Eve -Anna Carey

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Este livro foi traduzido pela Dark Knight para proporcionar a leitura daqueles que não puderam pagar e para ler livros ainda não lançados No Brasil. Nosso grupo de tradução é uma organização sem fins lucrativos e, por favor, não venda e nem troque. Após sua leitura considere seriamente a possibilidade de adquiri estará incentivando o autor e a publicação de novas obras.

Tradutores Matheus Jorge Daniel

Revisor Final Jeh Rebeca Debora

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Uma emocionante e inesquecível aventura e um novo olhar sobre o que significa amar. Lauren Kate Autora de Fallen

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Talvez não quisesse saber realmente O que está acontecendo Talvez seja melhor que não saiba Talvez não possa suportar sabe-lo A queda foi uma queda Da inocência ao conhecimento

Margaret Atwood O conto da Aia Minha querida Eve:

Hoje, ao regressar do mercado no carro, enquanto cantarolava em seu assento com a bolsa cheia de arroz e leite em pó, vi as montanhas de Sam Gabriel, as vi realmente pela primeira vez. Havia dirigido anteriormente por esta mesma estrada, mas desta vez foi diferente. Ali, atrás dos para-brisas, estavam os imóveis e silenciosos cumes verde azulados, vigiando a cidade, tão próximos que quase podia tocá-los. Eu me detive e a contemplei-as. Sei que vou morrer logo. A epidemia está matando a todos que se vacinaram. Não existem aviões. Os trens não estão funcionando. Todos os acessos à cidade pela estrada foram cortados, e só nos resta esperar. Os telefones e a internet já não funcionam há muito tempo. As torneiras estão secas e as cidades, uma a uma, estão ficando sem energia elétrica. Dentro de pouco tempo o mundo sumirá nas trevas. No entanto, neste momento estamos vivas, talvez mais vivas que nunca, Você dorme no quarto ao lado, de minha poltrona, e ouço o som de tua caixa de música, a da pequena bailarina, tocando as últimas notas.

Te amo, Te amo, Te amo.

Mamãe

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UM Quando o sol se pôs sobre o muro de quinze metros de altura que rodeava o colégio, o jardim estava infestado de alunas do segundo ano. As menores, penduradas nas janelas dos dormitórios, agitavam suas novas bandeiras americanas entre cantos e bailes. Peguei Pip pelo braço e a fiz girar quando a orquestra tocou uma música mais rápida; sua risada, breve e entrecortada, superou o som da música. Era a noite anterior a nossa formatura e estávamos celebrando. Havíamos passado grande parte da vida dentro daqueles muros, sem haver conhecido o bosque que existia do outro lado e aquela era a maior festa nos haviam oferecido. Em frente ao lago foi instalada uma orquestra, formada por um grupo de meninas do primeiro ano que haviam se oferecido como voluntárias, e as guardas acenderam as tochas para espantar os falcões. Sobre uma mesa esperavam meus pratos favoritos: perna de cervo, javali assado, ameixas cristalizadas e fontes cheias de frutas silvestres. A diretora Burns, uma mulher flácida, com cara de buldogue, encabeçava a mesa e animava todo mundo a comer. -Vamos, Vamos comer! Não quero que sobre nada! Quero minhas meninas como porquinhos gordos! As carnes de seus braços balançavam enquanto mostrava a comida. A música mudou para um ritmo mais lento , e abracei Pip para dançar uma valsa. - Creio que és um cara estupendo, disse, enquanto deslizávamos até o lagos. Seus cabelos ruivos cobriam seu rosto suado. - Sou um homem muito bonito. Eu ri e franzi a testa para parecer um homem. Era uma piada do colégio, porque levávamos uma década sem verum homem ou a um menino, exceto pelas fotos do rei que estavam expostas no salão principal. Pedíamos a nossas professoras que nos falassem da época anterior a epidemia, quando os meninos e meninas iam juntos ao colégio, mas elas se limitavam a nos dizer que o novo sistema nos protegia. O homens eram manipuladores, perversos e perigosos. A única exceção era o rei, somente a ele se podia obedecer e acreditar. -Eve, já é hora – disse a professora Florence, que estava em frente ao lago trazendo uma medalha de ouro em suas mãos manchadas e envelhecidas. O uniforme que vestia, próprio das professoras (camisa vermelha e calças azuis), era demasiado largo para seu corpo pequeno – Venham meninas!

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A orquestra parou de tocar, e os sons do bosque encheram o lugar. Toquei o apito de metal que trazia ao pescoço, agradecida por tê-lo para o caso de algum bicho pular o muro do lugar. Apesar os anos vividos no colégio, jamais me acostumei com o som das brigas dos cães, o Ra-ta-ta-ta! Ra-ta-ta-ta! Das metralhadoras e os horríveis uivos dos veados quando eram devorados vivos. A diretora Burns se aproximou mancando da professora Florence e tomou a medalha que lhe era oferecida. - Vamos começar! –gritou, e as quarenta meninas do segundo ano formaram uma fila. Ruby, nossa melhor amiga, se pôs na ponta dos pés para ver melhor. – Todas trabalharam muito durante suas estadas no colégio, no entanto, talvez ninguém tenha se esforçado tanto como Eve – Se virou para mim enquanto falava. A pele de seu rosto, enrugada e flácida, pendia formando leves abas – Ela demonstrou ser uma das melhores e mais brilhantes alunas que já tivemos. Assim que, pelo poder que concede o rei de Nova América, te concedo a medalha de mérito. As companheiras a aplaudiram quando a diretora depositou a fria condecoração em minhas mãos e, por faltar algo, Pip levou os dedos aos lábios e soltou um estridente assovio. - Obrigado – disse em voz baixa, olhando para o grande lago, que como um fosso, se estendia de um extremo ao outro do muro, e meus olhos se fixaram em um enorme edifício sem janelas que ficava ao fundo. No dia seguinte, depois de pronunciar meu discurso de despedida diante todo o colégio, as guardas abaixariam uma ponte e as graduadas me seguiriam em fila indiana para atravessá-la. Naquela gigantesca construção aprenderíamos uma profissão. Havia dedicado muitos anos a estudar, a aperfeiçoar o latim, a redação e o desenho; havia passado horas ao piano, interpretando Mozart e Beethovem, sempre com aquele edifício presente a distância: o objetivo final. Sofia, a primeira da classe fazia três anos, havia lido no mesmo pódio um discurso sobre nossa grande responsabilidade como futuras líderes de Nova América. Queria ser médica para evitar mais epidemias. Certa que naquele momento já estava salvando vidas na capital do rei, a Cidade de Areia. Se dizia que o monarca a havia construído em um deserto, onde antes não havia absolutamente nada. Eu morria de desejo de estar ali. Eu queria ser artista. Para pintar retratos como Frida Kahlo ou paisagens de sonhos como Magritte, ou cobrir de afrescos as grandes muralhas da cidade. A professora Florence me pôs uma mão nas costas e me disse: - Representa a Nova América, Eve: inteligência, tenacidade e beleza; Estamos muito orgulhosas de você. A orquestra iniciou então uma canção muito alegre, e Ruby cantou sua letra em voz alta. As outras meninas riram e se puseram a dançasr, girando, girando, até enjoar.

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- Vamos comer um pouco mais. – A Diretora Burns empurrou Violeta, uma menina baixinha de olhos negros e amendoados, até a mesa. - O que está acontecendo? – perguntou Pip. Aproximando-se e tomando-me a medalha para vê-la melhor. - Já conhece a diretora – respondi, disposta a recordar-lhe que nossa professora mais velha tinha setenta e cinco anos, e sofria de artrose e havia perdido toda sua família na epidemia, doze anos antes. No entanto Pip negou com a cabeça. - Não me refiro à diretora, e sim a ela... Ardem era a única aluna do segundo ano que não participava da festa. Estava encostada em uma parede da casa, com o braços cruzados. Continua sendo bonita, apesar de sua carranca e do pouco favorecedor suéter cinza, em que brilhava na frente o emblema da monarquia de Nova América. A maioria das alunas tinham os cabelos longos, mas ela havia sacrificado seus negros cabelos por um corte de pajem que conferia a sua pele um aspecto ainda mais claro. Seus olhos cor de avelã tinham traços dourados. - Está tramando algo, eu sei – disse a Pip sem afastar a vista de Arden – Está sempre tramando. Minha amiga acariciou a medalha e sussurrou: - A haviam visto nadando no lago... - Nadando? Duvido. – Ninguém no colégio sabe nadar; não nos haviam ensinado. - Em seu caso tudo é possível – Opinou Pip, encolhendo os ombros. As alunas do segundo, em sua maior parte, haviam entrado no colégio aos cinco anos de idade, depois da epidemia, Arden, no entanto havia chegado aos oito , e por isso sempre foi diferente. Seus pais a enviaram aqui enquanto vaziam fortuna na de Cidade de Areia, e ela sempre gostou de recordas às demais aluna que, ao contrário das demais, ela não era órfã. Quando acabasse de estudar, iria viver sem precisar se esforçar na nova casa de seus pais. Nunca teria que trabalhar. Segundo Pip, este detalhe explicava sua conduta: como tinha pais, não lhe importava se a expulsassem; Sua rebeldia se manifestava em travessuras inofensivas: figos podres na aveia servida no almoço, um rato morto no banheiro, para completar a tarefa um pouco de pasta de dentes em cima. Mas as veze era mal, até cruel. Em uma ocasião cortou o longo e negro rabo de cavalo de Ruby para zombar da aprovação que esta tivera no exame de ―os perigos causados pelo homens e meninos‖. Contudo, Arden estava tranquila a alguns meses. Era a última a sentar-se para comer, a primeira a levantar-se e estava sempre só. Cresciam minhas suspeitas de que reservava a pior diabrura para a graduação de amanhã. De repente, ela se virou e foi correndo para sala de jantar. Eu a olhei com suspeita. Não me agradava que houvesse surpresas na cerimônia; já estava bastante

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agoniada com o meu discurso. Diziam que o próprio rei iria assista-la pela primeira vez na história do colégio. Eu sabia que era um rumor difundido pela exagerada Maxine, mas, ainda sim se tratava de um dia importante, o mais importante de nossas vidas. -Diretora Burns, por favor, me permite ausentar-me? –pedi-. Esqueci minhas vitaminas na casa.- Busquei nos bolsos de meu uniforme, fazendo cara de frustração. A diretora estava junto à mesa de jantar. - Quantas vezes terei que lhe lembrar que as mantenha em sua pasta? Vá, mas não se distraia- advertiu enquanto acariciava o osso do javali assado, cuja cabeça estava queimada. - Sim, sim- afirmei tentando localizar Arden, que já havia ultrapassado a mesa de jantar- Assim será, senhora diretora. - Eu comecei a correr, depois de prometer a Pip que voltaria em seguida. Dobrei a esquina e me dirigi para a entrada principal do prédio. Nesse momento Arden se agachava junto ao edifício e se metia embaixo de um arbusto. Tirou o uniforme pela cabeça e vestiu um suéter negro; a pele, branca como leite, reluzia ao sol do entardecer. Aproximei-me com um passo enérgico enquanto estava calçando as botas, as mesmas de couro negro que usavam as guardas. - Não sei o que está planejando, mas vou impedi-la – declarei, satisfeita quando a vi erguer-se quando ouviu minha voz. Após uma breve pausa, apertou as botas com força, como se quisesse estrangular seus tornozelos. Após um minuto de silencio disse com serenidade, sem levantar o olhar, no entanto. - Por favor, Eve, volte. Me ajoelhei junto ao edifício, levantando a saia para não suja-la; -Sei que traz algo em suas mãos. Você foi vista no lago. - Ela movia suas com rapidez, sem desviar os olhos das botas atando os cordões com nós duplos. Havia uma mochila em uma vala, debaixo do arbusto em que meteu seu uniforme cinza. – De onde roubou este uniforme de guardiã? Fingiu não ter me ouvido e olhou através de um buraco no mato. Segui seu olhar até os muros do terreno, que estava se abrindo lentamente. Acabava de chegar um 4x4 verde e negro do governo que transportava a comida para a cerimônia do dia seguinte; - Isto não tem nada a ver contigo, Eve – disse.

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- De que trata então? Vai se fazer passar por guardiã?- Peguei o apito que balançava em meu pescoço. Nunca havia denunciado, nem jamais tinha ido contar histórias para a diretora, no entanto a cerimônia era muito importante para mim e para todos os outros – Sinto muito, Arden, mas não posso permitir... Antes que o apito me chegasse aos lábios, arrancou a corrente de meu pescoço e a atirou ao solo. Com um movimento veloz, empurrou-me contra a parede do edifício. Tinha os olhos húmidos e injetados de sangue. - Escute bem- murmurou baixinho, pressionando o braço contra meu pescoço de tal forma que quase não me deixava respirar – Vou sair daqui dentro de um minuto. Se sabe o que lhe é conveniente, voltará para a festa e será como se não houvesse visto nada. A seis metros de distância, várias guardas descarregavam o veículo e transportavam caixas para o interior do colégio, enquanto outras apontavam para o bosque suas metralhadoras. - Mas não há nenhum lugar para onde ir... Arquejei. - Pense bem – retrucou – Acredita que vai aprender uma profissão? – Apontou para o edifício de tijolos do outro lado do lago. Apenas se vislumbrava na penumbra – Nem se que se perguntou por que a graduadas não saem nunca, nem por não há uma porta separada para elas? Na verdade crê que vai aprender a pintar? – Dito isto, por fim me liberou. Esfreguei meu pescoço. Ardia-me a pele onde o elo do cordão havia se rompido; - Mas é claro que sim – respondi – Que mais podemos fazer, a não ser isto? Arden fez uma careta imitando uma risada e levou a mochila ao ombro; se aproximou de mim e percebi um cheiro de carne de javali com especiarias quando respondeu: - Noventa e oito por cento da população está morta, Eve. Não existem pessoas. Como acredita que o mundo vai continuar? Não necessitam de artistas – sussurrou – Necessitam de crianças: as crianças mais saudáveis que consigam encontrar...ou procriar. - Do que está falando? – Arden se levantou sem tirar a vista do veículo, cuja a parte de traz estava sendo coberta por uma guarda com uma lona; depois se acomodou no assento do motorista. - Por que acha que eles se preocupam tanto com nossa altura, nosso peso, o que comemos e bebemos? Sacudiu a terra de seu macacão negro e me olhou pela última vez. Tinha os olhos inchados e veias vermelhas se sobressaiam por baixo da fina pele branca- Eu as tenho visto, visto as meninas que se graduaram antes de

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nós. E não penso em acabar na mesma cama de hospital, dando à luz a uma criatura atrás da outra durante os próximos vinte anos de minha vida. Retrocedi, dando um passo atrás. – Está errada, Mas Arden se limitou a negar com a cabeça. Logo, cobrindo os cabelos com um gorro negro, correu até o veículo. Antes de se aproximar, esperou que as guardas do portão dessem a volta. - Uma a mais! Gritou e, saltando sobre o para-choque traseiro, entrou na caçamba coberto do 4x4. A camionete arrancou, dando solavancos pela estrada de terra, e desapareceu na escuridão do bosque. O portão se fechou lentamente por traz dela. Ouvi o som do fechadura sem dar crédito ao que acabava de ver. Arden havia deixado o colégio. Havia fugido. Havia ultrapassado o muro, ia para o desconhecido, sem nada nem ninguém para protege-la. Não acreditei no que me havia dito; não podia acreditar. Talvez regressasse pouco tempo depois no mesmo 4x4. A melhor de suas travessuras mais louca. No entanto, quando contemplei o edifício sem janelas do outro extremo do terreno, minhas mãos tremeram, e a minha boca veio um amargo vômito de frutas silvestres. Vomitei ali mesmo, sobre a terra, enquanto um pensamento me perseguia: E se Arden tivesse razão?

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DOIS Depois de pentearmos os cabelos e escovarmos os dentes, lavamos o rosto e vestimos camisolas brancas que chegavam até os tornozelos, me recostei, me fingindo muito cansada. Nos dormitórios não se falava em outra coisa que não o desaparecimento de Arden. As meninas enfiavam as cabeças nos quartos para divulgar a última fofoca: havia aparecido um broche entre os arbustos, e a diretora estava interrogando uma guarda no portão. Em meio a todo aquele imbróglio, desejava uma das coisas mais difíceis de conseguir no colégio, algo tão raro que nem sequer se podia falar: queria estar só.

- Noelle acredita que Arden se escondeu nos aposentos da Doutora – comentou Ruby a Pip, controlando as cartas que tinha em suas mãos. – Passo. – Haviam se sentado na estreita cama gêmea de Pip, e jogavam com um baralho que haviam pego na biblioteca do colégio. As velhas cartas de ―a procura de nemo‖ estavam gastas e rasgadas, algumas inclusive, manchadas com suco de figos secos.

- Estou certa de quer escapar da cerimônia – acrescentou Pip, cujo rosto sardento esta salpicado de pontinhos de pasta de dente, o que ela denominava seu ―removedor de sardas milagroso‖. Me olhou, esperando que especulasse sobre o paradeiro de nossa companheira ou que comentasse algo sobre os grupos de guardas que revistavam o terreno iluminando-o com lanternas. No entanto, não disse uma palavra. Não parava de pensar no que Arden havia me contado. Era certo que nos últimos meses a diretora Burns havia se mostrado muito preocupada com nossa dieta, insistindo que devíamos comer bem; supervisionava nossas análises de sangue e pesagens semanais e procurava que todas tomássemos nossas vitaminas. Inclusive enviou Ruby a Doutora Hertz quando teve uma regra uma semana depois das outras meninas.

Me cobri com uma manta leve até o pescoço. Desde de pequena me haviam dito que existia um plano para mim, um plano para todas nós: doze anos no colégio, e depois, a mudança de prédio e a aprendizagem de uma profissão durante quatro anos: depois iriamos para a Cidade de Areia, onde nos esperavam a vida e a liberdade, e ali trabalharíamos e viveríamos, sob o governo do rei. Sempre ouvia isto das professoras; não havia motivos para não fazê-lo. Inclusive aquela teoria de Arden me parecia absurda. Por que nos ensinavam a temer os homens se íamos ter filhos e famílias? Por que nos educavam se estávamos destinadas somente a parir? Que significava a importância que davam a nossos estudos, o ou muito que nos estimulavam para perseverássemos.

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- Oi, Eve, Ouviu o que te disse? – Pip interrompeu meus pensamentos. Ela e Ruby estavam me olhando. - Não..., o que? Ruby pegou as cartas; seu cabelo negro abundante ainda era irregular onde Arden o havia cortado. - Queremos uma prévia de seu discurso antes de deitarmos. Deu-me um nó na garganta ao pensar em meu discurso final: três páginas escritas a mão e dobradas na gaveta de minha mesa. - Se espera que seja uma surpresa - respondi após alguns instantes. Havia escrito um texto sobre o poder da imaginação na construção de Nova América. Mas naquele momento pareceu-me duvidosas as palavras que havia escolhido e o futuro que havia descrito. Ruby e Pip me observavam com firmeza , mas desviei a vista, incapaz de sustentar seus olhares. Não podia contar-lhes o que Ardem havia dito : que a liberdade da graduação não era mais eu fantasia, algo para nos manter tranquilas e contentes. - Está bem, seja como quiser – Pip apagou a vela de sua mesa. Pisquei para adaptar os olhos para a escuridão, e pouco a pouco distingui seu rosto redondo sob os raios de luar que se filtravam pela janela - Mas somos tuas melhores amigas. Após alguns minutos se ouviram os tênues roncos de Ruby; sempre primeira a dormir. Pip olhava para teto com as mãos sobre o peito. - Mal posso esperar para me formar – sussurrou – Vamos aprender coisas, coisas de verdade. E dentro de alguns anos sairemos para o mundo, iremos para a nova cidade que está longe dos bosques. Será incrível, Eve. Seremos como ...como pessoas de verdade. – Se voltou para mim, e esperei que a tênue luz não lhe permitisse ver as lágrimas que enchiam meus olhos.

Me perguntei que vida teríamos eu e Pip. Ela queria ser arquiteta, como Frank Lloyd Wright, e construir casas novas que não se deteriorassem, ainda que ninguém cuidasse delas, casas com refúgios cheios de comida enlatada, onde não se poderia introduzir o menor vírus mortal. Eu lhe dizia que , quando terminássemos nossas carreiras, viveríamos juntas na Cidade de Areia; teríamos um quarto com camas enormes e janelas de onde veríamos os confins da Cidade, onde viviam os homens, muito distante de nós, aprenderíamos a esquiar nas encostas íngremes cobertas de neve, que nos havia falado a professora Etta, e poríamos em prática nossa boa educação nos restaurantes com imaculadas toalhas de mesa e talheres de prata; neles, escolheríamos a comida no menu e pediríamos para que preparassem a carne como mais no agradasse. - Eu sei. - Me veio um nó na garganta -. Será genial.

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Sequei meus olhos disfarçadamente, agradecendo que a respiração de Pip por fim se acalmasse. Mas me assaltou a culpa e o medo, cada vez maior, de que o dia seguinte talvez não estivesse pronunciando um ingênuo e genial discurso, sim conduzindo-as ao aniquilação. Esperei que o sono me vencesse, mas este nunca chegava. As três horas da madrugada não pude mais ficar deitada. Me levantei, me aproximei da janela e contemplei o lugar. Não havia ninguém, somente uma guarda identificável por suas leves passadas, que percorria o jardim fazendo sua ronda. Nosso quarto se achava no primeiro andar. Quando perdi a guarda de vista, abri a janela como fazia nas noites quentes, e subi no peitoril. Todos os anos fazíamos na escola simulações: o que fazer em caso de assalto, em terremoto, em uma chuva de cachorros, em um incêndio... Lembrei dos simples e fáceis gráficos que a diretora Burns havia distribuído ao final da aula, e deslizei pela janela, agarrada ao peitoril, me preparando para saltar. Assim o fiz e me atirei ao solo. A dor me alfinetou o tornozelo, mas me levantei e corri o mais rápido que pude até o lago. No outro extremo da agua resplandecente, o edifício de tijolos contra o céu escuro. Ao final, cheguei à praia, mas a coragem me abandonou quando as suaves ondas lamberam os dedos dos pés. Nunca havíamos aprendido a nadar. As professoras contavam histórias, de uma época anterior a epidemia, de gente que havia se afogado nas ondas do mar ou na enganosa calma de suas piscinas. Voltei meus olhos para a janela aberta de meu quarto. Faltava pouco para que a guarda dobrasse a esquina e me surpreendesse com a luz da lanterna. Já me havia encontrado antes entre os arbustos depois do desaparecimento de Arden, com o uniforme manchado de vomito; havia lhe dito que estava muito nervosa por causa da formatura, mas não podia lhe dar mais motivos para suspeita. Entrei na agua. Na praia estreita existiam uns arbustos espinhentos. Tirei as meias e as envolvi nas mãos para agarrar-me aos galhos pontiagudos. Avancei rapidamente até que a agua chegou ao meu pescoço, havia caminhado apenas cinco metros quando o solo macio cedeu sob os meus pés. A agua chegou à minha boca, e me agarrei nos galhos, cujos espinhos perfuraram a pele por baixo das meias. Não pude reprimir a tosse. A guarda se deteve no jardim e varreu o gramado e a superfície do lago com a lanterna. Parei de respirar, sentindo meus pulmões alfinetados de dor. Ao final o facho de branco voltou ao gramado, e a mulher desapareceu mais uma vez para dar outra volta no prédio. Continuei minha jornada por quase uma hora. Me custava muito avançar, parava cada vez que passava uma guarda procurando não fazer barulho. Quando por fim cheguei à praia oposta sentei sem jeito na grama enlameada. As meias que envolviam minhas mãos estavam encharcadas de sangue, a camisola molhada e o frio se apegava ao meu corpo; tirei-a e me sentei sob o monstruoso edifício enquanto a torcia.

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Naquela parte do prédio não havia nada, exceto a grande ponte de madeira que cruzava o jardim, preparada para a cerimônia do dia seguinte. A diferença do colégio, ali não se viam flores ao redor do edifício de tijolos. Nos haviam dito que as graduadas estavam muito atarefadas para sair dali, que suas agendas eram mais rigorosas que a do colégio, e que o tempo que não passavam comendo, dormindo o em aula, o dedicavam a aprimorar seus conhecimentos. As Alunas do segundo ano costumavam reclamar, preocupadas com a falta de sol, mas uma atividade tão intensa sempre me havia parecido muito gratificante. A grama alta me cercava, mas não bastava para me encobrir, de modo que vesti novamente a camisola húmida pela cabeça e comecei a correr até um canto do edifício. Descobri que existiam janelas, a um metro e meio do chão, menos na parte que ficava voltada para o colégio. Eu estava cheia de esperança, uma sensação de leveza que facilitava meus movimentos. Então encontrei uma torneira enferrujada junto à parede, debaixo da qual havia um balde; eu o virei e, utilizando como um banco, subi para ter uma melhor visão. Ali dentro estava meu futuro, e quando alcançasse o peitoril da janela queria que fosse como imaginado, e não aquilo que tinha ouvido de Arden. Rezei para ver uma série de meninas que se encontrassem em um quarto em cujas paredes tinham pendurado pinturas a óleo de cães selvagens correndo pelo campo. Rezei para houvessem mesas de desenho cobertas de plantas e montes de livros nas mesas. Rezei para que tivesse me enganado, pqra graduar-me no dia seguinte e para que o futuro sonhado se revelasse ante mim como um dondiego (nota: flor peruana que se abre ao receber a luz solar) ao sol ... Apoiei as mãos no peitoril para ver melhor e juntei colei meu nariz na janela. No quarto, havia, em uma cama estreita, uma menina: uma gaze ensanguentada cobria seu abdômen, tinha o cabelo emaranhados e os braços amarrados com correias de couro. Perto dela havia outra menina, cujo enorme ventre sobressaia quase um metro enquanto que veias de cor roxa sulcavam sua pele, extraordinariamente fina,. A garota abriu os olhos de cor verde escuro e me olhou um instante; logo os fechou. Era Sofia, a aluna que tinha pronunciado o discurso de final de curso fazia três anos e queria ser médica. Tapei a boca para reprimir um grito. Havia filas de catres onde repousavam outras jovens que, em sua maioria, se notava um ventre imenso por baixo da roupa de cama. Várias delas tinham a cintura enfaixada, e em uma menina se percebia cicatrizes – inchadas e rosadas que serpenteavam pelo lado do corpo. Ao fundo da sala, outra menina gritava de dor enquanto tentava soltar seus pulsos; abria a boca e gritava algo que não consegui ouvir de onde estava. Nesse momento entraram as enfermeiras pelas portas que se alinhavam ao longo do quarto, semelhante a uma fábrica. Atrás dela apareceu também a Dra. Hertz, cujo cabelo branco desgrenhado era inconfundível. Era ela que nos receitava as vitaminas que devíamos tomar diariamente e nos fazia exames mensais; a que nos deitava em uma mesa e nos picava com instrumentos frios, sem jamais responder nossas perguntas ou nos olhar no rosto.

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A garota moveu a cabeça de um lado para o outro quando a doutora se aproximou e lhe pôs a sobre a testa. Como continuava gritando, diversas pacientes adormecidas acordaram e tentaram soltar-se das correias que as prendiam, chorando e formando um patético choro quase inaudível. Imediatamente, em um rápido movimento, a doutora cravo uma agulha no braço da jovem, que ficou horrivelmente quieta; Rapidamente mostrou a agulha para as demais- uma ameaça -, e os gritos cessaram. Minhas mãos escorregaram do peitoril da janela e cai para traz, arrastando o balde comigo. Rolei no chão, sentindo minhas entranhas arder. Agora tudo fazia sentido: as injeções que nos aplicava a doutora Hertz e que nos provocavam náuseas, irritabilidade e dor; as palmadinhas da professora, acariciando meu cabelo, enquanto eu tomava as vitaminas; o olhar vazio da professora Agnes quando começa a falar de meu futuro como pintora. Não havia profissão, nem cidade, em apartamento com cama de casal e uma janela para a rua; não comeríamos em restaurantes cobertos de prata e toalhas impecáveis. Unicamente nos esperava este quarto, o cheiro podre dos berços usados, a pele esticada até se romper; só haveria criaturas arrancadas de meu ventre, roubadas de meus braços e levadas para algum lugar fora daqueles muros. Choraria, sangraria, estaria só e depois mergulharia no torpor provocado pelas drogas. Me levantei fazendo um esforço e me dirigi ao lago. A noite era mais escura, o ar mais frio e o lago maior e mais profundo que antes. No entanto, não desviei o olhar. Devia me afastar daquele lugar, daquele quarto, daquelas meninas de olhar morto.

Tinha que fugir.

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Três Quando regressei ao colégio, estava ensopada e com as mãos sangrando, pois havia me cortado e estava enrolando o machucado enquanto atravessava o lago novamente. Preocupava-me tanto em diminuir a distancia entre o edifício e eu que não me preocupava com os espinhos que arranhavam minha pele, estava insensível a dor, sem perder de vista a janela de meu dormitório. Ao dirigir ao deposito da parte de trás de minha casa, sai da água; a camisola estava ensopada. Aonde havia algumas tochas acessas, no jardim reinava a escuridão e eu ouvi as corujas, como lideres de torcidas animadas, o que me fez me apressar a sair das arvores. Nunca havia quebrado uma norma até esta noite, ocupada com meu site antes de começar a aula e tinha os livros também, estudava por horas a mais de noite, e inclusive trocava a comida com muito cuidado, como haviam nos ensinado, pressionando as costas da faca com ao meu dedo indicador. Porem naquele momento eu só me importava com uma regra, ―Não ultrapassar o muro jamais‖ havia advertido a professora Agnes no seminário sobre ―Perigos de meninos e homens‖ para explicar a violação, ela nos fitou com aqueles olhos vermelhos e fortes, até repetirmos ―Não ultrapassar o muro jamais‖. Mas um bando de homens ou uma manada de lobos famintos que haviam atravessado o muro seria pior que o destino que me esperava. No exterior havia uma esperança, por mais perigoso e terrível que fosse ao todo, ao menos poderia decidir o que iria comer ou aonde ir, e o sol aqueceria minha pele. Talvez tivesse a possibilidade de esgueirar-me pelo portão, como Arden havia feito. Esperaria pelo dia que chegaria a ultima remessa de comida para a festa. Escapar por uma janela seria mais difícil, a da biblioteca estava junto ao muro, mas se encontrava a quinze metros do solo, e necessitaria de uma corda, um plano, algum modo para descer... Uma vez dentro do colégio corri para a escada indo pelas sombras, procurando não fazer nenhum ruído. Parecia-me impossível salvar todas as minhas companheiras, mas tinha que ir ao meu dormitório e acordar a Pip, talvez Ruby também pudesse nos acompanhar. Não havia muito tempo para explicações, mas conseguiríamos uma bolsa e colocaríamos roupas, figos e os caramelos que ficavam em uma embalagem dourada que Pip gostava tanto. Nós sairíamos essa mesma noite para sempre. Não havia como voltar atrás.

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Subi a saltos até o primeiro andar e caminhando, deixando as habitações em que as meninas dormiam tão felizes em suas camas. Através de uma porta via a Violet encolhida e sorridente, alvejando o que esperaria no dia seguinte. Estava a ponto de chegar a meu dormitório quando uma luz fantasmagórica iluminou o corredor. -Quem está aí?- perguntou uma voz rouca. Virei-me lentamente, o sangue havia gelado em minas veias. A professora Florence estava ao final do corredor com uma lâmpada de querosene nas mãos que projetava sombras negras, ameaçadoras, na parede do fundo. -Es... Estava... - vacilei. A parte de baixo da camisola gotejava água, formando uma poça ao redor de meus pés. A professora se aproximou seu rosto salpicado de rugas, expressando raiva. -Havia cruzado o lago e havia visto as formandas. - afirmou Confirmei, lembrei de Sophia, estendida na cama do hospital, a quem se parecia os olhos afundados em orelhas, assim como as marcas em seus pulsos e seus tornozelos provocados pelas algemas de couro. A pressão crescia em meu interior como uma chaleira a ponto de explodir. Queria gritar, acordar a todas, agarrar aquela frágil mulher pelos ombros e afundar meus dedos em seus braços até que entendesse a dor, o pânico e a confusão que sofria em aqueles momentos. Em síntese, a traição. Mas depois de tantos anos de sentar-me em silencio, entrelaçando as mãos sobre o colo, escutando e falando unicamente quando me perguntavam me reduzindo a pura obediência aprendida. E se gritasse em qualquer momento, em pleno silêncio noturno? Não poderia decidir nada que convencesse as demais. Jamais acreditariam que as carreiras prometedoras eram mentira. Pensariam que havia ficado louca, Eve, a menina se desequilibrou por causa do estresse da formatura, Eve, a maluca que devia desaparecer sobre as formandas grávidas. Formandas grávidas! Você ria. E enviaram a aquele edifício um dia antes que as outras me obrigassem a permanecer sempre em silêncio. -Eu sinto- lamentei- Eu... - E as lagrimas começaram. A professora Florence pegou minha mão entre as suas e deslizo o dedo sobre as rachaduras que havia acumulando sangue seco.

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-Não posso permitir que abandone o recinto assim.- Seus ásperos cabelos cinzas grisalhos rasparam em meu queixo cheio de furos. -Eu sei. Eu sinto. Voltarei pra cama e... -Não. - disse em voz baixa. Ela olhou para cima: tinha os olhos vidrados - Não deve sozinha nesse estado. - Tirou um lenço do bolso de seu roupão e me deu na mão- Posso ajudar, mas é necessário que se limpe. Rápido. Se a diretora souber, trancará nós duas. Recolha suas coisas e se reúna comigo lá em baixo. Eu queria abraça-la, mas ela me empurrou para a porta de meu quarto. Quando estava a ponto de entrar no dormitório, disposta a acordar Pip e Ruby, me chamou e disse em um sussurro: -Eve, vá sozinha, não diga nada a ninguém. - Protestei, mas se manteve firme- Não há mais remédio- disse muito séria, e iluminou o corredor com medo de alguém estivesse vindo. Andei pelo quarto no escuro e guardei minhas coisas sem fazer um ruído na única mochila que possuía. Pip estava imóvel em sua cama. ―Você vai sozinha‖, a ordem ressoava em meus ouvidos. Mas havia passado a vida toda fazendo o que me mandaram, e no fim haviam me enganado, Despertaria a Pip e pediria que a professora nos ajudasse. E se Pip não acreditasse? E se ela acordasse as demais? E se a professora Florence decidisse que não podia ajudar a ambas, por que nunca conseguiríamos sair sem que nós víssemos? Então estaria tudo perdido para ela e para mim. E para sempre. Fechei o zíper da mochila, eu gostaria de ter mais tempo. Pip afundou o rosto pálido no travesseiro e, para respirar, seus lábios faziam um assobio. Uma vez na biblioteca li um dos livros anteriores à epidemia que foi o testemunho do amor, cuidar de outra pessoa ou dizer algo tão simples como ―Sua vida vale a pena‖. Sim era certo, nunca havia amado nada como a Pip, ninguém havia me amado como ela me amava, estava ao meu lado quando eu torci o pulso plantando bananeira no jardim, me consolou quando perdi meu broche azul favorito, que havia pertencido a minha mão, e era a única que cantava comigo no banho canções que havíamos descoberto em velhos discos dos arquivos. Let it be, let it be! Zumbindo com voz sempre desafinada enquanto espuma deslizava riscando seu rosto. Whisper words of wisdom, let it beeee. Caminhei indo para porta, à olhei pela ultima vez. Quando me vejo lembrando da minha primeira noite que passei no colégio, se acostumando a minha cama e me convidou para colocar meu rosto no seu pescoço, depois,

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apontando para o teto, me disse que nossas mães nos viam no céu e que nos amariam mesmo estando lá. -Vou voltar para te buscar –sussurrei, quase me afogando com as palavras- Eu prometo. – insisti. Se eu não saísse nesse momento, eu nunca sairia, atravessei o corredor, descendo as escadas e fui para o consultório médico onde eu esperava a professora com um saco cheio de comida. Arrancou os espinhos de minha mão com uma pinça de depilação e as enfaixou, sem deixar de observar a venda que dava voltas e mais voltas. Demorou alguns instantes antes de falar. -Comecei a trabalhar com especialistas em fertilidade- explicou- O rei acreditava que a ciência era a chave para reabastecer a terra rápida e eficazmente, sem os inconvenientes comportamentos das famílias, do casamento, e do amor. E acreditava que vocês, as meninas, tem medo dos homens, preferiria criar crianças sem eles. E quando as primeiras turmas entraram nesse edifício, alguns deles fizeram isso. Mas o processo é às vezes muito duro, e surgem complicações e me preocupa que isso piore ainda mais. Fazendo uma observação rápida a gaveta da doutora Hertz guardava nossas injeções semanais, as que nos irritava o tórax e criava muitas dores. Sobre a mesa havia frascos de cristal com vitaminas, distribuídas em compartilhamentos por dias. As tomadas de manhã, tarde e noite, como um doce veneno colorido. -Então, você sempre soube... Das graduadas?- perguntei. Ela olhou para fora através das persianas. Quando se certificou que as guardas haviam passado, me indico que seguisse pela porta de trás, por lá que saímos. Uns cachorros selvagens uivaram ao longe, e acelerou meu coração. Corremos ao muro, até que a professora virou se para assegurar que estávamos longe o suficiente para que a guarda não nós visse. Quando respondeu a minha pergunta, seu tom era mais baixo do que antes: -Primeiro quando a epidemia ocorreu, e posteriormente a vacina agravou isso. O mundo estava consumido pela morte, Eve não havia ordem, as pessoas ficaram confusas, aterrorizadas. O rei assumiu o poder, e tinha que escolher: continuar ou vagar pelas florestas estando sozinho. Falava sem alarmar se, mas vi que as lagrimas cresciam em seus olhos. Lembrando-se dos discursos anuais quando nos reuniam na sala de jantar e ouvia o único à nossa disposição rádio, colocado sobre a mesa da

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diretora. O rei, nosso grande líder, o único homem merecedor de respeito se dirigia a nós através de aqueles autofalantes velhos e nos falava do progresso da Cidade de Areia, dos arranha-céus que estavam construindo, do muro que nós protegíamos do exercito, os vírus e as ameaças externas. A Nova América começava ali, aonde não era mais uma ideia de reconstrução, e nos assegurava que estaríamos a salvo. -Resolvi continuar, Eve –continuou dizendo Florence- Tinha cinquenta anos, e minha família havia morrido. Não me restava outra opção, não podia sobreviver sozinha. Mas você tem a oportunidade que eu não tive. Chegamos a uma macieira seus ramos junto ao muro. Pip e eu havíamos sentado embaixo dele muitas vezes: comíamos maçãs e dávamos as podres para os esquilos. -E para onde vou? – Perguntei com a voz temendo. -Se continuar reto por três quilômetros, chegara a uma estrada. –Ao falar, movia lentamente os finos lábios com pele raspada e áspera. – Será perigoso. Busque os sinais que indiquem o número 80, e vá ao oeste. Não ande muito longe da estrada, mas não ande muito próximo a ela. -E depois o que?- Buscou algo em seu bolso do roupão e pegou uma chave que acariciou com suas mãos murchas. -Se seguir caminhando, chegará ao mar. Ao outro lado da ponte vermelha, há um acampamento. Acredito que se chama Califa. Se conseguir chegar ali, eles te protegerão. -E o que acontece na Cidade de areia? – quis saber, enquanto ela tateava o muro. Dei-me conta que a conversa havia trocado seu fim e as perguntas pulavam em minha mente. –O que acontece com os recémnascidos? Quem cuida deles? Eles conseguirão sair alguma vez se formados? -Levam as crianças a cidade, e quando se formam... –Abaixou a cabeça, sem se separar do muro. –Estão a serviço do rei. Se ele decide sair no momento que estiverem livres, quando nascem crianças suficientes. Atrás de uns ramos havia um buraco tão pequeno que apenas se não distinguia mesmo a luz do dia. A professora Florence introduziu a chave, e o muro de pedra se deslocou e deixou a vista uma estreita porta. Olhando para trás, em direção ao recinto, explicou: -Acredita se que é uma saída de incêndio.

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O bosque cujo limite iluminado pela perfeita e resplandecente lua estava diante de mim. Ali estava: o lugar de onde vim e aonde iria, meu passado e meu futuro. Desejava fazer mais perguntas a professora sobre aquele estranho acampamento chamado Califa e sobre os perigos da estrada, mas nesse momento surgiu uma luz de lanterna de uma guarda ao dobrar a esquina dos dormitórios. A professora Florence me empurrou -Vá logo!- insistiu- Marchando! A porta se fechou atrás de mim tão rapidamente como havia se aberto, me deixando sozinha em meio à noite fria sem estrela.

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Quatro A primeira coisa que vi ao abrir meus olhos foi o céu: algo azul e infinito, muito maior do que eu havia imaginado. Durante os doze anos que vivi em um colégio, só havia visto um pedaço de céu que se estendia entre aqueles altos muros. Mas agora estava embaixo dele, percebendo as pinceladas de roxo e amarelo daquele gigantesco guarda-chuva, visível na luz do amanhecer. Aterrorizada demais para parar, na noite anterior me afastei tão rápida quanto foi possível, caminhei por baixo de pontes em ruínas e caminhei em ravinas até que vi a maravilhosa placa que indicava o numero 80 iluminada pela lua. Descansei então em uma valeta, pois minhas pernas estavam esgotas de tanto que me sustentaram. Tinha a bunda da calça coberta de terra e a garganta seca. Subi sobre um destaque do terreno, mais alto e plano, e contemplei a manhã, a ladeira estava coberta de um espesso gramado com flores, o capim crescia em um verde deslumbrante, e as árvores se torciam em posições incríveis. Serpenteando para dentro e para fora, umas ao redor de outras. Não pude reprimir o riso quando lembrei as imagens que havia visto do mundo antes da epidemia: fotografias de puros campos de capim cuidadosamente aparados, e fileiras de casas em ruas pavimentadas, cujas coberturas formavam quadrados perfeitos. Aquilo não se parecia nada com essas fotos. No horizonte vi um cervo correndo por um antigo posto de gasolina. Antes da epidemia, aquilo tudo funcionava graças ao petróleo, mas as refinarias fecharam não sobrou ninguém para trabalhar nelas, atualmente o governo utiliza o petróleo e reparte uma parte em cada escola. O cervo parou para comer o capim que crescia em direção ao céu, enquanto a luz brilhante da manhã rasgava suas assas. Nisso tropecei e, ao cair, senti que havia batido contra uma saliência dura. Dois centímetros e meio de musgo cobriam a estrada. -Olá!- gritou alguém- Olá? Morta de medo ao ouvir a voz de um homem, olhei ao redor para ver quem falava, recordava-me das historias dos bosques e dos bandos de renegados que vagam por ele e vivam entre as árvores. Meus olhos param em uma cabana em pedaços, a alguns metros, coberta de hera, a porta estava aberta. Rastejei até ela para me esconder.

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-Feche!- exclamou a voz. Fiquei imóvel. No colégio não nos permitiam falar assim. Se considerava algo de ―má educação‖, e tais expressões conhecíamos, pois apareciam nos livros. -Feche!- gritou a voz de novo em algum lugar acima de mim. Olhei para o céu: havia um grande papagaio vermelho no teto da casa, observando-me com a cabeça inclinada. -Ring, ring! Ring, ring! Quem é? - Bicou algo no telhado. Havia visto um papagaio em um conto infantil, sobre um pirata que roubava tesouros. Pip e eu havíamos lido nos arquivos, passando os dedos sobre as ilustrações já descoloridas. Pip... Há quilômetros de distancia acabara de descobrir minha cama vazia, com os lençóis desarmados e frios. Com certeza a formatura mudaria. Certamente, Ruby e Pip pensariam que eu teria sido sequestrada e não as ocorreria que eu teria sido capaz de fugir por vontade própria. Talvez Amélia – a ambiciosa da segunda classe- designada para falar o discurso de abertura da formatura, pronunciaria também o meu e guiaria as demais pela ponte. Quando compreenderiam a verdade? Talvez quando pisassem na costa vazia do outro lado? Ou quando abrissem as portas dublas e se encontrassem na sala de cimento? Aproximei-me do papagaio, mas voltei. -Como se chama?- Perguntei assustada com minha própria voz. O papagaio me olhou com seus olhos negros, parecidos com brilhantes gotas de água. -Peter! Onde está, Peter?- disse dando saltos sobre o telhado. -Peter era seu dono?- perguntei. O papagaio abriu as assas como uma garra. – De onde vocês são?- Supus que Peter havia morrido há muito tempo durante a epidemia, ele havia abandonado o papagaio no caos que se seguiu. Contudo o papagaio havia sobrevivido por uma década. Esse detalhe me deu esperanças. Queria perguntar mais coisas, mas a ave levantou voo e se converteu em uma mancha vermelha no céu azul, eu segui com a vista seu curso até desaparecer na distancia. Reparei então nas silhuetas que havia descendo o bosque dirigindo-se a estrada. Onde estava a sessenta metros, distingui as armas que carregavam nos ombros.

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No momento não sabia como reagir sobre aqueles seres estranhos e alienígenas. Eram muito mais altos e forte que as mulheres, e inclusive seu modo de andar era distinto, mais desajeitado, como se fosse difícil andar. Todos usavam calças e botas, e alguns deles iam sem camisa exibindo o tronco moreno e bronzeado. Avançavam em grupo, até que um deles levantou a escopeta e matou o cervo que estava comendo entre as ruínas do posto de gasolina. O animal caiu ao primeiro disparo, agitando as patas por causa da dor. O pânico se apossou de mim: eu estava na floresta, sobre a luz impiedosa do dia e havia um grupo de assassinos a menos de trinta metros. Eu lutei com a porta da cabana, arrancando as heras, até que encontrei a fechadura enferrujada. O grupo se aproximou. Continuei mexendo a porta, puxando ela e golpeando com a mão para tentar quebrar ela. ―Abri-implorei- Abri, por favor,” Eu dei outro olhar para a esquina da cabana e vi os homens sob o toldo do posto de gasolina. Rodeavam o cervo. Um dos indivíduos cortou a garganta dele como se fosse um pedaço de fruta. O cervo estremeceu, se retorceu: ainda estava vivo. Eu dei um puxão na porta, desejando que a diretora aparecesse de repente na estrada e que os guardas me aproximadamente em uma estrada de governo. Voltaríamos pelo caminho que haviam vindo e os homens ira fugir até que virassem pontos negros no horizonte, até que estivessem a salvo. Mas minha fantasia sumiu, como a neblina consumida pelo sol da manhã. A diretora não me protegeria, e o colégio não era mais um lugar seguro. Não havia lugar seguro. A fechadura cedeu no fim, e quase cai de bruços na obscura cabana. Joguei a mochila lá dentro, fechei a porta e caminhei por um estreito corredor que levava a um quarto grande. Sobre as janelas cobertas de sujeira, as videiras estavam entrelaçadas de tal forma que não se via nada. Avancei procurei e comecei a perceber que não era uma cabine, mas uma grande casa ao lado da colina e medo enterrada na grama. Continuei me deslocando tateando pelas paredes. As paredes, enferrujadas e velhas, pareciam de pedra. As vozes estranhas estavam se aproximando -Raff, coloque a pele na bolsa e vamos de uma só vez.

