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Tradução

Débora Isidoro


Editora: Raïssa Castro Coordenadora Editorial: Ana Paula Gomes Copidesque: Anna Carolina G. de Souza Revisão: Raquel de Sena Rodrigues Tersi Capa: Adaptação da original (Berkley Books/Penguin Group) Fotos da capa: Coka/Shutterstock Projeto Gráfico da versão impressa: André S. Tavares da Silva

Título original: Breakable

ISBN: 978-85-7686-401-1

Copyright © Tammara Webber, 2014 Todos os direitos reservados.

Tradução © Verus Editora, 2014 Direitos reservados em língua portuguesa, no Brasil, por Verus Editora. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da editora.

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CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ W381b Webber, Tammara Breakable [recurso eletrônico] / Tammara Webber; tradução Débora Isidoro. - Campinas, SP: Verus, 2014. recurso digital (Contornos do coração) Tradução de: Breakable Formato: ePub Requisitos do sistema: Adobe Digital Editions Modo de acesso: Word Wide Web ISBN 978-85-7686-401-1 (recurso eletrônico) 1. Ficção americana. 2. Livros eletrônicos. . I. Isidoro, Débora. II. Título. III. Série. 14-17142

CDD: 813 CDU: 821.111(73)-3


Revisado conforme o novo acordo ortogrรกfico


Para GWK

Quando eu era criança, às vezes me perguntava se você era meu anjo da guarda. Agora que sou mais velha, eu sei que é.


1

LANDON Oito anos atrás Acordei com um sobressalto, gritando. — Enfermeira! — alguém chamou. — Enfermeira! — Um rosto se inclinou sobre mim. Cindy Heller, a melhor amiga da minha mãe. — Landon, querido... tudo bem. Você está seguro. Shh, você está seguro. Seguro? Onde? Senti os dedos frios dela no meu braço e tentei me concentrar enquanto seus olhos vermelhos se enchiam de lágrimas. Ela mordia o lábio inferior com tanta força que ele estava sem cor e tremendo. Todo o seu rosto estava franzido, como um papel muito amassado e depois alisado. O marido dela, Charles, surgiu ao seu lado, um braço passando por suas costas para apoiá-la. Ela se recostou nele como se pudesse desfalecer sem seu amparo. A outra mão de Charles repousou cálida sobre a minha, para em seguida envolvê-la. — Você está a salvo, filho. Seu pai está a caminho. — A voz dele soava áspera e seus olhos também estavam vermelhos. — Ele vai chegar logo. Uma enfermeira apareceu de repente do outro lado da cama com uma enorme seringa, mas, antes que eu pudesse me afastar, ela a introduziu em uma bolsa suspensa em um pedestal de metal, e não no meu braço. Um tubo transparente descia da base da bolsa. Soube que ele estava ligado a mim quando senti o que quer que ela tenha injetado ali, como se eu tivesse sido atingido por um disparo de arma tranquilizante. Arma. Mãe. — Mãe! — eu disse, mas minha boca não colaborou e meus olhos continuaram tentando se fechar. — Mãe! Mãe! Cindy não conseguiu morder o lábio com força suficiente para abafar um soluço.


Lágrimas transbordavam e escorriam por suas bochechas. Eu não sentia mais seu toque, e ela se virou para o peito do marido, as mãos voando para cobrir a boca, mas era tarde demais para abafar outro soluço. A pressão da mão de Charles na minha diminuía pouco a pouco conforme tudo ia ficando mais confuso. — Landon, agora durma. Seu pai vai estar aqui o mais depressa que puder. Eu estou aqui. Não vou sair de perto de você. O rosto dele foi se tornando cada vez menos nítido, por fim desaparecendo por completo, e eu não pude mais manter os olhos abertos. Mãe!, gritei na minha cabeça. Mãe! Mãe... Mãe... Mas eu já sabia que ela não me ouviria, mesmo que minha voz saísse tão alta quanto um motor de avião.

LUCAS Em uma sala de aula com cento e oitenta e nove alunos, é incomum que um deles se destaque logo no primeiro dia, mas não impossível. Quando alguém se sobressai do rebanho assim tão rápido, normalmente é por causa de algo negativo. Como fazer perguntas idiotas. Ou conversar durante a aula — e não ver o olhar furioso do professor. Cheiro de suor excessivo. Ronco audível. Ou minha maldição pessoal: ser diferente. Então, não fiquei muito surpreso quando notei aquele sujeito na primeira semana do semestre. Tipicamente “o cara” no ensino médio, acostumado à bajulação. Ainda esperando por isso e ainda recebendo isso. Membro de fraternidade. Roupas casuais, porém de marca, corte de cabelo caro, sorriso arrogante, dentes perfeitos e a indispensável namorada fofa. Cursos prováveis: economia, ciências políticas, finanças. Ele me irritou logo de cara. Preconceito meu, claro — não que minha opinião tivesse importância. Ele prestava atenção na aula e fazia perguntas pertinentes, sinal de que não precisaria de reforço, embora isso não o impedisse de aparecer nas aulas de reforço que eu ministrava para o dr. Heller três vezes por semana. Normalmente, os melhores alunos correspondiam a mais da metade do grupo. No primeiro semestre em que fui o monitor das sessões de reforço, no último outono,


prestei muita atenção nas aulas do Heller. Tirei nota máxima quando cursei a disciplina, mas já fazia um ano, e economia não é um campo estático. Eu não queria que um aluno me fizesse uma pergunta que eu não pudesse responder. No terceiro semestre — meu quarto acompanhando a matéria —, eu não precisava nem estar lá, mas frequentar a aula fazia parte do espetáculo da monitoria, e era um dinheiro fácil. Então ali estava eu — completamente entediado na última fileira, fazendo as tarefas dos meus cursos, esboçando ideias para um projeto de design, com um ouvido atento na aula para acompanhar a matéria nas sessões de reforço e decididamente ignorando minha inútil antipatia pelo aluno convencido do segundo ano sentado no meio da sala com a namorada-acessório. Mas, no fim daquela primeira semana, minha atenção havia se voltado para ela. Desde a infância, desenhar era uma diversão reconfortante e, às vezes, uma fuga. Minha mãe era artista, e eu não sei se ela compreendeu que eu tinha uma aptidão natural para o desenho, ou se é uma habilidade que aprendi em razão de seu incentivo desde cedo e de muita prática. Tudo o que sei é que, quando eu tinha cinco ou seis anos, papel e lápis eram a minha maneira de me relacionar com o mundo. Minha forma particular de meditação. Quando comecei a faculdade, a maioria dos meus desenhos passou a ser de natureza mecânica ou arquitetônica — o que provavelmente era inevitável, tendo em vista meus estudos em engenharia mecânica. Mas, mesmo no meu tempo livre, eu raramente esboçava corpos e rostos como antes. Eu quase não tinha mais vontade de fazer isso. Até ela. Quando entravam e saíam da sala de aula, o namorado às vezes segurava a mão dela. Mas era como se ele estivesse segurando uma coleira, não a mão da garota de quem gostava. Antes da aula, ele falava de futebol, política, música e coisas da fraternidade, como festas e eventos, com caras que eram como ele e com outros que queriam ser como ele. As garotas em volta o observavam de canto de olho, e ele fingia ignorar. De alguma forma, enquanto o sujeito estava preocupado com tudo e todos ao seu redor, menos ela, eu de repente não conseguia enxergar outra coisa. Ela era bonita, claro, mas, em uma universidade com trinta mil alunos, não era fascinante. Se não fosse minha implicância com o namorado dela, talvez eu nem a tivesse notado. Quando me dei conta da frequência com que meu olhar a procurava, lutei conscientemente contra essa tendência — mas era inútil. Não havia nada na sala tão


interessante quanto aquela garota. O que me fascinou primeiro e acima de tudo foram suas mãos. Especificamente, os dedos. Na sala, ela se sentava ao lado dele, esboçando um sorriso relaxado, e ocasionalmente sussurrava para o namorado ou para outros ao redor. Ela não parecia infeliz, mas seus olhos às vezes eram quase vazios, como se sua mente estivesse em outro lugar. Nesses momentos, porém, suas mãos — seus dedos — estavam em ação. Primeiro pensei que fosse um tique nervoso, como o da filha do Heller, Carlie, que desde que nasceu nunca parou de se mexer. Carlie estava o tempo todo batendo a unha ou o pé em algum lugar, balançando os joelhos, falando. A única coisa que já vi acalmála foi acariciar Francis, meu gato. Essa garota, no entanto, não batia os dedos de um jeito inquieto. Seus movimentos eram metódicos. Sincronizados. Sentado à sua esquerda, longe o bastante para analisar seu perfil, eu a observava balançar o queixo, de um jeito sutil que era quase imperceptível — e em algum momento me dei conta de que, quando sua expressão era distante e os dedos se moviam, ela estava ouvindo música. Ela estava tocando música. Aquela era a coisa mais mágica que eu já tinha visto alguém fazer.

De acordo com o mapa de sala do Heller — que recebi com o restante do material de apoio para a monitoria do semestre —, o nome do babaca era Kennedy, se é que eu estava lendo certo aqueles seus garranchos. Sentado no sofá no meu apartamento, sondando o mapa, eu resmunguei ao ler o nome dela: — Que merda é essa? Jackie. Jackie e Kennedy? Ele não podia estar saindo com a garota por causa do nome dela. Ninguém podia ser tão superficial. Pensei na manhã daquele dia, no fim da aula. Ele entregou o dever de casa para a garota e disse: — Ei, gatinha. Leva isso aqui lá na frente junto com o seu? Obrigado. Ele abriu um sorrisinho superior e então se virou e continuou falando sobre o que devia ou não ser considerado trote, enquanto ela colocava o trabalho dele sobre o dela e revirava os olhos conforme descia os degraus para a frente da sala.


É. Ele com certeza podia ser superficial a esse ponto. Toquei o nome dela com o dedo. Cada uma de suas letras era arredondada, feminina. Até o “i” tinha uma leve inclinação e um rabicho à direita. Mas o ponto sobre a letra era de fato um ponto. Nada de círculo ou coraçãozinho. E teve aquele revirar de olhos depois do “Ei, gatinha”. Talvez ela não estivesse tão perdidamente presa na teia do cara. Mas que merda eu estava pensando? A garota era aluna da turma da qual eu era monitor. Inacessível, pelo menos até o fim do semestre. O que era um longo e maldito tempo, considerando que havíamos acabado de entrar na segunda semana de aula. E, além do fato de não poder tocá-la se ela estivesse disponível... ela não estava disponível. Eu me perguntei há quanto tempo estariam juntos. Os dois estavam no segundo ano, de acordo com a lista de dados. Pior dos casos, então: estavam juntos havia um ano. Então, fiz o que qualquer maníaco faria. Procurei na internet e encontrei um perfil fechado. Droga. Mas o dele era aberto. Kennedy Moore. Em um relacionamento sério com Jackie Wallace. Sem data de início, mas havia fotos nas quais ela fora marcada — não só do ano anterior, mas de antes disso. Continuei olhando as fotos antigas e fui ficando cada vez mais irritado sem um bom motivo para isso. Verão antes do início da faculdade. Formatura do colégio. Baile de formatura. Esqui no feriado. Uma festa surpresa no aniversário dela de dezoito anos. Uma foto distante de uma orquestra com mais integrantes do que todos os alunos do colégio onde estudei. Um close dela usando a roupa da orquestra e um chapéu de Papai Noel — mas sem instrumento nas mãos, então fiquei sem saber o que ela tocava. Ação de Graças com a família dele. Os dois fazendo farra com amigos no campo de futebol de um colégio típico de bairro rico. Férias do verão anterior. Outro Natal. A foto mais antiga dos dois fora tirada no outono de quase três anos atrás. Eles estavam juntos havia três anos. Três anos. Eu não conseguia nem pensar nisso. Um miado na porta indicou o retorno de Francis de qualquer que tenha sido a encrenca em que ele se metera entre o jantar e a hora de dormir. Como qualquer bom companheiro domesticado, deixei o notebook e fui até ele. Quando abri a porta, Francis estava sentado no capacho, lambendo uma pata. — Entra — falei. — Não vou gelar o bairro todo. Ele se pôs de pé e se espreguiçou sem pressa, entrando no apartamento assim que


ameacei fechar a porta bem no seu focinho. Um segundo antes de fechá-la por completo, ouvi alguém me chamar e abri novamente. Carlie estava na metade da escada de madeira que levava ao meu apartamento sobre a garagem dos Heller. Era tarde. Ela tinha desenvolvido uma queda nada confortável por mim na primavera passada, a qual pensei ter acabado meses atrás, depois que fingi não notar os olhares prolongados e as risadinhas exageradas. Eu a conheço desde que nasceu, ela e os irmãos são como primos ou irmãos para mim, sobretudo porque não tenho nem uma coisa nem outra. E ela também era cinco anos mais nova que eu — uma criança, de verdade. A última coisa que eu queria era magoála. Eu me movi, bloqueando completamente a passagem. — Ei, Carlie. Você já não devia estar na cama? Ela torceu o nariz e franziu a testa, ofendida. — Tenho dezesseis, não seis anos. Caramba. — Quando ela alcançou o último degrau e se posicionou no semicírculo de luz do pequeno corredor, notei que ela segurava um prato. — Achei que você podia querer um pouco disso. — Legal. Valeu. — Peguei o prato, mas não entrei no apartamento. Ela arrastou um pé e botou as mãos nos bolsos de trás do shorts. — Lucas? — Sim? — respondi, e pensei: Ai, merda. — Você nunca vai... arrumar uma namorada? Ou já tem, mas não traz a garota aqui? Ou tem, sei lá, alguma coisa que você ainda não revelou... Engoli a risada. — Se você está prestes a perguntar se preciso sair do armário, a resposta é não. Eu já teria saído há muito tempo. — Estranhamente, essa pergunta era muito mais fácil de responder que a outra. — Imagino que sim. Quer dizer, você meio que não se importa de ser polêmico. Ergui uma sobrancelha. — Por causa do piercing no lábio? Ela assentiu. — E das tatuagens. — Seus olhos se arregalaram quando ela se deu conta do que tinha acabado de dizer. — Quer dizer, é claro que você tem seus motivos para ter feito. A maioria... — Ela fechou os olhos. — Meu Deus, eu sou muito idiota. Desculpa... — Tudo bem, Carlie. Desencana. — Meus dentes rasparam na argola de metal no canto do lábio inferior, e eu me esforcei para não olhar para as tatuagens nos meus


pulsos. — Obrigado pelos biscoitos. Ela soltou um suspiro. — Beleza. Não foi nada. Boa noite, Lucas. Escapei da pergunta sobre a namorada. E suspirei também. — Boa noite. Carlie era a única Heller que nunca teve problemas em me chamar de Lucas. Quando saí de casa para ir para a faculdade, três anos atrás, eu queria mudar tudo, a começar pelo nome. Minha mãe me dera seu sobrenome de solteira — Lucas — como meu segundo nome. Acho que muita gente acaba usando o segundo nome e, melhor de tudo, não é preciso nenhum processo legal para isso. Meu pai se recusava a me chamar de Lucas, mas não fazia diferença o nome que ele preferia usar. Eu não morava mais com ele, e, quando ia para casa, a gente mal se falava. Os pais e os dois irmãos de Carlie lembravam esporadicamente — mas tentavam. Eu havia sido chamado de Landon por mais de dezoito anos, afinal, então às vezes deixava passar sem corrigi-los. Velhos hábitos, blá-blá-blá. Daquele momento em diante, no entanto, eu era Lucas para todos os novos conhecidos. Queria fazer Landon desaparecer de vez. Deixar de existir. Eu devia saber que não seria tão fácil.


2

LANDON Desde o jardim de infância, eu havia frequentado um pequeno colégio particular nos arredores de Washington, D.C. Íamos uniformizados: as meninas de blusa branca com botões de pérola, saia xadrez pregueada e cardigã; os garotos com camisa social branca engomada, calça bem passada e blazer. Nossos professores favoritos fingiam não ver um cachecol proibido ou cadarços coloridos e ignoravam jaquetas e cardigãs abertos. Os mais severos confiscavam objetos contrabandeados e reviravam os olhos quando argumentávamos que pulseiras de cânhamo e faixas de cabelo cheias de glitter eram expressões de liberdade individual. Victor Evans foi suspenso na última primavera quando se recusou a tirar uma coleira de cachorro da Bottega Veneta, alegando que usá-la era um direito seu assegurado pela Primeira Emenda e, tecnicamente, não infringia as normas. A coordenação endureceu depois disso. Todos éramos aparentemente iguais, mas, durante as duas semanas que passei fora do colégio, eu mudei completamente — por dentro, que é onde a mudança importa. Eu havia sido testado e havia falhado. Fiz uma promessa que não cumpri. Pouco importava se eu ainda era idêntico por fora. Eu não era mais um deles. O colégio permitiu que eu entregasse os trabalhos atrasados, como se eu tivesse me ausentado por alguma doença séria, mas as considerações especiais não pararam por aí. Professores que antes me desafiavam agora davam tapinhas nas minhas costas e me diziam para levar o tempo que fosse preciso para fazer os novos trabalhos. Garantiam que eu tirasse notas na média em trabalhos péssimos, me davam tempo a mais para terminar alguma atividade no laboratório, propunham provas substitutivas para aquelas nas quais eu tinha bombado. E havia os colegas, alguns que me conheciam desde os cinco anos de idade. Todos murmuravam condolências, mas não sabiam o que dizer depois. Ninguém me pedia ajuda na tarefa de álgebra nem me convidava para jogar videogame. Os outros garotos não


jogavam meus livros no chão quando eu não estava olhando nem me perturbavam quando meu time de futebol perdia para o Redskins. Piadas sobre sexo eram interrompidas quando eu me aproximava. Todo mundo me olhava — na sala de aula, no corredor, nas reuniões, no almoço. Cochichavam escondendo a boca com a mão, balançavam a cabeça, me olhavam como se eu não pudesse ver o que faziam. Como se eu fosse uma estátua de cera do meu antigo eu — natural, mas assustadora. Ninguém olhava nos meus olhos. Como se talvez ter a mãe morta fosse algo contagioso. Em um dia excessivamente quente, arregacei sem pensar as mangas na aula de história do sr. Ferguson. Ouvi os cochichos fofoqueiros passando de um por um. Tarde demais. — Os pulsos? — Susie Gamin sussurrou antes de alguém mandá-la se calar. Abaixar as mangas e abotoar os punhos não faria diferença. As palavras, desenfreadas, eram uma avalanche de pedras rolando. Irrefreáveis. No dia seguinte, usei um relógio com pulseira larga no braço esquerdo, embora ele esfolasse minha pele ainda ferida. No pulso direito, enfileirei braceletes de silicone, banidos incondicionalmente pelo diretor na primavera anterior. Eles se tornaram parte do meu uniforme. Ninguém me obrigou a tirá-los. Ninguém os mencionou. Mas todo mundo olhava, ávidos por ver o que havia embaixo.

Coisas que parei de fazer:

1. Jogar hóquei. Comecei a jogar aos seis anos, pouco depois de ter visto meu primeiro jogo do Capitals com meu pai. Minha mãe não ficou muito empolgada, mas aceitou — talvez por ser um elo entre meu pai e mim. Talvez porque eu gostava muito de jogar. Embora eu fosse destro em todas as outras situações, alguma coisa acontecia quando eu amarrava os patins e assumia minha posição na ponta esquerda. Para empurrar o disco para o gol eu era ambidestro. Entre uma lufada de ar e outra, eu mudava de posição para tirar o disco do canto da quadra ou assustava os


adversários trocando de mão no meio de uma jogada, marcando o ponto antes que eles pudessem se dar conta. Meu time não ganhava sempre, mas todos os anos chegávamos à final. Comecei o oitavo ano certo de que naquela temporada ganharíamos o troféu do campeonato. Como se aquela fosse a coisa mais importante que pudesse me acontecer. 2. Participar das aulas. Eu não levantava a mão. Nem nunca era chamado. Um fim bem simples. 3. Dormir. Eu ainda meio que dormia. Mas acordava muito. Tinha pesadelos, mas não óbvios. No mais frequente deles, eu caía. Do céu. De um prédio, de uma ponte, de um penhasco. Meus braços giravam e minhas pernas se debatiam inutilmente. Às vezes eu sonhava com ursos, tubarões e dinossauros carnívoros. Às vezes sonhava com afogamento. Uma coisa era constante: eu sempre estava sozinho.

LUCAS Nos dias quentes eu sentia falta de ter a praia logo do outro lado da porta. Mesmo que o ar fosse carregado de umidade e a areia áspera e irregular, o golfo estava sempre lá, e as ondas refrescantes lambiam a costa como um murmúrio sedutor. Nos três últimos anos, eu morava a quatro horas de distância do litoral. Se eu quisesse dar um mergulho, tinha duas opções: a piscina dos Heller ou o lago. Havia pouca solidão em ambos. O lago estava sempre cheio de turistas e moradores, e as amigas de Carlie ainda iam até a casa deles quase todos os dias para relaxar nas espreguiçadeiras à beira da piscina, como tinham feito durante todo o verão. A última coisa que eu precisava era de um bando de garotas menor de idade tentando chamar minha atenção só porque eu era o único homem que não era pai por ali. Cole tinha sido o alvo do interesse delas durante todo o verão, para desgosto da irmã. Mas ele seguira os passos da mãe e partira para Duke duas semanas atrás, e Caleb tinha só onze anos — tão novo para elas quanto elas eram para mim. Elas não percebiam a correlação. Tornar-me progressivamente pálido ao longo dos últimos anos fazia a tinta se


destacar ainda mais. Comecei com os traços complexos que envolviam meus pulsos, depois cobri os braços com desenhos que, basicamente, eu mesmo fiz. Isso, mais o piercing no lábio e o cabelo escuro meio comprido, me fazia parecer mais um cara que gosta de música depressiva e da escuridão do que o adolescente de beira de praia que eu era quando fiz as tatuagens e o piercing. No ensino médio, eu usava vários piercings — na orelha, na sobrancelha, no mamilo —, além de no lábio. Meu pai odiava, e o diretor do meu colégio de cidade pequena alegava que eram sinais de desvio e temperamento antissocial. Eu nem me dava o trabalho de discutir. Quando saí de casa, tirei todos os piercings, menos o do lábio — o mais evidente. Eu imaginei que Heller perguntaria: “Por que deixar bem esse?!”, mas ele nunca questionou. Talvez soubesse a resposta sem que eu tivesse de dizer em voz alta — que eu estava absolutamente perturbado e nem um pouco preocupado em me adequar. Para as pessoas comuns, o piercing no lábio indicava o oposto de acessibilidade. Era uma barreira erguida por mim e servia como aviso de que a dor não me deteria — até de que ela era bem-vinda. As aulas tinham começado havia duas semanas. Contrariando meu melhor juízo — ou o que restava dele —, eu examinei Jackie Wallace. Seus cabelos castanhos caíam em leves ondas vários centímetros abaixo dos ombros, a menos que ela os prendesse em um coque com um elástico ou presilha, ou fizesse um rabo de cavalo, o que dava a impressão de que ela tinha a idade de Carlie. Jackie tinha grandes olhos azuis — um azul cristalino e claro. As sobrancelhas se aproximavam quando ela se aborrecia ou se concentrava, e arqueavam em repouso, o que me fazia imaginar como reagiriam quando ela se surpreendesse. Estatura mediana. Esguia, mas curvilínea. As unhas da mão eram curtas e sem esmalte. Eu nunca vira Jackie as roendo, então deduzi que as mantinha assim intencionalmente, a melhor opção para reger as sinfonias em sua mente e deixar as mãos simularem os movimentos dos instrumentos. Eu queria colocar fones de ouvido plugados a ela e saber o que ouvia quando seus dedos executavam aqueles movimentos. Estava curioso até para saber qual instrumento ela tocava — como se eu soubesse de ouvido a diferença entre violoncelo e viola. Existe a ilusão de que, se você é uma pessoa das artes, é artístico e criativo na abordagem de todas as coisas. O que é verdade para algumas pessoas — como a minha mãe —, mas não para todas. Quando eu era mais novo, as pessoas ficavam confusas por eu não tocar um instrumento, pintar ou escrever poesia. Mas a minha arte se resumia a


uma coisa. Desenhar. Só isso. Até minhas tatuagens são resultado de esboços feitos a lápis no papel e transferidos do meu caderno para a tinta do tatuador, injetada em minha pele. Depois de assimilar um capítulo atordoante sobre calibragem de sensor para mensurações de laboratório, voltei o livro para a mochila e peguei meu caderno de desenho. Estávamos nos quinze minutos finais da aula do Heller. Meus olhos procuravam Jackie Wallace, sentada várias fileiras abaixo com o queixo apoiado sobre a mão. Sem intenção consciente, minha mão começou a desenhá-la. As linhas básicas gerais estavam lá antes que eu me desse conta do que estava fazendo. Eu não podia capturar o movimento de seus dedos numa folha de papel, por isso a desenhei prestando atenção na aula — ou ao menos parecendo estar atenta. — Quem não pretende se formar em economia pode estar se perguntando: Por que perder tempo estudando economia? — Heller disse. E eu suspirei, sabendo o que viria em seguida. Conhecia toda a rotina dele de trás para frente. — Porque, quando estiver na fila do desemprego, pelo menos você vai saber por quê! Alguns gemidos previsíveis se ergueram da plateia atenta. Admito que me esforcei para não revirar os olhos, sobretudo porque ouvia o mesmo discurso havia quatro semestres e o conhecia bem. Mas Jackie sorriu, dava para ver o canto de sua boca de onde eu estava no fundo, assim como o arco que fez sua bochecha. Então ela gostava de piadas ruins. E seu namorado era um dos que gemeram.

Minha primeira aula de reforço do semestre era esta tarde. Duas semanas depois do início de qualquer semestre, a maioria dos alunos ainda está cheia de otimismo, mesmo que já estejam ficando para trás. Era possível que hoje apenas alguns aparecessem — ou nenhum. Em meu primeiro semestre como monitor do Heller, só uma pessoa apareceu no primeiro dia — a colega de quarto de alguém com quem eu saíra duas semanas antes. Eu mal conseguia me lembrar da garota com quem passei algumas horas, mas imediatamente reconheci a colega, porque havia um mural enorme cheio de selfies exibicionistas em cima da cama dela. Eram... perturbadoras. Era como ser observado por espectadores seminus. E eu me peguei pensando — no momento mais inapropriado


possível — o que ela fazia no fim de semana em que os pais visitavam o campus. Cobria as fotos com a tabela periódica e um pôster do Albert Einstein? Assim, na minha primeira sessão de monitoria, desenhei gráficos no quadro branco enquanto explicava a diferença entre uma queda geral na demanda e um decréscimo na demanda para uma aluna. Uma aluna que não sabia que eu tinha visto sua galeria de fotos mostrando os seios. Eu não consegui olhar nos olhos dela, nem para nenhum outro lugar, na verdade, durante a hora inteira, o que foi bem desconfortável, considerando que ela era a única pessoa na sala. Hoje eram quatro alunos, todos surpresos por serem os únicos em uma turma tão grande. Nenhum deles era Kennedy Moore ou Jackie Wallace. Eu fiquei aliviado e decepcionado — e não tinha o direito de sentir nenhuma das duas coisas. — Este é meu terceiro semestre de monitoria para o dr. Heller — falei olhando para eles. Quatro pares de olhos me observavam atentamente de cadeiras na primeira fileira da pequena sala. — No ano passado, todos que frequentaram as aulas de reforço duas ou três vezes por semana durante todo o semestre ficaram com média A ou B. Olhos arregalados, impressionados. Evidentemente, eu era um milagreiro. A verdade? Os frequentadores assíduos do reforço geralmente eram os melhores alunos — aqueles que só perdiam aula por uma cirurgia de emergência ou quando alguém morria. Liam o material recomendado e faziam os exercícios opcionais no fim do capítulo. Entregavam trabalhos extras. Estudar era prioridade, e a maioria teria tido sucesso sem mim. Mas os dados estatísticos davam segurança ao meu trabalho, então eu os usava. Toda semana eu dedicava pelo menos quinze horas a aulas, monitoria, elaboração de trabalhos e assistência individual, no campus ou por e-mail. Essas horas equivaliam a um quarto da minha mensalidade. Ser monitor do Heller não era tão lucrativo quanto o Emprego Um — vigia de estacionamento no campus — ou o Emprego Dois — atendente do Starbucks do campus —, mas era sempre menos estressante que os dois. Bem. Até ela.


3

LANDON Meu pai não parecia notar que eu tinha desistido do hóquei. Não notava meu distanciamento dos amigos ou o colapso da minha vida social. Ele só providenciou um carro para ir me buscar no colégio todos os dias porque, quando voltei às aulas, antes de descer do carro dele perguntei como voltaria para casa. O Ray-Ban escondia seus olhos, então eu não tinha que testemunhar a agonia que os inundava toda vez que ele se dava conta de que minha mãe não estava mais ali e não podia mais fazer qualquer coisa que sempre fizera. Coisas que alguém teria de fazer no lugar dela. Como ir me buscar no colégio, porque nossa casa ficava a uns vinte e cinco minutos de carro dali, ou eu teria de pegar o metrô, coisa que eu nunca tinha feito sozinho, e ainda percorrer alguns quarteirões a pé. Eu me preparava para falar: “Eu pego o metrô. Tenho treze anos, posso fazer isso”, quando ele disse: — Eu... vou mandar um carro apanhar você. A aula acaba às três? — Três e meia — eu disse, colocando a mochila no ombro e saindo do carro, a raiva crescendo dentro de mim. Senti que quebrava por dentro, me esforçando para impedir o processo. As manhãs ainda eram frias, mas não o bastante para ver o próprio hálito no ar. Os alunos que já haviam chegado estavam reunidos na frente do prédio, esperando o primeiro sinal, enquanto outros saíam do carro dos pais. Ninguém tinha pressa para entrar. Cabeças viraram, me seguindo. A dos pais também. Nenhum deles arrancou com o carro. Todos diminuíram o ritmo — suspensos, atentos. Eu sentia aqueles olhares como dúzias de pequenos holofotes. — Landon? Eu me virei ao ouvir a voz do meu pai, irracionalmente esperando que ele me dissesse para voltar para o carro. Que me levaria de volta para casa. Que me levaria para o trabalho com ele. Qualquer coisa, menos me deixar ali.


Eu não queria estar ali. Não queria fazer aquilo. — Você trouxe sua chave de casa? Fiz que sim com a cabeça. — Vou mandar um carro vir te pegar às três e meia. Volto pra casa cedo. No máximo cinco e meia. — Sua mandíbula enrijeceu. — Tranque a porta quando chegar. — E verifique as janelas. Assenti mais uma vez e fechei a porta do carro. Ele me olhou pelo vidro e, de novo, o desejo maluco de não ser deixado ali apareceu e me agarrou pelo pescoço. Ele ergueu uma mão em despedida e partiu. Então, eu nunca o lembrei do treino de hóquei. Simplesmente parei de ir. Quando meu treinador telefonou, eu disse que tinha desistido. Ele recomendou que eu mantivesse a rotina anterior, que isso seria bom para mim. Disse que eu podia voltar no meu ritmo, aos poucos. Avisou ainda que o time estava pronto para me apoiar — que alguns caras discutiam colocar adesivos com as iniciais da minha mãe nos capacetes ou um bordado na manga do uniforme. Eu ouvia quieto do outro lado da linha, esperando que ele percebesse que eu não ia discutir, mas também não ia voltar. Não sei se meu pai continuou pagando ou se pararam de mandar a cobrança, e eu não dava a mínima.

Tinha aquela garota de que eu gostava antes. (Tudo agora era antes ou depois.) O nome da garota de antes era Yesenia. Eu não a via desde o último dia do sétimo ano, mas trocamos algumas mensagens de texto durante o verão e éramos amigos virtuais, fazendo comentários em códigos nas redes sociais, o que é meio como flertar no semáforo. Foto legal. Haha, demais. Belos olhos. Ela fizera esse comentário em uma foto que minha mãe havia tirado de mim e do meu avô em pé à beira-mar ao pôr do sol. O comentário dela era o único que importava. E também era a coisa mais ousada que um de nós tinha falado para o outro. Eu cresci naquele verão. E foi bom, porque Yesenia e eu tínhamos a mesma altura no sétimo ano, e as garotas têm essa coisa de querer usar salto alto sem ficar mais altas que os garotos. Eu tinha crescido uns sete centímetros e tinha esperança de espichar mais. Meu pai passava um pouco de um metro e oitenta. Nenhum dos meus avôs era tão alto.


Filha única de um embaixador de El Salvador, Yesenia era bela e morena, com curtos e sedosos cabelos negros e grandes olhos castanhos, que me observavam do outro lado da sala de aula e por cima das mesas no almoço. Ela morava em uma casa de arenito pardo em Dupont Circle. Eu tinha convencido minha mãe a me deixar pegar o metrô sozinho para ir à casa dela duas semanas atrás, mas ainda não tinha tido coragem de perguntar a Yesenia se eu podia ir. Naquela segunda semana de aula, dei um jeito de encontrá-la sem suas amigas — algo raro para meninas de treze anos. — Ei, quer ir ao cinema no sábado? — simplesmente soltei o convite, e ela piscou ao me ver. Eu esperava que ela tivesse notado aqueles sete centímetros. Ela era a menina mais alta da turma. Alguns garotos tinham de olhar para cima para encará-la. — Comigo? — acrescentei, na falta de uma resposta imediata. — Hum... — Ela mexeu nos livros que carregava, e meu coração disparou, droga, droga, droga, até ela responder: — Na verdade, eu ainda não posso sair com garotos. — Hum. Minha vez de pensar no que dizer. — Mas talvez... você possa vir ver um filme na minha casa. Ela hesitou, como se pensasse que talvez eu pudesse recusar o convite. Senti como se tivessem me mergulhado de cabeça na água fria, me puxado de volta e me beijado. Mas só assenti, determinado a bancar o indiferente. Então eu convidei uma garota para sair. Grande coisa. — Tá, beleza. Eu mando uma mensagem pra você. As amigas dela surgiram no fim do corredor, a chamando e me olhando com curiosidade. — Oi, Landon — uma delas falou. Respondi com um sorriso e me virei, com as mãos nos bolsos e murmurando, sim, sim, SIM, como se tivesse acabado de mandar o disco para o gol por entre as pernas do goleiro. Faltavam só cinco dias para sábado. Vinte e quatro horas mais tarde, minha vida tinha mudado para o depois.

LUCAS — Você. É. Um. Cretino!


Meus lábios se comprimiram em uma linha fina, e eu me esforcei para conter a réplica que se formava em minha cabeça: Nossa, essa eu nunca tinha ouvido. Continuei preenchendo a multa de estacionamento que, felizmente, eu estava prestes a terminar. Eu sentia pena das pessoas cujo tempo de estacionamento terminava antes de voltarem para o carro. Sentia pena das pessoas que estacionavam em vagas marcadas de forma ambígua. Mas não sinto pena de um aluno que estaciona bem embaixo de uma placa de APENAS PARA PROFESSORES. Quando ela percebeu que sua aparência e seu insulto previsível não me fizeram parar de escrever ou mesmo levantar o olhar, tentou uma tática diferente. — Ah, por favooooooor! Eu só fiquei, tipo, dez minutos! Juro! Ãhã. Arranquei a folha do bloco e a estendi para ela. A garota cruzou os braços e ficou me encarando. Dando de ombros, peguei um envelope, coloquei a multa dentro e o prendi no limpador de para-brisa. Quando me virei para voltar para o carrinho que eu dirigia pelo campus, ela gritou: — Filho de uma puta com bunda de macaco! Essa, em contrapartida, é nova. Muito bem, srta. Mini Cooper Azul-Bebê. Cara, eu não tinha certeza se me pagavam o bastante para compensar esse tipo de abuso. Com certeza absoluta eu não estava ali pelo prestígio. Para vir a esse trabalho, eu escondia o cabelo embaixo de um chapéu azul-marinho forrado de poliéster que fazia minha cabeça queimar quando eu ficava no sol por muito tempo nos dias quentes, o que equivalia a setenta por cento do ano. Eu trocava o piercing no lábio, cujo furo felizmente estava cicatrizado havia anos, por um retentor transparente durante o meu turno. Vestia um uniforme que era o oposto de tudo que eu tinha no guarda-roupa. Admito, essas três coisas impediam que todos os alunos que eu já tinha multado — inclusive alguns que se sentavam ao meu lado na aula — me reconhecessem enquanto eu estava no processo de acabar com seu dia. — Com licença! Iuhu! Esse é o tipo de chamamento normalmente usado por uma avó, mas não, era meu professor de termodinâmica do semestre passado. Droga. Guardei o bloco de multas no bolso, rezando para que ele não fosse o sr. Mercedes Novinha em Folha que eu tinha acabado de multar por parar em duas vagas no fundo do estacionamento. Nunca imaginei que o dr. Aziz fosse capaz de ser tão idiota — mas as pessoas são estranhas


atrás do volante. A personalidade delas pode passar de estável e equilibrada para um profundo poço cheio de fúria. — Pois não, senhor — respondi, me preparando. — Preciso de uma ajuda para dar partida — ele anunciou ofegante, como se tivesse corrido um campo de futebol. — Ah. Claro. Pode entrar. Onde está o seu carro? — Ignorei a garota, que, ao passar no Mini Cooper, me mostrou o dedo do meio. Apesar de não ter comentado nada, o dr. Aziz não ficou tão indiferente ao gesto que, para mim, era rotineiro. Com as sobrancelhas erguidas, ele se acomodou no banco do passageiro e uniu as mãos depois de procurar o inexistente cinto de segurança. — Duas fileiras adiante — apontou. — O Taurus verde. Reduzi a velocidade para não jogá-lo pela abertura lateral ao fazer o retorno no fim do corredor, refletindo que minha habitual e menos acessível corporificação era bem menos propensa a ser abordada no meio de um estacionamento. Eu me tornava um alvo ambulante quando patrulhava o campus naquele maldito uniforme. Quando consegui fazer o carro dele pegar, removi os cabos da bateria e fechei o capô. — Não esquece de recarregar ou trocar a bateria. Isso aqui faz o carro pegar, mas não é uma carga. — Eu sabia que meu professor de engenharia não precisava desse conselho, mas acreditava estar irreconhecível. Errei. — Sim, sim, sr. Maxfield, acho que conheço um pouco a respeito de carga elétrica de automóveis — ele riu, ainda um pouco ofegante. — Creio que este tenha sido um encontro de sorte. Hoje cedo eu estava pensando nos meus ex-alunos. Vou entrar em contato com alguns para convidá-los a se candidatar para um projeto de pesquisa no próximo semestre. A ideia é desenvolver materiais flexíveis duráveis que substituam os que normalmente são danificados por forças termodinâmicas, como os utilizados em engenharia de tecidos e transporte de farmacêuticos. Eu sabia tudo sobre o projeto de pesquisa do dr. Aziz — ele tinha sido discutido com empolgação na reunião da Tau Beta Pi no mês passado, com o tipo de entusiasmo que só um bando de nerds da sociedade de honra da engenharia é capaz de demonstrar. — Você é veterano, suponho. Ergui as sobrancelhas e assenti, mas estava perplexo demais para responder. — Humm. A princípio estamos interessados em calouros, porque ficarão mais tempo por aqui. — Ele riu antes de comprimir os lábios, os olhos fixos em mim. — Mesmo assim,


a equipe fundadora de um projeto é de importância crucial, e creio que você possa ser útil, se estiver interessado. A posição lhe daria um curso de projetos especiais em seu histórico, e nós temos patrocínio, por isso podemos oferecer uma pequena ajuda de custo para os escolhidos. Puta merda. Saí do estupor. — Estou interessado. — Que bom. Me mande um e-mail hoje à noite para receber a inscrição oficial. Tenho de informar aos candidatos que a vaga não é garantida. E serão muito disputadas, imagino. — Ele não estava brincando. Alguns dos meus colegas considerariam a hipótese de me empurrar na frente de um carro para ficar com uma das vagas. — Mas... — e abriu um sorriso conspiratório — acho que você seria um candidato de ponta.

Quando Heller aplicava a primeira prova da turma, eu tinha um dia de folga. Em vez de dormir como um universitário normal, fui idiota e me inscrevi para um turno extra na vigilância do campus. Era como se eu não fizesse mais a menor ideia de como relaxar e não fazer nada. Entre os empregos remunerados, o voluntariado e os estudos, eu trabalhava o tempo todo. O céu desabou por volta das sete da manhã, inundando tudo com um temporal surpresa bem na hora em que o sol devia nascer. Então peguei uma carona com o Heller, em vez de enfrentar um trajeto miserável e molhado até o campus na minha Sportster. Depois de ajudar a carregar uma caixa de livros do carro até a sala dele e combinar o horário de irmos embora, no fim do dia, eu me dirigi à saída lateral. O sol surgira nos poucos minutos que eu tinha passado lá dentro, garantindo um breve descanso para a chuva, embora árvores e marquises ainda pingassem gordas gotas de água nos alunos, que pulavam poças e cruzavam pequenos riachos. Considerando as nuvens baixas e cinzentas, eu sabia que a explosão solar duraria no máximo cinco minutos, e esperava conseguir chegar ao prédio da polícia do campus antes do próximo temporal. Se a chuva continuasse — e todas as previsões anunciavam que sim —, eu ficaria preso lá dentro, atendendo ao telefone e arquivando pilhas de pastas nos arquivos que escondiam as paredes do departamento, em vez de preencher multas no estacionamento. O tenente Fairfield estava sempre atrasado com o arquivo. Eu estava


quase convencido de que ele nunca arquivava nada. Simplesmente esperava os dias chuvosos e descarregava em mim a tarefa monótona. Estranhamente, eu preferia enfrentar a ira de alunos, funcionários e professores a ficar preso ali o dia todo. E eu também não vou ver a Jackie Wallace hoje. Forcei meu cérebro a ficar quieto, colocando os óculos escuros e segurando a porta aberta para três garotas que me ignoraram e continuaram a conversa, como se eu fosse um criado ou um robô instalado ali para abrir a porta para elas. Maldito uniforme. Então eu a vi, pulando poças d’água com uma galocha com estampa de margaridas amarelas. Fiquei imóvel feito uma estátua, ainda segurando a porta aberta, mesmo ela estando a metros de distância e não tendo notado minha presença — nem a de ninguém ao seu redor. Eu sabia que ela entraria por essa porta. Ela tinha prova de economia, que começaria em um minuto. Não havia nenhum Kennedy Moore à vista. A mochila dela ameaçava escorregar pelo braço, e ela ergueu um ombro enquanto equilibrava um guarda-chuva nada cooperativo que combinava com as galochas. Sua agitada linguagem corporal e o fato de nunca ter se atrasado para a aula antes, ou chegado sem o namorado, indicavam que ela tinha perdido a hora. O guarda-chuva se recusava a fechar. — Droga — ela resmungou, sacudindo-o com força e apertando repetidamente o botão. O guarda-chuva cedeu por um instante antes de ela levantar a cabeça e me ver segurando a porta. Seu cabelo estava úmido. Ela não usava maquiagem, mas os cílios estavam espetados — era evidente que tinha sido surpreendida pela chuva no caminho do dormitório ou do carro. A combinação da pele molhada com a proximidade e a respiração, da qual me dei conta quando olhei em seus lindos olhos, quase me derrubou. Ela cheirava a madressilva — um aroma que eu conhecia bem. Minha mãe tinha preenchido uma parede delas em nosso quintal, na casinha dos fundos que ela transformara em estúdio de arte. Todo verão, as flores em forma de trombeta inundavam o espaço com seu doce perfume, especialmente quando ela deixava as janelas abertas. Enquanto minha mãe trabalhava em projetos para exposições no outono, eu me sentava na frente dela, do outro lado da mesa arranhada, rabiscando personagens de videogame, insetos ou as peças de um equipamento quebrado que meu pai permitira que eu desmontasse. Um sorriso surpreso iluminou o rosto de Jackie quando ela me viu, substituindo o


vinco que marcava sua testa enquanto ela brigava com o guarda-chuva. — Obrigada — ela disse, passando pela porta. — De nada — respondi, mas ela já estava correndo. Rumo à aula da disciplina da qual eu era o monitor. Rumo ao namorado que não a merecia. Eu não me permitia desejar algo tão impossível havia muito tempo.


4

LANDON Algumas horas depois de meu pai ter me levado do hospital para casa, ele agiu como um louco, usando um estilete para arrancar o carpete ensanguentado e o revestimento do piso do quarto. Sem uma máscara para proteger os olhos e o nariz, ele pegou uma lixadeira e raspou o piso até a madeira afundar, como uma tigela no meio do ambiente. A serragem passava pela porta como fumaça, envolvendo o quarto e tudo o que havia nele, inclusive meu pai. Fiquei sentado no corredor com as costas apoiadas na parede e as mãos cobrindo as orelhas, nauseado com o som da dor e da raiva dele, o choro rouco e os uivos se misturando à lixadeira ensurdecedora; tudo inútil, porque nada a traria de volta. Quando o motor parou, engatinhei até a porta e olhei para dentro. Ele estava ajoelhado, chorando e tossindo, a mancha insuportável mais clara, mas ainda visível sob a lixadeira, agora silenciosa. No dia do funeral, acordei com os passos dele no corredor, andando de um lado para o outro. Meu quarto estava escuro antes do amanhecer, e eu permaneci imóvel, quase sem respirar, identificando o chiado de cabides empurrados e o ruído de gavetas sendo abertas e fechadas antes de ele passar novamente diante da porta, indo e voltando muitas vezes. Uma hora depois, a porta do quarto deles se fechou. Ele se mudou para o pequeno quarto de hóspedes no andar de baixo. Por um acordo não dito, nenhum de nós entrou no quarto fechado e assombrado deles depois disso.

Cindy passava sempre para nos ver e trazia comida ou dava um jeito na casa. Geralmente Charles vinha com ela, ou Cole — que dizia todas as coisas erradas, embora fossem exatamente as mesmas coisas que todas as outras pessoas diziam.


— Eu sinto muito pela sua mãe — ele disse na noite passada, quando nos sentamos na minha cama, cada um com um controle do videogame na mão. Assenti, olhando para a tela onde corríamos por alguma rua famosa — eu não conseguia lembrar qual — atropelando latas de lixo, árvores, outros carros e um ou outro pedestre indefeso. Eu tentava não bater nas pessoas. Cole parecia persegui-las, especialmente se sua irmãzinha, Carlie, estivesse por perto, porque ela ficava apavorada sempre que isso acontecia. — Você atropelou uma criança! Acabou de atropelar uma criança de propósito! — falou Carlie, quando o carro do irmão subiu na calçada e passou por cima de um skatista. Eu perdoava Cole por atropelar as pessoas deliberadamente e por dizer tudo o que os outros diziam, porque ele tinha dez anos e porque me tratava como sempre tinha me tratado. Era a única pessoa que eu conhecia que agia assim. Sussurros me tiraram do quarto e me fizeram descer a escada em um sábado de manhã. Cindy e meu pai estavam sentados à mesa da cozinha, cada um com uma xícara de café. Suas vozes ecoavam e se espalhavam pelo corredor, por mais que falassem baixo. Eu soube que estavam falando de mim antes mesmo de ouvir o que diziam. — Ray, ele precisa de terapia. Cindy sempre brincava dizendo que trocaria suas duas irmãs por minha mãe, que ela era a sua “verdadeira” irmã. Como uma tia intrometida que me conhecia desde o nascimento, ela sempre me tratou como se eu fosse parcialmente dela para criar. Por um longo instante, meu pai não respondeu, depois disse: — O Landon tem a imaginação fértil, você sabe disso. Ele desenha a porcaria do tempo todo. Não acho que alguns rabiscos sejam motivo para procurar um psiquiatra... — Ray, eu tenho observado seu filho, filho dela, desde que ele pegou um lápis pela primeira vez. É claro que eu sei como ele se expressa artisticamente. Mas o que estou dizendo é que isso é... diferente. É perturbador, violento... — E que diabos você esperava? — ele sussurrou, e foi a vez dela de ficar calada. Meu pai suspirou. — Desculpa, Cin. Mas... vamos lidar com isso do nosso jeito. Não queremos falar sobre isso. Quando eu penso naquela noite... — A voz dele estremeceu. — Não vou obrigá-lo a falar. Eu ouvi o que ele não disse. Meu pai não queria ouvir o que eu tinha a dizer sobre aquela noite. Mas ele tinha razão. Eu não queria falar sobre isso. — Ele está se fechando, Ray. Quase não fala mais. — A voz dela estava embargada.


— Ele tem treze anos. Reticência é normal nessa idade. — Se ele fosse assim antes, eu concordaria. Mas ele não era. Era um garoto feliz e comunicativo. Vê-lo com a Rose me dava esperanças de que meus filhos ainda conversassem comigo, rissem comigo e se despedissem com um beijo na adolescência. Esse comportamento não é normal para o Landon, seja com treze anos ou não. Meu pai suspirou de novo. — A mãe dele morreu. Como ele pode voltar a ser normal? Ela fungou, e eu soube que estava chorando baixinho. — Não posso mais falar disso — meu pai disse. — Agradeço por sua ajuda e a de Charles... mas eu simplesmente não posso... — E se eu encontrar um terapeuta? E se eu levá-lo, e você não tiver que se envolver até que queira... — Não. Não... ainda. Ele precisa de tempo. — Mas... — Cindy. — Essa era a sua voz de acabamos por aqui. Eu a conhecia bem. Quando eu queria alguma coisa que meus pais não permitiam, era sempre ele quem pronunciava o “não” final, e o tom era o mesmo. Landon, e aquela cara fechada. Era inútil discutir depois disso.

Antes de eu nascer, os Maxfield e os Heller começaram a celebrar o Dia de Ação de Graças juntos. Faziam isso todos os anos — mesmo com compromissos do pós-doutorado em costas opostas, Charles assumindo o cargo de professor-assistente em Georgetown e a decisão de meu pai de pegar seu Ph.D. e trabalhar para o governo, em vez de numa universidade. Depois que eu nasci, eles mantiveram a tradição, morando a vinte minutos um do outro, em Arlington e Alexandria — ambas na região de Washington, D.C. Este ano teria sido a nossa vez de receber os convidados. Em vez disso, meu pai e eu fomos até a casa deles, ambos calados, odiando e suportando os estúpidos corais de Natal no rádio. Nenhum de nós se mexeu para mudar a estação. Minha mãe adorava as festividades — todas elas. Para ela, a publicidade e o comércio não estragavam nada. Ela fazia biscoitos em forma de coração em fevereiro, admirava os fogos de artifício em julho e cantava junto desde que o primeiro coral de Natal aparecia, sem se importar com quantas semanas faltavam para 25 de dezembro. Eu nunca mais


ouviria a voz dela. Meu estômago pesou e minha mandíbula enrijeceu, meu corpo em protesto contra a refeição que teríamos de fazer. Sem ela. Eu seguia no banco da frente, com a torta de abóbora sobre as pernas e uma lata de chantili na sacola perto dos pés. Deixamos a borda da massa queimar, e meu pai removeu as partes escuras, deixando a torta com uma aparência que sugeria que esquilos haviam invadido a casa e provado a receita. Aquela devia ser a pior contribuição de meia-tigela dos Maxfield para um jantar de Ação de Graças. Fui esperto o bastante para guardar esse pensamento só para mim. A refeição foi suportável, mas triste e quieta até Caleb — que tinha quase quatro anos e ainda podia optar por usar ou não os talheres — enfiar o dedo no chantili e no recheio da torta e lamber. — Caleb... garfo — Cindy disse gentilmente, pela quarta ou quinta vez desde que começamos a comer. Ela revirou os olhos quando Cole o imitou. — Cole — repreendeu com menos doçura. Não pude deixar de sorrir quando os dois irmãos enfiaram na boca o dedo coberto de recheio de torta. Carlie sufocou uma risada. — O quê? — Cole perguntou à mãe, fingindo inocência e lambendo o creme do dedo sem se desculpar. Sorrindo, Caleb imitou o irmão mais velho. — Buu... quê? — Então, por alguma razão inexplicável, ele deu uma olhada em volta da mesa, tirou o dedo da boca e perguntou: — Cadê a Uose? — Todo mundo ficou paralisado, e os olhos dele se encheram de lágrimas. — Cadê a Uose? — ele choramingou, como se tivesse acabado de se dar conta de que, quando seus pais dizem que alguém foi para o céu, essa pessoa nunca mais vai voltar. Toda a comida que estava no meu estômago traiçoeiro subiu para a garganta. Pulei da cadeira e corri para o lavabo, culpado pelas lembranças daquela noite. Os sons que eu nunca esqueceria. Os gritos inúteis que repeti até não conseguir fazer mais nada além de sussurrar o nome dela, até as lágrimas cessarem porque eu literalmente não conseguia mais produzi-las. O filho inútil que fui quando ela precisou de mim. Vomitei tudo o que eu tinha comido, engasgando com os soluços quando não havia mais nada em meu estômago. Um mês depois, meu pai deixou o emprego, vendeu nossa casa e nos mudamos para a costa do Golfo — para a casa do meu avô —, o último lugar em que ele pretendia viver novamente.


LUCAS Eu jantava com os Heller uma vez por semana, mais ou menos — sempre que Charles fazia churrasco ou Cindy preparava uma travessa enorme de lasanha. Os Heller sempre tentavam fazer com que eu me sentisse da família, um deles. Eu podia fingir, por uma ou duas horas, que era filho deles, o irmão mais velho. Depois eu voltava à realidade, onde não tinha vínculo com ninguém, exceto com um homem que vivia a centenas de quilômetros e não conseguia me olhar nos olhos, porque eu era uma lembrança da noite em que ele perdeu a única pessoa que amou. Eu sabia cozinhar, mas nunca ia além de uma variedade básica de refeições, muitas receitas que aprendi com meu avô. Ele era um homem simples com gostos simples, e por um tempo tudo o que eu quis foi ser como ele. Durante as refeições com os Heller, eu me preparava para as inevitáveis investigações meio veladas, especialmente de Cindy — frases de um interrogatório sutil que a filha dela iniciara recentemente. Eu me perguntava se no último mês Carlie tinha sido encarregada de descobrir se eu era gay ou só um cara eternamente sem namorada. Ela era mesmo filha de sua mãe — interferia onde acreditava ser necessária e frequentemente se tornava incômoda demais ao se aproximar do alvo. Eu não podia me aborrecer com nenhuma das duas por tentarem me tirar da concha, mas normalmente havia pouco ou quase nada a dizer. Eu estudava e trabalhava. Às vezes, ia até o centro da cidade ouvir uma banda local tocar. Comparecia às reuniões mensais da Tau Beta Pi. E estudava e trabalhava mais. Com certeza absoluta eu não levaria ali Jackie Wallace, aluna de Charles — e minha — que passara de uma distração na sala de aula para o centro das minhas fantasias conscientes e inconscientes. Naquela manhã, meu despertador tocou no meio de um sonho com ela. Um sonho vívido, detalhado, solidamente antiético. Ela não fazia a menor ideia de quem eu era, mas isso não impedia minha mente de imaginar o contrário. Não impedia a terrível decepção de acordar e lembrar o que era real — e o que não era. Cheguei intencionalmente atrasado à aula de economia, me sentei no meu lugar, peguei a programação e me obriguei a ler (e reler e reler) um trecho sobre funções de transferência, para não vê-la ajeitando os cabelos atrás da orelha ou passando os dedos


na coxa num ritmo moderado que me deixava cada vez mais louco. Definitivamente, nada do que acontecia na minha vida servia de assunto para a hora do jantar. Cheguei para descobrir que eu não estava na pauta, o que foi muito bom até saber por quê. Carlie, que sempre fora muito magra apesar do apetite voraz, remexia a comida no prato e não comia quase nada. Cindy sempre preparava uma pequena travessa de lasanha sem carne em respeito à decisão da filha de não comer “nada que tivesse rosto”. Era o prato preferido de Carlie, mas ela não estava comendo. Os pais trocaram um olhar preocupado, e eu me perguntei que diabos estava acontecendo ali. — Como anda o vôlei, Carlie? Mais algum comentário sobre ser escalada para o time principal do colégio? — perguntou Heller, com aquele tom de está tudo normal. Os olhos dela se encheram de lágrimas. — Terminei — ela disse, empurrando o prato cheio de comida e se retirando apressada. Ouvi a porta do quarto bater, mas a placa fina de madeira não isolava o som de seus soluços. — Quero chutar a bunda daquele punk — o pai dela grunhiu. Caleb arregalou os olhos. Ele era constantemente instruído a não falar “bunda”. — Entendo o que você está sentindo, pode acreditar, mas o que isso resolveria? — Cindy deixou o prato sobre a bancada de granito e se dirigiu à escada para ir ao quarto da filha. — Eu me sentiria bem melhor — resmungou Heller. O choro de Carlie soou mais alto quando Cindy abriu a porta no andar de cima, e nós nos encolhemos. — Um rompimento? — arrisquei. Era evidente que aquilo não tinha a ver com o vôlei. Eu nem sabia que ela estava saindo com alguém, a menos que... — O garoto da festa de volta às aulas? Ele assentiu. — Trocou a Carlie por uma amiga dela, só isso. Dois sofrimentos de uma vez só. Aquele cretininho convencido. Eu só o vira uma vez — quando ele veio buscar Carlie para a festa. Deslizando uma orquídea no pulso dela e posando para fotos, ele me pareceu arrogante em comparação à ingenuidade encantada de Carlie, e, inevitavelmente, me lembrou Kennedy Moore... o que me fez pensar em Jackie Wallace. Droga. — Brutal — comentou Caleb com a boca cheia de massa. — Eu ajudo você a chutar,


pai. Podemos dar a ele dois sofrimentos de uma vez só, um chute na bunda e outro nas bolas. Heller pigarreou. — Não deixe sua mãe ouvir você falar desse jeito, ou nós dois seremos chutados na bunda. — As palavras censuravam com suavidade, mas ele mostrou o punho cerrado em solidariedade, e Caleb abafou o riso e bateu o punho no dele. Sempre defini inveja como cobiçar algo que é de outra pessoa. Como eu, desejando a namorada de Kennedy Moore. Só havia uma. Se ela fosse minha, não seria dele. Então eu não sabia nomear o que sentia quando via Charles com os filhos ou com Carlie. Era uma forma de inveja, eu acho. Mas todos o dividiam como pai e também dividiam a mãe. Se eu fosse filho de Heller, nenhum deles perderia um dos pais por isso. Eles nunca se ressentiram do relacionamento que eu tinha com seus pais, e minha gratidão por isso era maior do que eu podia expressar. Porém, por maior que fosse a frequência com que fingíamos que eu era da família, Cindy não era minha mãe e Charles não era meu pai. Nenhum dos dois podia substituir o que eu não tinha mais, por mais que se esforçassem para preencher aqueles espaços vazios. Lá em cima, os soluços haviam acalmado. Fungadas quase inaudíveis eram tudo o que conseguíamos ouvir entre os murmúrios enfáticos de Cindy e as respostas abafadas da filha. Caleb gargalhou de mais um comentário de Charles sobre o ex de Carlie — que não devia nunca mais se aproximar dos homens da família Heller, se quisesse manter os testículos intactos. Levei meu prato para a pia e exterminei a inveja que eu não tinha o direito de sentir usando a única arma à disposição: minha vergonha. Você é o homem da casa enquanto eu estiver fora. Cuide da sua mãe.

