MODOS DE MORAR E CONSTRUIR INDÍGENA: diálogo entre ensaios acadêmicos e trabalhos guarani mbya na Terra Indígena Jaraguá (SP) Cristina de Castro Kesselring (IC) e Roseli Maria Martins D’Elboux (Orientadora)
Apoio: PIBIC CNPq
RESUMO Esta pesquisa pretende investigar produções indígenas a partir da ótica do trabalho, propondo diálogos entre experiências pessoais nos canteiros de obra na Terra Indígena Jaraguá, São Paulo, e a bibliografia Habitações Indígenas (1983), organizado pela antropóloga Sylvia Caiuby Novaes, e “Habitação Indígena Brasileira” (1987), escrito pela antropóloga Maria Heloísa Fénelon Costa e pelo arquiteto Hamilton Botelho Malhano para o segundo volume da Suma Etnológica Brasileira: Tecnologia Indígena. Esse diálogo também procura articular ideias apresentadas em Arquitetura e trabalho livre (2006), de Sérgio Ferro, e A esquiva do xondaro: movimento e ação política entre os Guarani Mbya (2017), de Lucas Keese dos Santos. O tema da alienação entre corpo e trabalho relaciona as noções entrelaçadas de corpo-espaço apresentadas na bibliografia inicial e entre os Guarani Mbya na aldeia Yvy Porã. A produção de arquitetura que aproxima o pensar e o fazer sob lógicas diversas, que não as de dominação, parece estar inserida em um todo maior de estratégias políticas guarani, relacionadas a esquiva, capazes de incorporar possíveis ameaças externas e transformá-las a seu favor. Ao aproximar os campos da antropologia e arquitetura pela ótica do trabalho, essa pesquisa procura investigar como as formas de construir indígena podem apontar possíveis movimentações coletivas nas nossas próprias noções de produção, propriedade e organização social. Palavras-chave: Povos indígenas. Construção guarani mbya. Sistemas de cooperação. ABSTRACT This research intends to investigate indigenous productions from the perspective of labour, proposing dialogues between personal experiences in the workplaces in Guarani Indigenous Land Jaraguá, São Paulo, and the bibliography Habitações Indígenas (1983), organized by the anthropologist Sylvia Caiuby Novaes, and "Habitação Indígena Brasileira" (1987), written by the anthropologist Maria Heloísa Fénelon Costa and by the architect Hamilton Botelho Malhano for the second volume of the Suma Etnológica Brasileira: Tecnologia Indígena. This dialogue also seeks to articulate ideas presented in Arquitetura e trabalho livre (2006), by Sérgio Ferro, and A esquiva do xondaro: movimento e ação política entre os Guarani Mbya (2017), by Lucas Keese dos Santos. The theme of alienation among body and labour
encourage a relation between the interwoven notions of body-space presented in the initial bibliography and among the Guarani Mbya in the village Yvy PorĂŁ. The production of architecture that approximates thinking and doing under diverse logics, other than domination, seems to be embedded in a greater whole of GuaranĂ political strategies, related to the dodge, capable of incorporating the possible external threat and transforming it into its own favor. When approaching the fields of anthropology and architecture from the perspective of production, this research seeks to investigate how indigenous forms of construction may point to possible movements in our own means of work and social organization. Keywords: Indigenous people. Guarani mbya construction. Cooperation systems.
1. INTRODUÇÃO (...) como ensina Adorno, enquanto o trabalho for desencontro programado, só o fechamento radical e abafante da arte guarda a esperança de um outro trabalho. Para que possamos aproveitar sua experiência, entretanto, é conveniente estudá-la não como vestígio de artesanato ou como molde, mas como espécie de índice negativo da luta de classes na produção, por deixar de lado a divisão do fazer e do pensar, as séries hierárquicas, o parcelamento fundamental para a dominação (Ferro, 2006 [1976], p. 149).
Em O canteiro e o desenho (1976), inserido em Arquitetura e trabalho livre (2006), Sérgio Ferro demonstra interesse na aproximação com a prática das artes plásticas, uma vez que ela parece “deixar de lado a divisão do fazer e do pensar”, isto é, manifesta uma “espécie de índice negativo da luta de classes na produção”. Traçando um paralelo com essa perspectiva, busca-se nesta pesquisa dirigir o olhar para trabalhos indígenas, questionando a existência de outras formas possíveis de produção do espaço que, assim como a arte, colocada por Ferro, parecem expressar o trabalho livre1. A aproximação com as perspectivas indígenas não pretende estabelecer modelos, mas questionar, a partir delas, a possibilidade de construir arquitetura aproximando o pensar e o fazer sob lógicas diversas, que não as de dominação. A partir de relatos críticos da autora, esta pesquisa procura inserir-se na produção acadêmica em confronto a partir da vivência, entrelaçando teoria e prática. A inquietação sobre a dimensão do trabalho e os agentes do canteiro indígenas veio à tona a partir da oportunidade que tive em participar das vivências de construção da opy (casa de reza) e dos banheiros no núcleo guarani mbya Yvy Porã na Terra Indígena Jaraguá, São Paulo. Organizadas por um projeto de extensão universitária em conjunto com os Mbya que ali vivem, as vivências foram realizadas aos fins de semana durante três meses (junho, julho e agosto de 2018). Ao longo dos meses de pesquisa, após as vivências e as leituras da bibliografia básica inicial Habitações Indígenas (1983) e “Habitação Indígena Brasileira” (1987), me deparei com Arquitetura e trabalho livre (2006) de Sérgio Ferro na faculdade. Não pude deixar de perceber a semelhança entre as aproximações do autor sobre o tema da alienação do trabalhador e seu trabalho, inerente aos sistemas sob o Capital, com as noções entrelaçadas de corpoespaço apresentadas na bibliografia inicial e em minha experiência entre os Guarani no Jaraguá.
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Para uma discussão mais aprofundada sobre arte como manifestação do trabalho livre, ver De Paris a Dubai em Ferro (2010). Sobre as relações de trabalho no campo das artes plásticas, ver também O caso da arte em Ferro (2010).