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-Você começa imbecil de merda- respondeu outro homem. A voz grave e rouca faltava nelas o tom cuidadoso que nos foi ensinado na escola. Depois de assistir as aulas de “Perigos por causa de meninos e homens” durante um ano inteiro, aprendi todos os pontos fracos de uma mulher perante o sexo oposto. A primeira lição era intitulada “Manipulação e Sofrimento”. Para compreender ela, líamos detalhes de Romeo e Julieta e analisamos o modo que Romeu havia seduzido a jovem para acabar arrastando à morte. A professora Mildred nos deu uma palestra sobre a relação que havia mantido antes da epidemia, e como as alegrias em seguida se converteu em amargas depressões, impregnadas de raiva. Chorou a contar que seu ―amor‖ há havia abandonado depois de sua primeira filha, uma menina que viveu por pouco tempo por consequência da epidemia. Ele havia se escondido atrás de algo chamado ―confusão‖. Na lição de ―Escravidão Domestica‖ vimos antigos anúncios de mulheres que usavam avental. Mas a lição sobre ―Mentalidade de pilhagem” foi a mais terrível de todas. A professora Agnes nos mostrou imagens ocultas capturadas por câmeras de segurança instaladas em uma parede. Eram embaçadas, mas se distinguiam três figuras: três homens. Encurralando um individuo por todos os cantos, roubaram as provisões que levava e o mataram com um tiro. Durante semanas eu acordava no meio da noite, banhada de suor, pois seguia vendo a chama branca do disparo e o corpo sem vida do homem cair no chão, com as pernas encolhidas. -Não será mais preciso assassino asqueroso- gritou outra voz. Entrei mais fundo na casa, pegando em uma parede áspera e instável. O ambiente era sufocante e denso: cheirava a mofo e algo mais penetrante, alguma substancia química. Cobri o rosto com a camisa para que os homens não me ouvissem respirar. Estavam muito pertos. Ouvi seus passos quebrando galhos caídos e produzindo cliques inquietantes. Alguém parou diante da casa, e ouvi o som de alguém tossindo. -O que está fazendo?- perguntou um deles. A voz soava distante, mas acima, talvez na estrada. O que tossiu estava mais próximo, e o terror se apoderou de mim. Agarrei a parede e fechei os olhos, tentando me tranquilizar. ―Vá, por favor, vá‖ pensei. -A fechadura esta solta! Vamos fazer uma busca.

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Retrocedi quanto pude, desejando que as paredes frias cedessem, o que poderia me permitir desaparecer por sua superfície cheia de buracos. Eles haviam nos dado muitas aulas sobre o que nos esperava além dos muros: a professora Helena nos mostrou fotografias de uma mulher que um cão raivoso havia arrancado metade de seu rosto. Mas não nos havíamos sugerido apenas uma coisa caso estivéssemos fora. Não nos ensinaram técnicas de sobrevivência. Eu não sabia fazer fogo, nem caçar, nem era capaz de enfrentar aqueles homens. ―Voltem- a professora havia nos dito- Faça o que for preciso para voltar ao colégio.” A porta se abriu em um golpe. Supus que o homem entraria e me tiraria de lá a força, gritando. Mas quando a luz iluminou a casa, deixaram de se importar com o grupo que estava na estrada, às imagens das aulas ou a intenção dos homens que estavam a virar a esquina, apenas a seis metros de mim, desde que revelou que havia paredes de pedra bruta, sendo formadas por centenas de crânios, cuja os olhos negros e vazios me encaravam. Tapei a boca para abafar um grito. -Não é nada mais que um depósito de cadáveres- grito o homem, fechando a porta ao sair e me deixando na escuridão com os esqueletos. Eu fiquei lá por horas, tremendo, até que tivesse a certeza que todos foram embora.

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Cinco No oitavo dia as minhas pernas doíam e minha garganta estava seca. Caminhava lentamente entre a extensa mata que acompanhava a estrada, afastando a folhagem de uma árvore com um galho usando-o como bastão. Tratei de me convencer que chegaria a Califia, dizendo a mim mesma que logo estaria a salvo, e que enquanto permanece nos arbustos, onde nada podia me ver, estaria a salvo. Mas havia dias que minha garrafa de água havia acabado, fadiga me vencia. Andei indo para oeste, como a professora Florence havia me dito em direção ao sol poente. Mas pela noite, quando a temperatura abaixava dormia em armários de casas abandonadas ou em garagens, junto a armações de caros velhos. Encontrava-se um lugar seguro, ficava ali por um tempo comendo as maçãs que a professora havia me dado e pensando no colégio. Não poderia passar a noite sem pensar, o que poderia acontecido se isso tivesse sido diferente, e se poderia ter salvado a Pip também. Talvez tivesse que ter decidido arriscar. Talvez tivesse sido melhor desperta-la. Ao menos deveria ter tentado. Meu coração encolheu ao imaginar ela amarrada a uma cama, sozinha e assustada, perguntando-se por que eu a havia abandonado. Não demorou a ficar sem comida. Os armários das casas estavam vazios, pois as supervisões haviam saqueado depois da epidemia. Resolvi comer amoras, mas uns punhados não eram suficientes para acalmar as dores do meu estômago. Assim que fiquei doente: cada vez caminhava mais e mais devagar, até que andei um quilômetro sem descansar. Sentei-me ao pé de uma árvore, apoiada em suas raízes retorcidas enquanto contemplava os veados pularam entre a grama alta. Às vezes, pouco antes do sol se pôr, puxo as coisas da minha mochila para observá-las. Sempre buscava a pulseira, tão pequena que apenas cabia em três dedos. Eu era órfã, como todas as alunas do colégio, aonde havia chegado depois que minha mãe se contagiou com a epidemia. Não conheci meu pai. Aqueles objetos eram a única coisa guardada de meu passado, além de algumas memórias –mais sentimentos- minha mãe desenrolando o cabelo molhado e cheiroso enquanto eu o desenrolava. Em certa ocasião li curiosidades sobre pessoas as que haviam amputado algum membro: os braços continuavam doendo e as pernas que não tinham, eles chamavam de membros fantasmas. Sempre me pareceu a melhor forma de descrever meus

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sentimentos sobre minha mãe, que havia se convertido em dor por algo que uma vez tive e que perdi. Continuei meu caminho, me apoiando cada vez mais nos galhos. A longe eu vi uma piscina de plástico cheia de água da chuva, um brilhante Oasis turquesa rodeado de ervas daninhas. Pisquei imaginando se não seria uma ilusão causada pelo calor. Corri até ela e me joguei no chão com meus lábios tocando a água fria. Questionei-me quanto tempo ficaria ali e se essa água seria própria para consumo, mas minha garganta seca ficou tão grata que bebi sem parar ate que meu estomago se revirasse. Quando me virei, vi um reflexo na superfície da água: há a alguns metros havia uma casa, e uma luz no seu interior. Eu olhei para o brilho que a luz emitia, enquanto o sol descia pelas copas das árvores. Não sabia quem morava naquela casa nem se me ajudariam, mas tinha q verificar. No jardim havia uma área de recreação de madeira muito danificada. As videiras envolviam a oxidada cadeira de balanço, e se inclinava em direção ao solo. Eu deslizei sob a lâmina quebrada, eu fui a uma janela entreaberta e observei o interior. A sala não era pequena: só se distinguia uma poltrona bamba e varias fotografias amassadas na parede. Também vi uma figura encapuzada cochilando em frente a uma lareira. A fumaça chegava ao teto e saía, seduzindo meu olfato com a promessa de boa comida. A figura pegou um pé de coelho e o devorou por inteiro, e minha boca se encheu de água imaginando o doce sabor que deveria ter. Eu já os tinha visto antes, vagando fora do muro do colégio, na área da janela da biblioteca. Essas pessoas não pertenciam a nenhum grupo nem ao do rei, acho que eram como marginais que viviam em estado selvagem. Haviam-nos dito que eram perigosos, mas o que vi era uma figura de uma esbelta mulher que acalmou meus temores. -Olá!- gritei pela janela- Ajude-me, por favor! A figura se endireitou em um salto e recuou para a parede brandindo uma faca. -Vá para a luz!- A figura era grande e cobria o rosto, mas o brilho do fogo permitia que se vissem delicados lábios com pedaços de carne. -Certo tudo bem. - eu disse levantando as mãos. Ao empurrar à cortina, as dobradiças rangeram, e por pouco não caí por causa do susto. Ao

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fim entrei e esticando as mãos para que as figuras às vissem. – Estou ficando sem comida. Ela continuou apontando a faca. Vestia um uniforme de batalha verde escuro, como os outros trabalhadores do governo, e um suéter negro com capuz muito grande. Não lhe vi os olhos. Quando baixei as mãos, reparei em uma mochila aberta que continha um uniforme de colégio. As cores vermelho e azul do escudo da Nova América me deslumbrou. Retrocedi e então reparei nas negras botas de combate, na estrutura elevada, a graciosa marca sobre o lábio daquela pessoa... -Arden! Tirou o capuz. Os curtos cabelos negros estavam cheios de sujeira e tinha a pele pálida queimada pelo sol, de modo que ela descascava ate a ponta de seu nariz. Abracei-a com força, como se fosse à única que me mantivesse de pé, e respirei fundo, sem me importar que ambas estavam com roupas suadas. Arden estava ali. Viva. Comigo. -Que diabos está fazendo?- perguntou, afastando-se- Como chegou até aqui?- A ira deformou o rosto, e de repente, lembrei que me odiava. Sentei-me no chão, atordoada. -Escapei. Você estava certa. Eu também vi as meninas da sala de cimento- Arden ia de um lado a outro, na frente da chaminé, sem soltar a faca- Segui a placa que indicava oitenta... - Me calei ao me dar conta que ela, certamente, havia feito o mesmo, mas acrescentei- Califia deve estar a uma semana de caminhada, não demoraremos a encontrar a ponte vermelha... Arden acertava a lamina da faca na perna ao andar. -Não pode ficar comigo... Não posso permitir, eu sinto, mas terá que... -Não, não. - Pensei em ratos gigantes correndo pelas minhas pernas nas noites, nas minhas tentativas frustradas de caçar um coelho. - Não pode fazer isso, Ardem. Você não me abandonaria. Arranhando a lamina da faca na perna, produzindo um som irregular que me fez estremecer.

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-Isso não é um jogo, Eve, nem são umas breves férias do colégio – Aguçando a voz- Aí fora á homens, cachorros e vários animais selvagens, e todos querem nos matar. Não será capaz de suportar. Eu... Eu não posso me arriscar. É melhor que vá sozinha. Inclinei-me contra as mãos trêmulas, afundando as mãos no chão enquanto assistia a crueldade de minha companheira. Embora eu tivesse encontrada uma aluna nova na selva que teve a perna partida pela metade, não havia abandonado-a... Não poderia fazer, porque seria equivalente a uma sentença de morte. -Eu sei que não é um jogo. Por isso devemos continuar juntas. - Eu precisava de Arden, mas não conseguiria convencê-la de que ela precisava de mim. Contudo, tentei recorrer a alguma ideia e apelar a seu aspecto mais frio e calculista. - Posso te ajudar. Sentou em uma velha poltrona, cuja almofada estava rasgada torcida e cheia de ferrugem. -Como?- Tirando um besouro morto do cabelo embaralhado e o jogou ao fogo. Dando um riso baixo. -Sou esperta. Entendo de mapas e bussolas. E seria bom dispor de outra pessoa para manter a guarda. -Não há mapas, nem bussolas Eve- respondeu- E sua inteligência é de livros- apontando um dedo- Isso não vale nada aqui. Sabe pescar? Sabe caçar? Mataria alguém se tirasse a minha vida ou a vida de outros? Engoli saliva, a resposta era ―não‖. Claro que não. Jamais havia matado a uma lagarta. Eu julgava a professora das meninas que torturavam esses bichos por puro prazer de vê-los retorcendo-se. Mas queria mostrar a Arden que todos aqueles anos que havia passado na biblioteca, enquanto ela arremessava ferraduras no jardim, realmente havia valido a pena. -A diretora me concedeu uma medalha de aplicação... Ela levou a cabeça para trás e soltou um riso. -Que graça dela! Mas estou bem sozinha. Contudo, você... Abaixei o olhar, olhando ela como ela me olhava: um galho havia rasgado a camisa do uniforme, tinha as mãos cheias de sangue seco e os braços nus, apesar de fazer frio. Sentia-me fraca, nunca havia me sentido assim no colégio, sem comida, nem agua, nem a menor perspectiva de sustento. As lágrimas começaram a inundar meus olhos.

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-Você não entende... Tem pais, um lugar para ir. Não sabe o que é estar sozinha. Coloquei o rosto entre as mãos e solucei. Não queria apodrecer sozinha na floresta. Não queria morrer ou que um homem me capturasse. Não queria morrer! Paso um momento até que me dei conta que Arden havia se levantado da poltrona e estava assando outro pedaço de coelho. -Deixe de se comportar como uma criança- disse me dando a carne inserindo em um bastão. Devorei-a sem me importar que a gordura empapasse minhas mãos e deslizasse para baixo do queixo, esquecendo-me por um momento dos bons modos- Não pode perder mais tempo. Certamente, meus pais já sabem que fugi da escola... E talvez estejam me procurando- ela acrescentou quando acabou de comer. Estava a ponto de começar a chorar, mas me controlei. Mesmo assim, em meio ao nada, seguia pressupondo de seus pais. Acabaria falando da casa de quarto andares que viviam e que dormiam em camas de casal desde o casamento até a mais terna infância, de quão difícil foi para ela desperdiçar tudo aquilo, embora fosse só por alguns anos... Perdeu as empregadas, as centenas de pratos de porcelana, seus pais que há levavam para o teatro e deseixavam que apoiasse o queixo no palco para ver melhor o espetáculo. -Esta noite pode ficar. Então vamos ver. – Concedido lançando um cobertor cinza imundo. Coloquei o cobertor sobre os ombros, enquanto o fogo consumia e deixava um monte de cinzas fumegantes. -Obrigado. -Não há de que. –Aconchegando-se na poltrona com vários cobertores que a envolviam como um gigantesco ninho de pássaros. –Aí encontrei um esqueleto a alguns quilômetros daqui. –Soltando uma risada. Tirei o cobertor com nojo e recostei-me em um canto Não me importava em tremer de frio, como na noite anterior. A luz do luar me deixou ver as fotografias em sua parede: uma família jovem posava diante de uma casa. Sorriam, entrelaçando os braços, tão ignorante de seu futuro como o meu.

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Seis No dia seguinte caminhei com Arden por um campo de girassóis, afastando os monstros gigantes de olhos negros do meu rosto, Apenas conversamos, exceto durante o café da manhã a base de coelho assado, e me pareceu um bom sinal. Temi acordar sem comida, sem cobertas e sem a própria Arden. Mas não tinha ido e gostaria de saber se seu silêncio significava que permaneceríamos juntas. Eu assim desejava, embora fosse beneficio de meu estomago. Ambas percorremos a casa coberta de erva daninha de uma favela abandonada. As casas estavam com o teto afundando e várias cestas de basquete estavam quebradas ao longo do caminho, transformadas pelas videiras em folhas verdes e floridas como arte de topiaria. Vimos também restos de carros velhos, cujo para-brisa estavam em mil pedaços e as portas enferrujadas e no caminho, oculto pelo matagal, vimos dois caixões podres: um de um adulto e outro de uma criança. Quando minha mãe estava morrendo, eu jogava sozinha, fora de casa, porque não me havia deixado deitar perto dela por medo de me infectar. Eu deitava sobre meu pulso no leito da janela e preparava as pomadas de lama e folhas esmagadas. “Você vai se recuperar-dizia para ela, enquanto lamentava ouvindo minha mãe pela janela aberta- Mas agora está muito ocupada.” -Era um pouco mórbida, certo?- disse Arden, tomando-me pelo braço. Havia me prendido ante de madeira do caixão vermelho. -Me desculpe. – Continuei caminhando e procurei retirar a melancolia. Mas me sentia pior, inclusive mais sozinha, ao me dar conta que minha companheira não entendia. Colhi algumas flores silvestres e acariciei o colorido buquê. -Decidi que vamos juntas para Califa- anuncio Arden, andando pela grama- Mas depois será só você. Penso em parar por lá e descansar para logo partir e tentar localizar meus pais na cidade. -Sério?- Minha tristeza se converteu em alegria- Oh Ardem eu...! Ela se virou, abaixando os olhos para evitar o sol, e advertiu: -Não se alegre. Mas, posso mudar de ideia... Caminhamos por um momento em silêncio. Meus pensamentos se retornaram ao colégio, à noite em que fugia, aos rumores que Arden teria

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nadado no lago. E não me parecia tão incrível comer a carne que ela cozinhou, carne esfolada e cozida. -Tem certeza que sabe nadar?- Ousei perguntar. -Quem te disse isso?- Tirando o moletom preto, deixando descobertos os braços pálidos. Tinha os ombros salpicados com sardas. -Viram você- Mas não expliquei que havia levado uma hora pra cruzar o lago segurando em ramos cheio de espinhos. Ela sorriu como se estivesse lembrando-se de algo engraçado e disse: -Eu aprendi sozinha. A você nunca se preocuparam, certo dona Fosforita? Não a ignorei. -Não tinha medo que te descobrissem?- Um coelho cinza correu pela estrada. -Geralmente as guardiãs não ficam nos jardim depois da meia noite, a menos que tenham uma guarda especial. A maioria das noites são muito tranquilas no colégio- Encaminhou-se até o coelho, com a faca em mãos. O animal parecia imóvel, enquanto ela se aproximava. Não conseguia tirar da minha cabeça o dia em que havia nadado. Nunca tinha visto alguém fazer o mesmo. Se havia entrado na água sem mais, movendo os braços? Se apoiando em algo como um galho ou corda? -E não tinha medo de se afogar? Ao ouvir minha voz, o coelho fugiu entre a mata de um jardim abandonado. -Muito bem, Eve- bufo, e colocou a faca no cinto- Eu adoraria que um ser divino ou humano acreditasse em mim, mas tenho que pegar o jantar. – Entrou entre as casas, sem dificuldade de voltar à vista. -Vou buscar a janta!- gritou ela- Eles se hospedaram na casa? Não respondi. Segui caminhando, me afastando das casas e me dirigi a uma zona que tinha ruinas. A grama cobria um restaurante, entre as e o musgo se distinguia um gigantesco EME amarelo. Ao fundo da maçã havia um enorme edifício, cuja fachada estava apagada, e o letreiro havia perdido algumas letras. Dizia: WAL MA T. Alguém havia escrito spray sobre as

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janelas quebradas da frente às palavras: “ZONA DE QUARENTENA. SE ENTRAR, ENFRENTE AS CONSEQUÊNCIAS” Quando o caminhão cruzou as barricadas para evacuar as crianças saudáveis remanescentes, minha mãe pediu que me levassem. Corri para o ônibus e agarrei-me ao poste de madeira, determinada a ficar. Foi inútil. Minha mãe saiu pela porta, com o nariz sangrando, quando me colocaram na parte de trás do caminhão. Tinha os olhos afundados, com cor de ameixa podre, e o peito sobressaltando com um laço. Permanecendo na porta, se despendido com a mão, e me lançou um beijo. Ao visitar a cidade abandonada, tentei não olhar as enormes cruzes de madeira do estacionamento nem as pilhas de ossos que haviam embaixo cobertas de musgo. Mas todos os lugares tinham sinais de morte. Na rua havia uma casa abandonada, a imobiliária do norte da Califórnia, as janelas estavam tampadas. Os caixões se amontoavam em um local chamado Manicure Suzy. Acabava de ver os X vermelhos pintados na lateral de um recipiente quando algo se moveu diante de mim: um filhote saiu do caminho, com um passo tranquilo, e me observou. Em seguido volto a dedicar toda sua atenção a uma lata enferrujada de comida que pretendia abrir com as garras. Imediatamente pensei no Ursinho Pooh, o livro que a professora Florence lia para nós quando éramos crianças sobre um urso e seu bom amigo Christopher Robin. Dizendo-nos que os ursos não seriam tão simpáticos, mas aquele urso era muito pequeno para ser algum perigo. Perguntei-me se o animal estaria comendo açúcar, ou se era um detalhe curioso da historia. Estendi a mão, procurando não o assustar. O urso cheirou meu braço com o focinho úmido, e quando acariciei o suave pelo castanho, me deu uma agradável sensação de arranhar minha mão. -Sim, é igual ao Pooh- afirmei. Desviou a cabeça do caminho e cheirou outras latas. Não sabia se Arden deixaria leva-lo para casa. Talvez poderíamos ficar com ele por um tempo, eu nunca tinha tido um mascote. Estendi a mão mais uma vez, mas a retirei imediatamente quando ouvi um rugido ameaçador: uma ursa enorme se levantou pelas patas traseiras junto à estrada, me pareceu uma autentica torre. O urso se aproximou dela, e a ursa abriu a boca, mostrando os dentes. Endireitei-me, estava arrepiada e com as mãos tremendo. A mãe se jogou contra mim, com a cabeça baixa e levantei os braços em um gesto patético. Preparava-me para o ataque quando algo golpeou a pelas costas.

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Uma pedra. Enquanto o animal rugia, outra pedra golpeou a cabeça, caindo para trás, e seu imenso traseiro se chocou contra a estrada. Ao dar a volta, vi um garoto coberto de poeira, cujo peito musculoso estava sujo de barro e pele muito morena – de um castanho avermelhadoque montava em um cavalo negro e levava uma bala na mão. -Será melhor que monte- sugeriu guardando a bala no bolso traseiro da calça- Não acabou. Olhei novamente para ursa, que sacudia a cabeça, momentaneamente atordoada. Não sabia o que era pior: morrer entre as garras de um animal feroz ou fugir com um selvagem Neandertal a cavalo. Ele estendeu a mão, tinha as unhas negras de sujeira. -Vamos!- insistiu. Dei-lhe a mão, e me puxou. Sentei-me atrás dele, na garupa do cavalo. O garoto fedia a suor e a fumaça. Com um ―arre!” zarpamos em marcha pela estrada coberta de musgo. Coloquei meu braço em volta do peito musculoso do garoto e me voltei a olhar mais uma vez a ursa. Se havia levantado e corria atrás de nós, mas seu gigantesco corpo castanho estremecia pelo esforço. Meu salvador agarrou-se as rédeas cortadas de couro, desviando o cavalo da estrada principal para conduzi-lo entre o denso bosque. A ursa se aproximou e mordeu a cauda do cavalo. -Mais rápido! Tem de ir mais rápido!- gritei. O cavalo acelerou, mas a ursa nos seguia muito perto sem mostrar o menor sinal de cansaço. Minhas pernas, empapadas de suor, escorregavam. Segurei-me ao garoto, cravando as unhas em sua pele. Ele se inclinou para frente, e o vento rugia sobre nós. A ursa voltou a abrir sua boca feroz. Olhando por cima do ombro do garoto, vi na nossa frente uma ravina de metros de largura, que parecia um antigo canal de agua irregular, deveria ter uns cinco metros de profundidade. -Cuidado!- exclamei, mas ele continuou, mais rápido que antes. -Por que não me deixa manusear o cavalo?- gritou virando a cabeça para mim. Atrás de nós a ursa corria com todas suas forças, sem separar os olhos das coxas do cavalo.

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-Nããoo!- sussurrei quando percebei que ele corria em direção ao riacho. Se não conseguíssemos o animal nos devoraria vivos e estaríamos aprisionados no fundo do canal sem a possibilidade de nos escondermos. – Não, por favor. Mas o cavalo levantando as patas dianteiras estava a ponto de sair disparado do outro lado da ravina. Meu estomago afundou. Durante o momento senti que voava, e logo senti um duro impacto dos cascos contra o solo. Contemplei o campo de cravos que nos rodeava. Havíamos saltado. Virei minha cabeça uma ultima vez, tremendo que a ursa se nos atacasse, mas escorregou na borda do precipício. A última coisa que ouvi foi um rugido furioso enquanto afundava pelo íngreme precipício e aterrissou, com um golpe surdo, no fundo lamacento do riacho.

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Sete Passamos muito tempo em silêncio. Quando por fim deixamos o perigo para traz, recuei na garupa do cavalo, me afastando o máximo possível do garoto. Pertencia a uma espécie estranha, meio selvagem. Não era um tipo sofisticado como os que povoavam as páginas de O Grande Gastby. Também não se parecia com os homens violentos que havia visto em meu primeiro dia de liberdade. Ao menos havia me salvado a vida, ainda que acreditasse que por motivos inconfessáveis.

Vestia calças manchadas e rasgadas em seus tornozelos, os cabelos, trançado em dreadlocks, chegavam até os ombros. Diferentemente dos bandidos, não usava uma pistola, o que não me consolava muito, pois era tão forte e musculoso quanto eles. Eu não sabia que pensamentos ruins nutriam comigo, uma garota que havia encontrado sozinha na floresta, assim comecei a descolar a camiseta de meus seios. — Não sei o que pensa em fazer, mas não fará – disse, empertigando—me para parecer mais alta. Pelo canto do olho vi três coelhos mortos pendurados no pescoço do cavalo; tinham as patas amarradas com cordas. Ele voltou—se para me olhar e sorriu. Apesar de sua higiene deficiente, tinha os dentes retos e brancos. — E o que penso em fazer? A verdade é que ficaria muito contente em saber. Trotamos por uma estrada, cujos corrimões mal se viam por baixo do mato. A distância se via uma ponte meio destruída. — Estou certa que quer ter relações sexuais comigo – respondi com toda naturalidade. O garoto riu, dando uma gargalhada grave e retumbante, enquanto dava algumas palmadas no pescoço do cavalo. —Quero ter relações sexuais com você? — Repetiu, como se não tivesse ouvido bem. — É claro – afirmei em voz alta – E fique logo sabendo, não permitirei. Nem que... — Busquei a metáfora adequada.

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—... Fosse o último homem sobre a face da terra? — Olhou para a vasta paisagem desolada e esboçou um sorrido maldoso. Seus olhos eram da cor uva verde.

— Isto mesmo – confirmei. Fiquei satisfeita que falasse pouco e soubesse utilizar as palavras. Não teríamos tantos problemas para nos comunicar como havia imaginado. — Fico contente – respondeu—. Porque não tenho a mínima intenção de encostar em você. Não faz meu tipo. Ri, até que me dei conta que o garoto não estava brincando. Mantinha o olhar fixo no horizonte a frente enquanto guiava o cavalo para fora da estrada e o conduzia até uma rua coberta de musgo, encorajando—o para que não tropeçasse nos buracos da calçada. — O que quer dizer com isto de que não sou tipo? — Quis saber. A epidemia havia matado muito mais mulheres do que homens. Eu era uma das poucas mulheres que existiam em Nova América, uma garota culta e de boa aparência e por isto sempre soube que seria o tipo para qualquer homem. O garoto me deu uma olhada e encolheu os ombros. —Psss! – murmurou. Como que psss. Uma garota tão inteligente e trabalhadora como eu. Me haviam dito que era bonita. Eve era a mais inteligente do colégio! Não lhe ocorria dizer algo mais que ―psss? Percebi um ligeiro movimento de ombros e me esforcei para olhar seu rosto, percebi, pela primeira vez, que estava mexendo comigo: enganada. — Se acha muito bonito, não é verdade? — Provoquei, desviando o rosto, para não visse que estava vermelha. Puxou as rédeas e dirigiu o cavalo para a ponte em direção do sol poente. Com já era o entardecer, o céu adquiriu uma tonalidade azulada dos hematomas; havia nuvens carregadas e ao longe se ouvia o estrondo de uma tempestade. — Será melhor que leve de volta onde me encontrou. Meu gigantesco amigo está me esperando. Ele é perverso e... Sanguinário – Acrescentei ao final repetindo a que havia ouvido os bandidos dizerem. O garoto respondeu em jocoso: — Estou te levando pra lá.

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—Bom assim, já sei— afirmei olhando ao redor. Não sabia exatamente onde stávamos. Ainda não havíamos chegado ao WALL MART, e não se via a estrada por perto. À esquerda se erguiam dois postes que amarelos que assinalavam um antigo campo de futebol onde cresciam pés de milho. — Há algo que não saiba? —Perguntou virando—se e esboçando outro sorriso. Desviei o olhar e fingi que não vi a covinha na bochecha direita nem o brilho nos seus olhos, como se estivesse iluminado por dentro. A professora Agnes chamava de ―ilusão da intimidade. Seria aquilo? Permanecemos em silêncio por um tempo, escutando a tempestade distante, até chegamos ao lugarejo onde havia visto Arden da última vez. Reconheci um balanço quebrado que tinha a borracha do pneu queimada. Uma gata selvagem, com a barriga enorme, vagava pela rua. O garoto parou olhando um jardim coberto de ervas e apontou para uma pequena figura, oculta atrás da folhagem. — Este é seu ―gigantesco amigo? Arden saiu pouco a pouco de seu esconderijo. Tinha os joelhos das calças molhadas e manchadas de barro, como se estivesse engatinhando pelo chão. Desci do cavalo, esperando que ela me interrogasse, mas estava muito absorta observando o garoto para reparar em minha presença. Ficamos os três calados um instante; somente se ouvia a refestelar do cavalo. Arden acariciou sua faca com a mão. O garoto fez um gesto negativo com a cabeça, e disse: — Também é paranoica? Vamos ver se acerto: acabou de abandonar o colégio? Verdade? – Desmontou com grande agilidade. O céu trovejou, e o garoto acariciou o pescoço do cavalo para tranquiliza—lo. – Chiss, Lila – sussurrou. — O que você sabe do colégio? – perguntou Arden. — Mais do que você acredita. Me chamo Caleb – respondeu estendendo a mão para cumprimenta—la; ela permaneceu imóvel, observando a sujeira acumulada embaixo das unhas e entre os nós dos dedos do garoto. Logo relaxou os ombros e pouco a pouco retirou a mão da faca. Meu olhar ia de um para o outro sem parar. Ele a havia impressionado. —Arden... — sussurrei esperando que não tocasse o garoto. Ela percebeu uma tatuagem que ele tinha no ombro: um círculo com o emblema de Nova América— Arden, vamos preparar o jantar – Dava conta que aquela presença masculina era tão surpreendente para ela como para mim, mas não podíamos continuar ali, a escassos centímetros dele. Em perigo. Comecei a caminhar e fiz sinais para que ela me seguisse, mas ela não se moveu.

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— Não consegui caçar nada – disse, e se afastou de Caleb. Deu uma olhada nos três coelhos que estavam pendurados no pescoço do cavalo. Em seguida, abriu a bolsa que levava pendurada da cintura e mostrou seu interior: estava vazia. As nuvens da tempestade nos cercavam. Um trovão estremeceu o ar. Deu uma topada em pedra do caminho. Se soubesse teria pegado uma das latas que brinquei com o filhote. Tínhamos em perspectiva outra noite gelada e chuvosa, sem nada para comer. Caleb montou de novo e disse: — Em meu acampamento existe muita comida se lhes quiser vir. Ri do convite, mas minha companheira olhou para mim, para Caleb e para os coelhos. — Não... — murmurei entre os dentes. Peguei em um dos seus braços, para afastá—la do cavalo, mas tinha dos dois pés firmes no chão. — Que tipo de comida? — Perguntou. — De tudo: javalis, coelhos, frutas silvestres... Há pouco tempo matei um cervo. — Apontou para o horizonte cinza, estendendo a mão par um lugar invisível—. Está a menos de uma hora a cavalo. Continuei retrocedendo, passo a passo. Mas Arden, com a cabeça inclinada, tentava desfazer um nó de seus curtos cabelos negros. Quando a segurei, ficou tensa. — Como sabemos que é de confiança? – Perguntou Arden. — Não sabem – Respondeu Caleb, encolhendo os ombros – Mas nem tem nem cavalo nem comida e se aproxima uma tempestade. Talvez valha a pena tentar. — Minha companheira levantou os olhas para as nuvens carregadas e depois dirigiu um novo olhar para sua bolsa vazia. Após alguns instantes se solte de mim. Deu a volta no cavalo e montou atrás de Caleb. —Aceito sua oferta – disse acomodando—se. Fiz um movimento negativo com a cabeça, decidida a não me mover. — Que nada. Não iremos ao seu ― ―acampamento‖. – Desenhei no ar as aspas. Tinha certeza que se tratava de um truque. — Está bem. Mas se estivesse em seu lugar, não gostaria de estar só e muito menos com este tempo. – Caleb apontou para as densas nuvens de tempestade, que avançavam rápido e cresciam, ameaçando despejar agua sobre a floresta; logo fez o cavalo girar e se foi trotando. Arden me acenou um adeus com a mão, sem se incomodar em virar a cabeça.

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Olhei o campo pelo qual havíamos passado: os girassóis se inclinavam, empurrados pelo vento. Não sabia onde ficava a casa nem se estava muito longe; não sabia ascender um fogo, nem caçar e sequer tinha uma faca. Cravei as unhas na palma de minhas mãos. — Espera – gritei, e sai correndo atrás do cavalo – Espere—me.

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OITO Nunca tinha visto uma noite tão escura, iluminada unicamente pelos raios que de vez em quando cortavam a escuridão do céu. Levamos duas horas no trajeto. Abracei Arden com os braços, agradecida pelo espaço que me separava de Caleb. Enquanto avançava por uma estrada coberta de mato, permaneci em silêncio, repassando todas as formas pelas quais o garoto poderia nos matar ou nos obrigar a fazer coisas erradas. Entre todas as mentiras que as professoras havia nos contado, havia algo de verdade. Depois de ver como os bandidos esfolaram o animal vivo, compreendi que os homens eram tão violentos e cruéis como nos haviam dito. Lembrei—me da inocente Ana Karenina, oprimida por seu marido Alexei e logo seduzida por seu amante Vronsky. Demonstrando sua pena, a professora Agnes nos havia lido a cena do suicídio da protagonista. ―Quem dera Ana soubesse vocês sabem! — dizia – Quem dera! Não me deixaria enganar. E quando chegássemos ao acampamento de Caleb, comeríamos e esperaríamos a tempestade amainar. Não tinha a intenção dedormir, e sim permaneceria acordada e alerta, encostada contra uma parede. E pela manhã, quando o céu recuperasse sua perfeita cor azul, nós marcharíamos. Ardem e eu, sozinhas. — Como e que conhece nosso colégio? — Perguntou minha companheira, que apenas havia falado para perguntar a Caleb detalhes sobre o caminho que havíamos tomado. Afastei meu rosto das costas de Arden, sentindo um repentino interesse pela conversa. — Sei mais coisas do que gostaria sobre os colégios, — Caleb mantinha os olhos fixos nos caminho – Ele também era órfão. — Então também existem colégios para garotos – concluiu Arden—. Eu sabia. Onde? — A cento cinquenta quilômetros ao norte. Mas não colégios, são mais campos de trabalhos. Sei as coisas que viram em seu colégio: as atrocidades que se acometem e a utilização das garotas como bestas de cria. Mas asseguro... – Fez silêncio por um momento. Logo falou lentamente e com profundidade, como se conhecesse aqueles segredos há muito tempo – Garanto que os garotos também têm sofrido, talvez até mais. Duvidei de suas palavras. Sempre eram a mulheres as que sofriam nasmãos dos homens: eles iniciavam as guerras, eles haviam contaminado o meio

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ambiente e o mar com fumaça e petróleo, haviam arruinado a economia e superpovoado o antigo sistema carcerário. Mas Arden me beliscou o braço com tanta força que soltei um gemido. — Tem que desculpa—la – explicou — Era a sabichona do colégio. Caleb fez um gesto afirmativo, como se aquilo revelasse uma grande verdade sobre mim. Logo em seguida, se inclinou para frente e incitou o cavalo para que acelerasse o passo. Subimos a galope uma grande ladeira, cujo topo estava a uns quinhentos metros. As árvores estendiam seus galhos pelo terreno cheio de mato, criando sombras ameaçadoras, e chovia cada vez mais; as gotas caiam como pedrinhas, golpeando minha pele. — Oh não – Caleb freou o cavalo no meio do barro. Segui seu olhar: havia um 4x4 do governo a menos de cem metros de nós. Apesar da chuva, distingui os faróis traseiros vermelhos. O garoto tentou que o cavalo desse a volta, mas era muito tarde. Um raio de iluminou a riscou a escuridão e iluminou nossos rostos. — Estão presos! Por ordem do rei de Nova América! – gritou uma voz pelo megafone. — Vamos! — Pressionou Arden – Já! Caleb fez o cavalo girar e voltamos pelo caminho pelo qual havíamos subido. Eu não podia deixar de olhar para traz. O 4x4 também estava fazendo a volta e, ao fazê—lo, seus pneus salpicavam no barro. Estavam nos perseguindo, e os olhos destemidos dos faróis dianteiros iluminavam nossas costas.

— Parem em nome do rei ou usaremos a força! Não, não; não pode estar certo, disse para mim mesmo agarrando—me as costas escorregadias de Arden. Talvez fosse pelo aguaceiro, pelo barro ou o peso da terceira pessoa, mas o cavalo ia mais lento do que antes. O 4x4 ia se aproximando. —Não podemos seguir por este caminho – disse Caleb – Irão nos alcançar. – Apontou para um bosque denso, e o cavalo galopou em sua direção – Obediente!

Me agarrei a Arden desesperadamente. O cavalo se afastou do caminho, e em questão de segundo estávamos no meio do denso bosque. Os grossos galhos das árvores açoitavam meus braços e costas. — Abaixa a cabeça! – Ordenou Caleb.

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As luzes do 4x4 desapareceram atrás de nós. O veículo havia parado no caminho. — Não falta muito para chegar – comentou Caleb, enquanto pulávamos por causa dos desníveis do terreno. Não sabia para onde íamos, mas confiávamos que chegaríamos logo. O cavalo serpenteava entre as árvores, até que por fim parou diante de um rio de uns nove metros de largura. Caleb desmontou e ajudou a mim e Arden a desmontar. Deu uma palmada na garupa do animal, e este saiu correndo. Durante alguns momentos o bosque ficou em silêncio. Olhei para traz: os faróis dianteiros do veículo iluminavam a enevoada noite; nos homens haviam fechado os portos. — Por aqui! – gritou um deles. — Por que te perseguem? — Perguntou Caleb. Ele nos levou até um penhasco junto à margem do rio, e nos abaixamos. — Não perseguem a mim — respondeu, e eu olhei confusa—. Perseguem você. – Retirou um pedaço de papel do bolso da calça. Arden arrancou o papel de suas mãos. Se tratava de uma fotografia embranco e preto de uma menina de compridos cabelos castanhos e lábios generosos em forma de coração. O papel dizia: Eve. 1,70 metros. Olhos azuis e cabelo castanho. Procura—se, viva. Se a virem, avisem o destacamento do noroeste. Arden o manteve nas mãos, até uma grande gota de chuva borrou meu nome. Caleb pôs a cabeça sobre o penhasco; o carro dava voltas lentamente. — O encontrei esta manhã na estrada.

Arranquei o papel das mãos de Arden e contemplei meu próprio rosto. Era minha fotografia da formatura, a única que haviam feito no colégio. No mês anterior uma funcionária do governo se apresentou e escolheu trinta garotas e fotografou uma a uma. Na foto estava diante do lago, e ao fundo se via o edifício sem janelas. — E por que me perseguem? Arden também havia fugido. Caleb abaixou o olhar; seus cabelos castanhos ocultavam parte de seu rosto. — Que? – perguntou Arden— O que ocorre?

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O garoto secou a chuva que molhava seu rosto, e explicou: — É uma notícia da Cidade de Areia... A princípio acreditávamos que se tratava de um rumor. – Seus olhos buscaram lentamente os meus— O rei quer um herdeiro. Arden negou com a cabeça enquanto olhava para a fotografia. — Oh, não...! — Murmurou. — O que está acontecendo? Perguntei, o pânico tomando conta de mim. Arden voltou seus olhos para o caminho, onde várias lanternas iluminavam as árvores. ―- Eve se mostrou uma das melhores e mais brilhantes alunas que já tivemos no colégio. E ainda, é bonita, muito inteligente e muito disciplinada” – As palavras da diretora Burns soaram diferentes nos lábios de Arden. Quase sinistras—. Isso é que havia conseguido pela medalha de aplicação, Eve. Não ia acabar naquele edifício. Pertence ao rei. Náuseas me reviraram o estomago. — O que quer dizer com... Pertencer? — Que lhe darias seus filhos, Eve-respondeu, quase rindo. Havia retratos do rei nos salões do colégio. Era velho, de têmporas grisalhas, lábios finos e secos, as rugas marcavam seu rosto. Recordei que Maxine havia falado de uma suposta visita do monarca no dia da formatura. Logo me pareceu possível que viesse... Por mim. — Claro que os teria. E um espécimen perfeito. Tendo em conta sua educação e todos os elogios das professoras... — continuou Arden, e apertando as têmporas com os dedos. Amacei o papel. Não conseguia respirar e o peito me doía. Não quero dar a luz aos filhos de ninguém, e ainda menos dos do rei. Mas ao que parece que já haviam decido por mim. Caleb sentou—se junto ao penhasco sem desviar a vista de nossos perseguidores, que abriam caminho entre as árvores, fazendo grande barulho enquanto esmagavam a vegetação. — Não estamos seguros – Disse o garoto enquanto olhava o rio as suas costas – Vamos... Agora. – Como uma expiração correu até a margem do rio e mergulhou em suas águas agitadas, enquanto a chuva batia em suas costas nuas. Arden o seguiu de perto e eu demorei um momento para compreender: queria que cruzássemos o ria a nado.

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Me abaixei na margem do rio, imóvel, enquanto Arden mergulha sem nenhuma dificuldade. Atrás de mim as lanternas esquadrinhavam os grossos troncos. As vozes dos soldados estavam cada vez mais próximas. —Vamos! — Ordenou Caleb. Parou, com a altura do peito, para deixar espaço para Arden, que continuou nadando e voltando a superfície para respirar. Ele voltou à margem para me buscar. — Rápido – Me animou, segurando pelo braço. As corredeiras se moviam depressa, mas Arden avançava rio abaixo, arrastada pela corrente. — Não sei nadar – confessei, e afastei meu cabelo molhado do rosto. Minha expressão mudou quando minha companheira chegou à outra margem; estava bem, com a roupa e a mochila encharcadas, mas a salvo— Não me atrevo – acrescentei com a voz hesitante. Os soldados se aproximavam cada vem mais, focando suas lanternas no rio —. Vá – consegui dizer, ainda que não pudesse reprimir as lágrimas; estava perdida. Empurrei Caleb —. Vá. Mas ele não se moveu. Voltou seus olhos para as sombras no bosque, após me olhou e segurou minha mão. — Não tem problema, Eve – afirmou. Parei de chorar, surpresa com o calor de sua pele sobre a minha. Estava tão próximo que sentia sua leve respiração. Seus olhos brilharam, iluminados pelo brilho repentino de uma lanterna. —Não penso em te abandonar.

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NOVE Caleb me ajudou a saltar sobre um fosso, sem soltar minha mão. Corremos sobre as rochas e troncos partidos. Chegavam até mim os ruídos que os homens faziam abrindo passagem com dificuldades pelo espesso bosque. — Vão até a margem! — gritou um deles. Caleb continuou avançando como se conhecesse todas as fendas das pedras caídas, os lugares cobertos de musgo dos troncos podres. Eu não tirava os olhos de suas pernas, para seguir suas pegadas. Viramos em uma curva e perdemos as lanternas de vista. Através da chuva consegui apenas divisar uma estrutura a nossa frente, desmoronado junto à margem do rio. Parecia uma imensa barata morta. Caleb correu até ele. Eu só tinha visto um helicóptero uma vez em minha vida, nas páginas de um livro da biblioteca, mas reconheci os hélices dobrados e a cabine semelhante a uma capsula. — Depressa... Entre— murmurou, e quebrou os restos de uma janela. Me encolhi para entrar na concha enferrujada, e a escuridão me envolveu. O garoto entrou atrás de mim, pisando na poeira do chão. —Ai vem eles – sussurrou enquanto me arrastava para os assentos dianteiros. A chuva que açoitava o para—brisa produzia um som ensurdecedor e incessante. — Temos que nos esconder – disse, e enquanto apalpava as entranhas mofadas do aparelho, toquei um objeto bolorento, da metade de meu tamanho: seguramente um assento do passageiro que havia se quebrado durante o acidente. Nos metemos debaixo, e o som da tempestade silenciou nossa respiração. Me amontoei junto a Caleb na escuridão, debaixo do assento que cheirava a umidade, e percebi o contato de seu corpo: meu ombro contra o seu, minha perna contra a sua. A proximidade era alarmante, mas não me atrevi a me mover.

As vozes dos soldados ganharam intensidade quando chegaram a margem. Uma lanterna iluminou a parte superior do helicóptero, e os vidros quebrados cintilaram. Caleb, a quem quase não se distinguia apesar da luz, levou um dedo aos lábios em sinal de silêncio. — Devem ter dado a volta no bosque. Vou à margem e te espero na estrada – disse um homem muito próximo. Sua lanterna iluminou o interior do helicóptero, e a luz pousos em um monte de lixo. Depois baixou para a cabine

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acidentada e ao esqueleto do piloto, ainda preso ao acento. Por fim iluminou meu sapato direito, a única parte de mim que não havia escondido. Vá embora – pensei, e rezei para que a luz se afastasse de meu pé—. Não está vendo nada. Fechei os olhos e ouvi outra voz distante, gritando algo. A luz sumiu —. Nada. Ouvi passos do outro lado do para—brisa, e pouco depois o bosque ficou em silêncio. Ficamos ali, amontoados debaixo do assento destruído, até que parou de chover. — Talvez haja comida aqui dentro – disse Caleb ao fim e, esticando as pernas, se afastou do assento. – Ajude—me a procurar. Tateei na escuridão procurando me afastar do esqueleto do piloto. Pouco depois encontrei uma espécie de corda amarrada a uma caixa metálica bastante grande. — Isto? – perguntei entregando minha descoberta a Caleb. Ele agitou a caixa. Após um som alto, uma luz se acendeu.

— Muito bem— respondeu com um sorrido. – Uma lanterna. Talvez? A segurou e começou a abri—la, a luz se tornou mais intensa. Enquanto esvaziávamos o conteúdo da caixa no chão, procurando entre latas e sacos de papel de alumínio, estudei seu rosto. O rio havia limpado quase toda a sujeira de sua pele, que nesse momento era brilhante e suave; umas poucas sardas manchavam seu nariz. Mas se mostrava impossível deixar de olhar para detalhes fortes e angulosos de seu rosto, nem dos ossos que se deixavam perceber por baixo da pele. Sabia que devia temê—lo, mas, apesar disto, sentia uma fascinação. Qual palavra a professor a tinha usado para descrever seu marido, aquela que Eu e Pip riamos nos colégio? Caleb, apesar das unhas negras e do cabelo embaraçado, era quase... Belo! Me deu um pequeno saco de papel alumínio. — E agora por que está rindo?— Perguntou com curiosidade.

