BOB SIKORYAK | CARLOS DE OLIVEIRA | CÉLLUS | EDSON ARAN EDUARDO BAPTISTÃO | FELIPE FORTUNA | JOÃO VICTOR FIOROT | JOTAPÊ JORGE MILTON RIBEIRO | NELSON MORAES | QUINHO | TOM CARDOSO
CROKODILO
Número 1 | Dezembro | 2018 www.crokodilo.com.br contato@crokodilo.com.br Editor: Céllus Colaboradores: Bob Sikoryak, Carlos de Oliveira, Edson Aran, Eduardo Baptistão, Felipe Fortuna, João Victor Fiorot, Jotapê Jorge, Mariana de Lacerda, Milton Ribeiro, Nelson Moraes, Paula Cunha, Quinho e Tom Cardoso. Crokodilo não se responsabiliza pelas ideias e conceitos expressos nos artigos assinados, que trazem somente o pensamento dos autores e não representam necessariamente a opinião da revista.
QUE RI
“O humor fala diretamente à inteligência, nele não há subterfúgio emocional.” Nos dias de hoje, as palavras de Bergson podem soar como uma provocação. Inteligência acima dos dogmas. Humor que não testa limites é pasteurização. O riso surge porque atinge o ponto nevrálgico de uma situação, muitas vezes expõe o irrefutável, arranhando, ou mesmo quebrando, o verniz de algumas “certezas”. Isto é o que interessa: uma constante crítica ao pensamento e ao que este pode ter de canhestro, risível. Crokodilo é uma revista de humor, cultura e artes. Tudo é conduzido pela união desses elementos, através de uma linha editorial que mescla ensaios, crítica e humor gráfico, sem abrir mão da informação consistente e de promover um permanente diálogo entre as produções culturais recentes e clássicas e, sobretudo, respeitando a inteligência e a curiosidade do leitor. O que temos neste número inaugural: O humor engenhosamente mórbido de Chas Addams e sua relação com a morte são examinados de maneira minuciosa pelo poeta e ensaísta Felipe Fortuna. Segundo o jornalista e músico Carlos de Oliveira, geração Beat, jazz, humor e cinismo são alguns dos elementos que fazem parte do Steely Dan de Donald Fagen e Walter Becker, além da evidente qualidade musical. Para entender os termos quase herméticos dos críticos de cinema, o escritor e humorista Edson Aran elaborou um pequeno guia para se evitar as armadilhas da sétima arte. O jornalista Milton Ribeiro nos presenteia com várias informações importantes sobre um dos livros mais marcantes do século XX, A metamorfose, de Kafka. Além dele, dois artistas apresentam suas leituras inusitadas sobre o infeliz destino de Gregor Samsa: Quinho mostra que até o absurdo pode ser virado do avesso, de forma quase impronunciável, na sua Esofromatem-a; e o camaleônico Bob Sikoryak estreia em páginas brasileiras com a paródia Que puxa! Gregor Brown, unindo a turma de Snoopy ao mundo absurdo de Kafka. Além desta história, uma matéria sobre suas paródias mostra que a mistura de literatura e quadrinhos pode resultar em obras inusitadas. Temos um portfólio com a excelência gráfica de Eduardo Baptistão, um mestre da caricatura. Humor e críticas nas colunas. O escritor Tom Cardoso mostra nas suas pequenas crônicas que a realidade brasileira parece estar fora do tom entre roqueiros, políticos e vizinhos de condomínio. Levantando a casca desta ferida chamada cultura, Jotapê Jorge faz alguns questionamentos sobre nosso umbigo cultural. João Victor Fiorot mostra que Clerks, de Kevin Smith, é um ótimo exemplo de que para fazer bons filmes, o mais importante são criatividade e diálogos afiados. Nelson Moraes acaba de lançar A Gargalhada de Sócrates, romance policial e sátira filosófica. É com essa habilidade de unir filosofia e humor que ele critica o politicamente correto de nossos dias. Fechando a revista (e ilustrando também as capas internas), um pouco da vida e da obra de um dos gigantes do cartum mundial: Caran d’Ache. Boa leitura! Céllus
cellus@crokodilo.com.br
N ÚMERO 1 Dezembro 2018
H UMOR E M ORTE Felipe Fortuna A S C ARTAS Edson Aran
DE
EM
C HAS A DDAMS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5
J OYCE . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 10
S TEELY DAN . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 12 Carlos de Oliveira G RAVAÇÕES I NÉDITAS Céllus
DE
H ENDRIX . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 16
C RÍTICA PARA P RINCIPIANTES . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 17 Edson Aran E SOFROMATEM - A . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 18 Quinho A M ETAMORFOSE Milton Ribeiro
DE
K AFKA
.............................
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Q UE PUXA ! G REGOR B ROWN . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 24 Bob Sikoryak A S PARÓDIAS Céllus
DE
S IKORYAK
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M EMÓRIAS DE UM P EQUENO S EDUTOR . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 31 Carlinhos de Oliveira P ORTFÓLIO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 32 Eduardo Babtistão F ORA DO TOM . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 34 Tom Cardoso D EDO NO V ENTILADOR . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 35 Jotapê Jorge P ONTO J ÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 36 João Victor Fiorot A LMIRANTADO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 37 Nelson Moraes D IATRIBE . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 38 Céllus C ARAN D ’A CHE . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 40 Céllus
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Nº 1
HUMOR E MORTE EM Por Felipe Fortuna
Eu apanhava os livros de Chas Addams na biblioteca
de meu pai e, em silêncio, acrescentava ao meu mundo outras possibilidades. Minha infância segura e sossegada era invadida com minha permissão por seus desenhos carregados de tons cinzentos e negros; eles me causaram estranheza justamente porque descobri o terror nas cenas domésticas. O meu lar não era mais o mesmo depois de folhear qualquer um daqueles álbuns de desenhos. Talvez seu humor não ameaçasse a ordem de minha família burguesa, mas não posso dizer o mesmo de uma insuportável presença misturada ao riso: a presença da morte. Chas Addams medita continuamente sobre a morte, que se torna uma afirmação e uma possibilidade diárias. Não se trata de uma morte inusitada, mas uma morte de sofisticado engenho intelectual. A fantasia existente nesse mundo paralelo me dominava: eu também me sentia capaz de engendrar planos e ardis terríveis, mantendo-os em segredo por toda a minha vida. Eu aprendia a destruir as aparências harmônicas da vida e começava a investigar uma lógica sombria que, desde então, se transferiu para o meu cotidiano. Essa descoberta oscilava entre a estabilidade e a iminência; tudo poderia ocorrer – essa era a minha única certeza. Chas Addams deslocou o terror da casa abandonada, dos lugares desertos em que se encontrava confinado e o transformou numa ocorrência normal e vulgar. Desse modo, encarado com maior naturalidade, o terror passou a ser não apenas mais envolvente e mais terrível – porém, encontrou uma dimensão quase insuportável: a de um terror possível. Seus desenhos muito sombreados e quase sempre pouco nítidos são o sintoma de um universo que recusa qualquer delineamento e são também o melhor artifício para produzir a possibilidade. A morte parece ser, enfim, algo de muito simples – mas para atingi-la é preciso astúcia e engenho.
Embora identificado com métodos delirantes, o humor de Chas Addams é extremamente lógico e intelectual.
Não é jamais ambíguo, nem deixa uma situação suspensa para que o leitor a complete com o seu riso. Isso porque, reconheça-se, quase não se ri desse humor. Na minha infância, eu tinha fascínio pela presença cômica em momentos tão inesperados. Hoje reconheço nesse processo rigoroso um interessante mecanismo que faz com que várias ações se repitam, transformando algumas atitudes em variações em torno do mesmo tema. Em seus desenhos não há, como é comum no humor, as eternas brigas entre homens e Nº 1
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mulheres que se casam; pelo contrário, Chas Addams radicaliza a clássica oposição humorística do homem e da mulher e apresenta situações em que uma das pessoas deseja a morte da outra – seja em pensamento, seja ao conceber complexas armadilhas. Em vez de tornar cômico o discurso da briga, é a palavra final (ou a eliminação do discurso) o seu interesse. Um homem estaciona seu trailer à beira de um precipício e pede gentilmente que sua mulher saia dali de dentro; um outro homem para o trailer justamente sobre uma linha férrea, e o está desengatando do seu carro, enquanto lá dentro sua mulher joga paciência inocentemente; uma mulher amarra o fio ligado ao para-raios no braço do marido que dorme na rede, enquanto os relâmpagos se aproximam; uma outra mulher, por sua vez, arma uma verdadeira bomba, astuciosamente colocada na lancheira de alguém; num outro instante, um homem que corta lenha tenta derrubar uma árvore que cairá justamente sobre uma rede na qual, dessa vez, sua mulher dorme; um homem, diante das ruínas do Coliseu, imagina a mulher que está ao seu lado perseguida pelos leões na arena; e, na saída de uma apresentação de Salomé, uma mulher imagina a cabeça de seu marido numa bandeja. Existem muitas outras cenas com precipícios, induções à morte, planos de assassinatos e formas bem menos convencionais de se eliminar alguém. Tudo a indicar que as relações entre marido e mulher são insuportáveis. Chas Addams interessa-se especialmente pelo momento extremo em que uma decisão surge ou é executada.
O mundo burguês, calmo e equilibrado, é afetado por essas sombras que interrompem um piquenique ou a pose para uma fotografia de recordação.
Nesses momentos bucólicos e apaziguados, a desordem explode num pensamento obsessivo ou num gesto brusco. A ordem é desmanchada, como se fosse a imagem de um rosto na superfície da água, agora agitada, quando uma nova ordem surge. Homens e mulheres tomam parte na batalha surda que só o casamento tornou possível: nada mais irônico do que a sentença “até que a morte os separe”. As crianças no mundo de Chas Addams fazem também a afirmação da morte, introduzindo-a perversamente em suas brincadeiras, transformando-a numa possibilidade cotidiana. As crianças fazem experiências que assustam os adultos – nunca o contrário. O choque destes últimos, diante da aparição de cenas inusitadas, é sempre acompanhado de alguma culpa: a existência da guilhotina, a fórmula dos venenos, a cadeira elétrica, o emparedamento, os aparelhos de tortura, a fogueira para os hereges – tudo representa invenção dos adultos. O mundo se apresentou à criança dessa maneira, e ela o descobriu. Eis uma faceta terrível dos desenhos de Chas Addams, já que a descoberta nem sempre é causada pela cumplicidade. A transferência da dor, do castigo e do mal para o ambiente da infância também torna o mundo insuportável. Desse modo, é com grande rapidez que a criança se eleva a uma categoria mental 6
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de alguma sofisticação. Como afirmado, é uma divisa geral da obra desse humorista a de que a morte só é atingida com engenhosidade. O processo de matar alguém é extremamente intelectual, ainda que pautado em experiências anteriores e, por vezes, em monótonas variações – como são os casos dos precipícios e dos venenos. Não se trata de um mundo repleto de brigas, mas de um mundo com soluções terminais. Confinadas em um ambiente doméstico, porém, essas soluções representam escândalos bem-comportados. As donas de casa, como se estivessem no trivial cumprimento de seus deveres, cometem crimes; os casais agem como assassinos que se escondem por trás de máscaras de placidez. Essa espécie de terror caseiro dimensiona o espaço do lar com as conotações inusitadas da desarmonia, e revela um aspecto vertiginoso da vida conjugal. Ao mesmo tempo, tem-se a impressão de que Chas Addams posicionou o Mal em seu devido lugar.
Está claro que um dos procedimentos mais comuns
desse humorista é o da desproporção – o que nunca deixou de ser uma das características gerais do humor. Em seus desenhos, é comum que a desproporção tome formas monstruosas. Se o piquenique de um casal pacífico é interrompido pela chegada de um enxame de formigas gigantescas – enquanto a mulher, sem vê-las, diz ao marido que a presença de formigas no campo é natural; se o vizinho de um outro casal pacífico corre em sua direção, alarmado pelos dinossauros que se aproximam das duas casas – enquanto a mulher comenta que aquele homem tentará pedir algum objeto emprestado -, Chas Addams deixa entrever nos gestos prosaicos o absurdamente gigantesco, o formidável mundo [1]. Embora inoportuno, o gigantismo não é metáfora de uma situação particular, nem pretende simbolizar formas poucos convencionais. Trata-se apenas de colocar cada ser diante de experiências banais e monstruosas (e assim existem pombais, ratoeiras, machados de lenhadores, bolas de golfe e sutiãs absolutamente descomunais). Em muitos casos, é preferível que o animal ou a pessoa não apareça com tamanha dimensão, mas sim o objeto relacionado a um deles. Trata-se tão-somente de causar estranheza, evidenciando “coisas” totalmente inúteis se não houvesse “algo” ou “alguém” que lhes desse utilidade. Pois quase todos os seus gigantes são apenas entrevistos – o que é bem mais engraçado. É com essa medida do absurdo físico que um modelo feminino posa para um escultor que, martelando no mármore as formas de um corpo em seu tamanho natural, precisa subir num andaime, enquanto as gigantescas peças femininas se amontoam num canto do estúdio; ou então, num momento de irresistível comicidade, os olhos desmesurados de uma mulher que procura, através da janela de um arranhacéu onde existe uma loja de roupas para mulheres altas, algum modelo de roupa que lhe sirva. Chas Addams, justamente porque recusa qualquer sentido mítico dessas grandezas, se apraz em fazer um humor
“Nada demais, Agnes. O que você conta de novo?”
“Fale-me mais sobre seu marido, sra. Riggs.”
1. Ao escrever “formidável”, atenho-me ao sentido primeiro da palavra, o de “medonhamente grande”, “descomunal”, “colossal”, conforme registra o nosso dicionário mais popular, em que se evidencia a noção grotesca do gigantismo. Nº 1
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fundado no grotesco, nas aberrações – porém, sem enveredar pelo sarcástico comentário aos defeitos físicos, especialidade, por exemplo, de Graham Wilson. É capaz até mesmo de revelar esquematismos ao conceber um modelo feminino que, dessa vez, é bastante útil a um miniaturista… Nesse sentido, não pode ser considerado um “humorista negro”, como Jaguar, Reiser, Siné ou Gross, porque a existência de tais anormalidades é tolerável. Não se percebem cegos, paralíticos, surdos ou mudos, nenhum estertor. Chas Addams é por demais alegórico – nada cínico. Não é um crítico.