Nesse sentido, pretende-se aqui realizar uma revisão bibliográfica crítica pelo campo da arquitetura e urbanismo dos trabalhos inicialmente identificados como os de maior fôlego sobre o assunto: o livro Habitações Indígenas (1983), organizado pela antropóloga Sylvia Caiuby Novaes, com textos de Cristina Sá, arquiteta, e o artigo “Habitação Indígena Brasileira” (1987), escrito pela antropóloga Maria Heloísa Fénelon Costa e pelo arquiteto Hamilton Botelho Malhano para o segundo volume da Suma Etnológica Brasileira: Tecnologia Indígena. Busca-se, portanto, analisar essa bibliografia pela ótica do trabalho, propondo diálogos entre algumas noções apresentadas e vivenciadas na tekoa (aldeia) Yvy Porã. Segundo Marcio Boggarim (2018), uma das lideranças políticas da Ytu (Terra Indígena Jaraguá), o terreno em que hoje está situada a Yvy Porã era um local de abastecimento das aldeias do território – Pyau, Itawera, Itakupe e Itaendy -, de onde os indígenas obtinham materiais para construção e ervas medicinais. Mesmo em área demarcada desde 1987 pelo Estado, o lugar começou a ser usado ilegalmente pelos não indígenas como depósito de lixo e a sofrer ameaças de apropriação pelos condomínios próximos. A retomada da Yvy Porã teve início em 2017 e, em maio de 2018, Marcio Boggarim, com 29 anos, e Thiago Henrique Karai Djekupe, 24, instalaram-se de forma definitiva como forma de resistência ao desrespeito pela demarcação. Em processo de crescimento atrelado a obtenção de recursos, a Yvy Porã conta hoje com 7 famílias residentes (informações verbais)2. Em sua dissertação de mestrado A esquiva do xondaro: movimento e ação política entre os Guarani Mbya (2017), Lucas Keese dos Santos apresenta um panorama histórico da situação guarani e nos aproxima das práticas e conflitos atuais vividos pelos Mbya3, principalmente na cidade de São Paulo. A Terra Indígena Jaraguá, com 1,7 hectares – a menor Terra Indígena do Brasil –, assim como as Terras Indígenas Guarani da Barragem e Krukutu, ambas com aproximadamente 26 ha cada e localizadas no extremo sul do município de São Paulo, foram demarcadas em 1987, em um convênio entre a Funai e a Sudelpa4, processo anterior à promulgação da Constituição de
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Informações fornecida por Boggarim na aldeia Yvy Porã, São Paulo, em 2018. Do ponto de vista linguístico, Mbya, Kaiowá e Nhandeva são dialetos da língua Guarani, da família Tupi-Guarani e tronco Tupi. Para mais dados sobre a variedade de famílias linguísticas indígenas no Brasil, ver: ISA, Línguas. Disponível em: <https://pib.socioambiental.org/pt/L%C3%ADnguas>. Acesso em: 22 jul. 2019. 3
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Órgão público do Poder Executivo Estadual, a Superintendência do Desenvolvimento do Litoral Paulista (Sudelpa) foi criada em 1969. As competências da Fundação Nacional do Índio (Funai), criada em 1967, encontram-se hoje em disputa pelos povos indígenas e suas entidades representativas contra o atual governo do presidente Jair Bolsonaro. Aguardando processo de votação pela comissão, a Medida Provisória 886/ 2019 retira a identificação e demarcação de terras indígenas da alçada da Funai, vinculada ao Ministério da Justiça e Segurança Pública, para o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, tradicionalmente comandado pela bancada ruralista. Para acompanhar a situação da MP, ver: Congresso Nacional. Disponível em:
1988 e em um contexto de extremo preconceito contra os Guarani, taxados de “aculturados”. A partir daí, foram mais 30 anos de luta para que os Guarani de São Paulo pudessem fazer valer seus direitos constitucionais e corrigissem a extensão diminuta dessas áreas, buscando estabelecer limites mais condizentes com sua ocupação tradicional na região, conforme estabelece a Constituição. Em 2015, a Terra Indígena Jaraguá foi demarcada com 532 ha e, em 2016, a Terra Indígena Tenondé Porã (incluindo as antigas Terras Indígenas Barragem e Krukutu), com 15.969 ha. Ambas ainda aguardam a homologação (Keese dos Santos, 2017, p. 260).
O contexto atual de luta pela regularização fundiária com ida às manifestações de rua5 torna complexa as descrições frequentemente atribuídas aos Guarani Mbya, particularmente, como um povo passivo e medroso. Historicamente transitando de forma livre pela terra6, os Guarani viam-se com difíceis alternativas políticas frente aos ostensivos projetos coloniais simultâneos a dinâmica guerreira que marcava a relação entre os povos Tupi-Guarani: ou associavam-se material e culturalmente à empresa colonial, ou buscavam refúgios em áreas de difícil acesso. Entretanto, nenhum desses movimentos fixava uma postura frente às condições externas; isto é, nem a completa assimilação e nem completa fuga pareciam alternativas desejadas (Keese dos Santos, 2017, p. 224). Localizados hoje principalmente na região Sul e Sudeste do Brasil, na região leste do Paraguai e na província de Misiones, na Argentina, os Guarani Mbya desenvolvem historicamente um modo eficaz em lidar com o poder coercitivo, operando a incorporação da alteridade ao mesmo tempo que reproduzindo diferenciações constantes. Segundo o autor, essa “esquiva cosmológica e territorial”, vinculada a esquiva da dança do xondaro e xondaria7, seria uma estratégia política baseada na inconstância, que combina uma postura simultânea de fuga e resistência, similar aos movimentos da capoeira, capaz de incorporar o movimento
<https://www.congressonacional.leg.br/materias/medidas-provisorias/-/mpv/137363>. Acesso em: 30 jul. 2019. 5
Para acompanhar a cronologia e os vídeos-manifestos das lutas dos Guarani de São Paulo, ver: Comissão Guarani Yvyrupa (CGY) e Instituto Socioambiental. Disponíveis em: <http://videos.yvyrupa.org.br/nossa-luta/> e <https://www.socioambiental.org/pt-br/blog/blog-domonitoramento/terra-indigena-tenonde-pora-e-oficialmente-dos-guarani>. Acessos em 30 jul. 2019. 6
Segundo Keese dos Santos (2017), é característico dos Guarani o modo livre pelo qual eles sempre caminharam na terra, sem a existência das fronteiras políticas impostas pelo Estado. Para mais dados sobre a atual territorialidade guarani nas regiões Sul e Sudeste do Brasil, ver: CTI, Atlas das terras guarani no Sul e Sudeste do Brasil 2015. Disponível em: <http://bd.trabalhoindigenista.org.br/livro/atlas-das-terras-guarani-no-sul-e-sudeste-dobrasil->. Acesso em: 30 jul. 2019. 7 Segundo Keese dos Santos (2017), xondaro (masculino) e xondaria (feminino) são personagens que remetem a diferentes funções e a uma forma de relação que articula a esquiva às dinâmicas de corpos, coletivos e mundos.
do outro e produzir nele o erro e engano; isto é, não submete o que vem de fora e tampouco deixa se submeter (Keese dos Santos, 2017). No caso de danças-lutas, como o xondaro e a capoeira, o movimento de esquiva é claro ao demonstrar sua eficácia na medida em que consegue incorporar o movimento de um ataque. Ou seja, o golpe deve ser parcialmente absorvido, no sentido que ele é incorporado de forma antecipada e seu movimento é subvertido. Desse modo, aquele que é alvo do ataque, para não sofrer a coerção do mesmo, incorpora de forma controlada o movimento agressor utilizando-o a favor de si próprio. É nesse sentido que irei sugerir a esquiva, a partir da prática guarani de -jeavy uka (fazer errar, enganar), como um modo de incorporação da alteridade diferenciando-se dela, uma incorporação através da reconfiguração das distâncias-diferenças (Keese dos Santos, 2017, p. 29).