Eu nunca culpei ninguém por querer fazer parte de um grupo. Só porque eu me afastei das fraternidades e de outras organizações do campus — exceto as que tinham potencial de network com geeks profissionais —, não significava que as outras pessoas deveriam pensar como eu, e não tinha problema. Em contrapartida, alguns estudantes não conseguiam se vestir sem anunciar sua filiação em letras gregas bordadas na roupa. A garota que estava conversando com Kennedy Moore antes do início da aula era uma delas. Ela era uma boneca — mas,


sempre que a via, ela estava usando camiseta, calça, shorts, jaqueta ou sapatos com as letras de sua fraternidade em destaque. Como era de esperar, hoje era um boné de beisebol com o rabo de cavalo preso na abertura da parte de trás. Ela se inclinou para falar alguma coisa para ele, apoiando a mão em seu antebraço, e ele deu uma olhada para os colegas ao redor. Seu olhar passou direto por mim — por todo mundo, o que me fez deduzir que ele procurava Jackie. Ele a viu logo depois de mim. De costas para ele, ela ria com uma amiga do outro lado do corredor, sem ouvir a conversa deles. Kennedy tirou a mão da garota da ZTA de seu braço, mas a segurou por um tempo além do normal. Eu já tinha visto aquela garota conversando com Jackie antes. Talvez não fossem amigas íntimas — mas ela devia saber que estava ultrapassando limites. Quando cheguei um pouco mais perto, pude ouvir a conversa. — Por favor, Ivy — disse Moore, olhando novamente para Jackie —, você sabe que eu tenho namorada. — Havia uma nota de pesar em sua voz. Pesar. Filho da puta. A garota também deu uma olhada de canto de olho para Jackie por um instante antes de piscar para ele. — Eu queria que você não tivesse. Por pior que fosse a minha impressão sobre o cara e por mais que eu achasse que ele não merecia a garota que eu não conseguia tirar da cabeça, eu esperava que ele me surpreendesse e respondesse alguma coisa que acabasse logo com o desejo maldoso da garota. Mas não. Percorrendo-a com os olhos da cabeça aos pés, ele sussurrou: — Você sabe que é meiga demais pra mim. Às vezes sou meio canalha. Os olhos dela faiscaram. — Humm. Promete? Entrei bruscamente na sala e joguei a mochila no chão. Não é da minha conta. Cerrei e abri os punhos que queriam socá-lo. Como esse filho da mãe sortudo podia ter uma garota como a Jackie e ver qualquer outra, que dirá incentivar esse tipo de insinuação? Cinco minutos depois, Jackie e ele entraram juntos na sala, a mão dele na base da coluna dela conforme subiam os degraus até seus lugares. Ivy sentou uma fileira acima e uma dúzia de assentos longe deles, os olhos fixos em Moore. Quando Jackie se virou para pegar o livro, ele deu uma olhada para trás e sorriu por cima do ombro. A expressão de Ivy rapidamente se transformou em um sorriso meloso assim que seus olhares se encontraram.


Cravei os olhos no bloco de desenhos sobre a mesa e peguei o lápis atrás da orelha. Sombreando a ilustração de um cara que vi andando de skate de manhã, eu lutava para me convencer do que eu sabia ser verdade: o coração de Jackie Wallace não me pertencia, não era minha obrigação defendê-lo ou protegê-lo de amigas traiçoeiras ou namorados infiéis. Na verdade, nada relacionado a ela era da minha conta. Virei algumas páginas até o segundo desenho que me permiti fazer dela, durante o dia chuvoso que passei arquivando. Ouvindo seu suave “obrigada” em minha cabeça a manhã toda, lembrando seu sorriso, não fui capaz de tirar seu rosto da cabeça até passálo para o papel. E, mesmo assim, não consegui esquecer seus brilhantes olhos azuis, tão próximos, ou a expressão simpática que eu raramente via em um aluno quando usava aquele maldito uniforme. Voltei para o skatista incompleto, mas, minutos depois, cometi o erro de olhar para onde ela se sentava três vezes por semana, sem saber que eu a observava. Sem saber da minha contínua batalha interior para não fazer isso. Sem saber de mim. Os dedos dela batiam metodicamente na lateral da perna — um, dois, três, um, dois, três —, e imaginei que, se fosse eu sentado ao lado dela, abriria a mão e deixaria que ela traçasse na minha pele a música que ouvia. Então Moore colocou a mão sobre a dela e conteve o movimento. “Para”, ele balbuciou. “Desculpa”, ela balbuciou de volta, constrangida e fechando a mão sobre o colo. Meus dentes rangeram e eu me concentrei em respirar devagar pelo nariz. Babaca, babaca idiota. Ainda bem que eu tinha treino no dojang naquela noite. Eu precisava bater em alguma coisa. Com força.


5

LANDON O fato de meu avô e meu pai não se darem bem era estranho, porque era como se eles fossem a mesma pessoa com trinta anos de diferença. Eu não tinha notado antes de mudarmos para a casa do meu avô. Talvez porque meu pai fizera tudo que podia para fugir de quem era, ou de quem poderia ter sido. Ele crescera aqui, nesta casa, nesta praia, mas não tinha o jeito de falar arrastado do meu avô, nem sotaque nenhum, na verdade. Como se tivesse se esforçado para eliminá-lo. Meu avô abandonou a escola aos catorze anos para trabalhar no barco de pesca com o pai dele, mas meu pai terminou o ensino médio, saiu de casa aos dezoito anos para ir para a faculdade e não parou até conseguir seu Ph.D. em economia. As pessoas na cidade pareciam conhecer meu pai, mas ele não vivia lá fazia mais de vinte anos e, sempre que ia visitar meu avô, não parava para falar com nenhuma delas. Agora aquelas pessoas mantinham distância, assim como ele, passando os dias no barco com meu avô. Eu os imaginava lá o dia todo, sem dizer nada um ao outro, e me perguntava se meu pai e eu seríamos assim. Se já éramos assim. Ele doara seus ternos elegantes antes de nos mudarmos — todos, exceto um. Deixamos para trás nossos móveis e eletrônicos, louça, utensílios de cozinha e a biblioteca dele cheia de livros de finanças, economia e contabilidade. Eu trouxe a maioria das minhas roupas, meus jogos de videogame, alguns livros e todos os meus cadernos de desenhos — tudo o que eu queria e que era meu —, mas só o que cabia no carro. Cindy encaixotou todos os álbuns de fotografias e retratos emoldurados e embrulhou as telas da minha mãe com papel pardo e muita fita adesiva. Ela e Charles levaram algumas para casa. Antes, sempre que visitávamos meu avô era verão. Eu dormia em um saco de dormir na varanda fechada com tela, ou no sofá surrado e fedido na sala de estar — que, na verdade, era o único aposento da casa além da cozinha, dois quartos e um banheiro. Eu não pensei em onde dormiria até chegarmos lá, dois dias antes do Natal.


Havia uma árvore de Natal artificial de um metro de altura sobre uma mesa frágil, perto de uma janela no canto, tão patética e desanimada quanto possível. Lâmpadas coloridas que não piscavam estavam presas a ela. Os únicos enfeites eram algumas bengalas doces, ainda embrulhadas no celofane, penduradas em galhos, uma dúzia de bolas prateadas cobertas de glitter e oito molduras de feltro com fotos minhas, do jardim de infância ao sétimo ano. Não tinha estrela. Nem anjo. Nem nada no topo. Nem presentes ao redor. Apenas o pedestal de plástico sobre a madeira da mesa. Nossas árvores sempre tinham sido altas e naturais, escolhidas em uma fazenda de pinheiros que ficava a uns trinta quilômetros da cidade. Meus pais sempre me deixavam escolher a nossa árvore, e então meu pai pagava o fazendeiro antes de cortá-la e amarrá-la no teto do nosso carro, onde ela viajava com uma das pontas caindo no parabrisa e a outra sobre o vidro traseiro, como um foguete preso ao teto. No ano passado, a árvore que eu escolhi era tão alta que meu pai teve de subir no último degrau da escada para colocar a estrela no topo e enfeitar os galhos mais altos com pisca-piscas brancos. A saia que minha mãe colocava em torno da base do pinheiro parecia uma tapeçaria — com tranças douradas e palavras como “Papai Noel”, “Feliz Natal” e “Ho Ho Ho” bordadas com fios dourados. Havia sempre muitos presentes em volta, e na maioria deles estava escrito “Landon”. Eu tinha sido mimado, e, apesar de ter certa consciência disso, não tinha importância, porque todas as crianças que eu conhecia eram iguais. Meu avô pegou a mala da minha mão e se virou para seguir até a cozinha. Foi quando me perguntei onde seria meu quarto. Ele abriu a porta da despensa. Só que não era mais a despensa. As prateleiras mais baixas tinham sido removidas, e um colchão fino sobre um estrado estava impossivelmente espremido entre duas paredes ali dentro. Uma luz pendurada em uma corrente pendia do teto — uma luminária de três lâmpadas geralmente encontrada sobre mesas de cozinha. Eu me dei conta de que, de fato, ela estivera sobre a mesa da cozinha na última vez em que estive ali, meses atrás. A mais compacta e estreita cômoda do mundo ocupava o canto perto da entrada. Eu tinha de fechar a porta da despensa para abrir as gavetas. Não havia janela. Eu havia me tornado o Harry Potter. Só que eu tinha treze anos e nenhuma magia, e meu destino, qualquer que fosse, não tinha nenhum grande propósito. — Você pode decorar ou não, como desejar. É só pra dormir e guardar suas coisas.


Você não é obrigado a ficar aqui. — Pessoas idosas como meu avô esquecem muitas coisas, evidentemente. Se ele tivesse se lembrado da própria adolescência, saberia que vivemos em nosso quarto. Meu avô era prático. Minha mãe sempre dizia: — Ele é como seu pai. Os dois enxergam o mundo em preto e branco. — Por que estão sempre bravos um com o outro? — perguntei. — Não estão bravos de verdade. É só uma desavença sobre o que é preto e o que é branco. O problema é que eles discutem pelo que está entre um e outro. Meu pai acreditava que meu avô estava desapontado por ele ter ido embora, em vez de ter ficado e trabalhado no barco. Eu não tinha tanta certeza. Talvez meu avô só quisesse ter tido a permissão de fazer o que quisesse com a própria vida, em vez de ter sido julgado por não ter estudado muito, por não ser bom o bastante. — Então eles discutem por causa do que é cinza? — Sim, mas tem mais a ver com... as cores. Os tons de cinza em fotografias preto e branco são as coisas coloridas na vida real. A grama verde, um lenço cor-de-rosa, uma rosa amarela. Acho que, às vezes, eles não entendem quanta coisa fica aí no meio. Quantas coisas nunca serão pretas ou brancas. — Ela sorriu. — Talvez sejam artisticamente incapazes. Como eu sou com matemática, sabe? Eu assenti. Mas me sentia à vontade com as duas coisas, então não entendia muito bem.

Deitado em minha nova cama, olhei para as três lâmpadas de chama falsa do único dispositivo de luz no meu quarto microscópico. O interruptor ficava em um fio pendurado na parede ao lado da porta. A luminária era de um tipo de latão oxidado, mas tão corroído que eu não conseguia determinar como ela devia ser. Talvez o metal tenha sido brilhante — há uns cinquenta anos. Provavelmente, o latão não servisse para ficar tão perto do mar e nunca ser polido. Estiquei cada um dos braços para um lado e toquei as paredes, depois os estiquei para trás e toquei a terceira parede. A quarta era basicamente a porta da despensa, com um pequeno pedaço de parede dos lados e acima dela. Eu me ajoelhei, tateei uma das prateleiras estreitas que meu avô deixara ali e peguei meu iPod de sua nova casa, ao lado da pilha de cadernos de desenhos. Alguns meses


atrás, estas prateleiras eram cheias de comida enlatada, conservas, caixas de cereal e macarrão com queijo. Ao lado da porta havia um cesto de batatas, que meu avô chamava de tubérculos, e, ao lado dele, outro cesto com cebolas cujo cheiro eu ainda podia sentir, embora agora estivessem em outro lugar — em uma gaveta da cozinha, acho. Enfiei os fones de ouvido e escolhi uma playlist de uma banda nova que eu tinha descoberto pouco antes de deixarmos Alexandria. Eles eram da região, e algumas músicas eram tocadas pelas rádios universitárias. Eu pensava que talvez pudesse vê-los tocar ao vivo. Agora, a menos que ficassem famosos de verdade e saíssem em turnê, eu nunca os veria. Mesmo que saíssem em turnê, nunca viriam para cá. Ninguém vinha para cá. Eu não sabia o que tinha acontecido com as caixas de enfeites e decoração que minha mãe arrastava do armário no porão todos os anos — os fios de luzes, a guirlanda verde retorcida, as meias de veludo e o calendário do Advento com suas janelinhas. Eu não estava esperando presentes, mas meu avô me deu um canivete com cabo de madrepérola e uma lâmina mais longa que meu dedo do meio. Parecia velho, mas bem conservado e afiado. Meu pai, que não se lembrou de comprar nada para mim, me deu dinheiro, e eu guardei as notas na carteira sem olhar para elas. — Obrigado — disse a cada um deles. E então meu avô pegou uma velha chapa de ferro em um armário baixo e uma caixa de mistura para waffle e uma embalagem plástica de calda de bordo de um armário no alto. Primeiro Natal sem a minha mãe, encerrado.

Eu tinha crescido um pouco mais desde o verão, mas não comprara roupas novas. Não cortara o cabelo. Sinceramente, eu meio que me esqueci da minha aparência até o primeiro dia no colégio novo. Na cidade, havia uma escola de ensino fundamental e uma de ensino médio, ambas no mesmo endereço. Mais ou menos como o meu colégio particular em casa — ou onde antes era minha casa. A maioria dos alunos ali se conhecia desde sempre, como nós por lá. Recém-chegados eram tratados com desconfiança até fazerem amigos ou serem excluídos de vez. Eu sabia disso, mas, mesmo assim, não refleti sobre como isso se


aplicaria no meu caso, até que aconteceu. Minhas camisetas ainda serviam, mas os jeans, não. Os sapatos apertavam meus dedos. A jaqueta North Face estava pequena, e as mangas dos meus moletons de capuz estavam curtas demais. Eu as puxava para baixo até os punhos esticarem como bocas muito abertas e permanecerem assim. Eu usava meu relógio de pulseira larga e os braceletes de silicone todos os dias, aliviado por não serem proibidos, porque rapidamente meus professores decidiram que eu era um delinquente. Eles não teriam ignorado regra nenhuma para beneficiar o introvertido e possivelmente instável aluno novo com roupas pequenas, cabelo comprido demais e nenhuma vontade de participar das aulas. A maioria dos alunos concordava com eles. Na sala, eu me sentava onde quer que o professor mandasse e fazia o mínimo possível. Nos corredores, ficava perto das paredes dos armários, com os olhos no chão, ignorando qualquer insulto ou empurrão “acidental”. Às vezes eu me imaginava reagindo. Eu me lembrava dos confrontos e das disputas que tínhamos no gelo — a adrenalina de mandar um oponente de cara contra a parede de acrílico quando ele machucava um companheiro de time ou falava muita besteira. Sem patins ou gelo sob os pés, eu poderia quebrar narizes e deslocar ombros antes que a maioria desses caras se desse conta do que tinha acontecido. Mas aí eles saberiam que eu me importava com o que faziam comigo. Então, eu não me incomodava. No intervalo, eu era condenado à mesa dos excluídos com dois outros caras da minha turma, Rick e Boyce, e uma garota do sétimo ano, Pearl, que escorregava na cadeira e lia escondida atrás dos óculos e de uma nuvem de cabelos escuros e desgrenhados. Nenhum deles parecia inclinado a falar comigo, mas também não jogavam comida nem faziam comentários odiosos, então eu comia tão quieto quanto passava o resto do dia, depois pegava meu caderno de desenhos e me debruçava sobre ele. Eu tinha aprendido a ficar com a mochila o dia inteiro. Os armários não eram seguros, embora todos fossem instruídos a decorar suas combinações. Os códigos supostamente confidenciais dos armários embutidos circulavam entre os alunos havia muito tempo. No meu aniversário de catorze anos, eu já tinha resistido por duas semanas no meu novo colégio, e ainda faltavam quatro meses. No outono seguinte, eu passaria para o ensino médio. Não tinha ilusões de que seria melhor. Às vezes ficava parado na varanda de tábuas gastas no fundo da casa do meu avô, olhando para a água e imaginando quanto tempo levava para morrer afogado e como seria a sensação.


Como no Natal, acordei certo de que não ganharia presentes. Eu não tinha nem certeza se meu pai ou meu avô lembrariam, e definitivamente não os ajudaria a lembrar. Quando abri a porta do meu quarto na despensa, o cheiro de porco frito e canela me saudou. Na maioria das manhãs, meu pai e meu avô já haviam saído quando eu me levantava. Saía do meu casulo, me arrumava no único banheiro, compartilhado por todos nós, e seguia a pé para o colégio. O mês de janeiro era gelado, mas nada parecido com o que eu estava acostumado. Meu avô riu quando perguntei se já havia nevado. — De vez em nunca — ele respondeu. — Não conte com isso. Eu sentia falta das mudanças sazonais e do manto branco do outro lado da janela, mas não sentiria falta de me arrastar pela neve quando a novidade se esgotava, ou do vento cortante penetrando minhas roupas e fazendo meus olhos lacrimejarem para impedir que os globos oculares congelassem. Meu pai tinha saído, mas meu avô estava na cozinha servindo fatias de linguiça e rabanadas em dois pratos. Normalmente eu comia cereal ou fazia mingau de aveia no micro-ondas, então não perdi muito tempo além de murmurar um “obrigado” antes de pegar o garfo e atacar. — Pensei em irmos ao brechó Thrifty Sense hoje — ele falou, e eu ergui a cabeça, com a boca cheia de rabanada e calda. — Você está parecendo um espantalho com essas calças curtas. A menos que essa seja uma moda nova da sua turma. Não acompanho todas as tendências. — Ele puxou seu prato de comida e levantou uma sobrancelha, esperando. Balancei a cabeça em resposta enquanto confirmava mentalmente em que dia estávamos. Quinta-feira. — Mas e a escola? Ele ergueu uma mão. — Ah. Eles conseguem ficar um dia sem você. — Eles viveriam bem sem mim todos os dias. — Vou falar que você está doente. Temos compras de aniversário para fazer. — Demos algumas garfadas em silêncio antes de ele acrescentar: — Não quer aproveitar o aniversário e cortar o cabelo? Balancei a cabeça outra vez, lutando contra o sorriso que repuxava o canto de minha boca. Ele suspirou demoradamente. — Eu imaginava. — Batendo a mão na penugem curta e grisalha, acrescentou: — Se eu tivesse cabelo, acho que também sairia exibindo por aí.


Voltei para casa com vários jeans desgastados e cuecas, dois pares de tênis surrados e botas usadas, além de um moletom preto desbotado. Nada custou mais do que cinco dólares. Tudo servia. Meu pai estivera em casa e saíra durante a nossa ausência, deixando sobre minha cama um estojo com doze lápis carvão de qualidade e diferentes graus de dureza, duas borrachas, uma lixa e um apontador. Reconheci o estojo; tinha sido da minha mãe. Embaixo dele havia um caderno de desenhos novinho com páginas destacáveis, do tipo que minha mãe me dava para os desenhos que eu queria destacar e exibir. Peguei meu caderno de desenhos surrado da mochila e abri em uma página em que havia o desenho de uma gaivota no casco do barco do meu avô. Passei o resto do meu aniversário testando os lápis, recriando o desenho simples e sombreando os traços até a gaivota parecer meio sinistra — mais como o corvo do poema de Edgar Allan Poe que lemos na aula no outono passado, na minha primeira semana de volta. O corvo atormentava um homem que estava enlouquecendo com a morte da pessoa amada. Todo mundo deveria escrever um breve ensaio analisando o poema, mas meu professor, olhando para um ponto bem entre os meus olhos, me deu permissão para escolher outro tema, embora eu não tivesse pedido para ser liberado da tarefa. Escolhi um poema de Emily Dickinson sobre o equilíbrio que a vida mantém entre as coisas boas e ruins. Tive treze anos de coisas boas. Eu me perguntava se sobreviveria aos treze de coisas ruins necessários para compensá-los.

LUCAS Uma ou duas semanas depois do início de qualquer semestre, a frequência geral costuma cair, sobretudo em grandes cursos de introdução como história ou economia. Esse semestre não era diferente. A menos que tivesse prova ou trabalho marcado, havia na sala um padrão sempre mutante de assentos vazios. Mas Jackie e seu namorado, eu relutantemente reconhecia, não matavam aula. Nenhuma nas primeiras oito semanas. O que tornou notável a primeira falta dela, e a segunda — na aula seguinte — significativa. Durante uma pausa na tarefa de casa, dei uma olhada no perfil de Kennedy Moore, e seu status agora exibia: solteiro. O perfil de Jackie não existia mais — ou ela o desativara


temporariamente. Puta merda. Eles terminaram. Eu me senti um completo cretino pela alegria que isso me causava, mas a culpa não me impediu de imaginar mais um passo: ela tinha deixado de ir à aula. Talvez planejasse abandonar a disciplina de economia... o que significava que ela não seria mais aluna da turma da qual eu era monitor. Na terceira falta de Jackie, Moore já flertava abertamente com as garotas que o cercavam durante as últimas semanas. Na semana seguinte, Jackie perdeu uma prova. Esperei que o sistema atualizasse seu status, informando oficialmente sua desistência do curso, mas nada mudou. Se ela se esquecesse de trancar a disciplina até o fim do mês, teria um zero no fim do semestre. Eu sabia bem que ela não era responsabilidade ou problema meu... mas eu não queria que ela fosse reprovada em uma disciplina depois de aquele escroto ter terminado o namoro deles de três anos. No entanto, depois de mais de uma semana no campus observando todas as garotas remotamente parecidas com Jackie Wallace, comecei a acreditar que nunca mais a veria outra vez.

Francis me lançou um olhar de “Como é que isso foi parar aí?” quando tirei seu traseiro de cima do meu celular, que estava vibrando. Era Joseph, um dos técnicos de manutenção da universidade que me ajudava a ganhar uma grana extra me indicando para serviços variados no campus — normalmente trabalho temporário legítimo, às vezes dinheiro passado por baixo da mesa. Eu não escolhia; aceitava qualquer um dos dois. — E aí, cara. — Parceeeiro... tá ocupado hoje à noite? — Chapado. Balancei a cabeça. Joseph apreciava drogas recreativas, especialmente no fim de uma semana péssima lidando com alguns dos acadêmicos mais condescendentes, administradores estressados ou chefes afogados no próprio poder. — Tô só estudando. E aí? Francis aproveitou minha distração e atirou o corpo fofo de quase dez quilos em cima do meu livro e de metade das minhas anotações. Eu o empurrei sem muita firmeza e, em retaliação, ele jogou meu lápis do sofá.


— Numa sexta à noite? Cara, você tem que parar com essa merda. — Essa era uma declaração frequente de Joseph. Ele sabia que eu não ia mudar, apenas acreditava que tinha de reafirmar sua objeção de tempos em tempos. — Quando você vai viver um pouco? — Assim que eu me formar, cara — prometi. — Assim que eu me formar. Depois de um profundo suspiro, ele voltou ao propósito da ligação. — Tenho uma ligeira... proposta pra você. Se eu tivesse um melhor amigo, provavelmente seria ele. O mais estranho na nossa amizade era que tínhamos apenas duas coisas em comum. Primeiro, nosso gosto musical quase idêntico e, segundo, uma afinidade por compartimentalizar a vida, o que fazíamos com a mesma compulsão. Depois de ter me visto sozinho em vários shows na primavera passada, ele se aproximou e estendeu a mão. — E aí, cara... Joseph Dill. Você não trabalha no campus? — Sim. — Enquanto trocávamos um aperto de mão, eu tentei situá-lo por lá. Não era colega do curso de engenharia, mas parecia muito jovem para ser professor. Um dos alunos um pouco mais velhos das aulas do Heller, talvez? — Polícia do campus, certo? — O tom dele não era desdenhoso, mas também não era cortês. Pela milionésima vez, eu amaldiçoei aquele trabalho, apesar de as dez horas semanais cobrirem quase metade da mensalidade. — Ah, hã... na verdade, não — falei. — Só dou as multas de estacionamento. É uma vaga para estudante. Mesmo assim, tenho que usar a porcaria do uniforme. — Ah — ele assentiu, me olhando com atenção. — Então... você é estudante. — Apesar de habitarmos o mesmo pequeno reino, o pessoal da manutenção e da jardinagem não costumava interagir com os alunos. Ele apontou para si depois de uma breve pausa, cruzando essa fronteira invisível. — Manutenção predial. — E sorriu. — Pensei em pagar uma cerveja pra você e perguntar por que dois caras incríveis como nós vamos sozinhos a shows. Eu sorri, mas de repente me ocorreu que Joseph podia estar interessado em mais do que uma conversa, porque meu gaydar disparou. — Você é maior de idade, né? — ele perguntou. — Ah, sou... — Eu disse a mim mesmo que não seria diferente de dispensar uma garota quando não estava a fim ou disposto, coisa que eu fizera com bastante frequência


nos últimos três anos. — Beleza. — Depois de pagar duas cervejas, ele me passou uma e bateu o gargalo da garrafa na minha antes de tomar um gole. Agradeci de um jeito reservado, sem querer afastá-lo de cara. Joseph puxou o rótulo da garrafa dele, finalmente chegando a alguma conclusão. — Então, meu namorado adora musicais. E, caralho, eu prefiro ser perseguido por zumbis famintos a ser forçado a aguentar Rent de novo. Ele não tem dificuldade para encontrar alguém que aceite ir assistir àquela merda com ele, graças a Deus. Eu não tenho a mesma sorte com meu gosto musical e nosso círculo de amigos, sabe? — Então ele me encarou, esperando uma confirmação ou uma resposta preconceituosa. Aliviado, eu sorri ao pensar nesse cara, que parecia ficar mais à vontade em um bar de motoqueiros do que em um espetáculo da Broadway. No rastro desse pensamento, uma lembrança sepultada me veio à tona — meu pai constrangido ao lado da minha mãe em uma das exposições dela em uma galeria, agarrado a uma taça de champanhe. Meu pai era um cara que gostava de esportes e uísque com gelo, não um entusiasta das artes. Mas amava e apoiava minha mãe. — Na verdade, eu não sei, mas posso imaginar — falei. A boca de Joseph se esticou em um meio sorriso, e desde então somos amigos. — Tudo bem — falei agora. — Faça a sua proposta. — Você, humm, tem experiência no reparo de sistemas de ar-condicionado, não tem? — Sim. — Eu tinha trabalhado para a Hendrickson Electric & AC no último ano do ensino médio, ajudando o velho sr. H em centenas de manutenções e reparos, mas nunca tinha diagnosticado um defeito sozinho. Depois de ter trabalhado com ele por um ano, o s r. H brincou que eu tinha aprendido o suficiente para ser perigoso, o que resumia perfeitamente meu nível de conhecimento. — É o seguinte. Acabei de receber um chamado para consertar o ar-condicionado de uma sede de fraternidade. E, cara, eu esqueci completamente que estou de plantão no fim de semana... e estou chapado! Eu ri. — Não diga. — Pois é... Não posso operar maquinário pesado. Tipo. Meu caminhão. — Isso é verdade, sem dúvida. — Então pensei que você poderia fazer o serviço, e eu pago pra você. Recebo hora extra por essa merda. Assim não sou pego chapado no trabalho, você ganha uma graninha, e todo mundo fica feliz.


Ir a uma sede de fraternidade para identificar e reparar um problema em um equipamento que talvez eu nem conhecesse o suficiente para consertar não era exatamente mais legal do que ficar sozinho em casa. — Humm. Eu não tenho as ferramentas e o equipamento... — Passe aqui, pegue o meu caminhão. Nele tem uma caixa com tudo que você vai precisar. Aqueles idiotas não vão pedir sua identidade nem nada. Só querem o arcondicionado funcionando. Só não sei por que tanta urgência. Deve estar uns vinte graus lá fora. Provavelmente uma festa, ou alguma coisa assim. Suspirei. Eu não queria que o Joseph dirigisse chapado ou perdesse o emprego por aparecer no campus meio louco e paranoico para um reparo. Além do mais, grana extra era sempre bem-vinda. — Beleza, cara. Quando? — Humm... Agora? Fui até lá. A tática incluía usar uma camisa da equipe de manutenção com o nome de Joseph bordado em azul-marinho no retângulo branco do lado esquerdo. — Provavelmente precisam de gás ou de reparo nos fios. — Ele bateu no meu ombro e me entregou as chaves do caminhão. — Me liga se tiver algum problema. Estou chapado, não em coma. Joseph tinha razão em tudo. O pessoal da fraternidade estava se preparando para uma festa, e ninguém piscou duas vezes por me ver usando uma das camisas dele. Um cara atendeu à porta e me mostrou que ajustar o termostato não mudava a temperatura da sede. Felizmente, Joseph também estava certo sobre ser um simples caso de reparo de fios. O aparelho tinha quase vinte anos de uso e teria de ser substituído em breve, mas não agora. — Ah, cara... lindo. — D.J., o vice-presidente da fraternidade, inclinou a cabeça para trás e fechou os olhos, suspirando aliviado. — A gente sempre exagera nessas festas. O tempo deve estar bom amanhã, mas nunca se sabe. — Verdade. — Guardei as ferramentas na caixa. — Obrigado por ter vindo, Joseph. — Demorei um instante além do normal para me dar conta de que ele estava falando comigo. — Ah, beleza. Na porta, ele me estendeu uma nota de vinte dobrada. Eu recusei. — Não precisa se incomodar, cara. Faz parte do trabalho. — O verdadeiro Joseph me


pagaria cinquenta pratas por uma hora de trabalho, e eu já estava suficientemente apreensivo com isso. D.J. enrugou a testa por um segundo, provavelmente estranhando que um trabalhador comum recusasse uma gorjeta. — Ah, bom... se estiver livre amanhã à noite, vamos dar uma festa de Halloween. Não brinca, pensei. A casa toda estava enfeitada com teias de aranha falsas e luz negra, e todos os móveis tinham sido empurrados para as paredes, deixando espaço livre para dançar ou socializar no centro da sala principal. — Tecnicamente a festa é para alunos, mas você obviamente não é velho, e não é um evento exclusivo de fraternidade, então apareça se estiver de bobeira. Com esforço, contive uma risadinha. — Ah, claro. Obrigado... — Mas não, obrigado. Então levantei a cabeça e vi Kennedy Moore do outro lado da sala, falando com outro cara. Foi quando me dei conta de que era a fraternidade dele. Jackie poderia estar nessa festa, mesmo que os dois estivessem separados. Ah, droga. Acho que eu ia a uma festa de fraternidade.

Vi Jackie no momento em que ela passou pela porta. Mesmo no escuro e com tanta gente espremida em volta, não a perdi de vista no meio da multidão por muito tempo. Ela estava de vermelho. Vermelho-vivo, brilhante. Na cabeça, uma tiara com dois chifres vermelhos. Uma cauda fina e bifurcada descia da parte de trás da saia e balançava quando ela dançava ou andava. As pernas nuas e lisas pareciam mais longas do que nunca. A geometria sugeria que a saia curta e os saltos eram responsáveis por esse efeito, mas nem toda matemática conseguiria diminuir minha reação visceral ao vê-la mais uma vez — sobretudo em uma fantasia tão sexy. No entanto, aquele figurino nessa garota afetava outros caras além de mim — o que podia ser comprovado pela quantidade de rapazes que a chamavam para dançar. Jackie não se dava conta ou não se importava, porque nove em cada dez vezes ela balançava a cabeça recusando o convite. Ela e o ex — e agora eu tinha certeza de que era esse o caso — se mantinham afastados como se fossem polarizados. Ele era bajulado de um lado da sala, e dava para ver que ela se esforçava para ignorá-lo do outro.


Planejei e descartei duas dúzias de possíveis abordagens. Ei, tenho observado você na aula de economia, que — não pude deixar de notar — você parou de frequentar há duas semanas. Espero que esteja pensando em desistir, porque assim eu não estarei violando a ética do campus, para não mencionar a pessoal, quando te convidar para sair. Brilhante. E nada assustador. Acho que vermelho acabou de se tornar minha cor preferida. Lixo. Posso calcular a raiz quadrada de qualquer número em dez segundos. Então, qual o seu número? Eca. Nunca desejei tanto ir para o inferno. Não. Está quente aqui, ou é só você? Meu Deus, não. Um casal na pista de dança divertia todo mundo com uma performance exagerada e bêbada — e foi a única vez que vi Jackie sorrir desde que comecei a observá-la, havia mais ou menos uma hora. Minha visão foi bloqueada quando uma garota com orelhas de gato e bigodes desenhados a lápis parou bem na minha frente, espiando por cima do copo. Quando ergui uma sobrancelha, ela perguntou: — Você não é da minha turma de economia? Um dos dançarinos esbarrou nela, fazendo com que a bebida dela respingasse no rosto. A garota cambaleou para frente e eu a segurei pelo braço para não deixá-la cair. Ela se virou e gritou: — Sai fora, piranha. — Para a garota que estava dançando, apesar de ter sido o cara quem trombara com ela. Quando olhou para mim de novo, a careta ameaçadora já tinha desaparecido. Ela sorria simpática, como se os últimos dez segundos não tivessem acontecido. Assustador. — O que eu estava dizendo? — Ela se aproximou mais, e eu soltei seu braço. — Ah, sim. Economia. Com aquele... não lembro o nome dele... — E estalou os dedos duas vezes, tentando lembrar enquanto eu olhava por cima de sua cabeça para Jackie, que dançava com um cara coberto por uma longa capa escura. Ele riu de alguma coisa que ela disse, exibindo as presas de plástico branco. Havia pelo menos uma dúzia de vampiros na festa. — Sr. Keller? — arriscou a garota da aula de economia. — Dr. Heller — eu a corrigi. Ela sorriu novamente. — Sim, ele mesmo. — Ela cutucou meu peito com uma unha de metal prateado. — Você senta na última fileira. Não presta atenção. Tsc, tsc. Uau. Tenho que me livrar desta conversa.


— Na verdade, sou o instrutor suplementar da turma. — É o que de quê? Abaixei a cabeça e comprimi os lábios. Meu Deus. — O monitor. — Ahhh... — Então ela me disse seu nome, que esqueci imediatamente, e começou um monólogo sobre inimizade se referindo à garota que esbarrara nela. Eu não conhecia nenhuma das duas, e não poderia me importar menos com a rixa, que tinha a ver com um cara ou um par de sapatos, não consegui entender naquele meu estado de não tô nem aí. Quando localizei Jackie novamente, ela tinha pendurado a bolsa no ombro e se dirigia para a porta dos fundos, rumo ao pátio de concreto compartilhado por várias sedes. Eu tinha ido à festa com a esperança de vê-la, mas não tinha o direito de persegui-la desse jeito. Foi bom não a ter convidado para dançar nem ter tentado falar com ela. Podia ir embora agora, sem nenhum estrago feito. Apenas segui-la porta afora e ir para casa. Exceto pelo fato de que eu tinha espremido minha moto em um pequeno espaço entre dois carros na frente da sede. Não tinha motivo nenhum para sair pela porta dos fundos. O vampiro também estava observando aquela porta. Ele deixou a capa sobre uma cadeira e cuspiu os dentes de plástico, guardando-os no bolso da frente. Saiu logo atrás de Jackie e não parecia ter pressa, mas também não perdeu tempo — como se tivesse um lugar para ir. Ou alguém para encontrar.


6

LANDON No bloco de madeira sobre a mesa se lia Sra. Sally Ingram — letras pretas sobre uma placa de bronze polido. Parecia um bom nome, e de longe ela pareceu ser legal durante a orientação obrigatória na semana passada. Legal era a primeira coisa que a diretora do meu colégio parecia ser e não era. Sentei-me na cadeira de plástico duro diante da mesa dela. O tampo era de madeira maciça e tão largo que parecia ter sido projetado para impedir que pulassem facilmente por cima dele. Eu não conseguia nem imaginar como tinham levado uma mesa daquele tamanho para dentro da sala. Devia ter entrado desmontada, porque com certeza não passava pela porta. A sra. Ingram folheava uma pasta, mudando os papéis de lugar como se eu não estivesse sentado ali esperando para saber por que tinha sido chamado na diretoria no meu primeiro dia no ensino médio. Os óculos dela estavam na ponta do nariz, do jeito que meu pai usava quando lia ou atualizava seus livros — a única concessão à carreira anterior dele que eu vira desde que nos mudamos para cá, oito meses atrás. No início houve muita discussão e acusações — meu pai criticando meu avô por causa de sua falta de tino comercial, de planejamento ou registro contábil do negócio de pesca que o sustentava havia décadas... e essa era a linha de raciocínio do meu avô. Por fim, eles meio que chegaram a um acordo, e meu pai assumiu a esfera financeira do negócio. Enquanto registrava números nos livros ou os passava para seu notebook, meu pai ainda resmungava um ou outro palavrão ou tirava os óculos e beliscava a parte alta do nariz, como se a frustração pudesse lhe desencadear uma hemorragia nasal. Mas ele organizara o “escritório” — que consistia em um armário comprimido no corredor, entre a sala de estar e a cozinha (onde eram guardados os livros contábeis, em vez de pratos), e na mesa embutida da cozinha, sobre a qual pendia uma lâmpada. O espaço de trabalho era muito diferente do escritório dele em Washington ou do home office em Alexandria. A sra. Ingram pigarreou e tirou os óculos, me encarando. Seus olhos eram escuros e


próximos um do outro. Eu a desenharia como um dragão — olhos redondos de réptil estudando a presa e mantendo-a no chão, desafiando-a silenciosamente a correr. Era o primeiro dia de aula. Não dava para ter feito nada que pudesse aborrecê-la. Não que eu tentasse aborrecer alguém. Só queria que me deixassem em paz, e, na maior parte do tempo, eu conseguia o que queria. — Landon Maxfield. — Ela pronunciou meu sobrenome como se fosse algo viscoso, e eu não consegui resistir à desobediência instintiva que me fez estreitar os olhos. Maxfield era o nome do meu avô, e eu não gostava que o desrespeitassem. Apoiando os cotovelos na mesa, ela entrelaçou os dedos. — Ouvi falar de você e achei que devíamos nos conhecer, já que agora você está na minha casa. Eu pisquei. Ela ouviu falar de mim... Quem falou e o que disseram? — Seu pouco auspicioso início acadêmico neste colégio exemplar o precede, como pode ver. — Ela agora batia a ponta dos dedos como se estivéssemos tendo uma simples e construtiva conversa de primeiro dia. — E, como diretora, tenho o hábito de me inteirar de todas as possíveis... deficiências antes que possam se espalhar pelos outros alunos. Uma espécie de controle preventivo de danos, por assim dizer. Você está me entendendo? — Ela exibiu um sorriso de deboche, os lábios comprimidos e levemente curvados. Eu duvidava que ela esperasse que eu compreendesse alguma coisa do que tinha acabado de dizer. Mas aquele seu vocabulário arrogante não era páreo para a educação que eu tinha recebido antes, ou para os pais instruídos que haviam me criado. Eu preferia não ter entendido seu discurso. Queria não saber o que ela pensava. Minha pulsação ecoava em meus ouvidos, e cravei as unhas na palma das mãos para conter as lágrimas furiosas antes mesmo que se formassem. Olhos úmidos me fariam parecer fraco. — Você acha... que vou contaminar os outros alunos. — Minha voz arranhava a garganta, traindo a emoção que eu queria esconder, mas ela não parecia notar. Estava alarmada demais. Seus olhos se arregalaram, mas, de alguma maneira, isso não os tornava menos parecidos com contas. Ela era a mulher mais assustadora que eu já havia conhecido. As mãos se apoiaram abertas sobre a mesa. — Bem, não nos precipitemos. Estou apenas me certificando de que você entenda a ideia de tolerância zero, sr. Maxfield. Meus dentes do fundo rangiam apertados. Ela se levantou, então eu fiz o mesmo. Não queria aquela mulher me olhando de cima.


— Apenas siga as minhas regras enquanto estiver na minha casa... ou será chutado para fora, rapaz. Meu primeiro dia no ensino médio e estou sendo ameaçado de expulsão? Decidi não lhe dar mais nenhuma informação sobre o que seria ou não capaz de entender. Ela era do tipo que atirava primeiro e só depois fazia as perguntas. Se é que fazia. Assenti uma vez, um movimento rápido de cabeça, e ela me dispensou. Fazia trezentos e trinta e nove dias que minha mãe tinha morrido. Pareciam anos. Pareciam horas.

LUCAS Permaneci imóvel, os olhos na porta dos fundos, enquanto minha consciência e uma obsessão que eu não parecia conseguir controlar começavam a travar uma batalha em minha cabeça. Essa podia ser minha única chance de falar com Jackie Wallace. Eu não a vira — no campus ou fora dele — uma única vez desde que ela desistira de ir à aula. Mas que diabos eu diria a ela? E tinha o cara que a seguira lá para fora. Era evidente que ela o conhecia. Talvez tivessem decidido se encontrar longe dos olhares curiosos. Ou ele também estava esperando uma chance e, diferentemente de mim, a agarrava, em vez de perder tempo com uma argumentação mental inútil. Talvez ela tivesse apenas decidido ir embora mais cedo, e ele também, sem qualquer relação entre as duas ações. Ou talvez eu estivesse desperdiçando segundos valiosos parado ali sem fazer nada. Meu adolescente interior estava cada vez mais enfurecido com essa reticência. Deixe esse copo com essa bebida de merda de lado, vá atrás dela e diga alguma coisa — qualquer coisa, cacete. Primeira ideia: eu podia dizer que era monitor da turma e havia notado a ausência dela nos últimos dias, inclusive no dia da prova, mas sabia que ela não tinha desistido da matéria. Depois de segui-la por um estacionamento escuro. Eu teria sorte se ela não me desse uma joelhada nas bolas primeiro e fizesse as perguntas depois.


Mas o prazo para desistência terminaria em três dias. Eu podia salvá-la de um zero no histórico, no mínimo. Descolando meu traseiro da parede, abandonei a suposta conversa com a garota meio chapada e a deixei falando sozinha no meio da frase. Ao caminhar diretamente para a porta dos fundos e para fora, eu disse a mim mesmo que, se Jackie Wallace e o vampiro idiota estivessem conversando — ou mais do que isso —, eu contornaria a casa e iria para a frente, pegaria minha moto e esqueceria que ela existia. Claro que sim. Todos aqueles detalhes minuciosos que você passou as últimas nove semanas analisando e gravando na cabeça vão desaparecer imediatamente. Sem problemas. Cala a boca. Por alguns segundos, tive medo de tê-la perdido de vista. Havia uma ameaça de tempestade naquela noite, e o vento soprava forte e juntava as nuvens, aprofundando sombras e tornando as áreas iluminadas menos frequentes e mais vazias. Eu a encontrei pela luz do celular. Ela estava mandando uma mensagem de texto para alguém enquanto caminhava por entre carros e caminhonetes do outro lado do estacionamento. Seu amigo vampiro estava entre nós dois e parecia segui-la. Mas o cretino não a chamou para avisála que estava ali. Ele ia lhe dar um susto do caralho se aparecesse do nada. Respirei fundo, desci os degraus da saída e comecei a andar lentamente na direção dela, pronto para dar meia-volta a qualquer momento. A probabilidade de eu lamentar essa noite? Noventa e cinco por cento. Na última fileira de carros, ela destrancou a porta de uma brilhante caminhonete preta. Interessante. Nunca a imaginei dirigindo uma caminhonete. Talvez um pequeno esportivo ou uma perua compacta. O vampiro se aproximou e os dois foram para o espaço do outro lado da porta aberta. Eu não conseguia ver nenhum dos dois com clareza, e não queria testemunhar o exame de amígdalas mútuo que deviam estar fazendo. Era hora de dar meia-volta. Mas... o fato de ele a ter seguido em silêncio me incomodava. Na melhor das hipóteses, ele achava divertido assustar mulheres em estacionamentos desertos. Na pior... Ela gritou. Uma vez, um grito bruscamente interrompido. Parei onde estava. E então saí correndo. Eu raramente havia dado total liberdade ao meu temperamento nos últimos três ou quatro anos, porque conheço muito bem as consequências disso. Mas, quando vi o corpo


dele sobre o dela em cima do banco e a ouvi soluçando e implorando para ele parar, eu perdi a cabeça. Nem todo o autocontrole do mundo teria impedido minha reação — presumindo que eu quisesse me controlar. Eu não queria. Agarrando a camisa dele com as duas mãos, eu o puxei para fora da caminhonete. Ele estava meio bêbado. O grau de embriaguez que faz idiotas pensarem que estão bem para dirigir. O suficiente para enrolar uma palavra aqui ou ali. O suficiente para torná-lo inútil em uma briga contra qualquer um que saiba o que está fazendo. Eu sabia o que estava fazendo. Ia matar o cretino e pensar nas consequências depois. Isso não era uma expectativa ou uma opinião. Era um fato. Ele era um homem morto. De algum jeito, meus primeiros dois socos foram uma total surpresa para ele. Sua cabeça foi projetada para trás enquanto o cara ficava ali parado, tentando entender como o predador havia se transformado em presa em um instante. Vai, idiota. Vai. Briga comigo, caralho. Ele disparou um soco, por fim, mas errou minha cabeça por uns trinta centímetros e com isso perdeu o equilíbrio. Acertei mais dois nele e senti meus braços esquentarem por causa da adrenalina sendo despejada na corrente sanguínea. Por uma fração de segundo, uma rajada de luar iluminou a cena em preto e branco. O sangue jorrava do nariz dele, escuro e abundante. Sangra, filho da mãe. Ele limpou a boca com o antebraço e olhou para o resultado. Com um grito rápido, abaixou a cabeça e atacou. Murro de direita bem embaixo do queixo. Cotovelo esquerdo na cabeça. Boquiaberto, ele colidiu com a caminhonete, quicando — o álcool deixava o idiota lento demais para cair ou correr. Ele se apressou para cima de mim e eu o agarrei pelos ombros, então o puxei para baixo, acertando uma joelhada no queixo. Ele teve sorte. Eu podia ter esmagado a garganta dele, em vez disso. O sujeito caiu com os braços protegendo a cabeça, os joelhos flexionados contra o peito. Levanta. Levanta. Levanta. Comecei a me abaixar para levantá-lo e continuar batendo, mas um som abafado cruzou a névoa da fúria que me envolvia. Olhei para cima e espiei dentro da caminhonete, onde Jackie se encolhia contra a porta do passageiro, o peito arfando com a respiração curta. Ela estava apavorada, como um animal acuado se encolhendo para fugir do agressor. De mim, talvez. Eu sabia que não era possível sentir o ritmo da sua pulsação, sentir o cheiro do seu pânico, mas posso jurar que senti os dois. Meus punhos estavam cobertos


do sangue de seu agressor. Limpei o dorso das mãos na calça jeans lentamente, me afastando com cuidado da porta — sem movimentos repentinos. Os olhos dela se arregalaram, mas ela não moveu um único músculo. — Está tudo bem com você? — Essas foram as primeiras palavras que falei para a garota que eu tinha observado e desenhado e cobiçado e com a qual tinha sonhado. Ela não respondeu nem assentiu. Choque... Ela estava entrando em choque. Bem lentamente, tirei o celular do bolso. — Vou ligar para a emergência. — Ainda sem resposta. Antes de discar, perguntei se ela precisava de um médico ou só da polícia. Eu não sabia o que ele tinha conseguido fazer nos segundos que demorei para atravessar o estacionamento. A calça dele não estava abaixada, apesar do zíper aberto, mas ele tinha mãos. Outra vez a névoa vermelha ameaçou me dominar. Eu o queria morto, não só gemendo e sangrando aos meus pés. — Não ligue — ela falou. A voz dela estava tão baixa e fraca que mal consegui ouvir. Pensei que ela não quisesse uma ambulância. Mas não, ela deixou claro que não queria que eu chamasse a polícia. Sem acreditar, perguntei: — Estou enganado ou esse cara estava tentando te estuprar? E você está me pedindo para não ligar para a polícia? — Ela se encolheu ainda mais, e eu tive vontade de puxá-la para fora daquela caminhonete. — Ou será que eu interrompi algo que não devia? Maldito descontrole. Mas que merda. POR QUE eu falei isso? Os olhos dela se encheram de lágrimas, e eu tive vontade de esmurrar minha própria boca. Eu me forcei a respirar mais devagar. Eu tinha que me acalmar. Por ela. Por ela. Balançando a cabeça, Jackie disse que só queria ir para casa. Meu cérebro relacionou uma centena de motivos pelos quais eu deveria argumentar com ela, mas eu estava no campus por tempo suficiente para saber o que aconteceria. A fraternidade o defenderia. Alguém juraria que ela o acompanhou porque quis. Ela seria uma mulher desprezada tentando atingir a fraternidade do ex-namorado. Uma mentirosa, uma oportunista, uma vagabunda. A administração não ia querer que a história saísse do campus. Ele não tinha conseguido fazer nada, então seria a palavra dela contra a dele. Para o cara seria um tapinha no braço. Para ela, o exílio social. Eu testemunharia... mas tinha antecedente por agressão de quando era menor de idade, e eu tinha acabado de espancar o cara. Um advogado esperto me levaria para a cadeia por ter batido nele, desacreditando qualquer testemunho que eu pudesse dar.


O merdinha se virou no chão e xingou, e eu ergui os ombros e respirei devagar algumas vezes — inspira, expira, inspira, expira —, tentando me convencer a não esmagar a cabeça dele com a sola da minha bota. Ele ainda não tinha sangrado o bastante para satisfazer o monstro dentro de mim. Era uma situação perigosa. Ela respirava comigo, e eu me concentrei na sua respiração suave. Jackie tremia, mas não estava chorando, ainda. Se começasse, eu não sabia o que faria. — Tudo bem. Eu te levo — falei. Sem nenhum intervalo entre as minhas palavras e as dela, Jackie respondeu que não, que ela mesma ia dirigindo. Quantos choques eu poderia suportar em uma noite? Parecia que eu estava prestes a descobrir. Como se eu fosse deixá-la dirigir. Tá bom. Abaixei e peguei a chave no meio dos objetos espalhados pelo assoalho. A bolsa dela estava caída de lado — derrubada, sem dúvida, quando aquele babaca a empurrou com o rosto contra o banco da caminhonete. Puta. MERDA. Eu nunca quis tanto que alguém levantasse e me socasse. Eu queria uma desculpa — de qualquer tipo — para acabar com ele. Ela se aproximou e estendeu a mão, pedindo a chave. Olhei para os seus dedos finos. Dedos que eu observara de longe por semanas. Eles tremiam. — Não posso deixar você dirigir assim — falei. As palavras a confundiram. Comecei a me justificar: o fato de ela estar visivelmente tremendo — o que já era motivo suficiente. Eu não sabia ao certo se ela não estava mesmo machucada. E presumi que provavelmente tinha bebido, embora não tivesse visto um copo ou uma garrafa em sua mão. — Não bebi — Jackie respondeu, a testa franzida e o tom indignado. — Eu era a motorista da vez hoje. Eu não devia ter olhado por cima do ombro e então para ela novamente, nem perguntado para quem exatamente ela daria carona. Não devia ter criticado sua decisão de atravessar o estacionamento sozinha, de não prestar atenção no que estava em volta, mesmo que isso tudo fosse verdade. Definitivamente, não devia ter insinuado que ela fora irresponsável, o que era o mesmo que dizer que ela fora culpada pelo ataque. Eu sabia quem era o responsável. Ele estava caído aos meus pés, um amontoado coberto de sangue, gemendo como se alguém ali tivesse de se importar com ele. — Então a culpa é minha por ele ter me atacado? — ela reagiu furiosa. — A culpa é


minha por não poder sair de uma festa e vir até a minha caminhonete sem que um de vocês tente me estuprar? Um de vocês. — Um de vocês? Você vai me colocar no mesmo nível desse merda? — apontei para o cara que eu tinha derrubado no chão, sentindo a indignação borbulhar dentro de mim como uma reação química instantânea e incontrolável. — Não tenho nada em comum com ele. — Ouvi minhas palavras percorrendo a distância entre nós, palavras hostis e defensivas. Quando as disparei, os olhos dela encontraram minha boca... e o piercing no meu lábio. Vi o medo que ela tentou engolir antes que eu pudesse notá-lo. Não era dela que eu sentia raiva. Não era a mim que ela devia temer. Mas era o que eu estava fazendo com que acontecesse. Ela pediu a chave mais uma vez, estendendo a mão. Sua voz tremeu no meio da frase, mas ela me encarou determinada. Eu estava perplexo com sua coragem depois de tudo que tinha acontecido. E lá estava eu, outro homem tentando forçá-la a fazer o que ela não queria. Um de vocês. Jackie estava errada, mas não totalmente. A sensação que me percorreu ao ter constatado isso não era nada agradável. — Você mora no campus? — perguntei, devolvendo à minha voz a gentileza que ela merecia. A decisão era dela, não minha. Salvá-la não me dava o direito de determinar o que ela devia fazer. Jackie podia dirigir pelo campus sem mim, mesmo que eu preferisse que ela não fizesse isso sozinha. — Eu te levo até o seu dormitório — insisti, paciente. — Posso voltar a pé para cá e pegar minha moto depois. O alívio me inundou quando ela concordou com a cabeça. Enquanto Jackie recolhia as coisas que tinham caído no assoalho da caminhonete, eu a ajudava a guardar os objetos na bolsa, contendo uma injustificável onda de ciúme ao lhe entregar uma embalagem de preservativo. Como se eu lhe oferecesse um escorpião em vez de um inofensivo quadrado de plástico, ela recolheu a mão e disse que aquilo não era dela. Então ele tinha planejado tudo para tentar se safar de qualquer evidência? Não vira. Não olha pra ele. Ignorando meu aviso mental, olhei para trás para ter certeza de que ele ainda estava no chão. E estava. Talvez eu tenha resmungado alguma coisa sobre sua intenção de esconder evidências, o que me fez desejar que ela me deixasse chamar a polícia, porque aquilo apontava claramente o planejamento e a intenção. Não sei se falei em voz alta. Se


falei, ela não respondeu. Enfiei a camisinha no bolso da calça, me perguntando se o material poderia passar por um triturador, porque eu faria esse pequeno experimento quando chegasse em casa. Na minha imaginação, ele estaria usando a camisinha quando isso acontecesse. Entrei na caminhonete, fechei a porta e girei a chave na ignição. — Tem certeza que não quer que eu ligue para a polícia? — Mesmo decidido a deixála tomar essa decisão, eu tinha de perguntar pela última vez. Ela olhou para o fundo da sede pelo vidro da caminhonete, em silêncio por um minuto. — Tenho certeza — disse. Assenti e saí da vaga, e os faróis iluminaram o estrago que fiz no agressor. Ele não estava muito perto. Eu me forcei a continuar dando ré. Preferia engatar a primeira e esmagá-lo de vez. Fazia anos que eu não sentia esse nível de violência nas veias. Olhando para frente, simulei uma compostura para me obrigar a manter a calma, certo de que, mesmo devagar, isso ia funcionar. No cruzamento, perguntei qual era o dormitório dela e virei à direita quando ela respondeu, com a voz fraca e trêmula agora que o perigo tinha passado. Garanti sua privacidade o máximo possível, dando uma olhada ao redor enquanto ela tentava se recuperar. Jackie cruzou os braços como se estivesse congelando, ainda que a noite estivesse mais perfeita do que devia para outubro. Até um pouco quente. Ela estremecia em espasmos, o corpo projetando a necessidade de se defender enquanto a mente não conseguia escapar da humilhação que acabara de sofrer. Queria estender a mão e tocá-la. Não fiz isso. Poderia ter sido muito pior. Mas eu nunca diria isso a ela. No estacionamento do dormitório, parei e tranquei a caminhonete, então lhe entreguei a chave e caminhei ao seu lado até a entrada lateral. Ela ainda tremia, e eu lutava para manter minhas mãos longe dela. Eu queria confortá-la, mas o toque de um estranho era a última coisa de que ela precisava. Embora Jackie fosse familiar, única e fascinante para mim, eu era um desconhecido para ela. Ela nem sabia meu nome. Na entrada, pedi seu cartão de identificação, imaginando que ela teria dificuldade para passá-lo, já que estava tremendo. Pensei se não deveria acompanhá-la até o


quarto, ou se isso pareceria uma ameaça. Era um milagre que ela tivesse se permitido confiar em mim até ali. Então ela arfou quando me entregou o cartão. Seus olhos ficaram fixos nas dobras dos meus dedos. — Ai, meu Deus. Você está sangrando. — Não esquenta. A maior parte do sangue é daquele cara — respondi. Como se isso fosse reconfortante. Meu Deus. Passei o cartão e o devolvi, olhando para o seu rosto, agora totalmente visível sob a luz da entrada. Meus olhos tocavam o que os meus dedos não podiam, traçavam os rastros deixados pelas lágrimas, o rímel borrado sob os olhos. Eu queria aliviar as rugas de angústia em sua testa com o polegar, puxá-la para os meus braços e afagar seu rosto contra o peito, deixar as batidas do meu coração a acalmarem. — Tem certeza que está bem? — perguntei, e imediatamente seus olhos encheram de lágrimas. Meus punhos se cerraram ao lado do meu corpo. Não toque nela. — Sim, estou — ela respondeu, os olhos evitando os meus. Que péssima mentirosa ela era. Ela contaria o que aconteceu a uma amiga. Uma colega de quarto, talvez. Um conhecido em quem confiasse. Eu não podia ser seu confidente e sabia disso. Eu tinha feito o que devia, e só queria ter sido melhor nisso. Mais rápido. Eu ficaria eternamente irritado comigo mesmo pela hesitação inicial em segui-la. Eu perguntei se ela queria que eu ligasse para alguém, e ela negou com a cabeça, passando por mim com cuidado para evitar qualquer contato físico — até o mais leve roçar de roupas. Mais uma evidência do meu status de anônimo. Eu a observei seguir para a escada, o salto batendo no piso de lajota, a cauda bifurcada e brilhante balançando absurdamente atrás, por mais rígida que ela caminhasse agora. Os chifres da fantasia haviam desaparecido. — Jackie? — chamei cauteloso para não assustá-la. Ela se virou, a mão segurando o corrimão. — Não foi culpa sua. Ela mordeu o lábio para se controlar e assentiu uma vez, para então disparar escada acima. Eu me virei e parti, certo de que aquelas quatro palavras seriam a última coisa que eu diria a Jackie Wallace. Foi uma boa última coisa para dizer.