Assim, quando uma senhora tricota num vagão de trem um pulôver com duas aberturas para as cabeças de um corpo, pode-se rir dessa “distração” ou da possível existência de uma pessoa com um par bem pensante; da mesma forma, quando é servido a uma família um porco de duas cabeças (e, claro, duas maçãs entre as fileiras de dentes), não existe perplexidade ou riso cruel: no caso, o possível sequer existe, tratando-se de um distanciamento que Chas Addams, tão mais perverso em outros momentos, sabe operar como ninguém. Pois muitas vezes ele transforma o inusitado em prática real. As pessoas que observam a velha senhora que tricota mantêm um inegável ar de espanto, em vez de simples curiosidade. É assim, estrategicamente, que Chas Addams informa o essencial. Não se trata de esquecimento: há realmente alguém no mundo com duas cabeças.
A imobilidade dos personagens e suas expressões afetadas pela perplexidade produzem uma nova situação, sempre iminente: tudo poderá ocorrer, mas sempre de modo inusitado. O cuidado, no entanto, de raramente revelar alguém morto e em não maltratar as aberrações provoca por vezes uma óbvia ingenuidade. Os poucos que planejam suicidar-se não conseguem levar a termo o gesto final, ou então buscam soluções intelectuais, como a do homem cuja corda esteve amarrada ao ponteiro maior de um relógio da torre. Atenuando a morte, mas salientando tudo o que esteja relacionado a ela, Chas Addams inventa uma situação ideal para a cumplicidade de quem folheia seus desenhos, à maneira de um “manual de instruções” cujo resultado é a própria leitura. Minha infância não escapou dessa fantasia de pensar o muito grande e o muito pequeno. Desde então, as possibilidades monstruosas e o sentido das deformações inscreveram-se na minha representação do mundo. Aceitar a disformidade e a deformação não é muito fácil para as crianças, principalmente em se tratando daquelas que freqüentaram imaculados maternais e pré-primários com tias e coelhinhos sorridentes. Aprendi que ambos os universos existiam, mas o de Chas Addams era, entre outros, mais estimulante. Quando me recordo do que se passou naqueles tempos, estou sempre me referindo a um álbum de desenhos da biblioteca de meu pai ou a músicas infantis também carregadas de armadilhas. Era, também, uma forma silenciosa e profunda de abalar a ordem familiar. 8
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Chas Addams alerta que o mistério e o terror estão
inseridos na vida cotidiana. O humorista desenha uma plateia de comportados espectadores de um planetário; um deles se transforma em lobisomem quando se projetam as fases da lua. Depois, acabado o espetáculo, todos se despedem cordialmente, como se nada tivesse ocorrido. Existir a possibilidade do como se era e é delicioso. Não podia mais recuar diante do efeito de tantas descobertas e invenções.
Certamente devo ter herdado a ideia de que as
testemunhas do fantástico são poucas e solitárias. Esta é a conclusão a que chego atualmente, ao rever os desenhos de Chas Addams. O inusitado ocorre apenas para uma pessoa (o que alude às mitologias do eleito, do individualista e do gênio). Em alguns de seus desenhos, um grupo de pessoas participa de momentos corriqueiros, mas uma pessoa percebe algo que escapa à banalidade desses mesmos momentos. Não seria esta a melhor, persistente e romântica definição (às vezes tão válida) do instante poético? Parece-me cada vez mais evidente que o terror – e, por extensão, a vida – só é percebido na solidão; e o efeito dessa solidão é único, como sentido pela mulher que, em visita a uma catedral, presenciou sozinha o vôo de uma das gárgulas.
É quase insuportável a metáfora que Chas Addams concebe quando convida suas testemunhas solitárias – entre as quais se encontra o seu leitor – para a experiência do silêncio e da conivência.
Não sei bem se é exagero ver num dos melhores desenhos de Chas Addams o tema de uma produção de minha juvenilia, o conto “Os Espelhos Belgas”. Se assim for – mas o que ou quem poderá confirmar? –, trata-se de uma inspiração que só se realizou quase uma década depois. O desenho é um dos mais fantásticos, por tratar do tema do infinito: no salão de uma barbearia, um dos espelhos, como é comum, reflete a imagem do barbeiro e de seu cliente, indefinidamente. No entanto, uma das imagens do cliente é, enfim, a de um monstro – enquanto todas as demais permaneceram idênticas. É uma ideia terrível, sem dúvida, que envolve uma imagem oculta e realidades das quais não se pode fugir – pois, se está refletida, não
é apenas aparência. O desconcertante surgimento dessa possibilidade talvez tenha permitido o tom trágico de meu conto, em que as pessoas se veem cada vez mais velhas nas sucessivas imagens, até o instante em que desaparecem, pois a partir de então o espelho refletia a morte. O sentido da aparição é muito peculiar nos desenhos de Chas Addams, e sempre me causou algum desconforto (do qual também achava graça).
Seu humor, que explora formas inusitadas, embora muitas vezes ingênuas, é capaz desses e de outros momentos terrivelmente lúcidos. Um vendedor de bonecos vodu, postado à entrada dos portões de algum estádio, faz sucesso ao explorar o ódio do outro. Dois homens, que vinham de lados opostos de um enorme deserto, arrastando-se quase sem forças, desviam-se um do outro assim que se encontram. Nenhuma palavra é trocada, nenhum gesto é percebido: a solidão é o único caminho. O humor que Chas Addams provoca, assim como certas sombras entrevistas em seus desenhos, é também inusitado. É quase, para se usar uma fórmula redundante, um humor pouco piedoso consigo mesmo – a exemplo daquela inexplicável Mona Lisa sentada no meio de uma plateia que ri escancaradamente. Não poderia ser de outro modo, afinal o seu é um humor que modelou a ambiguidade numa forma precisa, embora falsa, autenticamente falsa.
Felipe Fortuna Poeta, ensaísta e diplomata www.felipefortuna.com
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As Cartas de Joyce Oraldo Grunhevaldo traduz o irlandês tarado
Além de romances incompreensíveis, James Joyce também
escreveu dezenas de cartas. É famosa sua correspondência com os contemporâneos Ezra Pound e Virgina Woolf, assim como as apimentadas cartas eróticas para a mulher, Nora. Com lançamento previsto para o próximo Bloomsday, a editora Zora & Yonara publica no Brasil o livro James Joyce: Todas as Cartas (James Joyce: All the letters), com tradução do poeta concreto Oraldo Grunhevaldo. A seguir, uma pequena amostra do livro:
Texto: Aran | Arte: Céllus
Por Carlos de Oliveira
STE E L Y DA N Não queira defini-los. Apenas ouça. Já é um consolo.
Estranhos, soturnos, sombrios, sarcásticos, engraçados, melancólicos, arrogantes, geniais. Pode-se dizer qualquer coisa sobre essa banda que nem banda era. Era uma dupla. Uma dupla com agregados. Talvez um conceito. Uma escola. Steely Dan. Até o nome é bizarro.
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Nº 1
P ara uns, são apologistas das drogas e do sexo, da amargura, da desesperança. Para ou-
tros, apologéticos. Se julgam donos da verdade ou pelo menos de uma verdade: só tocam como querem tocar ou não tocam. E isso também vale para seus agregados. Têm o rigor dos intolerantes e a arrogância dos narcisos. Quem sabe sejam apenas tímidos. Inútil teorizar. Melhor só ouvi-los. Mas antes, umas historinhas. Só para ilustrar.
Fagen, nascido em Passaic, New Jersey, tem hoje 70 anos. Becker nasceu no Queens, em Nova York, morreu em 2017, ao 67 anos. Em 1969, um grande revés: o Bard foi alvo de uma batida policial e pelo menos 50 pessoas foram presas por posse de maconha, Becker e a namorada de Fagen entre elas.
Candi ru - Steely Dan III from Yokohama foi
a terceira versão de sua linhagem. Antes dele vieram Steely Dan I e Steely Dan II, ambos com fins trágicos. O primeiro foi triturado pelos dentes famintos de uma cavidade vaginal. O segundo, devorado por dentro por um infame candiru, aquele invasivo peixinho amazônico. Mas estamos falando de música? Ainda não. Falamos de literatura. Limitemo-nos ao Steely Dan III from Yokohama ou apenas Steely Dan. Falamos sobre um dildo, um strap-on, um robusto consolo que passou de relance pelo romance Naked Lunch (Festim Nu, em Portugal; Almoço Nu, por aqui), de William S. Burroughs, publicado em 1959. Algum livrinho de sacanagem? Em algum sentido, pode até ser. Leitura difícil, arrastada, dolorida sobre um certo William Lee, narrador com vários apelidos e que viveu todos os pesadelos da droga. No fundo, o próprio Burroughs.
Esp i õ es - Dependendo a fonte consultada, Fagen também teria sido preso. Foram fichados e tiveram suas cabeças arbitrariamente raspadas. Só foram soltos depois que o Bard pagou a fiança de todos, menos da namorada de Fagen, que não era aluna da escola. A informação que corria no campus era de que a batida policial tivera o dedo, a cumplicidade da própria escola, que teria plantado espiões entre os alunos. Isso deixou Fagen profundamente irritado, a ponto de abandonar seu curso de literatura inglesa (mas não a sua admiração por Jack Kerouac, William Burroughs, Allen Ginsberg, Lawrence Ferlinghetti e Gregory Corso) e jurar nunca mais colocar seus pés em Annandale. As angústias da geração beat falaram mais alto. E ainda falam. Coincidência ou não, escreveu My Old School, gravada pelo Dan anos depois:
...California tumbles into the sea That’ll be the day I go Back to Annandale...
Um a dup l a - Donald Jay Fagen e Walter Carl Becker. Ambos frequentaram a mesma escola, o Bard College, em Annandale-on-Houdson, Nova York. Tocaram juntos em vários grupos de rock/jazz no campus, entre eles The Leather Canary, The Don Fagen Jazz Trio e The Bad Rock Band. À exceção da parceria Fagen/ Becker, nenhuma dessas bandas teve vida longa. Nem mesmo, mais tarde, a Jay and the Americans.
“ No f uc k up s” - No início da década de 70, Fagen e Becker decidiram dar um rumo mais sólido à dupla e publicaram um anúncio no Village Voice em busca de músicos que partilhassem dos mesmos gostos – e esquisitices. No anúncio, uma única exigência aos possíveis selecionados: no fuckups. Encontraram Denny Dias, guitarrista de incrível velocidade nos dedos. Em agosto de 1972, finalmente, os três fundaram o Steely Dan. Fagen nos teclados e voz. Becker no baixo. Dias na guitarra. Mais tarde, com a saída de Dias, Becker assumiria a guitarra. Fagen e Becker assinavam as composições. Agregaram Jeff “Skunk” Baxter (guitarra e percussão), David Palmer (vocal) e Jim Hodder (bateria) e gravaram o primeiro disco, Can’t Buy a Thrill. Nº 1 13
1972
Can’t Buy a Thrill
1973
Countdown to Ecstasy
1974
Pretzel Logic
1975
Katy Lied
1976
The Royal Scam
1977
Aja
1980
Gaucho
1995
Alive in America
2000
Two Against Nature
2003
Everything Must Go
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Nº 1
Dez á l buns - Entre 1972 e 2003, lançaram
dez álbuns, com os mais variados músicos agregados, a maioria de formação jazzística. Mas dizer que o Steely Dan toca jazz é simplismo demais. Há quem diga que tocam jazz/fusion, jazz/rock, blues/jazz, blues/rock, white funk, blue eyed soul. Na falta de uma definição melhor, mais fácil dizer que tocam música de harmonias inesperadas, incomuns, complexas, surpreendentes e texturas pseudoexóticas. Mais uma vez, muitas palavras para definir uma só coisa: boa música. E basta.
O que di z em - De um lado, boas melodias. De outro, letras, digamos, estranhas. Nem todo mundo gosta deles. No começo foi pior. Muito intelectualizados, queixavam-se. Mais recentemente, há quem tenha identificado neles uma linha mais pop. Nunca comerciais nem comerciantes. Canções de amor nunca escreveram. Narrativas sobre o depois do amor, talvez. Obsessões doentias, quase sempre. Sarcasmos, uma resignada admissão do patético, alguma nem tão velada menção à pornografia. Everyone’s Gone to the Movies e um certo Mister LaPage que o digam. Não fica claro que ele moleste adolescentes, mas os convida para ver filmes em seu covil, pedindo que nada digam a seus pais. Pornôs?
Kids if you want some fun Mr. LaPage is your man He’s always laughing, having fun Showing his films in the den Come on, come on Soon you will be eighteen I think you know what I mean Don’t tell your mama Your daddy or mama They’ll never know where you been. “ F i ne C o l o m bi a n” – Ninguém tem no-
tícias de que Fagen seja ou tenha sido algum tipo pedófilo, um chegado a ninfetas. Mas Hey Nineteen é sugestiva desse tipo de assanhamento e remete a um trintão ou quarentão (...she thinks I’m crazy, but I’m just growing old) que sonha com encontros regados a tequila e cocaína (...the Cuervo Gold, the fine Colombian make tonight a wonderful thing). Não parecem ser homofóbicos. Em Gaucho, do álbum de mesmo nome, Fagen canta sem pejo sobre a relação possessiva de um certo homem com um garoto aparentemente volúvel e mais interessado em um gaucho, um cowboy brasileiro (the man from Rio). Don’t tell me he’ll wait in the car LWW Holding hands with the man from Rio. Would you care to explain?
P l ág i o - Mais importante do que supostas
relações pessoais (ou fantasias) de Fagen foi o processo que sofreu por plágio. A introdução em piano e sax de Gaucho, de 1980, é perturbadoramente parecida com Long As You Know You’re Living Yours, de Keith Jarret, lançada em 1974. Fagen perdeu a causa e Jarret passou a ser co-autor da música.
So l o s - O talento de Donald Fagen e Walter
Becker extravasam os limites do Steely Dan. Ambos têm carreiras solo, com obras igualmente intrigantes. Em 1980, Fagen lançou The Night Fly, uma quase ópera nostálgica dos anos 50. Em 1993, apresentou seu fantástico carro, o Kamakiriad, com o qual fez uma longa viagem por lugares de noites geladas, pinheiros risonhos, praias ensolaradas da Flórida e pela solidão das dunas. Em 2006, ainda sofrendo com a paranoia imposta pelo atentado contra as Torres Gêmeas, apresentou Morf the Cat. Seis anos depois, lançou Sunken Condos, sua mais recente produção solo.
At r o p el a do - Becker era mais comedido.
Em 1994, lançou 11 Tracks of Whack. Em 2008, Circus Money. A história pessoal de Becker é atribulada. Em 1977/78, sofreu com as drogas. Sua namorada na época morreu de overdose em seu apartamento e ele teve de responder a processo. Pouco depois, foi atropelado por um táxi em Nova York e teve a perna fraturada em várias partes.