— Por nada – me apressei em responder. Aproximei o saco de meus lábios e bebi a agua quente. — É esta a cara que faz quando soldados armados a perseguem? — Esfregou a pele para secar a chuva de seus braços, ombros e rosto. Por acaso é divertido?

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— Esqueça. Abriu então uma lata com uma pasta marrom. — Por acaso... –continuou enquanto lambia a tampa—, ria de mim? —Nem de brincadeira— Observei como levava a lata até a boca e a esvaziava o conteúdo com a língua. Fazia barulho para mastigar com a boca aberta, de modo que qualquer atração desapareceu imediatamente— Que nojo! – murmurei. — Não parece apetitoso? Pois então tem ervilhas desidratada — Me atirou outro saco. Comi as ervilhas secas em silêncio, mas não deixava de me olhar—Você e essa garota... — Apontou com a cabeça—. São amigas ou não? Enfiei outra ervilha na boca, mas não engoli até conseguir umedece—la. Lembrei—me perfeitamente do momento em que havia decidido que Eu e Arden éramos tão diferentes que nunca seriamos amigas: participávamos de uma corrida no jardim. Cursávamos o sexto ano do colégio, e como Pip tinha menstruado esta manhã, se sentia muito incomodada com os absorventes que a doutora Hertz havia lhe dado, mas Eu e Ruby a havíamos convencido a correr conosco, embora não quisesse. Quando chegou próximo ao lago e esperava sua volta, Arden abaixou seu short. Antes, já havia dado muitas oportunidades a Arden: Quando brigou com Maxine no banheiro e machucou seus lábios, jurei que se tratava de um acidente; a defendi de outras meninas quando enfrentou a professora Florence e lhe disse que não era sua mãe, que tinha uma fora do colégio e estava viva e que, por tanto, não lhe fazia falta outra mentora; inclusive lhe havia levado algumas frutas silvestres em seu quarto de castigo...Mas o que havia feito com Pip passava do limite. ―Tenho certeza que está muito orgulhosa de você mesma – gritei, enquanto Pip corria para o dormitório com os olhos inchados e vermelhos—. Durante um segundo conseguiu que alguém fosse mais patética que você.‖ Depois desse dia, fiz todo possível para demonstrar quão pouco me importava e a pena que me dava. Na verdade quase ninguém falava com ela, nem sequer para escutar as estórias sobre sua mansão ou sobre seus pais que trabalhavam na cidade.

Engoli a saliva; a comida sem gosto por fim havia se umedecido em podia engoli—la. — Não..., não se pode dizer que somos amigas. Caleb sentou—se, apoiando—se na parte traseira do assento do piloto, e Apoiou a nuca. — Por isso fugiu nadando. Não se importa com...

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— Sim – interrompi— Ela só se importa com ela mesma. Sempre foi assim. Me observou um instante, surpreendido, e pois as latas vazias na caixa. Depois pôs a cabeça para fora pela janela quebrada, dando uma olhada, afirmou: — Creio que deveríamos passar esta noite aqui. É possível que volte a Chover e os soldados não voltarão até que aja dia. Talvez amanhã Arden apareça. —Não aparecerá – murmurei. Havia custado muito para me aceitar e agora que sabia que me procuravam, certamente fugiria para a floresta, afastando—se de mim o mais que pudesse. Tiramos algumas mantas finas da caixa de emergência e as estendemos no extremo oposto ao da humidade da cabine. — Faltam apenas algumas horas para que amanheça – disse Caleb—. Não tenha medo. — Não tenho – afirmei. A luz da lanterna ficou mais fraca e finalmente se apagou. — Ótimo – acrescentou Caleb. Mas quando dormiu pensei na Cidade de Areia e no homem que esperava lá. O rei sempre havia sido uma figura reconfortante para nós, um símbolo de força e proteção. Mas, naquele momento, seu Retrato do colégio, em que se destacavam suas flácidas feições e reluzentes olhos que pareciam me perseguir, parecendo me ameaçar. Por que havia me escolhido para ter seus filhos se era mais velho que eu mais de trinta anos? Por que eu dentre todas as garotas do colégio? As professoras diziam que o rei era uma Exceção, o único homem em que se podia confiar. Mais uma mentira. Sabia que continuariam a me procurar. Ele não desistiria, pois o impulsionava seu compromisso com Nova América. A diretora Burns cruzava suas Mãos sobre o peito quando nos explicava o trabalho do monarca, que havia salvado o povo da incerteza depois da epidemia. O rei afirmava que não havia tempo para discutir, que teríamos que continuar sem olhar para traz, sem parar, sempre adiante. ―É uma oportunidade – repetia a diretora, com os olhos molhados de lagrimas patrióticas—, Só temos uma oportunidade de reconstrução. Minha roupa estava molhada. Espremi a bainha de minha blusa e as calças lenta e cuidadosamente, e a agua gotejou o solo. Quando era pequena, Ruby me perseguiu pelas calçadas, fazendo—se passar por um monstro de garras afiadas e dentes terríveis. Empenhada em fugir a todo o custo, corri entre os baldes de lixo, abri e fechei portas sem parar de gritar. Pedi que parasse, gritando aterrorizada, mas Ruby achava muito engraçado. Quando me alcançou, cai sem folego. A

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brincadeira havia sido muito real. Jamais esqueci o terror que senti ao ser capturada. Me encolhi na fina manta e fechei os olhos, sonhando com o conforto de minha antiga cama, cujos lençóis brancos me convidavam a dormir. Não senti o odor familiar da carne de veado do jantar, as soleiras das janelas da biblioteca, onde Eu, Pip e Ruby nos sentávamos para escutar a fita proibida da Madona escondida por traz do volume da Arte Americana: uma história cultural; e senti o contato do velho rádio toca fitas a pilha em minhas mãos e a espuma dos fones em meus ouvidos enquanto tentava recordar a canção que falava de um homem em uma ilha. Estava pensando nos movimentos de Pip, distraída em uma espécie de baile secreto quando ouvi um ruído do lado de fora. Me encolhi em um canto. Caleb continuava dormindo; o rosto estava relaxado por causa do cansaço. Ouvi de novo o ruído: Três galhos se partiram. — Caleb— Sussurrei. Mas ele não acordou. Fechei os olhos enquanto o ruído se ouvia mais próximo, cobri o rosto com a anta e fiquei tensa, morta de medo. Um click, uns ramos quebrados. O inconfundível som da pisada na mata. Afastei a manta de meu rosto e fiquei paralisada. Não podia me mover. Havia alguém fora do helicóptero, a poucos metros de mim, uma silhueta recortada contra a lua.

E estava me olhando.

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Dez A manta escorregou de meu rosto, eu não me atrevi à pega— la nem a me mover por medo de ser vista. No outro extremo da cabine, Caleb se voltou, e a imensa casca de metal balançou. A silhueta deu um passo e apoiou a mão na porta quebrada. Fechei os olhos temendo o que se aproximava: uma fria pistola apontada, algemas me prenderiam os pulsos... — Eve— Sussurrou por fim uma voz familiar. Olhei pela janela quebrada: Arden tinha a roupa encharca e os cabelos colados na cabeça. Por baixo da tênue luz, distingui seu rosto, crispado despreocupação. — Está ai? Está bem? — Sim, sou eu. — Apareci em um lugar visível sob a luz da lua—. Estou bem. Subiu em um salto para o helicóptero, afundando as botas no lixo. Me deu um olhada em seguida reparou em Caleb dormindo, como se uma pergunta que tivesse em mente tivesse sido finalmente respondida. Por fim se instalou em um assento. — Você voltou... — Mexi na lanterna de plástico sem tirar os olhos de Arden, que tremia de frio e pingava como se tivesse acabado de sair do rio. Dei-lhe minha manta. Ela se abaixou sobre uma caixa e abriu um pacote de comida desidratada. — Enfim... — Encolheu os ombros— Estou morta de fome. Mordeu uma cenoura seca, sem tomar conhecimento de mim. — Estava preocupara comigo? — Perguntei me inclinando para ela. Parou de comer e virou a cabeça para observar Caleb. — Não— se apressou em dizer — Mas não sabia se estaria a salvo com ele. Quis lhe dizer que lhe importava minha segurança, e que por isso a resposta certa era sim, estava preocupada comigo, mas me contive. Ao ver sua roupa encharcada, me perguntei se não a havia julgado mal. Talvez fosse algo mais do que a garota que levou anos insistindo que preferia comer sozinha a perder tempo com as outras. Tirou os sacos de alumínio vazios e soltou um breve arroto.

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— Quer a manta? – perguntou oferecendo—a, e, momentaneamente ficou pendurada como uma cortina entre nós. Neguei com a cabeça e disse: — Fique com ela. A luz da lanterna atenuou porque restava pouca carga na bateria; antes de se apagar de todo e de ser vencida pelo sono, a última coisa que vi foi o rosto pálido de minha companheira. No dia seguinte Caleb se adiantou e foi afastando o mato com facão para abrir o caminho. Esperamos que seu cavalo voltasse para a margem, mas quando o sol saiu, tivemos que partir. — Levaremos todo o dia para chegarmos até o acampamento – informou– com um pouco de sorte estaremos lá antes da noite. Caminhamos por uma rua coberta de musgo. O sol havia saído compondo um amanhecer rosa amarelado, mas nesse momento o céu voltou a cobrir com nuvens. — Não podemos ficar muito no acampamento – disse dignando—se a conversar com Arden— Servirá para nos abastecer, mas devemos seguir caminho para CALIFIA. Seguia obcecada com o encontro com os soldados do rei. Ainda era muito cedo e não havia rastros do 4x4, olhava com frequência para traz e estremecia ao ouvir os estridentes trinados dos pássaros nas copas das árvores. Arden espantou uma mosca com a mão. — Não me importo que me diga – murmurou e começou a tossir e espirrar – Este caminho tem partes mais fáceis? — perguntou ao mesmo tempo em que afastava um galho de seu rosto. — Não demoraremos a encontrar um povoado. – Caleb se abaixou para passar por baixo de um galho — Cuidado. – E olhou para o céu, coisa que fazia continuamente. Antes de começarmos a andar, Eu e Arden tivemos que aguardar, enquanto brincava com uns gravetos na terra e observava durante vários minutos as sombras que projetavam. Após decidiu qual a rota que devíamos seguir como se tivesse conversado com a terra em um idioma estranho que nós ignorávamos. — Parece que consulta um relógio – E apontei para o sol. — Claro, é minha bússola e meu calendário. — E levou o dedo ao queixo em uma surpresa fingida – Pelo visto existem coisas que não sabe... Me voltei para observar Arden, que limpava a sujeira das unhas, sem interesse em nada. Me convenci que Caleb era melhor para nossa segurança: havia

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ficado comigo no rio e me havia escondido no helicóptero, ainda não entendia porque? Não compreendia suas motivações nem acreditava que podíamos confiar cegamente nele. Também não gostava da forma que zombava de mim, nem na sua insistência na noite anterior de fazer perguntas que não queria responder. — Escuta, Caleb – Falei dizendo seu nome – Agradecemos sua ajuda, mas não te pedimos nada. — Sim, já me disse isto antes: faz uma hora..., esta manhã... e quando aceitou ir para o acampamento – respondeu ele – Vocês ficarão uma noite, se abastecerão com nossa comida, e logo as acompanharei até a Estrada oitenta para que continuem até Califia. Já entendi perfeitamente. Nos conduziu até outra estrada que desembocava em uma fila de casas arruinadas. O rio as havia inundado, deixando uma marca marrom na altura do telhado a trinta centímetros acima das portas. Sobre uma fachada de tijolos havia mensagem escrita com Spray: Estou morrendo, Socorro. — Têm fome? Perguntou Caleb. Sem nos dar tempo para a resposta, subiu uns degraus podres e entrou na casa. — Suponho que seja a hora de comer... – murmurou Arden, e o seguiu. O chão de madeira do interior da casa estava tombado e partido, nas paredes crescia um mofo negro. Tapei o nariz com a camiseta para me proteger do odor. Em um canto do lugar havia um gigantesco armário do que não sabia o que, cujo o painel dianteiro caído tinha uma forma de estrela. — Que isso? – quis saber, apontando—o. Caleb voltou para sala pisando em livros encharcados e montes de coisas apodrecidas, Eu e Arden o seguimos com certa cautela. — Uma televisão – respondeu quando chegamos perto da porta da cozinha. Concordei, ainda conhecia a palavra vagamente. Tinha a aparência de ter contido algo valioso. O desgastado sofá estava em frente dele, como se a família se sentasse em frente dele para olha-lo. Todos os armários da cozinha estavam abertos e as estantes cobertas por plásticos sujos e latas vazias. Havia várias poltronas jogadas ao chão, cujos assentos deixavam a vista suas entranhas cinzentas e mofadas; o teto caia em pedaços. — Vai com cuidado – sussurrou Arden, me puxando e apontando um buraco no chão que por pouco não havia caído.

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Caleb pulou uma vala e se dirigiu a uma escada que conduzia a um porão escuro. — Vou ver se a algo lá embaixo. Enquanto Arden perambulava pela sala, me aproximei de uma geladeira que se encontrava em um canto, sobre a qual havia algumas fotografias e retratos antigos. Em uma das fotos se via um casal jovem com um bebê nos braços; a mulher tinha a franja colada em seu rosto suado, mas a câmera havia captado seus grandes e brilhantes olhos. Abaixo havia um desenho infantil de uma família: os três, o pai, a mãe e a menina estavam cercados por perversos fantasmas, com os contornos pintados a lápis. Durante aqueles últimos dias junto a minha mãe, eu desenhava tudo o que me ocorria. Me sentava no andar de baixo, diante de minha mesinha de plástico azul, pegava um papel e pintava coisas para ela: desenhos em que estávamos em um parque infantil próximo a casa, como era o carrossel em ela me fazia dar voltas e voltas sem parar. Também a desenhava na cama e punha um médico com uma varinha mágica em suas mãos para que a curasse; outras vezes a representava fora de casa com uma cerca para que o vírus não entrasse. Uma vez feitos, eu os deslizava por baixo da porta de seu quarto para que os visse: seus presentes especiais. ―Beijos – dizia ela, dando pancadinhas do outro lado da porta – Daria um milhão de beijos se pudesse. Olhei para o rosto da mulher uma última vez e voltei para a sala vazia. Ouvi um ruído em cima e senti curiosidade. — Arden... — Chamei, e sai silenciosamente. O chão rangia a cada passo, e uma brisa gelada entrava pela janela aberta. Onde esta você? Entrei em um minúsculo banheiro sem telhas nem piso. — Arden! – Insisti, o eco repetiu minha pergunta. Ao fundo do corredor havia uma porta entreaberta. Me dirigi para ela, e no caminho passei por um quarto em havia uma cama quebrada e as molas do colchão estavam a vista. Me aproximei, junto a parede. O papel de parede havia se soltado em algumas partes e roçava meus ombros nus. Meu pulso se acelerou e comecei a transpirar. Havíamos entrada em uma casa com pressa, mas devíamos ter pensado duas vezes antes de irromper por ela. Sempre havia a possibilidade de que nos vigiassem.

A porta entre aberta estava queimada. Olhei o que havia dentro: era um quarto de criança com um baú cheio de brinquedos empoeirados e as paredes

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pintadas de um azul brilhante. Havia bichinhos caídos sobre a pequena cama. E peguei um ursinho manco que devia ser muito velho antes até do que a epidêmia. Tudo aconteceu muito rápido: ouvi passos a minhas costas e cai ao solo com um baque surdo. Gritei quando alguém oculto por uma mascara de palhaço se colocou em cima de mim, me aterrorizando com seu desfigurado sorrido vermelho. — Não me mate, por favor! – implorei – Não me mate! O palhaço se deteve um instante, pressionando meu ombro contra piso quadriculado. Logo ouvi risadas sufocadas. Arden retirou a mascara e caiu sobre mim se contorcendo em risadas. — Por acaso é maluca? – reclamei, e me levantei de um pulo—. Por que fez isso? Caleb apareceu na porta, transtornado. — Que aconteceu? Ouvi você gritar. — Levava uma lata enferrujada em cada mão. Apontei para Arden, que virou para o lado enquanto dava grandes gargalhadas. Acabou chorando de rir e secando as lágrimas com as dobras da camisa. — Arden me deu um susto de propósito. Isto foi o que aconteceu. Caleb olhou para nós duas. Tentou dizer algo, mas não foi capaz de articular uma palavra. Meu coração parecia que ia saltar do peito. — Não tem graça – exclamou por fim –Se tivesse uma faca poderia ter te matado! Andei de um lado para outro, batendo as mãos para enfatizar as palavras. Arden se ajoelhou e dobrou as costas e encostou o rosto no chão —. Arden olhe para mim; Se importa de levantar—se e me encarar? — Gritei. Caleb me segurou pelo braço e me obrigou a afastar—me. No entanto, ela segui de cabeça baixa, seus cabelos eram um emaranhado de fios. Retorcendo—se, bateu no chão com a palma da mão. —Arden... – repeti mais amável. Tinha os olhos fechados e a face contraída. Se levantou afinal, respirando com dificuldade. Estendi—lhe as mãos, mas ela não as apertou, sendo que, fazendo um grande esforço, se curvou até se converter em um novelo. Tossia muito forte; não mais nada que seus estertores. Me agachei e apoiei minhas mãos em suas costas, enquanto ela tinha convulsões, tentando liberar os pulmões do peso que a sufocava. Quando se acalmou, ambas baixamos os olhos.

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Ela tinha as mãos ensanguentadas.

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Onze —Ontem a noite estava encharcado-expliquei a Caleb quando chegamos à floresta que rodeava seu acampamento. As tosses Arden se tornaram mais violentas à medida que avançávamos, e seu passo ficou mais cansado, até que parou de caminhar. O garoto e eu fazíamos turnos para leva-la em um carrinho que ele havia encontrado, cujo em um dos lados havia escrito o nome RADIO FLYER. Enquanto os dentes batiam se inclinou na borda do carrinho para empurrar o muco sangrento dos pulmões. Acabou caindo adormecida, prendendo entre os braços as latas de comida resgatadas do lixo— Certamente se infectou no rio e na chuva. —Conheci um garoto que se infectou assim — comentou Caleb. levantamos entre nós dois; os braços caíram sobre os nossos ombros.

A

—E o que aconteceu? —perguntei, mas ele não respondeu— Ouviu-me Caleb? —Tenho certeza que isto é diferente — afirmou, ainda que detectei tensão em seu rosto apesar da escassa luz do anoitecer. —Eu estou bem — murmurou Arden, tratando-se de por direita. Tinha deixado saliva seca nos cantos dos lábios. Caminhamos pelo espesso bosque cinza, entre folhas que me faziam cócegas no pescoço. Os animais corriam embaixo da grama, e ao longe uivou uma matilha de cães selvagens famintos. Por fim o bosque desembocou num claro, e descobri a visão mais deslumbrante da minha vida: em nossa frente estendia um lago imenso em cuja superfície escura se refletia mil estrelas. —O lago Tahoe — informou Caleb. Ergui a vista para observar as estrelas brancas piscando. Algumas delas brilhavam tanto, que pareciam quase azuladas; outras borradas na distancia como poeira cintilante. —Que esplendor! —Mas a palavra não bastava para descrever o assombro que senti naquele momento, dominada pela imensidão do céu— Olha Arden. —Lhe dei um ligeiro empurrão. Gostaria que tivesse meus quadros e pinceis para capturar ainda que só fosse uma levíssima impressão daquela cena. Mas ali só estamos nós, o negro anel de terra e a brilhante abóboda celeste. Mas ela se limitou em fazer uma careta, presa na dor.

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—Onde está o acampamento? —perguntei, amedrontada por causa do assombro inicial— Devemos leva-la para dentro. —Ali esta ele — respondeu Caleb, aproximando-se de uma íngreme e lamacenta encosta, coberta de matos e galhos quebrados. Confusa, olhei o garoto, que pegou um pedaço de madeira podre escondido na terra e, tirando dele, deixou descoberto uma tabua do tamanho de uma porta. O abriu batendo. Depois dele tinha um buraco que penetrava em um lado da montanha. —Vamos — disse indicando-me que entrasse. Encolhi o estomago, e a minha cabeça deu voltas. Em frente à escuridão regressaram todos os meus medos, pois já me havia arriscado muito ao seguir quele garoto. Não me imaginava que o acampamento fosse uma caverna. Sobre a terra, sempre poderia lançar a correr, mas ali embaixo e no escuro... —Não... —murmurei retrocedendo—Não posso. —Eve, sua amiga precisa de ajuda... Imediatamente—Me estendeu a mão— Entra. Nada vai te machucar. Arden estremeceu ao meu lado; tossiu e abriu os olhos um instante para dizer algo que soou Cuidado. Apoiou-se em mim, e eu, tremendo as mãos, a guiei pelo tenebroso túnel. Caleb fechou a porta atrás de mim. —Por aqui — indicou ele, abaixando-se para que Arden apoiasse o outro braço em seus ombros, e assim ajudar-me a leva-la. Avançamos na escuridão; a fria parede de terra me arranhava o lado, e notava a dureza do chão em baixo dos meus pés. —Este túnel... Você que encontrou? —perguntei, e minha voz ressoou na caverna. Caleb virou à direita e nos conduziu por outro túnel, procurando o caminho na escuridão. —O fizemos. —Ouvi ruído de gente a certa distancia. Murmúrios, barulho de panelas, risos baixos. —Construíram um túnel na montanha? —insisti. Arden voltou a tossir; os pés já não à mantinha. Caleb guardou silencio um pouco. —Sim — afirmou enfim, e notei sua respiração enquanto andávamos— Depois da epidemia, me levaram a um orfanato improvisado em uma igreja abandonada. Os meninos, garotos e garotas, dormiam nos bancos e nos armários, e

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às vezes nos juntávamos de cinco em cinco para se aquecer. Só lembro-me de uma pessoa adulta: a mulher que nos abria as latas de comida; chamava-nos de restos. Alguns meses apareceram os caminhões e levaram as garotas aos colégios. Os garotos foram para acampamentos, que eram campos de trabalho, onde nós passávamos o dia inteiro construindo de tudo. —Quase cuspia as palavras, sem tirar a vista do chão. —Quando você escapou? —perguntei. Avançávamos pelo túnel em direção a uma luz que brilhava mais enquanto nos aproximávamos. —Faz cinco anos. Estavam começando a escavação quando cheguei — explicou Caleb. Eu queria perguntar-lhe mais coisas, saber quem o havia o organizado e como, mas me dava medo de insistir. Dobramos uma curva e a passagem desembocou em uma ampla sala circular na qual havia uma fogueira no centro. A caverna me lembrava a toca de um animal. As paredes de barro estavam revestidas de lajes cinza, e do recinto central saiam outros quatro tuneis. Antes que seguíssemos avançando, uma flecha me roçou o rosto e a ponto de rasgar-me uma orelha. —Olha onde você anda! —exclamou rindo um garoto, de músculos grandes e fibrosos, e se aproximou da parede que tínhamos ao lado, onde dois gigantescos círculos formavam um alvo. Cravou os olhos em mim enquanto arrancava a flecha em seguida. Nu da cintura pra cima, um grupo de garotos rodeava a fogueira. Quando viram Caleb, se puseram a gritar. —Não sabíamos onde você estava — disse um deles, de espessos cabelos negros recolhidos na parte de cima da cabeça. Os demais golpearam o peito com os punhos um modo de saudação primitivo. Me arrepiou a pele quando repararam em mim e me olharam sem piscar. —Ao menos a caça foi um sucesso — comentou o da flecha, fixando em minhas pernas nuas e na camisa de manga larga que caía sobre meu peito. Cruzei os braços, desejando ter algo mais com que me cobrir— Olha o que temos aqui, rapazes! Uma senhorita... —Se aproximou, mas Caleb levantou a mão para-lo e o advertiu: —Já basta, Charlie. Outros dos garotos, de uns quinze anos, saíram de um túnel lateral carregando um javali. Deixaram a presa no chão e, atrás deles, ficou uma trilha de sangue coagulado a partir das entranhas do animal. —Leif tem conhecimento? —perguntou um garoto alto e magro, que usava óculos quebrados. —Não tardará para ouvir — respondeu Caleb.

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Outro dos ali presentes se ajoelhou junto ao animal morto e afiou duas facas entre si; o ruído agudo e áspero que produziu me pôs os cabelos em pé. Olhou Arden de cima abaixo e, quando se cansou dela, voltou a concentrar-se no javali e fez um corte no pescoço. Lascas de ossos lhe saltaram ao rosto. Fincava a faca uma e outra vez descontroladamente na junta entre a cabeça o corpo do animal. A cada golpe eu estremecia. Não parou até que a cabeça do javali se desprendeu e rolou pelo chão. O animal, que uma névoa cinza velava as pupilas, me olhava. Senti vontade de correr pelo corredor, refazer o caminho, de não parar até estar em pleno ar livre. Mas Arden continuava invalida a meu lado, e lembrei por que estávamos ali. Em quando ela melhorasse, nos iríamos muito longe daquele doentio refugio subterrâneo habitado por uns garotos que me olhavam como se quisessem devorarme. Um jovem corpulento, de cabelos loiros emaranhados, jogou lenha no fogo e examinou a frágil figura de Arden. —Podem ficar no meu quarto — ofereceu rindo-se, e eu balancei a minha protegida - Não tenho nenhuma objeção em dividir a cama. —Não vão ficar no quarto de ninguém — gritou uma voz rouca— Não vão ficar e acabou. Um garoto maior saiu de um dos tuneis. Usava calças que chegavam abaixo do joelho; um cabelo cacheado cobria seu peito, ele recolheu o cabelo — negro— em um coque que deixava descoberta a parte superior da costa, sulcada de grossas cicatrizes. O seguia uma fila de garotos maiores, que se dispersaram pela sala. Do medo que tinha, tive arrepios. Eram uns dez, todos mais altos e gordos que eu, e tinham cara de poucos amigos. —Isto não vai bem — murmurou Arden. Caleb se colocou entre e nós, e manifestou: —Não a nada que discutir, Leif. As encontrei no bosque. A garota foi atacada por um urso — Baixei a vista para se esquivar das olhadas—Tem que ficar. Uns grossos cílios negros rodeavam os olhos de cor castanho escuro de Leif, que sentenciou: —É muito perigoso. Já sabe como o rei fica com o assunto das cerdas. Com certeza a estarão procurando. —Se aproximou, parando a uns poucos centímetros de Caleb. Estava tão perto que vi pedaços de folhas entre seus cabelos, e percebi o cheiro de cinzas que saiam de seus tensos e musculosos braços. —Cerdas? —sussurrou Arden, cujo quente respiração roçou meu pescoço—Isso é o que somos?

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—Assim é como eles nos chamam — respondi—Mas não somos. O grupo de garotos nos rodeou, bloqueando nossa via de escape. Arden tossiu, estremecendo o corpo por causa do esforço. —Esta doente? —perguntou um garoto desdentado, suavizando o gesto. Me fixei na tatuagem que levava no ombro: um circulo com o emblema da Nova América, igual a de Caleb e no mesmo lugar. Dei uma olhada e percebi de que todos os garotos eram tatuados. —Muito — respondi. Retrocederam ao ouvir esta palavra e cochicharam; um garoto baixinho e bochechudo disse algo que soou à epidemia. Arden ergueu a cabeça e a apoiou em meu ombro. Caleb continuava frente à Leif. —Se a deixarmos, a garota morrera. Não deixarei. Leif fez uma careta de desagrado que me lembrou dum cão rabugento. —Ficarão no quarto de hóspede, separadas dos demais — disse enfim. Arden que quase não podia levantar a vista se limitou a olhar-me com os olhos semicerrados—. Não podem subir a superfície sem permissão. E nada de bisbilhotar ou andar incomodando. Entendido? Deu uma olhada no garoto que estava a seu lado, que carregava uma pilha de tigelas. Como se fosse algo instintivo, o rapaz se ajoelhou e, enchendo-as de feijão de uma panela que estava no fogo, e os entregou a Leif. Dei um passo, e meus olhos caíram à altura de seus enormes ombros. Me ofereceu uma tigela. Eu a peguei, mas ele não soltou. —Bem vindas — disse em um tom que significava tudo ao contrario. Empurrou-me e examinou meu rosto até que percorreu com a vista meus peitos, minha cintura e minhas pernas. Senti uma onda de pânico e puxei a tigela para me livrar daquele olhar. O soltou de repente, e eu caí para trás. Os feijões derramaram sobre minha camisa. Outro garoto começou a rir às gargalhadas. Minhas bochechas arderam, observei a mancha. Não bastava que eu me sentisse desprotegida naquele acampamento, nem que Leif me aterrorizasse, mas Também tive que me humilhar. —Vamos — disse Caleb, pegando a janta para Arden—Vou mostrar o seu quarto. —Rodeou com um braço Arden, e caminhamos por um túnel iluminado por filas de lanternas colocadas no chão—. Leif é assim — sussurrou. Verei a cabeça e vi que este dava um chute na cabeça do javali. Os garotos

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recomeçaram suas atividades: de mais alto lançou outra flecha, dois rapazes muito magros se puseram a lutar, enquanto outros se dedicavam, ativamente, a colocar pedaços de carne em palitos afiados. Me lembrei de O senhor das moscas e do dia em que a professora Florence nos havia lido a cena em que Simon é atacado pela horda de garotos selvagens obedecendo ao líder da quadrilha. "―Quando os homens estão isolados, e o único incentivo é a violência dos demais, é quando são mais perigosos”, havia dito a professora sentada na borda de sua mesa, com o livro aberto sobre o colo. Lembrei o coro de gritos, os olhos que desnudavam po com avidez, a troca de sussurros..., e supus que algumas coisas das que nos haviam dito eram certas. Apesar de tudo.

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Doze —Quer mais? —perguntei segurando a colher de feijão diante dos lábios rachados de Arden. Murmurou algo parecido com um não, se pôs de lado, tirou a colcha das pernas cheia de manchas e fechou os olhos. Toda noite era assim. Ela acordava de vez em quando, pedia comida e água e depois desmoronava no colchão afundado. Às vezes se retorcia de calor, queixando-se de um mal estar que subia pela coluna. Caleb havia trazido arrastando uma banheira cheia de água do lago, e eu havia conseguido manter Arden acordada o tempo suficiente para limpar o suor que lhe impregnava a pele e tirar-lhe as folhas do cabelo com um pente quebrado. A caverna de terra estava no final de um dos tuneis principais; era uma estadia sufocante que contava com um colchão e uma mesa cheia de livros infantis amarelos. Verifiquei as gavetas da mesa procurando, contra toda a lógica, medicamentos. Como no colégio tínhamos muitíssimos, nunca me havia dado conta de seu valor. Dávamos por sua existência e a facilidade para tratar qualquer problema: a tosse, uma infecção, um corte feito por um farol quebrado... Dispúnhamos de pastilhas, de injeções para anestesiar a pele antes de te darem pontos de sutura, e de doce xarope de cor rosa chiclete que se deslizava pela garganta. Quando Ruby caiu paralisada no jardim devido a uma perfurante dor no lado, levaram-na à enfermaria, de onde saiu dias depois usando uma marca de costuras negras na barriga, no lugar onde lhe haviam retirado o apêndice. ―O que lhe haveria ocorrido fora dos muros do colégio? Perguntamo-nos em voz alta enquanto lhe examinávamos a cicatriz. Maxine sugeriu que teria que remove-lo, seguramente com umas tesouras enferrujadas. Não,vocês estão enganadas —corrigiu a diretora, que vigiava as nossas mesas no corredor para verificar de que todas tomássemos as vitaminas—Simplesmente haveria morrido. Retirei o espesso cabelo preto do rosto de Arden e notei a sua pele queimava. Lembrei então a primeira vez que havia visto: nos anos posteriores a epidemia, chegavam novas alunas de vez em quando; algumas delas apareciam na floresta e outras eram enviadas por adultos que não podiam cuidar delas. Arden era uma garota alta que vestia um gasto vestido azul, uma menina de oito anos que havia entrado pela porta lateral do colégio três anos depois que eu. Ficou um mês na sala de quarentena, só, igual a todas nós quando chegamos. Pip e eu a havíamos observado pela pequena janela de vidro da porta, enquanto escovava os dentes; cuspia a espuma branca na lata de lixo, mas não sabíamos se seria diferente de nós. Era um jogo habitual entre as alunas: todas parávamos em frente esta sala quando passávamos pelo corredor, olhando para ver se apareciam os reveladores

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hematomas azuis em baixo da pele, ou esperando que o branco do olho adquirisse um tom amarelado como consequência do muco. Mas nunca ocorreu nada semelhante. Arden dava voltas na cama e se queixava com uma profunda voz gutural que me aterrorizava. Lembrava-me a minha mãe ao final de sua vida, cujos sintomas repassei mentalmente na escura e fria sala. Arden tinha perdido peso, ainda que não de forma exagerada; não sofria hemorragias nasais, nem tinham inchado suas pernas, nem tinha bolhas de pus, coisa que haveria formado poças em torno de seus pés. Sem dificuldade, tinha umas tosses espantosas, os calafrios a estremeciam, pós os olhos em branco... Apertei-lhe a gélida mão, desejando que melhorasse, acordada e mais viva que nunca, que me dissesse que não rondasse ao seu redor e que me espantasse com um gesto. Mas nada. Somente outro estremecimento nas pernas, outro gemido. Pronunciei as palavras que não havia dito a minha mãe, as que me queimava a garganta aquele dia de julho em que os caminhões cruzaram a barricada, as que desde então se havia deixado aqui, junto ao meu coração, convertidas em um grande quadro. Minha memória regressou a época de meus cinco anos, quando descia a escada sem fazer barulho: minha mãe tinha deixado de esperar que os médicos a visitassem depois de escutar nas noticias que só atendiam os ricos. Aquele dia abriu a porta de seu quarto e eu corri abraça-la, mas me tampou a boca com um lástico e me arrastou até a rua, gritando com a voz afogada, pedindo aos caminhões que parassem. Agarrei à caixa de correio quando ela voltou correndo para a casa, sem beijar-me sequer por medo do contagio. Tentei agarrar-me ao poste de madeira, mas me soltaram dele e me colocaram na parte de trás do caminhão; caí indefesa entre os fortes braços da mulher que me segurava. —Por favor, não me deixe — pedi a Arden com os olhos fechados, balançando com o som da minha própria voz. Lhe apertei a mão outra vez e a coloquei de boca pra cima—Preciso de você. Como não se moveu, afundei a cabeça na almofada e me rendi às lagrimas. Talvez nunca mais se recuperasse e talvez nunca regressássemos juntas a estrada que conduzia à Califia. Horas depois uma luz cegante me acordou. Havia alguém na porta do quarto, apontando o meu rosto com uma lanterna. A silhueta se moveu e a luz iluminou o chão. Esfreguei os olhos, tratando de identificar a minúscula figura que tinha em frente: apenas me chegava a cintura, os cabelos lhe caiam sobre os ombros, e um amplo e vaporoso tutu lhe rodeava a cintura. Pisquei na escuridão, mas a pessoinha continuava ali, era real, em vez de ser fantasmagórico resto de um sonho.

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—Como se chama? —perguntei a menina, enquanto minha vista se adaptava a escuridão. Ele retrocedeu— Venha, se aproxime. —Fiz um gesto com o braço para anima-la, mas antes que pudesse adicionar nada, saiu correndo pelo corredor em penumbra. Levantei na cama, totalmente acordada. Não sabia como havia entrado a pequena naquele acampamento masculino, mas compreendi que tinha que segui-la. Fui correndo ao corredor: ela se distanciava pelo túnel, apenas visível entre as luzes das lanternas. —Espera! —gritei — Volte! Desapareceu atrás de uma brusca curva. Contemplei o corredor vazio: o túnel corria entre curvas e as percorri, procurando através dos ocos negros dos lados, nos que dormiam os garotos. A menina continuava correndo na minha frente. Em um dado momento, o túnel se dividiu, e ela virou por um caminho escuro. Fui atrás da pequena, acelerando o passo. —Não vou te fazer mal — sussurrei, urgente—Pare, por favor! Eu andava com rapidez e facilidade, mais rápida que nunca. Me sentia bem estar de pé, mover-me; a cada metro que corria, minha mente se acalmava, e não ouvia mais o som da minha própria respiração. Não tardei muito em ver a difusa silhueta diante de mim. Então me encontrei ante uma nova curva do túnel, que desembocou no exterior embaixo de um céu cheio de estrelas. A menina correu entre as árvores, gritando como se si tratasse de um divertido jogo. Fui atrás dela até que chegou à outra encosta da colina e se meteu em um vasto terreno de elevados arbustos. Inclinei para respirar, quase vencida pelo esforço. Quando me levantei, me dei conta de que a menina tinha desaparecido. Me encontrava só na escuridão e fora do refugio. Não devia continuar; seria uma loucura vagar pelo bosque, procurando à pequena pelas colinas. Se pudesse retornar ao túnel, contaria a Caleb que aquela criatura havia escapado e estava só. Mas quando dei a volta, não vi mais que sombras. Caminhei para as arvores, mas a floresta era demasiada densa. As folhas sussurravam embaixo dos meus pés e os galhos rangiam sobre minha cabeça. Quando cheguei ao lugar que achei que estava a saída, não encontrei a colina, mas uma costa rochosa que descia até o lago. Girei e corri para o outro lado do bosque, quase sem respiração, lembrando-me de quando estava junto ao rio, molhada da chuva e os soldados que me caçavam com as armas na mão, e de quando vi Caleb de costa diante de mim, meu rosto no anuncio, as palavras que Arden tinha pronunciado: Pertence ao rei. Como podia ter sido tão estúpida e ter abandonado o refugio e saído em plena noite, enquanto os soldados continuavam me procurando? Haviam me advertido.

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Diante de mim se elevava um muro rochoso de uns três metros de altura. Comecei a correr tão depressa para ali, que estava a ponto de chorar contra ele. Devia encontrar-me atrás da montanha, mas a escuridão não permitia comprova-lo. Caminhei junto ao muro na esperança de rodear o montinho cheio de grama que ocultava a entrada do refugio quando ouvi um ruído atrás de mim. Não tive tempo de virar-me nem de correr. Em um instante uma mão me pegou o braço. —Que diabo faz aqui? —perguntou Leif, sacudindo-me. A difusa luz das estrelas apenas permitia ver rosto tenso. Tentei soltar-me, mas me segurou com mais força—.Te disse para não sair do refugio. —Já sei — murmurei, atormentada pela dor que sentia no pulso—Sinto muito. —Não me atrevi a adicionar nada mais. Nem sequer me atrevia a respirar. —Quem te disse que podia sair? —me agarrou. Seu lábio superior esboçava uma careta de desgosto, deixando descoberto um dente quebrado—Por acaso foi o Caleb? —Não, não... Saí atrás de uma menina, que começou a correr e desapareceu por aqui, mas não... —Uma menina? —Leif riu, ainda que o riso soasse mais bem um escarnio—No acampamento não tem meninas. —Esta me machucando — disse, mas ele não soltou meu delicado pulso. Me arrastou para frente; seus energéticos passos ressonavam no caminho. —Cometeu uma estupidez saindo. Por isso estou de guarda. Durante a noite somos mais vulneráveis..., acima de tudo tem vocês. —Eu sei — afirmei, cansada do assunto. Enquanto puxava e para a encosta oposta da colina, senti como se me paralisava a circulação do sangue na mão devido a preção que exercia com os dedos. Por fim me soltou. Apalpou a lateral de um montículo coberto de grama, e me revirou o estomago ao pensar no que podia fazer-me. Mas retirou um pedaço de madeira, revelando outra entrada ao refugio. —Esta noite eu vi os soldados — disse com calma, para que me inteirassebem das palavras—. Fazia meses que não apareciam por aqui. E, de repente, estão aqui, percorrendo aquela saída —Mostrou uma montanha atrás das árvores. Esperou que eu dissesse algo, talvez que raciocinasse e me desculpasse; e ainda que o tentei, não consegui pronunciar a palavra. —Vamos, entra—rosnou— Não queremos que aconteça nada a nossa querida Eve, verdade?—Seus olhos eram frios pedaços de mármore negro afundados nas bacias.

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—Não — respondi desviando seu olhar— Claro que não. —Me meti no túnel, encantada de livrar-me dele. —Seu quarto é o terceiro à direita — indicou. Em seguida a pedra coberta de musgo se fechou na minha costa e me trancou de novo no estreito corredor. Quando cheguei à caverna, me aliviou ver o resplendor do familiar rosto de Arden a tênue luz da lanterna. Ainda assim me estremeci; tremia e notei o coração a ponto de arrebentar. Leif havia indicado onde estava meu quarto muito rápido. Rápido demais. Mantendo a costa colada na fria parede, ouvi ecos no túnel e temi que aqueles olhos negros, parecidos com duas gotas brilhantes, aparecessem e me pegasse quando menos o esperasse.

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Treze Caleb e eu cavalgamos pelo bosque, contornando as árvores. Depois de ter visto os soldados na noite anterior, os garotos maiores haviam estado de guarda o dia todo, vigiando para que não houvessem voltado à área. Ninguém falou comigo, ninguém se atreveu sequer a me olhar. Até que encontraram rastros recentes de pneus na estrada que saía do lago, não acabou meu confinamento. Caleb apareceu em nosso quarto quando estava atendendo Arden, e me convidou a sair da casa com ele. Não me importou ter que colocar roupa de garoto (umas bermudas de algodão desgastadas e uma camisa folgada), nem arrumei o cabelo para esconder. Alegravame sair ao ar livre e longe da úmida cova, do covil subterrâneo e da besta do Leif. Quando chegamos a um lugar limpo com grama, Caleb esquadrinhou as árvores e a borda rochosa. —Por aqui não tem nada. —Fez girar o cavalo— Teremos que encontrar um posto de observação. O céu, de uma intensa cor laranja, estava cheio de vaporosas nuvens recortadas de vermelho. Seguimos o rastro de um javali por um campo e uma pedreira, até que um desprendimento de uma pedra o assustou. Em seguida decidimos procurar um veado. Montei na garupa do cavalo, desfrutando da liberdade de estar em campo aberto. Mas o encontro da noite anterior seguia rodando em minha cabeça. —Seu amigo Leif... —comentei, tratando de reconstruir a relação de Caleb com ele: como podia viver e trabalhar, dia atrás dia, com semelhante bruto? Havia conhecido Caleb há dois dias e ainda não o havia visto atuar de forma suspeita: não havia me abandonado no rio, nos tinha proporcionado café da manhã e comida para Arden e a mim, além de toalhas e água da chuva limpa para nos lavarmos, e ainda tinha arrumado nosso quarto enquanto dormíamos— Seu amigo Leif é um verdadeiro encanto —conclui incapaz de esconder a ironia. O garoto tirou a vista do rochoso precipício que tínhamos a frente; levava a aljava com as flechas no ombro. —Lamento que te assustou a noite. Enfureceu-se por causa dos soldados. —Deslizou a mão pelo pescoço do cavalo, desenrolando os nós das espessas crinas negras— Está convencido que inventou a história da menina. Não tem como argumentar com ele. —E porque iria mentir? Se a vi — disse mantendo-me atrás dele— Estava só aqui fora, e ele quase ameaçou.

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Caleb negou com a cabeça enquanto cavalgávamos pela encosta da montanha; os passos irregulares do cavalo nos faziam oscilar de um lado para outro. Ele tão pouco acreditava que eu tivesse visto a menina, mas sim a "alguém". —Leif nem sempre tem sido assim. Antes era... —Fez uma pausa, buscando a palavra correta— Era melhor. Abaixamo-nos para passar embaixo de um galho. —Custa imagina-lo. —As folhas me acariciaram as costas ao inclinar-me, mas procurei manter a separação entre ambos. Caleb mostrou ser cauteloso e ao fim disse: —Leif era divertido, muito divertido. Passávamos o dia inteiro desmontando casas, tijolo a tijolo, carregando os materiais em caminhões que os transportavam à cidade de Areia, e ele compunha canções enquanto trabalhávamos. —Virou a cabeça para olhar-me e, corando, esboçou um espontâneo sorriso. —Que tipo de canções? Do que você está rindo? Voltou a olhar para frente e respondeu: —Não creio que gostaria de saber. —Tente. —Ok, mas depois não se queixe. —Tossiu, fingindo seriedade, e cantou com uma voz totalmente desafinada—: "Minhas bolas estão suando, minhas bolas estão suando, não posso evitar que suem as bolas, nãooo, nãooo, nãooo!" Inclinei para um lado para olha-lo e reparei nas rugas que formavam ao redor dos olhos e nas tênues manchas marrom que lhe pontilhavam a bochecha. —Onde está a graça? O que é isso de "bolas"? Por acaso jogavam com bolas? Caleb jogou as rédeas do cavalo e se lançou para frente em pleno ataque de gargalhadas. —O que? O que aconteceu? Demorou um pouco em recuperar a compostura. —São... —disse esforçando-se muito— São essas coisas que... —Se interrompeu como se estivesse meditando e logo fez um gesto negativo com a cabeça— Não, sinto muito, não posso. Mas tem graça, Eve. Acredite. Queria pressioná-lo para que respondesse a minha pergunta, mas meu instinto me disse que era melhor deixar a piada assim, sem mais explicações.