7

LANDON Boyce Wynn, antigo integrante da mesa dos excluídos do ensino fundamental, havia se tornado meu nêmesis. Se eu o chamasse disso, ele não faria a menor ideia do que eu estava querendo dizer e me chamaria de bichinha e/ou ameaçaria chutar minha bunda. Em outras palavras, o mesmo que acontecia quando eu nem falava com ele. Ao contrário de algumas coisas que os adultos gostam de dizer, reagir aos ataques de bullying — se você não puder bater no seu algoz — só torna o agressor mais poderoso, porque aí ele fica sabendo que você se importa. Eu não pretendia fazer isso. A diretora Ingram me ameaçara com sua tolerância zero, e Wynn provavelmente podia mesmo chutar minha bunda, além de forçar minha expulsão. Ele era grande e cruel, andava pelo colégio como veterano, e eles o toleravam por causa dos boatos sobre Wynn ter acesso a drogas, álcool e peças de carros roubados. E também porque ele não os ameaçava. Só se metia com quem era menor ou mais fraco. Eu, por exemplo. Não havia mesa de excluídos no refeitório do colégio de ensino médio, por isso escolher onde sentar requeria uma decisão improvisada, dois segundos depois de pagar o almoço. Um movimento errado podia ser fatal. Nos dias feios, os excluídos comiam do lado de fora, no pátio, mas, em dias agradáveis, ficávamos lá dentro, deixando as mesas e os bancos ensolarados do pátio para caras como Clark Richards, o filho mais novo de um empreiteiro que meu avô odiava, e garotas como Melody Dover, a loira popular namorada de Clark. Não havia muitos dias feios por aqui, exceto quando chovia ou ventava muito, ou quando havia uma ou outra ameaça de granizo ou tornado. Do contrário, era sempre quente e ensolarado, inclusive no inverno... o que significava que quase sempre eu almoçava dentro do refeitório. Os lugares mais seguros eram as pontas das mesas, onde ninguém com um mínimo de popularidade ou gente como Wynn se sentava. Mas isso não os impedia de achar você quando procuravam diversão.


Exemplo 1: É surpreendentemente fácil empurrar uma bandeja de almoço sobre a mesa — fazendo com que se espatife no chão e espalhe comida em todas as direções — sem ter de reduzir a passada, agindo como se não tivesse nada a ver com o desastre. Comecei a pegar o sanduíche embrulhado em celofane, de conservação suspeita, e uma garrafa de água, em vez de comida quente na bandeja.

Exemplo 2: Quem quer que tenha inventado os vestiários — onde várias fileiras de metal e concreto escondem dos olhos do treinador o que acontece no fundo do espaço — era um cretino. Graças a uma emboscada, perdi um par de All Stars de segunda mão e minha calça cargo camuflada. Como eu não era maluco de delatar os filhos da mãe, a solução do treinador foi me deixar escolher alguma coisa para vestir na caixa de achados e perdidos — coisas cujo odor me fez pensar que tinha alguma coisa morta em decomposição no fundo da caixa.

Fiquei literalmente cheirando a merda durante a última aula, e todas as garotas sentadas perto de mim torciam o nariz e afastavam a carteira tanto quanto podiam, enquanto os garotos faziam comentários brilhantes, como: “Você está fedendo, Maxfield. Tenta falar para o seu dono te dar um banho de mangueira de vez em quando” etc. Arranquei tudo assim que cheguei em casa e joguei as roupas em uma fogueira no quintal depois de tomar um banho muito quente. Peguei cinco dólares com meu pai e pedi que meu avô me levasse ao Thrifty Sense, onde encontrei um par de Vans do meu número que estavam como novos. Custaram sete dólares. — Eu sei onde você mora — meu avô falou, me entregando os dois dólares que faltavam. Eu parei de trocar de roupa para a educação física, o que me fez ganhar pontos negativos todos os dias até o treinador Peterson perceber que a punição não tinha efeito nenhum. Mas eu tinha três aulas com Wynn — educação física, geografia e mecânica de autos. — Vão se lavar! — ordenou o sr. Silva, cuja voz retumbante ecoava mais alta que o ruído dos motores ligados, das ferramentas, da música country e das conversas sobre carros e suas partes, garotas e suas partes. A maioria das coisas que os garotos diziam era inofensiva. Mesmo que a cidade toda


cheia de mães ameaçasse lavar nossa boca com o abrasivo sabão Lava que usávamos para tirar óleo e graxa das mãos e braços, normalmente era só conversa. Só que às vezes aquelas palavras não pareciam frases ou expressões. Pareciam mais lembranças e pesadelos, quando eu me esforçava ao máximo para evitar os dois. Meus punhos se cerraram cheios de graxa enquanto eu esperava na fila para usar a pia, atento à conversa que se desenrolava atrás de mim e da qual Boyce Wynn participava intensamente. — Cara, as tetas dela parecem duas melancias suculentas. — A fala arrastada dele me arrepiava a nuca, e imaginei os gestos que sabia que ele estava fazendo com as mãos. — É, eu pegaria — concordou o outro garoto, e os dois riram. — Mas ela não dá moral. — Ainda, Thompson. Ainda. Vou ensinar aquela garota a me dar moral. Olhando para frente, a periferia do meu campo de visão ficou encoberta por uma névoa. — Ah, tá bom. Vai sonhando, palhaço. Ela nunca, em dia nenhum, vai olhar para essa sua bunda branca. — E quem precisa do dia? De noite, cara. No escurinho ela vai implorar por mais. O amigo dele riu. — Cara, sério, ela vai simplesmente dizer “Nãooo”. Além do mais, ela nem é tão gostosa assim. — Fala sério, cara, tá maluco? Eu estupro aquela delícia tão rápido... Antes que eu me desse conta do que estava fazendo, virei e meu punho cerrado foi parar no canto direito da boca de Wynn. A cabeça dele voou para trás com o impacto e seus olhos se arregalaram com o choque. Por instinto, eu sabia que era melhor parar por aí, mas de repente havia um círculo de garotos gritando “Briga! Briga!”, e meus membros congelaram conforme seu corpo se inclinava para frente, pronto para me espancar até me deixar no chão. Antes que um de nós pudesse se mexer, Silva nos segurou pelo braço, nos separando e imobilizando. — Que diabos vocês estão fazendo, idiotas? Querem ser expulsos? Eu não desviava o olhar de Wynn, e ele me encarava com um brilho assassino nos olhos. Um fio de sangue brilhava no canto inferior de sua boca. — O que você fez, Wynn? — Silva grunhiu, sacudindo o garoto. Nosso professor de mecânica era cento e dez quilos de pura fúria.


Wynn estreitou os olhos, ainda me encarando, e parecia ter chegado a algum tipo de conclusão vingativa. Ele deu de ombros, como se estivesse indiferente. — Nada, sr. Silva. Tá tudo bem. Silva voltou os olhos para mim, e Wynn levantou lentamente a mão livre para limpar o sangue da boca com o nó do dedo. A adrenalina turbulenta fez meu corpo tremer. — E você... Maxfield? Vai dizer a mesma coisa? O que foi que aconteceu aqui? Balancei a cabeça uma vez e repeti o que Wynn dissera. — Nada. Tá tudo bem. Silva rangeu os dentes e revirou os olhos, mirando o teto ondulado como se Deus pudesse descer e dizer o que fazer com a gente. Sacudindo nossos braços uma vez mais, e com mais força do que antes, ele quase os deslocou da articulação. — Nada de briga. Na. Minha. Oficina. Entenderam, homens? — Ele cuspiu a palavra “homens” como se fôssemos tudo, menos isso. Nós assentimos, mas ele não soltou nenhum dos dois. — Vou ter de conversar com o Bud sobre o problema que causaram aqui? — Silva perguntou a Wynn, que sacudiu a cabeça, os olhos arregalados. Quem quer que fosse o tal Bud, seu nome inspirava medo no cara que inspirava medo na maioria dos alunos do colégio. O sinal soou, e a plateia se dispersou, procurando as enormes pias de alumínio. Silva soltou a gente, mas não saiu do lugar, cruzando os braços musculosos sobre o peito largo e abrindo buracos com os olhos na nossa nuca enquanto nos lavávamos. Peguei minha mochila do compartimento e caminhei rumo à porta lateral, enquanto Wynn saía pela frente com dois amigos. Minha fuga era temporária. Isso eu sabia.

Em um esforço para torturar seus alunos, minha professora de geografia mundial anunciou um trabalho em grupo assim que voltamos das férias de inverno, período em que todos que tinham permanecido na cidade durante o Natal desfrutaram de inusitados quinze centímetros de neve cobrindo a praia, as palmeiras, os hotéis à beira-mar e os barcos de pesca. Em Alexandria, o inverno começava antes do Natal e se estendia até março — com


episódios-surpresa de chuva, granizo e, ocasionalmente, neve, pilhas de neve sendo empurradas para os cantos dos estacionamentos e passando do branco ao cinza, se deixadas para derreter ali em vez de ser carregadas para as caçambas e levadas para longe. Em fevereiro, todo mundo estava cansado de raspar gelo do para-brisa, de tirar neve das calçadas e das entradas de garagem, de acordar com o barulho dos caminhões de cascalho ou dos tratores que removiam o gelo empilhado, cansado do clima constantemente frio e úmido. Aqui a neve era uma poeira, se muito. Qualquer quantidade mensurável provocava espanto. Quinze centímetros eram considerados um milagre. As pessoas andavam surpresas, balançando a cabeça. Os pais mandavam os filhos para fora para fazerem bonecos e anjos na neve com meias nas mãos, porque ninguém tinha luvas ou protetores apropriados. — Diante do nosso “milagre de Natal”, vamos nos unir milagrosamente em equipes para estudar o efeito das mudanças climáticas sobre ambientes e pessoas. — O tom da sra. Dumont era animado demais para a segunda aula do primeiro dia depois das férias. Ninguém queria estar ali, e nenhum entusiasmo nos faria mudar de ideia depois de duas semanas inteiras dormindo e não fazendo nada. — Com o intuito de mostrar como as pessoas se adaptam a mudanças inesperadas, todos pegarão uma letra do chapéu e formarão duplas. — Ela sorria, como se saber que o destino escolheria as parcerias tornasse a tarefa melhor. Todos gememos juntos. Sem se incomodar, ela entregou a Melody Dover um boné de beisebol com o mascote do colégio — surpresa, era um peixe — com a abertura para cima, e Melody tirou um papel antes de passá-lo para a garota de trás. Do último lugar da fileira, eu observava o boné se aproximando. Tirei um F. Conveniente. Quando o boné chegou à última fila, Dumont falou mais alto que as conversas paralelas: — Agora encontrem suas duplas e mudem de lugar! Vocês vão se sentar com esse mesmo colega nas três primeiras semanas de aula do semestre, e no fim desse tempo apresentarão seus projetos para a sala toda! Você só pode estar de brincadeira. Eu tinha feito uma única apresentação para a classe na primavera passada — e tirei zero. Apresentações eram dolorosas de fazer, e igualmente doloroso era assistir às apresentações alheias. Eu pensei em me levantar e sair da aula. Então ouvi do outro lado da sala: — Muito bem, quem é a gatinha que tirou a letra F?


E não consegui me mover. Boyce. Wynn. Ah. Droga. Ele se levantou e começou a arrancar os pedaços de papel da mão dos alunos para descobrir quem era sua dupla. — Você tirou um F? Quem tirou? — Sr. Wynn — Dumont chamou com a expressão séria. Ele deu de ombros. — Não consigo encontrar minha dupla, sra. Dumont. — Os olhos pousaram em Melody, que fez uma leve careta. — É você? — Ele arrancou o papel da mão dela, enquanto ela se opunha. — Não. — Ela pegou o papel de volta com a mesma brutalidade. — Eu tirei o Clark. O namorado dela já estava sentado ao seu lado. Eles nem teriam de sair dos lugares que ocupavam na primeira fileira para trabalharem juntos. Então eu teria de aturar a merda do Boyce Wynn, enquanto o privilegiado Clark Richards faria o trabalho com a namorada gostosa. Obviamente. — Ah, não, não, não... Isso não vai dar certo. — A sra. Dumont se apressou, os olhos em Melody. — Você não pode fazer dupla com o seu... humm, amigo. Quero que todos tenhamos uma experiência de mudança de cultura e ambiente! Transferência e relocação em ação! — Enquanto os três tentavam entender o que ela queria dizer, a professora trocou os papéis de Boyce e Melody. — Pronto. Agora Clark vai trabalhar com Boyce. Vou distribuir as tarefas do projeto em um instante. — Ela parecia acreditar que isso acalmaria Clark, depois de ser informado que teria de trocar de parceiro, a namorada gostosa pelo valentão da turma. — Mas o quê...? — Ele franziu a testa e comprimiu a mandíbula. — Por que a Mel e eu não podemos trabalhar juntos? A sra. Dumont sorriu paciente e deu um tapinha no ombro dele. — Muito bem, quem tirou o F? — perguntou, ignorando completamente o questionamento de Clark. Levantei a mão alguns centímetros acima da carteira, sem dizer nada. Quatro pares de olhos se voltaram para mim. Só a sra. Dumont sorriu. — Venha para frente, Landon. Você vai ficar no lugar do Clark nas próximas três semanas. Pela cara de Clark, foi a mesma coisa que se ela tivesse dito: “Pode pegar a


namorada do Clark durante as próximas três semanas”. — Sorte de idiota, Richards — resmungou Boyce, me empurrando para o canto com a força de seu olhar. De alguma maneira, trabalhar com a namorada de outro cara era mais um ponto contra mim. Peguei a mochila e me dirigi à frente da sala, me sentindo como se tivesse sido condenado a uma injeção letal, em vez de ter sido forçado a desenvolver um projeto com uma garota com a qual eu havia fantasiado pelo menos uma vez. Enquanto Dumont me entregava os textos, Melody pegou um caderno e começou a dividir nossas tarefas — “Melody” do lado esquerdo, “Landon” do lado direito, os dois nomes sublinhados. Ela fez uma linha grossa no meio da página usando a beirada do livro como régua. — Eu faço os mapas — ofereci em voz baixa. Ela comprimiu os lábios e manteve as costas eretas, evidentemente irritada. Ótimo. Melody começou a escrever “mapas” embaixo do meu nome e parou na metade, virando-se para voltar aqueles grandes olhos verdes para mim. — Você sabe... desenhar? Porque eu posso fazer, se você não souber. Eu a encarei. — Sim. Como não dei outras explicações, ela revirou os olhos e resmungou: — Tudo bem. É bom que eu tire uma nota decente nesse trabalho. Trocamos números de telefone e endereços, embora ela tenha deixado claro que não pretendia ir comigo a nenhum lugar que não fosse o prédio do colégio ou a casa onde morava com os pais. A mansão dos Dover ficava um pouco à frente da casa do meu avô na praia. — Ah, é. Maxfield. O Clark disse... — Ela ficou em silêncio, provavelmente por notar minha expressão sombria. Clark era filho de John Richards, o maior construtor de monstruosidades residenciais e condomínios de veraneio da cidade. Ele assediava meu avô desde sempre, tentando comprar sua excelente propriedade à beira-mar. As coisas chegaram ao ápice alguns anos atrás, meu avô disse, quando Richards tentou induzir a prefeitura a desapropriar a área, alegando que o “barraco” de meu avô prejudicava a estética local e que o empreendimento de pesca era um negócio de fachada. Meu avô disse onde ele poderia enfiar a petição bem no meio da reunião do conselho municipal. As tentativas de intimidação perderam força desde que meu pai assumira as finanças da Maxfield Fishing, mas a hostilidade continuava a mesma. Melody pigarreou de forma delicada.


— Humm... Bom, me liga hoje à noite, depois da minha aula de dança. Aula de dança. O que garotas como Melody vestiam para uma aula de dança? Imagens espontâneas invadiram minha mente. Torci um dos braceletes de silicone em meu pulso. — Tá. — Tipo, umas oito horas? — Tá — repeti. Ela revirou os olhos. De novo. O sinal soou e ela se levantou para sair da sala com Clark, que me olhou feio conforme passava um braço sobre os ombros dela. Boyce apareceu do nada atrás dele e me empurrou de volta para a cadeira. — Esquisito — ele disse. — O Richards mata você se encostar um dedo nela. Eu não tinha a menor intenção de tocar na garota. Engraçado como a ameaça me fez querer tocá-la.

LUCAS Acho que meu cérebro reiniciou durante as quatro horas de sono que eu finalmente tive, porque lembrei o que me incomodava e eu não conseguia me lembrar desde sábado à noite. Se Jackie não desistisse do curso, seria reprovada, e só restava um dia para fazer isso, porque o prazo para desistência terminava amanhã. A probabilidade de encontrá-la novamente hoje era pequena. Só me restava uma opção — como monitor da turma, eu podia enviar um e-mail para ela, um educado e informativo lembrete do prazo para desistência. “Cara aluna: talvez você precise cuidar desse importante assunto... fica a dica.” Não importava se ninguém mais no campus receberia esse tipo de aviso individualizado. A administração não costumava mandar alertas específicos, sobretudo em relação à desistência de cursos. Preferiam incluir os avisos nas páginas dos departamentos na internet, ou inseri-los em algum canto daquele documento de inscrição que todo mundo vê, mas ninguém lê, antes de clicar na caixa de “eu concordo”. A crença generalizada: os alunos são responsáveis por cuidar dos próprios horários.


Porque são adultos. Tecnicamente.

Srta. Wallace, Sou monitor do curso de introdução à economia do dr. Heller, cujas aulas aparentemente você deixou de frequentar — de acordo com o registro de frequência e por não ter comparecido na prova da semana passada. Sendo assim, gostaria de lembrar que os alunos não são eliminados automaticamente por faltas, mas devem formalizar a desistência. Os formulários e as instruções estão disponíveis online; os links seguem abaixo. O prazo final para desistência é AMANHÃ. L. Maxfield

Cliquei em “salvar” e fechei meu notebook, planejando enviar o e-mail mais tarde, depois de acrescentar os links. Eu tinha de passar no Starbucks antes da aula para entregar uma cópia da renovação do meu crachá de manipulador de alimentos, ou não poderia trabalhar no turno da tarde. Provavelmente ela também devia ter outras aulas de manhã. Havia tempo. — Ei, Lucas — Gwen chamou, limpando um pouco de pó de café do balcão de granito. Gwen tinha um sorriso de segunda-feira de manhã que ninguém que eu conhecesse era capaz de reproduzir, sobretudo nossa colega Eve, que nunca sorria. — Vai cobrir meu horário hoje à tarde, né? Assenti, pegando um copo de café. — Assim que eu sair da monitoria. Termina às duas. — Você é um amor! — Ela sorriu de alegria e me seguiu para o fundo da loja. — Volto a tempo de você ir para o laboratório. Não pude deixar de sorrir em resposta enquanto deixava a cópia na minha pasta e escrevia um bilhete avisando o gerente que o documento estava lá. — Temos que encontrar uma namorada pra você — Gwen comentou do nada. Engasguei com o café que acabara de colocar na boca, e ela bateu nas minhas costas. — Ah... — gaguejei quando consegui falar. — Valeu, mas tô bem assim. Uma de suas claras sobrancelhas se ergueu, me informando sem palavras o que ela pensava a respeito da minha declaração. — Você é um cara legal, Lucas. — Devo ter feito cara de espanto, porque ela balançou a cabeça. — Confie em mim. Sou especialista em identificar cretinos, e você não é um deles.


Kennedy Moore ocupava sua habitual posição de centro das atenções, rindo sem saber o que a ex-namorada enfrentara dois dias antes. Eu queria saber se ele era amigo do cara de quem eu não conseguia lembrar sem ter de executar mentalmente posições de taekwondo para me acalmar. Deslizei no meu lugar na última fileira e peguei um livro, para me preparar para um teste na aula das onze. Esperando Heller entrar na sala, para Moore e seus amiguinhos sentarem e calarem a boca, rabisquei alguma coisa violenta na margem do livro. Eu sempre me perguntava o que as pessoas que acabavam com meus livros usados pensavam quando viam os desenhos nas páginas. Normalmente eram só esboços — frutos de pensamentos aleatórios. Às vezes eram ilustrações do material impresso. Raramente, muito raramente, eram rostos ou partes do corpo. Heller entrou pela porta da frente, me tirando daquela reflexão inútil. Desde que Jackie abandonara o curso, a aula se tornou incrivelmente chata. Eu sabia a matéria de cor. Conhecia todas as piadas e histórias engraçadas dele. Os toques pessoais que incorporava ao conteúdo o tornavam um professor fantástico, mas, ainda assim, três vezes era demais, e quatro beirava a tortura. — Quando todos se sentarem, podemos começar — ele disse. Do meu ponto de vista no fundo da sala, todos estavam em seus lugares, mas era evidente que ele se dirigia especificamente a alguém com esse comentário. Meu Deus. Fiquei olhando. Eu não conseguia fazer outra coisa. Jackie — o rosto corado e os olhos arregalados fixos em Heller — estava de pé a alguns metros de mim, perto da porta no fundo da sala. De repente, como se tivesse sido empurrada, ela desceu três fileiras e se acomodou no único lugar vazio... exceto pela cadeira ao meu lado. Que teria sido a mais próxima. Talvez ela não tivesse visto o lugar. Ou me visto. Talvez tivesse. O que ela está fazendo aqui? Ainda bem que eu já tinha assistido a essa aula três vezes e poderia regurgitá-la tranquilamente na monitoria mais tarde, porque não consegui me concentrar em nada do que Heller disse nos cinquenta minutos. Era tudo um blá-blá-blá acompanhado de linhas rabiscadas no quadro branco. Jackie não parecia mais concentrada do que eu, embora eu tenha deduzido que sua falta de atenção se devia a motivos bem diferentes do choque que sua chegada provocara em mim. Ela parecia não conseguir levantar a cabeça sem


dar uma olhada nas costas do ex-namorado, o que a obrigava a olhar para o quadro — estivesse Heller ou não escrevendo ou desenhando gráficos —, ou para a página em branco de seu caderno, que permaneceu vazia durante a aula toda. Ela está aqui para desistir, pensei por fim, relaxando. Era isso que ela estava fazendo, abandonando o curso. Chegou muito tarde para falar com Heller antes do início da aula, então estava para pegar a assinatura dele no canhoto de desistência quando a aula terminasse. Reforçando minha conclusão, ela desceu até a frente da sala (depois que o ex passou pelo corredor central sem nem notar sua presença). Após uma conversa em voz baixa com Heller, ela o esperou falar com dois outros alunos e o seguiu para fora da sala. Eu devia ter me sentido aliviado. Não tinha mais de assumir nenhuma responsabilidade por ela. Não precisava mais enviar o e-mail que redigira de manhã. Não precisava vê-la nunca mais. Então de onde vinha a convicção de que abriria mão de algo insubstituível se a deixasse desaparecer de minha vida? A resposta era só outra pergunta. Que outra opção eu tinha?

Como na festa de Halloween, eu a vi no momento em que ela entrou, ocupando seu lugar no fim da minha fileira. Ela era uma força invisível, atraindo algo igualmente oculto dentro de mim. Eu me perguntei sobre o campo magnético que conseguimos criar entre nós e se ela tinha sentido essa força quando se aproximou. Talvez só eu sentisse. Ela estava com a ruiva bonita que reconheci vagamente da festa, aonde chegaram juntas — Jackie com a provocante fantasia vermelha, e a amiga vestida de lobo, com orelhas peludas, cauda fofinha, macacão justo... e óculos de vovó na ponta do nariz. Detalhe que não entendi até um cara alto de calça jeans e sem camisa, com uma capa vermelha com capuz, se aproximar correndo, pegá-la no colo e carregá-la para a pista de dança. Sempre que chovia as pessoas preferiam não sair do campus entre as aulas, e o Starbucks do centro estudantil ficava lotado. Estendendo-se por entre dois displays e ultrapassando a minúscula área das mesas, onde todos os lugares estavam ocupados, a fila continuava até o corredor. O movimento era intenso. Eu não tinha tempo para me distrair, mas acabei fazendo isso quando fiquei observando a aproximação de Jackie e da


amiga, um passo de cada vez. A amiga se inclinou para o lado para dar uma olhada no tamanho da fila e decidiu que demoraria demais. Pensei que as duas iriam embora, mas ela deu um abraço em Jackie e em seguida saiu sozinha. Jackie não notou minha presença, mas não que ela estivesse prestando atenção em alguma coisa específica. Seu olhar vazio passeava pelos outros clientes ou pelo lado de fora através da janela distante. A boca formava uma linha reta, a expressão pensativa em contraste com o sorriso de dia chuvoso no meu caderno de desenhos. Observá-la fazia meu coração doer como se ele estivesse conectado ao estado emocional dela, em vez de se dedicar à sua função principal — me manter vivo. Jackie deu uma olhada no celular e passou um ou dois minutos lendo mensagens ou uma página na internet, depois voltou a olhar para o nada, se aproximando passo a passo com a fila e escondida atrás de um cara alto que bloqueou minha visão, me deixando grato por isso. Instintivamente eu soube que, se ela levantasse a cabeça e me visse agora, viraria e iria embora. Por fim, o cara na frente dela fez o pedido, pagou e seguiu para o balcão de retirada. — Próximo — falei com gentileza, despertando-a de seus pensamentos. Seus lábios se abriram, mas as palavras que lhe sairiam da boca se dissolveram, não ditas. Um rubor incendiou seu rosto. Sustentei seu olhar — e notei, estando agora mais próximo, que seus olhos estavam um pouco vermelhos, como se ela tivesse chorado ainda há pouco. Certamente Heller não a fizera chorar. Eu sabia que ele podia ser durão quando necessário, mas não conseguia imaginá-lo sendo capaz de fazer essa garota chorar porque queria desistir do curso. Meu coração ficou apertado outra vez, sintonizado ao dela. Na cabeça de Jackie, eu estaria eternamente associado àquela noite. Nada eliminaria isso. Eu a assustava ou a fazia lembrar — e ela queria fugir das duas coisas. E como eu poderia culpá-la por isso? A garota atrás dela na fila pigarreou, impaciente. — Já decidiu o que vai pedir? — Eu a trouxe de volta à realidade com essa pergunta. Acabou. Eu queria que ela pudesse ler meus pensamentos. Ele não está aqui. Nós não estamos lá. Então Jackie fez o pedido, sua voz um sussurro distorcido que, de alguma forma, eu entendi. Escrevi o nome dela em um copo e passei o pedido a Eve. No fim da noite de sábado me ocorreu que eu a chamara de Jackie, quando não tinha motivo nenhum para saber seu nome, mas agora também não tinha motivo para fingir que não sabia. Quando levantei a cabeça, ela estava olhando para minha mão direita, ainda


protegida por uma fina camada de gaze. A maior parte do sangue no sábado era dele, como eu havia lhe explicado — mas não todo. Quando cheguei no meu apartamento e lavei as mãos, me dei conta da força com que eu havia batido no cara pelos cortes e esfolados nos meus dedos. Os ferimentos eram gratificantes. Prova de que não moderei minha força. Não era à toa que ele tinha caído e ficado no chão. Eu cobrei a bebida e ela me entregou o cartão — o mesmo que eu usara para abrir a porta do dormitório. A garota sorridente sob a película protetora não combinava com as expressões que eu tinha visto nos últimos dias. — Está tudo bem com você? — perguntei, sem me dar conta do significado cifrado das palavras até soarem entre nós. Droga. — Estou bem — ela respondeu, a voz ainda trêmula. Quando ela pegou o cartão e o recibo, meus dedos tocaram os dela como se tivessem vontade própria. Jackie puxou a mão como se eu a tivesse queimado, e lembrei como, no sábado à noite, ela evitara todo e qualquer contato físico quando passou por mim para subir para o quarto. Era o meu toque que ela temia agora, ou o de todos os caras? Eu queria ser aquele que a faria relaxar e esquecer, que lhe mostraria a gentileza e o respeito que ela não tinha recebido do cara que tentou violentá-la ou, francamente, do ex-namorado. Eu nunca seria esse cara para ela, e eu era o maior dos idiotas por sonhar com isso. — Obrigada — disse Jackie, com um olhar confuso e desconfiado. A garota atrás dela se aproximou, fazendo o pedido por cima de seu ombro, embora eu ainda não a tivesse chamado. Jackie se encolheu, evitando o contato físico. Engolindo uma resposta para a garota impaciente e registrando seu pedido, eu me lembrei de que estava trabalhando, de que estávamos com a casa lotada, e, por mais que eu quisesse fazer toda essa gente desaparecer, elas continuariam ali. Nossos olhares se encontraram mais uma vez antes de ela ser engolida pela multidão do outro lado do balcão, onde Eve fazia sua mágica com velocidade alucinante e olhava furiosa para quem se atrevesse a reclamar da espera. Jackie pegou sua bebida e saiu sem olhar para trás, e eu comecei a me perguntar quantas vezes a perderia de vista, certo de que essa seria a última.


8

LANDON O dia começou uma merda e só piorou. Eu estava na metade do caminho para o colégio quando a umidade da manhã se transformou em uma tempestade imprevista. Em um minuto, minhas roupas pareciam trapos mornos e úmidos no ar pegajoso, e, no seguinte, uma massa de nuvens se juntou, se abriu e despejou sobre mim a chuva que me acompanhou pelo restante do caminho até o colégio. Quando empurrei a porta dupla, me amaldiçoei por não ter dado meia-volta e voltado para casa no minuto em que começou a chover. Eu não estaria mais encharcado nem se tivesse me jogado no mar de tênis e tudo. As pontas dos meus cabelos pingavam sem parar, como uma torneira que não foi totalmente fechada. Os pingos se transformavam em fios que escorriam da barra do meu moletom ensopado, e da minha calça jeans para os tênis. Meus Vans guinchavam e esguichavam água a cada passo meu no corredor. Atribuí meu erro de julgamento e, pois é, a vontade de ir para o colégio — uma novidade nos últimos dezoito meses — a Melody Dover. Nas primeiras duas semanas do nosso projeto, só trabalhamos juntos na sala de aula. E “juntos” significa que sentamos lado a lado. Nós mal nos falávamos, e eu não podia culpá-la por isso. Eu tinha celular, mas não computador, por isso ela anotou “PowerPoint” embaixo do próprio nome. Enquanto líamos individualmente sobre padrões climáticos e distribuição geográfica, comecei a esboçar os mapas e ela procurou imagens na internet. Finalmente, tínhamos de nos reunir para juntar nossas partes do projeto, fazer a parte escrita e ensaiar a apresentação. Na noite passada, ela relutantemente me convidou para ir à sua casa. Tomei banho e troquei de roupa antes de seguir caminhando pela praia. O vento que soprava do golfo era frio e seco, despenteando meu cabelo ainda úmido e criando ondas e nós nas pontas. O vento também sacudia as folhas do caderno de desenhos, no qual fiz alguns esboços topográficos, ameaçando rasgá-las e levar meu trabalho para a água. Encolhi-me dentro


do moletom, um braço sobre o caderno e as mãos nos bolsos, odiando a sra. Dumont, Melody Dover e quem quer que fosse o palhaço que tinha decidido que geografia devia fazer parte do currículo do nono ano. Melody atendeu à porta de moletom cor-de-rosa e meias brancas macias. — Oi. Quer uma Coca ou alguma outra coisa? — Sem esperar pela resposta, ela fechou a porta atrás de mim e seguiu para o interior da casa. Eu a acompanhei, me perguntando a respeito da palavra “PINK” estampada em seu traseiro. Ergui uma sobrancelha diante da estampa redundante enquanto apreciava o estreito quadril balançando suavemente, me conduzindo até eu perceber que estávamos em uma cozinha iluminada do tamanho da casa toda do meu avô. Ela se abaixou para pegar dois refrigerantes gelados de uma prateleira no imenso refrigerador e eu me detive, ainda com os olhos fixos no alvo. “Pink” era a minha mais nova palavra favorita. Conduzindo-me até a bancada de granito, Melody me deu uma das latas e acomodou a bunda perfeita sobre uma banqueta de couro. Então virou o notebook para mim e apontou para a banqueta a seu lado. Eu me sentei, tentando mudar a direção dos pensamentos. Geografia agora era ainda menos interessante. Não pensei que isso fosse possível. Ela falava, e eu não entendia nada. O vento devia ter embaralhado meu cérebro. O vento, ou a palavra “pink”. — Landon? — Hum? — Os mapas. — Seu tom revelava que ela não estava nada animada com a ideia. Abri o caderno de desenhos e mostrei o primeiro. Seu queixo caiu. — Ai, meu Deus. — O que foi? Seus cílios se levantavam e abaixavam conforme ela folheava as páginas. — Uau. Você é... você é um artista? Dei de ombros, deixando escapar um suspiro aliviado. Ela virou mais uma página. — Ah, meu Deus — repetiu. — São incríveis! Esses desenhos são pessoinhas? E árvores? Uau. — Melody foi virando as páginas lentamente até chegar a uma em branco. Então fez algo que eu não esperava que fizesse. Voltou para a capa do caderno e o abriu. Estendi a mão para alcançá-lo, não para arrancá-lo de maneira rude, mas apreensivo por ela estar prestes a examinar desenhos que eu nunca tinha mostrado para ninguém. — Ah, são só esses mapas...


Ela estava boquiaberta outra vez, balançando um pouco a cabeça como se não conseguisse acreditar no que via. Senti o rosto esquentar quando seus dedos deslizaram por um desenho detalhado de uma gaivota limpando as penas, depois outro do meu avô dormindo em sua poltrona favorita. Recolhi a mão, apoiei-a sobre as pernas e esperei que ela examinasse cada desenho até chegar ao primeiro mapa. — Você devia me desenhar. Pisquei e pigarreei, e ela corou levemente. — Ah. Claro. — Quem é esse? — perguntou uma voz feminina, assustando nós dois. Nós nos afastamos e eu quase caí do banco. O queixo de Melody enrijeceu, mas sua voz era pura passividade. — Este é o Landon, mãe... meu parceiro no projeto de geografia. A mãe dela me olhou, e de repente pensei nas roupas usadas, no cabelo despenteado, no relógio barato de pulseira de couro e na bandana cinza desbotada que eu tinha enrolado no pulso. — Ah, é? — Uma sobrancelha se ergueu quando os olhos verdes como os de Melody se voltaram para a filha. — Pensei que o Clark estivesse na sua turma de geografia. — A sra. Dumont definiu as duplas. — Uma leve nota de desafio. E uma desculpa também. Não é minha culpa, não foi escolha minha ele ser meu parceiro. — Humm — a mãe dela disse. — Bem, me avise se precisarem de alguma coisa. Estarei no meu escritório, do outro lado do corredor. — Ela se virou e então desapareceu pela porta que podíamos ver da bancada. Melody revirou os olhos, mas dessa vez não foi para mim. — Juro por Deus, ela é um pé no saco. Pais são um saco. Eu sorri, e ela sorriu de volta, e meu coração pulou uma batida. Droga. Tão linda. Tão fora do meu alcance. Tão namorada de outro cara. Trabalhamos no projeto por duas horas, tempo em que ela mandou cinco mensagens para Clark e atendeu ligações de duas amigas. Também fomos espionados pela mãe dela a cada quinze ou vinte minutos. Por fim, ela me acompanhou até a porta e olhou por cima do ombro enquanto eu fechava o zíper do moletom. — Então, talvez... eu possa ir à sua casa na próxima vez? — A voz dela era suave. Esse desafio seria um segredo entre nós. — Lá minha mãe não vai nos interromper a cada cinco minutos. A menos que a sua seja pior. Coisa que eu duvido.


Engoli em seco e balancei a cabeça. — Não. Quer dizer, sim, você pode ir. Eu havia acabado de convidar Melody Dover para ir à minha casa... onde eu nem tinha um quarto de verdade? Eu era um completo idiota? Sim e sim. Mas eu não podia voltar atrás. E não conseguia tirar da cabeça a imagem de Melody no meu quarto — que na verdade era uma cama e nada mais. Hoje de manhã pulei da cama na primeira vez que o alarme do celular tocou. A tempestade repentina acelerou ainda mais meus passos já apressados quando passei pela porta, por isso cheguei cedo demais, dez minutos antes do primeiro sinal. Normalmente, a entrada dos alunos no prédio só era permitida depois do primeiro sinal, mas estava chovendo. Seria cretinice nos manter do lado de fora. Meus tênis guinchavam sobre o linóleo, ecoando nos corredores quase vazios, e eu não precisava olhar para trás para saber que deixava um rastro de pegadas molhadas. Meus passos eram tão barulhentos que não ouvi ninguém se aproximando por trás, e estava tão distraído com a aula de geografia, a segunda do dia, que meus habituais instintos de autopreservação não funcionaram. — Deu um mergulho no mar, Maxfield, ou só mijou nas calças? Não parei nem me virei, mas também não corri. Alguma coisa nos animais raivosos e nos imbecis com sede de poder os faz perseguir tudo que corre. Ele agarrou minha mochila, e eu quase me livrei dela e segui adiante, mas alguma coisa me impediu de me rebaixar tanto assim. Virei para encará-lo, e, obviamente, ele estava com dois amigos. E estava quase tão encharcado quanto eu. — O que você quer, Wynn? — Eu soava mais controlado do que de fato me sentia. Meu coração estava disparado, mas não dava para perceber que eu tremia. — O que eu quero? — Wynn deu um passo à frente, ainda segurando a alça da minha mochila, os músculos do pescoço salientes e as narinas dilatadas como as de um touro prestes a atacar. — Quero que você pague pela gracinha na aula de mecânica. Quero fazer você sofrer, sangrar e chorar como a vadiazinha que é. Estreitei os olhos. O caramba. — Você até pode me fazer sangrar, mas nunca vai me fazer chorar. Chorar é coisa de covarde que não consegue brigar sem a ajuda das suas putas. — E indiquei os amigos dele com o queixo. Um deles grunhiu. Então uma professora apareceu no corredor. Ela diminuiu a passada, como se quisesse analisar de longe os detalhes da cena antes de decidir o que estava


acontecendo. Wynn soltou a alça da minha mochila e sussurrou: — Tô de olho em você, bundão. Nem sempre vai ter alguém por perto para evitar a surra que você tá merecendo. — E esbarrou no meu ombro ao passar por mim.

LUCAS Dei uma olhada no meu e-mail sem esperar nada muito importante. A ideia era apagar o rascunho da mensagem para Jackie sobre a desistência do curso, já que não fazia mais sentido. Deletei a mensagem — mas não pelo motivo esperado. Dois e-mails se destacaram dos outros seis como se estivessem grifados. Um era do Heller — assunto: Jacqueline Wallace. O outro... era de JWallace. Abri primeiro a mensagem do Heller.

Landon, A aluna acima está matriculada na disciplina da qual você é monitor. Ela perdeu algumas aulas, inclusive, e infelizmente, a prova intermediária. A aluna deseja recuperar a nota, e, para que isso seja possível, permiti que ela substituísse a prova por um projeto de pesquisa (informação anexa). Passei seu e-mail a ela e a orientei a entrar em contato com você para começar o trabalho. Antes que seu senso de justiça tome a frente de tudo, note que o projeto vai exigir muito mais que a prova, o que significa que ela não está sendo favorecida. (Nem eu, porque vou ter de avaliar essa coisa quando ela terminar. Parece que a aluna enfrentou algum problema parecido com o de Carlie recentemente, e, depois de ter visto minha filha se autodestruir um pouco antes de voltar à tona, sinto uma empatia renovada por alunas emocionalmente perturbadas.) Imagino que ela vá precisar de orientação individual para recuperar o conteúdo perdido antes da terceira prova. Se ela não conseguir entregar o que pedi, ficará com a nota que conseguir somar até o fim do semestre. Estou pedindo que a ajude com isso dentro dos limites de suas obrigações de monitor, mas a aluna deve concluir o trabalho sozinha. Espero que no futuro ela dê mais importância à formação acadêmica do que a um idiota qualquer. CH

Reli o e-mail. Duas vezes. Ela e Moore haviam terminado, mas ela não tinha desistido do curso. Jackie não era mais namorada de Moore, mas ainda era aluna da minha monitoria.


Ela quase tinha desistido do pedido ao me ver do outro lado do balcão do Starbucks hoje, o que não significava exatamente a compreensão de que o cara que espancara seu agressor no sábado à noite também era o monitor de sua turma de economia. Meu endereço de e-mail era um ambíguo LMaxfield. — Filho da puta — eu disse a Francis, que me devolveu uma mistura de bocejo e miado. Eu não devia me importar. Não devia me importar. Mas me importava.

Caro sr. Maxfield, O dr. Heller me disse para procurá-lo para falar sobre um projeto de pesquisa de macroeconomia que ele quer que eu faça. Perdi duas semanas de aula depois de um rompimento inesperado, o que significa que também perdi a prova intermediária. Sei que isso não justifica minhas faltas. Farei o melhor possível para concluir o projeto e recuperar o conteúdo perdido o mais depressa que puder. Por favor, me diga quando está disponível e que outras informações devo enviar. Obrigada, Jacqueline Wallace

Digitei uma resposta imediatamente, explicando que eu não precisava saber seus motivos para faltar às aulas, e sugeri quando e onde poderíamos nos encontrar. Coisas que minha resposta não deveria ter provocado, mas provocou: (1) Me fez parecer um babaca. Um babaca superior e insensível. (2) Que não se importava com o fato de ela ter tido o coração partido por um verdadeiro babaca. (3) Assinei LM. (4) Isso me fez parecer um babaca. Fechei o notebook e fiquei andando de um lado para o outro no apartamento, e acabei ganhando um olhar atravessado do meu gato, que provavelmente nunca teve problemas com as garotas — porque aceitava o fato de ser um babaca autossuficiente que se recusava a ter envolvimentos emocionais. Eu buscava esse distanciamento desde os dezesseis anos e acreditava ser meio que perito no assunto. Então parei de repente e percebi que havia descido até a metade do buraco do coelho antes de me dar conta de que estava caindo. Eu não queria simplesmente essa garota. Eu me importava com ela. Eu quis destruir o cara no sábado à noite, bater nele até o cretino nunca mais conseguir levantar, e, se ela não tivesse feito barulho dentro da caminhonete, eu poderia ter feito exatamente isso. Mas que inferno.


Sentei e abri o notebook de novo. Alguns minutos depois, minha caixa de entrada soou. Eu a irritara. Era evidente. Ela me contou que era monitora no ensino fundamental, mas não revelou a matéria. Depois escreveu: “Tenho certeza de que conseguirei recuperar as aulas perdidas por conta própria”. Ela assinou Jacqueline, não Jackie. Enquanto vestia shorts e camiseta, reli a mensagem várias vezes analisando cada nuance, procurando uma abertura — um ponto a partir do qual pudesse mudar o rumo. Com os pensamentos confusos, amarrei os tênis de corrida e me apressei escada abaixo. Eu ia castigar o chão sob os meus pés até tirá-la da cabeça ou encontrar uma solução.

Eu não podia contar a ela por e-mail que eu era o cara do sábado à noite. Jackie tinha medo dele, mas precisava de mim para ser aprovada em economia. E saberia assim que nos encontrássemos, claro. Minha única esperança era convencê-la de que, como monitor da turma, eu merecia sua confiança. Usando Jacqueline em vez de srta. Wallace, sugeri uma hora para nos encontrarmos e acrescentei: “Você é monitora de que matéria?” Seu e-mail seguinte foi um chute no meu traseiro, porque ela começou me chamando de Landon. Ela devia ter obtido essa informação com o Heller. Ninguém mais no campus me chamava pelo meu primeiro nome, que eu deixara em casa aos dezoito anos. Merda. Concentrei-me no restante da mensagem, na qual ela revelava que tocava contrabaixo acústico. Pensar naqueles dedos mágicos tirando música de um instrumento que tinha minha altura fez meu corpo enrijecer. Eu precisava de outra corrida e de um banho mais frio do que aquele que tinha acabado de tomar. Depois de constatar que nossos horários não seriam fáceis de coordenar, e com a intenção de não afugentá-la por completo — pelo menos foi o que eu disse a mim mesmo —, me ofereci para mandar as informações por e-mail e conduzir a monitoria online por enquanto. Eu não disse a ela que preferia ser chamado de Lucas, em vez de Landon. Não disse que a observava em silêncio havia mais de dois meses. Não disse que era o cara que testemunhara o ataque que ela preferia esquecer e também que o havia interrompido. Não disse que era o cara cujo toque a fizera se encolher e recuar — mesmo do outro lado


do balcão do Starbucks, dois dias atrás. Nós conversamos por e-mail durante os dois dias seguintes. Mandei a ela o conteúdo que recebi de Heller, esclarecendo algumas coisas para as quais ele usara um jargão econômico pesado demais para uma aluna do primeiro semestre. Fizemos piadas sobre sistemas de troca nos quais a cerveja serve de moeda para pagar a ajuda dos amigos. Passei a esperar ansioso pelo nome dela na minha caixa de entrada: JWallace — e então, na quarta-feira de manhã, a realidade me acertou, duramente e em cheio.


9

LANDON Eu estaria sozinho quando Melody chegasse, porque meu pai e meu avô tinham uma reunião na cidade com o contador, a quem meu pai se referia com adjetivos como “vigarista” e “picareta”. Quando não o chamava de algo ainda mais ofensivo. — Trabalho com o Bob desde que você usava fraldas! — meu avô resmungou pela manhã. — Então ele teve várias décadas para tirar a parte dele dos seus lucros. É hora de dispensar o sujeito. — Não vou fazer uma coisa dessas! Se você tivesse ficado por aqui, talvez soubesse que muitas pessoas não são criminosas como as que conheceu em Washington. Na opinião do meu avô, Washington era uma “cisterna transbordante de negócios escusos”, e o fato de seu filho ter escolhido morar e trabalhar lá o corrompera. Não esperei para ouvir a resposta do meu pai. Eu tinha certeza de já ter testemunhado essa discussão antes. Muitas vezes. Peguei uma barra de proteína depois de beber um gole de suco de laranja direto da embalagem, já que eles estavam ocupados demais para notar, e saí para ir ao colégio. Atento à presença de Wynn ou de seus amigos valentões, parei quando passava diante da escola de ensino fundamental. Um garotinho descia da caminhonete da mãe, mas errou o salto, tropeçou na calçada e caiu de cara no chão. A cabeça do menino quicou no cimento, e a mãe gritou o nome dele. Corri até lá e me ajoelhei ao lado do garoto, levantando-o quando ele já tomava fôlego para o berro que daria início ao escândalo. Seu nariz estava esfolado na ponta e jorrava sangue, mas não vi nenhum outro ferimento. Não havia cortes na testa nem dentes no chão. — Ai, meu Deus, Tyler, ai, meu Deus! — A mãe se apressou para perto do menino tirando lenços da bolsa, os olhos arregalados. Ela pressionou um lenço contra o nariz da criança, liberando o grito para o qual eu tinha me preparado. Os pulmões do menino funcionavam bem, sem dúvida. — Quanto sangue! Ai, meu Deus... eu devia ter parado


mais perto! — ela disse, tremendo e chorando, as lágrimas lhe escorrendo pelo rosto. — Hum, acho que o nariz dele pode ter quebrado... É melhor não apertar com tanta força. Ela afastou a mão que segurava o lenço. — Mas... o sangue... Peguei dois lenços da mão dela e os coloquei sob o nariz da criança. — Segura aqui, cara. — Ele me encarou, mas fez o que eu disse, os soluços morrendo lentamente. — Vai ficar tudo bem. Eu quebrei o nariz jogando hóquei alguns anos atrás. O rinque ficou todo sujo de sangue e minha mãe quase enfartou, mas eu fiquei bem. Não é grande coisa. O garoto estendeu os braços para a mãe, que o abraçou. — Obrigada — ela disse. — Sua mãe deve ter muito orgulho de você. Poucos garotos da sua idade teriam feito isso. Eu assenti e me levantei, murmurando: — Não foi nada.

O restante do dia passou sem grandes acontecimentos, ocupado pelo meu esforço em evitar Boyce Wynn e não ficar olhando para Melody Dover na sala de aula, mesmo depois de ela ter cochichado que iria à minha casa depois do colégio. Hesitante com relação aos sussurros e ao sigilo — éramos parceiros em um projeto, afinal —, olhei rapidamente para o namorado dela. Ele me encarou do outro lado da sala, e Wynn sorriu como se soubesse de alguma coisa que eu não sabia. Não era uma expressão que eu queria ver naquele rosto. Pouco antes das quatro da tarde, Melody bateu na porta de casa. Eu a deixei entrar, tenso por pensar em como ela reagiria ao lugar que o pai do namorado chamava de barraco, prejuízo à estética local e coisas piores. Os pais dela deviam pensar o mesmo. E os amigos também. Eu espalhara o material para o projeto sobre a mesa da cozinha, na esperança de que ela não perguntasse onde ficava meu quarto — mas o plano não deu certo. — Então, onde fica seu quarto? — ela perguntou logo depois de eu oferecer um refrigerante e termos ido pegá-lo na cozinha. Merda, pensei, abrindo a porta da despensa e me preparando para o ridículo.


— Uau! — Melody arregalou os olhos. — É tão pequeno! E... aconchegante... Ela se sentou na beirada da minha cama, e meu coração disparou. Melody Dover está sentada na minha cama. Seus olhos passeavam pelos livros do colégio e pelos de ficção enfileirados nas prateleiras. Ela virou para olhar para a parede oposta, meio coberta por desenhos como os que vira no meu caderno algumas noites antes — mas melhores. — Isto aqui é a coisa mais legal de todos os tempos. É como uma... caverna de artista — ela sorriu. — Podemos ficar aqui? — Sem esperar por uma resposta, Melody passou a alça da bolsa do notebook por cima da cabeça e engatinhou até a cabeceira da cama. — Ah, claro... Quando meu pai e meu avô chegaram em casa, estávamos sentados lado a lado encostados em uma pilha de almofadas, trabalhando na bibliografia. Eles discutiam como se retomassem a conversa de onde eu os deixara hoje de manhã, como um filme pausado. Meu rosto queimou quando pararam na frente da porta do meu quarto e olharam para dentro com a mesma expressão de choque. Pelo que pareceu uma eternidade, nenhum dos dois disse nada. — Vou fazer o jantar — meu avô anunciou depois da pausa, se afastando da porta. Meu pai grunhiu e seguiu na direção oposta. Os olhos claros de Melody se desviaram da porta para mim. — E a sua mãe...? Balancei a cabeça. — Ela... ela morreu. — Ah. Isso é terrível. Faz pouco tempo? Foi por isso que você se mudou pra cá? Assenti, preferindo não elaborar, fazer contato visual ou falar. Meus punhos estavam cerrados sobre as pernas. Por favor, não pergunta. Quase pulei quando ela tocou meu braço, bem em cima das faixas que hoje eu usava no pulso. Seus dedos roçaram minha mão. — Eu sinto muito. Ela lamentava o fato de eu ter perdido minha mãe, como todo mundo fazia. Eu não podia responder “tudo bem”. Porque não estava tudo bem, nem nunca estaria. Mas eu não podia ficar remoendo a perda da minha mãe sentindo a mão macia de Melody sobre a minha, vendo as unhas pintadas de um azul metálico, elétrico, como o de um carro esportivo. Não conseguia pensar em nada que não fosse o lugar onde a mão dela repousava, e sua proximidade com outras partes agora totalmente despertas.


Dobrando os dedos, ela roçou as unhas no dorso da minha mão e, alguns centímetros dali, meu corpo reagiu, endurecendo intensamente. Rezei para que ela não visse. Eu estava com medo de me mexer. — Ela vai ficar pra jantar? — meu avô perguntou da porta, e nós demos um pulo e nos afastamos com um movimento brusco. O notebook balançou sobre as pernas dela. — Ah, não, obrigada. Tenho que voltar logo pra casa. — O rosto dela estava tão vermelho quanto o meu. Então o namorado mandou uma mensagem de texto perguntando onde ela estava, e Melody mentiu, dizendo que estava em casa. — Eu sinto muito mesmo pela sua mãe, Landon. — Ela se inclinou e beijou meu rosto, e todo o meu corpo pegou fogo. Era desconfortável e incrível, uma sensação que me paralisava como um dardo com a ponta envenenada e me enchia de brasas e chamas. Eu não conseguia pensar direito. Melody deslizou até a beirada da cama e guardou o notebook na mochila. Eu a acompanhei até a porta da frente em silêncio, sentindo seu beijo como uma marca em meu rosto.

A briga, quando aconteceu, foi rápida e suja, sem o testemunho de nenhum professor. Chovia de novo na hora do almoço, e eu não estava disposto a ficar do lado de fora, então tive a infeliz ideia de ir ao laboratório de informática na biblioteca para dar uma olhada no PowerPoint que Melody havia montado. Nossa apresentação aconteceria em dois dias. Dobrei um corredor e lá estava ele — com seus capangas, entre eles Clark Richards. O principal puxa-saco de Wynn, Rick Thompson, fazia o papel de vigia. — Ei, Maxfield. É hora de pagar a sua dívida — Wynn disse sem emoção, como se anunciasse a previsão do tempo. Em seguida seu punho encontrou meu rosto quase que em câmera lenta, como meus movimentos. Não consegui recuar rápido o bastante para evitar o golpe, e ele me acertou em cheio no queixo. Meus dentes se chocaram e fogos de artifício explodiram atrás dos meus olhos. Eu cambaleei para trás e ele continuou. — Você me acertou na oficina, filho da puta. Aquela merda não foi legal. Tenta me bater agora que tô prestando atenção. Tive sorte e bloqueei o soco seguinte, mas, quando ele passou um braço em torno do


meu pescoço e me puxou para baixo com uma gravata, eu soube que aquilo compensaria o soco perdido. Virando para me soltar da gravata, acertei o queixo dele com o punho direito, enquanto o esquerdo encontrava seu rim. Eu estava determinado a não facilitar essa cobrança de dívida. Mais um movimento de lutador, e eu estava encrencado mais uma vez. Ele acertou a lateral da minha cabeça e, em seguida, meu estômago. — O que foi, filhinho da mamãe? Seu esquisito de merda. — Meus ouvidos apitavam e as provocações se tornaram quase incompreensíveis, mas ele continuou falando como se procurasse um botão do pânico. — O papai nunca te ensinou a brigar, é? Ele é uma bichona como você? — Eu não conseguia girar e encontrar a posição correta para agarrálo ou lhe acertar um soco, e já tinha perdido as contas de quantos ele tinha acertado em mim. — Acho que a sua mãezinha precisa de um homem de verdade. Talvez eu deva ir fazer uma visitinha. E foi isso. Com um rugido, abri os dois braços e me soltei, enrosquei um pé no tornozelo dele e o derrubei no chão. Pulei em cima dele e nem me dei o trabalho de imobilizá-lo antes de começar a usar os dois punhos. Eu não enxergava nada. Os sons eram abafados. Só sentia raiva, e ela se sobrepunha a todo o resto. Bati tantas vezes em seu rosto e nas laterais de sua cabeça que minhas mãos ficaram dormentes. Queria espancar até nocauteá-lo, mas sua cabeça dura me impedia. Eu o agarrei pelo cabelo e bati sua cabeça no chão. Ele se livrou de mim com um rugido parecido com o meu, girou como um louco, um olho já roxo e meio fechado. Rolei e fiquei de pé conforme arfava, mas, antes que eu pudesse atacá-lo novamente, Thompson avisou: — Professores! A briga havia conquistado uma plateia, notei. Outros alunos nos cercavam, escondendo a cena sem querer. Nós dois estávamos em pé nos encarando, ficando eretos lentamente, as mãos tensas, mas próximas ao corpo. — O que está acontecendo aqui? — a sra. Powell perguntou, se aproximando. — Brigar é uma transgressão que pode ser punida com expulsão! O sr. Zamora passou por entre os espectadores e se colocou atrás dela enquanto Wynn, com o rosto tão castigado quanto eu sentia o meu, respondeu impassível: — Não estávamos brigando. Zamora apontou para o corredor. — Para a diretoria. Agora. Tentei me importar com o fato de estar prestes a ser expulso, mas não consegui. A


verdade é que precisei de todo o meu autocontrole para caminhar tranquilamente rumo à direção, em vez de pular em cima de Wynn e acabar de vez com ele. Minutos mais tarde, meu corpo todo começava a doer. O rosto doía. Os ouvidos apitavam. Meu abdome parecia ter encarado quatro horas de exercício sem intervalo. A visão turva era consequência do sangue no olho, que começava a clarear conforme eu piscava. Resisti à náusea quando Ingram olhou para nós por cima da mesa enorme, onde nenhuma pasta ou recado da recepcionista se atrevia a ficar fora de ordem. O garoto ao meu lado parecia indiferente à ameaça sentada a poucos metros de nós, mas suas mãos agarravam os braços da cadeira. — Neste colégio temos tolerância zero com brigas. — Ela se deteve, aguardando a informação ser absorvida. Minhas mãos pegajosas e sujas de sangue pressionavam minhas coxas com força, me lembrando de permanecer em silêncio. — Presumo que os dois tenham conhecimento dessa política. Eu assenti. O idiota do meu lado deu de ombros. — Sr. Wynn? Acabou de dar de ombros em resposta à minha pergunta educada? Talvez eu deva colocá-la em termos mais... compreensíveis? — Não, obrigado. Caramba, o cara era ainda mais idiota do que eu imaginava. Os olhos de Ingram se estreitaram um pouco mais, o que eu não pensava ser possível. — O que disse? — Não, senhora — ele resmungou. — Não, senhora, eu não acabei de ver você dar de ombros, ou não, senhora, você não tinha conhecimento dessa política? — ela perguntou, sabendo exatamente o que ele tinha pretendido com a resposta, tentando induzi-lo a falar ou fazer alguma coisa cuja consequência pudesse ser a expulsão. — Não, senhora, não preciso de termos mais compreensíveis. Sim, senhora, conheço a política. Mas não estava brigando. Foi preciso grande esforço para não deixar meu queixo cair. Se ele achava que eu enfrentaria sozinho as consequências dessa merda, estava muito enganado. Eu queria transformar o único olho roxo em um par, mas a intuição me dizia que essa reação garantiria minha expulsão, coisa que essa vaca havia desejado o ano inteiro. Sua boca se contraiu como se ela tivesse acabado de chupar um limão. — Você não estava... brigando. — O tom de desdém transmitia um aviso claro. De


algum jeito, eu sabia que Wynn não entenderia a mensagem. — Então por que todo esse sangue e os hematomas? — Ela se inclinou para frente, a boca começando a se esticar em um sorriso satisfeito. — Caí da escada. O olhar da diretora poderia ter congelado Wynn. — Você mora em um trailer. — Eu não disse que estava em casa. Os olhos dela se voltaram para mim. — E você? — Ele também caiu da escada. — Jesus, Maria, José, como diria meu avô. Wynn respondia por nós dois. Eu estava ferrado. — Nós dois caímos. Foi épico. Tenho certeza que já foi parar no YouTube. Os olhos da diretora continuavam fixos em mim. — Sr. Maxfield, pode me dizer a verdade? Apesar da minha opinião sobre Wynn, Ingram não estava do meu lado e eu sabia disso. Respirei fundo. — Acho que a gente foi empurrado. Ela arregalou os olhos. — Por quem? — Não sei. Vieram por trás. Houve um longo silêncio enquanto ela se dava conta de que nenhum de nós delataria o outro para colaborar com ela. — Vocês são dois... — Uma breve pausa para endurecer ainda mais a mandíbula já tensa. — Vocês devem seguir as minhas regras enquanto estiverem na minha casa. Se um professor disser que viu um soco trocado entre vocês, jogo suas carcaças malcriadas na rua sem pensar duas vezes! Vocês. Estão. Ligados? Mordi a parte interna da bochecha para conter o riso, porque, primeiro, eu não tinha dúvidas de que ela queria muito se livrar de nós dois, o que não tinha nada de engraçado, e, segundo, meu lábio estava cortado em dois lugares e ia doer pra caramba se eu ameaçasse um sorriso. Mas uma mulher de meia-idade perguntando se estamos ligados? Que merda é essa? Wynn, tocando o queixo, disse: — Isso me parece familiar... Já pensou em fazer um folheto explicativo? Tossi na mão fechada, me encolhendo com a dor. Filho da puta. Meu coração martelava tão forte quanto no momento em que dei o primeiro soco na cara dele.