I da e vo lta - Em 1981, o Dan se separou.
Fagen fez The Nightfly e Becker foi ser produtor musical no Havaí. Sarcástico, disse foi trabalhar em uma plantation de abacaxis. Deixou as drogas. Em 1993, retomou a parceria com Fagen. Em 2000 lançaram Two Against Nature e, em 2003, Everything Must Go. Desde então o Steely Dan está de agenda cheia, com concertos nos Estados Unidos, Europa e Japão. Hoje são doutores em música pela Berklee College of Music e membros do Rock and Roll Hall of Fame.
Co nso lo - Nunca vieram ao Brasil e agora, com a morte de Becker, perdemos a chance de ver a dupla original. Mas o Steely Dan também perde. Perde a oportunidade de visitar um país onde certamente encontraria uma inesgotável fonte de inspiração para músicas futuras. Sarcasmos, desfaçatez, dissimulações e non sense não faltam por estas paragens. Teriam a oportunidade de conhecer um third world man de verdade.
Johnny’s playroom Is a bunker filled with sand He’s become a third world man… Bem, por ora, como foi dito no início, melhor ouvir seus discos. Será bem mais revelador do que tentar defini-los com palavras. E que esta modesta sugestão possa servir de consolo a eventuais curiosos. Ou incautos. Carlos de Oliveira Jornalista e músico http://cultura.estadao.com.br/blogs/sonoridades/ Nº 1 15
M Ú SI CA
Gravações inéditas de Hendrix Numa breve e obscura passagem
pelo Brasil em 1968, Hendrix visitou o nordeste e foi arrebatado pelo som da sanfona e pela força rítmica do forró. Seu interesse por um de nossos ritmos mais característicos rendeu uma série de gravacões, recém descobertas e agora reunidas em um album. As gravações foram feitas em Nova Iorque, município na divisa do
Maranhão com o Piauí, no estúdio de terra batida de Seu Genivaldo, em uma mesa de 2 canais e um açude. A tradução das letras foi feita por Humberto Teixeira com supervisão filológica de Antônio Houaiss, notas de rodapé e arrasta-pé dos irmãos Campos e ensaio semiótico de Décio Pignatari, com ressalvas acabrunhadas de Câmara Cascudo.
Depressão do Mandacaru (Manic Depression) Mocinha Esquisita (Little Miss Strange) Senhora do Afoxé (Foxy Lady) Ei Juão (Hey Joe) Criança do Capeta (Voodoo Child) Casa da Luz Vermelha (Red House) Amor dá Confusão (Love or Confusion) Olha Lá Onde Cê Tava (All Along the Watchtower) Boldo é Só Amor (Bold as Love) Maínha Xingando (Machine Gun)
Jaiminho deixa o fole pegando fogo!
Cê tá Espalhando Banha (Star Spangled Banner) Acendendo a Lamparina da Meia-Noite (Burning Of The Midnight Lamp)
L a n ça m e nt o s
Papas do Pop
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a Rat Singer e seu grupo Sgt. Bento’s Headbangers Club Band, a maioria do repertório é puro metal pesado, afiado ou em brasa. Destaque para o glam metal de Fogo e Paixão (com Wando e Giordano Bruno); a pós-medieval Perdendo Dentes (Pato fu e Torquemada); o disco termina com o remix dançante de A Procura da Batina Perfeita (Marcelo D2 e Clodovil), Fogueira das Vaidades e Eu não vivo sem meu Prada. No terceiro cd, o clima muda do metal sombrio para um clima ensolarado. Aqui temos todo o suingue sangue-bom de Bergoglio e Los Hermanos de Francisco. O repertório mostra o respeito à tradição mesclado a uma latinidade mais moderna. As faixas de destaque são: Andanças (com Beth Carvalho); Pés cansados (com Sandy); É uma partida de futebol (com Skank e a torcida do San Lorenzo); o pop despojado de Vou de ônibus (com Angélica); Soy latino americano (com Zé Rodrix); e encerra com uma versão pra lá de suingada de Mamãe passou açúcar em mim (com Wilson Simonal).
Cuba Libre! Cuba Lança! Esta monumental caixa é uma volta nostálgica aos anos da revolução! Você vai sentir em plenos anos 60! Todo o material foi Re-Martirizado em Magixter Dixit 4.9, dando ao som uma qualidade de radinho de pilha. A seleção cobre os grandes momentos da retórica marxista, temperados pelo suingue caliente do legítimo mambo cubano em 200 cds(!) de MP3, totalizando quase 6.000 horas de áudio ou 250 dias de discurso ininterrupto! Destaque para o ônus especial: 50 cds com toda a listagem de fuzilados – narração de Cid Moreira! Outro brinde especial: Na compra do box, você ganha uma cópia do relógio preferido do Comandante: um Rolex todo em latão (made in China)!
Texto e Arte: Céllus
Numa tentativa de agradar os velhos fãs e angariar novos, a Vaticano Records lança esta caixa com sucessos e raridades deste trio de pontífices do pop. Composta de três CDs, a caixa traz um apanhado significativo destes ídolos das multidões. Grande parte do material privilegia versões e parcerias com talentos mais novos e com artistas da velha guarda do Reino do Senhor. O primeiro cd é dedicado a Wojtyla e os Polacos. A coletânea cobre a vasta e variada produção da banda de Wojtyla, antes de se firmar em carreira solo, quando assumiu o nome de John and Paul + II. O repertório tem de tudo: a bossa-nova de consultório Em Corcovado (parceria com Tom Jobim e os Quiropratas); o afoxé Andar com fé (com Gilberto Gil); o tecnopop hospitalar de O pulso ainda pulsa (com os Titãs da UTI); o pop cristão de Teologia (com Frei Cazuza); e a clássica Eu nasci há 10.000 anos atrás, parceria de Wojtyla com Santo Agostinho da Grande Família. No segundo disco da caixa a mudança é radical! Dedicado
c i n em a
Crítica Para Principiantes POR
A RAN
Você resolve pegar um cineminha, dá uma olhada no jornal e lê: “Obra
singular e desmistificadora que, apesar das citações engajadas, guarda um nonsense imagético tipicamente almodovariano”. Tonto, você pergunta aos seus botões: “Que cazzo é isso?!”. Como os botões não respondem, você vai pro cinema e quebra a cara. Este breve guia foi criado para ajudá-lo a se orientar na hora de ler a resenha. Não é uma obra definitiva, claro, pois a crítica, sempre inventiva, enriquece o vocabulário todos os dias. Mas dá pra livrar sua cara na hora de encarar o próximo filme.
Almodovariano - Mulheres histéricas gritam e correm de um lado pro outro em permanente tensão pré-menstrual. No cenário tem muito vermelho, muito amarelo. Peraí... isso não é o programa da Hebe Camargo? Anticlímax - Quando todo mundo pensava que o mocinho levaria a mocinha ao orgasmo, ele deu as costas e saiu de cena, enquanto os letreiros subiam. Bergmaniano - A vida não tem sentido e ninguém se entende. Pô, ninguém sai desse apartamento?! Burton; Tim - É a mesma coisa que o David Lynch, só que batido com sorvete de baunilha. Capra; Frank - Sejamos bons, puros e honestos que o Senhor, que tudo vê, garantirá o hamburger e a Coca-Cola nossa de cada dia. Cinema de Arte - Cada cena dura, na média, 10 minutos. E a câmera faz de conta que não é com ela. Cinema Iraniano - É a mesma coisa que neorealismo italiano, só que sem humor e nenhum dente na boca. Cinema Novo - Pôrra, essa merda tá fora de foco! Citação - Hmmm... eu já não vi essa cena antes num filme do Hitchcock? Consistente - Não desmancha ao primeiro olhar. O que não quer dizer que a coisa resista a uma revisão. Ex: A obra do Brian De Palma é muito consistente. Cult - Todo mundo tem um, a diferença é o uso que se faz dele. Desmistificação - No meio do filme, o Tiradentes chega pro Aleijadinho e pergunta: “É verdade que na noite de Vila Rica você é conhecido como Aleijadérrimo?” Engajado - O cara nasceu no Leblon, mas fome e latifúndio no nordeste sempre foram bom assunto. Establishment - Mesmo que mainstream. Expressionismo Alemão - A iluminação pública é péssima e todo mundo trabalha em estatal. Felliniano - Gozado, na minha rua tinha uma gorda esquisita igualzinha àquela.
Fetiche - O diretor adora mulher de quatro com roupa de couro. Vai dar cadeia ou acabar em processo.
Nouvelle Vague - É que nem bergmaniano, só que o pessoal fuma mais, bebe mais vinho e come mais queijo.
Glauberiano - Um cangaceiro abre a sombrinha e começa a dançar frevo na caatinga. E o índio nu, simboliza o quê? O primitivismo tropical revolucionário, o atraso secular terceiromundista ou foi problema de verba com o figurino?
Overacting - Alguém, por favor, dê um tiro no Jim Carrey.
Hitchcockiano - O colar é a pista para que ele perceba que a ruiva é a loira ressuscitada. Um gordo segurando um gato aparece nos momentos mais inusitados. Uai, parece até que são dois filmes em um, não parece? Humano e perturbador - O filme é tosco, foi rodado na periferia e todo mundo se comunica num dialeto básico de quatro palavras: “mano”, “mina”, “cano” e “truta”. Se for absolutamente mambembe, o filme ganha o reforço do advérbio e é descrito como “profundamente humano e perturbador” nas peças promocionais e na crítica especializada - mas tem diferença? Iconoclasta - Um desmistificador com mania de grandeza. Imagético - O roteiro não faz nenhum sentido, os diálogos são indigentes mas aquele pôr de sol renascentista, hein? Parece até pintura. Aliás, por que o diretor não vira artista plástico logo de uma vez? Irregular - A primeira hora de filme é boa. A segunda foi remontada pelo produtor para agradar o público do Arkansas. Lynch; David - É igual ao Frank Capra, só que apanhava da mãe quando pequeno. Mainstream - O mesmo que establishment. Melodramático - Qualquer coisa na qual o Spielberg mete a mão. Ou melhor, os pés pelas mãos. Mistificação - Então quer dizer que depois de tentar invadir Cuba e de encher o Vietnã de mariners, o John Kennedy pretendia virar pacifista? Arrã... então tá. Nonsense - No meio da missa, a mulher tira um peixe da bolsa e põe na cabeça, enquanto o padre começa a dançar frevo e falar em japonês.
Politicamente Correto - O cara não confia no próprio talento e só se segura fazendo média. Postura - A obra em si é uma porcaria. Mas sabia que o autor foi torturado no DoiCodi? Referencial - Ele precisa ficar dizendo toda hora que leu o Pasquim e que bebeu com o Vinícius? Remake - Pra quê pagar autor, roteirista, essas coisas? É só pegar um trash dos anos 50 e refazer com efeitos especiais de última geração. Revisão - Pensando bem, numa perspectiva histórica, o Victor Mature era bem melhor que o Schwarzenegger, não era não? Singular - Bom não é, mas a distribuidora levou toda a imprensa pro set em Los Angeles, com tudo pago. Bota aí: singular. Surreal - É a mesma coisa que nonsense, só que no fundo tem um relógio derretendo. Tarantino; Quentin - Capricha no ketchup ou eu mando bala, modafóca! Título - Filme com nome de fruta O Mamão Macho - é chinês. Mas se for receita exótica - Mamão Macho Frito - é americano independente. Filme com nome de objeto inanimado - O Sapato - é sempre iraniano. Mas se o título tiver sujeito - O Ladrão de Sapatos - é italiano neo-realista. Filme com nome de lugar - Estação da Luz - é brasileiro da retomada. Se tiver mulher no meio - A Dama da Estação da Luz - é brasileiro também, só que é pornochanchada. Transgressivo - No meio do filme, o Tiradentes chega pro Aleijadinho e diz: “Não olhe agora, Alê, mas seu nariz acabou de cair...” Vanguarda - Um troço feito para cinco pessoas assistirem, quatro acharem uma merda e uma entrar na sala errada e não entender nada. Triers; Lars von - Cenário e trilha sonora é muito caro. Inventa uma teoria aí e abaixa o orçamento, falou? Edson Aran Jornalista, escritor e humorista www.republicadosbananas.com.br
A Metamorfose de
Por Milton Ribeiro
A marca que a clássica novela de Kafka,
A Metamorfose, deixou na cultura ocidental é tão profunda quanto aquela deixada por 1984 de George Orwell e por pouquíssimos outros livros dos últimos séculos. E, com efeito, aqueles que leram a pequena obra de pouco mais de 30 mil palavras, dificilmente deixarão de lembrá-la e, dentre os apaixonados pela literatura ou pelo fantástico, não é raro encontrar quem saiba recitar de cor o início da novela, certamente uma das melhores e mais intrigantes aberturas da literatura de todos os tempos: Certa manhã, ao despertar de sonhos intranquilos, Gregor Samsa encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso. Estava deitado sobre suas costas duras como couraça e, quando levantou um pouco a cabeça, viu seu ventre abaulado, marrom, dividido em segmentos arqueados, sobre o qual a coberta, prestes a deslizar de vez, apenas se mantinha com dificuldade. Suas muitas pernas, lamentavelmente finas em comparação com o volume do resto de seu corpo, vibravam desamparadas ante seus olhos. “O que terá acontecido comigo?” ele pensou. Tradução de Marcelo Backes para a L&PM
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Apesar de ter sido publicada em 1915, A Metamorfose
foi escrita em novembro de 1912. A centenária novela foi concluída em apenas 20 dias no dia 7 de dezembro de 1912, quando Kafka escreveu à sua eterna e repetida noiva Felice Bauer: “Minha pequena história está terminada”. Há outra nota muito significativa escrita por Kafka. Dois meses antes, ao finalizar O Veredicto, outra pequena novela, Kafka registrou em seu diário que havia descoberto “como tudo poderia ser dito”. A Metamorfose foi a primeira tentativa após a nota. KAFKA, AINDA COMO ESTUDANTE DE DIREITO NA REAL-IMPERIAL UNIVERSIDADE ALEMÃ KARL FERDINAND. PRAGA, 1904
Tudo é muito enigmático em se tratando de alguém
tão tímido e com tão poucos amigos como Kafka, mas certamente a frase escrita tem o significado de uma iluminação e tudo o que o escritor criou a partir dali — uma notável série de romances e novelas onde podem ser listados O Foguista, Diante da Lei, A Colônia Penal, O Processo, Carta ao Pai, Um Médico Rural, O Artista da Fome, O Castelo e A Construção, dentre outros — são obras ou de primeira linha ou de conteúdo nada desprezível ou esquecível. O crítico Otto Maria Carpeaux, que emigrou para o Brasil com a ascensão do nazismo, lembra: – Fui apresentado a Kafka em Praga. Estávamos num jantar. Disseram-me que se tratava de um gênio.