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O cavalo continuou subindo pela montanha para um plano. O lago se estendia em nossa frente, refletindo o céu alaranjado, e de lá de cima víamos o campo onde tínhamos perseguido o javali, pedaços do bosque e a margem rochosa da praia. —Estão lá — exclamou Caleb, mostrando a manada de cervos que bebiam no lago. Apesar de estar muito alta, distingui a dourada pele dos animais e os chifres alcançavam as copas das árvores. O garoto guiou o cavalo para o caminho. —E o que aconteceu? —atrevi a perguntar por fim quando estávamos no meio do bosque— Refiro-me à Leif. Caleb, de corpo ágil, seguia os movimentos do cavalo, como se ambos fossem um. Notei então em uma costura desfeita de sua camiseta cinza que tinha na minha frente, e senti vontade obrigatória de esticar o braço e toca-la, mas mantive as mãos sobre o lombo de Lila. —Leif tinha um irmão gêmeo, Asher. Quando falávamos com eles, sempre se olhavam de soslaio antes de responder, como se Leif estivesse esperando a reação do seu irmão, ou este estivesse determinando se devia rir ou não. — Atravessávamos o bosque, em direção à margem rochosa— Um dia fomos trabalhar e Asher ficou doente. Agora que penso, não devia ser nada grave, tenho certeza que não. Mas os guardas tiveram medo. Ocorreu pouco depois da epidemia. — Introduziu os dedos entre os cabelos castanhos— Quando voltamos, sua cama estava vazia. Havia desaparecido. —Morreu? —perguntei. O cavalo se moveu de lugar, e eu lhe acariciei a garupa, agradecendo a sua presença quente e serena. —Não, não. O levaram ao bosque e deixaram ali. —Quem? —Os guardas. Imobilizaram suas pernas com pedregulhos. Aquela noite nós os ouvimos presumir que nos tinham salvado de uma nova epidemia. Cobri a boca com a mão e imaginei um dos garotos do acampamento sozinho no bosque, doente, com as pernas amarradas contra o chão. —Foi com se algo quebrou no interior de Leif e nunca voltou a ser o mesmo. A partir de então virou outra pessoa. —O garoto apeou, pegou o arco e as flechas, e se aproximou muito lentamente para onde estavam os cervos na margem. Alguns deles ergueram a cabeça, mas ao vê-lo tão tranquilo e calado, continuaram bebendo. Avançou um pouco mais e apontou em uma fêmea. A flecha saiu zunindo e, instantes depois, afundou no carnudo pescoço do animal. Os outros cervos dispararam enquanto a fêmea cambaleava. Caleb disparou outra flecha, que feriu o

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animal nas costas. O cervo, assustado, se meteu na água e tratou de voltar a margem, deixando um rastro sangrento. —Basta! —gritei, descendo do cavalo, com os olhos cravados nas feridas do animal— Está sofrendo. Caleb se aproximou do cervo sem se apressar. —Nada está acontecendo — disse ao animal. Manteve o pescoço com uma mão e pegou a faca— Tudo vai ficar bem. —Sussurrou algo que diminuiu o medo do veado, ele segurou a faca ao pescoço e, com um movimento veloz, ele cortou a garganta; o sangue derramou pela pedregosa margem e tingiu a água de vermelho. Lágrimas, quentes e incontroláveis, inundaram meus olhos, e estremeci vendo como se escapava a vida do animal. Eu cresci com a morte: a tinha visto no rosto dos vizinhos que arrastavam sacos de dormir pelos jardins para enterrar os seus; a havia visto pela janela do carro, nas filas de gente, de pele vermelha, que se revoltavam na frente das farmácias; a tinha visto em minha própria mãe, sangrando pelo nariz na varanda... Mas depois permaneci salva doze anos no colégio: os muros me protegiam, as doutoras nos cuidavam, levava um apito de segurança suspenso no pescoço. Quando Caleb cortou a cabeça da cerva, chorei como nunca. Ali estava esperandome como sempre: a morte, a morte inevitável, em todas as partes. Em todo momento.

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Quatorze No dia seguinte, recordo-me da morte do cervo invadindo meus pensamentos antes mesmo que levantasse a cabeça do travesseiro. Os garotos, que esperavam a chegado do animal, o trouxeram ao refugio e suspenderam-lhe num galho. Eu me apressei a entrar na caverna e atender a dorminhoca Arden. Não suportaria vê-la como uma carcaça aberta e esfolada. Acendi a lâmpada que estava junto à cama, um suave brilho resplandecente ilumino o lugar. Caleb havia nos trazido uma pilha de roupas recém lavadas no lago. Assim que me levantei coloquei uma camisa de abotoar no pescoço. Não sabia onde estava o dono dos livros infantis nem por que havia os abandonado. Em um canto da mesa havia um bloco de notas, eu o abri e li três palavras soltas: ―Me chamo Paul‖. A caligrafia era insegura e espaço entre as letras desiguais. Lembrome de que havia dito a Caleb que os garotos, em certos aspectos haviam tido um destino pior que as garotas. Fechei os olhos e imaginei Ruby jogada em uma sala de camas estreitas, onde mentalmente fazia perguntas para as doutoras com um típico de inocência ―Onde estão nossos livros? Quando iremos a Cidade da Areia? Por que nos amarram com cintas?‖ Nos haviam tirado muitas coisas, mas ao menos nos haviam dado algo: sabíamos ler, escrever e assinar. Ao todo isso me pareceu passos antigos dados com os pés descalços. Vir-meei e vi uma pessoa que se aproximava correndo e arrancou o bloco de minhas mãos. Era um garoto, de cabelo castanho claro enrolado, usava um macacão com lama sem uma camiseta por baixo. -De onde saiu?- Perguntei com calma para não o assustar- Quem é você? -Isso é de meu irmão. – Levantando o bloco como se fosse um premio. -Não pretendia espionar- Respondi sem tirar o olhar do pequeno corpo do menino. Lembrava-me as meninas pequenas do colégio: um ano mais jovens que nós, depois dois, três... As turmas iam se reduzindo até quando o rei organizou os remédios e os distribuiu aos doentes. Às vezes apareciam garotos no bosque, filhos de fugitivos da epidemia, mas eram casos raros. Havia muito tempo que não via uma criatura tão pequena. E nem conseguia me lembrar de ter visto um garotinhoEu só... -Estava aprendendo a ler- Explicou o menino, riscando o solo com o dedo gordo do pé e arrancando uma pedrinha. Não parecia ter mais de seis anos e tinha uma expressão de alguém que não sabia sorrir- Ia me ensinar, mas morreu. Olhei ao colchão, aonde Arden, cheia de suor, permanecia imóvel sobre o colchão. Ao seu lado havia um prato cheio de verduras da noite anterior.

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-O que aconteceu? Ele ficou doente?- As palavras queimava a garganta enquanto contemplava a minha amiga. -Havia começado a caçar. Caleb disse que havia ocorrido uma enchente repentina- Ao falar, folheava as paginas do caderno coberto de rabiscos tremidosPaul cuidou de mim quando nossos pais desapareceram, e me trouxe aqui. -Eu sinto- disse. -Não sei porque todo mundo diz o mesmo- Os olhos brilharam quando me olhou- Não é sua culpa. -Suponho... –Pensei nas visões que apareciam em minha mente quando dormia: via Pip em uma estreita cama com a barriga inchada, às vezes se retorcia para soltar-se das cintas e gritava para as outras garotas que estavam juntas a ela, buscando mãos que não poderia tocar. Outras vezes lembrava-me como era ela: fazendo problemas de matemática em sua mesa enquanto batia a caneta na mesa. Mas repetidamente, envolvia-se com um gesto de raiva, expondo seu perfil pálido e me perguntava, perto de mim: ―Por que fez isso? Por quê?‖. E repetia sempre as mesmas palavras: ―Eu sinto muito, eu sinto muito...‖ ate que voltava a mim, e então despertava. Tossi buscando os olhos do menino, e lhe expliquei: -É como dizer ―estou triste‖ ou ―Dói tanto em mim como em você‖. Talvez seja uma loucura, mas acontece que as pessoas falam isso. O menino me observou, fitando os cabelos que caiam sobre meus ombros, com as pontas abertas. Os penteava com os dedos para não embolar. -Me disseram que é uma garota- Comentou. Fiz um gesto afirmativo. -É minha mãe? -Não. Não sou sua mãe. Nós ficamos em silêncio. O menino beliscou a pele partida dos lábios. -Me chamo Benny- Disse ao fim, indo para a porta- Quer ver minha casa? Apresentarei-te ao meu companheiro de quarto, Silas. Pensei um instante. Voltei a olhar Arden, estava enrolada, com os olhos fechados, na mesma postura que na noite anterior. -De acordo- Respondi-o, contente de ter alguém com quem falar- Vamos! Segui-o ziguezagueando passos ente as habitações pequenas e estreitas. Havia dois colchões no chão, e carrinhos e latas manchadas de barro por todas as partes. Outro garoto de pele tostada mexia na terra com um palito, tinha cabelos

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pretos cortados de uma forma desigual, deixando ver algumas partes calvas, e vestia uma camisa larga escondida em uma vestimenta conhecida: um tutu marrom. Assim era Silas. A menina que eu havia perseguido pelo bosque era na realidade um menino. -Eu te conheço - Exclamei a vendo- Na outra noite me deu um bom susto. Por que não parou de correr quando te chamei? Silas me olhou com olhos determinantes. -Corria porque me perseguia- Respondeu, e deixou o palito na terra. Estava sentada no chão com as pernas cruzadas e deste modo parecia menor. -Há outros meninos como vocês? – Perguntei, Silas pegou o palito novamente e desenhou círculos na terra. Em vez de responder, se concentrou nos seus círculos- São os mais jovens? Benny se sentou no solo junto a Silas, virando o rosto e pela primeira vez reparei em uma grande cicatriz rosada que ia desde a nuca até a orelha, oculta pelo cabelo grudento. -Sim. Também tem Huxley. Tem onze anos. Às vezes joga conosco, mas os demais se dedicam a trabalhar ou treinar. -E para o que treinam? Silas se levantou do solo. Desenhou algo que parecia um cervo, colocando os chifres como um X. -Os garotos mais velhos viram caçadores aos quinze anos- Explicou Benny. -Então teu irmão tinha quinze anos- Continuei. Havia suposto que Paul era um garoto pelos livros de contos. Mas, seguramente que começou aprender com o mais simples que encontrou- E te ensinou a ler? Benny fez um gesto afirmativo, e me perguntou: -E você sabe ler? -Claro que sei. -Me ensina? -Claro, que ensino. Benny sorriu pela primeira vez, faltava um dente dianteiro. Impulsionada por uma repetina inspiração, corri ao palito de Silas e me sentei no solo. Escrevi uma palavra rapidamente. -Sabe o que é isso?- Perguntei.

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Silas olhou as letras e depois me olhou, como se a supressa que minha mão fosse capaz de escrever aquelas letras. Negou com a cabeça. -É seu nome- expliquei sublinhando uma letra por vez- S I L A S.- E continuei escrevendo outra palavra embaixo- E assim se escreve Benny. Ele fez um sorriso, seu único dente dianteiro sobressaia por um lado. Silas me observou boquiaberto e, apertando os dedos contra o chão, repetiu: -Silas. Deixei o palito e me levantei, emocionada. -Espere um momento- Pedi a eles pensando nos livros sem ler que estavam na mesa de Paul- Volto logo. Benny estava diante da parede de barro, em que escrevia as letras com um palito. -Pronto, muito bem- Disse enquanto os meninos que levavam a habitação observavam em silêncio. Benny terminou de ler, voltou e soletrou a palavra escrita em letra maiúscula. -BENNY- Leu e espocou um sorriso sem dentes, e iluminando o rosto. -Muito bem!- Aplaudi tomando o monte de livros infantis. A classe que havia começado com dois pequenos, escrevendo seus nomes no solo, aumentou quando alguns garotos maiores espiaram com a cabeça e decidiram aprender também. -Vamos ler um livro- Anunciei e escolhi um. Quando havia ido a buscar os contos, me alegrei em ver que conhecia alguns do colégio- ―Era uma vez uma figueira... - Li mostrando a pagina para que todos visem- E amava um menino. E todos os dias o menino ia...‖- Me calei porque Silas havia levantado à mão. Era o primeiro que havia ensinado quando, no começo da aula, se colocaram a gritar todos ao mesmo tempo. -O que quer dizer que o amava? O que é isso?- perguntou. Kevin, o garoto de óculos quebrados, o olhou com um beicinho e explicou: -Significa que ele quer beija uma garota. Antes da epidemia era assim. –Me dedico um sorriso tímido e corado. -Beijar uma garota?- Silas perguntou incrédulo. Huxley se animou a participar: -Não, não é isso. É uma arvore e as arvores não beijam os garotos. -De que está falando?- Silas quis saber totalmente confundido.

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-Pode amar a qualquer coisa- Intervi observando o grupo- O amor é... Busquei as palavras exatas- Amar significa preocupar-se com alguém, sentir que uma pessoa nos interessa e pensamos que o mundo inteiro seria mais triste sem ela- Recordei da risada agitada da Pip, os saltas que dava de cama em cama com Ruby nos domingos de manhã, enquanto esperávamos nossa vez de tomar banho. Depois de uma longa pausa, Benny disse: -Eu amava meu irmão- Afirmou. -E eu amava a minha mãe- Continuou um garoto de quinze anos que se chamava Michael. -Eu também amava minha mãe- Confessei- E continuando amando ela. É como... É algo que nunca desaparece não importa onde a pessoa esteja- Esperei um momento e abri o livro outra vez- ―Todos os dias o garoto corria para olhar a árvore e fazer uma visita...‖. -Kevin! Michael! Aaron! Onde estão?- A voz de Leif trovejou no corredor. Apareceu subitamente, seu corpo musculoso esta coberto de cinzas e barro. Aqueles olhos frios de marrom escuro me olharam sem refletir nenhum sentimento- Onde estão os cantis? Vários garotos maiores se levantaram e comentaram: -Íamos busca-los quando... Acabasse o livro. -O livro?- Estranhou Leif, e se aproximou. Olhou-me, mas mexia a cabeça como se fosse à mesa, uma cadeira ou o solo que havia sobe seus pés- Irão agora mesmo porque tinham que ter feito essa manhã. Quero todos os cantis de água cheios com da chuva, ao redor da fogueira. -Não pode esperar uns momentos? Estamos quase terminando- Disse sem poder evitar. Os garotos se calaram, surpreendidos ao ouvir minha voz. Leif se aproximou de mim, o cheiro estranho era o que nos separava. -Esperar o que?- Jogou o livro de minha mão- A isso? Os garotos não sentem falta de ler livros infantis. Eles precisam aprender os exercícios por si mesmos. -E aprenderam. –Me coloquei de pé- Mas também devem compreender um sinal de transito ou saber escrever seus nomes. Leif olhou a classe: quase uma dúzia de garotos se amontoou em um canto limitado. Abriu a boca lentamente, mas a fechou, como um peixe encalhado no aquário, lutando para respirar. Olhando para Kevin, o maior de todos eles, assentiu e concedeu:

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-Encham os cantis quando acabarem a aula. Enquanto você... -A pesar de sua olhada fria, me pareceu ter certa alegria em sua expressão, um indicio de ternura em seus lábios, o que mais parecia um sorriso. - Se vai ficar aqui e quer ensinar os garotos, tem que saber o que te espera. Os maiores tem que sair para caçar e fazer guardas. –Apontou para Kevin e Aron, apoiados em uma parede de barro- A cerimônia de iniciação será realizada amanhã ao por do sol. –Saiu pela porta para não bater com a inclinação do teto. Olhei os garotos com o livro na mão, e senti uma mudança de poder de um modo tão real, como se a terra tivesse se aberto sobre meus pés. A energia percorreu meu corpo e continuei lendo, AL tempo que a caverna me parecia maior: -―E todos os dias o garoto recolhia as folhas...‖.

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Quinze Nessa noite, quando as sufocados toses de Arden criaram um ritma respiração de sono, tomou a lanterna e corri para os túneis. No acampamento reinava a tranquilidade e o corredor sinuoso estava vazio. Depois de alguns dias vivendo ali, entedia a distribuição subterrânea básica: os cinco caminhos que deixavam a sala principal criavam uma formação de estrela com a montanha. Virme-ei e caminhei pelo segundo túnel, contando as portas pela escuridão. Não deixava de pensar no irmão de Benny, Paul, que havida feito caligrafia em minha mesa de canto e havia dormido na mesma cama que eu, contemplo as fendas do teto de barro. Talvez houvesse pressentido o dia de sua morte se aproximando como uma tempestade, ou talvez houvesse colocado o arco e as flechas no ombro, como todas as manhãs, e havia saído para cassar. Certamente, havia saído antes de Benny acordar, sem saber que era a ultima vez que o veria: o tumulo de folhas que havia arrastado, afundando nas águas brancas e a água havia entrado nos seus pulmões. Os roncos ressoavam meu passo na penumbra, enquanto o percorria, apalpando pedras na parede para me guiar. Enquanto me rodava muitas perguntas: o que acontecia no acampamento além do trabalho de transportar tijolos e pedras? Como havia ido parar no acampamento garotos tão pequenos como Benny e Silas? Não era o suficiente para detalhes soltos. Desejava o mesmo desejo que tantas vezes havia sentido no colégio e que a diretora denominada de ―sede de conhecimento‖. Dobrei uma esquina a altura da sexta porta, e me deparei com ele: ali estava com a camisa enrugada e com as calças rasgadas. Suas pernas descansavam sobre o braço de uma cadeira estofada, e a cabeça sobre os braços. -Caleb, dorme?- Perguntei. Despertou-se, assustado, fazendo uma rápida olhada como se quisesse recordar onde estava. Esfregou os olhos, puxou o cabelo de seu rosto e sorriu, -Bem vinda minha humilde vizinha. – Apontou um colchão no chão coberto de cobertas cujas costuras estavam desgastadas. Sobre a mesa estava um radio de metal com fones de ouvido, como os que eram vistos no colégio. Olhei os mapas pendurados na parede tinha as pontas dobradas por causa da humildade. -O que faz com todos esses livros?- Quis saber e me aproximei do volume que estava no chão. Deslizei os dedos sobre os lombos e reconheci vários títulos que havia visto no colégio: O coração das Trevas, O Grande Gatsby.

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Caleb se aproximou de mim e seu ombro quente roçou no meu. -Às vezes acho coisas raras. – Confessou esboçando um sorriso zambeiroAbri um livro e olho as pagina. Isso se chama ler. -Eu sei o que é ler!- Exclamei rindo. Corei começando pelo pescoço até o meu rosto e eu o cobri. Passei as mãos pelo cabelo. Não havia visto um espelho desde que havia deixado o colégio. -Mas como? Benny disse que aqui ninguém sabia ler. -Conheces Benny?- Procurei o rosto, parando nos lábios, nas sobrancelhas e nas bochechas. -Sim, eu o conheci hoje. E Silas e a outros garotos. Silas era a garota que vi, estava contente e vestia um tutu. -Eu o encontrei em umas das casas que roubamos um almoço- Declarou rindo- Leif e os garotos mais velhos sabiam quem era, mas como íamos explicar? Ele amava. Sorri, notei os nervos a flor da pele. Levei O Coração Negro, contente que seu peso diminuísse o tremor de minhas mãos. -Ele começou a ensinar a ler. Nunca haviam tentado aprender o alfabeto ou a escrever seus nomes? -Me enviaram aos campos de trabalho aos sete anos, assim que tive tempo de aprender algo antes da epidemia. Minha mãe me ensinou o básico antes de morrer: as palavras e os sons mais breves. E depois de tudo isso, eu leio aqui de noite para... – Olhou para o teto. E havia crescido uma pitada de barba, formando um sombreado escuro no queixo e no pescoço. –Bem para evitar, suponho. Além disso, todos os dias e ao longo da jornada, os maiores tem que caçar pescar, vigiar o terreno que não havia soldados na proximidade. Necessitam mais de comida que de livros, por azar. - Suspirou e me olhou nos olhos.- Mas me alegro de que você os ensine. Encarrou-me até que olhasse para o lado. -Já leu tudo isso? –Observei Ana Karenina e Pé na Estrada, que sobressaia sobre um História da Artes para Tontos e O Grande Livro da Natação. -Até a ultima palavra. Não são tão primitivo, certo? Levava a desbotada e longa camisa cinza suja, que permetia ver alguma parte da pele queimada pelo sol. -Eu não disso isso, ou disse? -Não tem por que saber. Aproximei de um outro monte de livros, e ele me seguiu, pisando nos meu calcanhares, como se fosse uma sombra em uma especie de baile.

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-Eu estava errada.- Reconheci. Estava tão certa que distingui as manchas marrons de seus olhos nas iris verde claro. Caleb desenhou um circulo ao meu redor, risonho, como se fosse uma criatura encantadora que havia encontrado no matagal. -É serio?- Ironizou. -Oh, este...- Levei Al Faro. Tinha as paginas dobradas nas pontas.- Charles Tansley! Que chato! Quem acredita que as mulheres não sabem pintar ou escrever? E o senhor Ramsay, que esquece sua esposa quando a pobre mulher, e no final se derrete por Lily! -Suponho que sua educação era parcial, mas não imaginava a este ponto. -A que se refere? Caleb se aproximou ainda mais, e percebi que o odor de fumaça que sua pele tinha. -O senhor Ramsay está muito triste, destroçado. Por isso leva a James ao farol, assombrava-se com a discussão que havia tido com sua mulher anos antes.Fiz uma careta, tentando entender o que ele me explicava- O livro mostra que ocorre a falar da senhora Ramsay, o importante de ser uma mãe, e tudo se desfaz rapidamente sem ela. Todos que a queria. Recordei-mei das aulas do colegio, onde a professora Agnes nos falava do desejo que os homens sentiam por mulhers mais jovas ou com incapacidade dele satisfazer as necessidades emocionais de seus semelhantes. Então tudo parecia muito claro. -Essa é sua opniãoo. – Disse negando com a cabeça. Mas Caleb não cedeu. O resplancer de uma lanterna iluminava parte do rosto, suavizando os traços. -É o que ocorre nessa historia, Eve.- Deu uns golpes na capa dura. Deixei o livro e me sentei na cadeira, sem me importar pela primera vez com o cheiro almiscarado que permanecia onipresente no acampamento. -É que...- disse, cheia de vergonha. Recordei da noite da consulta a doutora, antes de deixar o colégio. A professora Florence havia me explicado que o rei poderia querer repovoar a terra de forma eficaz, sem as complicações das familias, do casamento, do amor. Segundo ela, as garotas haviam sido as primeiras com boa vontade. Tinha certa logica torturadora. Seguramente pensaram que, se termos os homens, nunca los veremiamos e jamais necessitariamos de amor nem ter familias proprias. E assim haveriamos de fazer melhor qualquer coisa que nos pedissem.Ensinaram me dessa forma.

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Desviei o olhar para que ele não visse meus olhos, alagados por causa da emoção. Havia estudamo muito no colegio, tomando notas detalhadas de cada lição, escrevendo nas margens do caderno ate que meus dedos ficassem dormentes. E pra que? Para encher minha cabeça com mentiras? -Parece-me que você não sabe as coisas que deveria saber, e que, pelo contrario todo o que sabe é totalmente falso.- Clavei as unhas na mão,frutada, e a furia transbordou. Me dirigi para a porta, mas Caleb me segurou pela mão e me obrigou a retroceder. -Espera.- Entrelaçou seus dedos com os meus um instante antes de me soltar- A que se refere? -Doze anos em um colégio e... Ninguém sabia nadar- Comentei,recordando do panico que havia sentido na noite do rio. Não sei caçar nem pescar, ne sabia em que mundo vivia. Era alguém totalmente inútil. -Eve- disse tomando o exemplar de Al Faro do chão.- Pegue o livro. Podes voltar a lêe-lo... sozinha. Permanecemos um instante pisando na lama do corredor, a cabeça de Caleb batia no teto. Acariciei a capa dura do livro, pensando no que ele havia me dito. Talvez ali, no refugio, longe das professoras e das aulas, o livro fosse diferente. Talvez eu tambem fosse ddiferente. Escutei nossa respiração sincronizada. -Issõ não soluciona meu problema em nadar.- Respondi sem abrir um sorriso. -Esso é o mais fácil.- Apoiou a mão na parede, a alguns centimetros de minha cabeça. Uma sombra de barba mal feita cobria o queixo e brilhava na luz interna- Posso te ensinar a nadar um dia. -Em um dia?- Estremi-me e perguntei se ele ouviria meu coração.- Não creio. -Pode acreditar.- Entramos em uma luta para ver quem desviava o olhar antes. ―Um-contei mentalmente- dois,três...‖ Acabei por ceder, me deslize por baixo de seu braço e me dirigi ao tunel. -Certo, aceito isso- aceitei e andei para minha habitação. Quando olhei devolta seus olhos estavam cravado em mim.- Boa noite- sussurei sentido o calor de seu olhar caminhando pelo meu corpo e o frio passando enquanto voltava para minha cama.

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Dezesseis Quando chegamos à beira do lago, Caleb rapidamente tirou a camisa e se lançou na água com as pernas juntas, chutando lentamente a superfície reluzente. Continuou avançando em águas mais profundas até que desapareceu por baixo da imensa escuridão. Esperei. Passou um minuto. Passou outro. A escuridão na água, mas não vi ninguém nela. -Caleb!- Eu chamei-o. Aproximei-me da borda, buscando sinais dele, mas no lago reinava um silêncio fantasmagórico. Por fim emergiu, a cem metros de mim, balançando a cabeça tirando a espuma que havia se transformado em água. Soltou um profundo suspiro, tomando ar ao mesmo tempo em que eu, como se eu também tivesse prendido a respiração. -Convencido!- Gritei. Tirei a toalha felpuda dos ombros, revelando o maiô que havia improvisado para nadar: uns shorts jeans debaixo do moletom rosado do colégio, cortado onde antes estava o emblema do colégio. Eu o havia cortado com uma faca, pensando em Pip. Coloquei os pés na água e acelerei o passo. A água estava gelada. O sol ainda não havia alcançado as copas das árvores, e o ar era mais fresco do que o de costume. Senti enjoou olhando no ponto mais profundo e escuro. Deixei as pedras lisas acariciassem meus pés e tentei acalmar os nervos. Senti-me mais confortável, mais confiante, inclusive confiante em relação a tudo. Arden estava melhorando, continuava na cama, mas comia e bebia bem, e seu rosto já havia recuperado a cor, estremecia quando eu passava por Leif nos corredores, nem me dava medo andar pelo acampamento. Pouco a pouco me adaptava a nosso lar temporário. Caleb nadou até mim, seu corpo forte balançava enquanto, primeiramente, movia os braços e depois mergulhava nas profundezas. Quando chegou a zona mais superficial, levou a cabeça para trás; -Agora é um momento tão bom quanto qualquer outro- Disse sinalizando com a mão- Aqui não é muito profundo. A água chegava somente na cintura dele. Mas me recordei daquela noite no colégio, e da sensação asfixiante quando a terra desapareceu debaixo de meus pés. Avancei lentamente e com muito cuidado, o lago frio me cobria milímetro por milímetro. Caleb aproximou-se e me deu a mão.

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Eu dei a mão instintivamente, sentindo o mesmo temor que havia experimentado na habitação dele. A intimidade me arrepiou. -Você vê?- Sorriu. A água gotejava pelo seu peito moreno e com sardas. –Não é tão horrível. Demos alguns passos, o lago cobriu minha cintura também. Olhei para baixo, atordoada pelo repetido desaparecimento da terra sobre meus pés. Queria voltar, regressar para pisar em terra firme. Mas Caleb segurou minha outra mão e exigindo firmeza com o olhar, adentramos em águas mais profundas. -Está bem?- Me perguntou quando a água chegou aos ombros. Confirmei, confiando que meu coração ia se acalmar. –Certo então. Então vamos mergulhar. Um dois... -Espera!- Gritei- Quer que eu coloque a cabeça debaixo da água?- Precisava de mais tempo para me acostumar à temperatura, para me preparar... -Sim. Estaremos embaixo todo o tempo que aguentar. Quando falar três. – Ia protestar, mas começou a contar novamente. – Um, dois, três. –disse enquanto eu tomava ar e apertava os lábios antes de descermos da superfície. Estava completamente submergia e ouvia o coração. Percebi que quando soltava ar de meus pulmões e como eram feitas bolhas enquanto estava na água. Caleb estava a meio metro, com seus olhos abertos e suas mãos se soltaram das minhas. Sua expressão era tão amigável, tão firme e doce que durante um segundo, duvidei que fossassem tão diferentes, que ele pertencia a outro sexo que eu era, um sexo que havia temido durante toda minha vida. Esse momento era tudo graças a Caleb. Sorriamos felizes, e nossos baixos formavam um circulo no meio da quietude da água. Ficamos fora até que escurecesse. Pratiquei prender a respiração, submergi outra vez até que consegui não me assustar pensando que o lago ia me sugar. Caleb me ensinou a me sustentar e avançar debaixo da água, também me ensinou a flutuar apoiando os dedos em minhas costas enquanto enchia os pulmões de ar. Fechei os olhos tratando de ignorar que minhas pernas estavam muito desnudas e que o suéter molhado estava colado nas curvas do meu corpo. A cor púrpura do céu se torna cinza enquanto regressamos ao bosque, entre os cliques de agulhas de pinheiros secas. Apesar de que tapava os ombros com a toalha, não deixava de tremer. Caleb tirou a camisa e me ofereceu ela, enrolando ela de modo que minhas mãos ficaram aparecendo. -Eu terminei o livro. Fiquei acordada a noite toda, lendo. - Disse cobrindo com o grosso e suave tecido que ainda continha o calor do corpo dele. - Tinha razão. A história não é como haviam me contado.

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-Suponho que tenha gostado mais na segunda vez. - Os cabelos gotejavam água que deslizava pelos músculos fibrosos de seus ombros. -Eu gostaria de saber... – Hesitei, mas consegui dizer- Como aprendeu tanto sobre o mundo fora dos campos de trabalho? Como chegou aqui? Conte-me tudo. Ele esperou que eu o alcançasse. Entramos em um trecho estreito, mergulhando por baixo dos ramos das árvores. Caminhava na minha frente retirando ramos para que eu pudesse passar e avançando para abrir caminho. -As semanas que se seguiram da morte de Asher foram muito raras. – Explicou sem retirar os olhos da trilha- Leif se negou a trabalhar e passava quase todas as noites trancado e sozinho. Os outros garotos também tinham medo de fazer algo que ressentisse os guardiões. A única coisa que permitiam levar nos campos de trabalho eram rádios de Black Metal, e os garotos deitavam-se nas camas e ouviam a programação da Cidade de Areia. -Eu também a escutava no colégio. – Disse, e torci meu cabelo para retirar a água. Uma vez que íamos ao auditório e escutávamos historias sobre o que ocorria ali. O rei falava dos gigantescos arranha-céus que estavam construindo e os novos colégios para garotos que viviam dentro dos muros das cidades. Edificavam no deserto, construindo ―algo a partir do nada‖ como ele gostava de dizer, e a cidade estaria cercada de muros tão altos que o mundo estaria protegido dos rebeldes, das doenças, dos perigos externos... Suas palavras sempre me reconfortavam. – O rei poderia fazer tudo parecer nobre e emocionante. Caleb chutou uma pedrinha com o pé descalço e comentou: -Lembro-me dessa voz. Sempre me lembro. –Chutando uma pedra, enviando-a para o bosque, endureceu a expressão e corou. –Nunca falava dos órfãos que trabalhavam nas cidades que trabalhavam na cidade: garotos de apenas sete anos que passavam quatorze hora por dia desmontando edifícios a quase quarenta e cinco graus de temperaturas. Alguns morriam esmagados pelas paredes que desmontavam e caiam dos arranha-céus. O único lugar que para nós era baixo de seus pés. Enquanto caminhávamos, eu deslizava as mãos entra a grama alta que estavam entre o caminho limitado. -E quem criava os garotos? Eles tinham alguma supervisora para cuidar deles?- Perguntei. -Agora vivem em casas novas que dão a lugares a canais de garotos de quatorze anos e alimentavam as crianças que garotas de dezoito anos haviam parido, esquiavam por pistas artificiais e comiam em restaurantes no telhado da aranhas-céus, e os órfãos trabalhavam de graça. É asqueroso. –Fez uma careta.

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-E como escapou?- Insisti. Imaginei os horrores do campo de trabalho e Asher abandonado em meio ao bosque com as pernas paralisadas, e os garotos pequenos como Silas carregando pedras nas costas. -Ocorreu uma noite um discurso especialmente irritante sobre o novo palácio real. – Explicou Caleb, segurando minha mão para me ajudar a saltar uma grande pedra. – Não podia dormir nem deixar de olhar a Leif e o caixão vazio de Asher. Os guardiões haviam encontrado dois anos no bosque, acabará de se tornar órfão e chorava. A epidemia não deixou apenas órfã. – Se calou por um momento, mas continuou- Depois das condições de vida se tornaram muito duras, e o mundo se sucumbiu em um caos tão grande que muitos meninos perderam seus pais por causa das doenças. Eu havia me enfurecido tanto que permaneci algumas horas olhando o luar, uns bandidos haviam matado sua mãe. Mas não me importava. Estava vazio por dentro. Não me afetava, pois não havia o que me afetasse. Eu era muito... –Deteve-se e voltou a me olhar. Tossiu e escolheu a palavra com cuidadoInsensível. Até hoje tenho vergonha. Não podia imaginar ele tão frio e muito menos depois de ver como havia embalado a cabeça de um cervo, acariciando a pele do pescoço até que ele morreu. Levou um ramo, esfregou os dedos com a casca áspera e seguiu dizendo. -Eu estava pensando a todo que sucedia e compreendi que não poderia seguir vivendo ali por muito tempo. Aquilo não era viver, não era vida. Estava morrendo de medo e desesperado. Um dia tinha o radio na mão e a musica mexeu com ela. –Suspirou e parou de esfregar os dedos. –Então escutei uma voz que dizia umas loucuras imensas. -O que dizia?- queria saber enquanto avançava para diminuir o espaço que nos separava. -Só me lembro da primeira frase. Dizia ―A égua de Heloise é muda, porém, está aqui‖. Aproximei-me, mas ele, como se me aproximado ajudasse a decifrar o mistério. -Quem é Heloise? Não estou entendendo nada- Uma explosão de vento varreu as montanhas e atingiu as arvores. As sombras bailaram na cara de Caleb. -No inicio eu também não entendi. O homem não parava de falar ao mesmo tom, repetindo varias vezes e mais tarde falou outras frases secretas. Sempre repetia as palavras com uma voz sedutora. Olhei ao redor para ver se havia me ausentado do mundo real, se não estava sonhando ou algo parecido. E quando escutei a mesma coisa pela décima vez, deixei de tentar decifrar a frase para observar a forma que falava; Tratava de me dizer uma vez que o tom parecia uma oração. – Caleb olhou e seus olhos vermelhos e molhados buscaram os meus. –A égua.

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-A... – eu interrompi com um nó na garganta por causa da emoção- A-J-U-DA-E-S-T-A-A-Q-U-I. Ele sorriu, e me deu a impressão de que o resto do mundo desaparecia (as arvores, o caminho, as montanhas, o céu) deixando apenas nós. -Sim- Afirmou- A ajuda está aqui. - Entendeu a mão e a levou- A voz continuou falando. As noites seguintes revelou um lugar no capo onde, se escapássemos nos buscaria. Tentamos meses, e esperei que Leif regressasse para planejar tudo. Estudamos a rotina dos guardas e encontramos uma via de escape. Não possuímos mais uma noite... E só poderia ser três. -Três? Caleb olhou nossas mãos entrelaçadas e esboçou um sorriso, como se gostasse do gesto. -Escolhemos um menino cuja mãe havia sido assassinada, Silas. - Seus dedos apertaram os meus quando retornamos a marcha. -E você veio para cá. –conclui, enquanto nos aproximávamos do refugio. -Isso foi há cinco anos. Um pequeno grupo de garotos estava construindo o acampamento dirigido por o homem que eu ouvia toda noite, Moss. No inicio o que chamamos de a rota. Havia refúgios seguros em todo o oeste que consociam trincheiras como a nossas. Leif, Silas e eu levamos dois meses para chegar aqui, dormíamos em casas de rebeldes. Todavia havia gente por ai vivendo fora da cidade, porque não acreditavam no que o rei estava fazendo e ajudavam a esconder garotos e garotas. Levou uma peça de madeira em uma encosta e a empurrou, deixando descoberto uma porte escondida. O interior do acampamento estava escuro e silencioso. Ouvi o sombrio som de nossos pés descalços enquanto caminhávamos. -Esse era o lugar que falava a professora Califia, a que iríamos Arden e eu, junto ao mar.- Eu o olhei enquanto pronunciava essas palavras esperando um mau gesto, um arreganhar, algo que revelasse seus sentimentos sobre minha marcha, mas sua expressão não refletiu nada. Arden já podia caminhar, embora de momento somente andasse por nossa minúscula habitação, por tanto, a tempo de uma ou duas semanas poderíamos ir. Perguntei-me se seria capaz de deixa-lo, de deixar o refugio e me dirigir ao oeste como havia planejado. Caleb estava ao meu lado, e já falava menos. -Sim, é outro refugio seguro para órfãos e rebeldes... É maior- se limitou a dizer. -E Moss?- Perguntei. - Onde está? -Correm rumores de que se encontra na cidade- Respondeu-me guiando pelo túnel escuro- Mas não havia nada seguro. Quase sempre manteve em seu secreto

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sua localização e se movimentava constantemente pelas rotas, para apontar que era impossível seguir na pista. Não deixava enviar mensagem, mas faz um ano que não o vemos. Esperançosamente houvesse aprendido as comunicações radiofônicas e ―a rota‖ antes de deixar o colégio, antes de sair de nossa habitação e deixar a Ruby e a Pip em suas camas estreitas e, seu ultimo sono suave. Talvez tivesse a ocasião de decidir algo desde Califia, uma oportunidade para me comunicar com elas. Senti o suave toque da mão de Caleb quando chegamos a minha habitação, o doce odor do suor e fumaça de sua pele, e me fitei nas sardas que salpicavam no seu nariz e testa bronzeadas pelo sol. Nenhum de nos dois falou. Limitei-me a deslizar minha mão na mão dele, desenhando círculos sobre as juntas e das unhas, sem me importar que estivéssemos impregnados de sujeira. Ele apoio seu queixo sobre minha cabeça e respirou fundo, consciente do mínimo espaço que separava meu nariz de seu peito. -Hoje foi muito bem- Disse depois de um momento e aperto a mão na despedia -Obrigado por me ensinar- Entrei na habitação, mas não pude me conter. Saí de novo, e ali estava preenchendo sua presença na entrada. Havia escutado muitas vezes as teorias da professora Agnes, estudando a ―Ilusão da intimidade‖ e os ―Os perigos decorrentes de garotos e homens‖ e lido muitas coisas sobre ―Manipulações sutis‖. Mas de uma forma afundou, em algum lugar de mim, existia um conhecimento mais profundo, um espaço que nem o medo da educação projetada com a maior astúcia poderia alterar. Era um modo que Caleb havia mudado durante esse dia no bosque, mexendo a cabeça para trás para cantar, enquanto sua voz repetia pelas árvores, era a comida que nos servia todas as manhãs e todas as noites, as toalhas e as camisas desajeitadamente dobradas, a água do banho que levava a Arden sem ela ter pedido. E supus, com mais certeza de qualquer outra coisa, que era um homem bom. -Boa noite, Eve- Se despediu. Baixo a vista, quase envergonhado e desapareceu pela escuridão.

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Dezessete -Aposto que queria que Aaron ira nadasse mais rápido. - Comentou Benny, apertando minha mão- É como um peixe. Estávamos em uma borda, ao norte do refugio, examinando o lago em busca de sinais de novos caçadores. Arden tinha diminuído a febre, e a cor havia voltado a suas bochechas, embora ainda sentisse fraqueza nas pernas, insistiu em sair, e me alegrei de que estivesse ali, ao meu lado. Minha companheira soltou a mão de Silas. -Está suando. –Disse a ele secando a mão nos jeans curtos desgastados. –É como dar a mão a uma lesma. –Secou ela outra vez enrugando o nariz com uma cara de nojo. -O que aconteceu?- Me perguntou- Onde está a graça? -É evidente que você está melhor. –Ri. Havia levantado a menos de uma hora e já perdia a paciência com qualquer coisa. Interpretei como um bom sinal. Durante todo o dia, enquanto eu estava no refugio ensinando os garotos, Caleb e Leif percorreram o bosque para ver se havia soldados. Quando consideram a zona segura, conduziram os novos caçadores a outra margem do lago, e ali começaram sua árdua aventura: deviam percorrer uns quinze quilômetros da orla rochosa e lançaram-se finalmente nas águas frias, depois rodearam nadando a linha de arvores e chegaram à praia onde os esperava quatro lanças cujas laminas de pedra pareciam de cor de osso no baixo sol do entardecer; Contemplei o lugar em que as arvores se inclinavam sobre a água, onde Caleb havia me ensinado a nadar. Na noite anterior sonhei que estávamos novamente ali, boiando de mãos dadas. De dia, enquanto caminhava com Arden pelo refugio corrigia as palavras que Benny escrevia no barro, isso ocupava meus pensamentos: seus sorriso, seus dedos rodando a roçando as minhas costas, minha camisa impregnada com o odor da pele dele... Kyler, um garoto alto de cachos alaranjados, aproximou-se da borda do precipício. -Ali estão! Estou vendo eles!- Gritou. Usava uns prismas quebrados, e Benny e Silas começaram a dar saltos para vê-los, empenhados em também observar eles. Uma mancha que movia onde a água tocava o céu.

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Pouco depois vimos os garotos mais longe das arvores, seus corpos emergiam e submergiam como grandes peixes saltitantes. Michael ia à frente, seu cabelo afro se distinguia dos demais que estavam com ele. -São muito rápidos!- Exclamou Silas, que havia enchido o rosto de pintura e tinha manchas douradas nas mãos. –Vejam Aaron! -Força, força!- Gritou Benny. Os que estavam atrás de nós se aproximaram do precipício, banhando-se pelo brilho rosado resplendor do sol poente. Muitos de doze anos se puseram a bater palmas ao mesmo tempo, fazendo um som de palmas cada vez mais alto. Quando os garotos cercaram a borda, uma velha canoa conduzida por Leif e Caleb rodeou as árvores que havia atrás deles. Os maiores do acampamento, que haviam pintado o rosto de preto e riscado as bochechas e a ponta dos narizes seguiam em outras quatro embarcações. Ao distinguir Caleb que lutava contra a corrente, uma alegria fugaz se apoderou de mim. De todas as coisas que a professora Agnes havia ensinado, só reconheci uma nesse momento. ―A felicidade é expectativa de uma futura felicidade‖, havia dito enquanto nos mostrava um exemplar de Grandes Esperanças. Recordo-me então do dia que Ruby encontrou um gato no mato, fazíamos turnos para acariciar a macia pele do ventre para sustenta-lo em nosso colo. Recordei-me também de como abríamos os colchões, depois que a diretora ia dormir, formando uma torre sobre a cama de Pip. Conhecia a sensação de saltar, o impulso das molhas sobre meus pés, a experiência de cair rindo a gargalhadas. ―Não, a felicidade é um instante‖ pensei e então, de novo agora, ao ver Caleb levantar a vista e dedicar-me um sorriso amável e magnífico. Aaron chegou à beira do lago e correu com a água batendo na altura do joelho. Era seguido por Michael, logo por Charlie e por ultimo, Kevin. Este fizera uma viseira com a mão para proteger-se do sol, caminhando com cuidado, pois não podia levar óculos. Os quatro atiraram-se sobre os ramos de uma árvore para pegar a lancha de cada qual, cujas pontas afundavam-se na areia. -Vejam eles!- Gritou Silas, distanciando-se da beira. Michael foi o primeiro a chegar a sua lança e joga-la para o ar. Uma a uma as armas voaram, e eles se agacharam, esgotados. Silas e Benny se afastaram de nós duas e seguiram os garotos mais novos pela borda do desfiladeiro onde aclamavam a Aaron, Kevin, Michael e Charlie. A canoa de Leif e Caleb encostou-se à margem, roçando o fundo contra as rochas, e ambos abriram espaço entre os garotos emocionados para aproximar-se ate onde estava os novos caçadores. Caleb notou minha atenção e esboçou um sorriso imperceptível, e eu lhe dirigi um breve ―olá‖ com os lábios.

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-Esta com as orelhas avermelhadas. -Arden me deu uma cotovelada- Pense Eve- Arrumei o cabelo, ajeitando as longas mechas castanhas a ambos os lados do rosto. Leif, cujo ombro havia adquirido a cor de tijolo depois de ter ficado remando por tanto tempo, ordenou que os recém-estreados caçadores fizessem uma fila a frente dele e disse: -Hoje demonstraram que são homens e amanhã estarão preparados para sair para caçar sozinho. É muito do que se espera de vocês. Os garotos precisam de proteção- Apontou aos mais jovens que nos rodeavam e a Benny que chorava escondido. –Necessitam de lideres que garantam sua segurança nesse lugar, longe dos campos de trabalho. Estes bosques agora são seu lugar e estes garotos sua família. Somos irmãos. –Ante essas palavras, eles acariciaram os emblemas circulares tatuados em seus ombros. Caleb sacou um pedaço de carvão do bolso do short e também pronunciou umas palavras: -Há chegado o momento que juram lealdade a rota. Prometem utilizar suas habilidades para favorecer os doentes, libertar os escravos? -Sim- Responderam os garotos ao mesmo tempo. Caleb se adiantou e deslizou os polegares sobre a frente do nariz de Michael, repetiu o gesto com os demais, marcando os rostos dos outros três. -Agora são caçadores. São homens!- Proclamou Leif, levantando os braços ao ar, com os punhos fechados e os músculos tensionados. Parecia uma das estatuas que havia visto nos meus livros de artes: as de Miguel Ángel, esculpidas em pedra. Silas foi o primeiro a sair do grupo. Lançou-se a correr para Kevin e agarrou uma perna, em uma tentativa desajeitada de abraça-lho. Os demais o seguiram, entre gritos de ânimos e risadas, dando tapinhas nas costas dos novos caçadores. Michael colocou Benny sobre os ombros, enquanto Aaron agradecia a Leif e Caleb, apertando a mão. Quando os gritos de emoção se calaram, os novos caçadores aproximaram-se de uns tocos de árvores em que haviam preparado pratos com javali assado, jarras de água e tigelas com frutos silvestres multicoloridos. Todos esperarão calados, até que Caleb falou: -Antes de comer, devemos dar as graças. Em primeiro lugar, devemos dar aos novos caçadores que passaram pelas provas para que continuem protegendo com sua força os demais. E como cremos que cada comida é colaboração de várias entidades, agradecemos a terra que nos dá frutos, a Michael, que pegou com suas mãos, ao javali que entregou sua vida para que nos alimentemos com sua carne e a que preparamos para nós com tanto carinho. -Caleb levantou uma jarra, e seus olhos se cavarão nos meus- Em segundo lugar, damos a graça a nossas amigas, que

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ficaram conosco, e em especial a nossa nova professora, pois demonstrou tanta dedicação e inteligência em cada aula. Levei alguns momentos para entender que se referia a mim, até que senti a pressão dos dedos de Arden em meu braço. Endureci a garganta. ―Havia me dado conta‖. Talvez se houvesse detido na porta da habitação de Benny e fitado os livros sobre a mesa ou nas cadeiras de plástico que haviam sido retirados do solo para que os alunos se sentassem. Havia me observado. -Obrigado a Arden e a Eve. –Adiantou Leif, tomando outra jarra do toco da arvore e levantando-a. Não levantou os olhos e nos olhou preocupado. Todos os garotos voltaram-se e deram a graça, uns com gestos outros com um sorriso, antes de passar um a um a jarra e beber goles de água. Pouco depois abandonaram as solenidades e mergulharam no javali assado, nas frutas silvestres e no peru selvagem. Por fim, quando os novos caçadores comeram o Maximo e a euforia acabou, Leif voltou a falar -Nesta noite, não há lua nenhuma. –Informou apontando para o céu. Na verdade, a lua começa a aparecer seu vago perfil se fazia mais visível na medida em que o céu rosado era tingido de púrpura. –E verificamos que os soldados haviam mudado de direção. Eles abandonaram o posto de verificação ao sul, o que significa que está noite... -Saques!- Gritou Michael, e ao levantar as mãos, foram jogados pedaços de javali entre os dedos. -Roubaremos suas provisões! Silas começou a pular de alegria. -Doces! Doces! -Isso mesmo. –Afirmou Leif, sorrindo levemente. Ele havia desfeito o coque que recolhia o cabelo abundante, de modo que uma cascada de cachos negros úmidos caiam sobre os ombros. -Esse é o momento perfeito para um saque. Reuniremos-nos aqui dentro de uma hora. Os garotos se dirigiram ao refugio, levando os restos do banquete. A todo isso senti um braço ao redor de meus ombros desnudos. -Me permite? –Perguntou Caleb. Estremeci-me quando sua pele e a minha entraram em contato. Caminhamos juntos, meu passo adaptando ao seu. Sabia qual eram meus sentimentos em relação a ele? Sabia que ocupava um lugar nos meus sonhos e que inclusive eu o perdia quando dormia? -Sim... –Comecei a dizer- Claro.