O rosto da diretora se contorceu, e eu só conseguia pensar que o dragão estava prestes a cuspir fogo. — Saiam daqui. Vou chamar os pais de vocês. Os dois estão suspensos por uma semana. Sentem no corredor e fiquem lá até serem chamados. Nem. Uma. Palavra. Wynn murmurou: — Merda. Felizmente ela não ouviu, porque, ao mesmo tempo, eu disse: — Sim, senhora. Pulamos da cadeira e saímos da sala, indo nos sentar nas cadeiras duras do corredor que não ajudavam em nada as minhas costas doloridas. Eu esperava que a de Wynn estivesse doendo mais que a minha. De frente para o balcão da secretaria, deixamos uma cadeira vazia entre nós. Eu não sabia o que meu pai ia fazer ou falar. Ele mal falava comigo em circunstâncias normais. — Maxfield? Surpresa, Wynn desafiou a ordem de não dar nem uma palavra antes do fim do primeiro minuto. Eu o ignorei. — Desculpa pelo que eu disse. Você sabe, sobre a sua mãe. — Como se fosse preciso explicar. Raspando com a unha uma mancha de sangue seco na minha calça, fiquei imaginando se seria meu ou dele. — Foi uma coisa cretina de dizer. Eu o encarei, confuso. — É. Foi mesmo.

LUCAS Quase comecei a pensar em mim como duas pessoas diferentes, pelo menos com relação a Jacqueline. Eu era o cara que tinha passado semanas fascinado por ela e, infelizmente, despertara seu medo quando a salvara de um ataque, e era ainda o oposto de uma ameaça, um cara que mandava dicas e histórias por e-mail enquanto a ajudava a


recuperar a nota em uma matéria. Por um lado, queria que ela soubesse que eu era o monitor da turma e também o cara de sábado à noite. Mas queria, sobretudo, poder ser outra pessoa. Alguém que não sofresse a restrição de um limite ético perfeitamente sensato e que não estivesse ligado à noite que, possivelmente, fora a pior da vida dela. Em vez de entrar na sala quando cheguei, recostei-me na parede do outro lado do corredor e esperei Jackie aparecer. Sem querer, acabei testemunhando uma interação entre Kennedy Moore e Ivy. Encostados na parede ao lado da porta, eles trocavam números de telefone e fotos de contato. Ela dava risadinhas o tempo todo. Era esse tipo de garota que aquele cara acreditava poder substituir Jacqueline? Havia muitas mulheres inteligentes no campus, inclusive garotas de fraternidades, se era esse o tipo dele. Mas essa garota? Não. Desviei o olhar, e foi aí que notei Jacqueline parada no meio do corredor, olhando para eles. Pela postura rígida e a dor estampada em seu rosto, os motivos para ela ter perdido duas semanas de aula eram bem claros. Kennedy não só terminara com ela sem aviso prévio como não perdia tempo em seguir em frente. Só um masoquista ia querer assistir a isso ao vivo. Um idiota distraído esbarrou nela, e eu me afastei da parede quando sua mochila escorregou e caiu no chão. Ela se virou e abaixou conforme eu pegava a mochila. Seus olhos encontraram os meus, e tudo o que eu queria era protegê-la de todo sofrimento ou desconforto com o qual ela pudesse se deparar. Impossível, eu sabia. — O cavalheirismo ainda não morreu, sabia? — falei, pendurando a mochila em seu ombro. — É mesmo? — Suas bochechas estavam rosadas. Estava fresco lá fora, mas deduzi que o rubor era por causa do constrangimento, não devido ao leve frio de novembro. — É. Aquele cara é só um imbecil. — Apontando com o queixo para o aluno que havia esbarrado nela sem nem sequer se desculpar direito, não pude deixar de incluir seu exnamorado no gesto antes de fitá-la de novo. — Está tudo bem com você? Li em seus olhos que ela reconhecera a pergunta recorrente, e me odiei por fazê-la lembrar tantas vezes aquela noite, mesmo sendo a última coisa que eu queria fazer. Talvez ela não conseguisse evitar a lembrança, independentemente do que eu dizia ou fazia. Afinal, eu mesmo não precisava de nada para desencadear meus pesadelos. Eles vinham indiscriminadamente, não importava o que eu fizesse para evitá-los.


— Sim, está. — Sua voz era um fraco sussurro enquanto ela olhava para a porta. Moore e sua suposta conquista haviam entrado, e ela se moveu para seguir os colegas de sala. — Obrigada. Seu “obrigada” me fez lembrar daquele dia chuvoso em que segurei a porta para ela passar. A primeira vez que a vira de perto, olhara em seus olhos e admitira para mim mesmo que a queria. Droga. Ela não olhou para trás, nem notou que eu entrei na sala atrás dela. Na última fileira, recostei-me na cadeira e a observei anotar a matéria nova que Heller escrevia no quadro branco, sua testa franzida e o restante da linguagem corporal gritando que ela não entendia nada daquilo. Eu não devia desejar que ela precisasse de Landon Maxfield, mas sabia que receberia um e-mail mais tarde, e eu já antecipava as perguntas que queria fazer a ela. Nesse momento, quando se virou para pegar algo na mochila, ela olhou diretamente para mim. Então ela sabia que eu estava na sala e onde me sentava. Devia ter notado minha presença na segunda-feira, antes de eu tê-la visto parada na entrada. Ela devia ter escolhido não se sentar ao meu lado. Ela preferira ocupar uma cadeira que a obrigava a pular as pernas esticadas do cara que dormia na aula pelo menos uma vez por semana. Mas ela sabia onde eu estava, e ficara curiosa o bastante para olhar para trás. Tentei manter a expressão inalterada, mas os cantos da minha boca se ergueram num sorriso, apesar da minha resistência. Ela virou para frente e não olhou mais para trás. Quando Heller encerrou a aula, saí da sala pela porta do fundo enquanto Jacqueline virava o caderno para o colega a seu lado. Antes que eu pudesse sair do prédio, fui parado por uma estudante. Ela tinha sido aluna do curso do Heller na primavera passada, mas desistiu. Voltou a se matricular, mas não ia muito melhor nesse semestre. Ela nunca apareceu na monitoria, e, a única vez em que procurou o reforço individual, queria que eu a encontrasse fora do campus. Minha resposta foi não, como fomos orientados a fazer. — Então, a gente pode se encontrar no meu apartamento? — ela perguntou, como se não tivéssemos tido essa mesma conversa alguns meses atrás. Suspirei. — Não. Desculpa. A monitoria é só no campus. Regras da universidade. Enrolando uma mecha do longo cabelo no dedo, ela fez biquinho, projetando o lábio


inferior. O truque devia funcionar com alguns caras, com os pais dela, mas comigo o efeito era contrário. O celular vibrou no bolso da frente da minha calça. Jacqueline ainda não tinha saído da sala, e eu queria deixar o prédio antes de ela sair. O que provavelmente não aconteceria agora. — Quer dizer que é uma aula de reforço em grupo? E tem uma hora de duração? O cabelo enroscado no dedo, o jeito como ela balançava o corpo de um pé para o outro, isso tudo estava me deixando ainda mais irritado. Eu queria agarrá-la pelos ombros e obrigá-la a ficar quieta pelos trinta segundos que eu ainda pretendia dedicar a essa conversa. — É. Da uma às duas. Ela perguntou o que eu faria depois da monitoria. Como se soubesse que eu não atuaria como monitor fora do campus... mas talvez estivesse disposto a arriscar outro tipo de associação. Meu. Deus. — Trabalhar. — Você está sempre trabalhando, Lucas. Eu não conseguia me lembrar de ter me sentido como se alguém estivesse me observando antes, então não tinha certeza de que era isso. Talvez fosse simplesmente o fato de saber que ela podia estar ali. Mas eu podia jurar que minha pele ficou quente, meus músculos se contraíram e minha respiração perdeu a regularidade. Não consegui me conter, virei e olhei diretamente para Jacqueline Wallace no meio da multidão no corredor, como se soubesse exatamente onde ela estava. Como se ela fosse a única pessoa ali. Ela estava tão perto que eu poderia tê-la alcançado com três passos. Eu sabia que tinha escutado meu nome. Agora ela pensava que eu era Lucas, enquanto mandava emails para Landon. Não havia motivo algum para ela unir os dois. Naquela fração de segundo, eu me senti muito aliviado e muito aborrecido comigo mesmo, e depois dividido entre os dois sentimentos. De novo. Antes que eu pudesse me mover, ela virou e desapareceu no meio de todas aquelas pessoas, e eu juro que a senti partir.


10

LANDON Caminhei até a casa de Melody para entregar os mapas que tinha feito e a bibliografia que havia terminado. Não pensei em como estaria meu rosto antes de ir. Apesar de ter tomado banho e lavado o sangue, e de o meu avô ter feito alguns curativos, meu lábio estava inchado e cheio de cortes. Os hematomas ficariam ali por um tempo. O irmão mais velho de Melody abriu a porta. Eu o reconheci do colégio. Ele estava no último ano e fazia parte do grêmio estudantil. Era popular. — Quem diabos é você? — Evan — chamou uma voz feminina, e o rosto carrancudo da mãe apareceu na soleira. — Ah... nossa. Landon, não é? O que... o que você quer? Evan não se mexeu. Ficou me encarando, enquanto a mãe se colocava a seu lado, como se quisessem me impedir de entrar. E era isso que estavam fazendo. — Eu, humm, vim trazer isto para a Melody. Para a apresentação. — Eu não tinha pensado direito nisso. Não tinha mandado uma mensagem avisando que iria. Queria explicar pessoalmente que não tinha intenção de prejudicar o trabalho. E esclarecer que a única coisa que me incomodava nessa punição era isso. A sra. Dover arqueou a sobrancelha. — E não pode levar pessoalmente para o colégio? Balancei a cabeça, os olhos descendo até seu ombro. — Eu... não vou ao colégio na sexta-feira. — Entendo. — Ela suspirou como se não esperasse nada diferente de alguém como eu. Estendeu a mão. — Eu entrego o material. Engoli em seco e a olhei nos olhos. — Será que eu posso ver a Melody? Ela vai ter que apresentar minha parte do trabalho também. Precisamos falar sobre isso. O irmão de Melody cruzou os braços, enquanto a mão da mulher continuava estendida, esperando que eu entregasse o material.


— Acho que não. — Seu sorriso transbordava a gentileza mais falsa que eu já tinha visto. A voz era fria. Ela não disse mais nada. Entreguei a pasta e fui embora. Quando voltei ao colégio, uma semana mais tarde, todos estavam novamente em seus lugares de sempre na aula de geografia mundial. Clark Richards me lançou um sorriso falso de sua carteira, ao lado de Melody. Ela nem olhou para mim. As apresentações tinham sido feitas, e Boyce Wynn e eu ficamos com zero. A sra. Dumont nos deu um teste-surpresa para “compensar” a nota perdida, mas, sem qualquer conhecimento da matéria e sem chance de estudar antes, eu tomei bomba. Ela nos deixou no corredor, sentados no chão em lados opostos da porta, para fazer o teste. Não devíamos conversar. Obviamente, Wynn desrespeitou a ordem como se tivesse sido uma sugestão que ele podia escolher seguir ou não. — Ei, Maxfield. Vamos fazer uma fogueira na praia hoje à noite. O irmão mais velho do Rick, que a gente chama de Thompson sênior, recebeu um pagamento a mais em fumo e está pagando o Rick para fazer as tarefas dele. Em maconha. — Ele riu. Olhei para ele e franzi a testa, tipo: E? — A gente vai se encontrar lá pelas onze. Quando os fracassados da cidade estiverem em casa, ninguém vai ver e dedurar. — Os hematomas no rosto dele estavam parecidos com os meus. Amarelando. Quase desaparecendo. O olho dele ainda estava meio ferrado, assim como meu lábio. Eu me perguntei se o convite era alguma armadilha. — Agora somos amigos, ou alguma coisa assim? — perguntei com um olhar desconfiado. Wynn deu de ombros. — Sim, por que não? Você, hum, tá ligado que o Richards me pagou pra fazer aquilo, não tá? Um milhão de pensamentos confusos invadiu minha cabeça. — Não. Ele sorriu. — É, ele descobriu que a namoradinha dele estava na sua casa, e quando o Clark mandou uma mensagem ela disse que estava em casa. Ele imaginou que você estava pegando a garota, ou quase... — E pagou pra você me atacar... — O cara é um idiota rico, tá? Eu fiquei feliz em pegar o dinheiro dele. E a verdade é que você já estava me irritando. Eu precisava acertar aquela conta, cara. — Ele inclinou a


cabeça, pensando. — Então aquele dia na oficina... quando falei aquilo sobre a Brittney Loper antes de você me dar aquele soco... você gosta dela ou alguma coisa assim? Olhei para o chão, balançando a cabeça. — Não. Nem conheço a garota direito. — Não conhecia ninguém direito. Eu achei que estava conhecendo Melody, mas isso tinha sido uma ilusão patética. — Então o que que rolou? Porque, cara... Meu coração batia forte. Eu tinha que falar aquilo. Estava entalado na minha garganta, mas eu empurrei para fora, um murmúrio irregular no corredor vazio. — Você disse que ia estuprar a garota. — O quê? — Ele franziu o cenho, confuso. — Foi só um jeito de falar... Não significa nada... — Significa sim. — Eu o encarei. — É tipo... uma palavra... gatilho pra mim. — Não brinca — ele disse, e eu olhei para o chão entre meus joelhos. — Tá bom, então. Desculpa. Vou lembrar que essa é sua palavra-bomba, cara. Ele não tinha nem ideia.

Saí de casa perto da meia-noite, depois que meu pai e meu avô dormiam profundamente, o que eliminava a necessidade de explicar aonde eu iria. Estava frio o bastante para eu poder ver minha respiração formando nuvens diante de mim, passando por cima dos meus ombros a cada passo que eu dava na praia. A enseada não ficava longe, e era impossível chegar lá sem atravessar quintais ou praias particulares. Mais um motivo para o pai de Richards querer a propriedade à beira-mar do meu avô. Ouvi um “Maxfiiiieeeeld” quando contornei uma pedra saliente e avistei a fogueira, que não era muito grande — provavelmente para não chamar a atenção das autoridades. No entanto, havia menos de uma dúzia de pessoas ao redor dela, o que tornava seu tamanho adequado. Levantando da areia, Wynn veio me cumprimentar, palma contra palma seguidas de dedos fechados, como se fôssemos velhos amigos, e eu soltei um suspiro aliviado. Não era uma armadilha. Só me dei conta de como esperava uma emboscada quando me certifiquei de que não aconteceria. A lua era crescente e o céu estava claro, e meus olhos estavam completamente ajustados à semiescuridão da caminhada. Reconheci algumas pessoas ali — como Thompson, que ria feito uma hiena e batia a mão na coxa depois de ouvir o que um dos


outros garotos disse. Também havia garotas, e duas delas me olhavam com curiosidade. Ou talvez estivessem tão chapadas que eu poderia ser qualquer um ou qualquer coisa. Wynn passou um braço sobre os meus ombros. — Todo mundo conhece o Maxfield? Thompson projetou o queixo na minha direção. — E aí? — Como se não tivesse instigado Boyce Wynn a me espancar pouco mais de uma semana antes. — Vem sentar com a gente — convidou uma das garotas. Ela e a amiga, Brittney Loper, a dos seios do tamanho de melancias, estavam encolhidas embaixo de um grande cobertor, que mais parecia um edredom tirado da cama de uma delas. Era fofo, com flores estampadas, e cheirava a maconha, provavelmente porque tudo ali cheirava a maconha. O aroma forte e doce flutuava sobre o cenário, uma nuvem que pairava e se dispersava, pairava e se dispersava. Eu imaginei que talvez nem precisasse fumar para ficar chapado. As meninas se afastaram, me convidando a sentar entre elas. Quando me acomodei, elas se aproximaram, suspirando de satisfação, e puxaram o cobertor sobre nós três. Meu moletom de repente parecia uma fornalha. Abri o zíper, e a garota à minha direita me ajudou a tirá-lo. — Ahh, você está tão quente! — As mãos dela acariciaram meu antebraço e escorregaram para dentro da manga da camiseta. Ela apertou meu bíceps, e eu disse a mim mesmo que passaria a fazer flexões todos os dias até cair de cansaço, não só três ou quatro vezes por semana. — Aliás, eu sou a Holly. — Ela chegou mais perto e me ofereceu o baseado, que eu aceitei. — Landon — respondi. — Hummm — disse Brittney, como se meu nome fosse algo apetitoso. Ela apertou o peito contra meu braço e meu corpo reagiu, como se soubesse por experiência própria o que fazer em seguida. Não sabia. Vi Thompson dar uma tragada no baseado e imitei seus movimentos, depois tossi como se estivesse cuspindo um pulmão. Ou morrendo. — Devagar, Landon — disse Holly. — Não precisa chupar tudo de uma vez. — Foi o que eu disse — comentou o garoto ao nosso lado, e o sangue em meu corpo não sabia se aquecia meu rosto ou continuava endurecendo meu pinto. — Vai sonhando — Holly respondeu com um tom mais divertido do que ofendido, e o cara deu um tapinha no colo num convite. Ela balançou a cabeça. — Tô bem aqui. —


Quando olhou para mim, mechas de seu cabelo escuro dançaram ao vento, e alguns fios grudaram na minha boca. Ela deslizou os dedos por meu lábio inferior e os soltou. Ficando duro. Coloquei o baseado na boca e puxei a fumaça com mais cautela, menos força, enquanto olhava para ela. — Pronto — ela disse, pegando o baseado de volta e colocando a boca onde a minha estivera segundos antes, puxando a fumaça com mais força e passando o cigarro para Brittney. Durante a meia hora seguinte, nós três continuamos nos alternando, as duas deslizando as mãos por meus braços, peito e costas. Às vezes tocavam minha coxa. A menos que eu estivesse segurando a ponta, meus dedos permaneciam enterrados na areia atrás de mim, porque eu não confiava no que queria fazer com as mãos. Em algum momento durante essa meia hora, Holly se inclinou e pressionou a boca contra a minha, justamente quando eu começava a sentir que o chão sob mim era um grande e macio travesseiro e tudo perdia a intensidade — a conversa e as risadas à nossa volta, as estrelas no céu, o barulho das ondas quebrando na areia. Entre uma tragada e outra, eu a beijei de volta, torcendo para estar fazendo um trabalho razoável. Ela lambeu meu lábio inferior, e eu abri a boca para tocar sua língua com a minha. Agarrando meus ombros, Holly se deitou e me puxou sobre o seu corpo. Brittney suspirou e deixou o cobertor para nós, jogando-o sobre minha cabeça e a de Holly enquanto nossas pernas se enroscavam sob ele e depois disso eu nem pensei ou me preocupei com onde eu estava. Várias horas mais tarde, cambaleei para casa, comi todas as sobras que encontrei na geladeira, caí na cama e tive sonhos sujos e picantes com as mãos e a boca de Holly em mim. Desliguei o despertador do celular quando ele me avisou que era dia de semana e hora de levantar. Como eu nunca havia faltado no colégio, me senti meio culpado. Mas estava cansado demais para me incomodar, e disse a mim mesmo que seria só essa vez. Com um bilhete falso do meu pai, cheguei na terceira aula. Não queria perder mecânica, a única matéria de que eu gostava. Antes do almoço, Wynn e Thompson me encontraram no corredor. — Ei, Maxfield, chega aí. O Thompson sênior disse que a gente pode se espremer na carroceria da caminhonete dele. Hambúrguer de almoço, cara. Depois das últimas doze horas, sair do campus para almoçar — o que só os veteranos podiam fazer — seria a menor das minhas transgressões. O irmão mais velho de


Thompson, Randy, e dois amigos do último ano estavam na cabine, espremidos ombro a ombro, enquanto Boyce, Rick e eu nos segurávamos como podíamos na carroceria, tentando parecer calmos e fingir que não havia a menor chance de sermos jogados cinco metros longe da caminhonete e rumo à morte caso Randy tivesse de frear bruscamente. — Cara, ainda tô morrendo de fome — disse Rick minutos depois, devorando um hambúrguer e uma porção grande de batatas fritas. — Aposto que o Maxfield precisa de combustível a mais depois de tudo que a Holly fez com ele — comentou Boyce. Eles riram da minha cara séria. — Cara, a Holly gosta de iniciar os novatos. É, tipo, a praia dela. Nós todos passamos por isso, se é que você me entende. Ah. — É, a Holly é legal... só não se apaixone por ela — Rick aconselhou antes de encher a boca de batata e continuar: — Ela odeia. Se você não ficar todo fofo com ela, a Holly será a sua encantadora de serpente por um tempo. Os dois gargalharam enquanto eu continuava sério. — Essa foi boa, cara — Boyce disse a Rick. As festas em torno da fogueira aconteciam todos os fins de semana, e às vezes em dias de semana, com um grupo variável de frequentadores e gente de fora da cidade. Os fins de semana eram mais loucos, mas, em termos de loucura, nada superava as férias de primavera. Apesar do que os caras haviam dito, acabei me apegando um pouco a Holly, embora no colégio ela se comportasse como se fôssemos apenas amigos, mais nada. Porém na praia e chapada, ela se tornava minha primeira em tudo. Então chegaram as férias de primavera. Havia caras novos na praia toda, e em cima de Holly. O abandono doía, apesar de eu ter sido avisado de que o que existia entre nós não era um relacionamento. — A Holly dá uma força para o Thompson sênior. Ela é como... uma armadilha para turistas — explicou Boyce. Minha expressão endureceu, mas Rick riu. — Cara, sério. A gente avisou. A Holly é livre. Ela não quer merda de compromisso nenhum. Se você tá a fim de alguma coisa mais permanente, que tal dar uma olhada em volta? — Eu fiz isso e vi dúzias de garotas de biquíni dançando em torno da fogueira, todas bêbadas ou chapadas, ou quase lá. Mais de uma me olhava de um jeito promissor. — Use suas novas habilidades, cara. Foi então que vi Melody sentada em uma pedra. Sozinha. Clark estava a uns cinco ou


seis metros dela, um cigarro em uma das mãos, uma lata de cerveja na outra. Conversando com uns caras, de costas para ela. — Ah, cara... aquela não — Boyce gemeu, mas era tarde demais. Eu já estava caminhando até ela. Quando subi na pedra, sua boca se abriu. Ela deu uma olhada para o namorado, que não estava prestando a menor atenção, e eu a examinei rapidamente. Pernas lisas e pálidas sob a luz da lua, saindo do shorts azul-claro, e um minúsculo top de biquíni sob a fina regata branca. Os cabelos loiros desciam pelas costas em uma trança pesada, mas algumas mechas soltas dançavam em volta do rosto. Como Clark Richards era capaz de ignorá-la era um mistério para mim. Sentei ao lado dela e ficamos observando o que acontecia na praia. — Você parece meio entediada — finalmente comentei. — Quer ir dar uma volta? Ela olhou para Clark, que continuava de costas. Depois assentiu. — Tudo bem. Segurei sua mão para ajudá-la a descer, e ela me soltou assim que pisou na areia. Olhei por cima do ombro, mas ninguém estava acompanhando nossos passos. Andamos pela praia e em pouco tempo deixamos de ouvir os sons da festa. Passamos pela minha casa e fomos parar na frente da dela. Melody continuou caminhando até a área lateral do quintal, onde havia uma estrutura de madeira que eu não havia notado. — Legal esse forte. Ela virou uma alavanca e puxou a corda que comandava a ponte levadiça, e nós entramos. Havia uma escada para uma plataforma mais ou menos na altura da minha cabeça, mas não havia telhado. — O Evan e eu brincávamos de índios e caubóis com os vizinhos, ou de princesa capturada e herói que matava o dragão. — Ela subiu, e eu a segui. — Quem era o dragão? Melody sorriu e se sentou, prendendo as mechas soltas de cabelo atrás das orelhas e puxando os joelhos contra o peito. — O dragão era imaginário. Às vezes, eu queria ser o dragão. Ou o herói. Mas o Evan não deixava. Eu me sentei ao lado dela, e então deitei de costas, as mãos cruzadas atrás da cabeça. — Isso não devia ser legal. Não tenho irmã, não sei como funciona, mas acho que, se você queria ser o dragão, devia ter esse direito. — Pensei em Carlie Heller, que aos dez


anos daria um dragão incrível e teria literalmente chutado o traseiro do irmão de doze anos para fora do castelo, se ele insistisse em mantê-la sempre no papel da princesa. A menos que a princesa empunhasse uma espada. Melody olhou para as estrelas. — É. Bom, o Evan era basicamente um clone do meu pai, mesmo quando éramos pequenos. Eles fazem as coisas como acham que devem. Sempre. — Uma pausa, um suspiro, e eu senti vontade de enfiar os dedos em seus cabelos e soltar a trança. Puxar a boca para a minha e beijá-la, fazê-la esquecer o cara arrogante que a tratava como um nada. — Minha mãe é aquela mulher forte com todo mundo, menos com meu pai — Melody continuou. — Ela diz que isso é casamento. É dar e receber, mas, se existe algo sobre o que os dois realmente discordam, é o marido quem decide. Pensei nos meus pais e no relacionamento deles. Meu pai nunca foi de demonstrar muito, mas era completamente devotado à minha mãe. Ela podia pedir qualquer coisa e ele fazia, ou tentava. “Como quiser, Rose.” Quantas vezes ouvi isso em treze anos e meio? “Ele sabe que nunca vou pedir nada que o prejudique, porque eu o amo”, minha mãe disse uma vez. “Confio nele para fazer o mesmo, porque sei que ele me ama também.” — Ou o irmão mais velho? — perguntei a Melody, que se deitou ao meu lado. — Ou o irmão mais velho — ela confirmou. — Ou o pai. Entendi com mais clareza que antes como Clark Richards se encaixava nesse cenário. — Em outras palavras, o homem. Ela deu de ombros e olhou para mim. — Acho que sim. Franzi o cenho e olhei para ela. Minha mãe era a pessoa mais generosa que já conheci, mas não teria tolerado alguém tomando as decisões por ela só porque era seu marido. Ou namorado. — Não acho isso certo. Ela sorriu. — Talvez não. Mas agora não importa. Não preciso ser a princesa de ninguém se não quiser. Pode perguntar para a minha mãe. Sou um dragão cuspindo fogo quando não consigo o que quero. Ela nem ao menos percebia. Era a princesa cativa do namorado. Melody nunca seria o dragão ou o herói na história dele. Esses papéis já estavam preenchidos.


LUCAS Como eu esperava, Jacqueline me mandou um e-mail pedindo ajuda com a matéria. Ela agradeceu por eu ter traduzido as instruções do dr. Heller, que podiam ser incompreensíveis. Os alunos da pós-graduação o acompanhavam, mas algumas desistências na graduação eram comuns. Era por isso que ele me mantinha na monitoria. Corrigi sua impressão de que eu era aluno do curso de economia, anexei várias folhas de exercícios que eu tinha criado para as sessões de monitoria às quais ela não poderia comparecer e terminei perguntando como seus alunos da orquestra se saíram nas competições regionais. E acrescentei: “Por sinal, o seu ex obviamente é um panaca”, e cliquei em “enviar”. Que diabos eu pretendia com isso? Era mais do que inapropriado fazer esse tipo de comentário sobre um aluno — e por escrito, para piorar — para outro aluno. Mesmo que fosse verdade. Respirei aliviado quando ela não se referiu à minha falta de modos em sua resposta, embora parecesse acreditar que ajudá-la era um incômodo para mim. Eu queria convencê-la de que estava errada. Havia muito tempo que eu não sentia essa ansiedade de tirar o fôlego enquanto esperava o nome dela aparecer na minha caixa de entrada, ou quando a via entrar na sala de aula. Ela era o oposto de um incômodo, invadia meus sonhos e comandava meus desejos quando eu estava acordado. Jacqueline me contou sobre seus dois alunos na orquestra, como ambos a haviam abordado em particular para perguntar qual deles era seu preferido. Ri alto da resposta que ela deu aos dois — “Você, é claro” — e da pergunta que me fez — “Isso é errado??”. Quando respondi, comentei sobre as folhas de exercício, apontando seus pequenos erros, e confessei que uma universitária que tocava contrabaixo teria me deixado sem palavras aos catorze anos. Fechei os olhos e a imaginei como era agora, ao lado do calmo desastre que eu era aos catorze anos, quando precisava que alguém simplesmente me visse. Eu teria me apaixonado por ela imediatamente, perdidamente. “E, caso você esteja se perguntando — sim, você é a minha aluna favorita”, acrescentei no fim da mensagem. Flerte totalmente inapropriado, mas eu não me importava. Eu queria que Landon a conquistasse, de forma que, quando ela descobrisse quem eu era, me perdoasse por ter feito parte daquela noite.


Era uma situação fadada ao fracasso. Mas eu não poderia parar agora, nem se tentasse.

Os turnos de sexta à tarde eram sempre incrivelmente monótonos. Fazia dez minutos que não tínhamos nenhum cliente. Éramos só dois trabalhando no balcão. Se Gwen estivesse lá, eu me sentiria grato por ouvir as histórias dela sobre os dentes ou as cólicas do filho, ou sobre como a criança começou a engatinhar, ainda que fosse pela centésima vez, só para diminuir o tédio. Mas eu trabalhava com Eve, que não parava de mandar mensagens de texto e fazer planos para o fim de semana, me deixando com tempo demais para ruminar o dilema de Jacqueline Wallace. Duas garotas entraram e se aproximaram do balcão vazio conversando. Reconheci uma delas como a ruiva que estava com Jacqueline na segunda-feira, a que a abraçara para em seguida deixá-la na fila. Pelas camisetas com letras gregas, deduzi que eram de alguma fraternidade. Apesar de ela ter ido àquela festa e ter namorado um cara de fraternidade, não imaginei que Jacqueline fizesse parte desse grupo, mas isso era totalmente possível. Não que eu convivesse com essa galera o bastante para saber quem fazia parte ou não. Ou me importasse com isso. Até agora. Eve se aproximou do balcão enquanto eu limpava o tubo de descafeinado e ouvia intencionalmente a conversa delas, sem conseguir parar quando me dei conta do assunto. — ... se o Kennedy não fosse tão cretino. — Seu pedido? — perguntou Eve, sem qualquer sinal de simpatia. — Ele não é totalmente horrível. Quer dizer, pelo menos ele terminou com ela antes — a morena opinou antes de responder a Eve. — Dois chás-verdes com limonada. Minha colega registrou o pedido e disse o total. Com alargadores nas orelhas e mais piercings e tatuagens do que eu já tinha visto em uma garota em anos, Eve não era fã do pessoal das fraternidades. Não sei se tinha um motivo para isso. Se sim, não me contara. Imaginei que nos dávamos bem porque ela, como a maioria das pessoas, presumia que meu piercing visível e as tatuagens significavam que eu era igualmente antissocial. Era verdade... mas eu tinha uma fraqueza por uma garota socialmente ativa em especial.


Eu me perguntei o que Eve faria se um bonitão de alguma fraternidade se interessasse por ela e tentasse uma aproximação. Provavelmente, ela primeiro o furaria com um piercing de sobrancelha e faria as perguntas depois. — Não concordo — respondeu a ruiva. — Ele é um cretino. Eu vi isso acontecer muitas vezes, embora ela não. Ele fez isso porque acha que terminar o namoro antes de sair por aí pegando todo mundo o livra da responsabilidade de ter partido o coração dela. Eles ficaram juntos por quase três anos, Maggie. Não consigo nem imaginar o que é passar tanto tempo com alguém. Maggie suspirou. — Fala sério. Estou com o Will há três semanas, e, se ele não fosse bem-dotado como um... — Seu cartão — Eve interrompeu como se estivesse enojada, e eu escapei da nítida imagem mental de Will, quem quer que fosse ele. Graças a Deus. — ... eu já estaria morrendo de tédio. Quer dizer, ele é mais doce que chocolate, mas, ai, quando começa a falar... zzzzz. A amiga de Jacqueline riu. — Caramba, você é uma vaca. Tirei a limonada do refrigerador enquanto Eve despejava calda no liquidificador. — Pois é. As boazinhas não dão em nada. Falando nisso, o que vamos fazer com a Jacqueline? A amiga dela suspirou. — Humm. Bom, ela saiu cedo da festa na semana passada, então a tentativa foi um fracasso total... Mas deve ter sido porque o Kennedy estava dando mole para a Harper bem na cara dela. A Harper anda atrás dele desde a primavera passada... Droga, eu não devia ter levado a J àquela merda de festa... Eve pôs os dois copos em cima do balcão e revirou os olhos, o que passou despercebido. Introduzindo o canudo na abertura da tampa, as duas se viraram para sair, ainda concentradas em seus planos. — Acho que a gente devia vesti-la como sobremesa e levá-la para um lugar onde o Kennedy não apareça, assim ela recupera a confiança. Quando a ruiva sugeriu uma boate conhecida por tocar música ruim — do tipo que é tocada em todas as estações mais famosas —, eu soube que havia atingido um novo nível de idiotice pessoal, porque eu iria também. Precisava vê-la em território neutro, e


estava disposto a enfrentar qualquer coisa para isso. Até música pop. Hoje eu mal olhei para ela na aula, tentando lutar contra a atração que já sentia semanas antes de me tornar o cara que a salvou de ser estuprada na estacionamento. Naquela noite fui sim seu salvador, mas também fui testemunha da humilhação que ela ainda devia sentir. Eu estaria eternamente ligado àquela noite — uma inevitável lembrança. Era evidente que era assim que ela me via — como ficou claro pela expressão chocada em seu rosto quando, na segunda-feira passada, perguntei qual era seu pedido. E como ficou evidente no rápido “Estou bem” quando perguntei como ela estava. Na forma como puxou a mão quando devolvi seu cartão e meus dedos roçaram nos dela. Mas então, na aula de quarta-feira, ela olhou para mim e reacendeu a esperança que eu sabia que deveria extinguir. Era uma chama morna no fundo do meu coração, uma esperança de que essa garota de alguma forma tinha nascido para ser minha. E eu para ser dela. Evitar teria sido a atitude mais sensata, mas, com relação a ela, todo pensamento lógico era inútil. Eu estava cheio de desejos irracionais de ser o que nunca mais poderia ser, ter o que nunca poderia ter. Eu queria ser inteiro.

Observando de longe as amigas colocarem bebidas na mão dela e a incentivarem a dançar com todos os caras que se aproximavam, desconfiei de que elas não sabiam sobre aquela noite. As garotas levaram Jacqueline à boate e a empurravam para os braços de desconhecidos para ajudá-la a superar o rompimento, não para que ela se recuperasse de um ataque. Rindo e fazendo movimentos engraçados de dança, elas a faziam sorrir, e fiquei contente por ver a felicidade em seu rosto, independentemente do que a causava. Sabia que devia deixá-la em paz. Essa garota era um encanto ao qual eu não podia resistir, embora ela não tivesse como saber disso. Não tinha como saber que assisti de longe a seu relacionamento desmoronar. Ela nem fazia ideia de que eu me sentia tão atraído pelo senso de humor e pela inteligência que ela revelava nos e-mails quanto pelos movimentos cativantes dos seus dedos quando ouvia música, em vez de prestar atenção no que a cercava. O ex-namorado a censurou uma vez por não prestar atenção em uma bobagem


qualquer que ele dizia, e eu tive vontade de esmurrá-lo. Que grande idiota ele era, tanto tempo ao lado dela e nunca a vira de verdade. Dividido, terminei minha cerveja e desocupei o banco perto do balcão. Não queria trair a confiança de Charles. Esse ambiente não era o meu, então não havia como negar que eu estava ali por causa dela, deliberadamente desconsiderando o fato de Jackie ser minha aluna. Eu ficaria em um canto da boate e de lá seguiria diretamente para a porta. Ou daria apenas um oi e iria embora. Eu me aproximei por trás, notando que ela estava mais alta com as botas de salto. Mesmo assim, eu ainda era bem maior. Deslizei um dedo pela pele macia de seu braço, ciente de que toda a farsa de resistir a essa atração estava suspensa, pelo menos por alguns poucos momentos. Notei vagamente suas amigas, ambas de frente para mim, mas não consegui desviar o olhar de seu ombro nu para cumprimentá-las. Jacqueline se virou, e meus olhos imediatamente mergulharam em seu decote profundo. Caramba. Olhei para o rosto dela. Com as sobrancelhas erguidas em resposta ao meu rápido, porém descarado exame de seu peito, ela parecia prender a respiração, e eu me deixei ser capturado por aquele olhar hipnotizante. Eu queria sua confiança. Não merecia, mas queria. Não era hora de me deixar distrair pela sobremesa. Ela ainda não soltara a respiração, enquanto eu me lembrava de nossa envolvente troca de e-mails — seu relato cômico sobre os amigos que pagavam com cerveja para usar sua caminhonete e a forma como ela falava dos alunos, meninos que deviam morrer de paixão a cada aula de música. Não consegui evitar o sorriso estúpido que esticava meus lábios, mas não era eu quem trocava essas mensagens com ela. Que bela maneira de não ser assustador, idiota. Eu me inclinei, tentando me recompor e evitar gritar o “oi” que eu queria dizer antes de ir embora. Em vez de cumprimentá-la normalmente, me descobri afogado em seu perfume — o delicado aroma de madressilva que se impregnara em meus sensores olfativos desde aquele dia chuvoso, semanas antes. Tão doce. Meu corpo enrijeceu, e, com um enorme esforço, murmurei em seu ouvido: — Dança comigo? Eu me afastei e a observei. Ela não se mexeu até a amiga apoiar um dedo em suas costas e lhe dar um firme empurrão em minha direção. Ela estendeu a mão quando fiz menção de segurá-la, e eu a conduzi para a pista, dizendo a mim mesmo que seria só uma dança. Uma só. Sim. Isso também não aconteceu.


Aquela primeira música era alta, mas lenta. Durante o tempo em que eu a observei, ela recusou todos os convites para dançar músicas lentas. Ela se encolhia, evitando o toque de todos os caras, quase que imperceptivelmente, mas nenhum deles parecia notar. Talvez o álcool tivesse entorpecido seus sentidos. Era mais provável que eles simplesmente não sentissem sua ansiedade, e, se a notassem, não teriam a menor ideia do que a causava. Não tinham o meu conhecimento sobre o que ela havia vivido. Além disso, anos de artes marciais me treinaram para distinguir as menores reações físicas. As delas eram claras para mim, assim como suas origens. Eu odiava o medo que aquele babaca tinha semeado nela e queria dissipá-lo. Enquanto dançávamos, segurei suavemente suas mãos e as levei para trás de suas costas. Seus seios roçaram meu peito, e tive de usar todo o meu autocontrole para não puxá-la mais para perto. Ela se movia perfeitamente comigo, fechando os olhos. Conquistar esse fragmento de confiança só me fez querer mais. Ela balançava, provavelmente mais afetada pela tequila barata das margaritas que as amigas tinham lhe dado do que por estar em meus braços. Quando soltei suas mãos para segurar seu corpo com mais firmeza, ela agarrou meus braços como se fosse cair. Subindo lentamente, aquelas mãos traçaram uma rota até meu pescoço, onde seus dedos se entrelaçaram em minha nuca, e esperei seus olhos se abrirem. Ela ergueu o queixo, mas os olhos continuaram fechados até seu corpo estar totalmente colado ao meu, e então ela me encarou. Jacqueline engoliu como se reunisse coragem e chegou mais perto, os olhos cheios de curiosidade e a testa levemente franzida. Ela não me reconheceu, fato evidenciado por sua pergunta: — E-então, que curso você está fazendo? Ai, caralho. Eu não estava pronto para pôr fim a essa fantasia — e ela acabaria, assim que eu dissesse que era o cara que mandou e-mails para ela a semana toda; seu monitor, que não devia tocá-la desse jeito, muito menos como eu realmente queria tocá-la. — Você quer mesmo falar sobre isso? — perguntei, sabendo que não devia. Era só uma abertura para outras coisas. Mais do que eu podia dar. — E sobre o que eu deveria falar? Isso é o que acontece quando você se torna vaidoso demais em relação a quão íntegro você é, por ser correto e seguir as regras. Você dá de cara com a única coisa que não poderia, só porque ela cruzou seu caminho enquanto você estava focado em sua


sagrada integridade. Jacqueline Wallace não estava ao meu alcance, e não era da minha conta descobrir e satisfazer suas necessidades. — Acho que o melhor é não falar — respondi, querendo passar um momento com ela que não fosse arruinado pelos segredos entre nós. — Não sei o que você quer dizer — ela disse com as bochechas levemente coradas. Mas não me soltou. E não se afastou. Eu a puxei ainda mais para perto e me inclinei para sentir seu cheiro mais uma vez, gravando-o na memória. — Sabe, sim. — Eu inspirei, meu lábio roçando a pele macia atrás de sua orelha. Ela arfou, e eu não consegui decidir se essa reação era a coisa mais encantadora ou mais injusta que eu já tinha ouvido. — Vamos só dançar — acrescentei, prendendo a respiração, esperando a resposta. Ela assentiu uma vez enquanto outra música começava.


11

LANDON Quando comecei a colecionar advertências por atraso e minhas notas começaram a cair, as consequências que eu esperava não aconteceram. Pensei que meu pai me colocaria de castigo ou gritaria comigo. Esperava que ele marcasse uma reunião com Ingram e me deixasse sem mesada. Mas não aconteceu nada. Às vezes meu avô me dava uma bronca, mas a maioria das reclamações acontecia quando eu não recolhia as coisas que espalhava ou deixava de cumprir minhas tarefas, então aprendi a usar a lavadora e a cozinhar e mantinha minhas coisas dentro do quarto. Certa noite, durante o jantar, meu avô disse: — Você precisa aprender um ofício, filho. Pode ser pesca, com o golfo logo ali e todas essas coisas. Quando ele serviu uma porção de batatas em seu prato, meu pai franziu o cenho, mas não o contradisse — o que era estranho. Então, quando o verão chegou, fui recrutado para trabalhar no Ramona — barco cujo nome era uma homenagem à minha avó. Acordar cedo era horrível, porque muitas noites eu ia para a praia com o pessoal e voltava tarde e cambaleando para casa, sem me importar mais com sair ou entrar escondido. Tinha só três ou quatro horas de sono antes de meu avô me acordar, o que ele passou a fazer com uma panela e uma colher quando percebeu que meu despertador não era suficiente. Nada ecoa como uma panela de metal em um quarto pequeno sem janela. Meu pai nunca tirava um dia de folga. Aos poucos ele estava transformando o comércio de pesca do meu avô em fretamento para pescaria e passeios turísticos, com um site bem ruim com fotos de turistas ricos na frente do Ramona, exibindo seus pescados — gente que aceitava pagar mil pratas para passar um dia bebendo e sendo orientado a puxar uma vara presa ao barco sempre que ela balançava porque um pobre peixe mordera a isca. Durante todo o verão e começo do outono, nós transportávamos pescadores experientes e aspirantes aos melhores lugares para jogar suas linhas e


pescar cantarilho na baía ou peixes maiores em alto-mar — pais e filhos ou casais que estreitavam laços ou passavam o dia todo irritando um ao outro, executivos que iam sozinhos ou levavam clientes importantes, estudantes de fraternidades que mais bebiam, xingavam e se queimavam com o sol do que pescavam. Eu prendia as iscas nos anzóis, enchia os tanques e cuidava dos suprimentos, limpava peixes, lavava o convés e tirava fotos. No final do verão, eu estava mais bronzeado, musculoso e pelo menos três centímetros mais alto que meu avô, a menos que seus cabelos brancos, que insistiam em ficar em pé no topo da cabeça, feito uma nuvem, contassem como altura. (Ele insistia que sim.) Meu avô quase ficou maluco quando meu pai acrescentou cruzeiros ao pôr do sol para casais, passeios familiares para ver golfinhos e excursões para grandes grupos de senhoras. Mas o dinheiro aumentava, e o trabalho era mais fácil — sobretudo com a minha mão de obra gratuita, então ele não podia protestar muito.

— Eu estava pensando. Tive medo de Boyce estar prestes a filosofar, e eu estava cansado demais para essa merda toda. Eu só tinha tomado uma cerveja antes de quase dormir enquanto pegava uma menina que iria embora no dia seguinte, por isso decidi parar de beber antes de cair de cara na areia. Boyce parou também, em solidariedade, porque nós dois éramos os únicos da turma que trabalhávamos pesado durante o dia. Eu no barco, ele na oficina do pai. Levamos cadeiras de praia para perto da água para escapar dos outros, que às vezes eram idiotas irritantes, especialmente quando estavam chapados e nós, não. — Perigoso, Wynn. — Ha-ha. Olhei para as ondas frias lambendo meus pés, a água em constante movimento. A maré estava subindo. Se continuássemos naquele lugar, à meia-noite estaríamos com água na altura da cintura. — Eu estava pensando que nunca vi você com os pulsos descobertos. Tentei não reagir, mas minhas mãos apertaram os braços de alumínio da cadeira. Mesmo bronzeado, meus pulsos estavam tão brancos quanto o meu traseiro, porque eles nunca viam o sol. Eu sempre os cobria com faixas e bandanas, ou com o relógio que eu agora quase não usava mais. Ninguém aqui nunca tinha notado que essas coisas


mascaravam outra. Pelo menos eu achava. Virei a cabeça para olhar para ele. — E? Ele mordeu uma pele seca no lábio. — Eu estava pensando que você podia fazer umas tatuagens para cobrir... sabe... o que você tá escondendo. — E deu de ombros, fechando os olhos. Olhei para os reflexos da lua na água e senti toda a minha insignificância. Nada era importante o bastante para valer meu esforço — nada além da necessidade de manter meu passado enterrado fundo demais para sentir. Não havia nada mais a fazer com isso. Nenhum outro jeito de evitá-lo. Eu nunca tinha tido essa ideia, que parecia genial demais para Boyce. — Não precisa ter dezoito anos? Ele riu baixo. — Não, cara... Você não me conhece? Sei de uma garota que faria isso. — Não sei. Talvez. Ele deu de ombros. — Fala comigo se decidir. Eu ajeito tudo.

O nome dela era Arianna e devia ter vinte e poucos anos. Um braço era coberto de tinta colorida, e o outro tinha duas linhas escritas no antebraço: Novos começos muitas vezes chegam disfarçados de fins dolorosos. Lao Tzu. Chegamos uma hora depois de o estúdio fechar, porque eu não tinha idade para fazer uma tatuagem sem autorização dos meus pais. — Se quer a tatuagem para meio que cobrir as cicatrizes, como uma cortina de fumaça, o tecido cicatrizado tem de ser pintado. Mas você pode incorporar as cicatrizes ao desenho, deixá-las dentro dos espaços negativos. Ficariam escondidas, como se fossem camufladas. — Ela examinou meus pulsos, virando-os de um lado para o outro e passando os dedos pela área desfigurada e cor-de-rosa. Eu me sentia enjoado e exposto, mas não conseguia me mexer. Boyce estava estranhamente quieto. — Podemos também tatuar toda a volta. Fazer algo como uma munhequeira. Concordei com a cabeça, gostando da ideia. Vimos alguns desenhos em um álbum antes de eu puxar uma folha do bolso de trás.


— Humm. Fiz alguns esboços... Não sei se dá pra usar. Ela desdobrou a folha e sorriu. — Com certeza dá, se é isso que você quer. Eu assenti. Ela transferiu os dois desenhos para os meus pulsos — um no direito, outro no esquerdo —, depois preparou a máquina e pôs as luvas de látex. Doía demais, mas era suportável. Boyce ficou tão incomodado — supus que tivesse sido por causa do sangue, apesar de não ter se incomodado com meu sangue em seus punhos meses atrás — que ela o mandou ficar na sala de espera até terminarmos. — Então, por que você tá fazendo isso? — Cerrei os dentes enquanto ela tatuava sobre o osso na lateral do meu pulso e tentei não pensar na agulha me perfurando muitas e muitas vezes. — Quer dizer, por que tá me ajudando desse jeito? — Eu sabia que Boyce já havia explicado. Ela nem piscou quando removi as bandanas. Ela não desviou os olhos do que estava fazendo. — Porque ter a capacidade de refazer a minha pele salvou minha vida. — Ela limpou o sangue e examinou o trecho que acabara de desenhar. Seus olhos encontraram os meus. — Alguns de nós conseguem diminuir o estrago que outras pessoas causaram fugindo da situação, mas outros precisam de mais do que isso. Tatuagens relatam o que precisa ser dito. Ou escondem coisas que não são da conta de ninguém. Suas cicatrizes são ferimentos de guerra, mas você não as vê desse jeito. Ainda. — Com o pé, ela ligou novamente a máquina. Senti a agulha perfurando minha pele outra vez quando ela começou a desenhar outro elo. — A tinta vai fazer a pele voltar a ser sua. Talvez um dia você perceba que a sua pele não é você. É só o que te abriga enquanto você está aqui. — Ela parou quando um arrepio me fez estremecer. — Você é uma velha alma, Landon. Velha o bastante para tomar essa decisão. Como eu era. Fui para casa com curativos em torno dos dois pulsos e instruções bem claras para cuidar das tatuagens. — Isso é como um ferimento — ela me avisou. — Não exponha a região ao sol. Durante o resto do mês mantive a área escondida, como sempre. Quando o sol tocou a pele dos meus pulsos pela primeira vez em quase dois anos, eu me senti nu. A reação da maioria dos conhecidos era alguma variação de “Tatuagens legais, cara”. Alguns presumiram que eu as escondera sob as faixas o tempo todo, o que me fazia rir. Isso aí. As tatuagens eram o que eu escondia.


As garotas achavam sexy. Às vezes perguntavam: — Doeu? Eu dava de ombros. — Um pouco. Meu pai e meu avô tiveram reações parecidas — um olhar rápido para o desenho quando o notaram. Um grunhido de desaprovação. Nenhum comentário. Minha tatuagem seguinte não cobriu nenhuma cicatriz, não uma visível. Arianna desenhou uma rosa bem em cima do meu coração. Não precisei acrescentar o nome dela, Rosemary Lucas Maxfield, para anunciar quem isso homenageava. Meu pai também não precisou do nome dela. Seu rosto quase ficou roxo na primeira vez em que ele entrou na cozinha e me viu de shorts e sem camisa. Ele olhou para o desenho, ainda recente e brilhante, coberto de pomada, e cerrou os punhos. Em seguida saiu pela porta dos fundos e não disse nem uma palavra sobre isso até semanas mais tarde, quando estávamos no barco. Eu tinha acabado de prender a isca ao anzol de uma criança. O garoto tinha uns dez anos, e tive a impressão de que ele desmaiaria se tivesse de fazer isso sozinho. Pobre garoto. Provavelmente, teria gostado mais de construir castelos de areia ou tomar um sorvete na praia do que de pescar com o pai e o tio. Mas passaria o dia todo preso no barco. Eu conhecia a sensação. Quando me virei para abrir outro recipiente de iscas, meu pai falou em voz baixa: — É ilegal fazer essas coisas sem autorização dos pais. Eu me informei. — Ele olhava para onde uma pétala vermelho-escura espiava pela gola da minha camiseta branca. Esperei, em silêncio, até seus olhos, prateados e fantasmagóricos à luz brilhante do sol, encontrarem os meus. — É a minha pele, pai. Vai dizer que sou novo demais para marcá-la de propósito? Ele se encolheu e virou. — Droga, Landon — resmungou, mas não disse mais nada. De meses em meses, eu acrescentava algo novo. Chamas negras lambendo meus ombros, seguindo a linha marcada dos bíceps. Uma cruz gótica entre as omoplatas, reverenciando minha herança católica materna, com o salmo 23 escrito em volta. Minha mãe não era devotadamente religiosa, mas tinha uma espiritualidade inata que eu agora invejava, e íamos à missa com frequência suficiente para eu ter ideia do que isso significava. Eu me perguntava se teria paz pensando que ela agora estava no céu, não embaixo da terra. Provavelmente não.


No segundo aniversário do dia do seu enterro, furei a sobrancelha. Meu pai xingou até se dar por satisfeito, enquanto meu avô demonstrava estranheza por alguém furar deliberadamente uma parte do corpo. — Fui perfurado por anzóis em várias partes do corpo para querer fazer furos por vontade própria. — Ele tinha uma cicatriz perto do olho; um anzol preso à ponta da vara de um pescador inexperiente quase o cegara. — Um centímetro acima e ele teria arrancado meu olho! Ele gostava de contar a história, e eu a ouvira tantas vezes que quase conseguia não fazer cara de nojo ao imaginar a cena.

No outono, os Heller repentinamente se tornaram muito mais próximos, porque Charles aceitou uma cadeira de substituto com chance de efetivação na melhor universidade do estado — no interior, a quatrocentos quilômetros dali. Apesar de a nova casa deles não ficar a vinte minutos da nossa, como quando morávamos na Virgínia, não era uma distância impossível para uma viagem de fim de semana. Exceto para meu pai, que se recusava a dirigir quatro horas para ver os melhores amigos. Sua desculpa era o trabalho, como sempre. Foi quando deduzi que as pessoas nunca mudam. Meu pai podia ter se demitido da sua alta posição no banco, mas levara a personalidade workaholic com ele ao deixar Washington. Apesar de o cargo de professor ser um passo à frente na carreira de Heller, Cindy teve de procurar um novo emprego, e Cole e Carlie tiveram de ir para um novo colégio e fazer novos amigos. Sei que fizeram tudo isso pensando em nós, mas meu pai fechou os olhos para o sacrifício que todos estavam fazendo. Por ele. Por mim. Seu silêncio parecia culpar os amigos pelo que havia acontecido, mas era possível que estar perto deles apenas o fizesse lembrar. Talvez minha presença — que ele não podia ignorar com tanta facilidade — também o fizesse lembrar. Eu não precisava de lembrete. Sabia quem culpar por termos perdido minha mãe. Eu mesmo. Ninguém mais. Meu pai recusou o convite para o Dia de Ação de Graças na casa dos Heller — que surpresa. Como eu tinha quinze anos e não dirigia, ele me levou à estação rodoviária antes do amanhecer. Eu podia ter me negado a ir sozinho de ônibus, só para ser chato,


mas teria sido uma revolta inútil. Eu queria ir, mesmo que para isso tivesse de entrar em um ônibus com um grupo de degenerados falidos que me olharam e concluíram que eu era o cara mais ameaçador a bordo. O lado bom: ninguém sentou ao meu lado. O ônibus parou em quatro cidades horríveis para pegar mais fracassados com dificuldades de transporte antes de chegar a San Antonio, onde passei para outro ônibus igualmente ruim com mais um grupo de derrotados. A viagem toda teria sido feita em menos de quatro horas de carro — direto, sem paradas. Em vez disso, depois de seis horas, cheguei a uma estação que cheirava a uma combinação de banheiro sujo de casas de repouso e áreas de Washington nas quais meus amigos e eu não tínhamos permissão para ir desacompanhados. Charles me esperava lá. — Feliz Dia do Peru, filho — ele falou, me envolvendo em um abraço que apertava meu coração com uma constatação repentina, única: meu pai não havia tocado em mim desde o funeral. Mesmo assim, lembro de ter me agarrado a ele e desabafado meu sofrimento em seu peito rígido, mas não me lembro de ele ter me tocado por conta própria. Ele nunca pronunciara uma palavra para me culpar, mas também não havia palavras de perdão. Continuando nos braços de Charles um pouco além do que era confortável para limpar a umidade dos olhos, eu ataquei a culpa infinita em minha cabeça e desejei que ela permanecesse em silêncio só por hoje. Por uma hora que fosse. Por alguns minutos. — Acho que você vai ficar da altura do Ray — Charles comentou, me segurando pelos ombros e me afastando para me inspecionar. Eu tinha crescido desde a última vez que o vira; olhava nos olhos dele agora. — Também é um pouco parecido com ele, mas tem os cabelos escuros da Rose. — E arqueou uma sobrancelha. — Muito cabelo. Charles fora militar antes de entrar na faculdade. Eu nunca o vira com um fio de cabelo maior do que dois centímetros. Se chegasse perto disso, ele brincava dizendo que parecia um hippie e ia logo ao barbeiro. Ele se divertia atormentando Cole e a mim por causa do tamanho dos nossos cabelos sempre que tinha chance. — Você tá com inveja porque nós temos cabelo — Cole respondeu na última vez em que o pai reclamou porque não conseguia distingui-lo de Carlie. Eu cuspi leite pelo nariz.