Era muito magro, sabemos hoje que tinha 1,82 m e por
volta de 65 quilos. Estava num canto, sozinho. Fui até ele de forma a integrá-lo na conversa geral. Quando me apresentei, entendi seu nome como Kauka, porque ele falava muito baixo. Ora, se era Kauka, não era aquele autor do qual recebera dois livros que ainda não lera. Tentei puxar conversa, mas ele não dava continuidade, respondendo apenas o mínimo. Achei que incomodava e me afastei.
Carpeaux — um grande crítico literário, autor de uma alentada História da Literatura Ocidental em oito volumes — arrependeu-se pelo resto da vida por ter desistido tão rápido de um escritor que passou a incensar poucos anos depois. Ele ouvira errado, não era Kauka, era mesmo o Kafka dos livrinhos recebidos. É compreensível que Carpeaux lamente a perda da oportunidade, mas não é lógico torturar-se — afinal, era o ano de 1921 e, embora a tal “iluminação” fosse de 1912 e o escritor tivesse vivido até 1924, Kafka nunca chegou a ser muito conhecido enquanto vivo. Era um escritor obscuro que publicava alguma coisa e engavetava outras. Quando morreu, pediu a um bom amigo que destruísse seus escritos não publicados. Para nossa sorte, Max Brod foi um amigo ainda melhor e o traiu, salvando para o mundo romances como O Processo e O Castelo.
MAX BROD: SEU MELHOR AMIGO E JANELA PARA O MUNDO
FELICE BAUER, A BERLINENSE. DUAS VEZES NOIVA DE KAFKA, JAMAIS CASARAM. BUDAPESTE,1917
“(…) UMA MULHER QUE ESTIVESSE SEMPRE AO SEU DISPOR, SEM ESPERAR DELE MAIS DO QUE PALAVRAS. “
ELIAS CANETTI O OUTRO PROCESSO DE KAFKA
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tantes, mas os enigmas permanecem, mesmo em relação a A Metamorfose. Sabe-se que Kafka leu trechos da obra para Max Brod e outros de seus poucos amigos. Os biógrafos dizem que o grupo ria do grotesco das cenas. Kafka também. É possível ler Kafka em registro cômico, sem dúvida, mas é indiscutível que a leitura mais grandiosa é a que coloca o homem em desespero frente à existência. Há uma quase imperceptível camada de humor e outra de ironia, esta pouco mais espessa, perpassando seus textos, mas o efeito geral nunca pode ser descrito como alegre ou motivador. Na verdade, é um narrador imperturbável contando uma história sufocante, sem apelar para fórmulas de suspense ou terror. Gunther Andres, na página 19 de Kafka: pró e contra (os autos do processo), resume brilhantemente: “O espantoso, em Kafka, é que o espantoso não espanta ninguém”.
O título A Metamorfose provavelmente se refere não somente à mudança física de Gregor Samsa – nome estruturalmente bem semelhante à Kafka, não? –, que se torna um inseto “certa manhã”, como a todas as outras mudanças decorrentes na família. Se antes da metamorfose toda a família dependia de seu trabalho como caixeiro-viajante e o apoiava e amava, com a transformação em inseto e consequente prisão no quarto, o pai é obrigado a voltar a trabalhar, a ingênua e pura irmã de 17 anos também, a mãe passa a costurar e a casa transforma-se numa hospedaria onde Gregor é mais do que dispensável, é indesejado. A transformação física de Samsa gera outra metamorfose e pode-se dizer que ele passa de parasitado a parasitário, de arrimo a peso morto e objeto de repulsa. Kafka não queria que a figura de Gregor fosse retratada, a posteridade não lhe deu atenção.
É estranho que Gregor acorde aquela manhã sem tentar
analisar o que teria acontecido, como e por quê. A pergunta “O que terá acontecido comigo?” é isolada. Depois, ficamos sabendo de suas incomodações com a vida anterior e temos a impressão de que a atual tanto faz. Em alguns momentos da narrativa, ele parece estar vingando-se, em outros, concupiscente. O ostracismo no seio familiar, a pressão do trabalho, a necessidade de obedecer, a profunda insatisfação de estar sendo escravizado, tudo o que a novela sugere encontra repercussão na vida do autor. A história do homem tornado besouro é inteiramente realista. O problema familiar recebe uma importante observação do tradutor Marcelo Backes: “Kafka invoca seu pai, mãe e irmã quase sem o uso dos pronomes possessivos. É algo muito insistente. É raro que o narrador fale de SUA irmã, de SEU pai, de SUA mãe. Eles são, na maior parte das vezes, apenas pai, mãe e irmã, sem a afetividade do pronome possessivo e vivendo tão-só em sua condição genérica de pai, mãe e irmã”.
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A IMAGEM
DE
GREGOR
Kafka pediu a seu editor, Kurt
Wolff , que evitasse desenhar, mesmo de longe, a figura de Gregor, mas hoje temos versões de Gregor Samsa até em quadrinhos, além de filmes. Para alguns trata-se de uma barata, apesar de que os sinais indicam claramente para uma espécie de besouro. Invocamos novamente o tradutor Marcelo Backes: “Kafka o refere apenas como “rola-bosta” (besouro). Mas o que é objetivo pode ser tanto mais difuso, uma vez que Mistkäfer (rola-bosta) pode-se referir também e inclusive a uma pessoa suja e descuidada, ou tratar-se de um escaravelho qualquer, uma vez que é designação comum a insetos coleópteros, coprófagos e escarabeídeos, que em geral vivem de excrementos de mamíferos herbívoros”.
CAPA DA PRIMEIRA EDIÇÃO, COM ILUSTRAÇÃO DE OTTOMAR STARKE, FEITA A PARTIR DAS INDICACÕES DE KAFKA
TRECHO DA CARTA DE KAFKA AO SEU EDITOR KURT WOLFF, EM 25 DE OUTUBRO DE 1915.
“
Caro senhor! O senhor escreveu recentemente que Ottomar Starke desenhará a arte da capa de A Metamorfose. Isso me deixou um pouco apreensivo. Ocorreume que ele pode querer desenhar o inseto propriamente dito. Isso não! Por favor! O inseto não deve ser desenhado. Não deve ser mostrado nem a distância. Eu ficaria muito grato se o senhor pudesse lhe transmitir ou sugerir meu pedido. Se eu mesmo pudesse, respeitosamente, sugerir a ilustração, eu escolheria cenas como estas: os pais e o chefe em frente a uma porta fechada, ou melhor ainda: os pais e a irmã em uma quarto iluminado, enquanto a porta do cômodo adjacente, completamente às escuras, encontra-se aberta.
“
Hoje, os volumes de crítica da obra de Kafka enchem es-
FRANZ KAFKA COM A IRMÃ OTTLA, NO CENTRO HISTÓRICO DE PRAGA, 1914
UMA CURIOSA CAMPANHA
PARA O INCENTIVO À LEITURA,
FEITA PELA JOHNSON COUNTY
“(…) ELA GOSTA MUITO DE MIM, ACHA
LIBRARY EM 2010
ÓTIMO, SEM CRITICAR TUDO O QUE DIGO, FAÇO OU PENSO, ALÉM DO MAIS TEM BOM SENSO E ESPÍRITO INTERIOR PARA SER CAPAZ AO MESMO TEMPO DE CAÇOAR UM POUCO DE MIM E NATURALMENTE TAMBÉM DE SI MESMA (POIS ELA ESTÁ SEMPRE AO MEU LADO).”
KAFKA EM CARTA A FELICE BAUER 12 DE JANEIRO DE 1913
No clássico Conversações com Kafka (1920-1923), ESCULTURA DE KAFKA POR JAROSLAV RÓNA, NO BAIRRO JUDEU DE
PRAGA
Gustav Janouch cita que Kafka afirmara que “A metamorfose não é uma confissão, ainda que – em certo sentido – seja uma indiscrição”. Indiscrição certamente menor do que a célebre Carta ao Pai, mas não tergiversemos.
A forma como Kafka monta rapidamente os con-
flitos do livro também surpreende. O primeiro está no famoso primeiro parágrafo, depois há outros dois conflitos graves, construídos na mesma linguagem direta e sucinta, de exatidão quase cartorial: o momento em que Gregor é visto pela primeira vez por seus familiares — uma cena de notável realização artística de Kafka — e momento onde a irmã de Gregor, Grete Samsa, aconselha seus pais a livrarem-se do enorme inseto, pois já haviam tentado de tudo para conviver com ele. Há também a interpretadíssima agressão com a maçã, mas talvez o que deixe o leitor mais perturbado é o que subjaz desde a primeira até a última palavra: é o fato de que outro acontecimento extraordinário simplesmente não ocorre. Não há o momento de explicação para o acontecido ou do retorno ao estado normal. Na verdade, não há explicações, tudo fica aberto às interpretações, há uma aristotélica e perturbadora ausência do esquema clássico de exposição, conflito, clímax e conclusão.
Kafka sempre dizia: “Tudo o que não é literatura me aborrece, e eu odeio até mesmo as conversações sobre literatura”. O que incluiria certamente este artigo. Ou seja, vale muito mais a pena ler a pequena e revolucionária novela. Milton Ribeiro Jornalista http://miltonribeiro.sul21.com.br
ALÉM DE A METAMORFOSE, OUTRAS OBRAS DE KAFKA FORAM ADAPTADAS PARA OS QUADRINHOS
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©Sikoryak Nº 1 25
Há três décadas ele vem unindo literatura e quadrinhos de forma surpreendente. Conheça...
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CHICLETE PÓS-MODERNO BAZZOKA JOE FAZ TURISMO NO INFERNO DE DANTE
DERRISÃO EXISTENCIALISTA UM SUPERMAN SEM EMOÇÕES
udo começa em 1989. Pouco antes de se formar na Parsons School of Design, Bob Sikoryak trabalhava como editor associado na revista de quadrinhos independentes Raw, editada por Art Spiegelman e François Mouly. Solicitado por Spiegelman a criar uma página de quadrinhos para a revista, sua premissa inicial foi a de unir dois elementos improváveis de se encontrarem numa HQ: embalagem de goma de mascar e poesia clássica. Precisamente, os quadrinhos do chiclete Bazzoka Joe e os cantos de Dante. A paródia, batizada de Inferno Joe, por seu mote na travessia de terras demoníacas, brinca com os paralelos aventurescos e as questões morais desse percurso. O que parece algo um tanto absurdo é somente uma prática pós-moderna comum – a união da cultura erudita com a popular, abordagem que reflete a influência dos conceitos do pós-modernismo (tão em voga nos anos 80) sobre o trabalho de Sikoryak. A despeito do improvável da união, suas paródias partem sempre de nexos bem articulados: avalia paralelos entre as obras que une, seus aspectos estruturais de enredo e características das personagens. Em uma de suas paródias mais longas, a união de Batman, de Bob Kane (no traço de Dick Sprang, das décadas de 40/50), com Crime e Castigo, de Dostoiévski, morte e culpa são elementos de união.
Na vida real, Dostoiévski foi assolado pela
culpa de desejar a morte de um pai tirano, assassinado por seus empregados, e, na sua juventude de rebelde socialista, viu a morte de perto no seu quase fuzilamento. Na ficção, o milionário Bruce Wayne/Batman é assolado pela culpa do assassinato de seus pais em um assalto, quando saíam de um cinema com ele ainda garoto; no livro de Dostoiévski, o protagonista Raskólhnikov tem um sonho em que se vê criança percorrendo o caminho que fazia com
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os pais para visitar anualmente o túmulo da avó. No trajeto há uma taberna em frente à qual presencia o linchamento de uma égua por um grupo de bêbados. Na vida do adulto Raskólhnikov existe a realidade do homicídio de duas mulheres e a derrocada de seus intentos. Morte, impotência e culpa. Em uma inversão irônica do papel do herói, Sikoryak transforma um poderoso super-herói Batman em Raskol – um herói enfraquecido por sua moralidade contaminada.
Tanto Batman como Raskólhnikov têm em
comum o conceito do homem extraordinário (o poder volitivo de um suposto homem superior nos rumos da história), uma ideia que causava temor em Dostoiévski e que se disseminava na Europa pela publicação de A História de Júlio César, de Louis Napoleão, e pelo pensamento de Hegel. A partir dessa ideologia, Batman e Raskólhnikov justificam seus atos extremos pela ideia de fazer justiça em um mundo cheio de mazelas morais e sociais (ambos vivem em cidades decadentes: Gotham e a ébria São Petesburgo do século XIX), e veem o dinheiro como ferramenta para essa mudança: Bruce Wayne com sua fortuna e Raskólhnikov com o dinheiro que rouba da usurária assassinada por ele.
Outra simetria é a escolha moral: na
condescendência do Comissário Gordon em relação à identidade secreta de Batman, e na do juiz de instrução Porfíri Pietróvitch com a dissimulação de Raskólhnikov quanto ao seu crime. É oportuno lembrar que a presença comum desses agentes da lei nas obras, que têm seu mote em questões morais, crimes e investigações (Batman tem a alcunha de “detetive das trevas”), dá todo o sentido à capa paródica de Dostoyevsky/Detective Comics.
A orfandade e a relação de cumplicidade
entre personagens são paralelos entre o parceiro de Batman, Robin; e Sonia, a prostituta que acredita na redenção cristã e pela qual Raskólhnikov se apaixona. Sikoryak ironiza a relação latentemente homossexual entre Batman e Robin: transforma o menino prodígio em um desalinhado travesti chamado Sonny.
e instrumentalização. Até o sentido de movimento da tira foi invertido. A escolha de Snoopy como empregada da família é propícia: tal qual na relação Charlie Brown/Snoopy, a personagem da novela de Kafka estabelece uma relação dúbia de maus tratos e comiseração com o inseto Gregor Samsa.
Por fim, a fantasmagórica lembrança da
Em 2009, as paródias foram compiladas
velha usurária assassinada por Raskólhnikov, Aliona Ivanova, não poderia ter melhor paralelo no universo de Batman, senão seu arquinimigo Coringa, travestido de vovozinha russa.