Assim,
essa
pesquisa
pretende
estabelecer
diálogos
entre
as
práticas
contemporâneas guarani mbya de construção na aldeia Yvy Porã, vinculadas às cosmologias brevemente apresentadas acima, com algumas noções das obras Habitações Indígenas (1983) e “Habitação Indígena Brasileira” (1987). Ausentes em ambos trabalhos e na maior parte da academia de arquitetura e urbanismo em São Paulo, os Guarani demonstram criatividade política e construtiva, podendo fornecer instrumentos capazes de, talvez, ampliar as nossas próprias compreensões do fazer arquitetônico a partir da busca pela constituição do coletivo. 2. DESENVOLVIMENTO DO ARGUMENTO 1. Contextualização da bibliografia O livro Habitações Indígenas (1983) conta com sete artigos resultantes de contatos diretos com as populações estudadas, e são de autoria de antropólogas, com exceção da arquiteta Cristina Sá. As pesquisadoras procuram mostrar como é elaborada a organização espacial em nove sociedades indígenas diferentes, pertencentes às seguintes famílias linguísticas: Jê (das línguas Apãniekra, Ramkokamekra, Kraho, Xavante e Xikrin); Tupi (Parakanã e Waiãpi); Aruak (Yawalapiti); Caribe (Wayana); Karajá e Bororo. Situam-se em diferentes regiões do Brasil: regiões de cerrado, áreas de transição entre floresta e cerrado e zonas de floresta primária, estando ausentes os Guarani Mbya localizados em contextos urbanos. O foco do livro, segundo Sylvia Caiuby Novaes (1983, p.7), é apresentar um panorama de como se dá a produção do espaço nas sociedades indígenas dos grandes grupos linguísticos representados, e não apenas uma descrição dos aspectos arquitetônicos das casas.
O artigo “Habitação Indígena Brasileira” (1987), publicado no segundo volume da Suma Etnológica Brasileira: Tecnologia Indígena, é baseado na experiência de campo da antropóloga Maria Heloísa Fénelon Costa e do arquiteto Hamilton Botelho Malhano no alto Xingu e entre os Karajá do Araguaia. Os autores procuram a ampliação e atualização do artigo “Habitação” para o Handbook of South American Indians (1949), de Wendel Bennet, cuja preocupação maior foi com a tecnologia e a matéria-prima da construção. Costa e Malhano (1987, p.28), por sua vez, procuram sistematizar alguns dados bibliográficos existentes e evidenciar, ao mesmo tempo, “a criatividade do índio na busca e encontro de variadas soluções do problema de habitar”. Ambos autores mencionam a crescente quantidade de dados etnográficos sobre populações indígenas no Brasil em relação ao trabalho de Bennet, publicado em 1949. Segundo Manuela Carneiro da Cunha em Políticas culturais e povos indígenas (2016), no final da Segunda Guerra Mundial, contexto em que foi escrito o trabalho de Bennet, as palavras de ordem eram progresso e integração, nas quais estava implícita a noção de uma ordem temporal única e de ascensão da humanidade, de modo que toda diferença seria uma questão de tempo; assim, segundo essa visão, os povos indígenas estariam predestinados a se tornar “como nós” (2016, p.12). Apesar de estabelecer proteções fundamentais para os povos indígenas, a Convenção 107 da Organização Internacional do Trabalho8, de 1957, não dava espaço a formulação ativa de suas próprias políticas na esfera pública, o que, segundo Carneiro da Cunha (2016, p.12), veio a emergir em 1989 na Convenção 169 da OIT. Em 2004, o texto desta Convenção foi incluído no art. 84, inciso IV, da Constituição Federal, passando a incluir no termo “terras” o conceito de “território”, abrangendo a totalidade do habitat das regiões que os povos ocupam ou utilizam. Nesse contexto, as autoras e autor de Habitações Indígenas (1983) e “Habitação Indígena Brasileira” (1987) parecem contribuir para tal mudança de abordagem acadêmica, apesar de pouco respeitada pelas ações estatais. Vendo de perto como uma sociedade constrói seu espaço, podemos aquilatar como são arbitrárias e desorganizadoras certas medidas tomadas contra as sociedades indígenas para transferir um grupo de seu território
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Fundada em 1919, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) é uma agência da Organização das Nações Unidas (ONU) cujo objetivo é elaborar condutas internacionais que promovam o acesso a homens e mulheres a um “trabalho decente e produtivo, em condições de liberdade, equidade, segurança e dignidade”. As Convenções nº 107 e nº 169 referem-se a “Povos Indígenas e Tribais”. Disponíveis em: <https://nacoesunidas.org/agencia/oit/>, <https://www.oas.org/dil/port/1957%20Conven%C3%A7%C3%A3o%20sobre%20Povos%20Ind%C3 %ADgenas%20e%20Tribais.%20(Conven%C3%A7%C3%A3o%20OIT%20n%20%C2%BA%20107).p df>, <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2004/decreto/d5051.htm>. Acesso em: 30 jul. 2019.
original, para que aí se estabeleça alguma obra que, se é ‘imprescindível’ à nossa sociedade, em nada diz respeito aos grupos que habitavam originariamente estes locais (Novaes, 1983, p.7).
No campo da arquitetura e urbanismo, as perspectivas ameríndias sobre o morar e construir, especialmente aquelas em contexto urbano, como é o caso dos Guarani Mbya no Jaraguá (SP), ainda pouco aparecem nos trabalhos acadêmicos de que se têm notícia em São Paulo. Como mencionado por Costa e Malhano (1987, p.28), são notáveis os esforços da arquiteta Cristina Sá ao aproximar arquitetura e etnografia, mas a autora parece não considerar a dimensão do trabalho enquanto instrumento de aproximação a essas populações. Assim, a sequência dessa pesquisa se dará apoiada em tal perspectiva, organizada em subtópicos: trabalho em sistemas de cooperação; divisão do trabalho; obtenção de materiais; organização do espaço; técnica e território. 2. Trabalho em sistemas de cooperação O produto é, sim, somente o resumo da atividade, da produção (Marx, 2006 [1844], p.127).
