição, não deu mostras de se desequilibrar e cair como era de se esperar. A fúria pulsava dentro de mim. Podia esmagá-lo como um inseto, mas não seria um tratamento justo. Não se vencia o mal com o mal como me aconselhara mamãe. Se podia controlar objetos e ele próprio, fazer uma parede de terra surgir como escudo e levitar, não haveria obstáculo em cumprir a vingança quase inofensiva que maquinei na última hora. Ainda suspensa no ar, comandei com determinação. — Rasteje pelo chão como víbora, volte ao seu quarto e durma até que eu o libere!

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Da maneira como falara, ocorreu. Imediatamente tombou e passou a se locomover com a barriga na terra meio úmida, deixando um rastro por onde havia passado e desapareceu após cruzar o portão principal de nossa casa que ele próprio deixara aberto quando correu em disparada contra mim e, mesmo a distância, consegui vê-lo. A entrada era iluminada por uma lâmpada fixa na haste lateral do muro que ficava sempre acesa à noite. Um trovão se fez ouvir no céu sem nuvens. Eu me assustei e parei de levitar abruptamente. Tive que firmar meus pés na terra para não cair. A lua de sangue permanecia lá intacta com uma testemunha indiferente. Tão logo escutei som de aplausos, uma voz masculina, firme e grossa, afirmou de modo categórico. — Muito bem! Em alerta, meu coração disparou novamente. Um silêncio perturbador se fez em toda a floresta. Olhei ao redor à procura desse homem estranho e não enxerguei ninguém.

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