Ainda no departamento dos super-heróis,
na paródia Action Camus, Sikoryak parte dos paralelos entre Superman e Meursault, protagonista de O estrangeiro, de Camus – ambos forasteiros que se sentem deslocados no mundo – ironizando o niilismo apático e amoral de Meursault na figura do “homemde-aço” sem o “s” no uniforme, destituindo-o de seu caráter heróico e maniqueísta, mas mantendo uma potencialidade existencial sem emoção. Fazendo assim outra inversão irônica típica do pós-modernismo, ele transforma o engajado super-herói, eticamente preocupado com a humanidade, em um descompromissado egoísta.
Uma de suas paródias mais surpreendentes é
a de O Morro dos Ventos Uivantes, de Brontë, mesclado às histórias de terror dos anos 50 da revista Contos da Cripta, da editora americana EC. O enredo desse clássico romance, em seus aspectos góticos, se encaixa perfeitamente no padrão terror. Uma obra “rústica de fio a pavio, bravia, áspera e nodosa como a raiz da urze”, como define Charlotte Brontë no prefácio da reedição póstuma do livro da irmã, descreve bem o tom que Sikoryak ressalta nesta paródia. Apesar de uma história de amor, tudo é assombroso, doentio, tonitruante e amaldiçoado, como uma boa história de terror deve ser. Segundo E.M. Forster, um romance no qual “a profetisa Brontë insere a balbúrdia, o caos e a tempestade em uma história onde as emoções rodeiam as personagens como nuvens”; efeito que o cartunista consegue nesta paródia. Numa empreitada hercúlea de 14 páginas, Sikoryak mimetiza o traço de Jack Davis, notório colaborador da revista MAD, esta que pode ser considerada uma bíblia moderna da paródia e influência confessa do autor.
Uma das primeiras paródias feitas por
Sikoryak foi a união entre A Metamorfose, de Kafka e Peanuts, de Charles M. Schulz, que resultou na instigante “Que puxa! Gregor Brown”. Nesta obra ele referencia uma tira icônica de Schulz –“a felicidade é um cachorrinho fofo” (publicada em 25 de abril de 1960). No final dessa paródia, Sikoryak faz uso magistral da inversão irônica: o que era singeleza, afetividade e empatia, na tira original, se transmuta em assombro, descaso
no livro Masterpiece Comics, reunidas no formato de revistas encadernadas juntas, como um simulacro de edição de colecionador. Uma boa notícia: a publicacão da obra em português está prevista para 2019. Na antologia, Sikoryak encontrou uma forma criativa e astuciosa de explicar os paralelos: uma seção de cartas fictícias assinadas por leitores que têm relação histórica com os temas, onde fazem perguntas a um certo Professor Erudito, o que resulta em ótimos trocadilhos e gags referenciais: um Max B. (Brod) pergunta por que Gregor Brown não pode se salvar; um certo Currer B. (Bell) – pseudônimo usado por Charlotte Brontë – indaga sobre os destinos de alguns personagens na paródia de Os Morros. E por aí vai.
É assombroso como Sikoryak consegue mimetizar perfeitamente o traço dos quadrinhistas que parodia, resultado do trabalho árduo de inúmeros esboços, como ele mesmo observa: “a imitação tem de ser perfeita para que a paródia funcione”. O autor executa uma extensa pesquisa e reconhece em si um caráter obsessivo com relação ao processo: reúne vasto material iconográfico relacionado ao estilo da HQ que vai imitar; relê a obra literária a ser parodiada e o que consegue de sua fortuna crítica. A partir daí, define o texto que irá compor a paródia. Rascunha os quadrinhos e usa um software de diagramação para aplicar o texto aos balões. Com as áreas definidas para as imagens, começa o longo trabalho de imitar o traço dos cartunistas criando as situações requeridas pela adaptação. Quando chega a um resultado satisfatório dos esboços, Sikoryak parte para a finalização das histórias em papel e nanquim (todas as paródias são desenhadas à mão, o autor não faz uso de colagens digitais). Depois de finalizada a arte, os originais são digitalizados e colorizados. Para maior verossimilhança com os quadrinhos parodiados, Sikoryak usa as mesmas cores definidas para a impressão das HQs antigas. Nas primeiras paródias, os balões e títulos eram feitos à mão, imitando as letras dos quadrinhos originais. Atualmente, o autor cria fontes digitais para cada uma das histórias. Todo este processo pode durar meses para algumas paródias.
ÍCONE POP A TIRA ORIGINAL DO CACHORRINHO FOFO DE SCHULZ , PUBLICADA EM 1960
SANTA MACHADADA, BATMAN! O HOMEM-MORCEGO TROCA O CINTO DE UTILIDADES POR UM MACHADO
“Sátira é uma lição, paródia é um jogo”. A frase de Nabokov – que leva em conta a origem latina moralizante da sátira em contraponto ao aspecto intercambiante da paródia –, de certo modo, sintetiza a práxis Nº 1 27
A LETRA ESCARLATE LULUZINHA É A ENCAPETADA PÉROLA, FILHA DA PROSCRITA HESTER
LITTLE DORY O PESADELO VITORIANO DE DORIAN GRAY ENCONTRA O ONÍRICO LITTLE NEMO DE WINSOR MCCAY
de Sikoryak: ele não ensina, ele propõe um jogo dialético, em que, quanto mais conhecermos os elementos que compõem esse jogo, maior será o prazer em jogálo – “se acontecer de alguém não ter visto o original, nenhum prazer despertará a imagem como coisa imitada” (Aristóteles). Ainda assim, as paródias de Sikoryak se aproximam da sátira menipeia – pela comicidade gerada pelo indiferença ao exagero, aparente desconexão e absurdo, alternâncias entre estilo formal e informal; e da metaficção – pela criação dialética de intertextualidade, exigindo do leitor uma atuação menos passiva, e proporcionando uma apreciação da paródia, de um estágio inicial de estranheza e comicidade, a um contínuo processo dialógico. Num primeiro momento, o leitor pode estranhar os diálogos das personagens: ora se comunicam de forma coloquial, usando gírias, até; ora assumem uma linguagem formal ou até arcaica – dada a origem da obra literária (caso da paródia Perolinha, em que A Letra Escarlate, de Hawthorne, se mistura à Luluzinha, de Marge, no traço de John Stanley e Irving Tripp).
Sikoryak trabalha depurando o essencial de texto e imagem, num processo minucioso de análise e escolha de elementos que compõem este arcabouço. Usa o texto literário de forma estratégica e múltipla, manipulando-o livremente – mas com extrema consciência – suprimindo determinadas passagens e personagens, em função de um foco narrativo bem objetivado. Há uma razão estratégica em usar trechos ipsis litteris dos clássicos. Não são citações pedantes ou gratuitas para forçosamente incluir o texto original em uma adaptação com fins cômicos.
Paródia - hi stória
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III a.C., no capítulo II da Poética, de Aristóteles, em que ele descreve a paródia presente na obra de Hegémon de Tassos como uma imitação em prosa ou verso dos “homens inferiores”. Mais à frente, no capítulo VI, enumerando os elementos que compõem a tragédia, entende o canto (ode) como “aquilo cujo sentido é claro a todos”. No século I d.C, o termo é citado por Quintiliano, no livro IX da Instituição Oratória, para designar “cantos feitos em verso ou prosa imitando outros, mas revestidos de abuso de linguagem para carcterizar-se como imitação”.
Etimologicamente, a palavra paródia traz em sua origem grega o sentido de proximidade ou contradição (para) a um canto (ode). A primeira referência ao termo surge no século
No artigo de Householder, há pontos interessantes quanto à etimologia grega: o que surgiu primeiro foi o substantivo/adjetivo paroidós (cantando em imitação, um cantor imitador),
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O cartunista executa o que poderíamos chamar de um moteto gráfico-textual; tanto porque, tal qual no gênero de canto polifônico, duas ou mais vozes se entrechocam ao longo da obra, gerando uma tensão variável, mas permanente; como devido ao uso de uma lírica sacra e outra profana, através de vozes simultâneas. Dessa forma suas paródias adquirem, como
& E ti molo g ia
Longe de ser uma novidade, a paródia é uma prática bem antiga, desde a Grécia do século V a.C., na obra do primeiro parodista, Hegémon de Tassos, nas peças de Aristófanes e ainda numa apócrifa Batracomiomaquia – paródia de A Ilíada – que narra a guerra entre sapos e ratos. Há muito tempo a paródia vem gerando inúmeras obras que obtiveram reconhecimento: Dom Quixote, de Cervantes; Tristram Shandy, de Sterne; O senhor das Moscas, de Golding; Candido, de Voltaire; Ulisses, de Joyce; O nome da rosa, de Eco. Sua prática se intensificou nas últimas décadas, não só na literatura, mas no campo das imagens. Por um caráter transgressivo, intertextual e intratextual, de reunir elementos díspares ou mesmo sem qualquer nexo ontológico, se tornou uma ferramenta perfeita à arte pós-moderna.
HOMERO POR SIKORYAK
Esses trechos têm uma função dialética de sustentar a paródia como uma obra em progresso que não pode repousar jamais; são colocados em pontos estratégicos da narrativa, evitando uma decantação dos elementos iniciais de estranheza na leitura. Através desse mecanismo, Sikoryak evita que a apreciação das histórias se torne casual, cômoda ou monótona, e desta forma submete o leitor a um reiterado processo de apreensão da paródia como um diálogo entre duas linguagens (séries) que não se fundem completamente, gerando um terceiro elemento sempre em paralelo à leitura, instaurando uma nova discursividade em câmbio constante entre o trágico e o cômico, o coloquial e o erudito, que não busca um retorno às origens, mas um para além desses discursos – “Dinamismos espaciotemporais preenchem o sistema, exprimindo ao mesmo tempo a ressonância das séries acopladas e a amplitude do movimento forçado que as transborda” (Deleuze). As identidades originais dos elementos – quadrinhos e texto literário – são sempre relembradas como estruturas em lateralidade, não em subjacência, assim “o essencial é a simultaneidade, a contemporaneidade, a coexistência de todas as séries divergentes em conjunto. (…) é sempre o diferenciador que faz que elas coexistam.” (Deleuze)
Dois textos são basilares para uma parcela da crítica sobre os aspectos etimológicos e históricos da paródia: ΠAPΩIΔIA (1944), do linguista americano Fred Walter Householder e As Bases da Paródia Antiga (1954), do irlandês Frank J. Lelièvre, especialista em latim e grego.
em intencional contraste a rhapsōidós (aquele que costura cantos), originário da prática dos rapsodos de alinhavar trechos das obras originais de seus antecessores, os aeodos – poetas de aura mística diretamente inspirados pelas musas. Householder defende que os primeiros parodos eram poetas amadores que se apresentavam nos festivais, em seguida aos poetas profissionais, improvisando breves poemas em estilo épico-sarcástico (nos concursos de poesia ocorridos em Atenas e Erétria, por volta de 340 a.C., a paródia era reconhecida como uma forma poética, entretanto, os prêmios eram menores para a categoria). Destas práticas miméticas nascem parode (canção de imitação) e paródia (épico de zombaria), originando o verbo paroideu com o significado de “cantar, compor ou escrever ao estilo de épico de zombaria, utilizando versos sérios para fins cômicos”. Porém, ao longo do tempo, a noção de humor não foi resguardada como essencialmente presente na palavra, na observação dos gramáticos.
um instrumento musical, uma dinâmica e características próprias, em que os elementos que compõem o tom têm seus paralelos: a consonância, em seu aspecto distiguível imediato, é dada pelo reconhecimento da personagem, no primeiro momento, da HQ (através da imagem) e, posteriormente, a do livro (pelo texto); o timbre (a parte central, intercambiada pela simbiose de dois discursos similares); e o decaimento, neste caso, de caráter impulsivo (determinado pela alternância entre os textos erudito e popular), como uma corda que é tangida quando a nota começa a silenciar. Dessa forma, suas paródias resultam num amálgama que se mantém em movimento perene de aproximação e distanciamento das obras originais, onde “não há mais original, mas uma eterna cintilação, em que se dispersa, no fulgor do desvio e do retorno, a ausência da origem”. (Blanchot)
Neste processo, as paródias do cartunista
criam uma dinâmica de entrechoque na relação autor/personagem. O paralelo que se estabelece entre personagens de quadrinhos e de literatura, e a alternância de suas vozes originárias, criam múltiplos fatores axiológicos, impedindo que seu conteúdo narrativo seja concludente, dando margem a um processo variável de supressão/suspensão da personagem lírica. Dessa maneira, Sikoryak distancia as personagens de seus respectivos autores, ou, como define Bakhtin, libera as personagens da “autoridade do autor”, criando uma “distenção da unidade lírica”, em que os círculos autor e personagem não coincidem nunca, em função de suas relações perimetrais. Vemos assim a figura de Charlie Brown dizer frases de Gregor Samsa e se manter como uma simbiose
Tentando elucidar uma confusão que se manteve por séculos, Householder também defende uma importante distinção entre a paródia e o burlesco: paródia deve ser moldada sobre um autor ou obra específica; burlesco pode ser moldado sobre toda uma classe de obras ou sobre nenhuma obra em particular. Desta forma a paródia se torna uma prática mais ampla, abrangendo forma, estilo e linguagem, “podendo ser usada para ridicularizar um autor”, ao que a dissipação temática do burlesco não é tão apropriada. O estudo do irlandês Lelièvre aponta a paródia como uma forma de criticismo literário e atenta para a presença constante do humor (não sendo uma regra, tendo em vista, às vezes, seu caráter neutro), reconhecendo seus aspectos sofisticados e sutis em diversas obras antigas, e diferenciando-a da mera diluição estilística do pastiche. Concorda com Householder em que a paródia pode ter iniciado com poetas amadores, mas ressalta que seu aperfeiçoamento se deu pelo talento de poetas profissionais que conheciam profundamente
indefinida (um elemento em permanente deslocamento criado por Sikoryak). Como observa Kujundžić, “a paródia é um evento que não resulta em síntese, mas produz uma infindável abertura discursiva ou performativa que perturba frequentemente a repetição do histórico”.