Tendo em vista essa passagem em Manuscritos econômico-filosóficos (1844), comentada por Sérgio Ferro em O canteiro e o desenho (1976), e a noção aqui adotada de arquitetura enquanto construção - material e imaterial, como explorado a seguir -, entende-se que o final da obra arquitetônica configura o resumo das relações de trabalho estabelecidas em seu processo. Thiago Henrique Karai Djekupe, outra liderança política da Terra Indígena Jaraguá, parece demonstrar preocupação com a articulação entre as condições materiais dos processos de construção e as visões de mundo guarani. Em diálogo sobre as diferentes técnicas empregadas nas construções da tekoa (aldeia) Yvy Porã - taipa de mão com cobertura de folhagem, taipa de mão com cobertura de telha ecológica, madeirite e telha ecológica, entre outros -, as quais apresentarei mais adiante, Djekupe (2019) afirma: "A construção exige respeito. Você não vai brincar, não vai construir como se fazia em 1500 só para mostrar que sabe. Se quer construir daquela forma para mostrar a dificuldade de se trabalhar com poucos recursos, está bem. Mas para morar, vamos construir com o que temos hoje”. Sabe-se que a manutenção em construções de taipa de mão, recurso usado em grande parte na Yvy Porã, tem um gasto maior do que as de alvenaria. Entretanto, segundo ele, é no processo de construção com a taipa que se mantém o valor do coletivo: “no barreamento, nós resgatamos a importância de estarmos juntos”, disse (informações verbais)9.
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Informações fornecidas por Djekupe na aldeia Yvy Porã, São Paulo, em 2019.
Figura 1 – Indígenas e não indígenas preparando a terra
Fonte: Foto da autora.
Assim como os Guarani Mbya no Jaraguá, os Wayana, pertencentes à família Karib e habitantes do Parque Indígena do Tucumaque, Pará, parecem articular a construção a um sistema maior de parentesco e cooperação entre os integrantes da comunidade. No artigo “Onde os Wayana penduram suas redes?”, em Habitações Indígenas (1983), Lucia Hussak van Velthem apresenta brevemente a articulação entre o habitar e construir coletivos, comum também em descrições de outros povos indígenas presentes no livro: Um esforço para manter operante esse sistema é representado pelos pequenos núcleos de Aimoré e Tokoró: pais de família com seus filhos, cada qual com autoridade sobre sua aldeia e, ao mesmo tempo, suficientemente próximos para operacionalizar um sistema de cooperação que inclui trocas alimentares, abertura de roças, confecções de casas, pescarias e caçadas coletivas (Velthem, 1983, p.171).
Ao acompanhar o canteiro de obras da casa de reza na tekoa Yvy Porã, pude perceber uma aproximação entre o corpo pensante e o corpo produtivo, tema abordado por Sérgio Ferro em Arquitetura e trabalho livre (2006). Jorge, membro Guarani Mbya da TI Jaraguá, morador da aldeia e experiente em construção de casas de reza pelo território, havia feito, no primeiro encontro entre os construtores/futuros moradores, um protótipo da casa com gravetos para explicar a técnica de construção e calcular a quantidade de material necessário. Segundo Djekupe (2019), Jorge utiliza qualquer recurso para que todos entendam a técnica: na maioria das vezes, protótipos e, quando necessário, desenhos feitos pelos próprios construtores (informação verbal)10. Em “De Paris à Dubai” (2010, p.59), aula de 2004 feita na FAU-USP, transcrita em A história da arquitetura vista do canteiro: três aulas de Sérgio Ferro (2010), Ferro situa sua perspectiva sobre o desenho na arquitetura:
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Informações fornecida por Djekupe na aldeia Yvy Porã, São Paulo, em 2019.
O desenho que critico é contra o qual me manifesto, é o desenho afastado do canteiro, o que o faz heterônomo. É o desenho que desaba sobre a produção como uma praga - e que é uma das armas do capital para sua exploração. Isto não implica em uma condenação total do desenho. Indico isto numa fórmula “ingênua”: é preciso substituir o desenho para a produção por um desenho da produção, trocar o desenho que vem de fora e desconhece o canteiro por um outro que nasça da experiência do corpo produtivo (Ferro, 2004, p.59).
Em diálogo sobre a relação entre as políticas públicas e as formas de habitar guarani, Djekupe (2019) comenta: “Não existe projeto de habitação pela Secretaria Municipal de Habitação (SEHAB). A Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) tem recurso, mas não põe em prática. Quando constrói, constrói o banheiro do branco, a casa do branco. Se o poder público quisesse construir casa aqui, eu falaria: ‘me dá o material e a gente constrói’, porque se eles constroem, fazem de alvenaria, e isso prejudica a nossa mobilidade pelo território (...)” (informações verbais)11. Jovem liderança Guarani Mbya, Djekupe parece aproximar-se de Sérgio Ferro em sua preocupação com as políticas habitacionais no Brasil. Apesar de acreditar e atuar em práticas socializantes no canteiro de obras, em que o desenho nasce da experiência do corpo produtivo, Sérgio Ferro (2006 [1976], p.138) mostra-se crítico a “autoconstrução” em países subdesenvolvidos, uma vez que ela parece atuar como “aliviadora” dos deveres do Estado em promover moradia e agravar indiretamente ainda mais as condições de marginalização12. Além disso, afirma que “o projeto continuou a reinar, os operários a obedecer - mesmo quando o objetivo era atender às suas necessidades” (Ferro, 2004, p.43). Assim como Ferro, Djekupe também parece defender que mais importante do que receber uma moradia do Estado seria que a comunidade tivesse a propriedade dos materiais, podendo decidir o que e como construir. Isto é, além da problemática separação de quem pensa e quem constrói, mencionada por eles, a autonomia deliberativa e construtiva das comunidades mostra-se necessária. Sérgio Ferro, ainda em “De Paris à Dubai” (2004, p.52), nos lembra que, dentro do capitalismo, os sistemas de produção autogestionados estão cercados por seu inverso; e, como em toda oposição, os polos se contaminam um pelo outro:
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p.140).
Informações fornecida por Djekupe na aldeia Yvy Porã, São Paulo, em 2019. Sobre o aumento da mais-valia relativa, ver O canteiro e o desenho em Ferro (2006 [1976],
(...) Não há como culpar somente as experiências autogeridas por algumas eventuais deformações. Não devemos esquecer esses problemas, mas também não hipostasiá-los (Ferro, 2004, p.52). 3. Divisão do trabalho
Segundo o cronograma do projeto de extensão universitária mencionado anteriormente, através do qual me aproximei a comunidade, as vivências haviam sido programadas para dar conta de todo o processo de construção da casa de reza e dos banheiros, desde a limpeza das áreas, fundação, madeiramento e fechamentos. Entretanto, devido à necessária mudança de localização, da relativa falta de experiência construtiva dos estudantes e de chuvas imprevistas, houve um atraso no cronograma, levando os Guarani Mbya a trabalharem por conta própria durante uma semana, das 9h às 16h, agilizando o levantamento dos pilares e vigas, parte mais pesada da obra. Conversando com Djekupe (2019), ele comentou que, apesar de muito bem-vinda a ajuda de organização e mão-de-obra não indígena em processos de mutirão, a rigidez para que os Guarani seguissem o cronograma estabelecido causava incômodo. Segundo ele, os moradores ansiavam, de fato, pela finalização da casa de reza, espaço de fortalecimento espiritual necessário em toda aldeia. Entretanto, mais valioso que a rápida finalização da construção é o bom gerenciamento entre tempo e recursos, evitando assim sobrecarga de trabalho e endividamento dos moradores, que são a maior parte da mão-de-obra e do financiamento das construções (informações verbais)13. Quando questionado por mim sobre a divisão do trabalho entre os Guarani Mbya na construção da casa de reza, Djekupe (2019) afirmou que o fator mais importante é a aptidão de cada morador, independente do gênero. Além dos homens e mulheres não indígenas presentes nas vivências na Yvy Porã, observei que a maior parte das mulheres indígenas estava trabalhando no preparo dos alimentos, enquanto apenas algumas participaram do barreamento. Os homens Guarani, moradores da Yvy Porã e de outras aldeias no território, participaram das vivências e construíram a parte mais pesada da obra ao longo de uma semana, como mencionado acima. Entretanto, de acordo com Djekupe (2019), essa forma de dividir o trabalho não está necessariamente presente em todas as aldeias guarani mbya. Por exemplo, na Tenondé Porã, situada na região sul de São Paulo, as mulheres indígenas também trabalham na construção (informações verbais)14. “Todo mundo quer saber fazer tudo, quer mostrar trabalho. Mas esse é o seu dom? Se dividir as tarefas de acordo com o que cada um gosta e sabe fazer, as coisas saem bem
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Informações fornecidas por Djekupe na aldeia Yvy Porã, São Paulo, em 2019. Idem.