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Dezoito -Te vi muito encostada no Caleb. –Envolta uma jaqueta e cruzando as pernas sobre o colchão. Arden já estava na habitação quando voltei. Iluminou meu rosto com uma lanterna, e depois focou em mim, enquanto esperava uma resposta. Em vez de contestar, eu coloquei uma camisola cheia de bolinha para aquecer-me. O ar noturno era muito fresco e não sabia a que distancia estaria na fechadura. -A diretora Burns não aprovaria. –Insistiu Arden. Interceptei o raio de luz com a mão. -Chega!- Foi à única coisa que falei. -Não me venha com essa. –Ria, fazendo algazarra com a lanterna. A luz recorreu no seu cabelo limpo e uma perna branca com leite antes de iluminar seu rosto pálido. -Estou uma semana doente, e não sei se te ocorreu uma coisa melhor que deixar você cair... –Cobriu a boca com a mão. Pensei que ia tossir, mas continuou quieta. -O que ouve Arden? Apontou para trás de mim, Caleb estava na porta, abrigado com uma grosa jaqueta marrom e um gorro de crochê que ocultava os cabelos. -Quer cair rendida na rotina do ensino... –Experimento fixar, mas não suou convincente. Levantou-se e sai andando empurrando Caleb sem querer- Nos vemos junto ao fogo. –Disse e desapareceu no túnel. Vir-me-ei um pouco mais e coloquei outra camisola grossa. -Podemos ir com vocês? –Perguntei tentando diminuir o nervosismo de minha voz. –Arden se encontra melhor, jura que está em condição de ir. Caleb entrelaçou minha mão e baixou a vista, como se observasse meus finos dedos entre seus dedos sujos.

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-Não se trata disso. Quando Leif disse que os soldados haviam abandonado o posto... –Hesitou- Significa que se dirigem ao norte, na estrada. -Isso é por culpa minha, certo?- Interrompi-o. Não era como uma pergunta como uma afirmação, mas seu silencio confirmou o que já sabia. –Eles trocaram de direção por minha causa. –Fechei os olhos e vi os faróis dos SUVs batendo na estrada, em busca da garota do anuncio. Ele se aproximou. Havia limpado as marcas de carvão do rosto, e somente possuía um leve cheiro de fumaça. -Talvez não seja seguro levarmos ao saque. Um encontro com os soldados sempre resulta em algo perigoso, e neste caso não existe um risco muito grande. – Desvinculando seus dedos dos meus, peguei ambas as mão entre as dele. Era facilmente assustada. E acelerava meu coração quando pensava que inclusive estando em um refugio subterrâneo, os soldados podiam passar pelo terreno que nos cobria sem notar nossa presença. Eu queria me deitar no colchão envolto de um ninho de cobertas e abandonar-me, queria ficar ali indeterminadamente. Mas não era nenhuma novidade, sempre me perseguiam. As luzes que iluminavam o lago eram deles, os motores que roncavam eram deles, e eles eram as figuras fantasmagorias que espreitavam por trás das arvores. Havia passado a vida confinada nos muros do colégio, comendo o que me mandavam, bebendo o que decidiam, tomando sem protestar as pegajosas pastilhas azuis que embrulhavam meu estomago. Como era uma noite em liberdade? Por acaso não podia ter algo assim? -E se, apesar de tudo, quiser ir? -Nesse caso, irá. Mas preferia que estivesse consciente do perigo. -Sempre existe perigo. –Seus olhos verdes buscarão os meus. Estava começando a entender o que podia acontecer: Caleb e Eu. No meio da natureza não havia pensamentos, só existia Califia na distancia, a fugaz viagem que consumia os dias. Mas debaixo da terra, quando ensinava os garotos na habitação de Benny, ou quando nas noites me apoiava nas paredes depois que Arden dormia, imaginava que era ali. Necessitava de mais tempo para estar com Caleb e com os pequenos. Varias semanas ou meses não me parecia suficiente... Queria mais. E se saísse bem? Então o que? Podíamos viver no refugio, era uma possibilidade. Ao menos que Moss estivesse reunindo um numero suficiente de rebeldes para enfrentar os soldados do rei, até eu rever Pip. Seria perigroso, mas procuraríamos permanecer escondidos. Caleb e eu construiríamos uma pequena vida. Juntos. -Não saia do meu lado e se acontecer algo, abandone o grupo. –Seu olhar seguiu as linhas da minha boca até que parasse nos meus olhos, sua respiração

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chegou aos meus ouvidos, e calmamente, percebi novamente o odor de carvão. Estava muito fechada, e os olhos esverdeados continuavam a me olhar me estudando. Não pude me conter e uni minha boca a dele. Uma espécie de calor se estendeu pelo meu corpo até a ponta dos meus dedos, enquanto nos aproximávamos mais e seus lábios correspondiam aos meus. De repente quando me dei conta do que havia feito, retrocedi, soltei a mão que mantive segurando e me levei à frente. -Eu sinto. Eu... – Mas me puxou para ele. Apoiando a minha testa em sua bochecha. Seus dedos acariciarão minha cabeça, se prendendo entre meus cabelos e por fim passaram no sensível oco do meu pescoço. -Não sinta. –Murmurou abraçando-me na penumbra Entrelaçando suas mãos na minha costa e acariciando nos lados. Não nos movemos até que ouvimos vozes do túnel, chamando-nos para ir ao saque.

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Dezenove Agarrei-me a Caleb, relaxando sobre sua jaqueta acolchoada que cheirava a umidade, enquanto Arden agarrou-se aos meus ombros quando caminhávamos pelo denso bosque as árvores apenas se distinguiam sobre as dispersas luz das estrelas. Minha amiga havia me interrogado antes de sair, depois de ter notado o blush nas bochechas e na insistência que levava os dedos no lábio, como se necessitasse confirmar que ainda em vigor. Ria quando montei com muita decisão o cavalo, ocupando o lugar intermediário para assim poder apoiar a cabeça nas costas de Caleb. Qualquer um daria conta de que alguma coisa havia acontecido entre nos dois. Mas eu mantinha o fato em segredo, desejando que fosse exclusivamente meu durante certo tempo, para desfrutá-la. Na nossa frente, Leif guiava os cavalos sobre rochas e entre ramos caídos de arvores, caminhando em posição ao sul, mantendo um ritmo constante. Rodeamos a margem rochosa do lago, cuja superfície negra refletia a lua. -Falta pouco. –Sussurro Caleb. Um falcão planou ante nós desenhando um caminho no céu. A longe se ouviu um disparo de um canhão, que ecoou pela montanha. Arden se apertou contra mim, fincando os dedos na pele, Leif conduziu seu cavalo numa zona de grama muito alta. Seguiam-nos outros seis cavalos, silhuetas negras que os garotos maiores e quatro novos caçadores cavalgavam. Silas, Benny e os menores haviam ficado no refugio dormindo ante a promessa de receber barras de chocolates e caramelo na manhã seguinte. Leif, cujo rosto apenas se distinguia na escuridão, olhou ao redor e sussurrou: -O posto de avanços está a menos de cem metros. -Sussurrou- Se ocorrer algo, não use força, a não ser que seja preciso. -Se ocorrer algo?- Repeti no ouvido de Caleb. – A que se refere? -Ele disse por preocupação. –Respondeu ele, cuja voz percebi claramente, pois apoiava a cabeça em seu ombro. – Matar um soldado da Nova América, mesmo sem defesa própria, é um delito que se castiga com a morte. –Retardou o trote do cavalo- Faz exato um ano que se produziu um incidente em outro posto, e o rei se vingo executando um doente que sabia de tudo. –Estremeci ao imaginar um garoto abandonado e assustado, enfrentando as tropas da monarquia. Deixamos os cavalos pastando no claro. Caleb me deu a mão, e senti de novo aquele calor que já se tornou familiar. ―Estou bem, estamos bem, tudo está bem‖. A

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repetição da mensagem me acalmou. Atrás da arvore distingui uma casa reformada, cuja fachada era visível à luz da lua que se filtrava entre os ramos, as janelas estavam tampadas com chapas de zinco, e a porta metálica tinha um cadeado bloqueado. Leif inspecionou o edifício por fora e reapareceu novamente. -Tudo limpo. –Disse fazendo um gesto afirmativo a Caleb. Os garotos subiram a varanda que rodeava na casa. Michael levantou a placa da janela com sua faca, e colocou debaixo um seixo desgastado. Por sua vez, Kevin manipulou o cabo, mas não conseguiu abri-lo. -Deixe para mim. –Arden se ofereceu, saltando sobre a beirada da varanda. Kevin sorriu, enquanto ela movia a colher e abria a fechadura com suaves giros do pulso. -Voilá!- A porta da casa se abriu em golpe. Os garotos gritaram de alegria, Aaron e Charlie lutaram pra entrar. Inclusive Leif sorriu também quando nos precipitamos a acender o gerador do governo. Era igual ao do colégio, o ruído aumentou pouco a pouco e as luzes se acenderam uma a uma até que a casa se impôs em um zumbido pesado e constante. -Como fez isso?- Perguntei a Arden, assombrada. -É um truque que aprendi no colégio. –Encolheu os ombros com um gesto brincalhão. Recorremos ao andar principal, da que havia retirado os moveis para utilizar para armazém. Até o ultimo canto havia esquisitices que não havia visto em minha vida: latas de abacaxi, mangas e carne enlatada que se chamava ―Carne de Almoço Doce‖. As paredes da sala de estar estavam cobertas de prateleiras, umas delas estava totalmente ocupada por uma grande quantidade de jarros cheios de água de cor celeste. Michael se abaixo sobre uma caixa de papelão e sacou um pacotes brancos, que repartiu. -Mmmmm!- disse metendo na boca a açucarada substancia roxa- Palitos doces. -Ao ataque!- Gritou Caleb do outro lado da estadia. Pendurou-se pela lateral das estantes de madeira e levou uma caixa de tiras de carne largas e finas, em volta de um plástico amarelo. Aaron guardou um punhado nos bolsos. A farra continuou por quase uma hora: cada caixa, cada pacote de plástico, cada recipiente continha outra deliciosa surpresa. Leif repartiu bolsas com chocolate e caramelo que grudavam no céu da boca, e Michael abriu latas de cerveja que só conhecia por ter lido as novelas de Joyce, e as repartiu entre os garotos. Em minha mente a voz débil da professora Agnes advertiu-me: ‖O álcool serve apenas para enfraquecer as defesas das mulheres‖. Mas tomei um gole.

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-Não deixo de olhar. – Arden me cutucou apoiada na parede. Sentamo-nos num canto para comer tudo que pudéssemos. À frente de nos tínhamos latas de laranjada, biscoitos grossos e brilhantes e pêssegos em calda. –Nunca acreditei em nada do que a professora Agnes dizia. - Assegurei inclinando um pouco a cabeçaMas talvez a velha bruxa tivesse uma certa razão: há uma espécie de loucura nos olhos desse garoto, é como se quisesse devorar sua alma ou algo assim. Levante a vista. Caleb estava no fundo da casa, com os olhos fitados em mim. -Maldição, Arden. –Disse envergonhada- Para com isso. –Mas continuava obcecada na lembrança de seus lábios nos meus, e meus braços ao redor do peito. -Nem maldições nem raios coloridos, é verdade. O que fez fora da habitação? Só esteve fora um segundo!- Me deu uma cotovelada nervosa, e eu soltei um riso nervoso. -Olhem o que eu achei!- Gritou Charlie, comendo nas proximidades. Retirou um empoeirado pano bege, como se fosse um mago e deixou descoberto um velho piano. Posando os dedos sobre as teclas amareladas, arrancando umas notas que soavam como se estivesse batendo em uma lata. Reclinei-me na parede, escutando os acordes que ressoavam no térreo da casa. Recordei-me dos verões no colégio quando a professora Sheila dava aula de piano a Pip e a mim. Sentava-me ante o banco do instrumento e tocava Graça Sublime enquanto minha amiga dava voltas ao meu redor, fazendo piruetas a cada estrofe. Quase expliquei a Arden que, às vezes, Pip representava as palavras: curvava-se quando diziam ―miséria‖, ou levantava a mão ao ouvir falar de ―sons‖, mas ela absorveria as prateleiras que tínhamos a nossa frente com a mente muito longe dali. -O que aconteceu? -Eve, há algo que queria te contar... –Esfregou a testa com a mão. –A coisa que dizia no colégio, já sabe, as historias de quando meus pais me levavam ao cinema, no dia de Ação de Graças, o apartamento na cidade... – sussurrou- Bom, eu as inventei. -Quer dizer que as inventou? Olhou para os pés, e ao fazer isso, as mechas do cabelo negro cobriam o rosto. -Havia alguma parte da verdade: eu não era como as outras garotas do colégio. -Respondi. Tinha os lábios muito vermelhos e rachados. –Eu estava doente antes da epidemia. Não tenho pais, nunca os conheci.

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Charlie arrancou umas notas do piano, e Arden me olhava esperando minha reação. -Então, as criadas que preparavam as roupas nas manhãs, o medalhão de ouro maciço que sua mãe havia prometido te dar quando acabasse de estudar, a casa com piscina e a banheira montada sobre pés de ouro... (recordava-me das historias que havia nos deslumbrado) Tudo era mentira? Ela confirmou. No inicio não entendi nada, mas logo estava com raiva. Muita noite, encostada na cama, havia chorado de raiva por não ter o que Arden possuía. Quando teria dado se minha mãe me esperasse na cidade! Era como uma ilusão de um presente fechado. -Como pode fazer algo assim?- Reprendi ela. Ela voltou para janela e contemplou seu reflexo no cristal. -Não sei... -Todo mundo te odiava, e você... -Sim, eu sei!- Gritou- Mas todas falavam de seus pais e de suas famílias. E eu nem sequer sabia o que era uma família. Eu tinha um avô, mas era mais carinhos com seu pastor alemão que comigo. Foi um alivio quando morreu. Recordei quando tinha oito anos, descrevendo a festa de aniversario que seu pai organizou pra ela, sua casa na árvore, como sua família ―se eles haviam existido‖ na cidade antes dela se reunir com seus pais. Arden mostrava-se muito contente e animada. -Eu sinto- Murmurou- Eu sinto muito. Nós ficamos um momento sentadas, uma do lado da outra, enquanto os garotos devoravam o fruto do saque. -Suponho o que tentei dizer... –Ardem rompeu o silencio no fim- Eu acho que euro agradecer. –Sem deixar de olhar pra frente protegendo o pescoço com a camisola grossa e verde. -Por quê? –Perguntei sem poder reprimir a raiva no tom. -Para poder salvar a vida- Virou em fim o rosto. –Nunca nada tinha sido tão... Tão bom para mim. –O queixo tremia quase imperceptivelmente e apesar de ter os olhos fechados, brotavam as lagrimas. Dei-lhe umas palmadas nas costas para acalma-la. Nunca havia visto ela chateada, sentia que era uma dama que não chorava, a que matava coelhos, que nunca se queixava quando estava doente. -Não se preocupe. –Acaricie a cabeça, entrelaçando os dedos na sua mecha negra. –Não tem nada que me agradecer. Você teria feito o mesmo por mim.

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Fiz um gesto duvidoso, como se não tivesse muito segura. -Ás vezes nem mesmo sabia onde estava. Só me recordo que me penteava, lavava o rosto, e... – A voz se perdeu. Puxou-me e me abraçou. -Não aconteceu nada. É serio. –Senti sua respiração na minha orelha, impregnada de algo molhado. Seu peito se agitou debaixo de mim, e então me dei conta que estava chorando verdadeiramente desesperada. Suas lagrimas penetraram na minha camisa até molhar o ombro. –Não aconteceu nada. –Repeti. -Eu sei. –Ela fungou, sem olhar em meus olhos. Depois se agastou, e ao secar as lagrimas com as mãos, e ao fazer isso sujou o contorno de seus olhos de cor de avelã. -Sim eu sei. Durante meu período no colégio, Pip ou Ruby sempre estavam me vigiando, me chamavam para ir jantar ou alisavam a saia enrugada. Mas quando fui só tinha os pássaros, os riachos eram as únicas mãos que me tocava o vento a única respiração que limpava a poeira de meus olhos. Dominei ao extremo a arte da solidão, a pesada saudade que vivia e continuava vivendo quando caminhava sozinha. Mas Arden dominava essa arte muito tempo antes, tanto no colégio, como fora dele. Havia dominado com o passar do tempo. Passei a mão sobre o ombro e compreendi que estava errada: eu havia sido algo. Para Arden havia sido tudo.

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Vinte Arden ficou um momento descansando a testa no meu ombro, até que Caleb gritou do piano: -Hey vocês duas! Deixem de choramingar meninas. –Dedicou-me um sorriso travesso e uma olhada resplandecente. Berkus, um garoto maior de cabelos longos e ruivos, estava tocando Coração y Alma, sem duvida lembrando-se de sua infância. Era uma melodia simples de notas agitadas, muito diferente dos complicados acordes que a professora Sheila nos ensinava, cujo som mantínhamos pressionando o pedal. Michael e Aaron, atrás de Berkus, acompanhavam a melodia com o tamborilando os dedos e movimento agitado da cabeça. Inclusive a habitual expressão rabugenta de Leif suavizou quando se apoiou ao piano enquanto bebia uma cerveja com delicadeza. Obriguei Arden a levantar e perguntei a ela: -Você se lembra da valsa vianense? Durante a maioria das aulas, ela se dedicava a escrever em seu caderno e desenhar caricaturas irreconhecíveis nas margens das paginas. Mas quando dançávamos, não podia esconder-se em nenhum lugar, pois todas as garotas deviam dançar em pares mantendo a cabeça erguida e os braços firmes, e deslizarmos pelo jardim. Arden não falou nada, mas permitiu que a levasse para o piano. Berkus tocou a canção novamente, e eu abri os braços, indicando a minha companheira que pousasse sua mão na minha. Caleb nos olhou com curiosidade. Arden e eu avançamos, e os garotos se separam enquanto guiava ela ao redor do salão, pisando para passar entre as estantes, um tanto dura demais, mas riamos. -Coração e alma. –Cantei- Ali te vi coração e alma, e quase morri. -A letra não é assim!- Arden ria, inclinou a cabeça e se deixou levar. Os garotos assoviaram quando a inclinei até o solo, sem o menor esforço, e aplaudiram quando giramos como peões. Logo, enquanto eu a guiava para a cozinha, acalmando-me. –Com todo o respeito de antes... –Kevin nos olhou sem soltar a lata de cerveja tentava fazer uma desajeitada pirueta no solo. – Creio que estão um pouco alteradas e que o rolo emocional é uma típica consequência do... -Claramente. –O interrompi- Não se preocupe. –Nós ficamos em silencio por um bom tempo, até as notas do piano, enquanto resoavam quando dançávamos novamente para os garotos, com um passo mais lento. No fim me mostrou um sorriso como um gesto de agradecimento.

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Quando damos a ultima volta, animadas pela musica e os aplausos, Caleb aproximou-se de nós com o passo alegre. Atrás dele, Michael e Charlie ensaiavam movimentos desengonçados, Michael, por exemplo, girava com as costas no chão. -Poderia dançar comigo?- Caleb perguntou, dando a mão com a palma levantada. -Posso... Você acha que poderia?- Respondi incapaz de conter-me. Tratava-se de uma típica gafe gramatical que as professoras sempre insistiam no colégio. Ele me tomou pela mão e tirou da minha, me puxando para ele. Os garotos se animaram. Aaron levantou os dedos na boca e emitiu um assobio. -Eu acredito que sim. –Sorriu apertando seu corpo contra o meu. Apoiei o queixo em seu ombro quando Berkus mudou os acordes de Coração e Alma para uma melodia mais lenta e sedutora. Caleb me segurou pela cintura e acariciou minhas costas, notei seu hálito quente sobre meu pescoço. Não dançava mal, mas era raro alguém me guiar. Sempre havia sido a que marcava o passo e a que dirigia, dando pé para minha parceira realizar movimentos rápidos e giros elegantes. -Feliz por ter vindo? –Sussurrou. Os garotos nos olharam um momento até que compreenderão que não havia nada de especial em se ver, só uns giros de um lado pro outro e alguma pisada em algum pé de vez em quando. Não era uma exibição perfeita que Arden e eu apresentamos. -Muito. –Respondi. Berkus deixou o piano e saio para a varanda. Alguns dos presentes, incluindo Arden, o seguiram e se dirigiram a improvisada piscina exterior. -Eu também estou feliz. –Adaptou seu corpo, fazendo uma sequencia para que ambos encaixássemos perfeitamente. Baixei o olho e a casa desapareceu. Não sentia nada que nãoo fosse o calor do peito dele contra o meu. Seria fácil continuar ali, daquela maneira de viver de dia no refugio e acompanha-lo nos saques noturnos! As ideias explodiam sobre minha mente que se acalmava, e as imagens se sobrepunham: Arden e eu cuidaríamos para que Benny e Silas, para que lavassem as mãos e de que aprendessem a ler e a escrever, daríamos aulas a todos que escrevessem parágrafos grandes nas paredes de barros e os explicaríamos o argumento do Conto de Inverno. Graças aos seus novos conhecimentos, os garotos maiores poderiam se organizar enviar mensagens a outros doentes e fazer planos mais planejados com Moss. Enquanto Caleb e eu... A única coisa que continuava a acontecer era eu apoiando meu queixo em seu ombro, notando sua mão em minhas costas e

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experimentando a delicia de estarmos juntos, enquanto nossos corpos dançavam juntos em silencio. -Eu estava pensando... –Disse levantando o olhar para vê-lo. Fora, Michael, salto no ar pelo trampolim podre. -Ao ataque!- Gritou, provocando uma enorme salpicada. Então se levantou e removeu uma porcaria esverdeada da cara enquanto se aproximava da escada oxidada. –Animo, a lama está ótima! Caleb riu e voltou a me observar. -No que está pensando? -Em Califa. –Respondi com um fio de voz devido ao nervosismo. –Parece-me inútil percorrer um caminho tão grande agora e arriscar a vida quando Arden e eu poderíamos viver no refugio. Aqui estaríamos a salvo. Ela me ajudaria a ensinar os garotos e... –Olhei em seus olhos cheios de esperança. –E nós estaríamos juntos. Ele parou tenso e retrocedeu se afastando de mim. -Eve... Percebi cada milímetro que nos separava era um espaço que aumentava. Será que ele não me entendeu? Tossi. -Quero ficar. Quero viver no acampamento contigo. Esfregou a nunca suspirando. -Não me parece uma boa ideia. –Baixou a voz e olhou para fora, onde os garotos se jogavam para fora da varanda podre para ver quem era o mais valente que atrevia a saltar. -Os homens do rei te perseguem. Se nós encontrarem... Castigariam os garotos. E alem do que, aqui também não estaria completamente a salvo. Afastei-me, aumentando o espaço que nos separava. Senti cada palavra como um golpe no peito, golpeando a porta do meu coração que estava tristeza e tinha sido insensível. Caleb não me queria no seu lado. Mas era claro que não me queria. Não se importava com o que disse, nem com as palavras usadas para explicar-se. Fechei os olhos e vi a professora Agnes, com as mãos tremulas. ―Ele não me queria‖. Olhava pela janela enquanto as lagrimas deslizavam pelas profundas rugas do rosto como se ele tivesse me abandonado por um momento. ―Como fui tonta! Eu nunca quis isso.‖

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Caleb me pegou pelo braço, mas me soltei. -Não me toque- Murmurei afastando-me Era um homem, era como todos os homens, com seus defeitos e mesmas mesquinharias. E havia permitido que me abraçasse, que me beijasse, havia cedido à tentação. Que tonta havia sido! -Entendi muito bem o que aconteceu. Para você é como um jogo, certo? -Não, não me escutou. –Repetiu negando com a cabeça e pálido. –Quero que você fique, mas não pode... Pois não é seguro. –Me estendeu a mão, mas desviei ―Quer acreditar nas mentiras- Havia dito a professora Agnes- A culpa é dos ingênuos que acreditam.‖. -Deixe-me em paz, por favor! –Gritei, quando fez um movimento para aproximar-se. Minha voz ecoou pelo armazém vazio. Charlie que estava apoiado na moldura da janela virou-se e os garotos na varando nos olhara. -Devemos falar disso depois, quando chegarmos ao refugio. Importo-me, mas... -Não se importa com nada mais que você mesmo. –Rebati. Levou a cabeça para trás como se tivesse sido esbofeteado. Deu a volta no espaço, saiu pela varanda e desapareceu entre os demais. Os garotos murmuraram entre si, e aproximaram-se novamente na piscina e saltaram nas águas escuras. Pareceu-me que de repente, a casa aumentava, e ao mesmo tempo, o ambiente esfriou-se. Sentei-me na frente do piano e fiz um longo e grosso do. Fechei os olheis enquanto as notas da canção Claro de Luar de Beethoven resoavam a distancia, tensas e desafinadas. Quando cheguei à segunda estrofe, estava com os olhos inundados de lagrima. Deixei de tocar para enxuga-las. -O que aconteceu?- Perguntou alguém atrás de mi. Leif descia a escada, cujo assoalho rangia a cada passo. Sem dar-me tempo de respondeu, sentou-se junto a mim no deformado banquinho. -Nada. –Apressei-me a dizer e olhando para o piso superior, perguntei- O que estava fazendo ali em cima? Ele junto às unhas na lata de cerveja até que o metal dobrou-se. -Olhando, só isso. -Fez uma careta. Havia acostumado a sua presença no acampamento passando rodando pelos estreitos corredores e saudando com um gesto. Mas nesse preciso instante não apreciava falar com outro homem. Continuei tocando e tentei ignora-lo, mas um saco de papel no bolso e o colocou na minha frente como fosse uma partitura. -Da onde retirou isso?- Perguntei vendo o papel.

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ULTIMO AVISO: SE VIU EVE A CAMINHO DO NOROESTE, EM UMA ZONA DO LAGO TAHOE MONTADA A CAVALO COM OUTRA MULHER E UM HOMEM DE ENTRE DEZESETE E VINTE ANOS. QUEM VE-LA COMUNIQUE NO POSTO DE VIGILANCIA A NOROESTE. EVE DEVERA COMPARECER DIRETAMENTE AO REI. -Posso explicar. Eu... -Acalme-se. –Leif apoio o braço na dobra do piano, tomou outro gole da cerveja e me olhou. –Tecnicamente eu também só um fugitivo. O rei ira se encantar se voltasse a carregar blocos de cimento nas costas como um burro. Amassei o papel. Não sabia se agradecia ou me desculpava. Eu, uma desconhecida, havia entrado no seu acampamento colocando todos em perigo, e havia mentido. -A única coisa que queríamos fazer era descansar no caminho de Califa. Leif me avaliou de cima abaixo, mas não havia censura em seu olhar, só interesse. -Era a ultima pessoa que imaginaria que seria perseguida pelo rei. O que fez? Matou um guarda, ou sequestrou uma professora? Não te buscam apenas por fugir. –Sorria com uma expressão travessa. Não me parecia que fosse motivo de orgulho matar alguém, mas ele estava fascinado, a imagem que tinha de mim mudava de repente, e os novos tons davam lugar a uma inesperada profundidade. -Prefiro não dizer. –Fiquei nervosa ao pensar na cidade e no homem cujo rosto ficava nas salas do colégio, enquadrado em molduras douradas. Leif puxou as teclas com força arrancando notas que ecoaram no silencio e disse: -Conheço as atrocidades que cometem, talvez melhor que ninguém. É uma tortura viver como doninhas subterrâneas, sabendo que na Cidade da Areia tudo é festa, centros de férias e piscinas cheias de água filtradas. E nem sequer imagina os acampamentos. –Deixo de jogar com as teclas e olhou para um relógio que havia sobre o piano. A umidade cobria a esfera e os ponteiros haviam parado pelas 11h11min. - Eu tinha um irmão, que se chamava Asher... -Eu sei. -Disse com bondade. Os sons exteriores chegaram a nós, os garotos correndo pelos bosques brincando de Policia e Ladrão com grande alvoroço. –Caleb me contou... –Olhei para janela, mas não vi Caleb, estava tudo escuro. Leif deslizou os dedos sobre o piano, seguindo as veias da madeira. -Asher. Faz muito tempo que não pronuncio seu nome. –Sussurrou quase para si. –Nossa mãe tocava piano. Recordo-me que íamos para debaixo da mesa de

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jantar e víamos os pés de nosso pai sobre o sofá enquanto lia, e os pés de minha mãe apoiado sobre os pedias. Brincávamos com nossos carros de plástico quando ela tocava. –Pegou a guia da lata e moveu de um lado para outro. –Já pensou alguma vez como eram as coisas antes da epidemia?- Perguntou-me Senti uma opressão na garganta ao acordar quando minha mãe e eu, de mão dadas, andávamos pelos corredores do mercado, ou quando ela me beijava muitas vezes na sola dos pés, ou quando me escondia no seu armário, entre vestidos e roupas intimas que conservavam aquele cheiro tão especial, e a observava enquanto caminhava. -Sim. –Respondi- Às vezes. ―Continuamente. –Pensei- Continuamente‖. Ele franziu os lábios como se pensasse no que eu acabava de dizer, e deslizou o dedo sobre as teclas, tocando notas ao acaso. -Ta, ta, ta... –Cantou lentamente, quase sem medo. Então umas notas más, era uma linha melódica que me soava familiar. –Conhece a peça? -É Canon de Pachebel. –Respondi tocando as primeiras notas. Apesar do desafinado instrumento, era reconhecível. -Eu a aprendi no colégio. -Minha mãe sempre tocava. –Sorriu para parede, aonde era evidente, que olhava algo mais, a uma imagem totalmente distinta. Continuei tocando, inclinada sobre o piano, enquanto as estrofes se sucediam. Senti o peso das horas anteriores como uma densa melancolia que me contaminou totalmente: via Caleb na margem do lago, e percebia o silencio do local quando nossos lábios se fundiram as batidas de seu coração por baixo da camisa, a dança... De repente tudo era tão distinto, o via agora baixo de uma luz de cor diferente. Não estava com ele, não era no refugio nem em outro lugar. Arden e eu partiríamos em breve, talvez no dia seguinte. E tudo acabaria ali. ―O que ganhei com aquilo? - Havia perguntado a professora Agnes sem dirigir a nada em particular.- Do que sirvo?‖.

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Vinte e Um O armazém estava tranquilo e a luz que entrava pelas janelas projetava sombras nas estantes, com cobertores enrolados, e materiais medico. Passamos a noite ali, os garotos amontoados no andar inferior, e Arden na sala junta a minha. Movia-me incontrolavelmente, dei voltas, comecei a golpear o cobertor e os travesseiros cheios de caroços como minha cama improvisada, sem deixar de pensar em Caleb, na nossa conversa e na sua fuga para a varanda. Depois quando deixei o piano para Leif, que me estendeu a mão como agradecimento, então encontrei Arden junto a piscina. Enquanto os garotos riam, bêbados por causa da cerveja e do açúcar. Caleb me olhava de longe, sem dizer nada. Arden levou-me ao piso superior, cobrindo o piso com almofadas e me sugeriu que dormisse, mas não consegui. Não consegui na noite toda. Passaram-se horas. No lado de fora só ouvia-se o vento entre as árvores e de vez em quando o quebrar de um galho. Questionei-me se não havia me enganado. Talvez houvesse sido um reflexo, como nas revisões medicas do colégio, quando dava um chute após a doutora bate no meu joelho com um martelo. Caleb havia referido-se a minha segurança, havia dito que não se importava. Mas eu gritei e espantei-o. Que ira acontecer se tivesse continuado a falar? Estava lembrando-me de todos esses momentos, lembrando-me de sua imagem, quando abriu a porta e apareceu alguém atrás das estantes de madeira. -Eve... -Caleb?- Respondi me sentando. Tropeçou e varias caixas caíram no chão. Avançou como um animal virou um canto e ajoelhou-se junto a minha cama. Então pegou em minha mão. -Sobre antes... –Balbuciei, mas o silencio pousou entre nós. Apertou minha mão, e de repente, eu senti sobre mim, seus lábios sobre os meus. O corespondi, mas não havia uma troca, só havia a urgência. Empurrou-me e me obrigou a colocar a cabeça para trás. Abri os olhos embora apenas distinguisse seu rosto a luz do luar, absorvido na concentração. Mas percebi a aspereza de suas mãos em minha pele, e tudo que sentia era estranho, terrível... Áspero. -Não! – Gritei afastando o rosto. –Não! – Mas Leif me empurrou de novo, e deitou-se ao meu lado, e o chão rangeu sobre seu peso. Sua boca cobriu meus lábios e saboreie o amargo gosto do álcool em sua língua. Corria com a mão em meus ombros e meus braços. Tentei gritar novamente, mas sua boca estava sobre a minha. Não pude fazer nenhum som.

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Lutei. Meus punhos chocaram-se contra seu peito, mas ele me puxou para ele. Continuava beijando-me, e a extensa baba que saia de sua boca, deslizava pelo meu queixo. Eu me contorci e movi os ombros, tentando fugir. Mas, não importava o que fizesse, ele me dominou e não conseguia me livrar-me de sua respiração, quente e detestável sobre minha pele. Haviam me roubado muitas coisas: minha mão, a casa de telhado azul que havia dado meus primeiros passos, as pinturas amontoadas na parede da sala de aula... Mas isso era o mais dolorido de tudo, tomassem todo o controle. ―Nem sequer teu corpo é teu‖, Leif queria dizer a cada ataque repetitivo. As lagrimas brotaram de meus olhos e encharcaram minhas orelhas. Beijou meu pescoço enquanto suas mãos percorriam todo o corpo, e o medo se apoderou de mim até o ponto que não tinha outra opção: tinha que me entregar. Segurei-me e deixei de mover meus pés. Afogada com meu próprio pânico. Ouvi um distante murmuro de vozes. A luz brilhante de uma lanterna iluminou primeiro minhas pernas, depois meu rosto banhado em lagrimas e por fim Leif que tinha os olhos fechados -Bastardo maldito. – Caleb rosnou, agarrando-o pelo sovaco e jogando numa estante. Ante o impacto as caixas metálicas caíram e espalhando centenas de fósforos. Aaron e Michael apareceram na porta e suas lanternas iluminaram a escuridão. Leif se colocou de pé com dificuldades, atacando e asfixiando com os ombros em as costas de Caleb, que deu um grito de dor a tempo que empurrava seu agressor contra a parede. -Chega Leif!- Gritou, mas ele recebeu um soco no queixo. Eu me escondi em um canto do quarto, encolhida, me sentido presa. Leif cambaleou tonto pelo álcool, e balbuciou: -Venha, sempre quis ser o líder. –Tufos de cabelo preto cobriam o rosto e me perguntei se ele esteve dormindo ou se esteve dedicando seu tempo para acabar com as ultimas latas de cerveja. –Agora você é o chefe. Faça o que quiser. Apontou para a porta com violência, onde, ansiosos para saber o que aconteceu, encolhiam os restantes dos garotos e os que haviam despertado. Kevin reposicionou seus óculos quebrados, como se quisesse descobrir o que estava vendo. Leif, com os braços cruzado, deu voltas ao redor de Caleb. A pessoa que havia sentado ao meu lado no banco do piano, desfrutando da musica, já não existia. Algo havia se apoderado dele, algo aterrorizador e primitivo. -Venha. –Repetiu aproximando seu rosto de seu oponente. –Agora tem a chance de se converter em homem.

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Caleb aproveitou o momento. Com um movimento veloz, agarrou o braço e o torceu em direção ao solo. Leif caiu como um peso morto e ao golpear a bochecha contra o solo ouviu-se um terrível Crack! Um jato de sangue espalhou-se por debaixo de seu rosto, e apesar da escuridão, vi que tinha um lábio cortado. -Ela queria ficar comigo. –Cuspia sangue ao falhar, cobrindo o chão com gotas de sangue. –Por que acha que se sentou ao meu lado por um momento? Por que acha que ela falava comigo? Ela me queria. A mim não a você. –Havia uma mistura de certeza e raiva em sua voz. Escorreguei ainda mais e me aconcheguei à parede temendo inclusive outro ataque no momento que o corpo morto fosse retirado do solo. Caleb me olhou, contorcendo o rosto perante a confusão, e perguntou: -Isso é verdade? Tremia violentamente nas mãos e não pude reprimir um mar de lagrimas. O que Leif tinha feito era horrível. E ainda... Havia sentado junto a mim no piano e tocado uma canção, havia permitido que eu ombro roçasse no meu enquanto falava de sua família e ainda concordei que segura-se a minha mão. Será que teria oferecido uma chance, ou confundiu minha bondade com outra coisa? -Não sei. –Respondi cobrindo a boca com a mão. -Como não sabe? –Cale insistiu. Apertando o braço de Leif, imobilizando-o contra o chão e me lançou um olhar raivoso, a delicadeza que havia gostado tanta, havia desaparecido no rosto. Desejava que me calasse que olhasse para outro lado, que me desse um momento para respirar. Porém continuava sem tirar os olhos de mim, esperando uma resposta. Solucei mas me engasguei por consequência do inconveniente choro. -Eve! O que aconteceu? Está bem?-Arden abriu espaço entre o grupo de garotos e se aproximou correndo. Levantou-me do chão segurando por um momento o jérsei rasgado. –Ouvi ruídos e... –Calou-se ao ver a expressão de Caleb. Moveu a cabeça de um lado para outro de forma quase imperceptível, com um gesto equivalente a um completo não. Caleb ficou de pé, deixando Leif no solo sobre a negra mancha de sangue e abriu caminho entre Michael e Aaron e baixo a cabeça sem olhar para trás. -Caleb!- Gritei me acalmando ante sua repetina marcha. Todos os presentes se afastaram para me deixar passar e fui atrás dele, mas quando cheguei ao andar inferior, o único que encontrei foi o ar viciado de sempre e o som dos animais a caminhar. O armazém estava escuro de modo que fui tateando buscando pela saída. –Caleb!- Eu o chamei novamente.

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Por fim distingui as magníficas arvores que se viam desde a entrada principal. Ali mesmo, no luar, Caleb estava montando em Lila que era uma escura silhueta debaixo do céu estrelado. -Não vá, por favor!- Gritei, e sai. Mas ele manejando as rédeas, já estava girando sua montaria. Parada no chão, observando ele e me não dei conta de que Arden estava ao meu lado, não ouvia as vozes de Kevin e Michael que o chamavam da janela superior pedindo que voltasse. A tristeza me invadiu, enquanto Caleb cavalgava pelos bosques e se transformava em um ponto no horizonte, até que a escuridão o engoliu por completo.

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Vinte e Dois -Devemos ir. –Arden sussurrou. Estávamos em nossa habitação cavernosa subterrânea. –Retornamos o caminho para Califa. Estou segura que aqui não é um lugar seguro. Havíamos abandonado o armazém antes do amanhecer, depois de ter carregado os cavalos com sacos de guloseimas, lanternas, mantas e leite condensado. Leif que estava com o rosto escondido em alguns locais por causa dos golpes da noite anterior, era no momento uma presença ameaçadora. Estremeci-me ao lembrar-me da pressão de seus lábios sobre os meus e o odor amargo de cerveja de sua respiração, e seguia vendo o rosto na luz da lanterna, os olhos fechados e meu corpo como uma pedra esmagado pelo seu peso. Ao regressar ao refugio comprovamos que a habitação de Caleb estava intacta, havia pilhas de livros raros, o cobertor fino cobria a cama e a cadeira almofadada, continuava estando no seu local habitual, conservava ainda a marca do corpo dele. -Não podemos ir sem mais nem menos. –Afirmei apoiando a costas na fria parede de barro. Parte de mim agarrou-se a ideia de viver ali, a ligação ainda não havia se desfeito. –Ao menos até Caleb voltar. Arden acariciou o cabelo, tirando as pontas do cabelo e sentenciou: -Não gostei de como Leif nos olhava. –Tinha olheiras um pouco inchadas, vestígios da noite passada que havia permanecido acordada até muito tarde, bloqueando a porta com a estante virada e vigiando, até que por fim dormi. -Não quero sair assim. –Minhas recordações giravam em torno da varanda do armazém, em especial quando me afastei dos braços de Caleb. Na realidade não havíamos discutido nada, estava afetada demais para pensar calmamente. Mais tarde Leif sentou-se ao meu lado e seus dedos acariciaram a madeira do piano, mas confundiu minha bondade com uma insinuação. Esperançosamente não sabia se ocorreu de pronunciar aquelas três fáticas palavras: ‖Eu não sei‖. Se você soubesse, mas era impossível explicar todas as estranhas emoções que havia experimentado na noite anterior. Acudiram-me tão rapidamente que nem tive tempo para percebê-las, de conhece-lhas e interpretar como elas eram. Mas nesse momento sentada na caverna junto a Arden, tinha uma coisa cada vez mais clara: -Não quero ficar com Leif.

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A expressão da minha companheira suavizou. Abraçou-me com carinho, e seus braços limparam meus sentimentos de culpa. -Claro que não. Isso está fora de duvida. Reconstei contra o ombro de Arden, impregnado o odor a umidade de sua jaqueta e disse: -Mas não suporto que Caleb pense que seria capaz de... -Eu sei, eu sei. – Arden disse, acariciando minhas costas. Enxuguei minhas lagrimas. Quando estava no sexto ano, fiquei com muita raiva de Ruby porque havia falado com Pip que eu me dedicava a ―vangloriar-me‖ das minhas notas. Mas em vez de decidir como me sentia, optei por não falar durante duas semanas. Deixei a ferida infectar e crescer no silêncio entre nós. Aprendi então uma lição fundamental: que uma relação entre duas pessoas se julga a partir da lista de coisas que fazem ambas se calarem. Nesse momento desejava ver Caleb, embora não fosse mais para explicar meus sentimentos e dizer quanto havia me machucado suas palavras, agradeceria que pelo que havia feito que tivesse medo e estava confusa e que não era Leif a quem eu queria. Apesar de mim mesma, e apesar das horas que havia dedicado ao estudo de ―Perigos decorrentes de homens e garotos‖, sentia algo por ele, só por ele. Continuei apoiando a cabeça no ombro de Arden quando a habitação começou a treme, e umas leves sacudidas agitaram meu peito. -O que é isso? -Um terremoto!-Silas gritou quando passou correndo ante nossa habitação segurando a mão de Benny. Estava a ponto de tropeçar nas calças, extremamente grandes, presas na cintura por uma corda e que chegavam até seus pés. –Saia! Saia! Alguns garotos pequenos apareceram pelo estreito corredor formando uma fila, como se tivessem praticado a manobra varias vezes. -Um terremoto? -Disse apoiando na parede instável. –Não pode ser. –Nos havíamos experimentado no colégio, levávamos um sobressalto que às vezes nos despertava em plena noite. Mas aquela vibração era mais sutil, e não tinha a potencia para um fenômeno desse tipo. -Será melhor que não esperemos ele acabar. –Arden sugeriu, empurrando a porta. Seguimos os garotos que fugiam do refugio, até que por fim saímos para o céu claro por uma das ladeiras do monte. Ali sobre um grande monte de terra havia um gigantesco caminhão negro, cujas rodas mediam mais de um metro de altura. O motor rugia de tal maneira que apenas se ouvia nada mais.

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-Que legal!- Exclamou Silas. Baixo a esplêndida luz matinal que eles apreciavam a pele muito pálida que as demais, pois não estava acostumado ao sol. Tapou os olhos com os dedos. Benny sorriu, deixando descoberta a arcaica dentaria incompleta. -Que caminhão grande!- Admirou-se. Mas eu senti um medo crescente ao ver uma figura sombria no banco dianteiro. Aquele enorme veículo de laterais salpicadas com lama e o para-choque dianteiro não se pareciam com os SUVs do colégio. Os únicos automóveis que havia visto que pertenciam ao governo. O rei racionava o combustível, e era quase impossível conseguir sem seu consentimento. Alguns garotos maiores que tinham ido caçar regressar ao abrigo, e chegaram montados a cavalos. Leif estava entre eles, com ar serio. Senti-me aliviada quando Michael, Aaron e Kevin desceram dos cavalos e rodearão o caminho, apontando na cabine com lanças. Por fim, no interior do veículo, alguém desligou o motor, fazendo ressoar um incomodo zumbido em meus ouvidos. -Abaixe os braços!- Leif ordenou, e os garotos obedeceram. A porta lateral do caminhão abriu e uma gigantesca bota de ponta metálica pisou no solo de barro. Recuei ao ver o homem: media mais de um metro e oitenta e os cabelos cacheado caiam sobre os ombros, levava uma arma com couro negro e o suor descia pela testa ate a ponta de seu olho. Olhou-me nos olhos e sorriu com um gesto que criou pânico em mim, seus dentes estavam quebrados e amarelados. Abraçando minhas pernas, Silas perguntou: -Quem é ele? Mas o homem se dirigia a mim, movimentando os lábios. Os maiores permaneciam na borda do carro, observando, sem saber o que fazer. Não parou até chegar até minha frente, tapando-me com sua sombra. -Olá, preciosidade. –Sussurrou ao meu ouvido. Retrocedi, mas o sujeito me puxou com o braço ate ele. Tinha uma roupa ensopada de lama e suor seco. Seu odor revirou meu estomago. Michael e Kevin cercaram-nos e apontara as lanças para a garganta do homem e gritaram: -A solte! Mas o homem quebrou o pedaço de madeira, apertou o punho e se dirigiu a Leif, perguntando:

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-É ela? O rosto de Leif não mudou. -O rei a procura. –Anunciou olhando os garotos. Eu fique com um olhar paralisado. A verdade me envolvia, a humilhação que Leif havia sofrido na noite anterior havia se tornado em algo sinistro. –É uma fugitiva e, pois todos em perigo. Fletcher a entregará aos soldados. -Ela não fez nada!- Arden berrou, batendo com as mãos contra o peito do homem. Tentei soltar-me, mas a pressão da gigante mão impedia; Ao mesmo tempo em que ele agarrou o braço de minha amiga enquanto ambas tentávamos nos libertar. -Duas pelo preço de uma. –O homem riu, nos arrastando até o veículo. -Não! Não pode levar ela. –Benny suplicou. – Por favor, Leif! -Não pode permitir algo assim! –Michael cutucou o, com a lança quebrada. -Chega! –Gritaram os novos caçadores, enquanto Silas corria atrás de mim, com as mãos presas ao meu desgastado jeans. Dominado pelo pânico, só vi borrões, o rosto apavorado de Benny, Kevin que o segurava, Aaron que caia no chão, sangrando por um corte... Arden mordeu a mão de Fletcher e logo vi o que havia na traseira do caminhão: uma jaula onde uma pobre garota gritava entre as barras. Leif também viu, e sua expressão mudou, segurando a mão de Fleche com a que estava segurando Arden, murmurou: -Um momento. –Cercou o caminhão e golpeou o veiculo com frustação. – Quem é essa? O que acontece? Fletcher não ficou intimidado. Empurrou-nos arrastando nossos pés pelas pedras e disse: -Queria que marchassem e marcham. Onde acha que vai? Senti náuseas a ponto de vomitar o desjejum de ovos de codorna. Consegui evitar, puxei o braço do agressor, tentando me soltar. Sem duvida Leif chegou a um acordo prazeroso, mas o assunto havia fugido de suas mãos. -Onde estão os medicamentos? E o pagamento? –Leif exigiu com o rosto constrangido. Michael e Aaron o seguiram, empunhando as lanças. Fechei os olhos esperando os garotos atacarem, mas o gigante tirou uma pistola da cintura e disparou no ar. Os garotos retrocederam surpreendidos com o som do disparo. -E agora prestem atenção. –Fletcher gritou, apontando com a pistola, buscando algo no solo. –Este é o meu carregamento e eu levarei, e se tiver que matar alguém, farei sem pensar. Entendido?