Até o século XX, a produção paródica não era vista com bons olhos pela crítica. Curiosamente, além de Bakhtin, para quem a paródia era “uma transgressão autorizada das normas” e aprovada como uma forma de polifonia ou dialogismo, em que várias “línguas” ou “vozes” coexistem e interagem (aprovação dada às paródias medievais e renascentistas – não à paródia moderna), outros formalistas russos deram mais atenção ao assunto, vendo na paródia uma ferramenta de inovação literária: Shklovsky, em seu Teoria da Prosa (1925), analisa o multifacetado e quase pós-moderno A vida e as opiniões do cavalheiro Tristram Shandy, de Sterne (grande influência para o nosso Braz Cubas) e defende a paródia como um dispositivo transgressivo de antítese que, dialeticamente, gera novas formas de arte; para Tomachevski, a incorporação de gêneros considerados vulgares é um fator histórico, “fonte de efeitos estéticos inatingidos e profundamente originais”. Outro formalista, Tynianov, credita à paródia um “caráter fantasmático de cobrir e desvelar aspectos de produções anteriores”. Para ele a literatura é um “baile de máscaras”, em que essa dinâmica de trocas – implícitas ou explícitas – é propulsora da inovação literária. Para Tynyanov todo texto é, de certa forma, a releitura de uma obra anterior – opinião corroborada por Barthes, Sollers, Kristeva e Foucault. Virou um clichê pós-estruturalista.
as obras sérias. Também estabelece comparações importantes da paródia com outras formas literárias, como o silo e o centão. O silo (do grego sillos – olhar de soslaio), poema satírico de vitupério que se utiliza dos versos de Homero e Hesíodo, com o intuito principal de atacar aspectos filosóficos ou morais, é distinguido por Lelièvre ao se utilizar do recurso paródico, sem se ater aos aspectos críticos da forma, muitas vezes se perdendo na pura sátira. Destacam-se as obras dos filósofos Tímon e Xenófanes. O centão (do grego kéntron e, posteriormente, centone em latim), era o nome dado às vestimentas vulgares e vis, feitas com diversos retalhos de cores variadas, usadas por pobres, escravos e camponeses. O termo denota o tom pejorativo e de reutilização de materiais para esta forma poética, que, por sua origem rapsódica de utilizar versos de vários autores (mais notadamente, os de Virgílio) em uma mesma obra, criava essa “colcha de retalhos” de resultados semânticos muitas vezes inusi-
OS MORROS UM TRANSFIGURADO HEATHCLIFF MOSTRA SUA OBSESSÃO PELA AMADA CATHY
ESPERANDO EU VOU OS IDIOTAS BEAVIS E BUTTHEAD, CRIADOS POR MIKE JUDGE, INVADEM O CLÁSSICO DE BECKETT
tados, cambiando entre o pagão e o cristão, em alguns casos, de duplo sentido ou até obceno, exemplo do Cento Nuptialis, de Ausônio, em que alertava que “os centões são mais para fazer rir do que para louvar”. Lelièvre ressalta no centão a rara presença de um criticismo literário comum à paródia, e também, por seus intuitos cômicos, poderia ser considerado uma subdivisão da mesma. Ironicamente, o centão foi adotado como forma didascálica de divulgação do Cristianismo, por volta do século IV, pela obra da poetisa Faltônia Betícia Proba. Na questão etimológica, Lelièvre tenta ser mais conclusivo que Householder, defendendo que o termo paródia expressa ideias de proximidade, consonância e derivação, como também de transgressão, oposição e diferença em relação à obra parodiada, levando a um entendimento da paródia como uma homenagem imbuída de certa crítica ou até mesmo de escárnio, o que denota seu caráter ambivalente e paradoxal de ser imitação e diferenciação, sacralização e iconoclastia. Senso comum para a crítica hoje em dia. Nº 1 29
A paródia está longe de uma apreciação consensual. Uma parcela da crítica a vê como uma prática derivativa e parasitária, outra reconhece-a como uma ferramenta criativa instigante (Margaret Rose, Gérard Genette, Linda Hutcheon, Robert Chambers), e, mesmo assim, ainda discordam no reconhecimento do humor como elemento constitutivo e representativo importante, a despeito da observação de Lelièvre de que, na Grécia antiga, era evidente a apreciação da paródia como uma obra de caráter cômico. BRONCAS NO PARAÍSO AS CRIAÇÕES DE CHIC YOUNG, ALARICO E BELINDA, IRRITAM O CONTROLADOR SENHOR DITHERS, ALIÁS, DEUS
SHAKESPEARE SOAP OPERA MARY WORTH, A SÍMPÁTICA E OTIMISTA SENHORA CRIADA POR MARTHA ORR NO PERÍODO DA GRANDE DEPRESSÃO, INCORPORA A MALIGNA LADY MACBETH
Desagradando gregos e troianos, a paródia causa desapreço tanto em uma avaliação marxista, na figura de Fredric Jameson, com sua extensa obra sobre o pós-modernismo, em que reconhece a prática paródica como intrínseca a este, mas que se aproxima perigosamente da diluição do pastiche, “em que todos se desviam da norma que depois é reafirmada, não necessariamente de forma agressiva, pela imitação sistemática de suas excentricidades intencionais”; quanto na avaliação mais conservadora de Roger Scruton, que, mesmo tendo parodiado o diálogo grego em seu Diálogos Xantípicos, tem uma postura arraigada na defesa do aspecto sacro da imagem, considerando que o modernismo e o pós-modernismo incorporaram o kitsch a ponto de transformá-lo em uma paródia sofisticada (exemplificada em Andy Warhol ou Jeff Koons), fonte de “uma emoção falsa, que ocorre quando as pessoas rebaixam as formas e a linguagem na qual o sentimento verdadeiro pode criar raízes, de modo que não estão mais plenamente conscientes da diferença entre o verdadeiro e o falso”. Talvez Jameson e Scruton avaliem a paródia sob uma moralidade platônica, que nega o simulacro como um demônio sofista, que não se propõe a uma verdade sacralizada, gênese de seu caráter rebelde e ambivalente. Ou, como observa Romano de Sant’anna, a paródia irrompe contra os aspectos tautológicos da ideologia através de um contraestilo que “foge ao jogo de espelhos denunciando o próprio jogo e colocando as coisas fora de seu lugar ‘certo’”. A autoralidade foi colocada em cheque a
MEPHISTOFIELD O FAUSTO DE MARLOWE SE ENTREGA À MUNDANIDADE PREGUIÇOSA DE GARFIELD
partir do Pós-modernismo. A questão de uma autoria que se dilui em decorrência de uma hermenêutica múltipla transforma o leitor em um coautor de qualquer obra (Ricour) e tende a levar mais em conta o arcabouço que permite a este leitor a sua mais subjetiva interpretação (Gadamer). No referente às paródias de
Sikoryak, esses aspectos se recrudescem e se ampliam a partir da questão estilítisca de texto e imagem. A relação entre significante e significado, que alternam seus lugares a partir da importância dada pelo leitor sob uma hierarquia hermenêutica subjetiva, decorre estritamente de seu repertório cultural.
A paródia transgride este cânone valioso
ao modernismo, recrudescido a partir do Romantismo: o autor – e, consequentemente, a originalidade da identidade criativa. Esse pressuposto, que tem atrás de si séculos de cultura, mostra suas fissuras em inúmeros casos na história da arte, pela prática recriadora a partir da tradição (reconhecimento que os gregos davam à paródia como uma forma de aperfeiçoamento pela imitação). Alguns ícones da modernidade têm sua origem em uma forma anterior: a composição de Almoço na Relva de Manet se baseia em uma gravura do século XVI, de Marcantonio Raimondio, O julgamento de Páris, inspirada em uma obra perdida de Rafael, que por sua vez se baseou nas deidades esculpidas em um sarcófago romano do século III d.C., em Vila Medici. Outro exemplo são as 27 versões que Picasso fez, em estilo quase infantil, desta mesma obra de Manet. Picasso recriou também as meninas de Velasquez em 58 versões, além de obras de Delacroix, Rembrandt e outros. A despeito de uma graça inerente de “simular” uma visão infantodesconstrutora acerca de objetos complexos, estas paródias do pintor espanhol ilustram o que esta prática recriadora pode propiciar: uma visão da estrutura intrínseca da obra. Sua essencialidade atemporal e independente de estilo e forma. Aquilo que sobrevive à ação corrosiva do tempo: “Somente o templo, no seu permanecer aí, dá às coisas sua vista e aos homens a visão de si mesmos”(Heidegger).
Nesse campo da recriação, que coloca em
cheque a questão da autoria, as obras de Sikoryak, além de nos mostrarem uma nova forma de HQ, abrem um leque de questionamentos: a apropriação mimética dos estilos dos cartunistas parodiados; o amálgama de texto que se origina das linguagens erudita e popular – colocando luz sobre os aspectos de temporalidade da linguagem e de seus valores como ferramenta de comunicação; os paralelos das personagens que nos mostram a circularidade do caráter humano e seus arquétipos. Além do humor refinado. Grandes méritos das paródias de Sikoryak! Céllus Cartunista e ilustrador www.cellus.com.br
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Nยบ 1 31
JULIO CORTÁZAR
Eduardo
O ESTADO DE S. PAULO
Baptistão
3º LUGAR EM CARICATURA NO WORLD PRESS CARTOON SINTRA, PORTUGAL 2009
“
Comecei a desenhar quando aprendi a segurar o lápis, e não parei nunca mais. É uma necessidade orgânica. Foi a minha brincadeira de infância, e segue sendo até hoje. E, desde criança, só me interessa desenhar pessoas. No início eram retratos, bem depois descobri a caricatura. Caricatura é a adaptação livre de um personagem. É como recontar um texto com as suas palavras, dar sobre ele a sua visão particular. Cada caricatura é um desafio novo, instigante. E o que me move é pensar que a minha melhor caricatura é a que ainda não foi feita.
CARMEN MIRANDA JORNAL DA TARDE 2009
GRACILIANO RAMOS O ESTADO DE S. PAULO 2013
“
PELÉ O ESTADO DE S. PAULO 2013
ROBERTO BENIGNI ACERVO PESSOAL 1º LUGAR EM CARICATURA EM TEHRAN INTERNATIONAL CARTOON BIENNIAL TEERÃ, IRÃ 2005
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Nº 1
MANUEL BANDEIRA O ESTADO DE S. PAULO 2009
PEDRO CARDOSO ACERVO PESSOAL 1º LUGAR EM CARICATURA NO SALÃO CARIOCA DE HUMOR 2008
CLEMENTINA DE JESUS PRÊMIO AQUISITIVO DA CÂMARA MUNICIPAL E MENÇÃO HONROSA EM CARICATURA NO SALÃO INTERNACIONAL DE HUMOR DE PIRACICABA (SP) 2006 JOSÉ MUJICA VEJA 2015
PIXINGUINHA ACERVO PESSOAL 2014
MARIO VARGAS LLOSA VEJA 2014
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F ORA
DO
TOM
TOM CARDOSO
E u juro que não entendo: os Stones são convidados para as melhores festas do mundo e sempre acabam tomando prosecco na casa de algum rico chato. Na sua última vinda a São Paulo os caras se superaram: passaram uma madrugada na casa da Luciana Gimenez. Sim, a refinada anfitriã é mãe do filho do Jagger, mas olha só quem apareceu no regabofe: Álvaro Garneiro, Alvarinho Garneiro, Fábio Arruda, Luigi Baricelli, Nizan Guanaes, Donata Meirelles... e... e... e... e... Geraldo e Dona Lu Alckmim! Eu dava minha vida para ser um dos garçons da festa. Fico imaginando um diálogo entre o Picolé e o Keith. – Olá, eu sou o Geraldo. Qual a sua graça? – Keith. – O senhor toca qual instrumento? – Guitarra. – Faz um barulho e tanto né? – Sim, isso é rock and roll. – Eu gosto muito de Ray Conniff. Já tocou com ele? – Não. O senhor é padre? – Não, sou governador de São Paulo. – Hummm. – Mas sou temente a Deus. O senhor não é? – Eu tenho uma certa simpatia pelo demônio. – Ahã? – Sim, roubei as almas e a fé de muitos homens. – Jesus Cristo!!! Com licença, rapaz.
O Moacir, o meu vizinho de cima, não é mau sujeito. Gosto dele. É o tipo de cara que compra cabo pra chupeta só para ajudar os outros. Mas todo domingo de manifestação era a mesma coisa. Ele mudava o olhar, ficava meio vesgo e virava o Hulk da direita. Era ele quem liderava o levante até a Paulista dos
moradores do Jardim Bonfiglioli. Eu adorava: era o domingo que não tinha televisão ligada, churrasco na varanda, futebol na quadra. Por mim o Brasil podia virar a Turquia: um golpe por semana. O problema era a volta da família Moacir. Eles chegavam ainda mais raivosos, todos com aquela baba no canto da boca de quem passou a tarde mudando o Brasil. Dei azar de encontrá-los uma vez no elevador. Eu tenho é medo da Sônia, a mulher do Moacir. Ela é a mais agressiva da família. O tipo de mulher que liga pra reclamar da falta de catupiry na borda recheada. Pra piorar, eu estava com a minha camisa retrô da União Soviética, comprada a 98 reais na lojinha da Rua Harmonia. A Sônia-Hulk grudou o olho zarolho no CCCP e perguntou: – O que quer dizer isso, hein? – Comando de Caça aos Comunistas da Paulista. – Ah bom. Ufa. Eu vivo precisando de chupeta.
Sou filho de pais hippies. Meu pai aban-
donou a luta armada pra ouvir Caetano. O Leãozinho e a Vaca Profana são responsáveis pela minha existência. Sou grato a eles. Mas juro que muitas vezes deu vontade de nascer filho do Bolsonaro com a Marine Le Pen. Principalmente quando me lembro dos quatro anos em que estudei no Mutirão, uma escola semi-integral que se vendia como “alternativa”, mas que, na prática, estava mais para sítio dos Novos Baianos administrado por Josef Mengele. A diretora, chefe do campo de concentração de Cotia, era uma mulher chamada Ana Maria Pimentel, que obrigava a gente a comer arroz integral e feijoada de soja em plenos anos 70, numa época em que as crianças levavam fandangos de lanche. E não havia nem um tempo de adaptação para as crianças. Pior: quem não comia toda a comida do prato, levava castigo, como ficar quatro horas de pé no pátio fantasiado de agrião ou de tomate, dependendo do peso e altura. Não estou brincando. É sério. A Ana Maria Pimentel era uma ególatra. Toda segunda, a gente tinha que cantar o hino nacional, o de São Paulo e o do Mutirão, que começava assim: “De manhã ao sair para escola, lá se vai estudante feliz... E terminava assim: “Graças aos professores e a diretora Ana Maria”. Eu odiava a Ana Maria e o seu cheiro de grão de bico. Ela morava na própria escola, numa casa rodeada de plantas e flores. Desde que entrei no Mutirão, ouvi sempre
a mesma história: a conexão da Ana Maria com a natureza era tanta que ela era capaz de identificar qual aluno havia feito xixi em determinada planta ou flor, mesmo a quilômetros de distância. A história virou lenda e ninguém nunca ousou mijar no seu orquidário. Só eu. Sou mais curioso que medroso e um dia, após a aula de horta (sim, sei até hoje plantar um rabanete), descarreguei o suco de tamarindo inteiro no girassol predileto da Bela Gil do Mal. Não sei se ela era paranormal, ou mantinha homens da KGB infiltrados no quintal. Só sei que, no dia seguinte, o bedel da escola me pegou pelo braço e me enterrou até o pescoço exatamente ao lado do girassol. A história foi parar na página policial da revista VEJA, o que obrigou minha mãe, finalmente, a tomar uma providência e me matricular na Escola Chácara Crescer, também igual ao sítio dos Novos Baianos, mas com administração Baby Consuelo, com professores maconheiros e aulas práticas de poligamia. Aí sim o meu mundo passou a ficar Odara.