Meus pais conheceram os Heller em Duke. Meu pai e Charles estavam fazendo Ph.D. em


economia — mundos distantes de Cindy e minha mãe, que pararam na graduação e eram melhores amigas. Nenhum deles teria conhecido a esposa se não fosse pela decisão da minha mãe de comparecer a uma reunião de alunos da pós-graduação, evento organizado pelo pai dela, um distinto professor de economia, membro da banca examinadora de Charles e do meu pai. Eu tinha oito ou nove anos na primeira vez em que ouvi a história, mas a versão que mais lembro é a de quando me apaixonei pela primeira vez — Yesenia, no oitavo ano. De repente se tornou essencial compreender o amor e o destino. — Vi seu pai da janela do meu quarto e o achei muito fofo. Minha mãe riu quando revirei os olhos. Eu não conseguia imaginar meu pai sendo fofo. — Eu estava cansada dos artistas pretensiosos com quem normalmente saía, e achei que alguém parecido com meu pai poderia ser melhor para mim. Ele sempre ouvia minhas opiniões e falava comigo como se eu tivesse mentalidade própria, e também me mimou muito. Mas os alunos dele eram todos nerds esquisitos... até seu pai aparecer. Eu pensei que, se conseguisse chamar a atenção dele, poderia fazê-lo conversar comigo. É claro que depois ele se apaixonou por mim e me convidou para sair. — As ruguinhas nos cantos de seus olhos se aprofundaram conforme ela lembrava. — Acho que experimentei uma dúzia de roupas antes de escolher uma. Depois desci a escada com passos leves e, confiante, atravessei a sala de estar rumo à cozinha. Meu planinho astuto funcionou, obviamente, porque eu também era muito bonitinha naquela época. Dessa vez fui eu que ri, porque minha mãe era linda. Havia momentos em que eu surpreendia meu pai olhando para ela como se não conseguisse acreditar que aquela mulher estava na sua cozinha, ou morava na sua casa. Como se ela não pudesse ser de verdade, mas era e, de algum jeito, estava com ele. — Ele me seguiu até a cozinha para pegar mais chá gelado. — Minha mãe assentiu ao ver minha expressão confusa. Ninguém conseguia fazer meu pai beber chá gelado. — Só mais tarde descobri que ele odiava chá gelado. Apoiado na bancada, ele me observou enquanto eu fazia um sanduíche. “Então, você é a filha do dr. Lucas?”, perguntou, e eu respondi com o rosto totalmente impassível. “Não. Estava passando pela rua e entrei para fazer um sanduíche.” Eu me virei e olhei nos olhos dele para rir debochada, mas quase parei de respirar, porque ele tinha os olhos mais lindos que eu já tinha visto. Eu tinha os olhos do meu pai, claros e cinzentos como a chuva, então o elogio servia para mim também. Eu ainda não sabia que também herdaria sua altura, suas habilidades


analíticas e o jeito como conseguia desaparecer dentro de si. — Então, o Charles entrou na cozinha. Seu pai o encarou sério, mas ele riu e disse: “Você deve ser a filha do dr. Lucas! Sou Charles Heller, um dos seus muitos discípulos”. Um deles me perguntou o que eu fazia, e contei que estudava em Duke. Seu pai perguntou qual era o meu curso, e eu respondi “Arte”. E então, Landon, ele quase impediu que você nascesse. Esperei perplexo. Nunca tinha ouvido essa parte da história antes. — Ele repetiu: “Arte?” Depois me perguntou o que eu ia fazer com um diploma tão inútil. Meu queixo caiu. — Não é? Senti vontade de socar aquela cara bonita e arrogante. Em vez disso, respondi que tornaria o mundo mais belo, dã!, demonstrando como não me impressionava saber que tudo que ele ia fazer era “ganhar dinheiro”. Subi a escada pisando duro, cuspindo pregos e determinada a nunca mais olhar para um aluno do meu pai, por mais fofo que fosse. Até esqueci o sanduíche. O resto da história era familiar: um convite impulsivo, transmitido por Charles em um encontro casual, para sua primeira exposição em uma galeria. A melhor amiga dela, Cindy, estava lá para apoiá-la, caso Raymond Maxfield fosse insuportável. Mas meu pai era o contrário de insuportável. Ele ficou fascinado ao avaliar seu trabalho. Minha mãe sempre fazia bico dizendo que tinham sido suas telas, não seu charme, sua beleza ou sua insolência, que o fizeram se apaixonar por ela. Ele sempre insistia que, definitivamente, tinha sido sua insolência. Eu sabia qual era a verdade. Ele se apaixonou por tudo isso, e, quando ela morreu, foi como se apagassem o sol, e ele não tinha mais nada em torno do que orbitar.

LUCAS Horas depois de chegar em casa da boate na noite de sábado, eu ainda não conseguia parar de pensar em Jacqueline — em como ela se encaixara no meu corpo, como se deixara amparar por meus braços. Seus olhos azuis e densos na boate cheia de fumaça. O hábito nervoso de engolir. As perguntas gaguejadas. Como se todo mundo tivesse desaparecido no momento em que a puxei para perto, não senti a mistura de suor e


perfume dos corpos espremidos à nossa volta — apenas seu cheiro doce. Eu não conseguia mais ouvir a música, os gritos ou as risadas. Só tinha consciência da batida, do pulsar vigoroso, como se o sangue girasse sem fim por meu corpo. Em casa, deitei na cama e fiquei olhando para o teto enquanto minha imaginação corria solta. Imaginava o corpo dela estendido sobre o meu, os joelhos afastados, os movimentos encontrando os meus, a boca aberta para receber minha língua. Minhas mãos apertaram minhas coxas, e cada nervo do meu corpo se incendiou. Eu sentia sua pele suave, nua. Os cabelos sedosos roçando as laterais do meu rosto. Sua total confiança. Puxei um travesseiro contra o rosto e gemi, sabendo que tudo que eu fizesse agora para aliviar a pressão crescente seria muito inferior ao que eu realmente queria. Eu não podia tê-la, por várias razões. Era inacessível por ser aluna da minha turma — coisa que ela não sabia. Estava saindo de uma relação de três anos. Eu era testemunha de uma humilhação que ninguém devia ter de suportar, e ela tinha medo de mim. Talvez um pouco menos agora, minha mente murmurou. Não consegui evitar a excitação que me invadiu, por isso a deixei seguir seu curso. Então segui adiante e me dediquei àquele alívio de segunda categoria para poder pelo menos dormir.

Noite de domingo, Joseph e eu nos encontramos em um bar no distrito dos armazéns para ver uma banda alternativa de Dallas da qual gostávamos. Apesar de mal ter dormido na noite anterior e ter treinado por duas horas no dojang à tarde, eu estava elétrico e estranhamente contemplativo — duas coisas que costumo eliminar facilmente em uma boa sessão de luta. O mestre Leu aceitou treinar comigo, já que não tinha mais ninguém lá para lutar, e ele chutara meu traseiro. Para um homem tão pequeno, ele era o cara mais fera que eu já tinha conhecido. Eu o observara em uma demonstração de treinamento e vi quando, com dois movimentos, derrubou um oponente maior e com graduação equivalente, imobilizando-o com uma gravata que teria feito um inimigo de verdade desmaiar. O golpe podia acabar com a traqueia do adversário. O agressor de Jacqueline não fazia ideia da sorte que tivera por eu ainda estar alguns graus abaixo de poder aprender aquele golpe.


— Cara, você não está mais no Kansas. — A voz de Joseph interrompeu meu devaneio. Eu sorri, debochado. — Nunca estive lá, na verdade. Ele balançou a cabeça. — No que, ou em quem, está pensando? Nunca vi você tão distraído. Perguntei três vezes se vai pra casa no Dia de Ação de Graças, e você me ignorou. Não tá ouvindo nada. Balancei a cabeça e suspirei. — Foi mal, cara. Sim, eu vou pra casa. E você? Ele balançou a cabeça e terminou de beber sua dose de tequila. — Vou pra casa do Elliott. A mãe dele me ama. — Seus lábios se contorceram quando ele apoiou um cotovelo sobre o bar e olhou para mim. — A minha, não. Joseph dera pistas da rejeição da família antes, mas nunca a colocara com tanta clareza. Eu não sabia o que dizer. — Então... você não pode levar o Elliott na sua casa? — Não, cara. Não sou bem-vindo em casa. Ponto-final. É uma zona restrita para bichas. — Caramba. Que merda. Ele deu de ombros. — É assim. A família do Elliott não tem problemas em aceitar a gente como um casal, a mãe dele arruma um quarto de hóspedes para nós que pode ser comparado ao de qualquer pousada, mas tiveram de superar o fato de eu ser um trabalhador braçal. A família toda é estudada. A irmã mais nova do Elliott está na faculdade de medicina. Na primeira vez que encontrei a família toda, ele só revelou onde eu trabalhava. Imagine a surpresa quando descobriram que eu mantinha em ordem o encanamento do campus, em vez de lecionar história, matemática ou, sei lá, estudos femininos. — Ele riu. — Não consigo relaxar, cara. Sou gay demais para ser caipira, e caipira demais para ser gay. O que quer que meu pai pensasse sobre mim, independentemente do que eu fizesse para irritá-lo, mesmo que deliberadamente, ele nunca me disse que eu não era bemvindo em casa. Eu sabia sem pensar que podia voltar a morar lá agora mesmo, se quisesse. Eu não iria. Mas podia. A banda subiu no palco, e Joseph e eu ouvimos o som que não era nem pop nem de musical, bebemos alguns drinques e atraímos os olhares interessados de várias garotas. — É — ele disse, arqueando uma sobrancelha para um trio barulhento delas, que


insistia em olhar para nós. Com as mãos na nuca, ele flexionou os bíceps embaixo das mangas da camiseta branca. — Ainda tenho isso, mesmo sem querer. Rindo, balancei a cabeça e fiz sinal para o garçom, pedindo mais uma rodada. Eu nunca pegava uma garota quando estava com Joseph, mas soube que estava pisando em território diferente quando me dei conta de que não estava nem curioso para saber se uma daquelas meninas era bonita. Só havia uma possível razão para esse desinteresse. Eu não conseguia parar de pensar em ter Jacqueline Wallace em meus braços outra vez, faça chuva ou faça sol. Conhecia bem as duas opções.

Na segunda-feira de manhã eu estava de ressaca e meio amortecido. Toda vez que via Charles eu me sentia culpado. Toda vez que pensava em Jacqueline, a culpa era ainda maior. Ela não tinha me mandado nenhum e-mail durante o fim de semana. Eu havia tido uma espécie de premonição sobre ela descobrir que eu era Landon, e dito a mim mesmo, de novo, que precisava pôr um ponto-final nisso. Agora. Ela desabou na beirada da cadeira ao meu lado. Fiquei tão abalado que nem disse nada. Só olhei. — Oi — ela disse, me tirando do estupor. Temendo que meu pressentimento estivesse prestes a se confirmar, concentrei-me no sorriso sutil que distendia os cantos de sua boca. — Oi — respondi, abrindo meu livro para esconder o desenho que estava fazendo. — Então... acabei de perceber que eu não lembro do seu nome. — Ela estava nervosa. Não zangada. Nervosa. — Acho que bebi margaritas demais naquela noite. Essa é sua chance. Na aula de economia. Quer lugar melhor para esclarecer a... confusão com seu nome? Olhei para os seus grandes olhos azuis e disse: — É Lucas. E eu acho que não cheguei a mencionar. Droga. Heller entrou pela porta da frente pisando duro e xingando e se dirigiu ao tablado, e o sorriso de Jacqueline se ampliou um pouco. — Então... Você, humm, me chamou de Jackie naquele dia. Eu prefiro ser chamada de Jacqueline. Agora. Eu a chamei de Jackie? Quando... Ah. Naquela noite.


— Tudo bem — respondi. — Legal te encontrar, Lucas. — Ela sorriu mais uma vez antes de se apressar até o seu lugar enquanto Heller arrumava as anotações para a aula. Jacqueline não se virou para olhar para mim durante a aula toda, embora parecesse distraída — evidente pelo jeito como se remexia na cadeira, a menos que estivesse conversando com o cara a seu lado. Os dois riram baixo algumas vezes, e eu não consegui deixar de sorrir. Não era a primeira vez que eu ouvia a risada dela — mas agora estava conectado a ela. Sentia o som daquela risada da cabeça aos pés e dos pés à cabeça. Queria fazê-la rir, coisa que Landon fazia, sem dúvida. Por mais absurdo que fosse ter inveja de mim mesmo, eu tinha. Ela respondia aos emails brincalhões de Landon com outras brincadeiras. Quando ele contou que era estudante de engenharia, ela respondeu: “Não é à toa que você parece ser tão inteligente”. Paquerando diretamente um monitor. Palavras cuidadosas, possivelmente inofensivas... mas, dado o contexto, uma paquera. Droga. Eu estava com ciúmes de Landon. De todas as reações idiotas que eu poderia ter tido agora, essa era a mais ridícula. No fim da aula, ela se levantou apressada e saiu antes mesmo que eu conseguisse terminar de guardar as coisas na mochila. Algum impulso primitivo, predador, me induzia a levantar e segui-la, como se essa fosse a resposta mais sensata para sua rápida saída. Reduzi conscientemente a velocidade com que guardava os livros e o caderno na mochila, perplexo. Ela estava me enlouquecendo. E eu estava adorando. Merda, eu estava encrencado.

Concordei em cobrir duas horas do turno de Ron para ele conseguir se encontrar com um professor de arquitetura que só ficava no campus algumas horas por semana. Também tinha de cumprir horário no estacionamento à tarde, depois da monitoria e das duas horas do meu projeto de pesquisa. Não teria tempo de estudar até as dez da noite. Esse dia, com a única exceção de Jacqueline ter iniciado aquela conversa de um minuto de manhã, seria horrível. Olhei para o meu telefone entre uma tarefa e outra. Faltava meia hora, e o movimento era intenso. Os dois recipientes de café estavam esvaziando. Assim que houve um intervalo na fila, fechei meu caixa. Bem na hora, porque um grupo de


estudantes entrou e se dirigiu à fila do caixa de Eve. — Eve, vou lá no fundo buscar café. Tá acabando. — Traz uma garrafa de vodca pra mim — ela respondeu. Eve era ainda mais malhumorada quando o movimento era grande. O que acontecia em cerca de noventa por cento do tempo. — Traz uma pra mim também, Lucas! — A secretária do departamento de engenharia mecânica era a próxima na fila. De pele morena e cabelos brancos, Vickie Payton era um gênio organizacional para a maioria dos professores, uma fonte valiosa de informação para os alunos e um ombro no qual todos podiam chorar. — Não é um pouco cedo, sra. Payton? — brinquei, já a caminho da porta dos fundos. — Matrículas de primavera — ela explicou com uma careta. — Meu Deus. — Ah. — Pisquei para ela. — Duas vodcas e um pacote de café do Quênia saindo já. — Quem me dera — resmungou Eve enquanto registrava o pedido de Payton. Peguei a embalagem de café e a abri. A fila havia aumentado, mas Eve, cuja apatia com as pessoas em geral não prejudicava sua eficiência, felizmente tinha tudo sob controle. Sem pensar, dei uma olhada na fila procurando Jacqueline. Durante as duas semanas em que ela faltara nas aulas, procurá-la no campus se tornara uma reação automática, algo que eu fazia sempre que entrava em um ambiente onde havia a menor possibilidade de ela estar. A probabilidade de Jacqueline aparecer por aqui era maior do que em todos os outros lugares. Apesar disso, eu ainda fiquei perplexo ao vê-la. Meus olhos a percorriam lentamente, devoravam cada detalhe, como se ela fosse minha última refeição, que ao mesmo tempo eu desejava consumir toda e saborear. Ela estava com a amiga mais uma vez, e a garota me observava. Jacqueline não, definitivamente. Mas elas conversavam animadas, e Jacqueline corava tão intensamente que eu conseguia ver o tom rosado em suas bochechas a três ou quatro metros de distância. Com esforço, virei-me para fazer o café, mas os pelos dos meus braços se eriçaram. Todo o meu corpo tinha consciência dos olhos dela sobre mim. Meus antebraços estavam totalmente visíveis, e ela não vira as tatuagens antes. Naquela noite, dentro da caminhonete, ela olhara para o piercing em meu lábio, e eu soube que era uma dessas garotas que, por princípio, evitavam caras como eu. Eu era o representante perfeito de péssimas escolhas de vida. Pelo jeito como se vestia, eu soube que ela era uma garota tradicional, como as amigas. E o ex. Droga, se alguém me colocasse ao lado do cretino que a atacara e perguntasse à população em geral quem era


o estuprador, eu receberia muito mais votos. Mesmo assim, ela estava me olhando agora. Na pista de dança no sábado à noite, ela permanecera em meus braços como se se sentisse segura, contra seu melhor julgamento. Ela estava confusa, mas curiosa. Interessada. Eu sentia essa verdade no fundo do estômago, e era uma sensação envolvente e enervante. Eu queria a atenção dela. Toda a sua atenção. E pretendia tê-la. Pressionei o botão “ligar” da máquina de café e voltei para o caixa ao lado de Eve sem levantar a cabeça. Assim que minha colega atendeu o cara na frente de Jacqueline, eu olhei para ela. — Próximo. — Ela piscou como se eu a tivesse surpreendido fazendo alguma coisa errada, mas se aproximou. — Jacqueline — eu disse, como se tivesse acabado de notar sua presença. — Um café americano hoje, ou outra bebida? Ela se surpreendeu por eu me lembrar do que ela pedira uma semana atrás. Eu poderia catalogar com prazer suas preferências e o que ela não gostava. Cada um deles. De como preferia o café a como gostava de ser beijada, ou que carícia era capaz de fazêla estremecer da cabeça aos pés. Ela assentiu. Peguei um copo e uma caneta, mas preparei sua bebida eu mesmo. Eve arqueou a sobrancelha com dois piercings para mim, porque sabia o que eu tinha acabado de fazer. — Agora tá dando o telefone pra garotas de fraternidade? — ela murmurou. — Que lixo. — Pra tudo tem uma primeira vez. Balançando a cabeça, ela limpou as válvulas de café e serviu duas doses de expresso em um copo grande. — Não, na verdade, não tem. Dei de ombros. — Tem razão. É aceitável se ela não for de nenhuma fraternidade? Os lábios dela se torceram, e tive a impressão de que Eve fazia um grande esforço para não sorrir. — Não. Mas é menos inaceitável. Enquanto Eve e eu registrávamos os pedidos e a fila diminuía, não me permiti observar Jacqueline se dirigindo ao balcão central para acrescentar três sachês de açúcar e um pouco de leite ao café. Eu sabia exatamente onde ela estava o tempo todo, a cada segundo, mas a ignorei até ela passar pela porta, quando me dei conta de que não conseguia olhar para mais nada.


— Ah, meu Deus. Alguém tá ferrado. — Eve riu, o que fez o cara do outro lado do balcão sorrir para ela. Ele vestia uma camiseta da Pike. — O que que foi? — Eve disparou, encarando o cliente. O sorriso desapareceu e ele levantou as mãos. — Nada... é só... uma bela risada. Só isso. Ela revirou os olhos e se virou para pegar uma embalagem de leite de soja, ignorando-o. Quando o cara olhou para mim e ergueu as sobrancelhas claras, dei de ombros. Eu não conhecia a história de Eve, mas não tinha como atravessar aquela barreira carregada de explosivos. Na metade do tempo, ela mal conseguia ser civilizada comigo, e ela gostava de mim.


12

LANDON Quando o semestre seguinte começou, eu me vi na quarta aula, biologia, com Melody Dover e Pearl Frank — que era Pearl Torres, companheira na mesa dos fracassados no almoço do colégio anterior, quando eu estava no oitavo ano e ela, no sétimo. A mãe dela se casou com o dr. Thomas Frank, conhecido cirurgião da cidade, playboy e solteirão inveterado — até encontrar sua cara-metade em Esmeralda Torres, que queria um enorme diamante no dedo e amparo para a filha na vida. Conseguiu os dois. Pearl, que era uma nerd esquisita quando a conheci, fez alguns cursos de verão no colégio para pular o nono ano, passou por uma repaginada e comprou toneladas de roupas de marca, chegando ao ensino médio mais gostosa e rica do que jamais havia sido. Melody não perdeu tempo em tornar Pearl sua mais nova melhor amiga. Elas trocaram um olhar menos que eufórico quando foram mandadas para a única mesa meio vazia do laboratório, onde Boyce e eu já estávamos. — Então, por que vocês estão fazendo biologia neste horário? Foram expulsas da turma por serem gostosas demais? — ele perguntou. As duas reviraram os olhos, e eu balancei a cabeça e olhei para a mesa preta riscada, tentando não sorrir. Ele ficou completamente maluco por Pearl assim que a viu no corredor, em setembro. Pena ele não ter prestado a menor atenção nela antes, no ensino fundamental, quando Pearl não tinha amigos. Agora ela retribuía o favor. — Não, idiota — respondeu Melody, inclinando a cabeça para ele. — Nós duas entramos para a equipe de dança, e o treino é na última aula. Era o mesmo horário da aula de biologia no semestre passado, por isso tivemos de trocar. Que sorte a nossa. Então ela olhou para mim, notando as tatuagens que escapavam pelas mangas da minha jaqueta, o piercing na sobrancelha e o outro na orelha. Por um segundo, nossos olhares se encontraram, antes de ela desviar os olhos.


— Nossa, Dover... não precisa ser hostil — Boyce riu. Ela o encarou, se opondo a ser chamada pelo sobrenome, eu acho — especialmente por Boyce, que me contou ter passado o fundamental todo chamando a garota de Rover Dover. Boyce havia queimado todas as pontes que atravessara, o que fazia da nossa amizade uma espécie de anomalia de sua habitualmente deficiente capacidade de interação social. Nossa mesa ficava no fundo da sala. Boyce e eu nos apoiamos na parede, os bancos equilibrados sobre duas pernas, em um claro desrespeito às normas do laboratório. Ou o sr. Quinn não notou a transgressão, ou não se importava o bastante para chamar nossa atenção. Melody e Pearl tinham de virar para olhar para a frente da sala, deixando sobre a mesa cadernos e bolsas, que ficaram vulneráveis à inspeção de Boyce. As garotas estavam trocando bilhetes que rabiscavam no caderno de Melody, e, quando viraram de costas para nós, Boyce puxou o material para o nosso lado da mesa para ler o que diziam. — Para com isso, cara — sussurrei. — Que merda. — Ameacei empurrar o caderno de volta, mas ele ergueu o cotovelo e bloqueou meu movimento. Com os olhos arregalados, apontou a caligrafia feminina que eu reconheci ser de Melody. Balancei a cabeça, e as sobrancelhas dele se ergueram. — Olha, cara. É sério. Passei os olhos rapidamente pela página e li: “É impressão minha, ou o Landon Maxfield está UMA DELÍCIA este ano??? Meu. DEUS”. “Mas você tem o CLARK”, Pearl escrevera embaixo. Ao que Melody respondera: “Posso olhar, não posso? IMAGEMM Troca de lugar comigo. Quero sentar na frente dele”. Olhei para a parte de trás da cabeça de Melody, para os loiros e sedosos cabelos descendo lisos e pesados sobre as costas até tocarem a mesa. Hoje eles lhe cobriam as orelhas, escondendo de mim um lado de seu rosto. Ela continuava no mesmo lugar de antes, no banco em sentido diagonal ao meu. Pearl balançara a cabeça, franzindo a testa em algum momento da troca de bilhetes, provavelmente nesse. Não havia resposta dela no caderno. “Droga, Pearl. Que tipo de cupido é você?”, Melody escrevera. “Do tipo que vai te impedir de fazer uma besteira. Dã!”, respondera Pearl. Virei o caderno e o empurrei de volta ao lugar de antes, minha mente girando, enquanto Boyce fingia agarrar o pinto e se masturbar. Dei um soco em seu braço e ele


perdeu o equilíbrio. O banco escorregou sob seu corpo e caiu, fazendo um barulho horrível e nos tornando o centro das atenções. Em pé, ele tentou revidar o soco, mas deixei meu banco cair para frente, sobre os quatro pés, e escapei dele. — O sr. Wynn decidiu demonstrar o que acontece quando se viola a norma do laboratório referente a manter os quatro pés do banco no chão. — O sr. Quinn suspirou alto. O resto da turma riu enquanto Boyce levantava o banco e se sentava de cara fechada. — Palhaço — Melody resmungou. — Precisa de atendimento médico, sr. Wynn? — o sr. Quinn perguntou, aproveitando o interesse e a popularidade que nunca conseguia despertar com suas aulas. — Não, sr. Quinn. Minha bunda e outras partes importantes estão bem. É que hoje isso aqui tá uma delícia. Meu. Deus. — A sala explodiu em gargalhadas, e o sr. Quinn tentou restabelecer a ordem. Melody o encarou estreitando os olhos, e um segundo depois elas entenderam o comentário. Seus olhos saltaram para mim e seu queixo caiu conforme o rosto era tingido de um vermelho intenso. Olhei para os lábios rosados brilhantes, depois para os olhos claros. Ela pegou o caderno, o fechou com um movimento firme e virou para frente com ele nas mãos. Dei outro soco em Boyce, que caiu do banco mais uma vez, e Quinn nos mandou para a diretoria com os bilhetes amarelos que resultariam em detenção depois do horário. — Caramba, Wynn. — Tirei o cabelo dos olhos conforme saímos do laboratório. — O quê? Você não queria saber que a sua gostosinha favorita te acha... Eu virei e o empurrei contra um armário, e ele levantou as mãos. — Porra. Cara, não vai perder a cabeça por causa de uma garota como ela... — E Pearl Frank é diferente? — disparei, virando para seguir rumo à diretoria, onde Ingram sem dúvida ficaria eufórica por nos ver de novo. Ele suspirou e me seguiu, nossos passos ecoando no corredor vazio. — Sou realista, cara. Só quero pegar. Sei que não posso ter mais do que isso. Revirei os olhos. — Ah, mas pegar é completamente possível. Ele riu. — Caramba, claro que é. Sou Boyce Fodão Wynn. Qualquer coisa é possível. Não deu para não rir, e eu abri a porta da diretoria. Ele nem ouviu o que acabara de dizer. Primeiro dissera que nunca seríamos mais que uma boa pegada para garotas como Melody e Pearl, depois afirmara que tudo era possível.


Eu torcia pela segunda opção.

— Você não vai fazer dezesseis? — meu avô perguntou na noite anterior ao meu aniversário. — Sim, vô. — Esperei a piadinha. Com o meu avô, quase sempre havia uma piadinha para esse tipo de pergunta. — Eu não sabia se você estava esperando um vestido cor-de-rosa cheio de babados ou alguma coisa para combinar com esse seu brinco. — Ele riu da própria piada, e eu fiz uma careta. — Na verdade, rosa não combina comigo. Mas obrigado. Ele estava me mostrando sua arma secreta para os borrachudos brownies semiprontos: adicionar um ovo a menos. — Sua avó nunca conseguiu descobrir por que meus brownies ficavam melhores que os dela — ele disse, e eu ri. — Você escondeu seu segredo da vovó? — A mãe do meu pai morrera quando ele estava no ensino médio, então eu não cheguei a conhecê-la. — Ah, claro, escondi sim! Ela, que Deus a tenha, tentou arrancar essa informação de mim. — Seus olhos ficaram vidrados, cheios de lembranças. Olhei para a vasilha e misturei os ingredientes, dando a ele certa privacidade. Enquanto eu ainda mexia a massa, ele se inclinou. — As mulheres adoram chocolate. Nunca se esqueça disso, garoto. Se puder servir chocolate caseiro, melhor ainda. Esse segredo vai tirar você da casinha do cachorro, garanto. Anote minhas palavras. — Vô... isso aqui não é caseiro. Ele bufou. — É quase. — Eu despejei a mistura cremosa na assadeira que ele me fez untar com manteiga, o que foi um pouco nojento. — A manteiga vai dar crocância. Espalhe bem a massa nos cantos — disse ele. Quando coloquei a assadeira no forno, meu avô perguntou: — Do que estávamos falando? Ah, sim, da sua idade avançada. — Ele riu, e eu revirei os olhos quando ele não estava olhando para mim. Ainda esperando a piadinha. — Acho que amanhã temos que começar a ensiná-lo a dirigir. — Meu queixo caiu. Como eu não respondi, ele acrescentou: — A menos que você não queira.


— Eu quero! — respondi, saindo do estupor. — Eu só... eu não achei que você e o meu pai iam... — Não se anime demais. Não tem nenhum carro novo por trás dessa proposta. Só minha velha caminhonete Ford, e quando eu não estiver usando. Achei que você poderia querer sair com alguém, ou algo assim... Desde que não seja com o tal Boyce Wynn. Você consegue coisa melhor. — Meu avô riu de si mesmo, e dessa vez eu ri com ele, balançando a cabeça. — Obrigado, vô. Seria incrível. Ele se dirigiu até a bancada e pegou um manual de direção na gaveta ao lado da dos talheres; ele estava cheio de segredos naquela noite. — Comece aprendendo as regras, e eu aviso a população para deixar as estradas paralelas livres no fim de semana. — Rindo, ele deu um tapinha no meu ombro antes de sair da cozinha, e fui para o meu quarto-despensa, me joguei na cama e abri o manual, atento ao alarme do forno.

O sr. Quinn passava de mesa em mesa distribuindo doenças. — Cada grupo vai identificar como a doença específica é causada. Genética, vírus, bactéria, química etc. Quero saber se há métodos preventivos, se existem tratamentos conhecidos ou em discussão, e se é ou não contagiosa. A mesa ao lado da nossa pesquisaria o antraz. Nós ficamos com intolerância a lactose. — Mas que merda de... — Sr. Wynn, ficarei grato se guardar suas deficiências de linguagem para si. — Mas, sr. Quinn, intolerância a lactose? Que tipo de doença é essa? Gente que suja a calça quando bebe leite? — A sala explodiu em uivos, enquanto Melody lançava um olhar homicida para Boyce e Pearl suspirava e cobria os olhos, os cotovelos apoiados na mesa. O rosto do professor se contorceu em irritação. Como era de prever, nada disso abalou meu amigo. — Parem de beber leite. Problema resolvido! Não podemos ficar com alguma coisa, tipo, sei lá, ebola? Quinn voltou para a frente da sala quando o sinal soou. — Comecem a pesquisa hoje e estejam preparados para discutir suas descobertas com o grupo amanhã! — ele avisou enquanto saíamos para almoçar.


— Como você pode ser amigo daquele idiota? — Melody me perguntou conforme nos dirigíamos à porta. Dei de ombros e sorri para ela, segurando a porta aberta. — Porque ele é divertido? Melody reconheceu com um movimento de cabeça. — Para quem se diverte com a completa idiotice. — E ameaçou retribuir meu sorriso, mas desistiu quando o namorado envolveu seus ombros com um braço no momento em que pisamos no corredor. Ele sempre a esperava depois da aula. — E aí, gatinha? — Ele olhou para mim. — E aí, aberração emo. Já botou um piercing no pinto? — Clark — Melody o censurou conforme seguíamos o fluxo de alunos, a maioria ansiosa para escapar dali por meia hora. — Por que essa fascinação pelo meu pinto, Richards? — perguntei. Ele se virou e então olhou por cima do meu ombro, onde eu sabia que Boyce estava. — Some daqui, aberração — disse, levando Melody para o corredor à direita, rumo ao estacionamento. — Acho que o Richards precisa de um repertório novo. — Com os olhos, eu acompanhava o balanço do quadril de Melody, vendo o braço do namorado em torno do pescoço dela como uma coleira. — Hum? — Boyce arqueou uma sobrancelha. — Você sabe que agora ele compra do Thompson, né? Eu ri. — Perfeito. Então ele não é só um cretino, é hipócrita também. — Cara. Eu podia ter te contado isso anos atrás. — E cumprimentou um amigo por cima da cabeça de duas garotas, enquanto eu via Melody e Clark desaparecerem pela porta dos fundos. — Eu contei que ele tentou me pagar para bater em você de novo? Parei de repente e um calouro trombou em mim e caiu sentado. Eu me abaixei, segurei a mão dele e o ajudei a levantar, me perguntando se ele carregava na mochila todos os livros do semestre. O cara tinha o dobro do peso que deveria. — E o que você respondeu? — perguntei a Boyce, enquanto o calouro agradecia gaguejando e se afastava depressa. Boyce riu e levantou uma sobrancelha. — Disse para ele ir se foder, claro.


LUCAS Jacqueline não me ligou nem mandou mensagem, e eu concluí que (a) ela não vira o número no copo, ou (b) simplesmente não estava interessada em falar comigo. Levando em conta que ela tinha me falado seu nome e perguntado o meu, não pensei que fosse indiferente. Ela mandou um e-mail para Landon, mas a mensagem tratava apenas de economia. Ou ao menos era o que parecia. Ela mencionou que tinha saído com amigas no sábado. Quando respondi, eu me limitei a este comentário: “Espero que tenha se divertido com suas amigas”. Uma noite da qual eu sabia tudo. Ela não contaria mais nada a Landon a respeito da noite de sábado, claro... mas eu queria que contasse. A cada troca de mensagens eu me enterrava em um buraco mais fundo, mas não conseguia parar de cavar. Então fiz uma alusão a seu rompimento com o ex, expliquei que não tinha tido a intenção de ser grosseiro agindo como se não quisesse saber os detalhes. Nas entrelinhas, eu pedia: “Me conte”, mas não esperava que ela respondesse a esse pedido velado, que revelasse uma parte sua tão desprotegida. Em um parágrafo, ela despejou tudo. O tempo que ficaram juntos. Como ela o seguira para a faculdade, em vez de se candidatar a um renomado programa musical longe dali. O modo como se culpava inteiramente por ter sido idiota. Por ter acreditado nele. Ela pensava estar presa em um lugar que não era o seu em consequência dessa decisão. Eu não acreditava em destino ou poderes superiores, por mais que quisesse. Minha fé estava em assumir responsabilidade, e, claramente, essa garota pensava como eu. Mas eu não podia criticá-la por ter seguido alguém que amara por três anos — essa atitude sugeria uma lealdade pela qual ela não se dava o devido crédito. Se Jacqueline acreditava em responsabilidade, a melhor coisa que podia fazer era retomar o controle. Aceitar a decisão que tinha tomado, os motivos que a levaram a tomá-la. E fazer o melhor possível com isso. E foi isso que sugeri.


Na quarta-feira ela chegou cedo à aula, e eu tomei uma decisão impulsiva — a única coisa que eu parecia capaz de fazer com relação a Jacqueline Wallace. Eu me sentei na cadeira ao lado da dela e chamei seu nome. Ela se assustou um pouco ao levantar a cabeça, provavelmente esperando ver o colega que sempre sentava ali. Mas não se afastou de mim. — Acho que você não percebeu o número de telefone no seu copo de café — falei. — Percebi. — Sua voz era suave para uma resposta tão objetiva, e havia uma curiosidade autêntica em seu olhar firme. Pedi seu número, e ela me perguntou se eu precisava de ajuda em economia. Quase engasguei, dividido entre a agora conhecida culpa e o humor do absurdo da situação em que eu tinha me metido. “Está precisando de ajuda com a matéria de economia?” Eu quis saber por que ela estava achando isso, imaginando, por uma fração de segundo, se ela sabia e estava tirando uma com a minha cara. Se fosse isso, eu certamente merecia. — Acho que não é da minha conta — ela resmungou, irritada. Eu tinha de desviar a conversa dessa linha de pensamento. Inclinei-me para ela e disse a verdade, que pedir o número do seu telefone não tinha nada a ver com economia. Ela pegou seu celular e me mandou uma mensagem: “Oi”. O colega dela chegou querendo seu lugar. (Benjamin Teague, de acordo com a lista de presença. Eu havia checado seu endereço no campus, horário de aulas, notas e ocorrências disciplinares — inexistentes, aliás. Ele parecia inofensivo, apesar da predileção por camisetas de fraternidade, e a fazia rir, o que era um ponto a seu favor e, ao mesmo tempo, um motivo para eu querer esganá-lo.) Liberei a cadeira, lutando contra um sorriso satisfeito. Ela não me ligou... mas tinha meu número gravado na agenda. E agora eu tinha o dela. Perto do fim da aula, levantei a cabeça e vi que Jacqueline olhava para mim — pela primeira vez. Eu não tinha prestado atenção na aula, porque estava ocupado com alguns desenhos de engenharia mecânica para o projeto de pesquisa do semestre que vem com o dr. Aziz. Nada além de pensar em Jacqueline interrompia meu entusiasmo com o e-mail que eu havia recebido no dia anterior, confirmando que eu tinha sido aceito. Eu trabalharia com dois dos mais importantes membros do departamento de engenharia da universidade, e meu último semestre seria pago pela bolsa do projeto. Eu continuaria na monitoria do Heller e ainda faria alguns turnos no estacionamento, mas poderia abrir


mão do café, que atualmente ocupava quinze horas da minha semana. Durante os segundos em que Jacqueline e eu nos olhamos, a voz de Heller silenciou e todos na sala desapareceram. Não consegui retomar o projeto de Aziz, nem lembrar todas as ideias que ocupavam minha mente um minuto atrás. Meu passado evaporou. Meus planos para o futuro ficaram confusos. Todas as células do meu corpo tinham consciência dela, só dela. Eu sabia que podia ser cauteloso com ela. Sua confiança seria difícil de conquistar, porque ela tinha medo de sofrer outra vez, mas eu podia vencer isso. Eu soube, por esses breves segundos em que nos encaramos e por aquela única vez em que a tive nos braços, que ela corresponderia. Que conseguiria levar seu corpo a um nível de prazer que ela nem ao menos podia ter conhecido com um ex-namorado narcisista, apesar do tempo que passaram juntos. E não tinha mais nada para lhe oferecer. No fim do ano — dentro de alguns meses —, eu pretendia encontrar um emprego em algum lugar longe dali. Fugir do estado, do meu pai. Construir uma carreira e uma vida sem amarras emocionais. Não por muito tempo, talvez nunca. Eu queria essa garota, mas não me apaixonaria por ela. Ela merecia o coração de alguém. Alguém honesto e leal. E eu não era esse homem, por mais que quisesse ser.

Landon, Vamos fazer fajitas de carne amanhã à noite — venha, se estiver livre. E eu vou aplicar um teste sobre IPC na sexta de manhã, se quiser incluir o assunto na folha de exercícios da quinta-feira. O teste deve durar quinze ou vinte minutos, então pode ir tomar um café e chegar mais tarde. CH

Jacqueline e eu não tínhamos abordado IPC, então, assim que montei a folha de exercícios, enviei para ela por e-mail. Também questionei sua interpretação de era-paraser com relação à decisão de seguir Kennedy Moore para a faculdade: “Você pode ter certeza de que estaria melhor em outro lugar?” Perguntei no que ela pretendia se formar, pensando se ela havia desistido da música por completo e torcendo para que não. Sua resposta, educação musical, foi um alívio, mas ela lamentava a ideia de lecionar, como se isso fosse impedi-la de tocar. Eu não conseguia enxergar a relação. Pobre de


quem ousasse dizer ao Heller que ele não fazia economia porque estava lecionando. A pessoa ouviria um sermão sobre como ele conduzia pesquisas para respeitadas publicações do setor, mantinha-se atualizado sobre eventos econômicos globais e participava de conferências influentes da área. Acrescentei um lembrete no final ordenando que ela fizesse a folha de exercícios antes de sexta-feira. Ela respondeu me chamando de feitor de escravos. Fechei o notebook e fui correr, mas o exercício não reduziu o efeito incontrolável de suas respostinhas impertinentes. Fiquei andando pelo apartamento durante meia hora, segurando o celular e olhando para o número dela. Deixando de lado toda a hesitação, mandei uma mensagem:

Oi. :)

Ela respondeu no mesmo tom. Perguntei o que ela estava fazendo e comentei sobre seu rápido desaparecimento no fim da aula. Disse para ir ao Starbucks na sexta à tarde, quando o movimento era fraco, e acrescentei:

Um americano por conta da casa?

Ela aceitou o convite, e eu tive um momento de euforia seguido pelo desejo de me espancar até cair. — Por que você ficou aí sentado e me deixou fazer isso? — perguntei a Francis. Ele me lançou um firme olhar felino. — Você podia pelo menos ter tentado me impedir. Ele lambeu uma pata, a passou pelo focinho e me encarou de novo. — É assim que começa a esquizofrenia? Primeiro converso com uma garota como se eu fosse dois caras diferentes, depois falo com meu gato. Atingi um novo nível. — Miiiiau — ele respondeu, se encolhendo num círculo.


Sempre que Charles e Cindy faziam churrasco ou fajitas, eu não precisava perguntar a hora do jantar — bastava esperar o cheiro de carne assada invadir meu apartamento. Peguei a assadeira de brownies que havia preparado e segui para lá. A conversa do jantar foi sobre Cole, que chegaria em duas semanas para a primeira visita desde sua ida para Duke, só para se enfiar em um carro com todos nós e viajar para o litoral. Se Raymond Maxfield não vinha para o Dia de Ação de Graças, a comemoração ia até ele. — Cole vai ficar de mau humor e fedido. Três horas de voo e quatro dentro de um carro? Eca! — Carlie protestou. — Ele tem dezoito anos — respondeu Charles. — Vai dormir. — Boa ideia. Dê um remédio a ele — falou Carlie, cobrindo um nacho com uma camada generosa de guacamole. — Por favor. — Seu apetite era mais do que saudável agora que havia superado o rompimento. Durante a sobremesa, os pais dela trocaram um sorriso quando ela se serviu de um quadrado de brownie. — Hum, isto é como sexo nas nuvens — comentou ela lambendo os dedos, e a expressão do pai endureceu como uma máscara de granito. — Carlie Heller — Cindy a censurou. — Vai matar seu pai com esse tipo de comentário. — O quê? Pai, estou caminhando para a vida adulta — ela disse enquanto mastigava. — Você convive com universitários o dia inteiro. Estou a menos de dois anos de me tornar uma deles! Cai na real. Não posso ser criança pra sempre. Os olhos de Caleb iam dos pais para a irmã e vice-versa. Ele não tinha sido o centro da conversa uma única vez durante a refeição. Como o caçula da família, para ele isso equivalia à invisibilidade. — Stephen Stafford beijou uma cobra — ele disse. — Espero que isso não seja um eufemismo, porque eca — respondeu Carlie. — O que é um eufem... — A cobra da sua aula de ciências? — perguntou Cindy, concentrando-se no filho mais novo. — E como foi que isso aconteceu? — Dale Gallagher desafiou ele. — Ah. — Ela olhou para Charles do outro lado da mesa. — Bem, lamento pelos pais de Stephen Stafford. Caleb franziu o cenho. — Por quê? Ele não deve ter contado aos pais que beijou uma cobra.


— Continuo formando imagens mentais enquanto tento comer, muito obrigada — Carlie reclamou torcendo o nariz. — E Dale Gallagher teve que dar a ele cinco dólares por isso. — Então, acho que podemos lamentar pelos pais de Dale Gallagher também — Charles opinou, arqueando uma sobrancelha para Carlie com ar preocupado. — Já que ele é idiota o bastante para pagar alguém para beijar um réptil.

Quando me mudei para o apartamento em cima da garagem dos Heller, eu não sabia o que esperar — desde o nível de interação que teria com eles até como seria o apartamento. Ninguém morava lá desde que eles se mudaram para a casa. O espaço era usado como depósito, onde a família guardava coisas. Mas, de qualquer forma, eu imaginei que seria melhor que dormir na despensa. Carlie correu até o SUV quando Charles e eu chegamos. Ela foi um bebê prematuro, por isso passou a vida toda sendo muito pequena para a idade. E nunca parecera menor do que naquele momento, ao lado do meu corpo de garoto de dezoito anos. Mesmo assim, ela quase me derrubou quando se atirou em meus braços, tão eufórica quanto uma criança na manhã de Natal. — Landon, você tem que vir ver! — Ela agarrou minha mão para me puxar pela entrada da garagem. Depois de quatro horas de viagem, eu queria banho, comida e cama, e ainda tinha um carro lotado de coisas para descarregar, mas era impossível deter Carlie e sua energia. Os irmãos e os pais dela nos seguiram escada acima, onde Carlie me entregou um chaveiro com uma única chave. O chaveiro era da universidade na qual eu, inacreditavelmente, seria aluno em uma semana. Enquanto ela dava pulinhos, abri a porta e me deparei com um um apartamento ligeiramente mobiliado. Eu nem esperava mobília. Nem paredes pintadas recentemente, persianas novas, pratos nos armários, toalhas no banheiro. Uma parede do quarto fora coberta de cortiça, pronta para receber os desenhos que eu poderia querer pendurar. Lençóis dobrados formavam uma pilha perfeita ao pé da cama de plataforma. Com esforço, eu me obriguei a engolir. Não me sentia capaz de me virar e olhar para nenhum deles. Eu não conseguia falar. Era demais. Fui até a janela e girei a haste, abrindo as persianas e deixando a luz inundar o


espaço. Do meu quarto eu via as copas das árvores, carvalhos verdejantes e frondosos, e o céu. Da sala de estar podia ver o quintal dos Heller, a piscina e a casa. Eles estariam a poucos metros dali. A alguns passos. Charles e os três filhos desapareceram sem que eu notasse, e Cindy parou ao meu lado enquanto eu olhava pela janela sem realmente enxergar a paisagem. — Fico muito feliz por você estar aqui, Landon — ela disse com a mão nas minhas costas. — Charles e eu estamos orgulhosos do que fez para chegar até aqui. Os Heller eram como uma família para mim. Sempre tinham sido. Sempre seriam. Mas eram só isso — como uma família. Não eram meus de verdade.


13

LANDON — O sapo está morto. Não vai fazer nada com você. Melody piscou por trás dos óculos de segurança. — Essa coisa é nojenta. Não vou tocar nisso. — O jaleco tamanho único a cobria até os joelhos, e ela mantinha os braços levantados, os cotovelos flexionados, para não deixar as luvas caírem das mãos pequenas. Parecia uma criança brincando de enfermeira de centro cirúrgico. Não pense nas mãos dela agora. Ergui uma sobrancelha — a que tinha o piercing para o qual ela olhara na semana passada, quando Pearl estalou os dedos diante de seu rosto para chamar sua atenção. — Você teria dito isso para a Pearl? — perguntei. Ela deu de ombros, os olhos fixos na minha sobrancelha. O suéter verde-escuro parecia tão macio quanto os seus cabelos. A cor dos olhos se tornava mais escura no contorno da íris e contrastava intensamente com as mechas claras que lhe cobriam os ombros. — Sim — Melody declarou. Não pense nos olhos dela. Nem nos cabelos. Eu suspirei. — Tudo bem, eu disseco. Você alfineta e prende a etiqueta. Ela projetou o carnudo lábio inferior fazendo um biquinho que deveria parecer ridículo em uma menina de dezesseis anos. Meu Deus. Merda. Felizmente eu estava usando um pesado avental de lona. E havia uma mesa alta entre nós. — Tá bom. Eu disseco e alfineto... e você prende a etiqueta? Ela pegou uma caneta e sorriu, me recompensando por ter cedido tão facilmente. — Por onde começamos? Como um rato de laboratório, desejei descobrir onde ela escondia aquela alavanca.


Eu a pressionaria muitas e muitas vezes para ver aquele sorriso dirigido a mim. — Ah... bom, vamos ver... — Dei uma olhada na folha de instruções. — Humm, primeiro devemos determinar o sexo. Melody prendeu o brilhante lábio inferior entre os dentes brancos, perfeitamente alinhados, e eu senti aquela mordida — como se eu fosse feito de uma única terminação nervosa — concentrada em um só lugar. Meu pinto se mexeu como uma bandeira sacudida por uma repentina rajada de vento. Meu Deus, quantos anos eu tenho... onze? Maldito Boyce e sua estúpida mononucleose. Maldita Pearl e a dela também. Os dois estavam afastados do colégio por uma semana. Sem a presença controladora de Pearl, ou o Boyce irritando a Melody a cada cinco segundos, começamos a conversar diariamente como não fizemos em um ano. Desde o maldito projeto de geografia. Desde que o namorado dela pagou o Boyce para me bater. Melody se debruçou sobre a bandeja de dissecação e olhou para o pobre sapo, que parecia ter morrido dançando — o nariz para o alto e as mãos balançando. — Não vejo uma coisinha. Então é menina? Eu ri. — Sapos não têm coisinhas externas. Ela franziu o cenho, a mão enluvada cobrindo o nariz para bloquear o odor do fluido embalsamador que fazia o olho lacrimejar. — Então como é que vamos saber? Olhei novamente para a folha. — Aqui diz que o macho tem a almofada do polegar aumentada. Nós dois olhamos para o sapo por um longo instante, minha cabeça bem próxima à dela. — Ah, tenha dó, ele não faz aquilo com o polegar! — ela disse. Ah. Meu. Deus. Olhei para Melody. Ela corou e deu uma risadinha, e então nós dois rimos. O sr. Quinn nos olhou de cara feia. Aparentemente, dissecação não deveria ser uma coisa divertida. — Vamos pular essa parte por enquanto — sugeri. Também não pense no seu maldito polegar, pelo amor de Deus. Melody obedientemente escrevia as etiquetas e prendia alfinetes a elas conforme eu abria o sapo de ponta a ponta e apontava os órgãos. Nós nos acostumamos com o formol, e ela passou a protestar cada vez menos contra o que considerava nojento. Melody então começou a espetar os alfinetes nas partes que eu removia, embora se


recusasse até mesmo a tocar seu bisturi e a pinça, a menos que o sr. Quinn se aproximasse para se certificar de que todos participavam da atividade. — Ah, é tudo tão pequenininho — comentou, totalmente séria. Como se as partes de dentro de um anfíbio de quinze centímetros de comprimento pudessem ser diferentes. Ela olhou para o diagrama e depois para o sapo de novo. — Ah, aquelas coisas são as bolinhas? — e pegou o alfinete preso à etiqueta “testículos”. Eu ri. — Sim. São as bolinhas dele. Parabéns, temos um menino. Ela franziu o cenho. — Então, ele não tem um... — E parou de falar enquanto eu mentalmente preenchia a lacuna: pinto, pênis, pau, cacete, falo, bicho. A última opção era a designação dada por Boyce. — Ah. Não. — Dividido entre o pesar e o forte alívio por Boyce não estar ali, li a folha e repeti em voz alta: — “O macho fertiliza os ovos...” — Filho da puta. — “Humm... subindo na fêmea, envolvendo seu corpo com as pernas dianteiras e esguichando esperma sobre os ovos logo depois de serem postos.” Nós nos olhamos através dos óculos de proteção. Eu me surpreendi com o fato de o meu ainda não estar embaçado. — Deve ser ruim pra ele, né? — ela disse. Não pense em abraçar Melody Dover. Por trás. Meu Deus do céu.

Com Boyce doente, voltei a fazer a pé o trajeto de ida e volta até o colégio. Seu TransAm reformado podia ser uma potencial armadilha fatal, barulhenta e feia — mas tinha rodas. Eu estava a quatro meses e algumas horas de aula da minha carteira de motorista definitiva. Meu avô e eu encontrávamos estradas de terra ou parcialmente pavimentadas vazias nas tardes ou noites de domingo para eu praticar. Ele estava quase decidindo que eu podia dirigir em uma estrada de verdade. Escondi o rosto para revirar os olhos, e certamente não contei a ele que Boyce me deixara dirigir o Trans-Am sempre que bebia demais ou exagerava na maconha e eu permanecia relativamente sóbrio. Provavelmente, ele rasgaria minha permissão ali mesmo, e eu nunca dirigiria o velho Ford sozinho.


Só havia um motivo para eu querer aquela caminhonete. Como se Melody fosse querer andar naquela lata-velha enferrujada, em vez de passear no jipe branco de Clark Richards — que ele ganhou quando fez dezesseis, um ano atrás. Eu ouvi quando ele comentava todo orgulhoso o que fizera com Melody no banco de trás daquele jipe, e o relato me deixou furioso e excitado demais. Furioso porque ele não devia compartilhar essas coisas com um bando de idiotas em volta de uma fogueira na praia. Excitado porque queria que ela fizesse as mesmas coisas comigo. Chutar um cacto quando saí do caminho e entrei no jardim me rendeu um espinho que atravessou meu Vans preto e perfurou meu dedão. — Ai! Caralho! Foi quando notei a caminhonete do meu avô parada ao lado da casa. Perto do SUV do meu pai. A porta da frente estava destrancada, embora isso pudesse ser apenas fruto do esquecimento do meu avô. Meu pai e eu sempre falávamos sobre segurança e sobre deixar a casa destrancada — meu avô repetia que nunca havia trancado a droga da casa em todas aquelas drogas de anos em que morava lá, e meu pai respondia que não estávamos mais em 1950. Quando forasteiros arrombaram a oficina de Wynn e roubaram várias ferramentas, meu avô cedeu, embora de má vontade. Mas às vezes ele esquecia. — Vô? — chamei, trancando a porta depois de entrar. O interior da casa estava meio escuro, em contraste com a tarde clara e sem nuvens, mesmo depois que eu tirei os óculos de sol. A princípio, não registrei que meu pai estava sentado na beirada do sofá, com as mãos unidas entre os joelhos. Os olhos estavam fixos no tapete gasto sob seus pés. Raramente ele estava em casa àquela hora da tarde e, se estava, ficava trabalhando à mesa, não sentado no sofá. Franzi o cenho. — Pai? Ele não moveu um músculo. Não me olhou. — Sente-se, Landon. Meu coração disparou, os batimentos ganhando velocidade lentamente, como um motor aquecendo. — Cadê meu vô? — Deixei cair a mochila no chão, mas não me sentei. — Pai? Ele levantou a cabeça e olhou para mim. Seus olhos estavam secos, mas vermelhos. — Seu avô teve um infarto no barco hoje de manhã...


— O quê? Onde ele tá? No hospital? Ele tá bem? Meu pai balançou a cabeça. — Não, filho. — Sua voz era mansa e baixa. Era como se ele me batesse com as palavras, firmes, ferinas, irrevogáveis. — Foi um infarto fulminante. Rápido... — Não. — Eu recuei, engolindo as lágrimas. — Droga, NÃO. — Corri para o quarto, bati a porta e não saí mais de lá até meu pai ir para a cama. Descalço, segui até o quarto do meu avô, iluminado pela lua que penetrava pelo vão entre as cortinas. Meus dedos deslizaram sobre os objetos no criado-mudo: os óculos de leitura fechados sobre uma Bíblia de capa de couro e um exemplar de Folhas de relva, um copo com água pela metade e um relógio Timex com o mostrador arranhado. Na cômoda havia uma pilha de camisas e uma foto desbotada da minha avó com um bebê no colo — meu pai. A moldura era antiga, manchada, amassada em um canto. Na cozinha, tirei da geladeira um pote de macarrão com queijo e comi sem esquentar. O funeral foi breve e poucas pessoas estavam presentes — meu pai, eu, um grupo de velhos amigos e alguns pescadores conhecidos do meu avô, amigos e vizinhos. Meu pai usou o único terno que tinha guardado, ainda em ótimo estado e com caimento perfeito, apesar de estar um pouco mais folgado do que da última vez em que o vestira, no funeral da minha mãe. Ele tinha emagrecido. Estava mais musculoso, mas mais abatido também. Eu não tinha terno e não tinha tempo para providenciar um, por isso compareci à cerimônia de camiseta preta com botões e jeans preto. Ele foi enterrado ao lado da esposa, falecida trinta anos antes. “Ramona Delilah Maxfield — Esposa e mãe amada”, estava escrito na lápide. Eu queria saber o que meu pai tinha mandado gravar na lápide do meu avô, mas não perguntei. No dia seguinte, meu pai me deu duas coisas que tinham pertencido ao meu avô: um pesado pingente de metal com um símbolo celta, supostamente a representação do nome Maxfield antes do século doze, e a chave do velho Ford. Fiz uma ampliação do símbolo no meu caderno de desenhos. Arianna o tatuaria na lateral do meu corpo, embaixo das costelas. Prendi a chave da caminhonete na argola onde carregava a chave de casa e uma bússola. Eu tinha a caminhonete que queria, um símbolo de mil anos de herança, uma receita secreta de brownies, um canivete e lembranças do meu avô que eu nunca teria se não tivesse perdido minha mãe. Não conseguia entender o sentido dessas coisas ou o valor que tinham para mim,


quando cada uma delas era ligada à perda de algo que eu não queria ter perdido.