feitas; não há retrabalho e todos saem ganhando”, afirmou Djekupe (2019). Buscando relativizar o ônus da sobrecarga de trabalho gerada nas vivências, mencionei sobre a importância do aprendizado através desses processos colaborativos. Ele completou: “Sim, o aprendizado é importante, e por isso sabemos que são momentos diferentes: o da vivência, em que os brancos criam consciência sobre nosso modo de vida, e quando, de fato, trabalhamos duro na construção” (informações verbais)15. Segundo Djekupe (2019), o processo de aprendizado da construção entre os Guarani Mbya começa desde cedo, quando os pais levam seus filhos para observar o canteiro de obras e entrar em contato com os materiais, técnicas e cuidados a serem tomados. A etapa de barreamento é vista como um dia de celebração e brincadeira, em que todas as idades participam, estreitando os laços familiares e aproximando os não indígenas. O aprendizado, para Djekupe (2019), é contínuo; “não é assim, que em uma vivência você vai aprender a construir uma casa de reza”, disse, rindo (informações verbais).16 Figura 2 – Homens Guarani Mbya trabalhando na construção da opy
Fonte: Foto da autora.17
Segundo Costa e Malhano (1987, p.63), entre os Karajá da aldeia de Hawaló a construção da casa também é tarefa masculina, embora constitua propriedade da mulher. Diferente de outro tempo, em que todos os homens Karajá aprendiam a construir e faziam a casa grande em mutirão entre os parentes, as habitações atuais, por serem menores, podem ser construídas por um homem sozinho. O resultado do trabalho pode destinar-se ao próprio usuário ou inserirse no sistema de trocas internas do grupo: atender ao pagamento de uma dívida ou ser vendida por determinada soma em dinheiro (Costa; Malhano, 1987, p.63).
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Informações fornecidas por Djekupe na aldeia Yvy Porã, São Paulo, em 2019. Idem. 17 Imagem obtida na aldeia Yvy Porã, São Paulo, em 2019. 16
Figura 3 – Capitão Arutana (Karajá) fazendo a maquete de uma casa da estação das chuvas
Fonte: Bacellar, 1977.18
Novaes (1983, p.5) aborda genericamente a questão do domínio feminino das casas indígenas, afirmando: “por uma coincidência que não deve ser desconsiderada - já que a casa é, salvo exceção que eu desconheça, de domínio feminino- todos os artigos foram escritos por mulheres.” Em Habitações Indígenas (1983), as autoras apresentam casos em que a organização da aldeia se dá marcada pelo gênero dos habitantes, como é o caso dos Timbira, em que o círculo periférico das casas é de domínio feminino e o círculo central do pátio, masculino. Além disso, o acesso a alguns espaços específicos também é marcada pelo gênero, como é na casa dos solteiros entre os Xavante, ou certas áreas do rio em que as mulheres Bororo se reúnem (Novaes, 1983, p.6). Entretanto, segundo a autora, comparandose com a nossa sociedade, esses lugares são poucos e de permanência reduzida. Já entre os Guarani Mbya na aldeia Yvy Porã em São Paulo, tais noções de construção, propriedade e espacialidade independem do gênero e estão inseridas em um sistema de cooperação coletivo. “A comunidade constrói a casa para uma família, mas sua propriedade é da aldeia, assim como as demais infraestruturas – cozinha, casa de reza, banheiros, entre outros. Não há venda: se os moradores da casa saem da aldeia, os demais decidem coletivamente qual será a próxima família a ocupar a residência”, disse Djekupe (2019). Ele afirma que na Yvy Porã não há venda de construções, mas há aldeias guarani em que isso ocorre: “é muito mais difícil conseguir os recursos de forma colaborativa, então tem gente que prefere comprar os materiais e construir sozinho, daí vende depois. A situação impõe as coisas; o modo de vida capitalista do jurua (branco) nos leva a esse individualismo, mas nós da Yvy Porã lutamos para que não seja assim” (informações verbais)19. 4. Obtenção de materiais Marcio Boggarim, liderança da TI Jaraguá, trabalha como agente da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) do Ministério da Saúde, realizando as instalações de saneamento pelo território por uma quantia inferior a um salário mínimo (R$ 998,00 em 2019).
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Imagem obtida em Habitações Indígenas, 1983, p.120. Informações fornecidas por Djekupe na aldeia Yvy Porã, São Paulo, em 2019.
Os escassos recursos para obtenção dos materiais de construção dos banheiros e demais equipamentos da Yvy Porã provém, como já mencionado, de fundos próprios dos parentes Guarani, moradores da comunidade, de campanhas de financiamento coletivo e da contribuição pela participação nas vivências de permacultura - na que participei, o valor era de R$ 30,00 mais um quilo de alimento não-perecível, estando incluídos almoço, jantar e lanche ao longo dos dias. Os participantes dormiram em barracas próprias e tinham livre acesso às infraestruturas e espaços coletivos da aldeia - banheiros, cozinha, casa de reza, entre outros. Ao longo das vivências, as ferramentas de construção usadas, e muitas vezes quebradas pelos não indígenas devido ao uso incorreto, são de propriedade coletiva da aldeia. A estrutura dos banheiros, em maior parte construída por Boggarim fora das vivências, é de eucalipto tratado, sem casca, e eucalipto com casca, ambos comprados nas proximidades da aldeia. A utilização de diferentes tratamentos permite que o primeiro, mais caro e resistente, seja utilizado para fundação e estrutura principal, enquanto o segundo, mais barato e menos resistente, como estrutura secundária de menor contato com umidade, podendo ser trocado de tempos em tempos. Durante as vivências, além de auxiliar na compra dos materiais, os não indígenas trabalharam em maior parte nas etapas de madeiramento e fechamento das paredes com terra, extraída do solo da própria aldeia. A planta do banheiro é retangular e o pé-direito de 2,40m, aproximadamente; a cobertura, também comprada, é de telha ecológica Onduline. De acordo com Boggarim (2018), o programa da Sesai prevê a construção de mais dois banheiros convencionais em blocos de concreto, destinados ao conjunto de moradores da TI Jaraguá, especialmente aos da Yvy Porã. Ele deseja construir também mais um banheiro seco, utilizando a técnica construtiva mais econômica possível, tanto na obtenção de materiais quanto no manejo dos recursos d’água e reaproveitamento de dejetos para adubo (informações verbais)20. Figura 4 – Marcio Boggarim trabalhando na construção do banheiro
Fonte: Foto da autora.