Fui comer uma pizza ontem na casa de minha mãe. – Pai, o que a vovó tem na boca? – É um cigarro, filha. – Cigarro diferente esse. Mais grosso (mamãe sempre exagerando na dose) né? – Sim. – Por que a vovó tá prendendo a respiração? – Não sei. – Eu vi que tem uma sementinha dentro. O que é? – Orégano. – Eu adoro orégano. Podemos colocar na pizza de mussarela? – Não. – Por que? Por que ainda não inventaram a criança que não faz pergunta? Tom Cardoso Jornalista e escritor www.facebook.com/tomcronista
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Nº 1
DEDO
NO VE N T I L A D O R JOTAPÊ JORGE
Cultura nacional pega no meu...
A cultura brasileira vai mal. Não porque a Anitta seja pior que o Chico – a Anitta, aliás, é um fenômeno para ser observado com calma. Mas por nossa insistência em acreditar que o filho do Sérgio Buarque de Holanda foi a melhor coisa que aconteceu desde a invenção do pão fatiado. Não foi. E a “letra profunda e cifrada” de Cálice só prova que os militares eram uns paspalhões.
É triste, mas o brasileiro não gosta da cultura brasileira. Claro, tem muita gente que gosta de MPB, carimbó e xaxado. Tem gente até que chama o Crioulo de poeta. Mas de cultura brasileira mesmo, a do cara que vai ao boteco, toma um traçado e depois dança forró até o amanhecer... Dessa a gente entende muito pouco. Nossa crítica não quer saber do que gosta o Sebastião, que trabalha de eletricista, ou a dona Zulmira, que faz coxinha para fora. Nossa crítica prefere falar bem da Tulipa Ruiz. Veja o exemplo do Cinema Nacional. Nada mais rodinha de gente branca e rica que o Cinema Nacional. O cineasta brasileiro é um bobalhão com muito dinheiro e pouco juízo. Apesar de ter uma experiência de vida que não passa do circuito Ipanema/Vila Madalena, ele quer falar da criação do universo segundo a cultura nagô dentro de uma narrativa do subúrbio do Recife nos anos 1940, ou alguma coisa assim. Pior. O cineasta brasileiro acha que tem de passar uma mensagem. Já repararam que não existe gente pobre feliz no Cinema Nacional? O pobre no Cinema Nacional sempre tem de ser um fodido, que se levanta no meio do ônibus para fazer um discurso contra a exploração do homem pelo homem. A Guerra Fria acabou há 30 anos e o Cinema Nacional ainda não conseguiu sair do realismo soviético. Só gente branca e rica faz cinema no Brasil e só gente branca e rica vê cinema brasileiro. O brasileiro médio despreza o nosso cinema. Nossa gente gosta é das comédias pastelão da Globo Filmes, uma versão de 1h30 das novelas. No fim o Cinema Nacional só se sustenta pela Lei Rouanet. Proponho aqui a proibição deste tipo de financiamento por 25 anos. Muitos dirão que a indústria acabará. Eu digo que ninguém se importa.
Na música é um pouco melhor. Talvez porque a música brasileira tenha conseguido construir algo parecido com uma indústria: existe uma lógica de mercado, um calendário, etc. Tudo, claro, muito amador. O Brasil não tem uma indústria cultural. Nós temos no máximo uma manufatura. Nós somos os hippies vendendo missangas na avenida Paulista. Curiosamente é na música brasileira de verdade, essa que precisa vender discos, que se concentram as maiores críticas dos nossos intelectuais. “Menos Claudia Leitte, mais cantora Céu!”, gritam. Não sei vocês, mas meu objetivo particular é ser criticado pela inteligência brasileira – de preferência pela Marilena Chaui. Não há nada mais burro do que um intelectual brasileiro. O povo reclama que a PEC 241 vai congelar os gastos da educação, mas ninguém fala que quase metade desse orçamento é gasto nas péssimas universidades brasileiras, onde um bando de moleques burros de classe média aprende com um bando de velhos burros de classe média como serem uns perfeito adulto burros de classe média. A elite brasileira (seja ela de direita, que grita contra a iminente revolução bolivariana, ou de esquerda, que acredita na tal revolução) ainda acredita no marxismo-leninismo. No Brasil a gente não consegue criar nada. Quando alguém cria, é execrado. Se há uma cultura no Brasil, é a do “foi aplaudido lá fora”. Não importa o que (pode até ser o chato do seu Jorge): se apareceu num filme do Wes Anderson vira “hit”. Este pensamento permeia cada fibra da nossa nação. Somos um país de características únicas, com uma população etnicamente singular e problemas que demandam soluções inovadoras, mas a gente prefere imitar. O Brasil não vai achar saídas olhando para a Europa e nem para as Estados Unidos. A única forma de nós nos encontrarmos e olhando para nós mesmos. Mas quem quer fazer isso? Jotapê Jorge Escritor, jornalista e polemiquinho no Twitter Nº 1 35
P ONTO J ÃO
JOÃO VICTOR FIOROT
O Legado do Primeiro Filme de Kevin Smith Explosões gigantes, animais feitos em CGI, efeitos
especiais que são incríveis (durante alguns meses) e uma profusão de nomes subindo nos créditos são algumas das características mais comuns na maioria dos filmes que fazem muito sucesso hoje. Exceto pela época do Oscar (a copa do mundo dos filmes), quando todo mundo fica meio cult, isso é o que as pessoas costumam ver no cinema. O fato é que essa ruma de pomposidades, além, é claro, da enorme quantidade de zeros preenchida em contratos de figurões que movimentam a indústria, acabam tirando o espaço de filmes que, com pouquíssimos recursos, conseguem fazer enormes proezas. Um desses casos de produções independentes que são melhores do que muita tralha bilionária de Hollywood é Clerks (O Balconista). Escrito e dirigido por Kevin Smith nos idos de 1994, o filme tem uma história praticamente inexistente e mostra situações cômicas em contextos que faziam parte do único universo conhecido por seu idealizador na época. O primeiro filme da carreira de Smith teve de vencer os danos causados por uma enchente, orçamento curto e falta de pessoal, além de outros percalços para sair do papel e chegar a ser distribuído pela Miramax. Tudo isso é válido para lançar um holofote sobre algumas coisas que são realmente importantes para quem aprecia filmes ou quer fazer cinema. Em primeiro lugar, nada de mundos ‘estrombólicos’, cheios de complicação e personagens vindos de algum esquema monomítico de Joseph Campbell. Situações e pessoas “normais” funcionam bem. O cotidiano pode ser complexo por si só, apesar de banal. Kevin Smith optou por não ser pretensioso e resolveu rodar seu filme no ambiente em que mais tinha estado até então: uma loja de conveniências (a única em que ele havia sido empregado, inclusive). Além disso, seus personagens principais, Dante Hicks e Randal Graves são baseados nele mesmo e em seu amigo Brian Johnson, remontando a época em que eles trabalhavam juntos e parecia que os clientes estavam constantemente ali para interromper suas conversas. Em seguida, Clerks é a prova de que uma ideia na cabeça e uma câmera podem funcionar, sim! Desde que com um bom roteiro. O filme é praticamente uma peça teatral, com poucos cenários e ações, mas, em compensação, muitos e ricos diálogos cômicos. Kevin Smith trata a direção dos diálogos com absoluta minúcia, o que deixa bem claro que, paradoxalmente à improvisação de conversas reais, é justamente de lá que eles foram tirados. Ok, ok, “ideia na cabeça e câmera na mão, mas quem paga a conta?” A resposta… — ninguém (a princípio). O diretor e roteirista de Clerks gastou em torno de 27 mil dólares de seu bolso. Uma bagatela se comparada aos 1,5 milhões que renderam a Moonlight o Oscar de melhor
filme (um valor também surpreendente, convenhamos). O diretor conseguiu se financiar com o dinheiro da venda de suas coleções de discos e quadrinhos além de uma uma gigantesca dívida de inúmeros cartões de crédito estourados. Por fim, mas não menos importante, ter amigos que topem entrar nas suas enrascadas é fundamental. Boa parte do elenco e equipe técnica foi composta por pessoas muito próximas a Kevin, que ajudavam quando alguém não ia para a gravação (algo recorrente). Receber uma mãozinha de um conhecido é normal, mas, quando se está gravando numa loja de conveniências de 11 da noite às 5 da manhã, isso não é tão comum quanto pode parecer e, ainda por cima, algumas coisas ganham outras proporções, como ter a própria irmã dizendo que masturba macacos para viver. É bem verdade que muitos desses “atores”, jamais fizeram qualquer outro filme relevante, contudo, Clerks, definitivamente, vale a pena. O filme ainda foi gravado em preto e branco para eliminar os custos com iluminação e tratamento de imagem, o que prova que soluções criativas podem ser mais importantes do que financiamento. Isso fica perceptível tanto na apresentação do filme por si só, quanto no conhecimento de todo o seu making of e na inspiração que ele é capaz de gerar em aspirantes a escritores, diretores, produtores e toda essa patota cinematográfica. João Victor Fiorot Professor, redator e editor-chefe do site PontoJao www.pontojao.com.br
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A LMIRANTADO
NELSON MORAES
Diz que uma piada política encontrou uma piada religio-
sa no velório de uma piada matada. – Escuta – disse baixinho a piada religiosa – você não é a… – Sim, sim – disse a piada política – Sou a que diz que o Doria, depois de se fantasiar de gari, resolveu exagerar ainda mais no cosplay e apareceu pra trabalhar vestido de prefeito. E você não é a… – Exato. Sou a que diz que perguntaram ao Alckmin se ele era mesmo da Opus Dei e ele riu: “Ei, sou neoliberal mas não tão liberal assim! Meu negócio é a Ordem de Torquemada!” – Certo, certo. E você conhecia a piada matada? – Sim, era uma piada em inglês, visitando o Brasil. Ao passear pelo Rio, foi vítima de uma tradução perdida. – A que ponto chegamos. – A que ponto chegamos. – Aliás, estou pensando em emigrar, sabe? Aqui nesse país a coisa anda muito violenta. Ontem uma anedota politicamente incorreta, prima minha, foi linchada em plena luz do dia. – Olha. Conheci um chiste filosófico também que foi roubado de seu sentido original e explicado com requintes de sadismo. – Então – disse a piada política, contemplando a falecida, no caixão. – Eu não quero terminar como ela, viu? Vou comprar uma passagem hoje mesmo pro Afeganistão. – Afeganistão? Tá doida?!? – exclamou a piada religiosa, chamando a atenção de todos no velório. Depois que o ambiente se normalizou ela prosseguiu: – Você vai justo… pro Afeganistão??? – Sim, ué. Lá a gente anda de burca, ninguém vai reconhecer. E outra: eles vivem o tempo todo matando uns aos outros, então nem têm tempo de se preocupar com piadas. – A que ponto chegamos. – A que ponto chegamos.
Só o amor constrói.
O problema é que a safadeza ganha todas as licitações de empreita.
Na mesma proporção em que a direita e
a esquerda se diferenciam nas utopias elas se igualam na malandragem.
Software é o que você pirateia.
Hardware é o que o ladrão carrega. M OMENTOS
HISTÓRICOS
G
– arçom, tem uma mosca na minha sopa. – Isso é uma opinião sua, senhor. – Como, opinião?!? Basta olhar para ver! – O senhor quer invocar a fenomenologia pura e simples, que prescreve a necessidade do testemunho sensorial do fenômeno? – Não. Quero invocar o imperativo categórico! Tem uma mosca nessa sopa e pronto! – O que o senhor convencionou chamar de sopa é uma mistura líquida que, até ser provada, não pode ser chamada de alimento. O ente que flutua neste líquido, que o senhor convencionou chamar de mosca, não pode, a priori, ser classificado como… – Escuta… Posso classificar sua gorjeta então como um fenômeno pertencente exclusivamente à esfera das ideias, platonicamente falando? – Er… vou trocar sua sopa, senhor. – Putz. Essa é a última vez que venho a um café filosófico.
FRIEDRICH NIETZSCHE E AS COELHINHAS DA PLAYBERMENSCH, A REVISTA MASCULINA QUE DESNUDAVA A ALMA HUMANA À LUZ DO PERSPECTIVISMO, E QUE AINDA TRAZIA OUSADAS POSIÇÕES EPISTEMOLÓGICAS NO PÔSTER CENTRAL.
Nelson Moraes Publicitário, humorista e autor do romance satírico “A Gargalhada de Sócrates”. Não necessariamente nessa desordem. www.facebook.com/nelson.moraes.31 Nº 1 37
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A Paris reformada pelo Barão Georges Hausmman, a pedido
de Napoleão III, se tornara uma cidade ampla e regida pela linha reta; saíra da idade-média de vielas estreitas e mal-cheirosas, para adentrar a modernidade de amplos boulevares, lojas de departamentos e cafés elegantes. Um sentido estético de conclusão geométrica e essencialidade que encontraria ecos na obra do jovem Emmanuel Poirée, um russo de dezoito anos que ambicionava ingressar no exército francês e se tornar um pintor renomado.
CARAN D’ACHE POR FELIX NADAR 1886
FATORES DE EFERVECÊNCIA NAS RUAS: NIILISTAS 1902
Poiré nasceu em Moscou, em 6 de novembro de 1858. Apesar
da origem eslava, tinha sangue francês por parte do avô paterno, um tenente da Grande Armée de Napoleão, condecorado pelo próprio imperador em pleno campo de batalha da Campanha Russa. Entretanto, quando os russos mostraram a Napoleão que ele não era tão invencível como se imaginara, obrigando-o, em outrubro de 1812, a retirar suas tropas, ou pelo menos o que havia sobrado delas, o tenente francês Poirea forçosamente permaneceu na Rússia: teve o azar de encontrar um bando de cossacos – por deleite sádico não o mataram, deixaram-no ferido para morrer “ao natural”. Por sorte, foi resgatado por uma família polonesa. Sobreviveu, casou-se e estabeleceu-se em Moscou, onde se tornou mestre de armas na Corte Imperial da Rússia.