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Sila cobriu a boca com a mão e gemeu sem tirar os olhos de mim, enquanto o gigante me arrastava para o caminhão sem importar com meus pés ensanguentados. Arden gritou e apertou os punhos contra o grosso braço do caçador de recompensas. -Animal! –Gritou- Solte-me, besta asquerosa! Continuou debatendo e gritando, sem importar com o que estava acontecendo, mas eu sabia que tudo estava acabado. Nossos punhos não serviriam de nada contra uma pistola. Os caçadores contemplam suas armas, sentindo-se tradicionais, as lanças eram ridículas naquele momento. Não podia tirar os olhos de Silas e Benny, de seus corpos pequenos estremecidos pelos outros. Benny saiu com tanta força quanto pode contra a mão de Leif, mas esse continuou olhando para frente, encarando a paisagem com o olhar confuso. -Não faça nada! –Gritei para Benny e Silas, tentando sorrir apesar do pânico. –Estarei bem. Não se preocupem comigo. –Esperava que acreditassem. Fletcher abriu a porta do caminhão e encarando-nos com a pistola, indicou para entrarmos. Ao subir, senti a áspera mão em minha pele. A parte de trás do caminhão estava quente por causa do sol do meio dia. A garota, encolhida no canto, tinha os fracos braços cruzados sobre o peito. Aterrorizada saltou furiosamente quando a jaula se abriu. -Socorro! Socorro! – gritou estendendo as mãos aos berros para Aaron e Michael. Eles olharam simultaneamente a garota e a pistola e iam ajuda-la, mas Leif os deteve, pondo as mãos em seus peitos. -Você fez isso Leif! –Arden gritou fechando os olhos e apontando com o dedo. –Isso é culpa sua! Fletcher subiu no caminhão. -Tem que pagarmos. –Leif exigiu. –Esse foi o trata! Confiei em você! – Dirigiu-se a cabine e bateu com os punhos na porta. Fletcher olhou pelo espelho, no vidro havia um buraco de bala. -Isso é uma selva. –Mostrando a pistola, continuou. –Não te fiz nada garoto. –Sorriu (os lábios rachados sangravam) e ligou o motor. Segurei as barras finas e as empurrei, esperando que cedessem sobre meu peso. O sol queimava minha pele, a jaula era muito pequena, o cobertor no canto cheirava a vômitos... Os gritos de Arden estremeciam-me e redobrava a tristeza,

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Leif nos traiu e Caleb havia ido. Todo o tempo que havia dedicado há noite para pensar se devia ficar ou não, e quando ir embora, foi inútil. O que eu queria? O que Caleb queria? Já não importava mais. Nós iramos. Alguém havia decidido por mim. Chutei a porta da jaula e aranhei a trava com as unhas. Chorei, gritei e implorei, mas nada, absolutamente nada, podia alterar aquela situação. O caminhão desceu o rochoso precipício, enquanto dávamos saltos dentro da jaula. Os garotos mais velhos levaram Benny e Silas para o acampamento, enquanto o enorme veículo serpenteava, dirigindo para o lago. Não tirei o olhar dos garotos, de Aaron que, agarrado ao braço de Leif, o implorava que fizesse algo e Kevin que lançou sua lança ao ar, mas caiu a três metros da cabine do caminhão. Continuei olhando o refugio e sua entrada escura atrás do matagal. Leif pegou Benny pelos ombros para prendê-lo, mas o garoto se soltou e correu atrás do caminhão, agitando os braços e as pernas com fúria. -Eu te amo!- Gritou quando estava apenas a três metros do caminhão. Agarrei as barras e ouvi sua voz. -Eu te amo!- Silas chorou quando o seguia. Ambos continuaram correndo como loucos por trás da jaula. Vi o movimento de suas bocas repetindo a mesma palavra mil vezes enquanto o caminhão balançava pelo bosque, até que os corpos desapareceram inalcançáveis, atrás das árvores.

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Vinte e Três O caminho acentuado pelo labirinto de paisagens entre os campos de erva daninha e arbustos. Por fim chegamos a uma estrada destruída. Acelerou a marcha e o pó se acúmulo no para-lama. O sol recaia na jaula metálica que tornava doloroso tocar nas barras. Após uma hora não reconheci o bosque que se estendia um por um pouco mais longe do caminho pedregoso. Inclusive o sol mostrava um aspecto desconhecido: uma grande extensão azul solitária e sem pássaros. -Eu sabia. –Arden exclamou depois de um momento (uma fina capa de terra a pele) – Leif queria nos vender, mas a que preço? –Com a mão tentou proteger os olhos do sol. –Em troca de uns remédios e uma parte do dinheiro do premio? -Queria que eu fosse. –Respondi- Duvido que se importe com os medicamentos. Queria saber o que aconteceu: se haviam registrado o armazém em busca de um rádio, ou talvez houvessem encontrado por casualidade ao buscar remédios para diminuir a hemorragia de sua boca. Também queria saber quando Caleb iria descobrir que fui capturada. Iria desmontar do cavalo quando visse Benny e Silas chorando em um canto do refugio? Se iria ajoelhar-se para inspecionar as largas estrias que foram criadas quando arrastaram meu pé, e se enfrentaria de Leif? Sentira menos falta de mim? Ele se importava? Daria no mesmo. Tudo estava acabado. Não havia forma de escapar das barras, nem do ardente sol, nem do homem de dentes amarelos quebrados. Estava presa outra vez, os muros da cidade se abriram para me levar até o rei. As portas da cidade se abriram e se fecharam atrás de mim, outra jaula. Jaulas trazem jaulas, sem perdão. Atrás das barras o mundo se movia rapidamente, mais veloz que antes, árvores, folhas amarelas nas margens da estrada, casas velhas de telhados destruídos... Vi cervos, coelhos, bicicletas dobradas, carros enferrujados e porcos selvagens. Tudo passava por mim por uma alta velocidade, como a água em um tubo. ―Vou a Cidade da Areia- Pensava outra vez, como seria a repetição se pudesse acontecer. – Entregar-me-ão ao rei. Nunca mais verei Caleb.‖

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Arden contemplava a paisagem fazendo um mar de lagrimas. Havia tentado libertar-se do colégio com todas suas forças e havia percorrido tanto caminho... Para o que? Para acabar em uma jaula por minha culpa? Sem duvida estaria pensando na estranha decisão que havia feito semanas atrás na sua casa que era seu refugio, e devia lamentar ter aceitado minha companhia. -Eu sinto. –Disse com uma voz engasgada. –Eu sinto por tudo Arden. Imagino que se arrependeu de ter aceitado ficar ao meu lado. -Não, não. –Tentou segurar nas barras, e observei que depois de ter passado um tempo no sol, sua pele pálida adquiriu um tom rosado. –Não se desculpe Eve. -E me olhou chorando. Nesse momento a garota que havia ficado calada em um canto da jaula moveu-se de lugar e sentou-se e esfregou o rosto. Estava muito histérica para falar com nós quando o caminhão arrancou, assim havia optado por ficar quieta sobre uma ardente placa metálica e havia dormindo, piscando constantemente por causa de pesadelos. -Quem são vocês? –Perguntou fazendo um gesto de dor ao esfregar-se contra as barras. -Eu me chamo Eve, e ela é Arden. –Disse indicando. Na cabine do caminhão Fletcher colocou uma musica e dedicou-se a zumbir uma canção cansativa e horrível: ―Eu amo rock n' roll. Então bote outra moeda na máquina de discos, baby‖. A garota estendeu a delicada mão para cumprimentar-nos. -Sou Lark. -Era de qual colégio? –Perguntei percebendo em sua camisola que era do mesmo tipo da nossa, mas azul em vez de ser cinza. -Do oeste, acho. – Esfregou com as mãos os longos cabelos negros. Aparentava ter uns treze anos, de pele muito morena, com roupas rasgadas e sem proteção nos cotovelos e joelhos, tinha os braços tão secos que os ossos do ombro sobressaiam, formando duas protuberâncias bem definidas. –As professoras o chamavam de ―Trinta e oito graus, trinta e cinco minutos norte e cento e vinte um grau, trinta minutos oeste.‖. Sabia que aqueles números significavam algo. Nossas professoras também os utilizavam para referir-se ao colégio, mas nunca imaginei o que poderia ser. Nós éramos a 39º30’ norte e 119º49’ oeste. -E você escapou. –Arden apontou. -Tinha que sair dali. –E a garota se retirou de novo para o canto da jaula, sem nos olhar.

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Dei uma olhada em Arden, aliviada que éramos as únicas que sabiam as verdades sobre os colégios. Observei as pernas de Lark, avermelhadas e com arranhões, iguais as minhas nos primeiros dias que passei a céu aberto. Teria, alem disso os braços cheios de picadas de mosquitos, e um buraco em uma das suas sapatilhas que deixavam o dedo gordo descoberto. -Como chegou aqui? –Eu quis saber Lark esfregou os cantos dos olhos, onde haviam secado as lágrimas deixando um rastro de sal branco e explico: -Encontrei um buraco no muro, não chegava a medir um metro de largura e iam conserta-los. Iam tapar pela noite para que não entrassem cachorros, mas eu escapei. –Nos mostro uma lágrima em um lado da camisa, através da qual se via o quadril. –Uma vez que estava fora corri até encontrar uma casa para dormir. Creio que faz quatro dias, mas não estou muito segura. -Como te acharam? –Arden perguntou, apontando para Fletcher, cujo grosso braço pendurado pra fora da janela, movendo ele pra cima e para baixo seguindo o ritmo da canção: ―Não se apresse para ir embora (dance comigo)‖. Entrelaçando os braços sobre as pernas, Lark se transformou em uma bolinha e nos disse: -Vi uma garrafa de água na estrada. Estava morta de sede porque caminhei o dia todo sobre o sol. Mas era uma armadilha. Creio que estava me seguindo. O caminhão ia dando pulos e balançavam as tripas. Agarrei-me então as barras, mesmo que irritassem a delicada pele das mãos. -Você disse a mais alguém sobre a gravidez? –Insisti. –As outras garotas também fugiram? Lark levantou a vista com expressai totalmente confusa. -Gravidez? Do que está falando? -Das mulheres. –Arden respondeu bem alto para que as palavras se ouvissem apesar da musica e do ruído do motor. Mas Lark continuou confusa. –Por isso fugiu, não? Iam te usar para reprodução. A garota colocou a sola do pé no solo metálico da jaula e endireitou as costas. -Não... –Repousou um tanto modificada. –Fui por causa disso. –Deu a volta e nos mostrou as linhas negras azuladas que corriam pela parte de trás dos bíceps. Eram marcas inconfundíveis do impacto sofrido por uma palmada. –A professora esperava a que as demais me encurralar para me ajudar. Eu procurava um colégio diferente, um lugar melhor. Não quero voltar a ver aquela mulher nunca.

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Pareceu-me que Arden estava decidida a explicar a Lark tudo sobre as vitaminas, os tratamentos de fertilidade e as horríveis habitações com camas metálicas, mas fiz um gesto com a mão para se calar. Minha amiga tinha inumeráveis virtudes, mas a sensibilidade não era uma delas. -Lark. –Disse com calma, atraindo seu olhar. –As alunas desses colégios, eu já fui uma delas, jamais aprenderiam uma profissão. Fomos chamadas cedo, e nossa missão era ter filhos, o máximo que pudéssemos, para repovoar a Cidade de Areia. Arden não se satisfez e explodiu: -Nos levam a cidade, Eve está destinada ao rei, e nós voltaremos ao colégio, direto há salas de parto. –A voz dela aumentou. -Não... –Lark repousou e mordeu a ponta do dedo e cuspiu a pele. –Não pode ser. -Eu também não acreditava, mas vi-as... -Não viu bem. –Lark insistiu ajoelhando-se. –Não sabem do que falam, A diretora é horrível, mas é resultado do inconcebível. –Negou com a cabeça. –Talvez só acontecesse no seu colégio. Não fariam algo assim para nós... Por quê? Arden se aproximou dela e lhe segurou pelo braço. -Escuta. –Ela disse entre os dedos, e a garota encolheu-se ao sentir seu hálito quente. –Atenda o que estamos dizendo, precisam repovoar a cidade. Como acham que vão fazer isso? Diga-me, como? -Solte-me. –Lark exigiu sacudindo o braço. –É louca. –Mas quando voltou para seu canto, sua voz estava mais apagada, mais fraca. -Se quer ser uma grávida pelo resto da sua vida, ai está. –Arden continuou, apontando com o dedo. –Mas nós não voltaremos ao colégio, eu não, tão cedo, não penso... –Fez uma careta e não concluiu a frase. Quando se sentou novamente, seu corpo parecia menor e mais frágil do que antes. Dei-me conta que éramos observadas, de modo que quando me virei e deparei com o olhar de Fletcher no espelho sujo. Deixamos de ouvir a musica e ele abriu a janela traseira da cabine. -Não se preocupem queridas. –Disse. –Não vou levar vocês ao colégio. – Baixou o espelho para olhar as pernas desnudas de Arden. –Três garotas... Tão puras. Posso ganhar muito com vocês em qualquer parte. Disse isso, sintonizou outra vez na musica, percutindo com os dedos na porta lateral: ―Não se apresse para ir embora (dance comigo)!‖.

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Arden não respondeu, mas tentou novamente abrir o cadeado da jaula, golpeando até que seus dedos ficaram vermelhos. A paisagem desaparecia voando e convertia-se em uma mancha de terra amarela, enquanto os ramos das árvores apontavam para a estrada, como se fossem garras. -A que ele se refere?- Lark perguntou. O lábio inferior tremia. Apesar de ser uma desconhecia a odiei, porque havia algo nela muito familiar, O seu rosto eu via a mim mesma, uma garota que confia no colégio, um lugar seguro graças aos seus muros, suas normas e as ordenadas filas que eram formadas para sair dos dormitórios ou para ir comer. Ela acreditava que poderia dirigir um local diferente e conseguir algo melhor. Outro futuro. -Vai realizar seu desejo. –Respondi incapaz de reprimir as frias palavras que espaçavam pelos meus lábios. –Nunca mais vai ver sua diretora.

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Vinte e Quatro Estávamos há horas no caminhão, meio sufocadas pela poeira. Inclusive o sol nos deixou e se escondeu atrás das árvores. De vez em quando o sono vencia, sempre com esperança de ter tempo (tempo para nos prepararmos para fugir), mas em um momento nós despertamos ao ouvirmos o som de um aparelho que Fletcher levava preso na cintura. -Fletcher maldito! Que horas pensa em chegar? Tenho muita demanda e pouca oferta. Encolhi-me em um canto. Lark dormia em outro canto e Arden apertou-se contra mim, o brilho avermelhado das luzes traseiras iluminava o rosto. Fletcher aproximou o estranho rádio nos lábios, apertando um botão para eliminar a interferência. -Espere um pouco, você está muito animado. –Zombou- Tenho que parar durante a noite. Chegaremos pela manhã. Ouvi mais interferências, e então um riso maléfico ocorreu. -Conte-me o que tem. Venha faça um pequeno resumo para os garotos. Imaginei os mesmos homens que havia visto na cabana, homens com pele bronzeada pelo sol, num tom marrom cor de borracha, instalados sobre a lona de um acampamento, esperando nossa chegada. Coloquei o nariz entre as grades, desesperada para respirar. -Serão algumas moedas. –Fletcher explicou, nos observando pelo retrovisor. –Amanhã as terá, um punhado que sairá. –Desligou o radio e sintonizou novamente na musica. No colégio havia defendido em uma ocasião a bondade nas pessoas e sua grande capacidade de mudar. Mas ao escutar todas as conversas daquele homem falando pelo rádio, entendi o verdadeiro significado. De tudo que a professora Agnes havia nos disse, havia uma coisa certa: alguns homens viam as mulheres como mercadorias, como se tratasse de combustível, arroz ou carne enlatada. Arden virou-se me dando as costas e sussurrou: -Temos que sair daqui. Nesta noite mesmo. -Ele nos matara. –Lark disse, cobrindo as pernas com o cobertor surrado. -Já estamos mortas. –Arden respondeu.

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Concordei, pois, sabia que tinha razão. Eu havia descoberto no armazém durante o enfraquecimento de Leif, a redenção do meu espírito, a redenção completa, a ponto de me romper totalmente. Fletcher não mudaria de ideia, nem ganharia honra de repente. A moral não acordaria no meio da noite. Certifiquei-me quando pude olhar minhas companheiras, cobrindo o rosto com o pano para que Fletcher não visse o movimento de meus lábios se nos olhasse. -Podemos escapar quando parar de acampar. –Disse nervosa. Olhei entre as grades, esperando ver um sinal da estrada, uma placa, alguma indicação de onde estávamos, mas só existia a escuridão. Horas depois o caminhão desviou da estrada e as rodas bateram sobre pedras e ramos de árvores mortas. Paramos em uma clareira. O céu estava coberto sem rastros da lua. A paisagem havia mudado, os bosques haviam deixado os passos sem cultiva-los, e as ervas daninhas e a areia que aparecia abaixo da brilhante lâmpada do veiculo, a luz que nos dava proteção externa sombras densas –mistura da montanha e do penhasco- que pairavam sobre nós. Fletcher desligou o caminhão, espreguiçou os braços e foi urinar sobre os arbustos. -Faça o que dissermos – Arden murmurou, agarrando os pulsos de Lark. -Esta bem. –Ela respondeu com voz tensa, disposta. –Estou preparada. -Temos que fazer nossas necessidades. –Golpeou as barras. –Por favor, nos deixe sair. Fletcher subiu o zíper da calça, e murmurou: -O que? -Eu disse que temos que fazer xixi. –Arden respondeu, penteando o cabelo da testa. O homem fez um gesto afirmativo, como se entendesse melhor essa expressão. Iluminou a jaula com a lanterna e depois os arbustos onde havia uma casa abandonada ao pé das gigantescas rochas. -As três? -Sim, as três. –Arden respondeu inclusive Lark fez um gesto convincente. Fletcher iluminou o rosto de Arden, depois a de Lark, e por fim a minha. A forte luz me fez piscar. -Dois minutos. Podem ir ali onde estão as árvores. –A lanterna percorreu uma zona de árvores carbonizadas, pretas e torcidas pelo fogo. –Mas não se atrevam a dar um passo sem minha permissão... –Tirou a pistola da cintura e levantou ao ar.

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Lark acelerou a respiração quando Fletcher abriu o enorme cadeado. Saímos em fila: Arden primeiro, depois eu, e Lark a ultima. Ele focou em nossas costas enquanto caminhávamos pelo bosque. Iluminadas por aquele brilho, as árvores resultavam mais ameaçadoras, mas os ramos, desprovidos de casca e de folhas se entendiam sobre nós, quase nos convidando a entrar. -Ainda não. –Sussurrei sem se Lark ou eu que precisava ter mais certeza. Caminhamos entre as erva daninhas, verificando como, cresciam entre as raízes cinzentas, surgiam novos ramos, hera crescendo e samambaias, esperançosas signos de resistência. Quando chegamos junto às árvores Arden me olhou com uma expressão doce, e esboçou um sorriso que só eu pude entender ―Talvez isso seja uma despedida, embora fosse sentir na alma se assim fosse.‖. Entramos uma atrás da outra no matagal. Olhei a brecha entre as árvores, mas não havia nada entre elas. Então Arden deu a ordem, em voz tão baixa que só eu ouvi. -Agora. Comecei a correr, meu corpo se tornou leve enquanto corria entre os galhos quebrados e arbustos espinhosos, entrando no bosque queimado. Entre os braços a escuridão para tatear o caminho. -Malditas... –Fletcher gritou atrás de nós, pisoteando no claro com suas botas. –Cortarei seus pescoços! Lark e Arden entraram entre as árvores e se separaram na penumbra. De imediato o primeiro disparo foi no ar, silenciando os pássaros e os insetos. Cai no chão, tremendo que Arden gritasse, mas só ouvia o ruído de passos, os galhos quebrando e o ruído da respiração de Fletcher atrás de mim. Continuei correndo, tateando entre os arbustos entrelaçados, mas ele se aproximava cada vez, mas, sua sombra aparecia e desaparecia entre as árvores, sem cansar de avançar. Levantei fazendo um grande esforço, havia torcido o tornozelo. No final da busca pelo bosque uma luz pairava na janela da casa que eu não distingui, mas a varanda dianteira e o telhado lateral formavam um bloqueio no meio da difusa paisagem. -Volte. –Fletcher gritou. Meu pulso criou uma dor que ia até a ponta dos dedos das mãos e pés. Corri para a luz notando uma sensação de asfixia no peito e nas pernas cansadas. ―Continue- Disse a mim mesma. - Continue em frente.‖.

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Em seguida sai do bosque me encontrei em um campo aberto que era uma densa extensão de flores silvestres. A luz estava muito mais longe do que havia calculado: os quase cem metros abaixo da impotente montanha. A pisada de Fletcher ressoava nas pedras ao cruzar o bosque ao mesmo tempo em que gritava com mais fúria: -Porca asquerosa! Não acredito que tenta enganar-me. Dei uma olhada ao redor, à esquerda aumentavam os riscos, dando-me as costas, uma estrada de ária serpenteava na direita Na minha frente tinha mais e mais árvores, mas ainda que corresse como uma desesperada não podia evitar que Fletcher me alcançasse. O único esconderijo era o grande campo de flores, cujos delicados brotos mediam apenas alguns centímetros. Sai do chão e meus dedos esmagaram os casulos azuis e dourados. Então me pus de lado, tentando me esconder entre os brotos. Quando levantei um pouco a cabeça observei Fletcher junto às árvores, sangrava uma parte da testa. Deu uma volta gritou. -Saia, saída daí, da onde quer que esteja!- Levantou a pistola e fiquei com os cabelos em pé. Enquanto avançava pelo campo, me aproximei mais do solo, desejando que abrisse e me engolisse. Meu perseguidor caminhava lentamente, afastando as flores que chegavam à altura do joelho e apontando a pistola para a clareira, a cada passo afastava os brotos. Quando estava apenas a dois metros de mim, olhou onde estava e com um gesto confuso inclinou a cabeça, como se não soubesse se era uma sombra ou não. Permanecia imóvel, sem atrever-me a respirar, e juntei os dedos na terra. O suor descia pela costa e não me chegava o ar aos pulmões. Após pensar bem, deu a volta e afastou-se. Fechei os olhos, aliviada porque não havia me visto e porque ao menos Lark e Arden tinham um minuto a mais para escapar. Deitei-me de volta entre as flores, respirando fundo, mas um ramo se partiu abaixo de mim. Crack! -Olá, boneca! Levantei-me antes que apontasse a pistola. O primeiro disparo zumbiu junto a mim e corri com o coração a ponto de saltar. O vento rugia nos meus ouvidos. Deu outro disparo que partiu a árvore no meio. Continuei correndo, sem olhar para trás, enquanto ele continuava atirando. De repente não se ouviram mais disparos, só o click metálico do gatilho. Dei a volta e vi como golpeava a pistola sem munição. Corri entre as flores, mas Fletcher recuperou o ritmo, seus passos arem mais rápido que antes, embora bufasse pelo esforço.

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-Acabou. –Disse preparando para atirar. Virei no preciso instante que levantava a pistola apontando para minhas costas. Fechei os olhos com todas minhas forças e torci para ir mais rápido, mas meu corpo não se contorceu como se fosse dos cervos, para abandonar o mundo sem dores fortes. O disparo ecoou. Levei a mão ao peito esperando que o sangue brotasse pela ferida e sentisse a ardente sensação da bala rasgando a pele. Mas não havia nada, nenhum buraco, nenhuma dor. Nada. O homem estava imóvel atrás de mim. Deixo cair à pistola. Uma mancha vermelha se estendia lentamente e progressivamente no meio de sua camisa, deslizando pelas costas e por baixo do peito. Emitiu um som sufocado e caiu entre as flores com a boca aberta. Descobri então uma figura no campo, uma anciã se aproximava. Aparentavam ter uns setenta anos e levava o fantasmagórico cabelo branco preso em uma trança nas costas. Acariciava o rifle com a mão como se fosse uma mascote cativante. -Está bem? –Perguntou examinando meu rosto. Eu mantive a mão fechada no peito, tentando me acalmar sentido as batidas do coração. -Sim... –Consegui dizer. –Creio que sim. A mulher pegou a pistola de Fletcher do solo e esvaziou a munição na mão. Logo lhe deu um violento chute no lado. Não se moveu. Estava morto. -Ainda bem. –Murmurei sem saber se era o mais adequado ou não. A mulher sorriu seu rosto, apesar das rugas, era belo. -Marjorie Cross. –Apresentou-se dando a mão envelhecida. –O prazer é meu.

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Vinte e Cinco -Já chegamos. –Marjorie anunciou entrando na casa. –Acomode-se. –Indicou a sala onde havia um sofá na frente da lareira, decorado com tapes de encaixe amarelo em cada ponta. Sobre o fogo havia uma folha que impregnava o odor de frutas silvestres. Indiquei Arden e Lark que entrassem. -Não se preocupem. –Sussurrei enquanto Marjorie deixava as armas na mesa da cozinha. –Estamos a salvo. -Otis! –A mulher gritou, aproximando-se da escada. –Otis! –Levantou a mão a garganta ao pronunciado o nome e a voz suou rouca. –Eu sinto. –Se desculpouNessa época não há forma de adquirir aparelhos audiofônicos. E você se torna responsável, certo? -Falar da pintura dessa casa me deixa louca. –Arden sussurrou quando nos sentamos no sofá. Ela acariciava um lado do braço, onde havia feito um rasgo no ombro até o cotovelo, e em lugares que haviam saltado a pele se via uma ponta cinza na ferida. -Dada a casualidade que esta louca acabou de salvar sua vida. –Havia recordado no bosque durante vinte minutos, chamamos Arden e Lark, até que por fim apareceram, temiam que fosse uma armadilha que Fletcher tramou. Acompanhamos logo a Marjorie até a casa das telhas, escondida entre as árvores e iluminada só por uma lâmpada que reluzia na janela. Era a luz que havia visto quando fugia de Fletcher. A senhora apalpou na cozinha, levando vários pratos com uma mão. -Está muito bom aqui. –Afirmou Lark. Tinha a cara molhada e a camisa manchada com lama avermelhada. –Eu gostei. O sofá era o confortável e as almofadas não cheiravam a mofo como a maioria deles depois da epidemia. Também havia uma vitrine cheia de delicadas cheia de vitrines de chá, nenhuma lascada, e de figuras de porcelana que representavam garotos dançando entrelaçados ou olhando por um telescópio. Contraria à bancada da cozinha, estava a grande mesa de madeira de jantar, e sobre ela uma bandeja de prata com tomates vermelhos, amarelos e verdes. Recordei dos livros mais cobiçados da biblioteca do colégio cujo protagonista era uma garota chamada Nancy que tinha tutus, grampos para o cabelo e outros luxos que não era disponível para nós. Quando Pip, Ruby e eu éramos pequenas nos encolhiam na minha cama e líamos as historias da família de Nancy e às vezes iam

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à sorveteria e outras vezes a garota brincava com seus pais, colocava óculos no seu pai e pintava as unhas da sua mãe. Era a casa que sempre quis ter, o enorme sofá que nos sentava, as plantas sobre as mesas, o armário cheio de roupas e brinquedos... Um lugar de verdade, com paredes pintadas e com moveis combinando como o que nós encontrávamos agora. Sobre a lareira de tijolos havia numerosas fotos emolduradas. Em um retrato em preto e branco se via uma garoto com um avental quadriculado e em outro um garoto com um traje branco e uma flor no botão. Outra fotografia mostrava um casal jovem usando calças com a cintura alta, de braços dados: a mão da mulher de cabelos loiros, um pouco maior que eu, repousava sobre o peito do homem. Pensei imediatamente em Caleb. Ele deveria estar em alguma parte convencido de que havia feito o certo. Eu não poderia apaga-lo da minha memória, recordava como havia perdido o carinho da sua mão e minha insegurança quando pergunto o que havia passado com Leif. Caleb vagava por ai, sem mim. -Vejo que temos visita. –Um homem de cabelos prateados desceu a escada, movendo a perna com grande esforço. Inclusive era mais velho que Marjorie e levava a camisa de flanela dobrada de qualquer jeito nas calças, balançando a parte dos joelhos, pois o uso havia deteriorado o tecido da coberta. Lark se assustou ao ver o velho e compreendi que umas semanas atrás o mesmo aconteceu comigo. Mas depois de passar tanto tempo com Caleb, cavalgando com ele ou caminhando ao seu lado no bosque, havia perdido o medo. Marjorie se ajoelhou junto à lareira e serviu uma colher de sopa de frutas silvestres em cada prato e informou ao homem: -Eu as encontrei no bosque. Um bastardo queria matar-elas. – Olhou a Otis com intensidade e percebi que queria dizer algo que não era possível expressar com palavras. -O que fazem por aí? –Otis aproximou-se de uma cadeira da mesa de jantar, arrastando os pés pelo piso de madeira liso e sentou-se junto a nós. As lagrimas caíram dos olhos de Lark que começou a falar: -Esse homem, Fletcher, nos capturou. Levava-nos para algum lugar onde nos venderia. –Enquanto falavam afastou os cabelos das orelhas, as mãos tremiam um pouco. -Somos dos colégios. –Arden explicou. –Nos escapamos. Marjorie ofereceu-me um prato de frutas cozidas, e aspirei ao penetrante aroma. Minúsculas rosas decoravam a borda do prato de porcelana, era um agradável contraste entre os simples pratos metálicos da louça do colégio e as tigelas de madeira perfurada que Caleb nos ofereceu no refugio.

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-Quanto tempo tem ficado por ai sozinhas? - Marjorie perguntou. -Quatro dias. –Lark respondeu. Perguntou a Arden e a mim. Comi a fruta e respondi: -Não tenho certeza... Umas semanas? -Certo – A anciã admirou-se –Ai fora se perde a noção do tempo. –Voltou a observar Otis- Aonde iam? Arden me olhou pelo canto do olho e calou-se, eu encolhi os ombros. Era perigroso confiar em ninguém, mas aquela mulher salvou nossas vidas. -Seguíamos a rota oitenta até um lugar chamado Califa. –Arden respondeu, pegando a comida com um garfo. -Muito inteligente. –Otis reconheceu. Ao sentar-se as calças deixaram os tornozelos descobertos, a perna direita era de madeira. Observei as veias, a curva do pé grosseiramente cortada e a cunha fora introduzida no sapato. Parecia que tivera usado um tronco quebrado para fazê-la. –E como iam chegar? -Nós perdemos na pista da estrada. –Admiti- Assim não sei. Lark, morrendo de fome, levou a boca os frutos silvestres. Marjorie olhou uma vez mais para Otis. Levantou-se e aproximou-se da lambada da janela, pegou-a apagando a velha e disse: -Eu sei. Então reparamos em uma estante atrás dela, onde havia um radio preto com um headphone de cada lado. -A rota!- Exclamei em voz alta, sem dirigir-me a nada em especial. -Sim, aqui você tem acesso a ela. –Otis apontou para o chão. -O que quer falar?- Arden quis saber. Soltou prato sobre o colo e golpeou a porcelana com o garfo. Eu havia considerado contar a ela sobre a rota quando estávamos na casa de Paul, mas ela teve muita febre e obviamente não havia ouvido. Marjorie se aproximou, entrelaçando as mãos e nos explicou: -Esta é uma casa segura, uma parada no caminho que vários refugiados usam para chegar a Califia. Ajudamos os doentes a fugirem do regime do rei. Sem tirar a vista da vela, cujo pavio negro soltava uma nuvem de fumaça, Lark comentou:

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-Mas os soldados não conhecem esse lugar? –Cruzou os braços magros sobre o peito protegendo-se. -Suponho- Otis respondeu- Vem em seus SUVs de vez em quando, nos interrogam e registram a casa. Mas sem problemas de delito, não podem fazer nada. Temos permissão de viver fora da Cidade da Areia. -Permissão?- Perguntei. Havia ouvido falar dos dispersos, mas eram mendigos ou vagabundos. Os identificava com quem nos livros antigos denominavam de ―pessoas sem teto‖, mas não como nós que vivíamos em casa, em verdadeiros locais como aquele. Otis abaixo a perna da calça para cobrir a perna de madeira, e nos explicou: -É um processo muito longo, e poucos optam por ele ao menos que haja uma razão convincente. Mas somos velhos, as pessoas como nós não se interessam na Cidade de Areia. Em geral nos deixam em paz. Lark mordeu a pele do dedo. O calor da lareira havia reanimado as bochechas, resaltando a beleza de seu doce e arredondado rosto. -O que fariam se descobrissem que estão nos ajudando? -Nos matariam- Marjorie respondeu, tranquilamente. Olhava para a madeira queimando, rangia e as cascas queimadas eram destruídas entre as chamas. –O rei não tolera a oposição. Têm acontecido muitos desaparecimentos na cidade. Por exemplo, um cidadão que ajuda com a rota, Wallace, falo da missão de um informante, e faz uma semana que desapareceu. Segundo sua esposa, o tiraram da cama para leva-lo para Deus sabe onde. Encolhi os ombros a língua na boca como uma serpente seca. Quantas vezes havia sonhado com aquele lugar, as ruas limpas com pizzarias e as praias artificiais em que as mulheres sob guarda-chuvas! Como havia acreditado naquelas mentiras por tanto tempo? -Existem mais como nós daqui a uns dias. –Otis anunciou- Logo irão para outra casa segura. Se reconhecerem a luz na janela, se estiver acessa, há um lugar para vocês. Lark que continuava mordendo os dedos e arrancando a pele até tirar sangue, refletiu: -Mas se não nos capturem, nos matarão... Como você disse. Marjorie dobrou uma mecha do cabelo branco da trança e embora o brilho do fogo projetasse sombras que piscava sua voz não mudou quando disse: -Há duzentos anos, Harriet Tubman, ajudava os escravos a conseguirem a liberdade. Quando eles se manifestavam que não confiavam em fazer e que tinham

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muito medo, ela apontava uma pistola (fez um gesto como se tivesse uma arma na mão) e lhes dizia: ―Continuem ou morram.‖. Otis pousou sua mão sobre a da mulher, desviando a pistola invisível. Em seguida fechando os olhos, nos explicou: -Eu que tenho que dizer se há lugar para o medo. O medo é à base do regime do rei, a ideia de que todos estão muito assustados para viver de outra forma. Lembrei-me de ter tido essa sensação quando estava a ponto de passar pelo muro. Pensei que havia enterrado muitas coisas e ainda havia visto o edifício horrível, uma vez passando pelo lago, mas algo me segurou naquele momento ouvia um grupo de alunas comentando sobre os presos e bandidos do exterior, assim como a constante batida dos dedos como garras da diretora Burns contra a mesa, fazendo-me tomar a vitamina e lembrei-me das violentas professoras que ajudavam a aumentar o terror, ao falar sobre homens, seres capazes de manipular as mulheres com um simples sorriso, Meu passado, para, se havia fundido de repente com uma sedutora canção para me disse-se para não fugir. -Suponho que estejam cansadas. –Marjorie disse por fim. – Vou mostrar os caminhos para seus quartos. Enquanto Otis recolhia os pratos ela nos guiado por uma estreita escada de madeira. Debaixo da casa havia um porão cheio de cadeiras empilhadas e caixas, uma maquina surrada com um teclado cinza e jornais molhados. Cori ao que estava sobre todos: o New York Times. Via-se uma fotografia de uma mulher tendo os braços sobre uma trincheira, com a boca aberta como se lamenta. Lia-se ―Em plena crise as trincheiras separam as famílias‖. As professoras haviam descrito aquela cidade, a epidemia havia afetado os edifícios inteiros de apartamento cujas portas se foram fechadas com cadeados, com pessoas no interior. -Aqui? –Arden perguntou apontando para um velho sofá no canto. Acendeu uma lâmpada e iluminou um quarto secreto. Duas filas de beliches ficavam na parede e havia uma pia metálica no canto. As paredes eram de terra sem reboco e um fino tapete cinza cobria o chão, também de terra, me lembrei da habitação de barro dos garotos. -Aqui é melhor caso os soldados nos surpreendam na note. Ao dobra a esquina apenas a cem metros, havia um alçapão que levava ao jardim. Tem algumas toalhas, algumas roupas e sapatos. -Disse olhando para nossos pés descalços. Arden entrou na despensa e deitou-se em um beliche de baixo. -É bem grande. –Comentou. Lark também entrou e trocou a camisola por uma camisa limpa antes de derrubar-se sobre o colchão, cobrindo as pernas com uma fina coberta. Apoio à

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cabeça na almofada e pela primeira vez relaxou, amolecendo a expressão enquanto se preparava para dormir. Eu tinha o estomago cheio de frutas silvestres, e as batidas do coração haviam recuperado um ritmo normal e constante. Continuávamos sendo fugitivas e estávamos em perigo, mas não sentia o terror. Contemplei o rosto amável de Marjorie. -Vamos entre. –Apontou outra vez para a dispensa. O cheiro de barro que vinha de sua roupa transmitia uma familiaridade que me reconfortava. –Aqui estarão a salvo... Eu prometo. Não pude evitar abraça-la, buscando consolo no calor de seu corpo. Os professores nunca nos tocavam, a menos que fosse uma simples palmada nas costas quando íamos comer um firme toque no ombro quando nos distraímos na aula. O primeiro ano que estive no colégio pedia a professora Agnes que desfizesse o cabelo, gritou e a girou os braços batendo a escova contra a pia de porcelana. Mas ela permaneceu imóvel por quase uma hora, com as mãos no bolso sem se mover até que eu me livrasse sozinha dos nós. Pouco a pouco Marjorie levantou os braços e também me abraçou. Apertei as mãos contra os ossos duros de suas costas e percebi que na realidade era muito pequena sobre a camisa de linho solto. -Obrigado. -Repeti sem parar, até que ficasse sem voz. –Obrigado, obrigado.

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Vinte e Seis Acordamos com o cheiro de pão novo. -Hoje temos ovos frescos, garotas. –Otis anunciou arrumando as cadeiras sobre a mesa de jantar. Observei as carnes que nos ofereciam: ovos cozidos e mexidos, carne de javali e salada cortada em finas fatias e pão recém-tirado do forno feito por Marjorie. Sorri embriagada pela emoção. -Que mesa bela! –Exclamei. Lark se sentou e se serviu de um bom pedaço. Ainda na camisola. Arden examinou a mesa, olhando as janelas dianteiras e laterais, nas portas que dava a horta, as cortinas estavam abertas. -São vampiras?- Meditaram. Marjorie foi para a cozinha, cortando tomates e colocando-os na bandeja. Recordei da perseguição no bosque, de Fletcher e a ferida que aconteceu por causa do disparo. -Existe algum corpo ai forra?- Perguntei para ela. A mulher parou de cortar os tomates e fechou a janela diante da faca. -Bill e Liza ocupam o espaço. -Quem são?- Arden perguntou, observando a bandeja de carne vermelha. -Nossos ―gatos‖- Ela respondeu e serviu os tomates a Otis, mantendo sempre a mão na garganta. Lark engoliu saliva e observou alternativamente ao casal. -Seus gatos cuidaram do Fletcher? Otis fez um gesto afirmativo e comeu um pouco de carne. Abri a cortina dianteira, deixando que entrasse um pouco de luz branca nas partículas de poeira flutuante. Uns metros dali dois pumas devoravam os restos de Fletcher, afundando as mandíbulas na carne ensanguentada. Um dos animais tinha uma mão do homem na boca, os dedos rosados sobressaiam pelas presas. -É melhor que não se aproxime da janela querida. –Marjorie sugeriu, convidando-me para voltar à mesa. – Sempre existe o risco de um soldado estar vigiando.

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Lark mastigou um pedaço do javali e olhando com cautela para Otis e para a mulher, perguntou: -São... Casados? A mulher mostrou uma expressão de divertimento, acariciando os dedos do homem e confessou: -Conheci Otis muito tempo antes da epidemia, na época que vivia em Nova York. -Não devem saber o que é Nova York. –Otis brincou. Marjorie coçou o nariz, fazendo de surpresa e voltou a nos falar, mas sua expressão era distante. –Ficava do outro lado do país e era uma das cidades mais espetaculares do mundo, os prédios brotavam do solo, e as calçadas sempre tão cheias de gente que dificultavam caminhar por elas, havia trens subterrâneos, e na rua podia comprar hot-dogs. Eu havia lido livros que se passavam nessa cidade: O Grande Gatsby, A Casa da Alegria, mas não acreditava muito nele. Eram tão imagináveis como o numero de pessoas que lotavam os arranha-céus e as ruas... Não havia visto tantas pessoas na minha vida. Marjorie pegou as mãos de Otis e deu um beijo nele. -Obrigado, querida. Viva em Nova York e uma noite ele sentou na minha frente e começou a contar uma historia absurda sobre reciclagem. -Não era sobre reciclagem. –Ele soltou uma risada. – Mas da no mesmo. -O que é reciclagem?- Arden quis saber. -Não importa. A questão é que não fiz caso. –Marjorie continuou. –Senão observa-o e pensar: ―Esse homem, essa pessoa, nem sei como se chama, mas está cheio de vida‖ Ele era o ser humano mais fascinante que havia conhecido até ficarmos mais familiarizados. –Agora foi à vez de Otis de dar um beijo na mão dela. Então recordei como olhava para Caleb, como percebia cada centímetro que nos separava o modo em que a cicatriz em forma da lua crescente que tinha na bochecha, que enrugava quando ele ria, ou como olhava para frente quando ia decidir algo importante. -Continuo pensando que é uma pessoa distante, mas a cada minuto que passo com ele, mais quero ele. –Concluiu. Arden colocou um bom numero de ovos na boca, depois perguntou: -Por isso não foram embora com os outros? Iam se separar quando o rei convocou as pessoas para Cidade da Areia?

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A mulher abaixou o olhar e correu com um dedo as veias da mesa de madeira antes de responder: -O rei não queria pessoas como nós na cidade. Somos muito velhos para servir de algo. Queria que eu desse aula em um colégio e que Otis cavasse buracos nos campos de trabalho. Mas não foi por isso. -Não fomos, pois não seria justo. –Ele explicou- Nem é agora. -Durante a epidemia e quando acabou todos ficaram apavorados. –Marjorie continuou dizendo. –Antes havia um governo oficial, uma democracia. Mas a doença avançou com muita velocidade, e metade dos lideres do país morreram em seis meses. As leis perderam significado, e ninguém estava lendo a Constituição e a informação foi censurada. Agora em parte é feito propositalmente. Durante muito tempo sem eletricidade ou telefone, não nos deram explicações sobre o que estava acontecendo. Mais a frente um político presenteou um plano de reconstrução, no principio ficaria no poder até que tudo se normalizasse, mas após dois anos antes do fim da epidemia. E posteriormente todo mundo confiava nele e acreditavam quando dizia que a America devia unificar um único líder. Estavam muito assustados, assim que se limitaram a escuta-lo e obedecê-lo, jamais iam questionalo e todo piorou. -Talvez, as coisas mudem se esperarmos um pouco. – Lark apoiou o rosto nas mãos. –Não será sempre assim. Quando a Cidade da Areia estiver acabando e... -O tempo não importa. –Marjorie a corrigiu, usando termos firmes que a memória ditava. – Devemos pedir desculpas a está geração não só pelas palavras e pelos feitos horríveis das pessoas, temos também que explicar o silêncio dos bons. Otis se encolheu na cadeira, esticando a perna de madeira e disse um nome: -Martin Luther King Júnior. -Quem é ele? –Perguntei ao mesmo tempo em que pegava o ultimo pedaço do javali. Otis e Marjorie trocaram olhares. -Ainda tem muito que aprender jovens senhoras. -Temos vários dias. –Respondi. Havia estudado muito no colégio, mas naquele momento tudo o que aprendi me parecia banal. Minha verdadeira educação havia começado ao conhecer Caleb, e me deu a impressão de que se ele não desse o inicio, nem seria capaz de saber a verdade. -Se de fato. –Marjorie afirmou. Deslizou suas mãos sobre a mesa sem tirar os olhos de seu marido. -Mas nesse momento por que não traz o projetor? Tenho certeza que as garotas não viram um filme como Deus manda.

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O homem foi até o centro da sala, onde havia uma caixa plana conectada a um enorme feixe coberto com uma fita cinza brilhante. -Funciona com pilas de tipo DE – Explicou dando um tapa na parte superior. –Eu o inventei. –Apertou vários botões e um retângulo branco apareceu um retângulo branco na parede, em cima da lareira. -O que é isso?- Lark perguntou sentando no sofá e colocando uma almofada sobre o colo. Começou uma musica lenta e na parede surgiu a palavra GHOST. Só havia visto pequenos trechos do vídeo sobre a parte de trás do muro do colégio. Nessas ocasiões nos apertávamos sobre a minúscula tela que a professora segurava entre as mãos, e olhávamos imagens de cães selvagens comendo veados, ou de bandidos que se arrastavam pela grama para não capturarem ele. Mas o que víamos agora era totalmente diferente. As tomadas se sucediam na tela, um martelo caiu em um muro em ruínas, uma mulher colocava os braços de um homem e passavam, eles caminhavam pelas ruas de grandes cidades, como Otis havia descrito... Arden e eu estávamos de pé, absolvidas pelas imagens. -Podem sentar. –Marjorie disse rindo, e nos conduziu ao sofá. Cai sobre as almofadas e logo fui absorvida para entrar no mundo que tinha na minha frente. Corei quando Sam abraçou Molly e eles desmontaram a úmida peça de cerâmica entre os dedos, fiquei tensa só podendo respirar quando assaltaram ele em um beco escuro, e no fim cobri a boca com a mão não chorar quando despediram-se. A parede ficou escura, e Lark pediu a Otis que passasse outro filme. Mas eu era incapaz de falar. Acabamos de ver um filme sobre o amor, a separação e a morte, não pensava em nada mais que em Caleb. -Eu vou para a cama. –Disse procurando não tropeçar em Arden. Marjorie deixou de rebobinar. -Está bem querida? -Fique. –Lark implorou. –Podemos ver outro. Mas eu já estava na escada do porão. -Estou bem, mas cansada. Deve ser o acumulo de tantas coisas. –Menti. Ardem me deu a entender que compreendia quando comecei a descer a escada. -Às vezes fica assim. –Ouvi o que ela dizia. –Mas não é nada importante. Na escura habitação secreta, fiquei na cama e comecei a chorar muito. Eu chorei com todas as forças e afogando soluços de quem não pode respirar. Só disponha disso aqui, da esperança que o caminho para Califa e de uns poucos dias antes de recomeçar a marcha. Mas nunca voltaria a ver Caleb.