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Informações fornecidas por Boggarim na aldeia Yvy Porã, São Paulo, em 2018.
5. Organização do espaço No artigo “Observações sobre a habitação em três grupos indígenas brasileiros”, em Habitações Indígenas (1983), Cristina Sá (1983, p.105) afirma que, em geral, as abordagens utilizadas no estudo da habitação das sociedades indígenas privilegiam a forma e a tecnologia construtiva como sendo os critérios mais significativos para a elaboração de uma tipologia. Segundo ela, tais análises interpretam as arquiteturas como resultantes apenas de condicionantes externos, como o meio ambiente, a organização social, a economia, os padrões estéticos, etc. Entretanto, dado os intensos processos de mudança cultural, essa abordagem parece insuficiente, optando a autora por analisar as habitações, ou o conjunto delas, a partir da organização do espaço. Ao mencionar as construções feitas com material industrializado pela Funai para os três chefes da aldeia Karajá de Santa Isabel do Morro, na Ilha do Bananal, Tocantins, Cristina Sá (1983: 129) observa que o defeito delas não é apenas a sua inadequação técnica e material ao local, do ponto de vista climático e financeiro, mas principalmente a desconsideração pelos aspectos sócio-culturais mais fundamentais da população local. A melhor crítica que se pode fazer a essas construções é mostrar como seus proprietários as utilizam: Wataú não mora na casa, pois já construiu uma outra de palha no final da aldeia. Malauré mora na casa de alvenaria, tendo construído apenas uma pequena cozinha de palha ao lado (...). Arutana construiu uma casa de palha ao lado da casa de alvenaria, morando na primeira e utilizando a segunda como depósito e para receber visitantes não índios (Sá, 1973, p.129).
O esquema de organização espacial de casas na aldeia Xavante de São Marcos, no Mato Grosso, similar ao da casa tradicional Xavante, evidencia como, nessa sociedade, também parece importar menos a forma em planta do que a articulação espacial dos elementos. Essa resistência à mudança na organização do espaço entre os grupos estudados pela autora (Yawalapiti, Karajá e Xavante) parece vir do fato de que sua estrutura reproduz simbolicamente toda uma visão de mundo, que é diferente para cada grupo, vindo a se constituir como tão necessária à manutenção de um todo cultural coerente que não pode ser descartada sem afetá-lo. Além disso, Sá (1983, p.143) afirma que parece bastante provável que a organização do espaço seja não somente reprodução simbólica, mas também um agente ativo, capaz de agir sobre cada um desses todos culturais, modificando-o ou
revitalizando-o, atuando como referência de comportamento e constituindo-se em sistema simbólico não-verbal de informação. Figura 5 – Esquemas de organização do espaço de casas da aldeia de S. Marcos e de casa tradicional Xavante
Fonte: Cristina Sá, 1983, p.142.
Aproximando-se de Cristina Sá (1983), Djekupe (2019) também afirma que a forma em planta das casas de reza guarani importa menos do que a correta orientação do espaço em relação a reza, que deve se dar voltada para leste. A estrutura da opy, construída em sua maioria pelos moradores da Yvy Porã, difere de outras casas de reza guarani em planta e cobertura. Sua forma é retangular com uma das extremidades arredondada, o que, segundo Djekupe (2019), facilita na dispersão da fumaça durante a reza. “Deve-se fechar a casa de reza, pois os espíritos não podem passar livremente; precisa filtrar pelas pequenas aberturas da estrutura. O fechamento serve também porque, ao longo da reza, há muita oscilação na pressão corporal das pessoas, sendo necessário o controle térmico da casa”, disse ele (informações verbais)21. A casa de reza é um local fresco e escuro, o que garante também o controle da entrada de mosquitos, presentes na região devido a locais de água parada. Figura 6 – Esquema de organização do espaço da opy na aldeia guarani mbya Yvy Porã
Fonte: Desenho da autora.
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Informações fornecidas por Djekupe na aldeia Yvy Porã, São Paulo, em 2019.
Figura 7 – Opy finalizada com indígenas e não indígenas acendendo a fogueira
Fonte: Foto da autora.
Quando questionado sobre a variação formal das construções guarani, Djekupe (2019) afirma: “Cada construção tem seu sentido, não são todas iguais” (informação verbal)22. Novaes (1983, p.6) parece aproximar-se dessa noção ao criticar a visão reducionista, frequentemente defendida por não indígenas, sobre a aparente homogeneidade de espaços indígenas. (...) apesar das sociedades indígenas serem muito diferentes entre si, é possível dizer que em nenhuma delas há o alto grau de especialização do espaço, tal como ocorre na nossa sociedade. (...) Com isso não quero dizer que as sociedades indígenas concebam seu espaço como algo homogêneo e indiferenciado. No entanto, nas sociedades indígenas as atividades se dão num espaço que é, fundamentalmente, um espaço integrado (e não compartimentado como o nosso) e cujo âmbito é relativamente menor. Aí não ocorre algo que é muito comum nas sociedades como a nossa, onde há uma nítida separação entre a casa, unidade doméstica, e o local de trabalho, unidade de produção (Novaes, 1983, p.6).
A noção integrada entre unidade doméstica e unidade de produção parece apontar também para um sistema mais amplo de cooperação, em que o cuidar e trabalhar articulamse no cotidiano dos moradores da comunidade. Essa noção mostra-se presente também na Yvy Porã em São Paulo, onde, por exemplo, o casal Irene e Antonio confeccionam artesanato em sua casa e expõe à venda no mesmo espaço; ou uma produção de cerâmicas e cozimento de milho na casa de reza que ocorrem simultaneamente ao ritual no fim de tarde. Atrelada ao cuidar e trabalhar, a dimensão espiritual está presente em muitas atividades coletivas na Yvy Porã.
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Informações fornecidas por Djekupe na aldeia Yvy Porã, São Paulo, em 2019.