LUCAS Eu cheguei quando Heller estava recolhendo os testes. Quando me sentei no lugar de sempre, ele pediu para falar comigo depois da aula. — Sim, senhor — respondi, me esforçando para não olhar para Jacqueline, que ouvia a conversa sem disfarçar, a cabeça inclinada, o queixo no ombro. Minha respiração ficou mais rasa, porque eu sabia que a qualquer momento ele podia dizer uma frase — droga, uma palavra, Landon, que revelaria quem eu era. Eu queria que ela soubesse. E não queria. Ela não olhou para mim de novo até o fim da aula, quando me dirigi à frente da sala. Enquanto Heller respondia à pergunta de um aluno, aproveitei para localizar Jacqueline no meio das pessoas que saíam da aula, mas ela continuava no mesmo lugar. Olhando para mim. Seus olhos estavam escuros, por causa da distância entre nós e das sombras projetadas pelas luzes no teto. Eu não conseguia identificar o azul perfeito que eu sabia estar lá. Não conseguia sentir seu cheiro doce. Ela não estava rindo nem mesmo sorrindo. Era só uma garota bonita. Mas eu não conseguia enxergar mais ninguém. — Pronto? — perguntou Heller, guardando as anotações da aula em sua pasta. Desviei os olhos de Jacqueline. — Sim. Claro. Pronto. Ele arqueou uma sobrancelha, e eu o segui para fora da sala. — Tem certeza de que não está trabalhando demais, filho? Ultimamente você tem parecido um pouco preocupado. Ele não sabia nem a metade.


Aquele não era o meu dia. Primeiro, Gwen chegou com um mau humor que eu nunca tinha visto antes. Era como estar com uma pessoa completamente diferente. Ela estava como Eve. Que também estava trabalhando no turno da tarde. Eu não fazia ideia de quando Jacqueline apareceria, se é que apareceria, mas eu sabia — como Landon — que ela marcava as aulas de música para o fim da tarde de sexta-feira. Ou ela chegaria a qualquer minuto, ou não apareceria. Quando Heller chegou, pediu um venti latte e se acomodou em uma cadeira de canto, eu, de maneira egoísta, torci para ele acabar logo e ir embora. Ele pegou o Wall Street Journal e começou a ler desde a primeira página. Menos de cinco minutos depois, ouvi o familiar e apenas civilizado cumprimento de Eve, um “Pois não?” com dose dupla de atitude. Levantei a cabeça e vi Jacqueline mordendo o lábio, como se reconsiderasse a decisão de passar por ali. — Pode deixar, Eve — falei, me aproximando do balcão. Quando peguei o café e recusei o pagamento, minhas colegas de trabalho continuaram olhando feio para ela, embora eu não conseguisse imaginar um único motivo para isso. Ela escolheu uma das mesas do lado oposto ao de Heller e pegou seu notebook. — Qual é o problema? — perguntei finalmente a Gwen, me colocando na sua linha de visão. — Por que tá olhando para ela como se quisesse reduzir a garota a cinzas? Ela cruzou os braços e me encarou. — Por favor, me diz que você não gosta dessa garota, Lucas. Dei uma olhada para Heller, que só se movia para virar a página do jornal. — Como assim? De onde você tirou isso? Ela comprimiu os lábios, fazendo uma careta. — Você é mais transparente do que pensa. E tem mais, a gente acha que ela tá brincando com você. — O quê? — Ainda bem que não tinha clientes no caixa e Jacqueline estava longe demais para ouvir a conversa. — É verdade — Eve sussurrou, parando ao lado de Gwen. — As amigas dela estiveram aqui de novo outro dia. Você sabe de quem estou falando? As garotas da fraternidade? — As palavras eram “garotas da fraternidade”. O tom anunciava “vadias infestadas de doenças“. Meu bom Deus. Eu lhe daria cinco segundos para oferecer um argumento que eu pudesse esmagar.


Assenti uma vez. — Bom, não consegui ouvir tudo o que diziam por causa do maldito vaporizador, mas ouvi seu nome, o nome dela e um comentário sobre ela estar te usando para viver sua... afff... — Sinal de aspas com os dedos. — Operação Bad Boy. Nunca ouvi nada tão ridículo. Minhas sobrancelhas se ergueram. Operação Bad Boy. Certo. — Vocês duas são malucas. Eve cruzou os braços. — Ah, não. Não somos. As duas estão tramando tudo, e ela só aceita. Você deve ser um... um troco, um garanhão para ajudar a garota a superar outro cara. Então, valendo um milhão de dólares e a chance de avançar para a próxima fase: você gosta dela ou só quer comer a garota? As duas ficaram ali paradas como malucas aliadas. Troco. — Não é da conta de vocês. — O diabo que não. — Eve cutucou meu peito com uma unha pintada de preto. — Você é nosso amigo, e nós não vamos deixar uma vadia arrogante brincar com você. Minha mandíbula se enrijeceu. — Não fala assim dela. As duas se entreolharam. — Merda — Gwen resmungou. Enquanto Eve decidiu: — Ah, foda-se.

Depois de uma hora, Jacqueline e Heller foram embora com uma diferença de poucos minutos. Antes de sair, ele parou na mesa dela e falou sobre como estava satisfeito com a sua recuperação na matéria — o que eu só sabia porque era sobre isso que ele queria conversar comigo hoje depois da aula. Em seguida Heller se aproximou do balcão para falar comigo sobre ela — enquanto Jacqueline observava tudo —, e eu me lembrei de um velho ditado que meu avô gostava de repetir: “Ah, que teia emaranhada tecemos quando começamos a praticar a mentira”. Eu começava a ter uma noção do que significava “emaranhado”.


O restante da tarde foi tão morto que nosso gerente perguntou se alguém queria ir para casa, e eu aceitei a sugestão. Eve e Gwen trocaram outro olhar direto. Eu nunca tinha pedido para ser dispensado antes. Gwen me seguiu até os fundos da loja e me deteve enquanto eu vestia a jaqueta. — Lucas? Virei suspirando. — Oi? Com os lábios comprimidos, ela tocou meu braço. — Eu sei que a Eve pode ser um pouco grossa... Forcei um sorriso. — Sério? Eu não tinha notado. Os olhos dela enrugaram nos cantos quando ela sorriu, e a Gwen que eu conhecia reapareceu. — Mas nós duas gostamos de você. Não queremos ver você sofrer. Fechei o zíper da jaqueta até o meio do peito — couro marrom macio que eu não teria conseguido comprar sozinho. Charles e Cindy me deram a jaqueta de presente de aniversário no meu primeiro ano na faculdade. Na época tinha ficado meio grande. Agora cabia perfeitamente. — Já sou grandinho, Gwen. Posso cuidar de mim mesmo. Cuido há muito tempo. — É, eu sei. Mas... toma cuidado. Algumas coisas não valem o sofrimento, mesmo que você possa sobreviver a ele. Ela nunca contou muito sobre o pai de seu filho, mas eu sabia que Gwen falava por experiência própria. Eu não podia comparar Jacqueline Wallace a um sujeito que era cretino e egoísta demais para ser pai. Mas eu não tinha o direito de revelar o que sabia sobre Jacqueline. — Obrigado, Gwen. Vou tomar cuidado — falei. Mentira. Fiz um sanduíche quando cheguei em casa, dividindo fatias de peru com Francis, assim como fizera no dia em que ele apareceu, três anos atrás. Eu estava no apartamento havia um mês quando, sem ser convidado, Francis se mudou para lá. Mesmo com os Heller morando do outro lado do quintal, eu experimentava uma inesperada sensação de isolamento. Meu pai e eu não conversávamos muito quando eu morava com ele, mas ele estava lá, na casa. Não era de conversa que eu sentia falta, mas da presença de outra pessoa.


— O que você acha? — perguntei ao gato, jogando uma última fatia de peru em sua vasilha. — Eu devo ser o bad boy dela? Com certeza eu sirvo para o papel. — Peguei meu celular e abri a agenda, selecionando o nome dela. — Fale agora ou cale-se para sempre. Ele terminou de comer e começou um banho. — Quem cala consente — decidi, enviando uma mensagem de texto a Jacqueline com um pedido de desculpas por não ter me despedido dela hoje à tarde. Ela respondeu:

Acho que foi meio estranho com o dr. Heller lá.

Estranho era pouco, e ela nem imaginava quanto. Eu disse a ela que queria desenhá-la. Enquanto esperava pela resposta, fiquei olhando para a tela. Você quer um bad boy, Jacqueline? Então pode vir. Tô aqui.

Ok.

Avisei que poderia encontrá-la em duas horas e peguei o número de seu quarto. Ela mandou um e-mail para Landon — ironicamente, durante o tempo em que passou no Starbucks — agradecendo por ele ter insistido na última lista de exercícios. Com noventa e nove por cento de certeza de que ela tinha gabaritado o teste que Heller aplicara naquela manhã, eu quis responder ao e-mail, mas não fiz isso. Esta noite ela não teria notícias de Landon.

Foi muito fácil entrar no prédio dela. Um simples “Ei, cara, segura a porta” para um morador que estava entrando foi tudo. Subi a escada dos fundos até o andar dela, o meu corpo todo em chamas. Eu não havia mentido. Queria mesmo desenhá-la. Possivelmente, era só isso que eu faria. Esta noite. Bati suavemente à porta, ignorando os outros estudantes no corredor. Ela não atendeu, e eu não consegui ouvir nenhum barulho dentro do quarto. Mas, quando bati de


novo, ela abriu a porta como se simplesmente estivesse parada do outro lado, tentando decidir se devia ou não me deixar entrar. Seu suéter era de um azul um tom mais claro que seus olhos, acentuando-os ainda mais. Com um decote V profundo e acompanhando suas curvas sem colar no corpo, o macio tricô implorava para ser tocado. Eu jurei atender a essa súplica. Entrar no quarto — ouvir o barulho da fechadura atrás de mim — foi como fechar uma porta da minha consciência. Mas isso não a impedia de bater — um lembrete abafado, mas persistente de que essa garota era aluna do Heller, inacessível. Além disso, ela tentava superar um rompimento, o que a tornava vulnerável em certo sentido... e me tornava em outro. Pior ainda, ela não fazia ideia do meu conflito. Joguei o caderno de desenhos sobre a cama. Com as mãos nos bolsos, fingi fascinação com a decoração do quarto e senti os olhos dela em mim, analisando desde os tênis velhos, passando pelo moletom comum ao piercing no meu lábio. Com ares meio de vagabundo de praia, de trabalhador caipira e de não se meta comigo, eu não tinha nada a ver com seu ex-namorado, apesar do potencial de ser como ele no passado, há uma eternidade. Na época eu nem pensava no que vestia, ou em quanto custava. As grifes que Kennedy Moore e seus colegas de classe média alta vestiam não teriam impressionado meus colegas do ensino fundamental, cujos pais eram lobistas influentes, senadores e CEOs de empresas de muitos milhões de dólares. Eu nunca seria intimidado por um garoto exibindo o dinheiro dos pais; eu sabia da rapidez com que isso podia desaparecer, sobretudo quando o dinheiro nem era seu. Esta era uma verdade que eu tinha aprendido, e de um jeito difícil: Se você quer alguma coisa na vida, tem que contar com você mesmo para conseguir. E para manter. Enquanto os olhos de Jacqueline passeavam por meu rosto, continuei fingindo que inspecionava seu quarto enquanto, mentalmente, visualizava a expressão distraída que ela às vezes exibia nas aulas de Heller: olhos focados e imóveis, dedos batucando na perna ou na mesa, dedilhando cordas invisíveis. Eu me sentia atraído por ela havia semanas, mas me mantive distante até a noite em que me tornei seu protetor. Como aquele provérbio chinês que diz que, se você salva uma vida, é responsável por ela para sempre, eu não conseguia deixá-la sacudir a poeira e seguir em frente. Não quando não acreditava nem por um segundo que ela dispunha das ferramentas para se proteger. Talvez eu não houvesse salvado a vida de Jacqueline naquela noite, mas a salvara de algo que lhe roubaria parte da alma. Eu era consumido


pela ideia de cuidar dela e, para isso, precisava conhecê-la melhor. Pelo menos, foi essa a história que contei a mim mesmo. Capturei os olhos dela com os meus quando me virei, e em seguida olhei para os pequenos alto-falantes sobre a escrivaninha. Ela estava ouvindo uma banda cujo show eu vira no mês anterior. Perguntei se ela também tinha ido e, surpreendentemente, Jacqueline assentiu. Eu não a vira lá — mas também não sabia que devia procurá-la. Deilhe uma desculpa sobre álcool e falta de iluminação. Se eu soubesse que ela estava lá, nem toda a cerveja e a escuridão do mundo teriam me impedido de encontrá-la. Melhor não revelar esse detalhe. Tirei o gorro e o moletom, que joguei sobre a cama dela, e tentei recompor a expressão antes de encará-la. Provavelmente, Jacqueline fora ao show com o exnamorado, enquanto eu estava com Joseph. — Onde você quer que eu fique? — ela perguntou, e minha mente apagou momentaneamente para, em seguida, ser inundada por imagens que eu não poderia descrever. Ela corou como se assim mesmo as ouvisse, seus lábios se entreabrindo, mas ela não tinha como retirar a pergunta provocante que, obviamente, não usara como tática de sedução. Eu pigarreei e sugeri a cama, respondendo à provocação não intencional no mesmo tom. Empurrando meu gorro e o moletom para o lado, ela se sentou, e lembrei aos meus hormônios despertos que havia um milhão de razões para Jacqueline Wallace não estar ao meu alcance, começando pelo fato de eu basicamente estar mentindo para ela sobre quem de fato era, e terminando em meu conhecimento de que garotas como ela não se interessavam por caras como eu. Mas ela não precisava se apaixonar — precisava? — para eu ser o cara com quem ela ia se meter. Sua Operação Bad Boy. O troco. Meu Deus, eu estava aceitando tudo. Ela me olhou com os olhos arregalados, apreensivos, e eu quis acalmá-la, fazê-la relaxar com as minhas mãos. Em vez disso, me ouvi dizendo que não tínhamos de fazer aquilo, se ela não quisesse. Esperei Jacqueline soltar o ar que prendia e responder que tudo isso era um engano. Parte de mim esperava por essa resposta, porque assim eu poderia recuar antes de cometer o monumental engano de comprometer minha integridade em mais aspectos do que era capaz de contar. Mas eu não iria embora, a menos que ela pedisse. Não enquanto minha cabeça estivesse dominada pela vontade de me aproximar. — Eu quero — ela falou com a voz mansa, o corpo rígido como um dos meus modelos de madeira; bonecos com articulações dobráveis, mas, no geral, inflexíveis. A declaração


não combinava com sua postura, mas eu não sabia no que acreditar, nas palavras ou na atitude. — E qual posição você acha que seria mais confortável? — perguntei, e ela corou outra vez, ainda mais do que antes. Mordi o lábio e me virei, plantando o traseiro no chão vários metros longe dela, com as costas apoiadas no único espaço vazio na parede do quarto. Abri o caderno sobre os joelhos, inspirei profundamente pelo nariz e lamentei ter mandado aquela mensagem. Apesar de não ter usado o pedido para desenhá-la como pretexto, essa proximidade e a privacidade eram um verdadeiro inferno. Em um momento fatal, eu me dei conta de que a queria mais do que jamais havia desejado alguém. Esse desejo crescia havia semanas, e eu não o analisara nem o questionara porque ela tinha namorado, era aluna da matéria da qual eu era monitor, porque era impossível, inacessível, uma fantasia e nada mais. Então houve aquela noite — uma noite que ainda deve aterrorizá-la —, que impedi de ser muito pior. Minha mão agarrou o lápis. Eu não podia me vangloriar de tê-la salvado e depois me apoderar dela como prêmio, não sob falsos pretextos, não quando ela nunca poderia ser minha. Mas ela também tinha falsos pretextos, não tinha? Eu podia dar o que ela queria. Pedi a Jacqueline que se deitasse de bruços e olhasse para mim, e foi exatamente isso que ela fez. — Assim? Assenti, e minha cabeça girou. Merda... O que foi que eu fiz comigo? Eu precisava tocá-la. Sem se mexer, ela me viu deixar o caderno e o lápis de lado, me apoiar sobre os joelhos e percorrer a distância entre nós. Ela fechou os olhos quando toquei seus cabelos, ajeitando-os para mostrar a curva do queixo. Uma pequena e solitária sarda apareceu bem embaixo do queixo, e me esforcei para não tocá-la. Ela abriu os olhos, e eu me perguntei se Jacqueline conseguia ver a batalha que se desenrolava dentro da minha cabeça e sob a minha pele. Ficamos em silêncio enquanto eu a desenhava. Eu sabia que ela me olhava, embora não conseguisse ver o que eu estava desenhando. Eu sentia seu olhar, mas não retribuía. Minutos mais tarde, os olhos dela se fecharam e Jacqueline ficou muito quieta. Terminei o desenho e não sabia o que fazer. De joelhos novamente, me aproximei da cama, sentei sobre os tornozelos e a observei por vários minutos. A respiração dela era profunda e serena. Deixei de lado o caderno e o lápis, resistindo ao impulso de tocá-la. — Está com sono? — sussurrei por fim, e ela abriu os olhos.


— Não — respondeu, mas eu sabia que não era verdade. Não a corrigi. Ela me perguntou se eu tinha terminado, e me ouvi dizendo que queria fazer mais um. Quando ela concordou, eu pedi que ela se deitasse de costas. Jacqueline obedeceu. Eu disse que queria ajeitá-la, e ela permitiu. Meu coração bombeava a vida pelas minhas veias, como se eu despertasse de um coma de um ano. Tudo era brilhante e detalhado. Exposto e sensível. Eu a desejava tanto que doía. De início, pensei em ajeitá-la como se tivesse caído do céu e aterrissado de costas — um anjo arrastado para a terra por seu coração partido. Mas, quando segurei seu pulso e flexionei seu braço sobre a cabeça, eu a imaginei na minha cama. Com o coração disparado, movi o outro braço, primeiro sobre o ventre, depois sobre a cabeça, com o outro. Cruzei seus pulsos e a imaginei rindo e me desafiando a amarrá-la, uma imagem nítida como uma lembrança. Droga. Eu precisava parar de tocá-la, ou perderia a cabeça, por isso a desenhei como estava, me concentrando em linhas e ângulos, sombras e reflexos. Minha pulsação recuou para um ritmo estável. A respiração voltou ao normal. Meus olhos estudaram seu rosto. Seus olhos. Que estavam abertos, olhando para mim. As mãos pequenas, ainda obedientemente cruzadas sobre a cabeça, se fecharam por um instante antes de relaxar. A veia em seu pescoço pulsava. O peito subia e descia mais depressa. Eu me perdi no azul infinito dos seus olhos. Ela parecia quase amedrontada, o que me deixou furioso, mas não com ela. — Jacqueline? — Sim? — Naquela noite em que nos conhecemos... — Eu não sou ele. Eu não sou ele. — Eu não sou como aquele cara. — Eu sei di... Pousei meu dedo sobre sua boca macia, carnuda, silenciando o protesto. — Não quero que se sinta pressionada. Ou dominada. — Mesmo no meio da minha mentira, eu estava falando sério, precisava da confiança dela. Também queria beijá-la mais do que queria continuar respirando. — Mas eu realmente quero te beijar agora. Muito mesmo. Eu era o mais amedrontado, porque sabia que ela diria não. Eu provaria que era digno de sua confiança indo embora. Deslizei o dedo dos lábios até seu pescoço, seguindo pelo centro do peito, e esperei o não.


Mas ela não disse isso. Sua voz era pouco mais que um suspiro. — Tudo bem.


14

LANDON A primeira vez em que dirigi sozinho foi diferente de tudo que eu sonhei. Imaginei que daria uma volta com Boyce em um sábado à noite. Ou que buscaria uma garota para ir ao cinema e comer um lanche. Meu avô me mandaria comprar leite no mercado. Em vez disso, dirigi até o porto e peguei a balsa vinte e quatro horas, como tantas vezes meu avô e eu fizemos — mas eu nunca havia manobrado a caminhonete para subir a rampa. Dirigi até o cemitério para levar flores e, quando cheguei, me dei conta de que tinha só uma vaga ideia de onde exatamente ele havia sido enterrado. Setenta e duas horas antes. Aquele dia foi confuso. Não parecia real. Encontrei a lápide da minha avó e a montanha de terra revolvida recentemente ao lado dela. Uma semana atrás eu dirigia por uma estrada paralela não muito longe daqui, com meu avô no banco do passageiro. Ele me contava como aprendera a dirigir aos catorze anos, quando abandonou o colégio para trabalhar com o pai e o irmão mais velho. — Quase arranquei a merda do câmbio daquele velho Dodge antes de aprender a trocar a marcha — ele riu da lembrança. Tentei me lembrar da última coisa que dissemos um ao outro, mas não consegui. Provavelmente alguma coisa relacionada ao jantar, às tarefas ou ao clima. Agora que eu estava diante daquele monte de terra, não sabia o que fazer. Devia falar com ele? Chorar? Ele não estava lá. Não me ouviria. Então essas coisas pareciam inúteis, a menos que eu quisesse me ouvir falar... e eu não queria. Havia no cemitério alguns visitantes solitários, como eu, e um grande funeral. Sob uma grande tenda que cobria enormes arranjos de flores, as pessoas prestavam suas homenagens sentadas em cadeiras dobráveis estofadas. Quem quer que tivesse morrido tinha dinheiro. Olhei para os carros enfileirados na rua perto do local do velório, reconhecendo os logotipos, Cadillac, Mercedes, Audi, até um Jaguar... e o jipe branco brilhante de Clark Richards.


Que diabo. Passando os olhos pelas pessoas ali reunidas, eu rapidamente o encontrei — na fileira da frente. Os cabelos loiro-escuros estavam penteados para trás e ele usava terno preto, camisa branca e gravata vermelha. Melody estava à sua esquerda, também vestindo preto e apoiada a ele. O braço de Clark envolvia seus ombros, e seu rosto era impassível. Mesmo de longe, a postura infeliz e abatida de Melody era óbvia. Seus ombros tremiam, e, embora não conseguisse ver seu rosto ou as lágrimas, sentia sua dor como um soco no estômago. Seu irmão mais velho, Evan, estava à direita dela. Reconheci a mãe ao lado dele. O homem ao lado da sra. Dover devia ser o marido. A família inteira presente, todos na primeira fileira. Deviam ter perdido alguém próximo. Refleti sobre a terra a meus pés. Do pó ao pó. Minha garganta ficou apertada. — Adeus, vô. Obrigado pela caminhonete. Naquela noite, quando estava deitado em minha cama, mandei uma mensagem para Melody.

Tá tudo bem? Vi você no cemitério hoje.

Ela respondeu imediatamente:

Minha vó morreu na sexta. O funeral foi hoje. Odeio minha família. Só se importam com o dinheiro dela.

Que droga.

Trinta minutos depois ela respondeu:

Tô no forte. Precisava sair de casa e olhar para as estrelas. Pode vir pra cá, se tiver a fim.

Blz.


Apertei “enviar” e peguei o moletom do cabide atrás da porta. Meu pai levantou os olhos da mesa onde espalhara os livros fiscais e pilhas de pastas da empresa de pesca, notando que eu estava calçado e de moletom. Ele não disse nada, mas reconheci a decepção em seu queixo rígido antes de me virar e sair. Se ele achou que a morte do meu avô me transformaria em um cidadão exemplar, ele não me conhecia. Quase não ventava — estranho para março. E também estava mais quente que algumas horas antes. Quando cheguei ao forte, tirei o moletom, subi a escada e quase perdi o ar ao ver Melody sentada com as costas apoiadas na parede, com metade do corpo sob um cobertor e a outra metade coberta por uma blusa de alças finas. — Oi — eu disse. — Oi. — A voz dela estava rouca como o som de um disco velho. Ela tinha chorado, e não fazia muito tempo. Sentei-me ao lado dela, perto o bastante para tocá-la, mas sem fazer isso. Por experiência própria, eu sabia o que não devia dizer: “Eu sinto muito”. Não por ter alguma coisa errada ou falsa nessas palavras, mas porque não havia uma boa resposta para isso. — Como sua avó era? — perguntei. Sua boca se curvou um pouco para cima. Ela apoiou um lado do rosto sobre os joelhos e olhou para mim. — Ela era animada. Decidida. Meus pais odiavam isso. Não achavam que ela era prudente, como costumavam dizer um ao outro. Ela não era delicada, discreta e fácil de calar. Eles só queriam que ela calasse a boca, mas ninguém mandava na minha avó, porque era ela quem segurava a carteira. Ela não descrevia uma mulher que aconselharia a neta a acatar ordens do irmão mais velho ou do namorado. — Minha avó tinha muitos netos, mas eu era a favorita — Melody contou. — Ela me disse isso. Espelhei seu sorriso contido. — Eu era o único neto, então acho que era o preferido por falta de opção. — Tenho certeza que você teria sido o favorito mesmo que ele tivesse uma dúzia. Meu coração ficou apertado. — Por que você acha isso? Estávamos sentados no escuro, a menos de um metro de distância. Cada parte minha queria ficar fisicamente mais perto dela, e agora ela atraía meu coração.


— Bom... você é inteligente e determinado, e se preocupa com as pessoas. Meus lábios se entreabriram. — Você me acha inteligente? Ela assentiu uma vez, o rosto ainda pressionado contra os joelhos. — Eu sei que você é. Mas esconde. Por causa de gente como o Boyce? Dei de ombros, levantei um joelho e mantive a outra perna estendida. A sola da minha bota estava na metade do caminho para a parede do outro lado. O forte fora construído para crianças de seis anos. — Não. O Boyce não me atormenta com esse tipo de coisa. — O Boyce só me atormenta por eu querer uma garota que não posso ter. — Não vejo qual é o propósito do colégio, das notas, disso tudo. Meu avô desistiu de estudar quando tinha dois anos a menos do que eu tenho agora, e meu pai é Ph.D. em economia, mas que diferença isso faz? Os dois acabaram trabalhando num barco. Ela piscou. — Seu pai é Ph.D.? Então por que ele não... quer dizer, por que ele não vai fazer alguma coisa mais... Com os lábios pressionado, virei a cabeça para vê-la processar a nova informação, algo que eu não contara a ninguém, nem mesmo para o Boyce. — Mais importante? Ou que dê mais dinheiro? Ela deu de ombros, constrangida com a pergunta indelicada, mas ainda curiosa. — Ele fazia. Aí a minha mãe... morreu. — Olhei para o céu. — E nós viemos pra cá. E o que quer que ele tenha aprendido ou feito antes foi só uma grande perda de tempo. — Então você não quer ir para a faculdade? — Não sei. Quer dizer, eu nem imagino como poderia pagar, se quisesse. Senti o rosto queimar e fiquei contente pela escuridão. Aquela era Melody Dover, pelo amor de Deus, e falta de dinheiro era uma fraqueza aos olhos de gente como ela. Fraco era a última coisa que eu queria parecer para ela. — Talvez você possa conseguir uma bolsa. Eu não queria dizer a ela que tinha desistido disso. Meu histórico escolar não causaria admiração nas instituições de ensino superior. Provavelmente eu nem seria aceito, muito menos de graça. Passei a mão na cabeça para empurrar os cabelos para trás, e ela estendeu o braço para tocar a tatuagem no meu pulso. Abaixei a mão lentamente e a deixei descansar entre nós.


— Eu gosto disso — ela comentou, tocando a chama sobre meu tríceps, acompanhando o desenho que cobria o bíceps e desaparecia sob a manga da camiseta. — E disso. — Obrigado. — Minhas cordas vocais falharam, e a palavra soou como um sussurro. Nossos olhos se encontraram, iluminados apenas pelas estrelas e pela lua. Ela apoiou a mão sobre as pernas. — Obrigada por ter me mandado mensagem esta noite, Landon. E por ter vindo. Eu não queria ficar sozinha depois desse dia tão ruim. A Pearl tem que chegar em casa às dez da noite, e eu acho que o Clark está dormindo. Ele nunca responde. Eu sabia que Clark Richards estava fechando um negócio com Thompson naquela noite e, naquele instante, estava ficando chapado do outro lado da cidade. — Não foi nada.

LUCAS Ela disse tudo bem. Joguei o caderno de desenhos no chão e a pressionei contra o colchão, com cuidado, mas sem qualquer hesitação, as pontas dos meus dedos traçando as veias pálidas em seus pulsos. O coração dela tremia sob meus dedos, batendo quase duas vezes por segundo. Meus dedos seguiram aqueles caminhos azuis até desaparecerem na dobra dos cotovelos, a pele frágil e macia demais para ser real. — Você é tão linda. — Posso ter dito isso em voz alta ou só dentro da minha cabeça. Eu não tinha certeza. Meus lábios se aproximaram dos dela com mais cuidado do que eu jamais tive com alguém. Eu temia que ela recuasse e nunca mais me desse essa chance outra vez. Eu temia que ela me comparasse ao cretino que a machucara — e teria feito muito pior. Eu o empurrei para fora da minha cabeça como se o empurrasse de um precipício. Ele não fazia parte disto. E eu não o deixaria entrar. Toquei com a língua a fenda entre seus lábios — um pedido silencioso e uma promessa de recuar, se ela quisesse. Mas Jacqueline abriu a boca, e meu sangue se acendeu, correndo sob as tatuagens como pequenas faixas de fogo. A língua dela tocou a minha — uma conexão que eu não imaginava que seria permitida e que me fez querer


mais. Passei a língua sobre a dela, e Jacqueline suspirou e estremeceu sob o meu corpo. Com uma das mãos segurei seu pulso, com a outra, a cintura, como se pudesse prendê-la àquele momento. De repente, explorar seu corpo era tudo o que eu tinha nascido para fazer. Quando suguei seu lábio inferior, incrivelmente doce e carnudo, ela perdeu o ar. Minha língua mergulhou ainda mais na sua boca, desejando mais, e as mãos dela se fecharam sob a minha. Eu a soltei imediatamente, temendo tê-la amedrontado com a intensidade daquilo que eu sentia, torcendo para não ter feito isso — mas seus olhos se abriram, e tudo o que vi neles foi fascínio. Passei as mãos dela em torno do meu pescoço e me sentei, puxando-a para o meu colo e sentindo seus dedos nos meus cabelos, e, Deus do céu, ela poderia ter me pedido qualquer coisa naquele momento que eu teria cedido. A cabeça dela se encaixou na minha mão quando a inclinei para trás, erguendo seu queixo para beijar aquela sarda que eu tinha notado enquanto a desenhava. Meus lábios desceram lentamente, todo o meu corpo em alerta para o menor sinal de “longe demais”. Seu peito arfava, o ruído suave de cada inspiração ecoando pelo quarto e se misturando ao meu e à música do notebook, que desaparecia ao fundo. Eu conhecia as canções, mas não poderia dizer quais eram, nem me importava com isso, não enquanto minha mão livre escorregava para baixo do suéter de Jacqueline. Deslizei os dedos ávidos por suas costelas e, empurrando o suéter para cima, encontrei o tecido sedoso do sutiã. Sua respiração acelerada roçava meu rosto e meus cabelos enquanto eu deslizava a língua pela pele nua, traçando a curva logo acima do bojo. O fecho era na frente. Uma leve pressão do polegar e do indicador seguido de um empurrão de um centímetro para cima ou para baixo e ele se abriria, mas meu cérebro venceu. Isso seria ir longe demais. Minha consciência sussurrou do outro lado da porta, dizendo que eu estava me enganando com essa farsa mental de cavalheirismo. Essa noite inteira era ir longe demais, e eu sabia bem disso. Eu preciso ir embora, pensei. Mas então ela riu. Não era nem uma risada de verdade — era mais um risinho estrangulado ricocheteando pelo espaço no momento mais estranho possível. — Faz cócegas? — perguntei, porque não conseguia imaginar outro motivo para ela rir àquela altura. Jacqueline mordeu o lábio, um pouco forte demais. Eu quis protestar, dizendo que ela feria uma parte de si que eu pretendia passar a próxima hora adorando. Eu tinha sonhado com aqueles lábios, com a sua boca, sua língua — não queria que ela


tirasse nenhum deles do jogo. Ela balançou a cabeça, não, e eu olhei para a boca carnuda e insisti: — Tem certeza? Porque, se não for isso, você deve estar achando que as minhas técnicas de sedução são... engraçadas. Ela riu de novo, cobrindo a boca tarde demais. Eu não ia permitir que ela escondesse aqueles lábios de mim. Em voz alta, considerei a ideia de puni-la com cócegas, só para diminuir a importância da reação histérica, e seus olhos se arregalaram. — Não, por favor — ela implorou, como se eu fosse mesmo fazer aquilo. Meus dedos passeariam por seu corpo de um jeito totalmente diferente, e ela não riria de novo, por mais adorável e estranho que isso fosse. Eu afastei a mão dela dos lábios e a coloquei sobre meu coração, enquanto capturava sua boca com a minha — sem lhe dar tempo de se sentir ansiosa, sem me dar tempo para pensar. Ela gemeu baixinho, me deixando completamente maluco. Abaixei seu suéter, mas eu não precisava vê-la para senti-la, e minha imaginação preenchia cada lacuna visual. Acariciando a pele macia da barriga e subindo lentamente, dois centímetros acima, um abaixo, eu finalmente enchi a mão com seu seio perfeito. Ela arfou quando meu polegar roçou o mamilo, e eu o senti enrijecer imediatamente através do tecido fino do sutiã. Belisquei delicadamente a área sensível, me deliciando com sua reação imediata antes de voltar a mesma atenção ao outro seio. Seria capaz de desenhá-la só com aquele toque, sem nunca ter visto seu corpo nu. As auréolas eram do tamanho de moedas de vinte e cinco centavos, imaginei — mamilos rosados que se projetariam em direção à minha boca se eu a puxasse mais para perto e lambesse cada um deles, soprando a pele úmida em seguida. Meu. Deus. Como se lesse minha mente, ela gemeu, abrindo mais a boca, e minha língua mergulhou mais fundo, percorrendo cada centímetro da sua boquinha quente, afagando sua língua com movimentos cadenciados. Gemendo de prazer quando ela sugou a minha, eu a abracei com mais força, recorrendo a cada gota de autocontrole para não puxá-la sobre as minhas pernas, arrancar seu suéter, me livrar de seu sutiã e encher a boca com seu seio enquanto ela acomodava minha ereção pulsante em seu interior quente. Que tortura deliciosa seria isso. Ela estremecia em meus braços, se entregava ao beijo sem pensar — tenho certeza disso — que eu imaginava muito mais do que aqueles beijos ardentes, por mais poderosos que fossem. Acariciei seu pescoço, como se aproximasse a mão de um trilho e sentisse a vibração de um trem que ainda não conseguia ver, mas que se aproximava


depressa. Abandonando seus lábios por um momento, desenhei uma trilha de beijos suaves, chupando a parte da frente de seu pescoço — não forte o bastante para deixar marcas, mas com a pressão necessária para deixá-la zonza. Com força suficiente para lhe dar uma ideia do que eu era capaz de fazê-la sentir. Deslizando uma das mãos até a base de sua coluna e puxando-a mais para perto, escorreguei os dedos para dentro da parte de trás de sua calça jeans enquanto minha boca se apoderava novamente da dela, beijando-a lenta e suavemente, depois lenta e profundamente, depois rápida e suavemente, rápida e profundamente — envolvendo-a pouco a pouco. A mão dela me massageava e pressionava. Minha pele ardia e meus músculos saltavam sob sua palma delicada, como se estivessem prontos a se render à vontade dela, qualquer que fosse. Eu só estava no comando porque ela permitia. Meu comando era ilusório. Se ela me mandasse parar, eu pararia. Se sussurrasse em meu ouvido pedindo para ser possuída, eu a tomaria para mim, mesmo sabendo que era cedo demais e que seria um erro. Faria tudo que ela pedisse, como ela quisesse. Seria seu bad boy, se era essa a sua vontade. Se era disso que ela precisava. Queria que fosse bom para ela. Muito bom. Mas não dessa vez. Ainda não. Deitado em sua cama estreita, sem tirar uma única peça de suas roupas, eu nos levaria ao limite da loucura. Um toque e despencaríamos do abismo. Sua postura lânguida e as pálpebras pesadas me diziam que ela estava embriagada de beijos e dócil. Ela seguiria por onde eu a conduzisse. — Eu devia ir embora — sussurrei. Ela franziu o cenho. — Você quer ir? Não, menina linda. Quero prender seu corpo a essa cama e satisfazê-la de todas as formas possíveis até o fim da noite. — Eu disse que devia ir. — E beijei o canto de sua boca. Os lábios dela estavam inchados e molhados, e, se eu não parasse de olhar para eles, não conseguiria sair dali. Aproximando a boca de sua orelha, expliquei: — Dever é diferente de querer. Ela suspirou. — Posso ver os desenhos, então? — Hum, claro. — Meu corpo protestou contra a separação quando a puxei pelas mãos e a fiz se sentar. Se ela continuasse deitada ali, com os cabelos espalhados em torno do rosto, as roupas desarrumadas, meu abalado autocontrole seria arremessado pela janela.


Violentamente. Peguei o caderno de desenhos e me sentei ao lado dela na beirada da cama. Mostrei os dois esboços — ambos em desenvolvimento, sem acabamento. Ainda assim, ela parecia impressionada. Expliquei que provavelmente os refaria com carvão e os prenderia à parede do meu quarto. Sua resposta foi uma perplexidade cômica, especialmente quando acrescentei: — Quem não gostaria de acordar e ver isso? Mordi a parte interna da bochecha para manter a expressão neutra. Tarde demais, percebi que não tinha lavado as mãos depois de desenhar, antes de tocá-la. Se eu tirasse aquele suéter, ela certamente estaria coberta de borrões cinzas, como se eu a tivesse marcado como minha. Meu corpo reagiu a esse pensamento. Apoiei-me na porta do quarto e a segurei pelas mãos para colocá-la de pé, depois a puxei para mim e a beijei uma última vez. Quando ela se apoiou na ponta dos pés e correspondeu, eu soube que Jacqueline estava a cinco segundos de acabar deitada de costas no meio daquela cama. — Se eu não for embora agora, não vou mais — gemi. Ela não disse nada — nem concordou, nem protestou. Ignorei o que vi em seus olhos — um momento de hesitação que sugeria que eu poderia ser mais do que o instrumento que suas amigas queriam que eu fosse. Eu fantasiava, sem dúvida. Beijei sua testa e a ponta do nariz, mas não a boca exuberante e tentadora. — Até mais — murmurei, e saí do quarto com os pensamentos desordenados e o corpo à beira de um motim.


15

LANDON Tendo frequentado um pequeno colégio particular, eu sabia alguma coisa a respeito de cidades pequenas. Como nada permanece em segredo. Como as coisas se espalham feito incêndio na floresta. Como esse fogo não se apaga até ser engolido por um incêndio ainda maior. Durante o recesso de primavera, quatro universitárias alugaram uma casa na praia — um imóvel dos Richards. O pai de Clark mandou o filho levar as chaves quando as garotas chegaram. Segundo os rumores, ele passou por lá com dois amigos do time de beisebol, e só foram embora depois de uma hora. Pode não ter sido grande coisa, mas eles voltaram com mais um cara naquela noite. E ninguém saiu de lá até a manhã seguinte. Um deles não se aguentou e saiu falando sobre a suposta orgia — não que alguém pudesse culpá-lo por comentar. Strip pôquer com doses de Jose Cuervo e universitárias, dois caras e duas garotas em cada quarto e várias trocas de casais? Qualquer um teria falado. E falado. E falado. Alguns não se contentam em parar por aí. Querem fotografar, filmar, ter provas materiais para mandar aos amigos, sobretudo quando estão bêbados ou chapados demais para se dar conta de que um amigo que namora há muito tempo está nas imagens. A imagem em que uma garota praticamente nua está montada sobre ele em uma cadeira, se mexendo e gemendo de um jeito que dispensa a imaginação para entender o que está acontecendo. Boyce e eu vimos o vídeo cedo no dia seguinte. Melody também já tinha visto as imagens quando Clark apareceu na casa dela na noite seguinte. Houve uma briga horrível, e a mãe dela ameaçou chamar o pai dele se Clark não se acalmasse e fosse embora. Ele quase capotou o jipe quando saiu da casa de Melody, fechando demais a curva à direita e deixando marcas de pneus no asfalto. Senti vontade de espancar Clark quando, três horas mais tarde, ele apareceu em uma das fogueiras espalhadas pela praia, agindo como se ter perdido Melody fosse só um


pequeno aborrecimento. Boyce me contou que Clark já tinha transado com turistas antes — só não tinha sido flagrado. — Alguns caras acham que não tem importância se é só uma coisa passageira. Uma transa temporária. — Como se quisesse ilustrar o comentário de Boyce, Clark pegou uma desconhecida cinco minutos mais tarde. Essa parecia ter treze anos, e seus olhos assustados lembravam os de um filhote de cervo. — Ei, cara... olha lá — Boyce falou, apontando alguma coisa com o cigarro. Melody cambaleava pela areia amparada por Pearl, que carregava uma caixa de papelão. Aproximando-se de Clark e da fogueira, ela enfiou as mãos na caixa que a amiga segurava e jogou na cabeça dele pedaços de fotos rasgadas e do que parecia ter sido um ursinho de pelúcia. — Que merda é essa, Melody? — Clark reagiu, levantando-se e deixando a menina assustada que estava no seu colo cair na areia. Ela se afastou engatinhando como um caranguejo. — Você. Canalha! Traidor. — Melody tirou uma pulseira dourada da caixa e jogou nos pés dele. A joia acertou o tornozelo de Clark e rolou para a água. — São diamantes, sua vadia maluca! — ele berrou, correndo para recuperar o objeto. — Você não pode me comprar! — ela retrucou. — E quem ia querer? — Clark disparou. Melody explodiu em lágrimas e se afastou cambaleando. Pearl jogou a caixa vazia na cabeça de Clark — ele se esquivou e a caixa passou por cima de seu ombro — e seguiu a amiga.

Puxei a corda da porta do forte, atento a qualquer ruído. Pensei ter ouvido alguém choramingando, mas podia ser o vento. — Melody? — sussurrei. Seu rosto apareceu lá em cima, os cabelos iluminados ao luar como um halo ao redor da cabeça. Ela apertou os olhos e respondeu: — Ah... Landon. O que você tá fazendo aqui? — E soluçou. A cena na praia havia acontecido mais de duas horas atrás, mas ela ainda estava chorando. — Só vim ver como você está. Posso subir? Ela assentiu.


— Claro. Ficamos ali sentados em silêncio até ela se aproximar e apoiar a cabeça no meu ombro. — Metade dos meus amigos acha que eu exagerei, a outra metade quer me ajudar a esconder o corpo dele. Não sei em que acreditar. Balancei a cabeça. — Exagerou? Porque ele traiu você? Melody abraçou os joelhos, se encolheu junto ao meu corpo, e eu a abracei. — Ele veio pedir desculpas. Disse que só tinha ido lá por causa dos amigos, que não têm namorada. E falou que garotas como eu não devem nem saber sobre esse tipo de coisa. O Clark disse que estava bêbado, que foi um erro. — E você acredita nisso? — É claro que não, ou não teria destruído o Beauregard. Eu ri. — Beauregard? Ela também riu, soluçando mais uma vez quando começamos a gargalhar. Em algum momento, no entanto, as gargalhadas se transformaram em soluços, e ela desabou em meu peito. — Por que ele transou com uma vadia qualquer quando tinha a mim? Por quê? Imaginei que ela não queria que eu tentasse responder. Também desconfiava de que nada nem ninguém jamais seria suficiente para um cara como Clark Richards. Como o pai, ele nunca se contentaria com o que tinha. Via apenas aquilo que não tinha. E sentia que era direito seu ter todas as coisas. Ela se acalmou depois de alguns minutos, respirou fundo algumas vezes e estremeceu. — Como você soube que eu estava aqui? — Eu mandei uma mensagem e você não respondeu, então deduzi. Ela inclinou a cabeça para trás e olhou para mim. — Você é um cara legal, Landon. Não sou, foi o que me veio à cabeça. Melody se aproximou um pouco mais e, de olhos abertos, tocou meus lábios com os dela. Só um contato breve, hesitante e inseguro. Ela se afastou alguns centímetros, e meu hálito se misturou ao seu. Fui me aproximando, um centímetro de cada vez, e Melody não recuou. Eu a beijei como ela me beijara, cauteloso, devagar, só com os lábios


e sem fechar os olhos. — Melody? Nós nos afastamos sobressaltados — a voz da mãe dela soava próxima, do lado de fora do forte. Eu me deitei de costas enquanto ela se ajoelhou no chão, a mão no meio do meu peito, sentindo meu coração disparado. — Oi, mãe. A mulher suspirou irritada. — Entre agora. Você não pode ficar sozinha aqui fora. É perigoso. — Melody olhou para mim enquanto a mãe continuava: — Além do mais, o Clark agora está ligando para o número fixo, já que você não atende o celular. Ela levantou o queixo. — Você mandou o Clark ir à merda? — Melody Ann Do... — Você sabe o que ele fez, mãe? Tem ideia de como me sinto humilhada? Outro suspiro. — Entre, Melody. — Sim, senhora. — Ela virou de costas para a escada e sussurrou para mim: — Espere cinco minutos antes de ir embora. E obrigada.

No dia seguinte eu estava trabalhando com meu pai, que agendara um passeio com uma família de quatro pessoas, uma excursão de pescaria e turismo. Eles estavam esperando na doca quando meu pai e eu chegamos. Uma garota mais ou menos da minha idade esperava de braços cruzados e expressão contrariada. Outra, da idade de Carlie, parecia muito entusiasmada. — Puta merda — resmunguei de mau humor. — Aguenta firme — meu pai respondeu, voltando um olhar cortês para os quatro. Ele nunca era simpático, então não era como se uma transformação instantânea estivesse acontecendo, mas sua atitude a bordo era sempre educada e paciente, mesmo quando explicava e demonstrava as mesmas coisas um milhão de vezes. Não tive notícias de Melody — mas isso não me surpreendia. Fazia apenas oito horas que eu tinha saltado da plataforma do forte e voltado caminhando para casa, tão


intoxicado com aquele beijo que quase não consegui dormir. Mas eu ficaria sem sinal de celular até voltarmos a terra firme e ainda teria de aguentar uma adolescente chata e uma menina hiperativa. Previa um dia longo e miserável. Eu estava certo, mas não necessariamente pelas razões que imaginava. A garotinha ouviu atentamente as minhas instruções e pescou o maior peixe que vimos no ano todo — embora fisgar um peixe grande tenha mais a ver com sorte e localização do barco do que com a habilidade de quem segura a vara. Ninguém disse isso a ela. O lema do meu pai: “Nosso trabalho é garantir que o cliente creia que foi obra dele”. Ele a ajudou a puxar o peixe para o barco enquanto os pais aplaudiam. A filha mais velha estava saindo do carro dos pais quando eu desci do SUV, e ficou mexendo nos brincos, ajeitando os cordões do shorts, arrumando o cabelo — prendia e soltava. Essa porcaria continuou o dia todo. Ela colou em mim também, fazendo perguntas idiotas sobre as minhas tatuagens — que não costumo explicar a ninguém, especialmente a estranhos — e usando sua curiosidade como desculpa para tocá-las. Ela queria saber o que os jovens dali faziam para se divertir, me olhando como se esperasse que eu a convidasse para fazer alguma coisa — e ela toparia qualquer coisa. O mais constrangedor: ela tirou fotos minhas com o celular. Eu suspeitei que ela as estivesse enviando para alguém ou postando na internet e me senti estranhamente invadido. O barco parecia menor do que nunca, e pensei nas pessoas que têm de se espremer em botes salva-vidas e passar dias no mar. Eu pularia na água depois de pensar seriamente em jogá-la no mar. Assim que atracamos e meus pés pisaram em terra firme, liguei o celular. Havia uma mensagem de Melody perguntando se eu ia fazer algo hoje. Ela enviara a mensagem horas atrás. Batendo a mão fechada na da menina menor e tratando com indiferença a mais velha, cuja atitude podia ser considerada assédio sexual, falei: — Foi uma grande pescaria, pessoal! E entrei no SUV.

Oi. Dia todo no barco. Trabalhando. Sem sinal até agora. Acabei de chegar.

Fiquei com medo de você estar bravo por causa do que eu fiz.


O quê??

O beijo.

Estou o contrário de bravo, seja lá o que for. Forte à noite?

Não posso. Vou dormir na Pearl. Trabalha amanhã?

Não. Meu pai vai passar o dia fora. Apareça.

Blz.

Assim que meu pai saiu na manhã seguinte, limpei o banheiro, arrumei a cozinha e guardei as roupas que normalmente ficavam empilhadas ao lado da cama ou dobradas de qualquer jeito nas prateleiras. Arrumei a minha cama. As batidas de Melody eram hesitantes. Silenciosas. Esfreguei as mãos nervosas no shorts desbotado e respirei fundo antes de abrir a porta. — Oi — falei, esperando ela entrar para fechar a porta. E trancá-la. — Oi — Melody respondeu, prendendo uma mecha de cabelo atrás da orelha. Ela me acompanhou até a cozinha, onde bebemos refrigerante e fizemos sanduíches que só provamos. Nós mal nos falamos. Por fim, ela pigarreou. — Uma vez você disse que podia me desenhar. Quer fazer isso agora? Eu assenti. — Claro. Sim. — Deixamos os pratos na pia e eu abri a porta da despensa e acendi a luz. — Onde você quer...? — Ali — ela disse. — Se for bom pra você. Eu esperava que ela não quisesse uma resposta para essa pergunta, porque exatamente tudo nesse dia estava bom para mim. Melody chutou os chinelos e nós subimos na cama. Peguei o caderno e os lápis, e ela se reclinou sobre os cotovelos. — Então, você me ajeita, ou eu escolho uma pose, assim como estou, ou de outro


jeito? Não havia a menor possibilidade de tocá-la e depois conseguir desenhar. — Fique numa posição confortável. Vai demorar um pouco. Não é bom ficar muito tempo em uma posição incômoda. — Como aquela em que estava, os seios perfeitamente delineados sob a blusa, criando uma brecha entre eles e exibindo a pele bronzeada acima do shorts. Ela se virou para ajeitar os travesseiros enquanto eu me sentava com as costas apoiadas na parede. Melody se deitou de lado, meio sentada, meio reclinada, apoiada à pilha de travesseiros, os cabelos cobrindo a superfície como uma cascata dourada. Flexionando uma das pernas, ela estendeu a outra até os dedos dos nossos pés se tocarem. Esperei ela ficar parada. Com os olhos fixos nos meus, Melody abriu os dois botões de cima da blusa, mostrando o sutiã de renda branca. — Tá bom assim? — perguntou, a voz trêmula e baixa. Minhas mãos tremiam. Merda. Inspirei lentamente, depois mais uma vez, recuperando um pouco do autocontrole. — Perfeito — respondi, e ela sorriu. Nenhum de nós falava. Não havia ruídos, exceto um pigarreio ocasional e o atrito do lápis no papel. O pé dela passou por cima do meu quando ela se mexeu, e eu recuei instintivamente. Por fim, dei uma olhado no desenho e o mostrei a ela. — Ah, meu Deus. — Melody olhou do caderno para mim e de volta para o caderno. — Eu sabia que você era bom... mas isso... é incrível. — Ela examinava o retrato, estendendo as duas pernas e procurando defeitos. — Eu não sou assim na vida real. Ficou lindo. Peguei o caderno da mão dela e o deixei na prateleira mais baixa, bem em cima da minha cabeça. — Você é melhor, pode acreditar. — Eu me aproximei. Sem olhar nos meus olhos, Melody estendeu a mão para tocar minhas tatuagens — um toque muito diferente do da garota de ontem, que parecia pensar que me tocar fazia parte do pacote comprado pelo pai. — Quer me beijar de novo? — Melody perguntou, ainda sem me olhar. Em me inclinei em direção a ela, apoiando a mão em sua cintura nua, sob a blusa, e esperando seus olhos encontrarem os meus. Repetindo o beijo cuidadoso e experimental de dois dias atrás, mantivemos os olhos abertos, o contato entre os lábios aparentemente hesitante. Então, a mão dela agarrou minha camiseta e me puxou para baixo. Meu joelho escorregou entre as suas pernas, e eu não tive como esconder a


ereção que pressionava sua coxa. Ela fechou os olhos e abriu a boca, e não perdi tempo pesando as variáveis, porque eu não conseguia raciocinar. Minha língua invadiu sua boca, meus olhos se fecharam e minhas mãos tocavam tudo que eu podia alcançar. Abri os três últimos botões da sua blusa e nós nos sentamos, tentando manter as bocas coladas enquanto ela se despia. Minha camiseta se juntou à blusa dela no pé da cama. Quando ela levou as mãos às costas para abrir o sutiã, eu a observei e a devorei com os olhos. Deslizei as alças de seus ombros pelos braços, e ela estremeceu quando meus polegares traçaram o contorno de suas curvas. Suas pernas de bailarina, esguias e atléticas, contrastavam com os seios fartos. Jogando o sutiã no chão, eu me deitei e a puxei para cima de mim, posicionando-a de forma a conseguir tocar seus mamilos com a língua enquanto agarrava seu traseiro para mantê-la colada a mim. Ela esticou os braços e apoiou o corpo sobre mim. Quando os gemidos de Melody ganharam força, chupei um mamilo e o enfiei inteiro na boca, e ela gritou, arqueando as costas. Então rolei até meu quadril encontrar a parede, a puxei para baixo de mim na cama estreita, enfiei uma coxa entre as suas pernas e pressionei. Ela arranhava meus braços e me beijava loucamente. Então, uma de suas mãos escorregou para dentro do meu shorts, e eu levantei o corpo apenas o suficiente para permitir seu acesso, perdido ao sentir o contato macio e quente dos seus dedos. Apoiado sobre um cotovelo, eu a ajeitei de lado e enfiei a mão na frente do shorts dela. — Meu Deus, Melody — arfei, os dedos escorregando facilmente para dentro dela. Ela gozou segundos depois, estremecendo junto a mim, e eu a segui. Voltando lentamente à realidade, tiramos as mãos de dentro das roupas um do outro. Peguei minha camiseta e a usei para limpar a mão dela, depois a minha. Queria lamber os dedos que a haviam penetrado, queria saber que gosto ela tinha, mas eu me sentia estranhamente tímido naquele momento. Fazendo do meu edredom um casulo, eu a abracei e ficamos nos olhando até adormecer. Quando acordei, ela tinha ido embora. E levado o desenho.

LUCAS


Não mandei nenhum e-mail para Jacqueline até a noite de domingo — quatro frases curtas, todas contendo instruções, nenhum flerte. Ela respondeu no mesmo tom, mas perguntou sobre o meu fim de semana. Não pude deixar de dizer que o fim de semana tinha sido bom — especialmente a sexta-feira. “Como foi o seu?”, perguntei. Três palavras se destacaram em sua resposta curta: “bom”, “solitário” e “produtivo”. Todos nós precisamos de momentos de solidão, mas essa garota não devia ficar sozinha nunca. Peguei uma folha e meus lápis carvão, escolhi a pose em que ela estava totalmente reclinada — deitada de costas, os braços sobre a cabeça. Enquanto eu retocava os membros esguios, cada traço no papel me fazia lembrar dos beijos e carícias que deixaram meu corpo clamando por mais. Com o dedo, sombreei a região sob seus seios, recordando a pele macia e como ela me deixou tocá-la. Apesar da minha necessidade de manter uma muralha entre nós, o muro desmoronava mais depressa do que eu conseguia reconstruí-lo. No meu quarto, prendi o desenho à parede, na frente do meu travesseiro. Na quarta-feira, no fim da aula de economia, minha vontade de contar a Jacqueline a verdade sobre quem eu era rivalizava com o desejo de continuar o joguinho que havíamos começado — aquele em que eu era o mercenário sexual que a ajudava a recuperar a confiança. Parecia o cenário ideal — eu ficava com a primeira garota que chamava minha atenção em anos, e ela abria as asinhas, esquecia o ex-namorado egoísta e recuperava o domínio do próprio corpo. Silenciei a voz em minha cabeça que dizia que nada disso era suficiente. Jacqueline também parecia hesitar — ela não mandou e-mails para Landon ou para mim durante toda a semana. Não foi ao Starbucks, e, durante a aula, só olhou para trás, na minha direção, duas vezes. Na sexta-feira, o ex-namorado se aproximou de Jacqueline no fim da aula. Com as mãos nos bolsos, ele sorriu para ela confiante em seu charme. Eu não conseguia ver o rosto dela enquanto conversavam, mas sua postura parecia tensa. Querendo arrancar aquele sorriso do rosto dele, saí da sala antes de falar ou fazer algo estúpido. Na sexta-feira à tarde, recebi um e-mail de Ralph Watts, chefe adjunto da polícia do campus. Watts era responsável pelas aulas de defesa pessoal oferecidas pela universidade e que aconteciam algumas vezes ao longo do semestre. Depois de ter visto o panfleto em nosso quadro de avisos no último outono e pedido mais informações, ele me enviou para um treinamento e um programa de certificação. Eu já havia me oferecido


duas vezes para ajudar nas aulas — preparando o equipamento e aceitando ser socado e chutado por alunas e funcionárias que sacrificavam três manhãs de sábado para aprender movimentos básicos de defesa pessoal.

Lucas, A sargento Netterson ia ajudar na próxima aula de defesa pessoal, mas quebrou a clavícula ontem à noite durante uma escalada de parede. Sei que está em cima da hora, mas, se puder substituí-la, preciso de você a partir de amanhã de manhã. Serão mais duas aulas depois do feriado de Ação de Graças, se puder continuar. Se só puder colaborar amanhã, já será uma grande ajuda. Espero sua resposta o quanto antes. Obrigado, R. Watts

Pela primeira vez, eu não teria de ficar das dez da manhã às três da tarde do sábado no Starbucks. Respondi para Watts confirmando minha participação nas aulas nos três sábados. Também recebi um e-mail de Jacqueline. Nada de flerte — apenas o trabalho de pesquisa para Heller, que prometi revisar antes de ela entregar. Eu não podia me sentir insatisfeito, já que não queria que ela flertasse com Landon... certo? Respondi dizendo que revisaria o material e o enviaria de volta no domingo. Minutos depois, Lucas recebeu uma mensagem dela:

Eu fiz alguma coisa de errado?

Andei um pouco pelo apartamento antes de responder que estava ocupado, só isso, e acrescentei um casual:

E aí?

Tão indiferente, quando tudo que eu não sentia por essa garota era indiferença. Em vez de se sentir ofendida, ela respondeu demonstrando curiosidade sobre os retoques a carvão que eu planejava fazer nos desenhos. Contei que já havia retocado um deles e que queria que ela o visse. Ela respondeu que gostaria mesmo de vê-lo. Então eu disse que não estava em casa e que falaria com ela mais tarde.