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Quando Lark e Arden desceram horas depois, colocando as caixas ao lado delas, eu fingi que dormia. Arden cobriu meus pés com o cobertor e envolveu com cuidado. -Boa noite. –Sussurrou. A respiração das duas ficou mais suava, mais lenta até que sumissem em um profundo sono. Mas não dormi, era impossível. Pensava na estante de madeira que cobria a parede de Marjorie e no radio que havia sobre ela, e imaginei Caleb aquela noite no campo de trabalho, manipulando o pino do aparelho sem parar escutando enquanto estava na sua cama. Também me lembrei do radio que tinha na mesa de sua habitação, seguro que também tinha ouvido. Como iria receber se não, as noticias da cidade, ou se comunicaria com Moss? Levantei-me sem sentir as horas que haviam passado, nem a agonizante viagem com Fletcher, nem as lagrimas que havia derrubado. Segurei as latas com o maior cuidado, e tive uma ilusão; ―A égua de Heloise é muda, porém, está aqui‖. A sala estava escura. Avancei a tatear e por fim encontrei uma lanterna na mesa da cozinha. Pensei em falar com Marjorie, mas não sabia explicar as coisas: o saque, o acontecimento com Leif e a frase que havia feito Caleb sumir. Abri, em seguida, os armários da cozinha e busquei entre tantas garrafas e jarros de comida um pedaço de papel que havia uma localização. A professora nos disse que antes da epidemia, existia um sistema para repassar a correspondência, era chamado de ―endereço‖. Verifiquei uma caixa de ferramentas e outra que havia pilhas, tiras de borracha e cola. Na mesa atrás do sofá encontrei fotografias antigas de Marjorie, jovem e grávida e uma garota pequena agarrada a sua perna. Encontrei outra foto de duas garotas cheias de espuma. Foi estranho que não tivessem falado de suas filhas e que as paredes não tivessem muito vestígios delas. Também descobri três panfletos com papelão grosso que mostravam paisagens. Um deles dizia ―Phuket- Tailândia‖, onde o mar se perdia no horizonte, e na parte de trás alguém havia escrito: ―Olá mamãe e papai. Tom e eu estamos passeando muito. Aqui se encontram as praias mais lindas do mundo. É um paraíso. Com amor, Libby‖. O endereço era ―Sedona, Arizona‖. Peguei o radio da estante e manipulei o pino como havia visto professores fazerem em assembleias no colégio. Havia interferência. Com o aparelho em mão, puxei o botão, as interferências pararam. Falei lentamente, procurando que todas as palavras soassem claras: ‖Se nas ilhas do sul houvesse neve e a neve voltasse a ser azul, a égua muda de Heloise adoraria a neve azul‖ Repeti uma vez, duas como se estivesse uma verdade muito simples: Eu sentia falta dele, eu precisava dele, estava arrependida. Depois de repetir dez vezes, adicionei fascinada pelo ritmo: ―Sempre estou onde não alcança‖ repeti e soltei o botão. Só havia interferências.

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―Por favor, diga algo. - Rogava mentalmente, imaginando o radio no sofá enquanto minha voz chegava à sua habitação. – Diga algo‖ Mas à interferência só causava dor nos ouvidos. Esperei contemplando o aparelho negro, até que por fim o coloque na estante novamente. Talvez não me ouviu... Talvez estivesse com raiva... Mas não me daria por vencida. No dia seguinte, e no outro, e no outro, todos os dias até que fossemos, enviaria a mensagem. Minha voz ecoaria por sua habitação as palavras se fundiriam em frases codificadas, recitando-as uma vez ou outra para que chegassem em plena noite.

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VINTE E SETE — Quero ver mais filmes — pediu Lark depois de deixar os pratos com o resto do café da manhã na pia. Marjorie e Otis estavam sentados a um extremo da mesa, terminando de tomar seu café da manhã, enquanto Arden e eu jogávamos cartas. — Nada de filmes. — Arden me olhou por cima das cartas que tinha nas mãos. Levava a cabeleira, antes sempre presa, cuidadosamente recolhida atrás das orelhas, e seu aspecto era do mais saudável—. Estamos fartos de falsas historias de amor. E puxando as pontas do cabelo, enquanto meus pensamentos se dividiram entre Caleb e minha amiga. Na noite anterior, depois de enviar a mensagem, havia me deitado no velho colchão, e abandonado as fantasias. Em seguida estes pensamentos passaram para os sonhos, e vi Caleb em sua casa, mexendo no radio. Eu vi como escutava minha mensagem. Lark, que havia posto uma camisa demasiado grande que lhe caia por um ombro, deixando o descoberto, se apoiou na mesa, ameaçou Arden com um dedo apontado: —Não é a única que decide, e mesmo que seja mais jovem que você, também tenho direito de opinar... —Ok, ok— interveio Otis, levantando as mãos, e riu e trocou um olhar com Marjorie—. Voltamos aos velhos tempos... Lembrei-me da carta da praia e observei— que letra difícil de ler— da garota, Libby. — Tem uma filha? — perguntei deixando as cartas viradas para baixo na mesa. — Duas —respondeu Marjorie, e limpou a mesa, arranhando com a unha uma semente seca de tomate —: Libby e Anne. Otis se levantou. Deu as costas e esvaziou um copo de água na pia. Todavia nessa posição, nos explicou: —Eram o ideal de qualquer pai. Teriam vinte e sete e trinta e três anos — Se virou com os olhos cheios de lagrimas. —Não falamos quase nunca delas —esclareceu Marjorie. Os pratos se chocaram na pia—. Otis queria dizer que se alegra de que vocês estão aqui, garotas.

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Pensei em minha mãe e na carta que me havia escrito. Eu a havia colocado no bolso no dia em que chegaram os caminhões, e foi a ultima que recebi dela. Mas à havia perdido; se havia perdido com meus poucos pertences no esconderijo, e nunca a recuperaria. Assim mesmo recordei da minha mãe junto a mim na cama, lendo-me contos de um elefante falante que se chamava Babar; me amarrava os cordões dos sapatos, me vestia, e me penteava, e a cada botão que abotoava ou a cada ruga que alisava, me dizia em voz baixa: " Te amo, te amo, te amo ". —Nós também nos alegramos de estar aqui —afirmei. Mas a anciã olhava alguma coisa atrás de mim. Me pareceu que as rugas de seu rosto se marcavam mais e adquiriram mais severidade enquanto se dirigia para a prateleira. Primeiro roçou com a mão na prateleira superior, e achou imediatamente, o radio preto que estava embaixo. —Alguém moveu o radio —sentenciou. A maneira como ela disse —lentamente, com raiva —me assustou. Otis se apoiou em cima e fixou os olhos em Lark. —Por que me olha? —perguntou a garota, que retrocedeu e cobriu o ombro nu —. Eu não fiz nada. —Foi eu —admiti quase sem respirar. —Que você fez? —inquiriu Marjorie em um tom mais alto que o normal, observando-me com atenção. Ardem também me fixou o olhar, mostrando uma expressão confusa, e deixou as cartas na mesa. —Enviei uma mensagem a uma pessoa..., mas estava codificada. —Que código você tem usado? —perguntou a anciã, aproximando-se, enquanto retorcia uma extremidade de seu cachecol, até converte-lo em uma apertada espiral. Ardem agarrou-me pelo braço e me perguntou: —Você a enviou para Caleb? —Quem diabos é Caleb? —quis saber Otis. Me estremeci e minha respiração acelerou. Marjorie rodeou a mesa para ficar ao meu lado. —Não importa que seja —disse cravando os dedos em meu ombro—. O que importa saber é o código que ela utilizou. Diga me, qual foi? Ela e Arden me olharam com apreço. Me levantei e retrocedi até a parede.

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—O código... O único código — gaguejei. A mulher deu um pontapé na mesa, e os vasos caíram e a água se derramou pelo chão. —Não há apenas um —replicou —Tem existido trinta códigos distintos desde que começou a funcionar a rota cinco anos atrás. De repente senti muito calor, enquanto uma fina camada de suor me cobria o corpo. Apenas aconteceu de pronunciar as palavras: —A égua de Eloise... —Não! —gritou Otis, golpeando a bancada—. Não, não, não! —O que aconteceu? Algo vai mal? —perguntou Lark, incomodada. —Deve ser um erro —se apreçou a dizer Arden—. Asseguro que não sabia faze-lo, e a mensagem não chegou. Também quem iria escuta-la? —Todo o mundo —Disse Otis — Todos... a escutaram. Marjorie esfregou a testa. O sol se entrava através das cortinas e sombreava a pele. Por fim disse a Otis: —Faz as malas. Não temos muito tempo. —Sinto muito —murmurei. Engasguei. Ouvimos um ruído a distancia. Nós ficamos imóveis. Em meio dos cantos dos pássaros e zumbido do vento, distingui algo estranho e aterrador: o barulho constante do motor de um carro. Marjorie aproximou-se da janela e afastou um pouco a cortina. —Já chegaram. —Quem? —perguntou Lark, mordendo os lábios com nervosismo. Otis abriu um armário sobre a bancada e buscou algo tateando, detrás de uns jarros de cristal. Encontrou uma pistola, e a enfiou no cinto e respondeu: —Os soldados. Marjorie se aproximou da pia, pegou três dos cinco pratos molhados e os guardou de qualquer maneira no armário. Enfiou os dedos na água cheia de espuma procurando os talheres restantes, mas Otis a dissuadiu. —Deixa... —ordenou —Vá. A mulher tinha os braços ensopados até os cotovelos, com rastros de espuma. Dirigindo-se para as escadas, nos indicou:

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—Venham comigo. —Lark, chorando, lhe agarrou a borda da camisa. —O que disse? —me perguntou Arden, agarrando-me a mão enquanto corríamos escadas abaixo. —O que dizia a mensagem? O motor se ouvia cada vez mais perto da casa. Os pneus chiaram no jardim. Gostaria de dizer, mas não podia explicar-lhe o que havia escrito, com grande detalhe, quem era eu e onde me encontrava; não podia dizer-lhe que havia me esgueirado na sala em plena noite, arriscando a vida de todos. No porão, Marjorie abriu as portas de madeira do armário. —Ajuda-me. —pediu, afastando com um tapa as latas da prateleira, que se amassaram ao cair no chão de cimento. Arden arrancou com um puxão a prateleira, Lark e eu entramos no quarto secreto, e ela nos seguiu a toda presa. —Não falem. —Sussurrou Marjorie enquanto colocava de novo as latas na prateleira. No piso de cima a porta se abriu em um golpe, e umas vozes masculinas exigiram algo aos gritos. —Depressa — implorou Lark, sentindo a prateleira de madeira—. Depressa, Marjorie, por favor. A mulher se abaixou, recolheu as latas e voltou a por na prateleira. As mãos magras se moviam lentamente, revelando a idade. —Vou o mais rápido que posso — disse com a voz embargada—. Já vou. — Passou a mão pelo rosto, e então me dei conta que estava chorando: finos fios de lagrima se deslizavam pelas rugas de seu rosto. As vozes aumentaram de tom. Ouvimos pisadas no piso superior, e pedaços de gesso choveram sobre nós. —Só minha mulher —disse Otis. E continua os passos. Marjorie tinha nos braços as ultimas latas quando apareceram os soldados na escada; vestiam um uniforme verde e marrom. Arden me apertou a mão e me arrastou para o fundo do quarto. Com a outra mão eu cobri a trêmula boca de Lark, para impedir que gritasse. As portas de vidro da dispensa se fecharam. Através dos buracos que havia entre as latas, distinguíamos algumas zonas do porão. Permanecemos ocultas, na escuridão, vendo como os homens desciam as escadas. Marjorie se ergueu em seguida; havia deixado cair com tranquilidade os braços de ambos os lados do corpo, mas sua expressão era dura.

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—O que posso fazer por vocês nesta ocasião, cavalheiros? Tenente Calverton... —saldou reconhecendo o soldado mais velho, que tinha o nariz torto e cabelos grisalhos. Junto a ele, um homem magro e pálido acariciava uma pistola—. Sargento Richards, tem vindo nos acusar outra vez? Os homens permaneceram aos pés da escada; ambos perfeitamente barbeados, o rosto liso e polido. —Já basta de joguinhos, Marjorie —ameaçou Calverton—. Sabemos que esconde uma garota chamada Eve. Essa garota pertence ao rei. Arden me abraçou. Minhas pernas tremiam, mas ela me disse. —Isso não esta certo —respondeu Otis—. Quando nos deixarão em paz? A única coisa que queremos é sobreviver, como os outros. Richards abriu caminho através das caixas de papelão, abrindo-as para ver o conteúdo. Percorreu o porão, abriu uma porta embaixo da escada, sentiu o frágil sofá e golpeou as paredes, atrás de um monte de aparelhos velhos. —Sempre teremos de passar por isso? —perguntou Marjorie, cruzando os braços. Otis desceu os últimos degraus, arrastando a perna inútil e se apoiou na parede com o braço atrás das costas para esconder a pistola que levava na cintura na altura do cotovelo. —Não encontrarão nada —assegurou, apressado. —Me parece que esta mentindo —disse Calverton, observando as portas do armário. Meu coração continuou batendo a um ritmo, que me lembrou que ainda continuava viva. Arden me empurrou embaixo das camas e fez o mesmo com Lark. Nos amontoamos, respirando fundo para nos tranquilizarmos. Enquanto o soldado mais jovem abria as portas. Vi suas pernas por entre as pernas da cama, e ouvi o entrechocar de latas na prateleira superior. Continuou olhando a segunda prateleira e a madeira tremia . De repente as latas que ocultavam o esconderijo se balançaram. Lark gemeu quando a luz varreu o estreito quarto, e ao erguer meu olhar, meus olhos se encontraram com os do soldado. —Senhor —disse o sargento, separando outras latas—, aqui tem mais cabelo, senhor... Otis sacou a pistola da cintura e disparou no lado de Richards. O soldado caiu, derrubando a prateleira com ele, e levou a mão ao ombro, onde a bala tinha rasgado a camisa. Enquanto Otis se lançava sobre Calverton, Marjorie se dirigiu a nós.

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—Vão embora! —gritou mostrando a nossa costa o túnel que sumia na escuridão—. Agora mesmo! Calverton empurrou Otis contra a parede, e lhe tomou a arma. Limpou a parte do uniforme que tinha esmagado, e alisou o tecido elegante. Em seguida apontou com a pistola. —Não! Sai! —gritou Marjorie. Estendendo os braços, tentando reduzir a distancia que a separava deles. Mas tudo foi muito rápido: uma bala e logo outra penetraram o peito de Otis, que morreu antes de cair no chão. Lark correu pelo túnel, e Arden a seguiu, arrastando-me. Mas meus pés não se moviam; a tristeza se apoderou de mim. Virei a cabeça e vi Marjorie dando um forte chute no soldado, que apenas recuou. Este levantou a pistola de novo e a disparou no rosto. Ela caiu sobre Otis e, em um ultimo movimento, o abraçou, enquanto o soldado baixava a pistola e disparava o tiro de misericórdia.

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VINTE E OITO Arden tirou de mim, mas permaneci imóvel, olhando a cena como se estivesse projetando na parede sobre a chaminé: Richards fechava os olhos em um gesto de dor, enquanto os pingos de sangue cobria sua pálida face, e Marjorie caída no chão, enquanto suas tranças cinzas se tingiam de vermelho. Calverton se encaminhou para nós; eu não podia me mover. Depois de um instante, Arden me empurrou com força, obrigando-me a caminhar ainda que aos tropeços. Corremos pelo túnel, e nossos passos adquiriram um ritmo constante ao entrarmos na escuridão. A irrealidade daquela situação me nublava a mente: haviam atirado em Marjorie e Otis. Estavam mortos. E tudo por minha culpa. Por muito que repassasse os acontecimentos, nunca os entenderia. Quando finalmente chegamos no fim do túnel, encontramos uma escada. Um fio de luz entrava por uma rachadura no teto. Lark se lançou contra o alçapão, mas o metal não cedeu. —Esta trancada— gritou esmurrando com os punhos. Por fim o alçapão se levantou um centímetro, e vimos uma grossa raiz de arvore, que a bloqueava. Atrás de nós as latas tiniram quando o soldado afastou a prateleira. Lark voltou na escuridão e nos deixou espaço entre a escada e o alçapão. Os soldados estavam muito perto quando um tiro ecoou. —Não atire! Temos que pegá-la viva! —Gritou Calverton. —Empurra —Gritou Arden, batendo as mãos no alçapão. —Detenha-os! Por ordem do rei da Nova América! —ordenou Richards no túnel. Arden e eu investimos contra o alçapão de novo, empurramos tão forte que nos causou danos. Mas a raiz não se rompeu e, emitindo um ruído gratificante, casca caiu sobre nós no momento em que a porta do alçapão se abriu e revelava a branca luz matinal. Arden saltou para fora. Eu parei nos degraus e me virei rapidamente para ajudar Lark, mas havia caído ao pé da escada. O sangue ensopava seus cabelos e formava uma poça de cor vermelho escuro ao redor de sua cabeça.

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—Lark! —Baixei e a toquei, sentindo a humidade do sangue embaixo de meus pés. A bala lhe havia atravessado a nuca—.Lark! —Temos que ir —gritou Arden de cima, mostrando o bosque —. Não quero faze-lo, mas... Todavia não havia acabado a frase quando os soldados apareceram segurando suas pistolas. Richard havia enfaixado o braço com o cachecol de Marjorie. Fechando o alçapão com uma batida, e deixando o corpo de Lark para trás, corri como louca até onde estava Arden. O rigoroso sol deixava a erva seca e clareava as sombras embaixo das arvores queimadas. Por todo lado apareciam rochas vermelhas, que criavam um muro impenetrável; os arbustos eram menores, a areia ardia e a próxima casa parecia uma minúscula mancha no horizonte. Não havia nenhum esconderijo. O alçapão se abriu estrondosamente atrás de nós. Calverton avançou pelo campo e carregou a pistola de novo. —Vamos! —disse desviando-me para a direita, longe do bosque queimado que havíamos percorrido com Fletcher. Começamos a correr entre as árvores; o mato espesso arranhava minhas panturrilhas. Além da casa de Marjorie, superadas umas dunas e uma fila de árvores, havia uma estrada rachada que levava a um povoado. Uma bala acertou uma árvore, na frente de Arden, fazendo soltar lascas de maneira. —Querem matar-me —gritou saltando sobre um tronco podre. Continuamos correndo e, durante alguns instantes, os soldados desapareceram atrás de uma área de mato. —Ali —indiquei mostrando uma casa coberta por erva. A afastamos e empurramos o portão enferrujado. No meio do jardim havia uma piscina vazia e, no fundo um esqueleto de cão; rodeava a casa um terraço demolido com cadeiras caídas. E vimos também um barracão de madeira em um lado, cuja pintura branca desprendia as camadas. Uma porta de uns dois metros e meio de altura trancava a propriedade. Arden correu para ela e deu um chute, mas não cedeu. Os soldados se aproximavam. Arden empreendeu de novo o chute na porta, empenhando-se a fundo, tanto que seus olhos se embaraçaram. —Não, isso não pode estar certo. Nãoo! Pelo outro lado da casa não tinha entrada nem saída, nem rachaduras no muro, nem nada que servisse para subir. Só existia um caminho para entrar e sair.

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—Estamos presas. —Ao me dar conta, minhas mãos tremeram. Arden me conduziu para o barracão e o rodeamos. Nos abaixamos, de mãos dadas, e olhamos através da janela quebrada: os soldados entraram na propriedade com as pistolas preparadas, e rodearam a piscina. Calverton levou um dedo ao lábio para pedir silêncio. —Desculpe —sussurrei ao ouvido de Arden de forma quase inaudível. Eu havia enviado a mensagem e atraído os soldados para a casa de Marjorie, e nesse momento estava a ponto de capturar-nos. Havia escolhido o caminho errado. Richards pegou uma lanterna que levava presa no cinto e vasculhou embaixo do terraço demolido. Então Arden notou as cadeiras caídas e empilhadas junto a porta de trás da casa. As apontou e disse: —Pode utilizar uma dessas para pular e sair por trás. Através do vidro quebrado, vi Calverton que se dirigia para o outro lado do esconderijo, onde havia um velho canil. —E você? —perguntei, mesmo já sabendo a resposta. Arden tentou sorrir, mas seu rosto estava tenso. —Os distrairei. Não se preocupe... Nos veremos em Califia —assegurou — Encontrarei o caminho. —Não, não —eu disse secando os olhos com os braços. Queria acreditar, mas estava convencida de que, para qualquer de nós, seria praticamente impossível seguir só nosso caminho—. Não pode faze-lo. Prefiro que me levem a cidade, mesmo... —Você faria o mesmo por mim —me interrompeu —Já fiz. Não esperou minha resposta. Soltou minha mão e saiu como uma flecha no jardim. Richards saltou de seu posto no terraço e a perseguiu, seguido de perto por Calverton. Continuaram correndo até que desapareceram pelo portão. Os disparos rasgou o silêncio. Esperei, temendo escutar os gritos de Arden. Mas não ouvi mais que as vozes dos soldados ao longe e fortes pisadas esmagando a terra seca. Me dirigi à cerca, arrastando uma cadeira para ela como Arden me havia indicado. A imaginei ao meu lado, apoiando-me a mão no braço, guiando-me. Disparei correndo na direção oposta, imaginando a chamativa mancha azul de sua camisa entre as arvores. As vezes me parecia como se me observasse, muito acalorada, como se rejeitando um caminho para me apontar a mudança de direção. Continuei a correr, deixando as enormes rochas para trás, erguidas contra o céu, e

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não parei para refrescar e o bosque caiu na penumbra, então percebi que estava completamente sozinha.

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VINTE E NOVE O tempo passou: dois dias, ou talvez três. Não tinha forma de contar. Eu estava em uma banheira cheia de lama de uma casa abandonada, com uma faca cega na mão. Havia corrido tanto que os cadarços dos sapatos estouraram e os perdi em algum lugar. Entre sonhos me recordei das imagens do sótão: os corpos de Otis e Marjorie caídos em um monte sem vida; a cara de Lark esmagada contra o frio chão de cimento; o odor de pólvora e sangue; Calverton limpando uma mancha de sua bota; os dedos de Arden cravados em meu braço; os olhos de Richards, cinza e insensíveis, fixos nos meus... Deveria ter contado que havia utilizado o radio e da mensagem. Mas, pelo contrário, me entreguei feliz a emoção do sonho, e aquela absurda fantasia de ver Caleb em sua casa. Me questionei se haveria algo podre dentro de mim. Havia abandonado a Pip. Havia abandonado a Pip, a Ruby, a Marjorie, a Otis e a Lark, para seguir adiante, cortando suas vias em minha terrível trajetória. Não queria continuar sendo testemunha de tudo aquilo: as casas muradas e as bandeiras vermelhas, penduradas nas janelas quebradas, em que se lia a palavra EPIDEMIA, pintado em negro sobre elas. Os meninos eram demasiado pequenos para ficarem sem mãe. Espero não voltar a ouvir o barulho dos ossos quebrando sob a erva, nem sentir o medo inexorável que me atormentava o peito e me dominava por completo. Não tinha vontade de comer, não queria me mover, e levava dias sem beber nada. Minhas pernas se dobravam e tinha queimado as costas. Quando o sol se deslizou abaixo da fresta da janela, soltei a faca: se permanecesse na banheira chegaria ao fim, antes que dos soldados me pegassem. O calor do dia desapareceu, e passaram as horas. Em algum momento entre a lucidez e inconsciência me vi junto a Arden, atrás do barracão; contemplei seu rosto na luz do dia e ouvi suas palavras: ―Você faria o mesmo por mim‖. E esta memória levou a outra de minha mãe na porta de nossa casa, observando enquanto eu subia no caminhão. Também vi os pratos de ovos que Marjorie havia servido, senti o carinho com que Arden me havia embrulhado os pés com a manta e notei a velha mão de Otis sobre a minha. Me dobrei sobre mim mesma e cai tão paralisada, atormentada pela pena. Tanto no colégio como fora dele acreditava que o amor era um obstáculo, algo que poderia voltar contra mim. Mas comecei a chorar quando descobri a verdade: o

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amor era o único adversário da morte, a única coisa capaz de lutar contra suas vorazes e desesperadas garras. Eu não ficaria ali. Não me renderia. Ainda que só fosse por Arden, por Marjorie, por Otis, por minha mãe. " Te amo, te amo, te amo." Saí da banheira. Eu quase não me aguentava. A casa estava na penumbra e as telhas quebradas me cortavam os pés; as lascas das tabuas podres me machucavam. O vômito penetrou a frente da minha camiseta cinza surrada. Eu não me importava. Entrei em todos os quartos, caminhando lentamente. Encontrei uma lata amassada embaixo da geladeira e continuei olhando o armário e gavetas. Passei a mão sobre uma prateleira até que encontrei o que estava procurando. O atlas era como o que a professora Florence nos havia ensinado no primeiro grau, com cantos de couro. Revisei as páginas, percebendo algumas seções de terra azuis que não me diziam nada, o olhei mapas de lugares estranhos com nomes como Tonga, Afeganistão ou El Salvador. Havia muitos lugares do mundo que nunca tinha ouvido falar. Me intrigava como seriam aqueles locais: vastas extensões de terra, terrenos salpicados de montanhas ou talvez luxuriantes paraísos tropicais. Haveriam sofrido a epidemia como nós? Ao passar as páginas, nada se parecia ao que eu conhecia. E na prateleira havia outro atlas mais pequeno: umas linhas cruzavam os mapas e estavam assinaladas com números. Por fim encontrei o sinal: 80. Meu dedo seguiu a linha por toda pagina até encontrar uma mancha azul: o mar. Pela primeira vez em vários dias a sensação de possibilidade se prevaleceu ao terror. Estudei os atlas e arranquei as paginas que aparecia Sedona, Arizona a zona verde embaixo do número 80, e uns lugares chamados Los Angeles e São Francisco. E os uni no chão e encontrei um grande lago ao lado do qual vivia Caleb: Tahoe. No dia seguinte eu me reabasteceria e iria para o norte, a Califia. Não podia permanecer outro dia na casa, me deixando morrer. Ainda que os soldados me encontrassem, ainda que caísse em pleno deserto, e a sombra das gigantescas rochas, teria que continuar. Ao menos deveria tentar.

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TRINTA Sai cedo, antes que os pássaros despertassem. Como havia encontrado uma enferrujada lata de ervilhas verdes, jantei a metade e almocei a outra metade, bebendo o líquido espesso do interior. Fui de casa em casa olhando todo o povoado e descobri outras latas sem etiqueta e um frasco de geleia. Não era grande coisa, mas era o bastante para alguns dias, até que encontrasse outro lugar seguro para descansar. Fazia frio andando para o norte através dos arbustos baixos que ladeavam as estradas, de modo que coloquei a camiseta, agradecia as pessoas que haviam morado naquela casa em que havia encontrado roupas e um par de tênis esportivos de número quarenta e um que mostrava a marca NIKE dos lados. O mapa me guiou pelo deserto, onde a terra adquiria tom dourado escuro. Caminhei o mais rápido possível, notando as pernas enfraquecendo, e parava a cada hora para tomar um pouco de geleia; a dose doce de açúcar me servia de combustível. Ao fio do meio dia cheguei a uma encruzilhada. Ali havia um estacionamento cheio de carros enferrujados, e se os atravessa-se, se encontrava em frente um edifício de tijolos, cuja janelas estavam quebradas e cuja fachada exibia um letreiro vermelho que dizia: BANCO DA AMÉRICA. Me dirigi a um supermercado saqueado quando ouvi um estranho ruído. Meu corpo o reconheceu antes de minha mente: o motor de um carro. Corri para o interior do banco, onde as mesas se alinhavam de frente as janelas, me agachei e esperei. O carro percorreu a rua lentamente. Do meu esconderijo ouvi um rugido familiar: os ruídos dos resíduos sendo quebrados pelas rodas. Quando o carro parou, comecei a tremer e joguei a cabeça para trás, como se precisasse de ar desesperadamente. Pouco depois o veiculo voltou a andar. O ruído se extinguiu, e me apoiei em uma mesa com o espírito renovado. Os soldados estavam me procurando. Tinha que seguir em frente. Junto a porta pisei em um monte de papel verde espalhados pelos azulejos cobertos de areia e poeira. Peguei um que dizia "100" e no que estava representado o rosto de um velho muito sério; compreendi que se tratava de bilhete velho. Dinheiro. O peguei e o arranquei do chão. Agi rapidamente, deslizando-me pela parte de traz das lojas e mercados, entre recipientes cheio de ossos. Segui correndo sem parar para fugir dos semáforos

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vermelhos e das armações dos carros enferrujados ao lado da rua. O pequeno povoado acabava no deserto. Em minha frente se entendia um terreno plano; só havia arbustos ao lado da estrada, tão escassos que não serviam de cobertura. Eu tirei a camiseta amarelada para não destacar no meio da seca e rachada terra, olhei o mapa pela ultima vez e me dispus a cruzar a planície, havia um grupo de casas que estavam visíveis a distância. As rochas avermelhadas se elevavam para o céu, acariciadas de vez em quando pelas nuvens. Não havia rastros na estrada. " Segura que as casas não estavam muito longe –eu disse tentando me convencer–. Continua. Não olhe para trás." O sol se elevava no horizonte e me queimava a pele. Tentei imaginar Arden naquele momento, ou a Pip chutando a terra enquanto cantava uma música, mas seus fantasmas não fizeram uma aparição. Tomei outra dose de geleia, mastigando as amargas sementes de framboesa, e me animei a seguir adiante, parecendo-me mais leve o peso que levava nas costas e apresando meus passos enquanto me dirigia para as casas, havia um abrigo seguro. Pouco a pouco distingui as janelas, as portas, os jogos infantis nos jardins. Então ouvi de novo o motor. Devia ter parado na estrada atrás de mim para esperar-me. Comecei a correr, impulsionando com os braços desesperadamente, e cruzei a calçada destruída em direção aos arbustos. Mas o carro acelerou. O ouvia atrás de mim, ganhando terreno, aproximando. Me impulsionei com os braços cada vez mais energeticamente e chutando o chão, mas foi inútil; o carro diminuiu a marcha, se deteve, e abiu uma porta e ouvi os passos na estrada. Me ardiam as pernas por causa do esforço, e meu corpo desacelerou, mas continuei correndo. Não queria que me capturassem daquela forma, em pleno deserto. Nesse momento, não; havia chegado longe demais. –Pare! Pare! As lágrimas rolaram pelo meu rosto, arrastando a fina capa de poeira que o cobria. –Eve! –gritou uma voz masculina, mas não me virei. De repente umas mãos me agarraram pelo braço, e me jogou na espessa grama. Não resisti. Tinha os membros dormentes quando aquele animal me pôs de boca para cima. Cobriu-me a boca. –Eve –repetiu a voz mais suavemente –, sou eu. Abri os olhos e vi o rosto que tantas vezes havia imaginado: Caleb sorria, e seus cabelos caiam sobre minha testa. Apoiei minhas mãos em suas bochechas,

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questionando-me se estava sonhando acordada, mas sua pele era firme embaixo de meus dedos. Não sabia se ria ou chorava. Optei por abraçá-lo. Nossos corpos se tornaram um, e nossos braços se entrelaçaram até quase asfixiarmos, até que não existisse nada entre nós, nem sequer ar. –Escutou minha mensagem? – perguntei enfim. Caleb ergueu a cabeça e contestou: –Queria te responder, mas não podia. Sabia que os militares estavam escutando e que já haviam se posto em marcha. Era o código de... –Sim, eu sei –admiti secando as lagrimas–. Era o código inadequado. –Temos que ir –me advertiu me ajudando a levantar. Na estrada havia um enferrujado carro vermelho–. Estava a sua procura. –Nos dirigimos para o veiculo, uma massa quadrada que na frente exibia a marca Volvo; no assento do motorista havia uma fenda de onde saia uma densa espuma amarela. Quando Caleb pisou no acelerador, me relaxei no assento, e a dor das minhas pernas diminuíram. Atrás de nós se levantou uma nuvem de poeira, e o mundo desapareceu atrás de um perfeito manto alaranjado.

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Trinta e um O ar que entrava pela janela me açoitava a pele e bagunçava meus cabelos, enquanto um pó dourado cobria o rosto de Caleb, suas tranças castanhas e até mesmo sua pele delicada atrás das orelhas. —Como você me encontrou? —quis saber. Passamos sobre um buraco, e o carro se balançou pra um lado. —Há apenas uma Prada na rota de Sedona — contestou ele. —Então você esteve na casa. Desceu ao porão? —Enfiei os dedos no acento velho. Na parte de trás do carro se amontoavam fardos de roupas, latas enferrujadas sem etiqueta e duas mochilas cobertas de barro. Assentiu. Nossos olhos se encontraram um instante. E minha garganta endureceu. Havia visto o soldado baixar a pistola; havia visto como apontava. Mas necessitava perguntar-lhe: —Marjorie estava... ? —Morreram. Os três. —Apoiou a mão em meu braço. As costuras desfeitas da camiseta deixavam descoberto um ombro queimado pelo sol— Havia sangue a certa distância do alçapão, e fora da casa. Segui o rastro pela floresta, mas o perdi dois quilômetros depois e me convenci de que haviam te capturado. —Fez uma pausa e ajeitou o cinto de segurança— Quando estava a ponto de regressar, vi algo no chão: um sapato de mulher. Encontrei o outro par vários metros mais adiante, para o norte, e segui esta direção olhando atentamente os lados da estrada. —E viu Arden? —Coloquei a mão sobre o peito para amenizar o coração— Salvou minha vida. Saiu correndo para distrair os militares. Caleb esfregou o volante com o dedo, como se quisesse apagar uma mancha invisível. Depois de uma pausa, moveu a cabeça negativamente. —Não. Enxuguei as lágrimas. —Disse que nos encontraríamos em Califa, mas... Agora esta e eu... — Não pude continuar falando ao pensa que Arden estaria no meio do nada, empolada por causa do sol, e muitos quilômetros da estrada. Ou pior, no acento traseiro de um SUV dos soldados, que a devolveriam ao colégio. Caleb apertou meu braço.

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—Ela é muito forte. Se se esconder, não lhe acontecerá nada. Chegamos a um povoado em ruínas quando o sol se escondia atrás das distantes colinas. O asfalto estava quebrado, e os desníveis faziam saltar as moedas empilhadas no painel do carro. O veículo continuou seu caminho, chocalhando e balançando-se, mas me sentia mais segura medida que nos aproximávamos de Califa. —Sobre Leif... —sussurrei. Caleb tinha o mapa sobre o volante e segurava as pontas com as mãos para que não se dobrassem. Deixávamos para trás lojas vazias e punhados de arbustos ressecados e enegrecidos— Não foi... —Eu sei, eu sei — se apressou a contestar— Não tem nada para explicar. —Abaixou o mapa e me olhou nos olhos. Tinha os lábios avermelhados pelo excesso de sol. —Não sabia se voltaria a te ver novamente. —E minha voz embargou— Não deveria... —Eu gostaria de não ter ido — respondeu erguendo mais a voz. Diminuiu a velocidade e se virou para mim, chorando. E passou o dedo sobre o rosto para limpar o pó—. Tenho pensado muito nesse dia e me tenho questionado o que teria acontecido se estivesse estado ali quando apareceu esse animal e meteu você e Arden no caminhão. —Onde você foi? —Encolhi as pernas e me aconcheguei— O que aconteceu com você? Esfregou as têmporas e explicou: —Fui às montanhas. Queria cavalgar para clarear as minhas ideias. Quando voltei ao acampamento, os garotos estavam muito revoltados. Benny... — acelerou de novo esquivando dos buracos onde cresciam grossas raízes— Benny era o que estava pior que todos. —E onde estão agora? —Imaginei o sorriso de Benny quando conseguia ler uma palavra corretamente, e Silas, no meio de sua casa, vestindo o tutu e um chapéu de vaqueiro na cabeça. —Seguem ali... com Leif. —Voltou a segurar o volante, por que pedras e raízes arranhavam em baixo do veiculo. O significado de suas palavras estava claro: havia deixado pra trás sua casa, sua vida, seus amigos... por mim. Depois de uma grande pausa, disse—: Vou com você a Califa. Viveremos os dois ali. Havia algo no plural, "os dois", que me consolou. Já não éramos só ele ou só eu, sim nos dois. Todavia parecia possível partilhar uma vida, uma vida em Califa, aquele lugar que se encontrava a ponte vermelha, escondido entre as montanhas junto ao mar. A comunidade de órfãos fugitivos nos aceitariam. Eu poderia dar aulas, e iria

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caçar e enviar mensagens aos garotos dos campos de trabalho, e até voltaríamos ao colégio assim que pudéssemos enfrentar a viagem, e resgataria a Ruby e a Pip, como havia prometido. Baixei a vista para suas mãos e entrelacei meus dedos com os seus. E assim, dando-me o sol em um lado do rosto, no ombro e nas pernas nuas, permanecemos unidos: uma visão reconfortante. Quando voltei a olhar para a estrada, cravei os pés no chão e agarrei-me a janela. —Caleb, freia! —gritei, parou o carro, e eu saltei contra o painel. O carro rangeu. —Você esta bem? —me perguntou. Assenti e me acomodei no acento, esfregando a parte do braço onde havia batido contra o duro painel de plástico. —E agora o que? —questionei apontando em nossa frente. Havia uma van na estrada, bem visível embaixo das últimas luz do dia; tinha os pneus furados e as janelas quebradas. Um pouco mais longe havia outro carro e mais outro, uma longa fila de veículos, cujos enferrujados para-choques quase se tocavam, que ocupava a estrada ao longo de quilômetros a nossa frente. A estrada estava lotada; não podia circular. Caleb pegou o mapa e, apontando a fina linha azul que havíamos seguido desde Arizona, assegurou: —Este era o melhor caminho. Dei uma olhada pela janela empoeirada para a curva que descrevia a estrada: a uns cem metros mais a frente, havia um monte de ossos descoloridos pelo sol. —Como Fletcher trouxe você até aqui? —Não sei. Era de noite. Em varias ocasiões passou por caminhos de terra. —Saímos do carro e observamos a fila de veículos que haviam tentado sair. Sempre que havia referencia da epidemia, surgia, como inevitável consequência, o caos. Caleb se dirigiu a parte de trás do carro e abriu o porta-malas. Pegou latas de comida, um grande cilindro de lona com postes metálicos e um tecido, e fechou o porta-malas batendo. —Passaremos a noite aqui — indicou abrindo uma lata com uma faca— Os soldados não nos encontrarão... Sabem que esta estrada esta bloqueada. Amanhã voltamos e seguiremos o caminho que eu peguei através das montanhas.

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O sol quase havia se posto e no céu já se viam os pontinhos brilhantes e brancos das estrelas. Na estrada, com os faróis acendidos, os soldados nos encontrariam facilmente. Não nos havia outra opção do que passar a noite ali. Caleb pôs uma lona junto à calçada, sobre um pedaço de terra meio oculto por uns arbustos secos. Observei como trabalhava em silencio, com agilidade, distribuindo hastes pelo solo. Quando a improvisada tenda de acampamento estava armada, o céu havia adquirido uma tonalidade acinzentada e a lua projetava uma luz fria sobre nós. —Você primeiro — disse apontando a porta de tecido verde escuro. O interior da tenda tinha espaço apenas para dois corpos deitados. Ele entrou atrás de mim, roçando meu baço com o suave tecido de sua camiseta. Depois de dias de separação, a repentina intimidade me deixou nervosa. —Bom, suponho que tenha chegado a hora de dormir — disse em voz bastante alta, alerta para o ultimo canto de minha pele. Peguei uma gasta manta cinza e me cobri o colo com ela. —Sim, suponho que sim. —Riu, e eu distingui seu sorriso à tênue luz que se infiltrava pelo fino tecido da tenda— Mas primeiro tenho que te dar uma coisa. Pegou uma bolsinha de seda do bolso, tão suja que parecia um desperdício. Mas em seguida supus o que continha. —Deixaste isto na sua casa do refugio — disse entregando- me — Pareceume importante. Agradecida, apertei a bolsinha entre minhas mãos, apalpando o passarinho de plástico, a pulseira de prata manchada e as desgastadas bordas da carta de minha mãe. —Obrigado — disse com lágrimas nos olhos. Não podia saber o quanto era importante para mim— Não sei como... —Chiii. Não importa. Pegou minha mão e se esticou, passando um braço por baixo de mim e o encaixando-o atrás de minha nuca. Puxou-me para si, e senti o calor seu corpo e a barba nascendo do seu queixo coçando a testa. —Boa noite, Eve. —Boa noite, Caleb. —enquanto sua respiração amenizava, apoiei a mão em seu peito, e percebi o sangue borbulhando em meus dedos, em minhas pernas e em meu coração. Depois de dias de duvidas, desejos e anseios, estava ao meu lado. Três pensamentos vieram a minha mente segundos antes de me render ao sono. "Vou a Califia".

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"Estou com Celeb". "Sou feliz".

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Trinta e dois O ambiente se refrescou quando nos dirigimos para o norte. E contei a Caleb a história de Fletcher e o caminhão, como havíamos conhecido Lark e que filmes Otis nos projetava na parede; falei-lhe também do café da manhã de ovos e javali que nos preparava Marjorie e do quarto onde havíamos nos escondido enquanto os soldados olhavam a casa. Logo lhe expliquei tudo o que havia presenciado: a bala que explodiu no peito de Otis, o disparo que feriu Marjorie na bochecha e os respingos vermelhos que molharam minhas pernas quando Lark recebeu o tiro. —Não posso apaga-lo de minha cabeça. Franziu os lábios com gesto pensativo, e me confessou: —Ás vezes, pela noite, acordo aterrorizado porque parece que estou nos campos de trabalho, carregando blocos de cimento na costa, ou no quarto com um garoto no beliche ao lado, sangrando e vomitando, até que me dou conta de que tudo foi um sonho, e me sinto sortudo. —Sortudo, disse? —Sim, Sortudo de acordar, do que antes era minha vida, ser um pesadelo. O carro subiu por uma estrada íngreme, e o motor chiou e rugiu ante o novo esforço que lhe pedia. Rodeavam-nos as montanhas de Serra Nevada. Olhei pela janela a acentuada ladeira verde e me lembrei de minha mãe, das canções que cantava quando me banhava na banheira de pernas, imitando uma aranha com as mãos. —Lembra-se da sua família? —perguntei a Caleb. Ele me havia contado que chegou ao campo de trabalho aos sete anos, mas não sabia nada de sua vida anterior. Havia tido uma bicicleta, como eu? Dividia o quarto com seus irmãos? Como eram seus pais? —Todos os dias os recordo. —O carro subia aos tropeções, muito lentamente, devido à densa vegetação do solo, muito perto das paredes de rochas que ladeavam a estrada— Tento lembrar a época antes da epidemia quando jogava de roubar bandeira com meu irmão e seus amigos no jardim. Meu irmão tinha cinco anos, mas me deixava formar grupo de sua equipe; ás vezes tinha que me carregar nos braços para que não me capturassem. —Esboçou um sorriso, que desapareceu em seguida. —Onde vivia? —perguntei pondo-me de lado no acento. —Em um lugar chamado Óregon. —Semicerrou os olhos— Fazia frio e chovia. Sempre levávamos jaqueta. Mas tudo era muito verde. —O carro entrou em

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um buraco emitindo um novo chiado, mas seguimos andando, esmagando as plantas com as rodas desgastadas— E você? Tinha irmãos? —Não. Vivia com minha mãe. —Olhando pela janela, vi o precipício que estava a menos de um metro, altura que aumentava á medida que o carro subia pela montanha, e recordei a sensação da respiração de minha mãe em meus ouvidos, as caricias de seus dedos— Fazia algo divertido em meu aniversario: acordava-me trazendo-me o café da manhã e cantava: "Hoje é um dia muito especial..., hoje é o aniversario de uma pessoinha..." — O rubor me esquentou as bochechas enquanto cantava com um tremulo fio de voz. —Quando é seu aniversario? —Tamborilou os dedos sobre o volante, seguindo o ritmo — O recordarei pra canta-la. —Não sei. No colégio não se celebrava os aniversários. —Todos os dias eram exatamente iguais, um atrás do outro. Ás vezes, quando nos serviam torta de maçã doce, imaginava em segredo uma vela nos bolos que havia visto nos livros da biblioteca—. De as todas formas, quem sabe as datas à estas alturas? —Eu — afirmou acelerando. —Não me diga! —sorri incrédula, e passei as mãos pelos cabelos—. Então que dia é hoje? —Um de junho! —respondeu — Começa um novo mês. —Batendo os dedos no volante— Para ver... Quando deve ser seu aniversario...? Você gosta demais de polemica para ser Sagitário. —Não gosto de polemica! E o que é isso de Sagitário? —Suspeita, hummm! —sorriu, divertido— Talvez sejas Câncer. Você nasceu em julho? —Por que me acusa de ser suspeita? E a que se refere com isso de câncer? Não é uma doença? Baixou a tênue luz do entardecer, percebi minúsculas bolhas em seu nariz, justo onde o sol havia queimado a pele. —A astrologia é um jogo, coisa de palhaços. —Fez círculos com o dedo na têmpora e revirou os olhos. Não pude reprimir o riso, e disse: —Eu gostaria que fosse em agosto, pois é quando mudava o programa no colégio e começava um novo curso. Sempre gostei deste mês. —De acordo. O que você acha de vinte e oito de agosto? —Genial — respondi. Permaneci calada um pouco, enquanto um sorriso me iluminava o rosto. Depois de tantos anos lendo sobre aniversários, olhando as

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ilustrações dos livros infantis nas que apareciam bolos com velas, ouvindo a diretora Burns dizer que o colégio só tinha datas sobre nosso ano de nascimento e que o dia não importava ao fim tinha um dia para celebrar meu nascimento: o vinte e oito de agosto. O carro seguiu por estradas sinuosas, enquanto o céu se tornava totalmente branco. Quanto mais subíamos, mais frio fazia, de modo que apanhamos as roupas do porta-malas e colocamos as jaquetas, calças e botas impregnadas do familiar odor bolorento. O sol se ocultou atrás da densa capa de nuvens. Contemplei as mãos de Caleb ao volante e a forma a forma que seu pé pisava o acelerador, fiquei curiosa para saber sobre como e quando havia aprendido a dirigir. O monótono barulho do motor me hipnotizou, e meus pensamentos voltaram ao colégio, a Ruby e a Pip e o grande quarto cheio de camas. — Minhas amigas ficaram no colégio. Tem que haver uma forma de tira-las dali. Coçou o pescoço, onde a barba se aderia ao cabelo. Havia se abrigado com um grosso jaquetão marrom, com o pescoço forrado com lã amarelada, o mesmo que usava na noite do saque. — Em Califia haverá recursos. Talvez então. Ficou em silencio por um tempo, observando pelo para-brisa do veículo a estrada repleta de galhos finos e folhas secas; já não havia caminho de terra, porém pedras, e o carro dava pulos sobre a superfície desigual. Por fim tossiu e me perguntou: — Como são suas amigas? — Pip é muito divertida—expliquei— Os primeiros anos que passei no colégio, me dava muitíssimo medo que a epidemia ultrapassasse os muros ou que entrassem os cães selvagens. Tudo era horrível. Quando começava a me queixar ela me arrastava ao jardim e me dizia: "Cale-se! Esta arruinando a festa!". E em seguida fazia caretas para que eu risse. Olha algo assim... —Estiquei a pele das bochechas para baixo como fazia ela, deixando descoberta à borda inferior dos olhos avermelhado. Ele riu e, levantando uma mão pra não ver-me, suplicou: —Para, por favor. —E Ruby é daquelas que te dizem que lhe fez um olhar, e também para qualquer um que se meter contigo. É muito leal. —A estrada serpenteava para cima, abraçando o lado da montanha até perder-se de vista. Caleb manipulou os botões do aquecimento, tratando de regular a ventilação, mas não saiu mais que ar frio.