6. Técnica De acordo com Djekupe (2019), a técnica de taipa de mão, predominante nas construções na Yvy Porã, é a tradicional guarani23. Utiliza-se também eucalipto tratado e com casca na estrutura da opy, seguindo a mesma lógica de manutenção do banheiro descrita acima. A extremidade dos pilares é revestida com saco plástico para proteger da umidade do solo. Já a cobertura desta casa de reza na Yvy Porã é feita com folha de palmeira, obtida no próprio território, e o pé-direito total é de, aproximadamente, 3,50m, diferente da localizada na aldeia guarani mbya Rio Silveiras, Bertioga, em que o pé-direito é de 7m. Segundo ele, este é o máximo de altura que uma casa de reza pode ter, caso contrário, a fumaça gerada pelo fumo e pela fogueira não cumpre sua função ritualística de estar logo acima da cabeça durante a reza. Figura 8 – Detalhe da estrutura da opy na aldeia Yvy Porã
Fonte: Foto da autora.
Preocupados em evidenciar a criatividade indígena através das soluções construtivas tradicionais, Costa e Malhano (1987) realizaram um levantamento tipológico através de plantas, cortes e detalhes das casas alto xinguanas e entre os Karajá do Araguaia. Na construção da opy, os Guarani do Jaraguá afirmam que também procuram seguir a construção tradicional em taipa de mão, mas incorporando a seu favor recursos disponíveis atualmente, como a amarração feita com pregos. Figura 9 – Detalhes da estrutura de casas em aldeia Yawalapiti
Fonte: Costa e Malhano, 1987, p.46.
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Informações fornecidas por Djekupe na aldeia Yvy Porã, São Paulo, em 2019.
Entende-se que o tema da mobilidade é de suma importância para os Guarani Mbya, tanto em perspectiva macro entre aldeias quanto dentro delas. Segundo Djekupe (2019), os terrenos se desgastam física e energeticamente ao longo do tempo, o que leva os moradores a se deslocarem internamente pelo território Jaraguá. Dessa forma, casas feitas com materiais mais leves e renováveis facilitam o desmonte e transporte. Na Yvy Porã, cada família nuclear (pai, mãe e filhos) tem sua própria casa, e utilizam eucalipto para estrutura, madeirite para fechamentos e telha ecológica Onduline na cobertura. “É o que dá para fazer por enquanto; quando tivermos recurso, vamos tirar o madeirite e fechar com barro, aproveitando a estrutura existente”, disse ele (informações verbais)24. Figura 10 – Uso de madeirite e telha em antiga casa na aldeia Yvy Porã
Fonte: Foto da autora. Figura 11 – Cozinha coletiva e casa da Irene, ambas de taipa de mão, na aldeia Yvy Porã
Fonte: Foto da autora.
7. Território Procurando novas formas de financiar as construções na Yvy Porã, Djekupe (2019) desenvolve, junto aos demais moradores, a ideia de introduzir um turismo comunitário, similar ao que acontece na aldeia guarani litorânea Rio Silveiras. O desenho abaixo, feito por ele, mostra o território da Yvy Porã e serve de ferramenta cartográfica de diálogo entre os moradores para pensar o percurso do turismo. A proposta insere-se na noção de
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Informações fornecidas por Djekupe na aldeia Yvy Porã, São Paulo, em 2019.
“fortalecimento cultural”25, buscando conscientizar grupos escolares de não indígenas sobre a cultura guarani mbya. Turismo pago, Djekupe (2019) enxerga-o como alternativa de obtenção de recursos para manutenção do território e moradores (informações verbais)26. Figura 12 – Desenho de Djekupe representando o percurso do turismo na aldeia Yvy Porã
Fonte: Foto da autora.
Um dos projetos também em desenvolvimento na Yvy Porã é o “Xondaro, Kuery Ojeroky’aty” (“Onde o guerreiro dança”), submetido a edital público. Nele, os Guarani planejam oferecer e receber aulas de espanhol, aulas de capoeiras, música, entre outros eventos abertos também a não indígenas. O contato com os moradores da aldeia Rio Silveiras no litoral norte de São Paulo, o interesse pelo aprendizado de espanhol e da capoeira parecem ilustrar a noção ampla, apesar de hoje materialmente restrito, do território guarani: o intercâmbio linguístico e cultural que ocorre com as danças, aproximando os parentes da Argentina e Paraguai, marcam também a territorialidade ampliada. Assim como entre os Guarani Mbya em São Paulo, Novaes (1983, p.4) afirma que a identidade dos grupos a unidade isolada da casa parece importar menos do que as relações estabelecidas entre as casas dentro da aldeia e entre aldeias pelo território. (...) não é a casa o ponto de referência a ser tomado para a elaboração da identidade mas sim um espaço mais amplo e que, em geral, é a aldeia (como para os Bororo, os Xavante, os Wayana, os Xinguanos e os Xikrin), ou a casa comunitária (Waiampi), ou o espaço territorial tradicional de ocupação do grupo (Parakanã) (Novaes, 1983, p.4).
Segundo Keese dos Santos (2017, p.20), “apesar de o termo remeter ao vocabulário dos projetos com organizações não governamentais (ONGs), ele dialoga com o conceito guarani de mbaraete (força), e é frequentemente utilizado para frisar a importância de encontros entre aldeias e a valorização das práticas rituais”. 26 Informação fornecida por Djekupe na aldeia Yvy Porã, São Paulo, em 2019. 25
Figura 13 – Desenho de homem Kayapó- Xikrin representando sua aldeia
Fonte: Vidal, 1983, p.84.
De acordo com Novaes (1983, p.4), o contato com a exterioridade entre os Bororo, especificamente com os missionários salesianos, vem provocando aparentes mudanças na concepção espacial e no auto reconhecimento desse povo. A autora descreve genericamente que, ao contrário das “nossas” crianças, as crianças Bororo com as quais teve contato não desenhavam uma única casa isolada, e sim o conjunto delas, a aldeia. Entretanto, com o processo de catequização na aldeia do Meruri, Mato Grosso, ela afirma nunca ter visto um desenho infantil que retratasse a aldeia tradicional, apenas desenhos de casas isoladas ou igrejas. Segundo Novaes (1983, p.4), os Bororo pareciam estar passando por um processo de crise de identidade, em que, apesar de não se considerarem “civilizados”, frisavam que já não eram como os autênticos Bororo. Assim como a autora, Djekupe (2019) também observa com preocupação um processo de enfraquecimento das práticas reconhecidas como tradicionais ente os Guarani. Menos preocupado com a sua “identidade étnica” ou “autenticidade”, mas com o devir mbya27, o jovem teme que os processos de aproximação com o modo de vida dos brancos acabem por anular as distâncias geográficas, cosmológicas e corporais provocadas pela esquiva guarani (Keese dos Santos, 2017, p.237). A relação entre organização do território, exterioridade e a noção de autenticidade é apontada pela escritora e repórter Eliane Brum no artigo “O chanceler quer apagar a história do Brasil” (2019), publicado pela revista El País, expondo a participação dos vetores estatais. Antes do bolsonarismo, a tática da direita era dizer que os índios não eram mais índios. Era duvidar da “autenticidade”. Como se um indígena usar celular o tornasse menos indígena. Ao deixarem de ser considerados indígenas, os diferentes povos perderiam o direito à terra. Essa tática ainda persiste. Mas a nova direita representada por Bolsonaro é mais esperta. Ela não nega o indígena, e sim afirma uma suposta igualdade ao branco. Não para
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p.232).