Voltemos ao neto. O jovem Emmanuel Poirée teve uma educa-
ção esmerada. Aos 8 anos, foi mandado para o melhor ginásio de Moscou. Quando completou os estudos, seu pai resolveu enviá-lo à França, a fim de ingressar no exército e retomar a cidadania francesa. Após uma viagem nada memorável de 15 dias em um vagão de terceira classe, e sobrevivendo com vales de sopa, Poirée chega a Paris em 1876, e logo ingressa no exército.
2ª GUERRA DOS BÔERES A MONTANHA SPION KOPJE,
Poiré serviu o exército francês até 1881. Neste período de cinco
OS INGLESES E A MORTE
anos, desenvolveu seu desenho criando modelos de uniformes para o Ministério da Guerra e publicando no jornal La Vie Militarie. Nessa época, reencontra um amigo conhecido em Moscou, agora também no serviço militar: o jovem Adrien de Mortillet, futuro arqueólogo e antropólogo, e um dos fundadores da Sociedade Pré-histórica Francesa, em 1904. O cabo Poirée se diverte em fazer caricaturas militares, mas resolve adotar um pseudônimo. Seu amigo Mortillet sugere Caran d’Ache, uma transliteração do russo karandash (lápis). O nome é aceito com entusiasmo.
1900
Em 1883, o nomeado Caran d’Ache se estabelece em Montmar-
VÉSPERA DO CASAMENTO “BLANCHE, DEIXE-ME EXPLICAR O MECANISMO DO AMOR.” LE RIRE 1899
tre e começa a colaborar com o cabaré Chat Noir, fundado por Rodolphe Salis em 1881, um dos primeiros cabarés a editar seu próprio jornal. Além de desenhar para a publicação, junto a um respeitável time de cartunistas: Théophile-Alexandre Steinlen, Adolphe Willettte e Jean-Louis Forain; Caran d’Ache apresenta um teatro de sombras com marionetes articuladas que obtém bastante sucesso: “A primeira peça que eu representei no Théâtre du Chat Noir foi chamada de 1809; os personagens deste show foram perfis de papelão. Eu tive então a idéia, para L’Epopée, de trocar papelão por zinco: era um ótimo trabalho.” L’Epopée era uma peça que evocava as batalhas de Napoleão, com recursos sonoros, explosões e fumaça.
Em 1886, já colabora com inúmeros jornais e revistas:
UMA ELEGANTE DAMA
PARISIENSE, NO TRAÇO MADURO DE 1898
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Le Courrier français, Le Figaro, L’Illustration, La Revue illustrée, La Chronique parisienne, La Caricature, Le Rire, Le Journal, dentre outros. Estima-se que chegou a colaborar com quarenta publicações em paralelo. Tal demanda determinava seu modo de trabalho, como declara a Adolphe Brisson, no livro Nos Humoristes (1900): “Eu não posso gastar mais que um dia em um trabalho; deve vir de uma só vez e rapidamente. (…) Eu só posso trabalhar no silêncio solitário da noite.”
Ainda neste livro, Brisson ressalta as particularidades de Caran d’Ache quanto ao movimento e à sua síntese narrativa: “Daumier sintetiza e concentra-se em um poderoso atalho de expressões e movimentos; Caran d’Ache analisa-os, divide-os, forma-os. Agora, nada é tão cômico quanto um movimento decomposto. (...) Se podemos definir Pascal por Geometria e paixão... podemos definir o Sr. Caran d’Ache por Geometria e movimento.”
Q uando publicou seus primeiros cartuns sem legendas, a crítica reconheceu em Caran d’Ache a influência de Wilhem Bush e Adolf Oberländer, cartunistas do semanário humorístico alemão Fliegende Blätter. Em depoimento a Émile Bayard, no livro La Caricature et Les Caricaturistes (1900), Caran d’Ache comenta essas influências: “Você diz que sou muito inspirado por Busch e Oberländer; certamente, não deixei de ter visto o trabalho desses artistas tão distintos; mas deixe-me afirmar que esses nomes apenas encantaram minha tenra juventude, e que, logo prevendo a ascendência ou pelo menos a influência que eles teriam mais tarde em minha personalidade, eu me privava completamente da posterior contemplação de suas obras. Existe, creio eu, entre esses artistas e eu uma semelhança de natureza artística, encontros de idéias, projeções paralelas.”
PREMONIÇÕES BÉLICAS NUMA CHARGE DE 1904
Apesar das evasivas de Caran d’Ache, as influências do sema-
nário alemão sobre seu trabalho têm vários aspectos. Muitas abordagens gráficas surgidas na publicação alemã foram incorporadas em sua obra madura. Quanto às influências de Busch e Oberländer, o primeiro não é tão presente na obra de Caran d’Ache quanto o segundo, cujas reminicências permaneceram em seu desenho por muito tempo. Sobre Oberländer: iniciou sua colaboração com o Fliegende Blätter em 1864, extendendo-se por 53 anos e sendo por muitos anos seu principal ilustrador e influenciando vários cartunistas. Outra influência do Fliegende Blätter sobre Caran d’Ache: sedimentação e aprimoramento da narrativa sem legendas, pela obra de outros três desenhistas do semanário: Lothar Meggendorfer, Emil Rienicke e Hans Schliessmann.
Um dos aspectos mais surpreendentes a se observar no tra-
balho de Caran d’Ache é como ele, destoando de seus contemporâneos, depura o desenho a um primado da linha, além da percepção apurada do movimento – muitas vezes suas histórias são perfeitas animações em papel – com um sentido preciso de conclusão narrativa. Uma obra tão sofisticada e, ao mesmo tempo, tão popular, leva o futuro historiador de arte Elie Faure, ainda um recém formado, a escrever um artigo no jornal L’Aurore de 13 de setembro de 1902, definindo Caran d’Ache como o “primeiro cartunista de nosso tempo”: “Sua técnica em si tem algo de matemático. Enquanto o escultor, o pintor, e quase sempre o desenhista, veem por volumes ou manchas, Caran d’Ache vê por pontos e por linhas. (…) Seu desenho é mais que uma síntese, é um diagrama. (...) O desenho de Caran d’Ache tem o rigor demonstrativo de um teorema da geometria. Com a mesma certeza de uma equação que leva à solução de um problema, provoca riso ou um sorriso. De um extremo ao outro da página, a intenção irônica nasce, cresce, torna-se mais precisa, afirma-se, para chegar a um último desenho que é o CQD da proposta. Caran d’Ache é o geômetra da ironia.”
Em 1889, Caran d’Ache publica um bem sucedido Premier Al-
bum reunindo algumas histórias. Outros albuns têm o mesmo sucesso: Deuxième Album(1890), Troisième Album (1892), Carnet de chèques(1892), Bric-à-Brac(1893), Les Lundis de Caran d’Ache (1898), dentre outros. Uma nota sobre a inventividade de Carnet de chèques: o livro, em formato de talão de cheques, é uma crítica ao escândalo de corrupção da construção do canal do Panamá, ironizando as artimanhas da corrupção.
CORRUPÇÃO EM QUALQUER LUGAR, NAS PÁGINAS DO “TALÃO DE CHEQUE“ - 1898
F O L H A S V OA D O R A S O Fliegende Blätter (1844-1944) surgiu em Munique, três anos após o nascimento de outra longeva instituição do humor, o semanário inglês Punch, or The London Charivari. Excetuando a sátira, os paralelos são poucos. O hebdomadário alemão não era político, os pontos mais marcantes eram a crítica de costumes e um espírito de experimentação gráfica que estava anos à frente dos ingleses. O projeto gráfico do semanário alemão equilibrava bem texto e imagem - dividindo equanimemente o espaço na publicação. Em contraste ao Punch, cujos desenhos que permeavam suas páginas funcionavam simplesmente como capitulares de texto e com poucos desenhos de página inteira, no Fliegende Blätter os cartuns sequenciais ocupavam muitas vezes duas páginas, incorporavam tipos gráficos, abusavam de um desenho mais distorcido, algumas vezes simplificado, beirando o traço infantil, apresentavam metamorfoses de objetos em animais ou pessoas, e ilusões de ótica. Tudo isso em meados do século XIX, prenunciando o desenho de humor do século XX. Uma decorrência direta desta modernização seria o aparecimento em 1896, e também em Munique, de outro semanário de humor importante, o Simplicissimus. Mas isso é outra história. Nº 1 41
AS GRANDES MANOBRAS DA HISTÓRIA
1887
UM DOS BRINQUEDOS ARTICULADOS DE MADEIRA, CRIADOS POR Caran d’aChe, A PARTIR DE 1903
A OBRA
P E R D I DA
Em 1894, Caran d’Ache enviou uma carta
ao diretor do jornal Le Figaro descrevendo um grande projeto: “É notório que todos os romances publicados até então são construídos de maneira uniforme quanto ao aspecto externo e, além disso, são todos escritos. Bem, tenho a ideia de trazer uma inovação que acredito que interessará ao público! Mas simplesmente para criar um novo gênero: o romance desenhado. [...] Tudo será expresso pelos desenhos em cerca de 360 páginas. Uma narrativa que poderá ser vista e entendida por qualquer pessoa, em qualquer parte do mundo.”
Nesta proposta, Caran d’Ache ante-
cipa o conceito da novela gráfica, 84 anos antes de Will Eisner publicar seu Um Contrato com Deus, em 1978.
Este trabalho, que Caran d’Ache
planejava chamar de Maestro, conta a história de um pequeno músico virtuoso que nasce numa aldeia pobre, e cujos pais, por não poderem sustentá-lo, o entregam a um viajante. O garoto acaba sob os auspícios de um monarca, uma caricatura de Luís II da Baviera. No entanto, leva uma vida enfadonha e solitária no castelo um pássaro em gaiola dourada.
O material permaneceu desaparecido até 1970, quando foi adquirido por um colecionador, que o doou ao Museu de Angoulême, em 1998. Desta forma, Maestro veio a ser publicado quase um século após sua morte, em 1999, pelo Centro Nacional de Banda Desenhada e Imagem de Angoulême, ainda assim, com somente 120 páginas. Em 2001, Thierry Groensteen, então diretor do Centro, redescobriu quatro cadernos contendo desenhos preparatórios, rascunhos e o final da sinopse da história no departamento de artes gráficas do Museu do Louvre, que possibilita uma melhor compreensão da técnica da obra, autor e o curso da história. 42
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O legado de Caran d’Ache pode ser notado, direta ou indiretamente, na obra daqueles que fizeram da linha clara a base de sua poética visual, caso de Steinberg e Hergé. Constatamos isso nas ilustrações de Caran d’Ache para o livro de Nick Bénar, A la decouvert de La Russie (1889), onde soluções gráficas sintéticas antecediam em meio século proposições visuais que se tornariam marcas registradas de Steinberg. Outro caso – que antecede a leveza sintética de Hergé – são as ilustrações de Caran d’Ache para o livro Les Gaietés de L’ Année (1887), de Grosclaude, trabalhos de uma precisão estilística da linha onde as figuras, quase sempre sem preenchimentos e com pouquíssimo uso de áreas negras, dialogam perfeitamente com a mancha de texto. Na virada do século, Caran d’Ache já é um artista consagrado
muldialmente. Porém, em 1903, começa a sofrer de neurastenia e decide abandonar suas publicações, mantendo somente suas colaborações com Le Panache e Le Figaro (Caran d’Ache e Forain alternavam, às segundas-feiras, uma página neste jornal, sendo os primeiros cartunistas a publicar periodicamente em jornais diários). Nessa época, também passa a construir brinquedos articulados e jogos de madeira, e vendê-los na loja de departamentos do Louvre: “É um brinquedo... e ao mesmo tempo uma obra de arte. Os pequenos vão se divertir; os grandes vão admirá-lo”
Caran d’Ache vive seus últimos anos num palacete contruído
por ele, na requintada rua de la Faisanderie, notória por acolher a residência de vários artistas e celebridades da aristocracia. Leva uma vida reclusa, dormindo de dia e trabalhando à noite, até sua morte por problemas cardíacos aos 50 anos, em 26 de fevereiro de 1909.
O uso reduzido da hachura, a valorização da linha e o aprimoramento da narrativa sequencial, tornaram Caran d’Ache – ainda no século XIX – um precursor do moderno desenho de humor do século XX. É impossível olhar as obras de Sempé, Franquin, Chaval, Jules Feiffer, Thomas Theodor Heine, Olaf Gulbransson, J. Carlos, Will Eisner, dentre outros, sem dar a Caran d’Ache o devido mérito de um visionário. Céllus Cartunista e ilustrador www.cellus.com.br
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MILTON RIBEIRO NELSON MORAES PARÓDIA QUINHO STEELY DAN TOM CARDOSO ARTE BOB SIKORYAK CARAN D’ACHE CARLOS DE LIVEIRA CÉLLUS CHAS ADDAMS EDSON ARA DUARDO BAPTISTÃO FELIPE FORTUNA FRAN KAFKA HUMOR JAMES JOYCE JOÃO VICTOR OROT JOTAPÊ JORGE MILTON RIBEIRO NELSO MORAES PARÓDIA QUINHO STEELY DAN TOM CARDOSO ARTE BOB SIKORYAK CARAN D’ACHE CARLOS DE OLIVEIRA CÉLLUS CHAS ADDAMS EDSON ARAN EDUARDO BAPTISTÃO FELIPE FORTUNA FRANZ KAFKA HUMOR JAMES JOYCE JOÃO VICTOR FIOROT JOTAPÊ JORGE MILTON RIBEIRO NELSON MORAES ARÓDIA QUINHO STEELY DAN TOM CARDOS ARTE BOB SIKORYAK CARAN D’ACHE CARLOS DE OLIVEIRA CHAS ADDAMS EDSON ARAN DUARDO BAPTISTÃO FELIPE FORTUNA FRAN KAFKA HUMOR JAMES JOYCE JOÃO VICTOR OROT JOTAPÊ JORGE MILTON RIBEIRO NELSO MORAES PARÓDIA QUINHO STEELY DAN TOM ARDOSO ARTE BOB SIKORYAK CARAN D’ACH CARLOS DE OLIVEIRA CÉLLUS CHAS ADDAMS EDSON ARAN EDUARDO BAPTISTÃO FELIPE ORTUNA FRANZ KAFKA HUMOR JAMES JOYC JOÃO VICTOR FIOROT JOTAPÊ JORGE MILTON 44
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