— Droga — resmunguei, jogando o celular sobre a bancada e seguindo até o sofá. Pressionei a base da palma das mãos sobre os olhos, mas não dava para apagar a lembrança dela em meus braços uma semana atrás. Ela confia em mim. Não havia triunfo nessa constatação, porque tudo que eu fazia era dar sinais confusos — sem mencionar que eu era duas pessoas diferentes para ela. — Eu sou um cretino mentiroso — disse a Francis, que bocejou.

Quando cheguei à gelada sala de atividades às nove da manhã do sábado, a última coisa que eu esperava era ver Jacqueline Wallace. Enquanto o sargento Don Ellsworth orientava as doze alunas a assinar a lista de presença e Watts distribuía os pacotes, eu amarrava meu calçado especial de taekwondo e ajeitava os tatames. Reduzi a velocidade dos movimentos quando vi a amiga ruiva de Jacqueline passar pela porta, e me detive completamente quando a vi entrar em seguida. Eu tinha pensado em sugerir o curso a ela, mas não acreditava que estivesse pronta para isso — sobretudo se não havia contado a ninguém o que aconteceu naquela noite. Se começasse as aulas cedo demais e se sentisse intimidada ou subjugada, ela poderia não voltar. Mas Jacqueline devia ter contado à amiga, que não desgrudava dela, sempre tocando seu ombro como se quisesse deixá-la mais confiante, ou guiando seus passos com a mão em seu cotovelo quando ela parecia prestes a sair correndo. Jacqueline parecia mais do que pronta para fugir quando me viu ao lado do tenente Watts. Seus olhos se desviaram de mim para o pacote entre suas mãos claras e crispadas, e ela cochichou alguma coisa para a amiga. Com uma mão sobre a perna dela, a ruiva respondeu no mesmo tom. Watts começou seu discurso inicial redutor de ansiedade, no qual se identificava e apresentava o fortão Ellsworth e a mim do seu jeito habitual. — Sou Ralph Watts, chefe adjunto da polícia no campus. Esse cara franzino à minha esquerda é o sargento Don, e o feioso é o Lucas, um dos nossos oficiais de vigilância de estacionamento. — Enquanto todas riam, ele as parabenizou por dedicarem a manhã de sábado à aula, explicando em seguida o programa de três semanas. Depois que os princípios básicos foram discutidos, passamos para as demonstrações coreografadas de ataques e bloqueios, de modo que as mulheres pudessem ter ideia dos movimentos que ensinaríamos a elas. Em câmera lenta, Ellsworth encenava os ataques e


eu os defendia, enquanto Watts detalhava os pontos fracos do atacante — alguns óbvios, como a região genital, outros não, como o meio do antebraço. Ele enfatizava o objetivo do atacado: escapar. Todas se dividiram em duplas para praticar movimentos individuais, enquanto nós três circulávamos pelo espaço para garantir que os movimentos fossem executados corretamente. Evitando estressá-la ainda mais, deixei Ellsworth cuidar do lado da sala onde estava Jacqueline, mas sua calça de ioga azul-marinho e a camiseta branca permaneciam em minha visão periférica. Eu procurava sinais de estresse comuns às alunas que passaram pela experiência do ataque. Eu sabia que o cenário desencadearia lembranças de seu ataque em particular, e temia esse momento. Graças à amiga dela, cujo nome era Erin, Jacqueline se saía bem com os movimentos de mão, gritando Não! a cada um deles, de acordo com as instruções, e sorrindo ao acertar o golpe do martelo. Por fim, chegamos ao último movimento de defesa do dia. Não consegui ver a reação dela durante a demonstração, mas, quando o grupo mais uma vez se dividiu em duplas, vi a postura rígida, os olhos arregalados e seu arfar, claros indicadores de pânico. Erin estendeu a mão conforme elas conversavam em voz baixa, as cabeças próximas. Jacqueline balançou a cabeça, mas não soltou a mão da amiga. Mais palavras murmuradas, e elas se dirigiram ao tatame. Erin se deitou de bruços, e Jacqueline se ajoelhou em cima dela. Suas mãos tremiam ao executar o ataque. Em vez de trocar de lugar, elas mantiveram as posições iniciais e repetiram o movimento mais duas vezes. Incapaz de tirar os olhos dela, mal dei atenção à dupla que deveria estar acompanhando. Quando elas trocaram de posição, senti seu pânico do outro lado da sala e temi que ela pudesse passar mal ou desmaiar. Vai, Jacqueline, minha mente a incentivava. Você consegue. Uma onda de orgulho me invadiu quando ela executou a sequência de movimentos, se esforçando para acertar, apesar do estresse. Depois, quando se ajoelharam no tatame, Erin a elogiou e a abraçou, e eu suspirei aliviado, ainda que Jacqueline não tivesse me olhado nos últimos minutos da aula nem quando saiu da sala. Não queria que seu medo ou minha presença a impedissem de voltar. Queria ter certeza de que isso não aconteceria. Naquela noite, antes que eu pudesse me convencer a desistir, mandei uma mensagem perguntando se ela ainda queria ver o desenho retocado. Ela respondeu:


Sim.

E eu a orientei a prender o cabelo e vestir uma roupa quente. Depois montei na minha Harley e fui buscá-la. Do lado de fora do dormitório, fiquei encostado na moto, olhando para a porta. Pessoas iam e vinham à minha volta, mas eu não conseguia prestar atenção em nenhuma delas. Quando ela saiu do prédio, eu mais uma vez me espantei com as nossas diferenças. Agora eu ganhava dinheiro suficiente para comprar roupas novas, mas meu estilo não mudara muito. Essa garota era uma mistura de roupas clássicas e modernas, mas caras, e as usava de maneira muito confortável, como uma segunda pele. Ela reduziu a velocidade dos passos, me procurando enquanto abotoava um casaco preto que podia ter saído de um filme da década de 60, do tipo que minha mãe adorava. Não demorou muito para ela me ver. Notei uma hesitação em seus passos e me perguntei por quê. Eu queria abraçá-la e beijá-la como se não tivéssemos nos separado desde a última vez em que a tive nos braços. Queria apagar o rótulo que as amigas me deram — sua Operação Bad Boy, um período inconsequente entre dois estágios válidos, sensatos: Kennedy Moore e quem viria depois. — Então é por isso que você me falou para prender o cabelo — ela disse, inspecionando o capacete que ofereci como um objeto estranho e complexo. Jacqueline nunca montara em uma moto antes, algo que meio que me excitou. Como se eu precisasse de alguma ajuda com isso. Ela me olhava enquanto eu ajeitava o capacete em sua cabeça, ajustando e prendendo as tiras. Prolonguei o processo, devorando mentalmente os lábios cujo sabor eu ainda podia sentir quando fechava os olhos, fitando aqueles olhos azuis, profundos como o oceano. O cuidado que tive no caminho de volta passou despercebido, imaginei, já que ela mantinha o rosto colado às minhas costas e se agarrava a mim nas curvas como se temesse ser arremessada para Oklahoma — não que eu fosse reclamar. Quando chegamos, as mãos dela estavam congelando, então segurei uma, depois a outra entre as minhas e as friccionei para aquecê-las. Queria saber como ela tocava um instrumento do tamanho de um contrabaixo com mãos tão pequenas, mas mordi o lábio antes de fazer a pergunta em voz alta. Jacqueline só contara a Landon sobre o instrumento que tocava.


Prolongando meu momento de culpa, ela perguntou se meus pais moravam na casa do outro lado do quintal. — Não, eu alugo esse apartamento — respondi conforme subíamos a escada e eu destrancava a porta. Francis não parecia impressionado ou preocupado por eu ter trazido alguém para casa. Simplesmente pulou do sofá, caminhou até a porta e saiu como se quisesse me dar momentos de privacidade. Jacqueline riu do nome que eu dei ao gato, comentando que ele combinaria mais com Max ou King. Eu expliquei a ela que meu gato já tinha um complexo de superioridade bem grande sem eu lhe dar um nome viril desses. — Nomes são importantes — ela opinou, desabotoando lentamente o casaco. Um arrepio percorreu minha coluna quando ouvi essas palavras, e pensei no possível duplo sentido por trás delas, mas a reação logo desapareceu com a atração hipnótica daqueles dedos delicados manejando os botões, deslizando-os pelas casas com uma lentidão que, felizmente, expulsava todos os meus pensamentos e afetava diretamente meus batimentos cardíacos. Quando ela por fim abriu o último, minha paciência ardia em chamas. Deslizei os polegares por seus ombros dentro do casaco e o empurrei por seus braços. — Macio — murmurei. — É de caxemira — ela sussurrou de volta, embora eu não tivesse perguntado. Eu queria puxá-la mais para perto, deslizar as mãos por seu suéter e beijá-la até deixá-la sem ar. Queria passar a língua pelo arco de sua orelha, segurar o rosto delicado entre as mãos e saborear sua boca de ameixa madura. Suas pupilas se dilataram levemente na sala de iluminação fraca, e ela me olhou e esperou. Cada músculo do meu corpo se projetava para ela, a desejava. Mas eu tinha algo mais importante para dizer, e, antes de perder a coragem e ceder ao desejo, eu falei, mandando as boas intenções para o inferno: — Eu tinha outro motivo para trazer você aqui.


16

LANDON Quem não gosta de multidões estava muito satisfeito depois de alguns meses de inverno moderado e menos turistas. Mas, no recesso de primavera, não existia praia deserta por aqui. Depois de mal se formar no ano passado, Thompson sênior começou a se envolver com paradas mais pesadas — vendendo e usando —, enquanto Rick assumia lentamente o ramo da maconha, cápsulas de gel e o arsenal de pequenos comprimidos roxos do negócio. Os rendimentos dependiam dos compradores, então, quanto mais movimento, melhor. — Mas o idiota fuma metade do que ganha, cara — Boyce comentou. Do topo de uma das pedras na praia, vimos Rick circular pela área lotada. Ele vendia bem, e os negócios prosperavam. — Ou distribui de graça. — Como se quisesse ilustrar o que eu dizia, Brittney Loper o abraçou por trás, pressionando os peitos contra as costas dele e falando em seu ouvido. Sem interromper a conversa com dois possíveis clientes, ele a puxou para frente com um braço e, com a outra mão, transferiu um pacotinho do bolso do moletom para o bolso da frente da calça jeans da garota. Ela se inclinou e o beijou enquanto os dois caras se entreolhavam. Um deles falou alguma coisa, Rick balançou a cabeça e virou Brittney, passando um braço em torno de suas costelas. Os caras olharam para o decote profundo. Ela estendeu a mão, e ambos a cumprimentaram. Dinheiro e pacotinhos trocaram de mãos, e Brittney se afastou pela praia, caminhando entre os dois turistas. — Cara, aquela menina vive perigosamente — disse Boyce, dando uma última tragada no cigarro. — Fala sério. — Bebi o que restava da minha cerveja e mordi um canto da boca. Depois de um minuto, acrescentei: — Tô pensando em pôr um piercing na língua. Ele fingiu se arrepiar.


— Que merda, Maxfield. Por que diabos você faria isso? Boyce não tinha piercings e só uma tatuagem, Semper Fi sobre um emblema de águia, globo e âncora no ombro, uma homenagem ao irmão, um fuzileiro que morreu no Iraque. — Eu não sabia como odiava agulhas até fazer isto aqui. Ardeu pra caralho — ele me contou uma vez. — Se eu não estivesse fazendo a tatuagem pelo Brent, teria mandado a Arianna parar na cabeça da merda da ave. — Ouvi dizer que um piercing na língua melhora tudo quando você chupa uma garota — respondi. Ele arqueou uma sobrancelha e parou a cerveja a meio caminho da boca. — É mesmo? — E bebeu um gole. — Mesmo assim. Se melhorasse para mim, talvez... Dei de ombros e sorri. — Se é melhor pra ela, é melhor pra mim. Ele me olhou intrigado. — Desconfio que você tá transando com alguém de quem gosta, Maxfield. Eu não respondi, e depois de alguns segundos ele gemeu, a cabeça pendendo para trás. — Ah, cara... É sério? Que merda. Por que você nunca ouve o Boyce da razão? Grunhi ao ouvir a tentativa de piada e balancei a cabeça enquanto ele suspirou. — Sabe, quando eu tento te dar conselhos sensatos, é porque você tá na merda de verdade. — Boyce olhou para a multidão na praia. — Então, cadê ela? — Foi passar duas noites em Houston. Ela e a mãe vão fazer compras todos os anos no recesso de primavera. Boyce jogou a bituca do cigarro na garrafa vazia. — Fica ligado. Você sabe que o Richards é um cretino dos grandes. — Acho que ele nem liga. — Pra ela? Provavelmente não. Mas ele liga para aparências e não gosta de perder. — Nem eu. — Meu celular vibrou e eu li a mensagem de Melody. Ela também mandou duas fotos tiradas na frente de um espelho de provador vestindo calcinhas de renda minúsculas, uma preta, uma vermelha. Deitei sobre a pedra e fiquei olhando para as fotos. — Puta merda.

Comprando lingerie. Qual das duas?


AS DUAS. TANTO FAZ. É uma pegadinha?

Uso uma delas na sexta, se você ainda quiser sair.

Claro que quero sair. Mas você não pode sair com isso, a menos que queira que eu mate o primeiro que te tocar.

Embaixo da roupa, bobinho. Só você vai saber, ninguém mais. ;)

Não vou sobreviver ao jantar.

— O quê? Ela mandou alguma mensagem pornográfica? — Boyce perguntou, estendendo a mão para o meu telefone. — Quero ver. Guardei o celular no bolso. — Não. É tudo meu. — Filho da mãe sortudo. Balancei a cabeça e me sentei. — Pensei que vocês não se suportassem. Ele abriu os braços e perguntou: — Quem precisa suportar a garota para apreciar sua nudez? — É bom torcer para isso nunca acontecer. Ele levantou as mãos. — Tá bom, tá bom... Segura a onda aí. Respirei fundo, apalpando o telefone no bolso. Meus dedos coçavam para abrir as fotos mais uma vez e examinar cada detalhe. Minuciosamente. — Preciso de uma cerveja. Ou cinco. Boyce pulou para a areia. — Eu também. Vamos lá, cara.

Os pais de Melody não ficaram contentes quando me viram na porta da casa dela na


sexta-feira. Fui buscá-la com o velho Ford F-100 azul e branco, que estacionei na entrada da garagem. Eu estava usando calça jeans, botas e uma camisa xadrez com botões de pressão que eu tinha tirado das coisas do meu avô antes de o meu pai mandar tudo embora. A camisa azul era desbotada, macia e bem mais velha do que eu. Tinha um rasgo no punho, por isso enrolei as mangas e as empurrei até os cotovelos. Eu tinha me esquecido das tatuagens até a mãe de Melody olhar para elas, dois segundos após abrir a porta, e desviar o olhar da caminhonete. Tocando o colar em seu pescoço como se eu pudesse arrancá-lo e sair correndo, ela falou entre dentes: — Landon. Oi. A Melody vai descer num minuto. O pai foi menos sutil. Um olhar para mim, e ele se virou para a esposa. — Barb, pode vir comigo até a cozinha? — Espere aqui, por favor — ela me falou. Eu assenti. Melody desceu a escada um momento depois, usando um vestido curto vermelho e botas, e minha boca ficou seca, porque imediatamente imaginei aquela coisinha de renda vermelha que ela tinha prometido vestir por baixo da roupa. Eu conhecia cada detalhe da peça, exceto como seria tocá-la, porque tinha passado tanto tempo olhando para as fotos que elas ficaram gravadas em minha retina. — Nossa, que camisa vintage legal — Melody comentou, deslizando a mão por meu peito. Todo o meu corpo respondeu ao toque, tudo se contraiu imediatamente. Eu estava encrencado com essa garota. Podíamos ouvir os pais dela discutindo na cozinha. — Você deixou a Melody sair com esse garoto Maxfield? Aprova isso? — o pai perguntou. — É claro que não... — Que merda você tinha na cabeça? O que aconteceu com o Clark? A resposta da mãe foi inaudível. Melody revirou os olhos. — Meu Deus. Vamos sair daqui. Eu não protestei. Pegamos a balsa e fomos comer ceviche e tacos de peixe em um restaurante peruano de frutos do mar. — Então, você gosta de trabalhar com carros? — Melody perguntou depois de beber um gole de chá gelado. Eu tinha ficado com Boyce algumas vezes enquanto ele trabalhava na oficina do pai.


Boyce gostava da graxa embaixo das unhas, do cheiro de óleo, de sujar as mãos quando mergulhava nas entranhas da máquina embaixo do capô. Eu, não. — Mais ou menos, não muito. Pode ser legal projetar carros. Quer dizer, gosto de entender o funcionamento da mecânica, mas só para usar esse conhecimento e construir outra coisa. Quando entendo como a coisa toda se conecta, não é mais tão fascinante assim. Quando eu era criança, estava sempre desmontando alguma coisa. Rádios, relógios, torradeiras, uma campainha... Ela riu. — Uma campainha? — É. Deixei minha mãe maluca. Montei o equipamento novamente, mas ela dizia que, depois disso, o som ficou parecido com o guincho de um rato machucado. Ela sorriu. — Por isso os desenhos na parede do seu quarto. As peças mecânicas. Pensei que você gostasse de steampunk, ou alguma coisa assim. — É legal na ficção. — Dei de ombros. — Mas eu gosto mais de desenhar novas tecnologias. Ela pegou minha mão e traçou o desenho da tatuagem no pulso direito. — E as tatuagens? O que significam? — Quando ela começou a virar minha mão, entrelacei os dedos nos dela. Não queria que ela descobrisse as cicatrizes camufladas. — Chega de perguntar sobre mim. E você? O que gosta de fazer? — Levantei uma sobrancelha e me inclinei mais para perto. — Além de me mandar fotos que me deixam maluco por dois longos dias. Com os lábios comprimidos, ela sorriu e olhou para a mesa, movendo um ombro quase nu e passando o dedo nas gotinhas de água deixadas pelo copo gelado. — Não sei. Gosto de moda. Gosto de fazer parte da equipe de dança. — Ela olhou para mim e mordeu o lábio inferior. — Eu meio que gosto de história. Tipo, história da arte. Assenti. — Isso é legal. Ela parecia hesitar. — Você acha? — Sim... Mas não importa o que eu acho. — Afaguei a mão que eu segurava. — É você quem tem que gostar. É isso o que vai querer estudar na faculdade? Ela suspirou.


— Talvez. Mas meus pais esperam que eu faça algo tipo medicina ou contabilidade. Eles ficaram muito animados quando a Pearl e eu ficamos amigas, porque ela quer estudar medicina. Mas eu não sou como ela. Não consegui evitar o sorriso que distendeu meus lábios. — O que foi? — Ela franziu o cenho e começou a soltar minha mão. Segurei seus dedos com mais força e sorri. — Nada! Só estava lembrando como você ficou animada com a autópsia do sapo. Só que não. Tô pensando que medicina talvez não faça parte do seu futuro. Ela revirou os olhos e suspirou. — Fala sério. Eu não queria abrir aquela coisa de jeito nenhum, e a Pearl ficou muito brava por ter perdido aquela aula. Mas você foi muito bem. Dei de ombros. — Eu só queria saber como a coisa funcionava por dentro. — Como a campainha e o rádio? Assentindo, eu disse: — Por falar em rádio... quer ir ouvir música na caminhonete? Podemos estacionar em algum lugar.

Deixamos as janelas abertas para ouvir a música do rádio e pegamos dois sacos de dormir, um cobertor e um travesseiro de uma caixa na carroceria. — O cemitério, hein? — Melody olhou em volta quando os olhos se adaptaram à fraca luminosidade derramada pela lua e pelo céu cheio de estrelas. — É meio sinistro. Tenho a sensação de que todos os fantasmas estão espiando a gente. Eu a estudei por entre as mechas do meu cabelo que me caíam sobre os olhos. — As praias estão cheias de turistas bêbados. Ninguém aqui vai incomodar a gente. A menos que se importe com os fantasmas me vendo beijar você. Ela contorceu os lábios e sorriu. — Acho que não me incomodo tanto assim. — E tirou as botas para subir na carroceria da caminhonete. Fui atrás dela. Cinco minutos mais tarde eu estava sentado sobre os calcanhares, lamentando não ter preparado melhor o ambiente. As saliências da carroceria machucavam. O veículo servia para transportar coisas, não para namorar.


— Não é a superfície mais confortável... — Eu não podia obrigá-la a ficar deitada naquilo. Droga. — Tudo bem. Balancei a cabeça. — Não está, não. Empurrando meu peito até eu me deitar, Melody se ajoelhou ao meu lado. — Tá tudo bem — insistiu. Decidi não discutir, sobretudo quando ela desabotoou minha camisa — não de uma vez só, mas um botão de cada vez, as mãos deslizando por meu peito, desenhando o contorno da tatuagem antes de descerem até meu abdome, que ficou rígido — como todas as partes do meu corpo. Ela soltou as alças do vestido. O tecido escorregou, revelando a renda vermelha com a qual eu sonhava, dormindo e acordado, desde que ela me mandara as fotos. Quando o vestido alcançou a linha da cintura, eu agradecia por termos lua cheia e um céu sem nuvens. Eu me apoiei em um cotovelo e toquei com um dedo a pele macia coberta pela renda. — Posso tocar você aqui? — perguntei, olhando em seus olhos. Ela assentiu. — E aqui? — Sentei-me e levei as duas mãos à sua cintura, puxando o vestido para baixo, sobre seu quadril. Ela assentiu outra vez, e sua respiração se tornou ofegante. Melody ficou de pé e deixou o vestido cair. Minha boca secou quando ela o chutou para trás. O sutiã e a calcinha de renda vermelha não escondiam nada. Mesmo na penumbra, a imagem era melhor do que nas fotos no meu celular. De joelhos, ela se aproximou, me fez deitar de novo e montou sobre mim. Minhas mãos agarraram suas coxas. — Ainda acha que é muito desconfortável? — Melody perguntou. — Ah. Não. Acho que eu poderia estar deitado sobre brasas neste momento e nem sentiria. Um pouco de metal saliente não é nada. Uma alça do sutiã caiu sozinha, e eu abaixei a outra. Seus seios estavam quase pulando para fora das taças. — Puta merda — murmurei. Ela se inclinou para frente e abriu o zíper do meu jeans. — Sim. Deixamos as peças de renda. Senti o contato áspero em meu peito quando ela se debruçou para me beijar. Senti a renda nas mãos quando segurei sua bunda, os dedos


tocando a pele nua logo abaixo da calcinha. E de repente não consegui sentir nada além de onde estávamos colados. Ela gemeu meu nome minutos mais tarde quando levantei o quadril de encontro ao dela, e foi como se fogos de artifício explodissem à nossa volta. — Acho que tô me apaixonando por você, Melody — sussurrei quando ela adormeceu, a orelha sobre a tatuagem de rosa em meu peito.

LUCAS Meu outro motivo aterrorizou Jacqueline, como eu já imaginava que aconteceria. Eu queria aproveitar que aqui não tinha ninguém olhando e mostrar a ela o movimento de defesa no chão — o que ela não conseguira fazer sem quase entrar em pânico naquela manhã. Queria que ela aprendesse a executá-lo sem pensar duas vezes. Saber que era capaz disso a fortaleceria. Se naquela noite ela soubesse executar esse movimento e escapar da caminhonete, talvez ele estivesse bêbado demais para persegui-la. Se eu não estivesse lá, o movimento teria lhe dado uma chance de fugir. Ainda não conseguia pensar no cara em cima dela sem enxergar tudo vermelho e sentir uma culpa esmagadora por não ter ido atrás de Jacqueline imediatamente, assim que a vi sair da festa. Deixei a insegurança em relação ao meu desejo por ela se sobrepor à minha percepção de que tinha algo errado com ele. Erro monumental. Jurei que não o cometeria de novo. Foco. — Confie em mim, Jacqueline. Funciona. Posso te mostrar? — Segurei as mãos dela, que estavam frias de novo, e vi a avalanche de emoções percorrer seu rosto. O medo era a maior de todas, e rezei para que tivesse sido provocado pelas lembranças, não por mim. Se ela não confiasse em mim, eu não poderia ajudá-la. Confie em mim. Ela assentiu com uma breve inclinação de cabeça. Eu a levei a um espaço vazio no chão da sala e me ajoelhei com ela, os olhos fixos nos seus. Se eu interpretasse errado suas reações... não queria nem pensar nas consequências. Conhecia a garota. Confiava nos meus instintos sobre estar agindo corretamente. — Deite de bruços — falei, e ela fez o que eu pedi. Lembrei tudo o que o tenente Watts tinha dito na aula, certo de que ela havia perdido


alguma coisa nos momentos em que foi dominada pelo medo. Eu estava lá, eu vi. — O principal é escapar — avisei, e ela assentiu. Perguntei se ela se lembrava dos movimentos, e ela fechou os olhos ao negar com um movimento de cabeça, como se estivesse envergonhada. Respirei profundamente e relaxei os punhos. A raiva que sentia ao pensar na degradação a que fora submetida não a ajudaria, e isso era tudo que importava. Para dar certo, ela teria de repetir o movimento várias vezes. Tinha de ser uma resposta programada que o corpo simplesmente executaria sem pensar muito. — Se você estiver nessa posição, o importante é fazer esses movimentos automaticamente, sem desperdiçar tempo ou energia tentando se livrar dele. Ela ficou tensa, e eu parei de falar por um instante. Rememorei o que havia acabado de dizer tentando identificar algum gatilho para a reação, mas não havia nada. — Que foi? — perguntei. — Buck. O nome dele é Buck. Tive de me controlar mais uma vez, e decidi que seria melhor não encontrar Buck no campus ou em qualquer outro lugar. Havia uma grande probabilidade de ele não sobreviver ao encontro. — Vou me lembrar disso. O movimento era de alavanca, e a base era pura física — algo muito claro para mim, mas não necessariamente para a maioria das pessoas. Para deslocar um agressor maior, mais forte, é necessário deixá-lo sem um ponto de apoio. Eu a fiz executar o movimento sem meu peso sobre seu corpo, depois sugeri que tentasse enquanto eu a segurava. Prometendo que ela só teria de pedir, e eu a soltaria. O pânico de Jacqueline era tão evidente que seus ombros subiam e desciam sob as minhas mãos. Ela fechou os olhos para esconder as lágrimas. Eu já tinha notado. Merda, eu queria matar aquele filho da puta. Fui cuidadoso em todas as tentativas, mas aumentei a pressão à medida que ela ganhava confiança, até que, finalmente, soltei todo o meu peso em cima dela. Jacqueline ficou frustrada e empurrou com o quadril, em vez de rolar para o lado — o que fazia perfeitamente até poucos momentos antes. Lembrei que ela precisava resistir a essa tendência. — Sim. Tudo bem. — Sua voz soava mais forte, e eu me apeguei a esse detalhe. — Pronta para tentar pra valer? — perguntei, observando sua reação. Ela assentiu. — Não vou te machucar, mas você vai sentir uma pressão maior. Vai ser mais rápido e mais


forte. Tem certeza de que tá pronta? — Ela assentiu novamente. A veia embaixo de sua orelha pulsava, e torci para ela conseguir. Precisava saber que ela era capaz. Ela precisava saber que conseguia. Agarrei seus ombros e a empurrei para baixo, e um braço apareceu sobre sua cabeça, mas Jacqueline não conseguia tirar o outro de baixo do corpo. Ela se esforçava, e esperei seu sinal para parar, mas ela insistia. Em vez de interromper a tentativa, ela trocou de braço, levando o que estava embaixo do corpo para cima da cabeça e empurrando o chão com o braço livre, me desequilibrando. Caí para o lado, impressionado e rindo. — Ah, que merda! Você trocou de lado e me enganou. Ela sorriu, e meu olhar pulou para os seus lábios. Um erro. Falei que agora ela devia ficar de pé e correr, mas Jacqueline não entendeu a dica. — Ele não vai vir atrás de mim? — ela perguntou, e dei a resposta que Watts costumava dar à turma, que a maioria dos estupradores não quer perseguir uma vítima que sai correndo e gritando. Eles não querem um desafio. Por ser homem, eu sabia que Buck não estava entre a maioria, mas não diria isso a ela. Era bem provável que Jacqueline já soubesse. — Acho que eu tinha que te mostrar o seu retrato — lembrei, segurando a mão dela enquanto ficávamos ali deitados de lado, um de frente para o outro. Com voz fraca, provocante, ela perguntou: — Assim não vai parecer que você me trouxe aqui com uma desculpa completamente falsa? Admiti que queria que ela visse o desenho, mas que o motivo principal era o treino que havíamos acabado de desenvolver. Perguntei se agora ela se sentia mais confiante, e ela disse que sim. A mão dela apertou a minha. Meu polegar afagou seu pulso, e fiquei mais calmo com o ritmo estável de sua pulsação. A expressão em seus olhos — a confiança e a expectativa — era forte demais para ignorar. Toquei seu rosto com a mão livre. — Eu tinha outro motivo para te trazer até aqui. — Lenta e cuidadosamente, me aproximei, sempre olhando em seus olhos, medindo sua resposta. Quando meus lábios tocaram os dela, Jacqueline fechou os olhos e correspondeu ao beijo, abrindo a boca e me convidando a entrar. Toquei delicadamente sua língua com a minha. Explorar aquela boca era tudo o que eu queria fazer, sugar aquele lábio carnudo e doce, deslizar a língua pela curva em forma de coração sobre o lábio superior antes de


mergulhar outra vez entre os dentes. Ela arfou, e eu soltei sua mão para deixá-la sobre meu ombro, deslizar as minhas até seu quadril e puxá-la para perto. Não havia um único milímetro de espaço entre nós, mas era como se a proximidade ainda não fosse suficiente. Apertei seu quadril e ela pressionou o corpo contra o meu enquanto meus dedos afagavam a base de sua coluna. Senti a mão dela sobre a pele nua do meu abdome pouco antes de Jacqueline se apoiar sobre um cotovelo e pedir para ver minhas tatuagens. Quando percebi que ela desabotoara minha camisa de flanela sem que eu me desse conta, ri baixinho e vi seu rosto corar. Tirei a camisa e a camiseta que usava por baixo, joguei as duas de lado e me reclinei no chão, deixando seus olhos e dedos examinarem o desenho em meu peito. Minhas primeiras tatuagens — as que contornavam os pulsos — tinham sete anos. Fiz outras depois, mas poucas desde que saí de casa, e nenhuma nos últimos dois anos. Tatuadores são como médicos. É preciso confiar neles, não só na habilidade com as agulhas, mas na capacidade de ler suas emoções, sua personalidade. Saber do que você precisa e o que não é necessário. Nunca encontrei ninguém em quem confiasse tanto quanto em Arianna. Esperei as perguntas que não vieram, como se Jacqueline soubesse que, para mim, aquilo era mais do que arte corporal. Como se soubesse que o significado dos desenhos era mais profundo que a tinta sob a pele. Por fim, seus dedos tocaram os pelos que desciam como uma trilha abaixo do meu umbigo, e imediatamente fiquei pronto para aquele toque, uma resposta que talvez ela não tivesse a intenção de provocar. Eu me sentei. — Agora é a sua vez, eu acho. — Eu queria que ela tirasse o suéter. Queria poder tocá-la, conhecer seu corpo. Jacqueline franziu o cenho. — Não tenho tatuagem. Que surpresa, Jacqueline. Sorri. Ela nem imaginava o que eu queria dizer, e eu não ia explicar ali, reclinado no chão da minha sala de estar. — Não achei que tivesse. Quer ver aquele desenho agora? As emoções que cruzaram seu rosto eram fáceis de ler — confusão na testa levemente franzida, desejo nas pupilas dilatadas. Havia também um toque de indignação — mas eu não sabia por quê. Quando ela segurou minha mão com firmeza, uma coisa ficou clara. Ela me aceitava como o bad boy que as amigas queriam que ela tivesse, e eu


seria um idiota se lutasse contra isso. Levei Jacqueline até o quarto e acendi o abajur enquanto ela conferia o ambiente e a parede de desenhos. Eu não levava muitas garotas ao apartamento, e menos ainda à minha cama. E, quando acontecia, eu não me incomodava com o abajur. Conhecia o quarto pelo tato — a localização das estantes e da mesa. A mesa de cabeceira onde guardava lápis e um bloquinho, óculos para ler ou estudar à noite e preservativos. Por fim, a cama, e eu só precisava localizar o centro dela. Escuridão total. Eu conduzia, elas me seguiam. Ou nem saíamos do sofá. Não seria o caso de Jacqueline. — São lindos — ela murmurou, e eu esperei, observando seus olhos percorrerem a parede, esperando que encontrassem seu desenho, sabendo que ela o procurava. Quando o viu, ela se sentou e ficou olhando. Eu me sentei ao lado dela, ciente de já estar meio despido. Ela se virou e olhou para mim, e eu nunca quis tanto ler os pensamentos de alguém. Sua vez, Jacqueline, pensei, tentando determinar até onde ela queria que eu fosse. Eu não queria ultrapassar esse limite nem por um centímetro. E não queria parar nem um único centímetro antes dele. Inclinei-me para deslizar a ponta da língua pela orelha dela, acompanhando o desenho e pegando seu brinco de diamante entre os lábios. Minha língua encontrou a parte de trás da orelha e deslizou devagar pela pele sensível, e ela gemeu baixinho. Afastei seus cabelos e beijei o pescoço, lambendo suavemente a pele depois de cada beijo, descendo até encontrar o decote largo do suéter. Ajoelhei-me no chão e descalcei suas botas, depois voltei para a cama e tirei as minhas. Posicionei Jacqueline bem no meio do colchão, então me debrucei sobre seu corpo e esperei que abrisse os olhos. Ela piscou devagar, segurou meu braço com uma das mãos, inebriada com meus beijos e desejando mais. Exatamente como eu a queria. — Quando quiser que eu pare, é só dizer. Entendeu? Ela assentiu. Perguntei se queria que eu parasse agora, e agradeci a Deus quando a vi negar com a cabeça. Jacqueline segurou meus dois braços quando enfiei a língua em sua boca, me enlouquecendo quando a sugou ainda mais fundo. Afastei-me só o suficiente para arrancar seu suéter e atirá-lo longe, e voltei a deslizar a boca pelo belo arco de seus seios sobre o cetim preto do sutiã. A mão em meu ombro me segurou, e eu me controlei com esforço. Pare.


Recuei, mas, antes que pudesse interpretar o que ela queria, Jacqueline se sentou e passou uma perna para o outro lado do meu quadril, se debruçando sobre mim, para mim, e eu a beijei, as mãos deslizando por seus ombros e pelas costas. Ela se balançou com o corpo colado ao meu, e não contive o gemido provocado pelo movimento, um retumbar profundo que ecoou em meu peito e a incentivou a continuar. Com a boca aberta e a cabeça inclinada, prolongando o beijo intenso e profundo, ela se balançou outra vez, e meus dedos encontraram e abriram o fecho do sutiã, para em seguida puxarem as alças para baixo. Segurando sua cintura, eu a puxei mais para cima e suguei um mamilo. Meu Deus, ela era mais doce do que tudo que eu já havia provado. Seus braços estremeceram quando ela gemeu de satisfação, e eu a deitei de costas embaixo de mim, deslizando a língua até o outro seio, estimulando o mamilo até transformá-lo em uma saliência túrgida que mais uma vez capturei entre os lábios. Meus dedos tocavam seus cabelos na nuca, segurando sua cabeça para beijá-la novamente enquanto afagava um lado do seu corpo. Quando ela arqueou as costas, desabotoei seu jeans e segurei o zíper entre os dedos. Jacqueline interrompeu o beijo e gemeu: — Espera. E eu fiquei imóvel, olhando para ela. Ofegante, ela me encarava com a testa franzida e um olhar preocupado. — Quer que eu pare? — perguntei, e ela assentiu mordendo o lábio. — Pare com tudo, ou simplesmente não avance mais? Ela fez uma pausa antes de responder, e eu quis deixar claro tudo o que eu faria para lhe dar exatamente o que ela precisava — que eu faria, ou não, tudo o que ela quisesse de mim. Sua resposta foi quase inaudível. — Só... não avance mais. Meu corpo se preparou para uma batalha de contenção, mas minha mente foi tomada por alegria. — Certo. Eu a abracei de novo e mantive a boca e as mãos na metade superior do seu corpo, ou sobre o jeans, agarrando seu quadril para acomodá-la sobre minha coxa, criando atrito e usando os benefícios da gravidade. Ela não se incomodava com isso. Eu a virei de bruços e afastei seus cabelos para beijar sua nuca, e ela suspirou e relaxou. Os fios macios faziam cócegas no meu nariz e eu sorri, deslizando a língua pela


elevação de cada vértebra, descendo quando me ajoelhei ao lado dela, massageando suas costas, tocando o quadril, as coxas, as panturrilhas, e voltando. Eu apertei seu traseiro e ela riu, então beijei o meio de suas costas e a virei novamente, pegando um mamilo entre os lábios. Jacqueline parou de rir, enfiou os dedos em meus cabelos e me segurou, trêmula. Eu me deitei ao seu lado e não tive de puxá-la para me acompanhar, ela se virou comigo, encaixou um joelho entre as minhas pernas enquanto nos beijávamos. Minha mão desceu do quadril até a coxa, explorando, pedindo espaço para se colocar entre nós. Ela se moveu e eu deslizei a mão entre suas pernas. — Tudo bem? — perguntei, e ela assentiu, pressionando o corpo contra a minha mão, os dedos agarrando meu bíceps. Afaguei o jeans com a ponta dos dedos e ela gemeu. Vem, baby, chamei em silêncio, e me inclinei para beijá-la, mergulhando profundamente em sua boca. Eu sentia em minha mão o calor que irradiava de seu corpo, e soube que sua imaginação preenchia as lacunas enquanto minha língua penetrava sua boca, e meus dedos encontravam o ponto exato para acariciar em círculos pequenos, comedidos, a pressão ideal para levá-la ao limite. Quando ela explodiu, afastou a boca da minha e a pressionou contra o meu ombro para abafar os gritos, as unhas marcando meus braços. Sua respiração se tornou mais lenta, mais mansa, e ela estremeceu uma última vez quando tirei a mão. Instantes depois ela tocou o botão da minha calça jeans. Sem erguer os olhos, ela disse: — Eu devia, humm... Levantei seu queixo e olhei dentro daqueles olhos azuis profundos. — Deixe algo para eu desejar — cochichei, a beijando suavemente.


17

LANDON — Você foi só o troco — disse Clark Richards na segunda-feira de manhã, pouco antes de soar o sinal para entrarmos na sala. — Entendeu, Maxfield? Sim, eu fiz merda, mas consertei. Ela é minha. Garotas como a Melody não se apegam a caras como você, aberração. Caras como você. Embaixo do braço dele, Melody olhava para o chão do corredor e não dizia nada. Nenhuma explicação. Nenhum “A gente se vê”. Nada. — Quer que eu arrebente a cara dele? — Boyce perguntou quando joguei longe uma lixeira de metal dentro do banheiro masculino dez minutos depois, amassando a porta de uma das cabines e quase a arrancando das dobradiças. Agarrado à beirada da pia e jurando que não ia chorar, vomitar ou gritar os palavrões que pensava, balancei a cabeça uma vez. Clark Richards estava apenas se comportando como o cretino que sempre tinha sido. Era Melody que eu havia deixado entrar. Se alguém devia apanhar, esse alguém era eu.

No dia seguinte, acordei em minha cama sem saber como tinha ido parar lá. Meu celular estava sem bateria, por isso eu não sabia que horas eram, mas havia luz embaixo da porta da despensa e a casa estava em silêncio. O dia anterior no colégio estava confuso na minha cabeça, e eu não lembrava nada das horas depois do anoitecer. Fechei os olhos e me concentrei. Boyce e eu havíamos saído juntos da oficina e ele dirigiu até a praia, que ainda estava cheia de lixo deixado pelos turistas depois dos dias de folga — embalagens,


sacolas, latas, uma toalha de praia, a parte de cima de um biquíni. O céu estava cinzento. Carregado. Sentamos na rocha perto de um dos nossos pontos de encontro habituais e ficamos olhando para a água. Barcos se moviam em meu campo de visão, mas meus olhos não acompanhavam nada. Uma família com um cobertor, uma cesta de piquenique e um cooler se instalara perto da água. Irmão e irmã tinham a mesma idade — gêmeos, talvez. Crianças em idade pré-escolar. Uma desafiava a outra a mergulhar na água ainda fria. Revezavam-se correndo até o mar e voltando para junto dos pais, e nenhuma afundou mais do que o tornozelo antes de voltar correndo e gritando como se houvesse cubos de gelo na água. — Minha oferta de dar uma surra nele tá de pé, cara — Boyce falou antes de dar uma tragada no cigarro. Balancei a cabeça. — Ela não vale tudo isso. — As palavras não eram verdadeiras. Eu sabia disso, mas pouco importava, então não me corrigi. Eu não conseguia entender o que ela quis comigo. Fui só um instrumento para deixar Clark com ciúme? Trazê-lo de volta? Ela queria fugir da vida que levava, mas não tinha coragem? Ou talvez a coisa fosse mais direta. Talvez eu tivesse imaginado tudo entre nós, e eu nunca tinha sido bom o bastante para ela. Fui só um substituto, nada mais. — Ainda tá pensando em furar a língua? — Boyce perguntou. A fumaça do cigarro se dissipou com uma repentina rajada de vento que veio do golfo e soprou meu cabelo. Empurrei as mechas para trás, tirando-as dos olhos. Os cabelos de Boyce, com corte militar, nem se mexeram. As crianças perto da água levantaram as mãos e gritaram, correndo em círculos uma atrás da outra. Era difícil acreditar que eu já tinha sido tão pequeno. Tão novo. Tão feliz e ingênuo. Eles enfrentariam a dor. O sofrimento. A perda. Não sabiam e eu não queria que soubessem — mas, ao mesmo tempo, eu odiava não ter sabido. Tomava tudo por certo — minha mãe, meus amigos em Alexandria, o hóquei. Sonhava com o futuro porque é isso que as pessoas convencem você a fazer quando se é criança, mas esta é a maior de todas as mentiras: que você pode planejar. A realidade é que ninguém tem ideia do que vai acontecer, e eles também não sabem. Algumas semanas atrás, meu avô estava me ensinando a dirigir nas tardes de domingo. Estava lá todas as noites para fazer o jantar e diminuir a ácida desolação entre mim e meu pai. Ontem eu achei que estava me apaixonando por Melody Dover. Agora meu avô se foi, e aquela coisa ingênua que eu sentira por ela também desapareceu. E eu devia saber. Sentia-me o maior e o mais estúpido idiota sobre a face da Terra, porque


devia saber. — Não, porra — respondi, e bebi o que restava do meu refrigerante. — Talvez o lábio. Boyce fez uma careta horrorizada. Ele não tinha medo de nada... exceto de agulhas. Era meio engraçado. Apontei para ele. — É isso aí mesmo... É por isso. Todo mundo que olhar para o piercing vai ter essa reação. — Então... você vai furar a boca pra anunciar pra todo mundo que é doido e gosta de sentir dor? — Isso aí. — Ofereci minha lata vazia para ele jogar a ponta do cigarro. Boyce era inexplicavelmente preocupado com o lixo, uma estranha e singular reminiscência de seus dias de escoteiro. Antes de a mãe abandonar a cidade, o pai, o irmão e ele. Antes de o pai começar a usar os filhos como saco de pancada, e coisas como escotismo deixarem de ser uma opção. — Hum. Faz sentido de um jeito distorcido. Eu gosto disso. Ele recebeu uma mensagem de Rick, que havia conseguido desviar uma quantidade suficiente da mercadoria da semana passada para promover a festa daquela noite. — O Thompson tirou ecstasy e maconha do rabo. Ele disse pra levar cerveja. Vamos? — Claro. Por que não? Como Boyce digitava alguma coisa coerente com seus polegares de Neandertal era um mistério, mas os dedos voavam pela tela do celular. — Combinado. Ainda temos algumas horas até lá. Vamos pegar sua caminhonete e arranjar comida. Eu havia esquecido a caminhonete. Só restava ela no estacionamento do colégio quando chegamos, e logo vi a palavra ABERRAÇÃO riscada a chave na porta do motorista. — Já chega — Boyce decidiu. — Eu vou pegar o cara. Eu não me incomodava com o que Clark Richards falava ou fazia comigo, mas a caminhonete era uma extensão do meu avô, e ele o desrespeitou. — Convide o Clark pra hoje à noite, Wynn. Boyce respondeu com um sorriso maligno que eu lembrava bem da surra no nono ano. Eu não ficaria surpreso se surgissem chifres e um rabo cada vez que ele sorria daquele jeito. — É isso aí, Maxfield — ele respondeu, e começou a digitar no celular com os polegares. — Pode contar com isso.


De acordo com o espelho do banheiro, eu tive uma noite agitada. Olho roxo. Nariz inchado. Hematoma no queixo. O relógio na parede da cozinha dizia que a tarde estava começando, então ir à escola não era mais uma opção. Pus o celular para carregar, peguei uma Coca, liguei a cafeteira e fui tomar banho. Minhas costelas doíam, havia hematomas sobre elas, e os nós dos meus dedos estavam muito esfolados. Depois da água e do sabonete, passei pomada em tudo que ainda sangrava, então vesti uma calça de moletom cinza e camiseta de beisebol vermelha e branca, o tempo todo gemendo de dor nas costelas. Respirar fundo era agoniante, tossir era ainda pior. Pensei na possibilidade de uma costela fraturada. Sentado à mesa da cozinha com a cabeça apoiada nas mãos, olhei para a xícara vazia tentando me lembrar de como havia sofrido aquele ferimento em particular. Quando fomos comprar cerveja, o caixa de sempre não estava. A mulher do outro lado do balcão não acreditou que éramos mais velhos do que aparentávamos. — Fora daqui — disse, puxando a caixa de Bud Light de cima do balcão. A boca era uma carrancuda e fria linha horizontal. A alternativa foi pegar uma garrafa de Jim Beam no armário de Bud Wynn. — Tem certeza? — perguntei a Boyce, que de um jeito ou de outro pagaria pela bebida. Ele deu de ombros. — Talvez ele nem lembre que tinha o uísque. Levantei uma sobrancelha. — Sei. O pai dele era um alcoólatra violento. E nunca esquecia nada. Mateo Vega, um dos amigos de Boyce, foi o primeiro a nos cumprimentar quando chegamos à praia. Nós três nos cumprimentamos, e Vega apontou com o queixo quando Boyce perguntou se Richards estava lá. — Tá, cara... Vi o Richards há cinco minutos. — Boyce perguntou algo que não ouvi, mas sabia que tinha a ver com ele ter ou não trazido a namorada. Vega balançou a cabeça uma única vez. — Mas ele trouxe dois amigos do time — avisou. — Beleza — disse Boyce. Entregamos a garrafa a Thompson e consumimos porcarias suficientes para chapar muito. — Não quero ficar doido antes de encontrar o Richards — falei, sem me dar conta, até


pronunciar essas palavras, que precisava bater muito nele, e não queria que nada diminuísse minha raiva. Dez minutos mais tarde, meu desejo foi atendido. Richards estava ao lado de um cooler com um copo azul na mão. Assim que o vi, fiquei cego para todo o resto. Não vi os amigos dele, nem os meus. Chegou uma mensagem de Boyce:

Acordado?

Tô. Tentando lembrar a noite passada. Tá no colégio?

Tô. O Richards também faltou. Cara, você MOEU o cretino. Sabia que era capaz, mas puta merda.

Alguma possibilidade de eu ter quebrado uma costela?

Merda. Talvez. Passo aí depois da aula.

Peguei mais uma xícara de café e abri a porta do quarto do meu avô. Já estava cheirando a mofo. A luz do sol entrava por pequenas frestas nas antigas persianas de metal, enferrujadas em alguns pontos onde a tinta descascara. Partículas de poeira flutuavam nos raios de luz, incomodadas pela minha entrada. Restava só a mobília — não havia lençóis na cama nem óculos sobre o criado-mudo. Meu pai tinha deixado algumas caixas de livros fiscais perto da parede. Sua caligrafia descuidada identificava o ano em cada caixa. Não havia me ocorrido que eu podia pedir para me mudar para aquele quarto, em vez de continuar na despensa. Evidentemente, a ideia também não ocorrera ao meu pai. Sentei na beirada do colchão e bebi a segunda xícara de café, sentindo a mente clarear pouco a pouco. Depois da briga com Boyce, meu pai me ensinara o jeito certo de cerrar o punho e acertar um soco. Na noite passada eu caminhei diretamente até Richards, agarrando sua camisa com as duas mãos, e o tirei do chão. Ele derrubou o copo e se soltou, cambaleando um passo para trás. Se os amigos haviam ameaçado interferir para ajudá-lo, Boyce e Mateo os


convenceram a ficar de fora. Ninguém se meteu. — Mas q... que merda é essa, Maxfield? Eu me aproximei e me inclinei para frente, invadindo seu espaço. — Você é uma bichinha covarde, Richards. Ele ergueu os ombros, olhou para a plateia cada vez maior e riu. — Qual é o problema, esquisito... Tá chateado porque minha namorada não quis chupar seu pau? — Ele me empurrou com as duas mãos, ou tentou. Senti o meio sorriso debochado mudando minha expressão. — Ah, mas ela chupou sim. Os olhos dele se incendiaram, e o soco passou perto do meu queixo. Levei o braço para trás e acertei sua boca, e os dentes esfolaram meus dedos. Ele tentou me acertar em algum lugar do corpo, mas bloqueei o ataque com o cotovelo e soquei sua barriga, satisfeito quando ele respondeu com um uuf. Nós nos afastamos e começamos a contornar um ao outro. — Você é só um perdedor ressentido, esquisito — ele ofegou. — Tem que aprender a não se meter entre um cara e o que é dele. — E repetiu o soco, tentando acertar meu queixo, e errou de novo. Eu ri, e a risada soou corrosiva. — Você acha que isso é por causa da Melody? — Eu não esperava sentir aquela dor ao pronunciar o nome dela. Richards aproveitou o momento de hesitação e conseguiu acertar um soco. Meu nariz estalou e eu vi estrelas. Ele se moveu para atacar novamente, mas me esquivei e ataquei, jogando-o na areia. — É claro que é por causa da Melody — ele respondeu. Rolamos no chão trocando mais socos, nos acertando com força suficiente para tirar sangue um do outro. — Você quer o que não pode ter, o que nunca será bom o bastante para ter. Assim que ficamos de pé, desferi um gancho aberto demais e errei. Ele me acertou, e eu caí em cima da caixa de gelo, mas o levei comigo e usei o impulso para jogá-lo por cima da minha cabeça. Antes que Richards conseguisse se levantar, pulei em cima dele e o soquei duas vezes. — Não tô nem aí pra ela, seu idiota convencido do caralho. — Mais um soco, e os olhos dele reviraram. Antes que eu continuasse batendo até nocauteá-lo, senti mãos me puxando para trás e de cima dele, e vi que os amigos o ajudavam a ficar em pé. Segurando as costelas e respirando com dificuldade, sentindo uma dor aguda a cada inspiração, apontei um dedo para ele. — Mas, se tocar na minha caminhonete outra vez,


eu acabo com você.

Quando Boyce chegou, vi que, entre todas as pessoas, ele trouxe Pearl com ele. Nem sabia que eles se falavam. — Só serei médica daqui a dez anos — Pearl comentou, olhando para Boyce. — Ele devia ir ao pronto-socorro. Não sei qual é o problema. Não é como se ele tivesse ferimentos de faca depois da prova de iniciação de uma gangue. Boyce suspirou. — Você tá aqui. Pode dar uma olhada? — Tudo bem. — Ela revirou os olhos e olhou para mim. — Deite no sofá. — Depois de pressionar vários lugares, um processo dolorido, mas não insuportável, e escutar meus pulmões com um estetoscópio que pegou das coisas do avô, ela disse que não achava que houvesse ferimento grave. — Talvez você tenha fraturado uma costela, mas não tem tratamento para isso. Tem que cicatrizar. Leva seis semanas. Sem brigas e sem confusão. — E olhou séria para Boyce. — Qual é? Não fui eu. E a gente não devia, sei lá, enfaixar o Maxfield? — Tenho certeza que você o incentivou. E não. — Ela olhou para mim. — Respire profundamente sempre que puder e tussa várias vezes por dia, assim vai manter os pulmões limpos. — Olhando para Boyce, ela guardou o estetoscópio na bolsa e disse: — A faixa o impediria de fazer essas coisas. Ele pode usar gelo para a dor, faça uma bolsa com um saquinho de congelar alimentos e gelo triturado, se possível. — Entendido — Boyce bateu continência e seguiu para a cozinha. — Obrigado por ter vindo — falei, ainda confuso. Pearl e Boyce nunca se falavam no colégio, exceto quando era indispensável na aula de biologia, e, apesar de ele estar claramente a fim dela, Pearl nunca demonstrara o menor interesse. Além do mais, eu tinha acabado de surrar o namorado de sua melhor amiga. Enquanto Boyce tirava o gelo do freezer, ela se sentou ao meu lado no sofá, os olhos escuros fixos nos meus. — Só pra constar, eu me enganei sobre o Clark. Ele é um idiota, e não posso acreditar que a Melody o aceitou de volta. — Ela suspirou e olhou pela janela da frente. — Acho que, nesse caso, ele é o diabo conhecido.


LUCAS Quando deixei Jacqueline em seu dormitório, eu não prestava atenção em nada que não fosse ela. Não até ela chegar à escada e eu ver seu ex-namorado no último degrau, o olhar alternando entre mim e ela. Jacqueline só o viu quando quase tropeçou nele. Não me movi, só cruzei os braços e prestei atenção na linguagem corporal dos dois. Enquanto conversavam, ele continuava olhando ocasionalmente para mim por cima da cabeça dela, até que, finalmente, Jacqueline se virou e acenou, como se me dissesse que estava tudo bem. Eu não ia sair dali, porque sua linguagem corporal me dizia que ela estava agitada — as mãos na cintura no início da conversa, depois os braços cruzados numa atitude defensiva. Estavam muito longe de mim para eu decifrar as palavras, mas o tom das vozes chegava até onde eu estava. A de Jacqueline era furiosa. A dele, apaziguadora. Eu a conhecia bem o bastante para saber que um tom apaziguador não seria bemvindo. Duas palavras que a ouvi falar claramente: — É Jacqueline. Depois disso ela descruzou os braços, as mãos fechadas na lateral do corpo. Kennedy deu um passo em sua direção, e ela não se moveu, mas, quando ele levantou a mão para tocar seu rosto, Jacqueline recuou. Desci da moto e subi a escada. Ela abriu a porta do prédio, e ele a seguiu. Segurei a porta um instante antes de ela se fechar. Jacqueline se virou para ele e abriu a boca. Mas parou quando me viu. — Você está bem, Jacqueline? — perguntei, me aproximando e olhando para o exnamorado em busca de sinais de agressividade. Ele exalava condescendência acima de tudo, e ficou ainda pior quando me reconheceu, o cara que havia consertado o arcondicionado da sua fraternidade. — O que a administração do campus pensaria se soubesse que você está assediando as alunas? — perguntou, e tive de recorrer a todo o meu autocontrole para não reagir. Olhei para Jacqueline, o ignorando — a única coisa que caras como ele não conseguem engolir, e a única resposta que eu podia dar sem nenhuma restrição. Ela me disse que estava bem e olhou para a plateia que começava a se formar. Só então eu me dei conta. Alguma coisa nessa garota me fazia perder todo o resto de vista. Às vezes isso era ótimo, às vezes perigoso.


Então Kennedy Moore apontou para mim e disse exatamente o que não devia: — Você está ficando com esse cara também? — Também? — ela repetiu, a voz tão vulnerável que senti vontade de acertar um soco na boca do cretino para impedir as palavras horríveis que ele ia dizer. — Além do Buck. O queixo de Jacqueline caiu, e o que quer que ela tivesse tido a intenção de dizer não saiu. Moore a segurou pelo braço e começou a puxá-la, e, sem pensar duas vezes, eu agarrei seu pulso e puxei para obrigá-lo a soltá-la. Eu queria quebrar aquele braço. — Que porra é essa? — Kennedy bufou, e nesse momento eu soube que ele não havia superado Jacqueline. Ele achava que podia tê-la de volta... ou sabia que podia. Mas Jacqueline levantou o queixo, tocou seu braço e o mandou embora. Kennedy protestou e reforçou sua opinião sobre eu ser só um cara da manutenção, o que eu não podia desmentir sem expor Joseph ao risco de perder o emprego. — Ele é aluno, Kennedy — ela se irritou. Kennedy falou alguma coisa sobre voltar a falar com ela na semana que vem, quando os dois estivessem em casa. Jacqueline não respondeu, sua expressão era indecifrável. Eu sabia que o comentário sobre Buck a abalara, mas não pelas razões que Kennedy pretendia. Ele falou como se ela se importasse em ter uma reputação ruim, o que era bobagem. A ideia de que as pessoas podiam estar comentando seu envolvimento com o idiota que a atacara me fez querer espancar o merdinha de novo. Moore me encarava como se pudesse me intimidar. Eu esperava que ele não fizesse nenhuma bobagem, porque não seria difícil derrubar esse cúmplice de estuprador. Ele parecia pensar que seu ressentimento era ameaçador, mas sua postura traía a total falta de treino e o deixava exposto. Dois socos e o palhaço estaria no chão. Provavelmente ele nunca tinha brigado com ninguém. Sustentei seu olhar até ele se virar e sair do prédio. Então Jacqueline me tocou, e meu corpo relaxou. Ela brincou comigo sobre os meus vários empregos, e expliquei que a coisa da manutenção era rara, e o treinamento de defesa pessoal era uma atividade voluntária. — Acho que devíamos acrescentar mais um, não é? — ela riu, e eu fiquei tenso, certo de que ela mencionaria a monitoria, mas mantive a expressão relaxada. — Defensor pessoal de Jacqueline Wallace — concluiu. Dividido entre o alívio e a decepção, reconheci que não queria falar, mas queria que ela soubesse.


— Mais um trabalho voluntário, Lucas? — Jacqueline se aproximou sorrindo, me hipnotizando com aqueles olhos. — Como você vai encontrar tempo para estudar? Ou para se divertir? Estendi o braço e a puxei para mim. Caramba, essa garota me fazia desejar. — Para certas coisas, eu consigo todo o tempo que precisar, Jacqueline — sussurrei, beijando seu pescoço na região sensível perto da orelha, percebendo que ela fraquejava quando meus lábios a tocavam. Jacqueline gemeu baixinho quando lambi e suguei a pele delicada, tomando cuidado para não marcá-la. Ela era uma garota sensual, mas discreta. Marcas só seriam bem-vindas em lugares que apenas ela pudesse ver. Por ora, eu a beijei e a soltei.