Para uma discussão mais aprofundada sobre o devir mbya, ver Keese dos Santos (2017,
que os indígenas mantenham seus direitos constitucionais, mas para que os percam (Brum, 2019).
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS Mesmo com o esforço em afastar-se da noção evolutiva enunciada na Convenção 107 da OIT e em defesa pela autodeterminação dos povos, é notável como a ideia de “progresso” ainda atua como instrumento de análise em grande parte dos textos em Habitações Indígenas (1983) e “Habitação Indígena Brasileira” (1987). As sociedades indígenas são sociedades extremamente bem adaptadas ao meio ambiente em que vivem (o que já não ocorre para aquelas que têm que pagar o “preço do progresso”) e podem perfeitamente prescindir de nossas boas intenções (Novaes, 1983, p.7, grifo meu).
A autora deixa implícito que as populações próximas de centros urbanos, onde o “progresso” configura uma ameaça cara, seriam menos adaptadas ao meio ambiente em que vivem do que aquelas em contextos afastados de não indígenas. Segundo essa visão, a ausência dos Guarani Mbya, majoritariamente situados próximos a contextos urbanos, nos trabalhos Habitações Indígenas (1983) e “Habitação Indígena Brasileira” (1987) parece estar atrelada a noção de que, talvez, seriam “menos indígenas” por “pagarem o preço do progresso”. Dessa forma, Novaes parece flexibilizar a própria defesa de que as cosmovisões e as condições materiais externas (meio ambiente, organização social, economia etc) atuam e transformam-se mutuamente na construção de espaços do habitar; isto é, a autonomia construtiva de qualquer povo, inclusive em contextos ubanos, reside justamente no manejo desses diversos vetores. Pesquisas mais recentes sobre o assunto, como a brevemente aqui apresentada A esquiva do xondaro: movimento e ação política entre os Guarani Mbya (2017), de Lucas Keese dos Santos, fazem circular na academia a noção de que os Guarani são, também, sujeitos ativos de suas ações e com estratégias políticas em relação ao Estado. O que não quer dizer, entretanto, que não sofram as constantes desterritorializações e confinamentos urbanos e culturais, contribuindo para alterações de seus modos de pensar e agir (Keese dos Santos, 2017). (...) não é porque as relações históricas dos Guarani com a colonização e a cultura europeia foram tão extensas e evidentes, contribuindo sem dúvida para transformações em seus modos de agir, pensar e viver, que tais relações têm uma hegemonia causal sobre sua cultura, como se quase tudo que os Guarani são hoje derivasse ou tivesse suas razões de ser inevitavelmente determinadas por essas relações, como muito já foi escrito.
Recusando um debate estéril entre a pureza de formas ameríndias e a subordinação-hibridização em relação às influências europeias, o que pretendo fazer ao longo deste trabalho é descrever como as relações com a alteridade operam politicamente entre os Guarani Mbya (...) (Keese dos Santos, 2017, p.28).
Ao acompanhar algumas obras na aldeia Yvy Porã, pude ampliar o repertório de possibilidades de se produzir arquitetura aproximando o pensar e o fazer sob outras lógicas, que não as de exploração; e, mais do que isso, a flexibilidade das formas de produção de espaços entre os Guarani Mbya que tive contato parece estar inserida em um todo maior de esquivas políticas e cosmológicas, capazes de incorporar a ameaça e transformá-la a seu favor. Simultaneamente, todas as lutas que agem na contramão dessas separações, lutas de tantos povos e coletivos, têm de ser realizadas a partir de relações materiais e simbólicas que nos são herdadas, das quais não podemos simplesmente fugir, mas que tampouco são universais ou imutáveis – são, na verdade, incorporáveis como modo de sua própria transformação. Eis a lição da esquiva: diante da ameaça da coerção, é a postura ativa de incorporar virtualmente seu movimento, produzindo o engano, que poderá tornar vulnerável o próprio ataque. Um “estar em dois lugares ao mesmo tempo” ou “fazer que vai pra lá, quando nada, vai é para cá!” (....) – esse movimento que é um singular encontro de mundos e exemplo de que a esquerda tem muito a aprender, ou melhor, a se transformar junto aos povos indígenas (Keese dos Santos, 2017, p.289).
Ao aproximar os campos da antropologia e arquitetura pela ótica do trabalho, essa pesquisa procura ser um convite a repensar coletivamente nossas relações de produção, propriedade e organização social a partir de movimentações indígenas - ou, nas palavras de Ferro: O que importa frisar é que a virulência de minha crítica provém da esperança que ainda guardo ver, um dia, realizada a arquitetura em acordo com seu mais elevado conceito, tal como Artigas me ensinou que deveria ser: a primeira arte de um povo livre (Ferro, 2010, p.15).
4. REFERÊNCIAS BRUM, Eliane (2019). “O chanceler quer apagar a história do Brasil. EL PAÍS Brasil, Rio de Janeiro, jan. 2019. Seção Opinião. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2019/01/16/opinion/1547664512_125565.html>. Acesso em: 14 jul. 2019. CARNEIRO DA CUNHA, Manuela & CESARINO, Pedro N. (orgs.) (2016). Políticas culturais e povos indígenas. São Paulo: Unesp. COSTA, Maria. H. F.; MALHANO, Hamilton. B (1987). “Habitação Indígena Brasileira”. In: RIBEIRO, B. G. (org.). Suma Etnológica Brasileira v.2: Tecnologia Indígena. Petrópolis: Vozes. FERRO, Sérgio (2010 [2004]). “De Paris à Dubai”. In: FERRO, S. A história da arquitetura vista do canteiro: três aulas de Sérgio Ferro. São Paulo: GFAU. FERRO, Sérgio (2010 [2004]). “O caso da arte”. In: FERRO, S. A história da arquitetura vista do canteiro: três aulas de Sérgio Ferro. São Paulo: GFAU. FERRO, Sérgio (2006 [1976]). “O canteiro e o desenho”. In: FERRO, S. Arquitetura e trabalho livre. São Paulo: Cosac Naify. KEESE DOS SANTOS, Lucas (2017). A esquiva do xondaro: movimento e ação política entre os Guarani Mbya (Dissertação de mestrado). São Paulo: PPGAS/ FFLCH/ USP. LÉVI-STRAUSS, Claude (2008). Antropologia Estrutural. São Paulo: Cosac Naify. NOVAES, Sylvia C. (org.) (1983). Habitações Indígenas. São Paulo: Nobel / Edusp. Contatos: cristina.kesselring@gmail.com e roseli@mackenzie.br