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—Conheço gente assim. Alguns amigos meus continuam nos campos. Iria perguntar-lhe mais coisas, mas o carro parou de repente, e um forte odor de fumaça entrou em meus pulmões e me fez tossir. Depois de um momento de confusão, saímos do veiculo lutando para respirar. Na parte da frente queimava algo, finas colunas de fumaça cinza saiam do capô. Caleb afastou a fumaça do rosto com a mão e levantou o capô, fazendo um gesto de dor ao tocar no metal quente, e inspecionou o enegrecido interior. —Esta despedaçado — disse, tossindo, e contemplou a estrada que continuava retorcendo-se ante nós ao longo de quilômetros e quilômetros até chegar lá em cima, que depois descia pelo outro lado da montanha. Eu congelei por causa por causa do gélido vento, me cobri com o capuz do jaquetão para proteger-me do vento, enquanto ele pegava as provisões do portamalas e as colocava em uma mochila. —Devemos começar a andar. Assim será mais fácil se aquecer. Estudei o mapa, enrugado e impreciso: faltava algo mais de trinta quilômetros entre chegar ao topo da montanha e descer de novo. —Asseguro que podemos percorrê-lo em dois dias — calculei, e comecei a andar— Talvez menos. Caleb andava com os olhos no céu. —Espero que não chova. —Ajustou o jaquetão e meteu as mãos embaixo dos braços quando iniciamos a subida. Estalavam-me os ouvidos por causa da altura, e a inclinação era tanto que quase não podia respirar, mas mantive o passo com a ajuda de um pau que eu encontrei. Comemos abacaxi e sopa em conserva enquanto caminhávamos, e bebemos o suco frio. Caleb me falou de sua família: seu pai trabalhava no jornal local, e ás vezes trazia grandes caixas para construir casa de brinquedo no jardim. Eu lhe descrevi a casinha de telhas azuis na qual eu havia vivido; nada mais que eu cabia no estreito porão, com densa pelugem rosada. E também lhe falei da caixa de correio: quando me agarrei ao poste ao ver o caminhão percorrendo o bairro. O pai de Caleb havia ido á farmácia e não voltou jamais. Como sua mãe e irmãos estavam doentes, ele andava pelas ruas de bicicleta, procurando o seu pai até que apareceram os vândalos pela noite. Quando voltou a casa, sua família havia morrido e os corpos já estavam rígidos. —Permaneci ali três dias, abraçado com minha mãe. Os soldados me encontraram quando saqueavam as casas, e me levaram para os campos de trabalho. —Continuei caminhando, subindo a íngreme costa, mas minha mente estava naquela casa junto a Caleb, acariciando lhe as costas para consolar seu choro.

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Subimos em silêncio por um tempo, de mãos dadas, mas os dedos haviam se avermelhado pelo frio. Havíamos caminhado oito quilômetros quando o céu começou a cuspir pequenos cristais brancos que se acumulavam nas pregas de meu jaquetão. —Isto... É neve? —estendi a mão, desfrutando da fria sensação sobre a pele. —Só a havia visto a distancia, coroando o alto das montanhas nos livros. —Sim, e cai muito rápido — contestou avaliando a fina camada que cobria a estrada como uma savana, mas continuou andando, sem parar para olhar. Sabia que era algo serio pelo seu tom de voz, mas fiquei observando os pontinhos brancos em minhas mãos. Pensei em bonecos de neve, castelos e iglus como nos contos de minha infância. Dez minutos depois o vento aumentou, os flocos eram mais grossos e se amontoavam no chão, alcançado vários centímetros de altura. A camisa não me abrigava o suficiente tão pouco o jaquetão, e os tênis esportivos não eram apropriados. O frio ultrapassava as roupas e o vento me fazia tremer. —Temos que montar a tenda — recomendou Caleb; o capuz caiu para traz e deixou seus cabelos descobertos. Tiramos a tenda da bolsa, lutando para cravar as hastes no duro terreno, embora somente conseguíssemos cravar uma, enquanto os flocos caiam cada vez mais rápidos, arranhando-me as bochechas e dificultando minha visão. Caleb continuou golpeando uma haste com outra, o metal se dobrou. Depois de um tempo, aguentando as sacudidas do frio, já não podia mais. — Deixe. Vai assim. Temos que entrar na tenda do jeito que esta. Puxei o tecido da única haste estável ao chão, e prendi com algumas pedras. Atrás havia uma rocha, que formava um pequeno espaço triangular. Entrei embaixo e Caleb entrou atrás de mim. Não havia muito espaço, mas o tecido caia pelos lados e nos protegia um pouco da tempestade. —Quanto durará? — perguntei; notava as mãos anestesiadas, e o frio entravas pelas mangas. Caleb colocou o capuz de novo. Tinha o cabelo coberto de neve. —Não sei talvez toda a noite. — Se aproximou de mim, cobrindo-me a costa com um braço e abraçando-me pela com o outro. Em seguida senti calor, tinha o rosto colado ao seu. Minha respiração diminuiu e o medo acabou; já não tremia. Ele colocou as mãos em minha bochecha e limpou o resto de neve de meus cílios. —Benny me disse que amar alguém era saber que sua vida seria pior sem essa pessoa. —Sorriu— De onde tiraria essa ideia?

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Minha pele se aqueceu graças a seu contato. Sorri-lhe sem dizer nada. Inclinou-se sobre mim, desenhando linhas invisíveis sobre minhas bochechas, e sussurrou: —Por isso tinha que te encontrar. Seus lábios se fundiram com os meus e seus braços me rodearam os ombros. Levantei meu queixo e me entreguei ao seu beijo. Foi impossível parar. Pensei fugazmente nos anos de aula sobre a estupidez de Julieta, Ana Karenina, e Edna Pontellier. Mas pela primeira vez o compreendi: tudo por um momento, um momento demasiado bom para desperdiça-lo.

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Trinta e três Quando abri os olhos, tudo era branco, e durante um segundo me perguntei se havia morrido e estaria no céu. Ao levantar o pedaço de tecido que me cobria em parte o rosto, comprovei que a neve continuava ali. O chão estava gelado, mas a tempestade havia passado e brilhava o sol. Saí da improvisada tenda. Descansando os braços de um lado, Caleb começou a despertar. A distancia, lá em baixo, havia um mundo silencioso e pequeno, fascinante, sem armas, sem soldados nem colégios. Meu corpo se contagiou com a energia das pedras, a vegetação e o céu; sentia-me incrivelmente livre. Ergui os braços, e a brisa se escapou por entre os dedos. De repente algo me golpeou a costa. Virei-me. Caleb estava agachado junto à tenda, com uma bola de neve na mão, esboçando um sorriso travesso. Lançou-me o projétil, me acertou no pescoço. Gritei me agachei e, pegando punhados de neve, os compactei. —Vai me pagar! —O persegui entre os arbustos, sobre as pedras, caindo enquanto o salpicava pelas costas uma vez, duas, três vezes, cheia de entusiasmo. Ele me lançou outra bola de neve que acertou, mas eu aproveitei para prendê-lo pelo braço e derruba-lo no chão. —Jogo a toalha! Jogo a toalha! —gritou rendendo-se. —Que toalha? —perguntei. Peguei um punhado de neve e a esfreguei pelo rosto. Retorceu-se para evitar a frieza. De repente, realizando um rápido movimento, se pôs sobre mim, me rodeou com os braços e acertou seu rosto no meu. —Significa piedade! Não tem piedade? —Me beijou lentamente, como em um jogo, enquanto eu caia de costas sobre a neve. Talvez fosse porque a tempestade havia passado, a ilusão do descanso ou a embriagues de felicidade, mas descemos a montanha em menos de um dia. Quando o sol se pôs, chegamos por fim em uma estrada plana, cuja musgosa calçada foi um verdadeiro alívio pra nossos pés. —Podemos parar ali — sugeriu Caleb, mostrando um grupo de edifícios a quilômetro e meio de distância— Com um pouco de sorte, encontraremos algo útil para a última parte do trajeto: bicicletas, um carro, qualquer coisa. —Tudo isto, como conseguiu o carro, o Volvo? —perguntei. Havia sentido tanta felicidade ao vê-lo na estrada e perceber seu corpo junto ao meu, que nem se quer me ocorreu de pensar como havia chegado até ali.

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Uma mosca rodou ao redor de sua cabeça, e a perseguiu, por fim respondeu: —Vendi Lila a um bandido. —Sorriu timidamente— Não são más pessoas, simples, mas egoístas. Ela estará bem. Sabia que adorava sua égua; o percebi pela forma em que lhe penteava a crina ou a tranquilizava sussurrando coisas. Por isso esquadrinhava o horizonte depois de nosso encontro com os soldados, e seguia buscando rastros dela. Peguei sua mão e a apertei; não bastava como um simples agradecimento. Nada que eu dissesse seria suficiente. Caminhamos em silencio uns minutos, até que Caleb se deteve de repente, esquadrinhando algo que havia visto a um lado da estrada. —Que aconteceu? —perguntei quando me obrigou a voltar — Que é isso? —Devemos nos esconder — Mostrou a grama ao lado da estrada: a vegetação estava aplanada, formando linhas retas, como se rodas a tivessem esmagado— É uma armadilha. Virei-me. As montanhas se erguiam entre eles e nós, não havia nada mais que terreno com grama. —Não há nenhum esconderijo. Percebemos um movimento a uns duzentos metros, perto do grupo de edifícios. Uma figura, e depois uma segunda silhueta, se recortaram contra o crepúsculo. —Vocês estão no controle da estrada. Em nome da lei identifiquem-se. — Uma daquelas pessoas ergueu um braço, fazendo-nos sinais para aproximarmos. Caleb me soltou a mão e me olhou. Depois observou a montanha. —Segue-me e cubra o rosto com o cabelo. Comecei a andar, sentindo o peso da mochila na costa, e desembaracei um emaranhado de cabelo que levava em baixo do capuz para ocultar-me o rosto. Havia três guardas em frente a um antigo estabelecimento em cujo frágil letreiro dizia: OFICINA DE CONSERTO DE CARROS. Vimos um SUV do governo estacionado no local, assim como barras enferrujadas, ferramentas e montões de pneus furados sobre as mesas de trabalho. —Desculpem —disse Caleb, desviando o olhar— Só somos minha irmã e eu. Precisamos de comida. Um soldado ruivo se aproximou, de cílios e sobrancelhas tão claras que tinha o aspecto careca de uma salamandra, e eu cravei os olhos em sua botas, negras e reluzentes. Nunca havia visto umas botas tão brilhantes.

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—Buscam comida nas montanhas? —perguntou acariciando a pistola que levava no quadril. —A buscamos através delas —replicou Caleb —Nós estamos vindo do outro lado. Um bando de rebeldes incendiou nossa casa. Os soldados nos observaram e fixaram nas roupas rasgadas, na terra incrustada em baixo de nossas unhas e na fina camada de poeira que escurecia nossa pele. —E tem permissão para viver fora da cidade? —perguntou outro deles, mais baixo e gordo, cuja barriga pendia sobre seu cinturão. Apoiava uma mão no SUV verde. —Sim— respondeu Caleb, que tinha tirado o casaco pouco antes e tinha o pescoço da camisa empapado de suor— Mas tudo se perdeu no incêndio. O terceiro soldado nos removeu as mochilas, se sentou na estrada e revirou nelas, tomando nota das latas sem etiqueta, do mapa enrugado e da tenda. Virou-se para os outros e fez um gesto negativo com a cabeça. Tinha o cabelo cortado quase à zero. —Como se chama? —perguntou o gordo. Se dirigindo à Caleb, mas ao mesmo tempo esquadrinhava meus cabelos, a parte visível de meu rosto e minhas finas pernas cheias de arranhões. Caleb se aproximou de mim. —Eu me chamo Jacob e ela é Leah. —Falou com voz clara e firme. Mas o soldado ruivo não deixava de me olhar. O suor deslizava por minha pele. "Que nos deixem passar — pensei sem tirar os olhos das reluzentes botas do soldado— Por favor, que nos deixem passar." Ouvi um suspiro e, de repente, o ruivo começou a estralar os dedos como se fossem ramas se quebrando. —Tira a camisa — ordenou. E meus cabelos ficaram em pé até que me dei conta que havia dito a Caleb, que mantinha os braços parados em ambos o lado do corpo. —Senhor, eu... Eu não... —Tentou dizer algo, mas se engasgou. —Deixe-nos em paz, por favor — pedi levantando a cabeça pela primeira vez. —A única coisa que queremos é comida e dormir uma noite. Mas o de cabeça raspada sacou uma faca enquanto esboçava pouco a pouco um sorriso. Com um movimento veloz arrancou a manga da camisa de Caleb, e deixou sua tatuagem descoberta.

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—O que temos aqui? —Ridicularizou o ruivo sem tirar a mão da pistola— Um fugitivo? Onde pegou a garota maldito bastardo? O de cabelo raspado me olhou fixamente. Era jovem, e usava um bigode fino que era apenas percebido no lábio superior. Por fim disse: —É ela. É a garota. Caleb bateu no ruivo, fazendo-o perder o equilíbrio. O soldado mais jovem contemplou a cena e fez um gesto de pegar a sacar a pistola. O gordo me pegou pelo pescoço e me ameaçou com a faca, pressionando minha pele com o frio metal; respirava em meu ouvido e eu percebi o cheiro de álcool em sua respiração. O ruivo cambaleou para trás, arrastando Caleb para a garagem, onde estava o veículo. E bateu com a cabeça contra o para-choque, enquanto meu amigo buscava desesperadamente sua pistola, e o soldado o repelia a cotoveladas. —Façam algo, imbecis. Ajudam-me — gritou ao arrebatar Caleb em cima dele, mas o ruivo era de maior estatura, e com seu peso, o imobilizou momentaneamente no chão. —Espere — ordenou o gordo, empurrando-me para o jovem, que rodeou o pescoço com o braço e me apertou contra seu peito. Notava em minha costa que o seu coração latia desaforadamente, enquanto me separava dos três homens, envolvidos junto às rodas dianteiras do SUV. O gordo socou os nós dos dedos na nuca de Caleb, que caiu sobre o ruivo, e este se chocou. —Basta! Basta! —gritei quando o gordo ergueu a faca, levantou o braço com raiva e mergulhou a lâmina na perna de Caleb. O soldado levantou a arma de novo e a dirigiu mais acima: ao pescoço. Iria mata-lo. Apalpei com a mão a cintura do soldado jovem, buscando a pistola. Sem pensar duas vezes, a saquei do coldre e apontei para o gordo que tinha a faca contra o pescoço de Caleb. Apertei o gatilho, e uma repentina nuvem de fumaça se estendeu em minha frente. O gordo gritou quando a bala lhe rasgou um lado. Caleb rodou para um lado, desprendendo-se do ruivo, e eu disparei de novo e fez uma careta quando a bala penetrou o peito do homem. Caleb pegou as pistolas dos soldados e as jogou entre a grama. O ruivo soltou um gemido e sangue brotou de sua garganta; logo, silencio. Caleb tentou caminhar, mas soltou um grito terrível; tinha a perna da calça encharcada de sangue.

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—Temos que sair daqui — me disse, deu uns passos e caiu; o rosto estava desfigurado por causa da dor. Junto a mim, o soldado mais jovem levantou as mãos, sem se mover. —Você. —Ouvi minha própria voz—. Você nos levara. —Fala sério? —disse. Parecia mais magro, menor; sua boca era uma linha tremendo. —Agora mesmo. —O apontei com a pistola para que se dirigisse para o carro— Agora! —gritei, e se apressou a ligar o motor. Tirou o carro da estreita garagem e estava preste a passar por cima das pernas do ruivo. Ajudei Caleb a subir no veículo sem baixar a pistola e fechei a porta com uma batida.

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Trinta e quatro —Mais rápido — ordenei— Dirija mais rápido. Coloquei a pistola na altura do peito quando virou à esquerda a 80 por hora pela rachada estrada. Virei à cabeça para ver se outros carros não nos seguiam. Não tardariam em nos perseguir, em dar o alerta ao exército do rei para que procurassem a quem tinham matado seus homens e roubado seu carro. O soldado pisou no acelerador sem parar de tremer. Caleb tentava enfaixar a perna no banco de trás. Durante uma hora pressionou a ferida. Mas quando retirou as empapadas calças da pele, brotou outro horrível jorro de sangue. —Tem que deter a hemorragia — exclamei, enquanto o veiculo dava pulos sobre a irregular calçada. O rosto de Caleb, muito pálido, começava a atingir um tom cinzento— Está perdendo muito sangue. —Eu estou tentando —respondeu apertando uma tira de pano ao redor do músculo. Seus movimentos eram lentos, demorou a fazer o nó, como se precisasse pensar antes de amarrar o tecido— Só tenho que... —Se extinguiu a voz, cada vez mais pausada. Vi como escorregou no acento, e como custava muito mover-se. Coloquei o dedo no gatilho e foquei a atenção no soldado. Em seu rosto vi os homens do porão e ouvi suas vozes baixas enquanto procuravam em baixo dos moveis e nos armários; os vi matar Marjorie e Otis, e ouvi o disparo que havia matado Lark e os violentos cliques dos galhos quebrando quando me perseguiam pelo bosque. —Te disse para acelerar — adverti friamente. —Sinto muito, já faço — respondeu. Pisou de novo no acelerador, e eu saltei no acento. Caleb se queixou. Tinha as mãos cobertas de sangue. Depois de um bom trecho, o soldado olhou a pistola e em seguida a estrada. —Se pararmos, poderei ajudá-lo. Não deixei de aponta-lo, temendo que nos atacasse se me movesse. Atrás de mim Caleb fez um gesto negativo com a cabeça. —Esta mentindo — afirmei— É uma armadilha. Continua. —Segura que estávamos a menos de cem quilômetros de Califia, onde nos ajudariam. Caleb resistiria.

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—Tem um kit de primeiro socorros no porta-luvas — informou o jovem soldado, mostrando a caixa de plástico em minha frente— Posso costurar a ferida. --Não confio em você — repliquei, mas, no acento traseiro, Caleb apertava os punhos, tratando de suportar a dor. —Se eu fizer, terá que me deixar livre. —O soldado, de grossas sobrancelhas negras, me olhou com uma expressão suplicante. Eu olhei: Caleb se agarrava no acento com a cabeça baixa. A improvisada bandagem não servia para nada. Podia acontecer qualquer coisa: os velhos pneus estarem a ponto de rebentar ou talvez acabasse o combustível. E se nos encontrávamos com mais soldados, ele necessitaria de todas as forças possíveis. Fechou os olhos enquanto caia lentamente, sem remédios, em um profundo sono. —Freia — ordenei— Faça rápido. A caminhonete se deteve no lado da estrada, em frente um grupo de edifícios. Um gigantesco e arqueado M amarelo se erguia sobre nós. Sai do carro e dei a volta no veiculo, sem tirar a pistola do soldado, enquanto ele manipulava a bolsa vermelha do porta-luvas. Pegou uma agulha, a rosqueou e a preparou. Com movimentos enérgicos (já não lhe tremiam as mãos), retirou a bandagem da perna de Caleb e injetou um liquido claro na ferida; depois pegou um pedaço de gaze do kit. Não tinha visto nada tão branco desde que havia fugido do colégio; estava mais limpo que os elegantes camisões que nós colocávamos para dormir. Aplicou a gaze sobre a pele de Caleb para secar a ferida, que escorria sangue de uma intensa cor vinho. Em seguida limpou o corte e o costurou com fio negro, sem mudar ante o sangue. Quando acabou, Caleb tinha os olhos entreabertos. —Obrigada — disse. O jovem soldado se virou para mim e perguntou: —Posso ir agora? —As lagrimas lutavam para escapar. Caleb negou com a cabeça e disse: —Precisamos que dirija. —Eu o prometi — repliquei, e baixei a pistola. Ao longe nas colinas douradas se prolongavam ao largo de quilômetros e quilômetros. —Não podemos — insistiu Caleb. O jovem juntou as mãos em um gesto suplicante, e disse:

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—De todas as formas vou morrer aqui. Que querem de mim? Eu cumpri com o que prometi fazer. —Parecia muito vulnerável, com seu peito afundado e pernas puro osso; não devia ter mais de quinze anos. Indiquei com a cabeça a lateral da caminhonete, onde a estrada deixava espaço à areia e a grama. —Vai — disse— Já! Começou a correr sem olhar para trás. —Não devia ter feito isso — me advertiu Caleb, estudando os pontos da perna. Em seguida se acomodou e inclinou, abandonando a comodidade do acento. —Era uma criança — comentei. —No exército do rei não há criança. —Caleb tinha a pele avermelhada pelo sol recebido durante a jornada— E agora quem vai dirigir? —Eu prometi — repeti em voz tão baixa que duvido que me ouviu. Ocupei o acento dianteiro, tentando lembrar como havíamos chegado até ali. Girei a chave no contato tal como tinha feito o soldado, e segurei o volante como o havia feito Caleb através do deserto. Em seguida acionei a alavanca de marchas para o centro e a coloquei em terceira. Pisei no acelerado e o veiculo arrancou; fui adquirindo velocidade e andar cada vez mais rápido para Califia.

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Trinta e cinco Horas depois cruzamos uma enorme ponte cinza e chegamos às ruínas da cidade de São Francisco. Rodeavam-nos antigas casas de decoração complexa, de fachadas de cores cobertas de hera e musgo, e tinha carros abandonados no meio das ruas, o que nos obrigou a circular pelas amplas calçadas, esmagando ossos. Caleb consultava o mapa e me guiava pelas altas colinas; indicava-me quando devia trocar a marcha ou acelerar até que a estrada subiu e não vimos mais que uma franja azul diante de nós. —O mar — disse parando para contemplá-lo. Debaixo de nós as ondas colidiam e se desfaziam produzindo um rugido; o mar era imenso, um grandioso reflexo do céu. Em uma doca dormiam os leões marinhos, gordos e lustrosos. Um bando de pássaros voou sobre nós, saldando-nos com sonoros chiados. "Estão aqui — diziam— Vocês conseguiram." Caleb me acariciou a mão. Entre os dedos tinha sangue seco. —Não tinha voltado nesta cidade desde menino. Meus pais nos trouxeram uma vez, e viajamos no bonde. Era um enorme veiculo de madeira, e eu me agarrei bem a um de seus lados... —Ficou sem voz. Permanecemos olhando o horizonte, de mãos dadas. —Ali esta. —Mostrei a ponte vermelha a um quilometro de distancia, sobre a enorme extensão azul—: A ponte de Califia. —Sim, é essa — afirmou, checando o mapa, mas não sorriu, sem que, pelo contrario, uma estranha expressão lhe nublou o rosto. Parecia triste—. Ocorra o que ocorrer, Eve — advertiu apertando minha mão—, só quero que você... —A que você refere? —Dei uma olhada na sua ferida na perna— Estamos aqui. Tudo ficará bem a partir de agora. Tudo ficara bem para nós dois. —Me aproximei um pouco mais a ele, procurando seu olhar. Caleb levantou a vista; tinha lagrimas nos olhos. —Sim, claro, já sei. —Você curará — assegurei beijando-lhe a testa, nas bochechas e na costa das mãos— Não se preocupe. Estamos chegando; aqui te ajudarão. —Esboçou um tênue sorriso e encostou-se ao assento.

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Pisei no acelerador e não paramos até que acabou a calçada, pois até o ultimo centímetro do asfalto estava ocupado pelos carros. Caleb desceu; tinha recobrado a cor, mas caminhava com muita dificuldade, sem nem levantar a perna esquerda do chão. Subimos pela colina, deixando para trás casas e lojas roubadas. Ele ia muito lentamente, apoiando todo o peso em meu ombro. Estremeci quando me atingiu um escuro pensamento: E se não se curasse? O apertei contra mim, como se minha firmeza pudesse liga-lo a este mundo, a mim, para sempre. Por fim chegamos ao ponto em que a ponte saltava o precipício, onde havia um amplo parque na entrada: a grama, o matagal e as arvores cobriam o portão de metal vermelho. Puxei umas trepadeiras que tapavam o muro e descobri uma placa, enegrecida pelos anos: PONTE GOLDEN GATE, 1937. Quando chegamos à ponte propriamente dita, me acelerou o coração: as grades haviam caído em vários lugares, à borda do chão havia se quebrado, sem que tivesse nenhuma proteção entre nós e o desnível de noventa metros. Serpenteamos entre carros velhos, pisando com cuidado as raízes e o mofo que cobriam a ponte. Em alguns veículos queimados ainda tinha esqueletos preso nos acentos dianteiros, e um caminhão, ao virar, tinha jogado os restos mofados de uma casa: quadros quebrados, livros espalhados, um colchão... Segui em frente, passo a passo, escutando a trabalhosa respiração de meu companheiro. Quando a exaustão começava a nos vencer, ergui a vista: ao fim da ponte, no alto de uma montanha, distingui uma luz no alto de uma coluna de pedra: o mesmo sinal que havia visto no bosque quando fugia de Fletcher. Recordei então as palavras de Marjorie: "Se esta acesa tem lugar para vocês". Era o final da rota. —Falta muito pouco — Assegurei a Caleb, ajudando-o a saltar uma moto caída no chão— Não se preocupe. —O abracei para anima-lo— Pensa que não tardaremos nada em chegar lá. Então poderá deitar-se; haverá comida, e tomaremos batata carameladas, coelhos e frutos silvestres, e se sentirá muito melhor depois de descansar uma noite. Ele arrumou a surrada camiseta para se proteger do vento. Assentiu, mas continuava triste. Perguntei-me se seus pensamentos seriam tão sombrios como os meus. A ponte desembocava em um denso bosque. Subimos pelo tortuoso caminho escavado na encosta da montanha, até onde brilhava a luz através das arvores, e chegamos em frente um portão de madeira. Quando nos aproximamos, saiu uma jovem mulher que nos apontava com um rifle.

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—Quem são? O que querem? —gritou. Não era muito maior que eu; se via perfeitamente o rosto, pois havia recolhido os cabelos loiros para trás, e usava um folgado vestido verde, manchado de barro, e botas negras de cano alto. —Queremos ir a Califia — respondi levantando as mãos para demonstrar que não estava armada— Somos órfãos, fugitivos. Viemos de muito longe e precisamos de ajuda. A garota avaliou a perna de Caleb, envolta no ensanguentado pedaço de tecido, examinou as espessas tranças castanhas, a camiseta rasgada e as calças cortadas na altura da ferida. —Estão juntos? —perguntou olhando sucessivamente a um e outro. Tudo isto, atrás dela, apareceu uma mulher maior, de pele mais escura que a nossa e abundantes cabelos negros recolhidos no alto formando uma boa mata. Negando com a cabeça e sem tirar a mão de uma pistola pendurada no cinturão, disse: —Ele não pode entrar. —A que se refere? —perguntei, mas Caleb começou a voltar pouco a pouco, tirando a mão de meu ombro. —Aqui não admitimos os de sua classe — afirmou a garota loira apontando. —Sua classe? —inquiri puxando-o para mim— Mas esta ferido; não pode ir a nenhum lugar. Por favor. A garota não recuou. —Não é permitido. Sinto muito. —Mantinha o rifle sobre o ombro e nos olhava do estremo do cano. Agarrei a camiseta de Caleb, mas ele pegou minha mão e desprendeu um a um dos meus dedos até soltar todos. —Não tem problema — disse retrocedendo— Entra. Deve entrar. Eu vou ficar bem. —Não ficara bem! —gritei, afogando em lagrimas— Precisa entrar. Por favor — implorei indicando a perna ensanguentada e a suja bandagem. A garota se limitou a negar com a cabeça. —Sabia que era assim — afirmou Caleb— Califia sempre tem admitido só mulheres. Por favor, Eve, entra. Dei-me conta de que nunca havíamos falado do que ocorreria quando chegássemos naquele lugar. Cada vez que eu levantei o assunto, o assentia, sorrindo, com o olhar perdido. Havia-me levado até ali, mas não podia entrar.

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Tratava-se de um distante destino para nós dois, mas não significava que poderíamos compartilhar a vida. —Aqui estarás a salvo. —Retrocedeu com forças renovadas, segurando nos galhos das arvores para descer pela colina. O espaço entre ambos aumentou, e seus passos cobraram maior energia à medida que nos separávamos. Corri atrás de dele e o abracei, cravando os pés no chão e puxando ele. —Viveremos em outro lugar. Vou com você... Caleb deu a volta, se aproximou de mim e, franzindo o cenho, perguntou: —Onde? Onde esta este outro lugar? Enrijeceu-se minha garganta, mas sugeri: —Talvez tenha algum lugar na rota, ou podemos viver por aqui, ou no refugio; sim, voltaremos ao refugio. Terei muito cuidado. Caleb negou com a cabeça e acariciou meus emaranhados cabelos. —Não pode voltar ao refugio: os soldados te procuram Eve. Encontraramnos ao pé das montanhas e voltariam a encontrar-nos. Obrigou-me a olha-lo, até que assenti com um gesto quase imperceptível. Então me beijou; roçou com os lábios minhas bochechas, minhas sobrancelhas e meus lábios. O absorvi todo: o dançar da tênue luz sobre sua pele, a fileira de sardas que pontilhava a sua bochecha, o cheiro do suor e fumaça tão característico dele. "Não esquecerei o seu rosto — me disse— Não permita que esqueça." —Voltará? —aconteceu de perguntar, enquanto as lagrimas varriam a sujeira do meu rosto, e batia os lábios em sua bochecha— Por favor. —Eu tentarei. —Foi tudo o que disse— Eu tentarei de verdade. Tentei despedir-me, mas não consegui articular as palavras. Ele pegou minha mão e a levou aos lábios. A beijou e me soltou. Fechei os olhos com força, mas as lagrimas brotaram incontroláveis. Não fui capaz de despedir-me, não pude dizer-lhe adeus. Quando abri os olhos de novo, Caleb havia descido já a íngreme costa. Sua silhueta era cada vez menor à medida que se distanciava pela ponte. Minhas ilusões de uma vida juntos pareceram aparições, apagadas em um sopro de forças incontroláveis. Ele tinha se ido, e eu não sabia se voltaria a vê-lo.

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Quando estava a ponto de abandonar a ponte, se virou pela ultima vez, levantou o braço e saudou. "Te amo", parecia dizer enquanto agitava a mão de um lado para outro. O imitei. "Te amo, te amo, te amo."

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Agradecimentos Em primeiro lugar, merecem todo o meu agradecimento meus amigos da Alloy Entertainment, cuja fé e apoio nunca vacilaram: dou graças ao divertidíssimo Josh Bank por uma comida que não tinha que ter tomado; a Sara Shandler, hábil cortadora de palavras, por amar este livro desde a primeira pagina; a Lanie Davis, por guiar-me na direção certa, e a minha editora, Joelle Hobeika, por suas agudas observações, sua meticulosas correções, seu humor e entusiasmo. Tem-me suportado com o pilar da sanidade durante os primeiros meses, quando passava mais tempo falando com seres imaginários que com pessoas reais. Estou em divida com Farrin Jacobs e Zareen Jaffery, da HarperCollins, primeiros defensores de Eve, por seu continuo apoio e sua orientação editorial. Também quero agradecer a Kate Lee, super agente e confidente, por seu excepcional trabalho. Tenho a sorte de contar com muitos amigos leais que celebram minha felicidade como se fosse própria; merecem muito mais que o convencional agradecimento que posso oferecer-lhes nestas linhas. Agradeço de todo o coração aos que leram o manuscrito com carinho quando ainda não estava preparada para mostrar a ninguém mais: CJ Hauser, Allison Yarrow e Aaron Kandell. Como sempre, minha mais sincera gratidão a meu irmão Kevin e a meus pais, Tom e Elaine. Os amo, os amos, os amo.

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Uma espiadinha em Once, Segundo livro da trilogia EVE. Em breve Aqui na Dark Knight

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SINOPSE Em quem você pode confiar quando todos querem te caçar? Pela primeira vez desde que escapou do colégio fazem muitos, muitos meses, Eve pode dormir tranquila. Vive e Califia, um paraíso para mulheres, protegida do destino terrível que espera as órfãs de Nova América. Mas sua segurança tem um preço: se viu obrigada a abandonar Caleb, o garoto que ama, sozinho e ferido às portas da cidade que agora é seu lugar. Quando Eve descobre que Caleb pode estar em perigo, se lança aos bosques para resgatá-lo, é capturada e levada para a Cidade de Areia, a capital de Nova América. Presa na cidade murada, Eve descobre um surpreendente segredo de seu passado e se vê forçada a enfrentar a realidade crua que é o futuro que a espera. Quando descobre Caleb vivo, Eve tenta escapar de sua prisão para estar junto dele mas as consequências podem ser fatais. De novo se encontrará ante uma difícil escolha: salvar aqueles que ama ou arriscar-se a perder Caleb para sempre.

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Para minha família ( de Baltimore a Nova York)

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Um Corri sobre as pedras, com a faca na mão. A praia estava salpicada de barcos surrados pelo sol que levavam muito na praia. A embarcação que tinha de ante de mim, de seis metros de altura, quase duas vezes maior que os demais, havia encalhado nesta mesma marina. Enquanto trepava pela borda notei um vento gelado que chegava do mar; o céu estava coberto de neblina. Ao caminhar pela desgasta coberta, notei Caleb ao meu lado envolvendo minha cintura com a mão. Apontava para o céu e me mostrava como os pelicanos se lançavam em mergulho até o mar como a neve desliza sobre as montanhas cobrindo-as com uma capa branca. As vezes me dou conta que falo com ele e que murmuro ternas e intimas palavras que sou a única que percebo. XXXXXX Haviam transcorrido quase três meses desde que nos vimos pela última vez. Eu vivia em Califia, o acampamento exclusivamente feminino criado há mais de dez anos, em plena floresta, como refúgio para as mulheres e meninas procedentes do caos. Haviam chegado de todas as partes e cruzado a ponte Golden Gate, rumo a Marin County. Algumas delas haviam enviuvado despois da epidemia e já não se sentiam seguras vivendo sozinhas; outras haviam escapado de quadrilhas violentas que as haviam prendido. Também moravam ali a que , como eu, haviam fugido dos colégios do governo. Enquanto morava no prédio murado do colégio, todos os dias contemplava o prédio sem janelas do outro lado do lago, o centro profissional para onde iriamos depois da formatura. Na noite anterior à cerimônia, descobri que nem eu nem minhas amigas iriamos aprender nenhuma das habilidades que nos permitiriam contribuir com o progresso de Nova América porque, em razão da epidemia que havia dizimado a população, ninguém necessitava de artistas nem educadores, sim de crianças, crianças que nós estávamos destinadas a procriar. Escapei deles, mais logo percebi que meu verdadeiro destino era muito pior: além de estar encarregada do discurso de despedida do colégio, estava comprometida ao rei como sua futura esposa, para trazer ao mundo seus herdeiros. O monarca me perseguiria para sempre e jamais desistiria até me prender entre os muros da Cidade de Areia. Subi a escada até a cabine superior da embarcação. Diante do destroçado parabrisas havia duas poltronas e um timão metálico, tão enferrujado que nem sequer girava; nos cantos se acumulavam papéis encharcados de água. Revistei os armários debaixo dos painéis de controle em busca de latas de alimento, roupa aproveitável e qualquer ferramenta ou utensilio que pudesse levar em meu regresso ao acampamento. Guardei em uma mochila uma bússola de metal e uma puída corda de náilon.

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Depois desci para a coberta, me aproximei do camarote principal e, tapando o nariz com a camiseta, corri a porta de cristal chamuscado e entrei. As cortinas estavam fechadas. Sobre o sofá, entre as almofadas cobertas de mofo, havia um cadáver envolto em uma manta. Atravessei o quarto com grande rapidez, respirando pela boca, e iluminei os armários com a lanterna. Encontrei uma lata de comida sem etiqueta e vários livros molhados. O barco se moveu ligeiramente por baixo de meus pés enquanto dava uma olhada nos livros: havia alguém no camarote abaixo. Saquei a faca e me encostei na parede contigua a da portada cabine e prestei atenção nas passadas. As escadas dos níveis inferiores rangeram. Apertando o cabo da faca em minhas mãos, notei que alguém respirava atrás da porta. A luz filtrava-se pelas cortinas e um raio de sol oscilava sobre a parede do camarete do camarote. Após alguns segundos a porta se abriu e alguém entrou correndo. A peguei pelo pescoço a joguei ao chão; pulei em cima, em imobilizei seus ombros com os joelhos e pus a faca em seu pescoço. - Sou eu! Sou eu! assustada.

- Com os braços cruzados contra o chão, Quim me olhava

Me afastei e senti que meu coração batia mais devagar - O que você faz aqui? - O mesmo que você - Respondeu. No meio do esforço, a camisa que me cobri a boca e nariz havia se soltado, o cheiro pútrido da cabine quase me impediu de respirar. Ajudei a Quinn a se por de pé tão rápido quanto pude. Enquanto saíamos arrumamos a roupa; o ar salobre que nos atingia era um grande alívio. - Veja o que eu encontrei! Levantou um par de tênis esportivos de cor purpura, com os cordões unidos entre si. No círculo que havia na altura dos tornozelos se lia: CONVERSE ALL STAR - Não quero lhe dar isto; quero ficar com eles. - Te compreendo perfeitamente - disse, irônica. A lona dos tênis estava milagrosamente intacta, em perfeito estado se compararmos com a maior parte das coisas que eu havia encontrado. Em Califia se utilizava o sistema de trocas e, além disso, todas contribuíamos de diversas maneiras: revirávamos o lixo, cozinhávamos, cultivávamos, caçávamos e arrumávamos as casas e as fachadas desmoronadas. Eu trabalhava em uma livraria: restaurava revistas e enciclopédias antigas, emprestávamos livros e oferecia cursos de leituras a quem tivesse se interessasse. Quinn tinha um fino corte em seu pescoço; o coçou e manchou seus dedos de sangue. - Sinto muito- Afirmei- Maeve sempre disse para que tenha cuidado com os estranhos. Maeve era uma das madres fundadoras, nome que se dava a oito mulheres que foram as primeiras a assentar-se em Marin. Me havia acolhido e permitido

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compartilhar o dormitório com Lilac, sua filha de sete anos. Durante meus primeiros tempos em Califia, eu e ela havíamos saído todas as manhãs para exploração, e me havia mostrado as zonas seguras e como me defender se encontrasse um desgarrado. - Pois tenho passado por coisas piores – reconheceu Quinn e, rindo silenciosamente, desceu pelo costado do barco até a praia. De cabelo escuro e encaracolado e feições delicadas, que se afinavam no centro do rosto, com forma de coração, era mais baixa que a maioria dos habitantes de Califia; viva em uma casa flutuante na baia, com outras mulheres, e dedicavam quase todos os dias a caçar nos limites da floresta que rodeava o acampamento, regressando com cervos e javalis. Me ajudou a atravessar a pedregosa praia e me perguntou: -Como aguenta a situação? Contemplei as ondas que quebravam na areia, a água branca e inexorável, e respondi: - Estou muito melhor. Cada dia fica mais fácil. Tentei me mostrar entusiasmada e alegre, ainda que só fosse verdade em parte. Quando cheguei a Califia, estava acompanhada de Caleb, ferido na perna depois de um encontro com os soldados do rei. Não lhe permitiram entrar. Naquele lugar não se admitia homens; era uma das normas. Ele já sabia, e não havia me trazido para ficássemos juntos, sim porque considerou que o único lugar em eu estaria a salvo. Fazia muito tempo que esperava notícias suas, mas não ele não me havia enviado nenhuma mensagem através da rota, a rede secreta através da qual os rebeldes se comunicavam com os refugiados. Tampouco havia deixado algum recado com as guardas da entrada. - Só esta a alguns meses aqui. Necessita de tempo para esquecer. – Quinn me abraçou e me conduziu até os limites da praia, onde a roda traseira de sua bicicleta aparecia no meio do mato que crescia entre as dunas. As primeiras semanas de minha estada em Califia apenas estive presente de corpo: me sentava para comer com as mulheres, passava o pescado branco e macio pelo prato e não escutava mais que a metade das conversações que ocorriam ao meu redor. Quinn foi a primeira a me arrancar de minha ausência. Eu e ela passávamos as tardes em restaurante reformado, próximo à baia, tomando cerveja que as mulheres destilavam em cubos de plástico. Me explicou coisas de seu colégio, como havia escapado por uma janela quebrada e como espreitou próximo à porta de entrada, a espera de um dos caminhões de provisões semanais. Eu, por minha vez, lhe contei que havia passado vários meses como fugitiva. De modo geral, todas conheciam minha história: uma mensagem cifrada, que detalhava os assassinatos em Sedona, havia chegado através do rádio utilizado pela rota. As mulheres sabiam que o rei me buscava e haviam visto o garoto ferido que ajudei a atravessar a ponte. Na quietude do restaurante, contei absolutamente tudo sobre Caleb, Arden e Pip; - Por tudo isto estou preocupada – afirmei.

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O passado parecia cada vez mais distante e os detalhes dos acontecimentos se tornavam mais nebulosos cada dia que passava em Califia. Paulatinamente, ia ficando cada vez mais ficando mais difícil recordar do riso de Pip e dos olhos verdes de Caleb. - Compreendo o que sente por ele- afirmou Quinn, e desfez um nó de seu cabelo. Sua pele cor de caramelo era perfeita, salvo por uma pequena região do nariz, ressecada, vermelha e descascada pelo sol – As águas voltaram ao seu leito. Você precisa de tempo. Pisei em um pedaço de madeira trazido pelas ondas, e me senti satisfeita quando o parti pela metade. Apesar de tudo tinha consciência que erámos afortunadas, pois muitas vezes, durante as refeições pensava na sorte que havíamos tido de escapar dos colégios, e na quantidade de garotas que continuavam vivendo com eles e com todas que estavam nas mãos do rei na Cidade de Areia. Claro que saber que me encontrava a salvo não punha fim aos pesadelos: Caleb sozinho em um quarto, sobre uma poça de sangue seco e negro em volta de suas pernas. As imagens eram tão intensas que despertava com o coração ao ponto de saltar pela boca e com os lençóis encharcados de suor. - Gostaria de saber se continua vivo – consegui murmurar. -Talvez nunca saiba – Respondeu Quinn -. Eu também deixei pessoas para trás. Enquanto escapávamos, capturaram uma amiga minha. Eu costumava ficar obcecada de como eu poderia ter agido. E se tivéssemos escolhido outra saída? E se fosse eu a ser capturada? Se permitir, suas lembranças te destroem. Este foi o conselho que aquela garota me deu: ―Está tudo bem‖. Havia deixado de falar sobre o tema com as outras, mas, em troca, arrastava esses pensamentos como se fossem pedras e as abraçava para saber seu peso. Certo dia Maeve me havia dito: ―Deixa de voltar ao passado. Aqui todas temos algo para esquecer‖. Caminhamos pela borda da praia; a areia cobria nossos pés e as gaivotas faziam círculos sobre nossas cabeças. Fui buscar a bicicleta que havia escondido atrás da colina. A puxei debaixo de um arbusto espinho e voltei para o lado de Quinn. Ela já estava montada na sua, apoiando um pé no pedal enquanto amarrava seu cabelo ondulado com um pedaço de barbante. A folgada camisete de cor turquesa que vestia , brilhando a legenda ―I Love N Y‖, subiu na frente e deixaram a mostra algumas cicatrizes rosáceas e inflamadas em seu ventre que me fizeram pensar em Ruby e Pip. Havia falado de sua fuga, mas não havia me dito uma única palavra sobre os três anos passados no colégio, nem dos filhos que havia tido. Pedalamos em silêncio estrada acima, ouvindo unicamente o sussurro do vento entre as folhas das árvores. Algumas partes da encosta da montanha haviam caído sobre a estrada, de maneira que pilhas de pedras e galhos ameaçaram estourar as rodas das bicicletas. Me concentrei em desviar dos obstáculos. Ao longe um grito cortou o ar. Tentei adivinhar de onde vinha. A praia estava vazia, a maré subia e o incessante turbilhão das ondas cobria as pedras e a areia. Quinn abandonou a estrada, se

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escondeu atrás da mata e me fez sinal para que a seguisse. Nos abaixamos no mato e sacamos as facas, até que por fim, apareceu uma silhueta na estrada. Harriet se aproximou-se lentamente; pedalava como nós, mostrando uma expressão preocupada. Era uma das que cultivavam e distribuíam ervas e verduras frescas nos restaurantes de Califia, sempre cheirando a menta. - Harriet? O que está acontecendo? – perguntou Quinn, baixando imediatamente a faca. A recém chegada, cujo cabelo se havia embaraçado terrivelmente por causa do vento, desceu da bicicleta de um salto e se aproximou. Abaixou-se, pois as mãos nos joelhos e tentou recuperar o fôlego. - Foi detectado um algum movimento na cidade. Há alguém do outro lado da ponte. Quinn se virou para mim. Desde minha chegada, haviam colocado guardas na entrada de Califia, que vasculhavam a cidade em ruinas de San Francisco em busca de sinais dos guardas do rei. Mas não haviam detectado luzes, 4x4 ou tropas. Melhor dizendo, até agora não os haviam detectado. Minha companheira levantou a bicicleta dos arbustos, se encaminhou pra a estrada e me instigou: - Te encontraram. Não temos muito tempo. Harriet fez a curva sem deixar de pedalar.

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