Mandei um e-mail para Jacqueline com minhas observações sobre seu trabalho de pesquisa, apontando que ela havia recuperado a matéria perdida, mas que eu continuaria mandando as folhas de exercícios das duas últimas semanas de aula. Também avisei que iria para casa na quarta-feira e que lá não tinha wi-fi, o que significava que ficaria praticamente inacessível. Como Landon. Se meu avô pudesse me ver agora, balançaria a cabeça e suspiraria profundamente. E, se ele pudesse me alcançar, puxaria minha orelha e me chamaria de idiota. Ela respondeu ao e-mail contando que os pais iam esquiar, mas que ela voltaria para casa assim mesmo e ficaria lá sozinha. Em nenhum dos diversos cenários que imaginei essa garota tinha pais tão displicentes. Eu pegaria carona no SUV dos Heller para a viagem de quatro horas até o litoral. Eles tinham alugado uma casa na praia e pretendiam fazer o jantar de Ação de Graças ali. Eu ficaria com meu pai e teria alguns dias de silêncio, exceto pelo jantar, quando estaríamos com Charles e Cindy, Carlie e Caleb. Cole tinha arrumado uma namorada em Duke e, em vez de ir para casa, decidiu ir para a casa dela na Flórida em sua primeira folga na faculdade. Seu pai o infernizou durante uma semana falando sobre sogras e forcas e mandando mensagens com perguntas como “Onde deram entrada nos papéis?”. Cole negou veemente qualquer possibilidade de um casamento iminente e sogros, enquanto Heller morria de rir a cada mensagem furiosa que recebia do filho mais velho. Eu queria poder contar a Jacqueline.


Como era previsível, o confronto com Kennedy Moore renovou minha antipatia e a fez crescer um pouco mais. A aula de segunda-feira foi uma tortura, uma mistura de tentativas fracassadas de ignorá-lo ou, pelo menos, resistir ao impulso de enviar mensagens telepáticas ofensivas para a parte de trás de sua cabeça. No fim da aula, quando ele virou e sorriu para Jacqueline, saí da sala antes de descer a escada e criar um vão entre seus dentes brancos de comercial de pasta de dentes. Apoiado na parede ao lado da porta por onde Jacqueline costumava sair, eu a vi aparecer na companhia do colega que sentava a seu lado. Ele comparecera a uma ou duas sessões de monitoria no começo do semestre, três meses atrás. Os dois notaram minha presença ao mesmo tempo, e eu podia jurar que falavam sobre mim quando se aproximaram. Depois de desejar bom feriado, ele se dirigiu à saída do outro lado do corredor, e eu examinei o rosto de Jacqueline procurando indícios de que ela já sabia que eu era o monitor da turma. Sua expressão era confusa, e notei uma linha fina marcando a testa. Incapaz de ler as expressões em seu rosto, comecei a andar quando ela passou por mim e abri a porta pela qual saímos juntos. Seu cotovelo roçou em mim, e o perfume, agora conhecido, trouxe de volta lembranças da noite de sábado. — Podemos nos ver hoje à noite? — perguntei. — Tenho prova de astronomia amanhã — ela respondeu. Passaria a noite estudando com colegas de turma. Nada de estranho nisso, exceto a pausa breve que fez parecer mais um pretexto do que um motivo. Incomodado com uma persistente sensação de exposição, estudei as pessoas à nossa volta procurando a origem do desconforto. A intuição dizia que a fonte estava ao meu lado, mas isso não podia estar certo. — Amanhã à noite? — Tenho ensaio com a orquestra — ela falou, e o zumbido em meus ouvidos cresceu. Jacqueline contou que faltaria ao ensaio no domingo de manhã e que levaria o contrabaixo para o feriado, território familiar, mas meu cérebro entrou em alerta, compreendendo que esse assunto era familiar para Landon, não para Lucas. Eu seguia em linha reta para um muro de concreto, e eu já tinha batido com força nessa parede antes. Não precisava sentir o horrível rangido do desmoronamento para saber como seria. Eu precisava desse intervalo. Precisava das ondas na praia, da presença silenciosa do meu pai. Precisava ver se conseguia superar essa obsessão. Olhando nos olhos dela, pedi para ela me mandar mensagem se seus planos


mudassem. Com toda a minha força de vontade, concluí: — Até mais, Jacqueline. E me afastei sem tocá-la e sem um beijo de despedida.


18

LANDON Pensei que bater em Clark Richards me faria sentir melhor — e fez. Eu me sentia bem demais, se é que bem demais existe. Cada soco que acertei, e até os que levei, entorpecia e transformava a aberração patética que eu era, dando vida a um filho da puta insensível no lugar. A briga com Boyce no ano passado sacudira essa gaiola, mas socar a cara de Richards foi um divisor de águas. Encontrei algo melhor do que misturar ecstasy e maconha, melhor do que álcool, melhor do que sexo para silenciar as vozes na minha cabeça — porque, mesmo que essas coisas funcionassem, e às vezes funcionavam, a voz que eu ainda ouvia era a minha, e ela nunca me deixaria esquecer totalmente. Nunca.

— Vou passar só três dias fora — avisou meu pai, com o rosto dela entre as mãos. — Vamos ver o Charles e a Cindy no fim de semana, não? Vamos planejar aquela viagem de Natal no Rio que você e ela tramam há anos. Ela fez biquinho e fingiu aborrecimento. — Ah, tramamos, é? Talvez você simplesmente possa ficar em casa, sr. Grinch. Ele deslizou as mãos dos ombros até os cotovelos dela, descruzando os braços de minha mãe e levando as mãos dela ao próprio peito antes de puxá-la mais para perto e levantar seu queixo. — Você não pode me abandonar, Rosie — ele murmurou. — Não depois de ontem à noite. — E se inclinou para beijá-la como se eu não estivesse sentado a menos de cinco metros deles. — Meu Deus, vocês dois, vão para o quarto. — Apertei o controle nas mãos e mantive os olhos fixos na tela, conduzindo meu skatista que fazia ollies nos espaços entre os


prédios, aéreos em paredes e descia escadas rolantes, coisas que me matariam na vida real. Tentei fechar o olho esquerdo para não ver meus pais, que estavam ao lado da porta se despedindo com um beijo longo e barulhento. — Foi por isso que compramos um videogame e uma tevê para o seu quarto, filho. Para sua mãe e eu podermos aproveitar... — ele sorriu para ela — ... o resto da casa. Apertei “pause” e me joguei sobre as almofadas do sofá, usando as duas mãos para cobrir os olhos. — Ah, cara. Sério? Minha mãe riu. — Pare de atormentar o garoto. — Não consigo. É muito fácil — meu pai respondeu. Suspirando, ela ajeitou a gravata dele, perfeitamente alinhada. — Na verdade, eu estava pensando que devíamos visitar seu pai no Natal. Ele está sempre sozinho, Ray... O relacionamento do meu pai com o pai dele era a definição de complicado. — Ele escolheu ficar sozinho. Ele gosta disso. — Mas fica muito feliz quando vamos visitá-lo. Ele adora o Landon, e não vai estar lá para sempre. Os pais da minha mãe tinham pouco mais de quarenta anos quando ela nasceu — um bebê surpresa muito tempo depois de terem se conformado com a vida sem filhos. Professores bem-sucedidos em campos analíticos, eles haviam mimado a filha curiosamente artística até estragá-la — palavras dela mesma. Ambos morreram quando eu tinha cinco ou seis anos. Minha mãe sentia muita saudade deles, mas eu quase nem me lembrava da minha avó, e não lembrava nada do meu avô. Meu outro avô — pai do meu pai — era o único que eu ainda tinha. — Ele só acha que encontrou um tonto para finalmente levar adiante o negócio da família Maxfield — meu pai respondeu, fazendo sinal de aspas com os dedos —, porque o Landon gosta de sair com ele no barco. Além do mais, nós o vimos há dois meses, em julho. — Apesar dos argumentos, ouvi a rendição na voz dele, a aceitação de mais uma vontade da minha mãe. Ele sempre fazia o que ela queria. — Quando eu saí daquela cidade, não tinha intenção nenhuma de voltar. E você me obriga a ir lá todo verão. E agora no Natal? — Porque é o certo. E porque você não é mais um garoto de dezoito anos malhumorado, você é um homem. Ele a beijou novamente, passando os braços em torno do seu corpo e resmungando:


— Pode ter certeza que eu sou. — Menor no ambiente. Bem aqui. No sofá. Tendo sua inocência corrompida. Pelos próprios pais. — Vá se arrumar para ir para a escola, bebê — minha mãe ordenou, usando o apelido que só falava na frente do meu pai ou quando estávamos sozinhos. Meninos de treze anos não podiam permitir que a mãe dissesse esse tipo de bobagem na frente dos amigos ou do público em geral. Encerrei o jogo e meus pais ainda estavam se beijando. — Com prazer. — Cobri os olhos com as mãos ao passar por eles. — Dê um abraço de despedida no seu pai primeiro. Voltei do pé da escada e o abracei rapidamente. Meu pai bateu no meu ombro e me olhou, ainda centímetros mais baixo do que ele, apesar de ganhar altura rapidamente. Outro dia peguei minha mãe no colo só para provar que conseguia, e ela gritou e riu. — Eu troquei suas fraldas! Dei risada. — Mãe, fala sério... é essa a lembrança da minha infância que você quer invocar? Ela bateu com o dedo no meu peito e ficou séria. — A menos que você queira que eu diga como amamentei você. Eu a pus no chão. — Eca, não. Ai! — Preste atenção nas aulas e treine direito para o jogo de domingo contra aqueles palhaços de Annandale — meu pai falou. — Eu volto na quinta-feira. — E despenteou meu cabelo, coisa que sabia que eu odiava, e por isso mesmo ele fazia. Saí de baixo de sua mão. — Usou o “palhaço” direitinho, velho. Seu vocabulário tá melhorando. Ele riu. — Tudo bem, grandão. — E segurou meus ombros para olhar nos meus olhos. — Você é o homem da casa enquanto eu estiver fora. Cuide bem da sua mãe. — Tá bom, pai. Eu cuido. — Bati continência e corri para a escada, pensando no jogo do fim de semana e em Yesenia, que eu pretendia convidar para sair antes do fim do dia, se fosse homem o bastante para isso.


LUCAS A temperatura na praia estava em torno dos vinte graus, a média para essa época do ano. Os Heller me deixaram na casa do meu pai antes de seguirem para a casa alugada com um peru congelado e uma caixa cheia de inhame, vagem, farinha de rosca e cranberries. — Até amanhã — Cindy se despediu de nós. — Vamos comer lá pela uma da tarde. E, se o peru ainda não estiver pronto, começaremos a beber à uma. Meu celular apitou com uma mensagem do Boyce:

Chegou?

Sim. Te vejo em duas horas.

Deixei minha mochila em cima da cama. O quarto nunca me parecera menor. Era como um casulo. Eu tinha saído dele e voado para longe havia três anos, e agora aquele era só um lugar apertado, superado, familiar e velho. A parede vazia tinha muitos buracos, e a estante estava praticamente vazia. Meu pai não tinha levado a luminária de volta para a cozinha, ela ainda estava pendurada ali no teto, derramando sua luz indireta pelo espaço reduzido. Alguns livros velhos do colégio continuavam em uma prateleira, com a Bíblia do meu avô e o manual do ensino médio. Havia também um envelope que não estava lá na minha última visita. Continha mais ou menos uma dúzia de fotos que eu nunca tinha visto antes. Uma delas fora tirada no meu primeiro dia no oitavo ano, quando saí do carro com o uniforme novo. Eu havia perdido todas as roupas que me serviam até três meses antes. Eu sorria para a câmera — para a minha mãe — enquanto um cara atrás de mim na calçada invadia a foto, com a língua para fora no canto da boca. Tyrell. Odiado ou amado por todos os professores, era um dos caras mais engraçados que eu já tinha conhecido. No fundo, perto do prédio do colégio, três garotas conversavam. Uma delas estava de frente para a câmera, os cabelos escuros presos em um rabo de cavalo, olhos escuros cravados na parte de trás da minha cabeça. Yesenia. Ela agora devia estar começando a faculdade de direito, ou um estágio em contabilidade, ou se candidatando a um mestrado


em cinema ou sociologia. Não a conheci o suficiente para saber quais eram seus interesses ou ambições, além do interesse por mim. Aos treze anos, isso era tudo que importava. Dei uma olhada nas outras fotos, me detendo em uma da minha mãe pintando, depois em outra de nós dois brincando no quintal. Apertei a área dolorida no meio do meu peito e guardei as fotos para examinar mais tarde, deduzindo que meu pai as deixara ali para mim. Talvez estivessem no cartão de memória da velha câmera, e ele por fim revelara as fotos antes de se desfazer da máquina. Na cozinha, havia um pacote de espinafre na geladeira e uma fruteira cheia sobre a mesa. Eu não sabia se meu pai tinha decidido levar uma vida saudável, ou se as compras incluíam o que ele sabia que eu gostaria de comer enquanto estivesse em casa. — Como vai a faculdade? — ele perguntou, tirando uma cerveja da geladeira ainda com os cabelos molhados do banho. Ele tinha saído com o barco hoje, antes de chegarmos, certamente. Imaginei que ele tiraria o dia seguinte de folga, mas tinha medo de perguntar. Cindy ficaria muito magoada se fosse diferente. — Bem. Entrei num grupo de pesquisa, começo no semestre que vem. É um projeto com um dos professores do ano passado. Tem ajuda de custo. Meu pai se sentou à velha mesa, cujo verniz desaparecera havia muito tempo, deixando à mostra riscos e arranhões. — Parabéns. Pesquisa em engenharia? Projeto de carros de corrida? Minha boca se contorceu. Meus interesses haviam ultrapassado os carros de corrida desde o colégio — não que ele soubesse. Essa conversa devia ser a mais longa que mantínhamos sobre os meus interesses acadêmicos desde a morte da minha mãe. — Não... Materiais flexíveis duráveis. Da área médica. Coisas a serem usadas em engenharia de tecidos. As sobrancelhas dele se ergueram. — Ah. Interessante. — E olhou pela janela sobre a mesa, de onde tínhamos a melhor vista do golfo, com exceção da janela do quarto do meu avô, agora vazio. Eu me preparava para sair da cozinha, tomar banho e tirar da mochila as poucas coisas que havia trazido quando ele perguntou: — Planos para o jantar? — Eu, humm, vou sair com o Boyce daqui a pouco. — Peguei uma cerveja na geladeira e tirei a tampa com o cabo do meu canivete fechado. — Ainda tem sua chave? — Tenho. Ele assentiu, os olhos fixos na janela, e voltamos ao nosso silêncio habitual.


Boyce e eu escolhemos uma mesa perto da janela. A cidade tinha um bar mais ou menos decente, e era lá que estávamos. O lugar era barulhento e enfumaçado, e eu sentia saudades dos pontos de encontro na praia, que atualmente ele disse serem redutos de punks do colégio. A gente teve de rir disso, porque nós éramos os punks do colégio não havia muito tempo. — Ainda tem a Sportster? — Boyce perguntou. Nos últimos meses que antecederam minha saída da cidade, nós dois reconstruímos a Harley malconservada que o pai dele aceitara como pagamento por reparos feitos para um de seus amigos bêbados. Quando tive de vender a caminhonete para pagar o primeiro semestre da faculdade, Boyce convenceu o pai a me vender a moto por um preço bem baixo. — Tenho. E ela vai ter que ficar comigo por mais alguns meses, até eu me formar. — Pensei nos braços de Jacqueline envolvendo minha cintura, as mãos cruzadas sobre meu abdome. Seus peitos colados às minhas costas. As coxas envolvendo meu quadril. — Acho que vou ficar com ela mesmo depois de comprar um carro. A garçonete trouxe nossas bebidas e uma porção de coisas fritas. Boyce pegou uma fatia de abacate empanado e mergulhou no molho. — Tem visto a Pearl? Balancei a cabeça. — Faz alguns meses que não. Acho que ela tá bem, deve estar tentando a faculdade de medicina. É mais provável que você a encontre. Tem umas catorze vezes mais alunos lá do que moradores aqui, e sei que ela visita os pais com frequência. — É verdade. — Ele bebeu a tequila. — Então... você viu a garota por aqui? Sua boca se ergueu de um lado. — Algumas vezes. Balancei a cabeça. — Vocês dois têm um relacionamento estranho, Wynn. Um dia desses, você vai ter que me contar tudo. — Tanto faz, cara — ele respondeu, encerrando o assunto Pearl Frank. — E você, vivendo novas aventuras? Trios? Orgias? Assédio sexual de professoras? — Ele moveu as sobrancelhas, esperançoso.


Passei os dentes pelo piercing no lábio e balancei a cabeça, rindo. — Você sabe que tô sempre estudando ou trabalhando. — Sei, cara... seus cento e um empregos. Não vai me convencer de que não tira folga, não quebra a monotonia. — E olhou para trás, para o movimento cada vez maior. — Você é muito exigente, ou eu sugeriria uma ou duas garotas aqui no bar. E o trabalho de monitor? Alguma gostosa precisando de ajuda e pedindo demonstrações práticas? — Olhei para minha cerveja por um segundo a mais do que deveria, e ele bateu a mão na mesa e se inclinou para mim. — Maxfield, seu filho de uma... Apoiei a cabeça nas mãos. — Estou meio que superando. Ou tentando... Ele ficou em silêncio por uns cinco segundos. — Uma das alunas da monitoria? Caralho. Como ele sabia? Mas Boyce sempre sabia. Fiz que sim com a cabeça. — Humm. Conhecendo você, e eu conheço, isso é complicado. Se fosse eu? Ah, me jogava de cabeça nessa merda. Como se nunca tivesse sido monitor de ninguém. Ou chefe. — Ele bebeu o resto da tequila e fez um sinal para a garçonete, pedindo outra rodada. — Sabe, eu... preciso ser contratado por uma gostosa para eu poder ser assediado. De repente imaginei Jacqueline e eu em posições inversas — ela monitora, eu aluno. Se eu fosse um baixista do colégio em seu grupo de monitoria... Todos os músculos do meu corpo se contraíram e enrijeceram. Droga, eu a seduziria tão depressa que sua cabeça ficaria rodando. A garçonete trouxe a segunda rodada, e Boyce riu, batendo com o copinho em minha caneca de cerveja gelada. — Um brinde ao seu pensamento, seja qual for. Essa é a cara de quem quer muito alguma coisa. Posso ajudar? Balancei a cabeça, assustado com a intensidade daquela fantasia de um minuto. E era isso o que era, claro. Uma fantasia. Mais duas semanas de aulas de economia. Mais dois módulos de defesa pessoal. Fim.

Quando Boyce me trouxe para casa ontem à noite, notei a placa nova na Bait & Tackle, com as palavras “Coffee & Wi-Fi” junto ao nome. Imaginei o velho Joe pintando a


extensão, e era exatamente essa a impressão que o resultado dava. Pensei em dar uma passada e olhar meu e-mail para ver se Jacqueline tinha enviado uma mensagem para mim. Para Landon. Quando pensei nela — sozinha em casa, com os pais esquiando, não pude deixar de me preocupar. Lembrei que havíamos viajado em direções opostas para o feriado. Ela estaria quatro horas ao norte, enquanto eu me encontrava quatro horas ao sul. Se ela estivesse com algum problema, não havia nada que eu pudesse fazer. Se ela estivesse bem, eu poderia relaxar. E tudo o que tinha de fazer era verificar. Mas eu a havia deixado na frente do prédio da faculdade três dias atrás, quando decidi suspender essa obsessão, pelo menos durante o feriado. Se mandasse uma mensagem para ela agora, tudo recomeçaria. E não seria justo com nenhum de nós dois. Caleb dormiu na minha cama depois de comer quase um quilo de peru e repetir várias vezes todos os acompanhamentos. Meu pai, Charles e Cindy assistiam a uma partida de futebol que não despertava meu interesse, e Carlie reclamou duas vezes: — Que tééééédio. Minhas convicções desapareceram, e eu me ofereci para acompanhar Carlie em um passeio pela cidade. O pai dela entregou com alegria as chaves do SUV. Abrimos as janelas e eu liguei o rádio em uma estação pop, uma recompensa por ela aceitar parar na Bait & Tackle & Coffee & Wi-Fi. — Isso é minúsculo — Carlie comentou, um sobrancelha erguida em um tipo de superioridade que só uma garota de dezesseis anos consegue demonstrar. Quando estávamos lá dentro, ela acrescentou: — Este lugar parece um cenário. As cadeiras florais são de verdade? — Sua opinião sobre o café: — Eca! Tem gosto de peixe. Carlie foi dar uma olhada nas prateleiras de souvenirs enquanto eu acessava minha conta e encontrava uma dúzia de e-mails inúteis, nenhum de Jacqueline. Landon não tinha uma desculpa plausível para escrever para ela. Não havia folha de exercícios para enviar. Nenhuma prova marcada. Então, descrevi o novo e melhorado Bait & Tackle, e, antes da minha assinatura habitual, LM, acrescentei um casual: “Você está trancando a casa e ligando o alarme todas as noites, certo? Não quero ofendê-la, mas você disse que ficaria sozinha em casa”. Esperei quinze minutos, mas ela não respondeu. Carlie, que havia esgotado as observações ferinas sobre a decoração, comprou uma camiseta cor-de-rosa com a palavra “isca” escrita no peito — que, eu sabia, a mãe confiscaria imediatamente — e um globo de neve contendo “neve” cor de areia e uma


pequena réplica do Bait & Tackle original, sem coffee e wi-fi. — Vamos, Lucas, vamos sentar na praia — ela disse. — Se tem algum gatinho da minha idade nesta cidade, com certeza não está aqui. Achei melhor não falar que garotos bonitos da idade dela nem se aproximariam se eu estivesse por perto. Seis horas mais tarde, a tela do celular projetou uma luminosidade verde no meu casulo-despensa. Minha força de vontade desapareceu e eu enviei a seguinte mensagem:

Quando você volta?

Jacqueline respondeu segundos depois:

Provavelmente no domingo. E você?

Respirei aliviado. Ela estava bem. Contei que voltaria no sábado e acrescentei:

Preciso te desenhar outra vez.

E pedi para ela me avisar quando chegasse. Na sexta-feira, meu pai e eu levamos Charles e Caleb para um passeio no barco, enquanto Carlie e Cindy ficaram sentadas na varanda da casa alugada, bebendo daiquiris sem álcool e lendo. Quando voltamos, peguei a caminhonete do meu pai e fui ao Bait & Tackle. Jacqueline havia respondido o e-mail de Landon minutos depois da nossa troca de mensagens. Meu sorriso por ela se lembrar de ligar o alarme todas as noites não durou muito. “Passei o dia na casa do meu ex”, ela escreveu. Ele queria encontrá-la no sábado pa ra conversar. Eu sabia bem que tipo de conversa ele tinha em mente. Fechei o notebook sem responder.

Quando Caleb anunciou que tinha de entregar um esboço do projeto para a feira de


ciências na segunda-feira — e ele ainda nem tinha escolhido o assunto —, os Heller decidiram voltar para casa no sábado de manhã. Meu pai passaria o dia todo fora, em uma excursão de pesca, então nós nos despedimos antes do amanhecer, e eu cheguei em casa por volta do meio-dia. Abri novamente o e-mail de Jacqueline, imaginando que ela poderia passar a tarde — se não a noite — com Kennedy Moore. Ele a tratava como um objeto descartável, substituível, quando na verdade ela estava muito longe disso. Jacqueline era mais forte do que sabia, mas o relacionamento com ele a enfraquecera. Ela aceitava a visão que Kennedy tinha dela. Seguia os sonhos dele, não os dela. Permitia que ele mudasse seu nome, e quem sabe o que mais. Cliquei em “responder” e escrevi que, aparentemente, ele queria reatar. Depois perguntei: “O que você quer?” E fiquei pensando se alguém já havia lhe perguntado isso. Os Heller saíram para jantar e ir ao cinema, seguidos por uma procissão de luzes que atravessava condomínios nas colinas no extremo sul da cidade, uma área cheia de mansões decoradas por profissionais. Adiei a lavanderia, dizendo a mim mesmo que queria ficar sozinho. Preparei uma marinada de limão e coentro para o peixe que eu havia pescado no dia anterior, guardei na geladeira e saí para correr. Jacqueline Wallace não saía da minha cabeça. Pensar nela com Moore despertava em mim um lado violento que eu acreditava ter desaparecido para sempre. Fazia sentido brigar para protegê-la, mas eu não podia socar alguém porque ela preferia ficar com ele e não comigo. Mesmo que eu quisesse. Recebi uma mensagem de Joseph:

Sobreviveu ao feriado? Atacou os caubóis? Não posso dizer isso ao Elliott, porque sou ameaçado com a trilha sonora de Kinky Boots — e não é meu tipo de música — tocando sem parar de Cleveland até em casa. E é uma merda de viagem longa.

Sobrevivi. Em casa. Vai, caubóis! Seu namorado é dominador, cara.

Nem me fale. Sou capacho pra caralho. :P

Quando meu telefone vibrou de novo, imaginei que fosse Joseph contando mais novidades, mas não. Era Jacqueline, dizendo:


Cheguei.

Então, é claro, eu a convidei para jantar.

Preparar minha própria comida era algo que eu fazia havia tanto tempo que não parecia estranho. Quando criança, eu brincava de ajudante de cozinha com minha mãe, para quem cozinhar era uma forma de arte. Quando meu avô morreu, passei a cozinhar para meu pai e para mim por necessidade. Era isso ou viver de torradas, peixes e ovos. Nós teríamos morrido de escorbuto antes de eu me formar no colégio. Cozinhar uma refeição completa para alguém além de mim tinha se tornado raro. Morava sozinho, e Carlie estava certa no que dissera alguns meses atrás — geralmente eu não levava ninguém ao apartamento. Eu não tinha tempo para um círculo de amigos, não saía com garotas. Mal fazia sexo casual. Convidar alguém para um jantar caseiro anuncia confiança nas próprias habilidades culinárias e incentiva certa expectativa, mas eu não era nenhum chef. Eu evitava receitas gourmet e qualquer coisa que tivesse etapas complexas. Preparava refeições simples com processos despretensiosos. Eu não fazia ideia do que Jacqueline gostava ou não. — É a primeira vez que um homem cozinha para mim — ela contou, apoiando os cotovelos no balcão e me observando enquanto eu cortava vegetais e os regava com vinagrete de manjericão. Sua inexperiência com universitários na cozinha era um bom presságio para o peixe com batatas assadas. Quando coloquei tudo no forno, programei o timer e a levei para o sofá. Queria saber a quais conclusões ela e o ex tinham chegado, mas não ia perguntar. Ela estava aqui, e eu não conseguia pensar nela voltando para ele. Tomando sua mão mágica na minha, examinei cada milímetro dela. Tracei as linhas na palma, os vales sensíveis entre os dedos e as saliências na ponta de cada um. Jacqueline mantinha as unhas curtas para tocar contrabaixo, pressionar e puxar as cordas sem nenhum impedimento. O Landon sabe disso. O Lucas, não. Eu tinha que contar. Tinha que contar logo.


Puxando Jacqueline para o meu colo, eu a reclinei sobre as almofadas no canto do sofá, inclinando sua cabeça para trás para beijar seu pescoço. Vibrei de desejo quando ela engoliu, traçando com minha língua o caminho daqueles pequenos músculos trêmulos e sentindo o aumento de sua pulsação e da respiração. Desabotoei sua blusa branca — um botão, e então dois, seguindo com os lábios o trajeto de cada centímetro de território recém-conquistado, me detendo logo acima do sutiã. Se eu a despisse mais do que isso, nosso jantar viraria cinzas. Uma das mãos dela estava presa entre nós, espalmada sobre meu peito. A mão livre agarrava meu bíceps, o tricô grosso preso entre seus dedos. Quando minha língua começou a acariciar as curvas visíveis entre seus seios, ela arranhou meu braço e ronronou como uma gatinha. Seu peso era perfeito, o quadril arredondado encaixado no meu colo. Lutei para fechar a porta das contemplações desenfreadas — como seria o toque de seu corpo nu e macio. Queria virá-la, sentir seu calor contra mim... O timer soou, e Francis acrescentou seu miado aflito ao alarme. Nunca em toda minha vida fiquei tão excitado e tão disposto a morrer de fome. — Hora de comer. — As palavras desencadearam mais uma enxurrada de pensamentos afobados e desinibidos sobre seu corpo delicioso. Seu gemido desorientado, frustrado, era como uma música enlouquecedora em meus ouvidos — um refrão que dizia com toda clareza que ela me queria. O que ela sabe sobre você, meu cérebro esclareceu. Mesmo possuído pela luxúria, eu não conseguia fugir da minha consciência. Durante o jantar, mencionei que cozinhava para mim e para meu pai antes de vir para a faculdade. — Você cozinhava? Não era sua mãe ou seu pai? — Seu olhar era firme sob as sobrancelhas unidas. — Minha mãe morreu quando eu tinha treze anos. — Tentei diminuir a importância do fato de eu ter assumido a tarefa de cozinhar depois disso, como se eu quisesse apenas garantir que meu pai e eu não comêssemos só torrada e peixe. — Sinto muito. — A compaixão genuína apareceu em meio à preocupação contida em sua voz, e me senti dividido por desejos contraditórios: continuar com meu comedimento habitual ao falar da morte de minha mãe, ou contar tudo a ela. Como sempre, as palavras entalaram em minha garganta. Assenti e não disse nada. Enquanto comíamos, Francis consumiu o equivalente ao próprio peso em peixe e começou a miar pedindo para sair. Trancando a porta depois de libertar o gato, fiquei


imaginando que esta noite ele precisaria dar uma corrida pela vizinhança, em vez de sair em mais uma expedição de caça. Voltei à mesa e segurei a mão de Jacqueline. Ela se levantou e me seguiu até a cama, onde ficamos deitados nos olhando, como se esse fosse um hábito antigo. Estendi a mão para tocá-la, para confirmar que ela era real, e não uma farsa cruel criada por meu coração. Sua pele era tão macia, o rosto estava ainda mais bonito do que na última vez em que a vi. Ela me deixava apavorado, mas eu não conseguia ficar longe dela. Terminei de desabotoar sua blusa lentamente, os olhos nos dela, pronto para parar no momento em que ela demonstrasse que era isso que queria, independentemente do que tínhamos feito antes. Ela engoliu em seco, agitada, quando lhe descobri um ombro e me inclinei para beijá-lo. Com o hálito quente perto de minha orelha, ela enfiou as mãos frias sob a minha camisa, as palmas tocando meu abdome e subindo. Tirei a peça imediatamente. Escorreguei uma perna entre as dela e pressionei a coxa contra seu corpo. Então enfiei a língua em sua boca quando ela arfou, a necessidade de tê-la superava a necessidade de respirar. Ela me recompensou com um gemido suave e arqueou as costas, as mãos deslizando sobre minha pele, acariciando a lateral do meu corpo, o poema tatuado que eu enfim compreendia por completo. Minha mente era uma confusão de desejo e medo. Nunca tive tanto pavor dos meus próprios desejos, porque iam muito além do corpo dela. Eu estava profundamente abalado, minha alma se curvando ao redor dela de maneira protetora, enquanto minha mente tentava determinar o cálculo lógico que a faria ser minha. Queria ser dela tanto quanto queria possuí-la — ou mais —, e sabia muito bem que nenhuma das duas alternativas era possível. Ela moveu o corpo sobre o meu, os cabelos lhe caindo sobre os ombros, as pontas sedosas afagando meu queixo, a blusa e o sutiã deslizando com as carícias dos meus dedos. Deixei de lado minhas ressalvas por esses breves momentos de rendição, cultuando-a com murmúrios de súplicas e carícias sussurradas. Eu estava certo de que minhas terminações nervosas tinham se multiplicado na última semana, porque cada lugar que ela tocava com a boca ou os dedos se incendiava. Como não pretendia ir além do limite imposto por Jacqueline, as horas que passamos em minha cama foram mais quentes do que jamais imaginei que uns amassos poderiam ser, e beijá-la era uma esplêndida indulgência sensorial. Quando meu corpo aceitou os limites, passei a prolongar cada movimento da língua, conduzindo-a apenas com a boca e segurando suas mãos contra o colchão para que ela não pudesse me tocar. Jacqueline se contorcia sob mim, entrelaçava as pernas nas minhas, anunciando com cada gemido e


cada suspiro que seu corpo era um instrumento que eu sabia tocar, e tocava bem. Quando finalmente soltei suas mãos, seus dedos mergulharam em meus cabelos e eu beijei seu peito e sua barriga, girando a língua dentro do umbigo enquanto a segurava firme pela cintura e pelo quadril, como se debatesse se devia ou não tirar seu jeans. Ela arranhava meus ombros, e eu soube que, se tocasse o botão logo abaixo do meu queixo, ela me diria sim. Cada toque provocante de seus dedos, dos lábios, da língua, cada som que ela fazia, tudo alimentava meu desejo e minha satisfação — o que não fazia nenhum sentido, mas eu não me importava. Escorreguei lentamente até os lábios de Jacqueline, pressionando seu corpo com o meu, parando em cada parte que exigia minha atenção nessa escalada. Ela estremeceu e se agarrou a mim quando deitei de lado e a puxei. — Acho melhor eu te levar de volta. Aninhada em meu peito, com os dedos entrelaçados nos meus, ela assentiu, apertou minha mão e não se mexeu nem um centímetro por vários minutos. Eu sentia uma vontade irresistível de preservar o momento, como se os últimos grãos de areia descessem por uma ampulheta, e tudo o que eu queria fazer era virá-la para ter mais alguns segundos preciosos. Nós nos vestimos sem falar nada, e eu abotoei sua blusa, me demorando deliberadamente em cada botão. Depois me inclinei para um último beijo. Eu estava prestes a ligar a Harley quando Charles saiu dos fundos da casa com um saco de lixo na mão. Não consegui me mover, meus olhos acompanhando seus passos da porta até a lixeira e de volta à porta. Torci para ele entrar sem olhar para trás, mas sabia que não seria assim. Com a mão na maçaneta, ele se virou e olhou diretamente para mim. Para Jacqueline. — Landon? Jacqueline? — perguntou, como se não acreditasse no que estava vendo. Ou como se só desejasse estar equivocado. Ele suspirou e me disse para encontrá-lo na cozinha quando voltasse. Assenti uma vez, e ele entrou. Jacqueline não disse uma única palavra. Eu não sabia se o silêncio era uma reação de choque, ou se ela sentia o fim iminente, como eu. A viagem de dez minutos até o dormitório pareceu ter durado dez segundos, mas foi longa o bastante para eu me dar conta de uma verdade esclarecedora sobre minha dupla personalidade e Jacqueline: ela já sabia.


19

LANDON Depois do recesso de primavera, minha vadiagem alcançou novos níveis de não-tô-nemaí. O sr. Quinn estava decepcionado comigo — ele repetia isso toda vez que me entregava uma prova zerada, ou quase, ou quando me mandava para a diretoria por matar aula. Mas havia dias em que eu simplesmente me recusava a sentar frente a frente com Melody Dover. Matar aula resulta em suspensão no próprio colégio, porque na escola pública um corpo presente e registrado significa dinheiro do estado. Exilado em uma sala afastada, você recebe uma tonelada de lição e trabalhos que ninguém pode obrigá-lo a fazer. Uma funcionária da secretaria fica de babá. Você pode dormir o dia todo, embora de vez em quando alguém sacuda seu ombro e diga para não dormir. Tudo isso, claro, para o seu próprio bem. A última vez que me mandou para a sala isolada, Ingram avisou que mais uma ausência não justificada resultaria na minha expulsão, e, mesmo que fosse justificada, eu seria reprovado. Eu não queria nem fodendo ficar preso ali um ano além do necessário. No último mês de colégio tive de assistir a todas as aulas, o que foi horrível. Passei raspando, como teria dito meu avô. Eu trabalhava para meu pai no barco, mas ele me pagava menos que um salário mínimo, então eu tinha de complementar com um segundo emprego. Rick Thompson havia se tornado uma das pessoas mais procuradas da cidade. Sua popularidade se devia a duas coisas: drogas e garotas que ele chamava de favores de festa — que traziam clientes e recebiam por isso em droga. Graças aos caras das fraternidades, aos adolescentes que procuravam atividades não familiares nas férias com a família e a adultos idiotas o bastante para se deixar seduzir por colegiais, Thompson ganhava muito dinheiro. Ele começou a abrir linhas de crédito para os moradores. De vez em quando, alguém deixava a dívida crescer muito ou revendia em seu território sem repassar parte dos


lucros para ele. Era aí que Boyce e eu entrávamos. Boyce praticamente parara de se meter com meninas e garotos mais novos, embora isso tivesse pouco a ver com uma tomada de consciência. As garotas iam para a cama com ele com mais frequência — incentivo óbvio. E o segundo ponto tinha única e exclusivamente a ver com o fato de eu me opor. No entanto, sua reputação de valentão o precedia, e, depois da minha transformação quando briguei com Richards, o benefício extra da instabilidade mental me fazia quase tão ameaçador quanto meu melhor amigo. Felizmente, Thompson não tinha muitos problemas, e na maior parte do tempo só estávamos lá para garantir que as pessoas fizessem o que ele queria — pagar o que lhe deviam. Em troca, ele nos pagava. Às vezes em drogas, às vezes em dinheiro. Tudo o que tínhamos de fazer para integrar sua folha de pagamento era intimidar e espancar um ou outro idiota. Boyce, maior do que eu, intimidava. Eu ficava com a segunda atividade — e gostava disso.

— Você não precisa ficar aqui — falei. — Não precisamos de você desmaiando, ou fazendo qualquer outra merda dessas. Boyce levantou as mãos como se não tivesse quase vomitado quando Arianna pegou a enorme agulha encurvada. — Se você não quer que eu fique, não fico — disse. Olhei para seu rosto, mais pálido do que de costume, e vi a expressão neutra, vazia. Ele revirou os olhos e foi esperar na recepção. Cinco minutos mais tarde, eu tinha uma argola no lábio. — Tá sexy caaaa-ra — Boyce entoou enquanto eu pagava. Ele ficava bem assim que as agulhas desapareciam. — Quer fazer um, Wynn? Eu pago. — Pooorra, nããoooo — ele continuou cantarolando, acrescentando um giro do quadril. — Minha sensualidade está em ser Wynn, não preciso abrir buracos em miiiim. Arianna balançou a cabeça e me deu o troco. — Ah, meu Deus. Para — falei. — Viu o que eu fiz lá? — ele perguntou, orgulhoso.


LUCAS — Você já sabia, não é? — perguntei, incapaz de olhar para ela. — Sabia. Queria perguntar há quanto tempo e como tinha descoberto, mas nada disso importava. Eu tinha que enfrentar sua raiva. — Por que não me disse nada? — Por que você não disse? Eu não podia acusá-la. Não podia responder à sua pergunta. Ela queria saber por que eu usava dois nomes. — Landon é o meu primeiro nome, e Lucas é o nome do meio. Eu me apresento como Lucas... agora. Mas o Charles... o dr. Heller... me conhece há muito tempo. Ele ainda me chama de Landon. — Minha garganta ficou apertada quando procurei as palavras para explicar por que eu tinha feito essa mudança, então eu não disse nada. A verdade era que eu podia ter lhe contado e não contei. — Você mentiu para mim. — Seus olhos eram como chamas azuis. Desci da moto e a segurei pelos ombros, desesperado para fazê-la entender que nunca tivera a intenção de magoá-la. Ressaltei que eu nunca me apresentara como Landon, fora ela quem deduziu. Mas, meu Deus, essa era a desculpa mais esfarrapada que eu já havia pronunciado. Sempre soube o que ela achava ser verdade, e não corrigi suas percepções. Jacqueline moveu os ombros para se soltar, e eu olhei em seus olhos. A traição que vi dentro deles me cortou. Eu tinha que deixá-la ir. — Você tem razão, isso foi culpa minha. E eu peço desculpas. — Minhas mãos tremiam, e eu as fechei nas laterais do meu corpo. Reuni forças e respirei fundo. — Eu queria você, mas isso não podia acontecer como Landon. Qualquer coisa que aconteça entre nós é contra as regras, e eu as quebrei. Eu tinha que esclarecer isso com Charles — primeiro e acima de tudo, pela inviolabilidade da nota de Jacqueline. Ela tinha feito o trabalho, e eu não podia permitir que fosse punida pela minha mentira. Minha vontade de restabelecer a verdade com o homem que fora meu salvador em minhas horas mais sombrias era secundária. Eu não podia pensar agora no que eu faria se perdesse completamente sua confiança. — Então, é o fim — ela disse, e eu voltei à realidade.


— É — respondi, sangrando aos pés dela. Meus ouvidos apitavam. Eu sabia que tinha pronunciado a palavra, mas não conseguia ouvi-la. Ela ouviu. Jacqueline se virou e entrou, e, quando ela desapareceu, fui para casa enfrentar as consequências do que havia feito. Eu queria você... Eu queria você... Eu queria você... Ouvi minhas palavras se repetindo durante o caminho todo, como um disco de vinil riscado. E depois as dela: É o fim... fim... fim... Era quase uma da manhã quando entrei pela porta dos fundos. Heller estava sentado à mesa da cozinha com uma xícara de chá, seu diário de classe e o trabalho de Jacqueline. A única luz vinha do pequeno abajur sobre a mesa e do painel do fogão. O resto da casa estava em silêncio. Sentei-me diante dele e esperei. Todas as vezes em que fiquei sentado diante de um professor frustrado ou da minha diretora mesquinha, nunca senti esse remorso profundo, ou essa exaustiva decepção comigo mesmo. Assim que me viu ali, ele perguntou: — Você a ajudou a fazer este trabalho? Balancei a cabeça. — Sugeri fontes de pesquisa e revisei as conclusões e citações. Mas ela fez o trabalho. — Como teria feito com qualquer outro aluno a quem eu pedisse o mesmo projeto. Suspirei. — Sim, mas... — Filho, me deixe esclarecer melhor. — Ele franziu o cenho e nossos olhos se encontraram. — Se eu tivesse pedido o mesmo trabalho para outro aluno da turma, você teria ajudado da mesma maneira? Assenti. — Sim. — Ela pediu algum tipo de ajuda a mais, vantagem ou revisão de nota por vocês estarem... envolvidos? — Os olhos dele não se desviavam dos meus. Umedeci os lábios e suguei o piercing. — Ela... não sabia que eu era o monitor da turma. A ruga em sua testa se aprofundou e ele estreitou os olhos, confuso. — Conheci a Jacqueline fora da sala de aula, antes de você pedir o trabalho para


compensar as faltas e dar meu e-mail a ela. Ela me conhecia como Lucas, mas você me chamou de Landon. Nunca a encontrei pessoalmente como monitor... Todas as sessões aconteceram por e-mail, porque nossos horários não batiam, então a gente não conseguia se encontrar. — Ele ergueu uma sobrancelha, e meu rosto ficou quente. — Hum, durante o horário normal no campus. — Então, até eu pedir sua ajuda para tentar salvar o semestre dessa aluna, você não sabia que ela era da turma? — Sabia. Ele suspirou. — Ela sabia que você estava na sala... mas não que era o monitor. Assenti. Ele tirou os óculos e fechou os olhos, dando um suspiro. — Então, durante todo esse... relacionamento... você mentiu para ela sobre quem é. E ela não sabia até hoje à noite. — Isso. — Engoli, mas a culpa não desceu pela garganta. Eu não pretendia mentir ainda mais esta noite, mas essa mentira protegia Jacqueline. Eu não sabia por que ela não havia me desmascarado quando descobriu tudo ou desconfiou de alguma coisa. Não sabia nem há quanto tempo ela sabia. Mas não ia parecer bom ela saber de tudo e continuar o relacionamento. Eu não tinha escolha a não ser protegê-la. Fazer isso se tornara uma necessidade, assim como respirar. — Landon... — Ele balançou a mão e se corrigiu. — Lucas... Por quê? Quantas vezes eu já me fizera essa pergunta? — No início, porque ela tinha medo de mim... como Lucas. Mas não como Landon. Por e-mail, ela me tratava como você me apresentou, um veterano inteligente que a ajudaria a recuperar a matéria perdida. Ela era divertida, esperta, e, como Landon, eu não... — Olhei para minhas mãos. — Não a assustava. Ele pigarreou. — Não quero contradizer suas impressões... mas ela não parecia estar com tanto medo assim de você há alguns minutos. Comprimi os lábios numa linha fina. — Tem mais alguma coisa que queira confessar, antes de eu decidir como lidar com isso? Merda, pensei, me lembrando de mais uma indiscrição. — O teste... Não contei a ela propriamente, mas... posso ter insinuado que você o


aplicaria. Ele cobriu os olhos com a mão e suspirou. — Tudo bem. Vou conversar com ela na segunda-feira... — Charles. — Debrucei sobre a mesa, unindo as mãos como numa súplica. — A culpa é minha. Toda minha. Ela não fez nada errado. Trabalhou duro para recuperar a matéria. Fez o trabalho sozinha, como você queria. Se ela tivesse tido dificuldade, talvez eu me sentisse tentado a ir além do limite e ajudá-la. Mas não foi isso que aconteceu. Por favor, não castigue a Jacqueline pelo meu erro. Ele inclinou a cabeça, seus olhos se suavizaram. — Você admira muito essa garota, não? Assenti uma vez. — Mas a colocou em uma situação delicada, filho. Se eu não conhecesse você desde sempre... poderia tomar uma medida disciplinar punindo vocês dois com base em como a situação parece ser. As aparências muitas vezes pesam mais do que a verdade... mas acho que você sabe disso. — Mais um suspiro, e ele segurou minhas mãos unidas. — Bem. Posso confiar em vocês e ter certeza de que vão se limitar às interações apropriadas à monitoria nessas duas últimas semanas do semestre? Preciso da sua palavra. Assenti novamente, e meus olhos arderam. Eu não merecia seu perdão. — Sim. Prometo. Sinto muito por ter desapontado você, Charles. E ela. Ele bateu de leve em minha mão antes de recolher os papéis. — Admito que erro frequentemente com relação às mulheres, mas acho que mentir para evitar um aborrecimento que só será adiado é uma má ideia. Mentira sempre torna o problema maior, e ele sempre volta para morder suas bolas, como diria o Caleb. Nós dois rimos. — Acho que concordo com ele. — Sim, ele agora é bem esperto. Espere mais um ou dois anos. Quando a puberdade o pegar de jeito, metade de suas células cerebrais descerão pelo ralo.

Na segunda-feira, quando Jacqueline entrou na sala, não olhei para ela. Não olhei, quando conseguia evitar, durante a aula. Não olhei para ela quando Heller disse: — Srta. Wallace, preciso conversar com você por um momento depois da aula.


Mas Benjamin Teague olhou por cima do ombro para mim. Um momento depois, ele se inclinou para Jacqueline e, com a cabeça inclinada em minha direção, perguntou alguma coisa. Ela balançou a cabeça, mas não se virou. Continuei mandando as folhas de exercícios, e meus e-mails se limitavam a: “Nova folha de exercícios anexada, LM”. Ela não respondia; nem eu esperava uma resposta. Não olhava quando ela entrava ou saía da sala, exceto para notar que Moore a acompanhava e a seguia para fora. Ela não olhava para mim, e eu não podia culpá-la por isso. Eu me permiti olhar para ela algumas vezes durante a aula na quarta e na sextafeira. Ela prestava atenção totalmente no professor, não se inquietava nem olhava para trás. Exceto quando fazia anotações, suas mãos permaneciam paradas. Era como um ser encantado que de repente se descobria preso à terra e privado de seus poderes mágicos, quando nada podia estar mais distante da realidade. Ela despertara o amor no coração de um homem cuja alma fora congelada anos atrás, anestesiada por sofrimento e culpa insuportáveis.

Jacqueline e Erin entraram na fila de Ellsworth para praticar os chutes. Eu não a observava, mas estava sintonizado em sua frequência. Podia ouvir sua voz acima de todas as outras, mesmo quando não falava mais alto que o restante do grupo, gritando “Não!” quando batia com o joelho ou chutava, ou quando ria com a amiga. Quando Watts anunciou um intervalo, não consegui resistir ao impulso de procurá-la, absorvê-la com os olhos. Jacqueline levantou a cabeça e nossos olhares se encontraram, e todo o resto desapareceu. Só existia ela em pé do outro lado da sala, seus olhos como um céu sem nuvens e o rosto corado pelo exercício. Vê-la naquele momento era como olhar pela janela e se deparar com o pôr do sol — surpreendente, de tirar o fôlego, nunca como antes, nunca outra vez. Erin a segurou pelo braço e a conduziu ao corredor do vestiário feminino, ou ao bebedouro, e eu saí do meu estupor para ajudar Ellsworth a pegar o equipamento para a próxima rodada de movimentos, e então colocamos as proteções. — Amarre bem essa merda — ele me lembrou. — O Fairfield ficou todo arrebentado no outono passado por causa dos protetores frouxos. Estamos ensinando essas moças a usar toda a força que têm, e elas usam. Não achei que ele pudesse aguentar quinze minutos daquilo, pobre-diabo. É claro que eu ri até chorar.


Quando foram chamadas de volta ao treino, as mulheres se separaram em dois grupos, prontas para o grande ataque do abraço de urso, que era exatamente como o nome descrevia. Então, Watts falou: — Don, Lucas, troquem de lugar para essa parte. Misturem um pouco as táticas dos atacantes. Jacqueline estava no meu grupo, do qual também participava a secretária do meu departamento, que se ofereceu para me ajudar a demonstrar o movimento — uma série de possíveis defesas contra um abraço de urso imobilizador. Não me surpreendia que Jacqueline parecesse apavorada e pronta para sair correndo. Eu não me sentia diferente. Nos próximos minutos, eu teria de abraçá-la na frente de todo mundo. Eu expliquei os movimentos — cabeçada, chute na canela, pisada no peito do pé, cotovelo no estômago, e o favorito da turma em todas as aulas, agarrar, apertar e torcer as bolas, ou o famoso “cortador de grama”. Watts se aproximou e me usou para demonstrar. — Leve a mão para trás e agarre as bolas, torça e puxe como se estivesse ligando o motor de um cortador de grama. — E terminou com: — Vruuuuum! As mulheres gargalharam, e eu mordi o lábio, provavelmente corando quando Watts pediu a todas para gentilmente apenas encenar o movimento, em vez de executá-lo de verdade, para se certificar de que Ellsworth e eu continuaríamos com chances de nos tornarmos pais um dia. Uma a uma, as seis mulheres na minha fila se adiantaram e viraram de frente para as outras, enquanto eu me aproximava por trás e as imobilizava com os braços. Podiam usar a defesa que quisessem, mas a maioria usou o cortador de grama, completando com o efeito sonoro no final. A amiga de Jacqueline, Erin, repetiu todos os movimentos de defesa, conjunto completo. Eu sorri imaginando o agressor no chão, implorando para fugir. O grupo aplaudiu seu desempenho enquanto, completamente séria, ela perguntou se devia chutar o agressor antes de sair correndo. Gostei dessa garota. Por fim, chegou a vez de Jacqueline. Eu sabia que ela estava nervosa por minha causa, e estava determinado a não deixá-la em desvantagem por isso. Ela precisava aprender esses movimentos. Precisava sentir o poder de uma correta execução. Precisava acreditar em si mesma, e meu trabalho era dar isso a ela. Quando meus braços a cercaram, ela congelou. Droga. Minha culpa, minha culpa, minha culpa.


— Me bata, Jacqueline — falei em voz baixa. — Cotovelada. Ela obedeceu. — Ótimo. Pisão no pé. Cabeçada. — Eu a orientava em voz baixa, e ela seguia as instruções. — Cortador de grama. — Ela fez o movimento, mas não o efeito sonoro empregado pelas outras. Eu a soltei e ela cambaleou de volta ao seu lugar no grupo, que a aplaudia como se ela tivesse acabado de ganhar uma medalha olímpica. Erin a abraçou de um jeito protetor, e decidi que aquela era a amiga mais valiosa que minha menina podia ter. Minha menina. O abraço de urso frontal me deixou atordoado. Mesmo com a proteção, a plateia e o objetivo por trás da interação, eu olhei nos olhos dela, centímetros longe dos meus, e senti o desejo como um chute entre as pernas. Por sorte, meu corpo entrou no modo piloto automático para imitar um ataque frontal de corpo inteiro, e ela executou os movimentos de defesa sem minha orientação, atenta aos gritos entusiasmados do grupo, que a direcionava e incentivava. Mais uma semana de aula de economia. Mais um módulo de defesa pessoal. Fim.


20

LANDON — Então, Standish, o negócio é o seguinte... — Boyce às vezes soava como um pai sofrido, o que, de certa forma, era mais cruel. Isso fazia as pessoas pensarem que as coisas não eram tão sérias quanto realmente eram. — Você se meteu numa merda feia, cara. Revirei os olhos, cruzei os braços e apoiei um lado do quadril na pia lascada. Eddie Standish encarava Boyce, mas me olhava de canto de olho sem virar para mim, como um pássaro. Acompanhava meus movimentos sem me encarar diretamente. — Só preciso de um pouquinho mais de tempo, sabe? — Ah — Boyce comprimiu os lábios. — Então o problema é esse. Seu tempo, tipo, acabou. Standish piscou e seu rosto ficou vermelho. Meu Deus, eu torcia para ele não chorar. Odiava quando choravam. — Acabou? Como assim, acabou? Todos vocês me conhecem. O Thompson me conhece. Não podem, tipo, me dar mais um tempinho? — Ele se virou e levou as duas mãos à cabeça, puxando os cabelos, mas quando voltou novamente era como se tivesse vestido uma máscara. — Qual é, Wynn. Não seja um babaca. — Uma máscara de superioridade de quem está prestes a virar a mesa. Wynn olhou para mim. Ele tá fazendo o que eu acho que ele tá fazendo? Dei de ombros. Tá, cara. Um aluno entrou no banheiro nesse momento, olhou para nós três e saiu imediatamente, de olhos arregalados. Wynn inclinou a cabeça e se aproximou de Standish. — Então eu sou o babaca, é? Não é o cara que tá devendo duzentos... é duzentos, Maxfield? — Isso. — Duzentos dólares em droga que usa como moeda de troca pra comer mulher. —


Ele riu, e Standish também. Idiota. — Eu poderia dizer que o Maxfield e eu não precisamos pagar para ter mulher... nunca. Poderia apontar como é triste e patético que (a) você tenha que pagar para transar, ou (b) pague para transar com garotas que dão de graça por aí, mas não vou fazer isso. Boyce olhou para o chão, os dedos batucando no queixo... o que significava que começaria a filosofar. Porra. Eu tinha que ir para a aula. — Agora, não tenho nada contra uma garota que se diverte com o corpo da mesma forma como eu me divirto com o meu, embora haja uma diferença entre ser uma pessoa vadia, como eu, e ser uma prostituta. — Boyce olhou para Standish. — Não julgo as meninas. Elas têm de fazer o que têm... enfim. Mas caras como você, que só transam se pagarem? Isso é trágico. E de um jeito realmente hilário, porque você ainda acha que pode me chamar de babaca. Houve uma pausa enquanto Standish absorvia aquilo. — Não dou merda nenhuma pra essas mulheres — ele respondeu com uma risadinha nervosa, como se fôssemos todos amigos. — Só prometo que vou dar, e daí como as vadias. O que elas vão fazer? Chorar e me acusar de estupro? São viciadas e putas. — Ele olhou para cada um de nós, engolindo em seco. — Eu, humm... troquei a maior parte da droga por um carburador. — Eu preferia que você não tivesse dito isso — falei em voz baixa. — Standish, cara... Primeiro, trocar uma quantidade grande de drogas por peças de carro? Isso é tráfico, imbecil. No território do Thompson. — Boyce olhou para mim. — E quanto ao resto? Você se fodeu, cara. Meu amigo Maxfield aqui... ele tem um probleminha com essa palavra que começa com E. Vi Standish parar para pensar, se esforçar para lembrar que palavra começava com a letra E. — M-mas não dá pra estuprar uma vagabunda viciada... Ele nem terminou a frase. Eu não queria arrancar um dente, isso foi um bônus. Queria motivá-lo a ser criativo e encontrar um jeito de pagar os duzentos dólares de Thompson, e queria deixá-lo incapaz de falar ou comer normalmente durante um mês. Objetivos alcançados. Ele pagou no dia seguinte. Boyce ouviu dizer que Standish penhorou o Rolex do pai e que perdeu cinco quilos que não tinha para perder graças à dieta de líquidos que teve de adotar por seis semanas. O problema era que estávamos em território escolar quando Standish encontrou sua


motivação. Preferíamos manter esses confrontos fora do colégio, mas ele estava desaparecido havia dias. A escola é obrigatória, e não é difícil encontrar alguém em um prédio onde estudam menos de duzentos alunos. Descobrimos seu horário e montamos a emboscada. Boyce passou um braço sobre seus ombros, rindo e sorrindo como se fossem amigos, e o levou para o banheiro mais isolado. O infeliz acidente com Standish nos colocou novamente no radar de Ingram. Fomos chamados à diretoria. Boyce achava que o cara que nos vira no banheiro tinha falado, porque ele tinha certeza de que Standish nunca contaria que fomos nós que batemos nele. — Mas e aquele momento O médico e o monstro antes da surra? Talvez ele seja idiota o bastante pra falar — eu sugeri. — Momento o quê? — Boyce estranhou. — Ah, isso é um livro, né? Esquece. Apenas negue. — Combinado. Fomos instalados nas mesmas cadeiras onde havíamos nos sentado dois anos antes, depois da famosa briga que ninguém admitiu ter testemunhado. Ingram olhou para nós com aqueles olhos estreitos, sem piscar. — Acho interessante que vocês dois tenham sido vistos com Edward Standish pouco antes de ele sair deste colégio com o dente da frente na mão, a boca ensanguentada e anos de trabalho de ortodontia destruídos. Boyce fingiu um ataque de tosse para encobrir o riso. Se tinha uma coisa que Boyce Wynn não conseguia fazer muito bem — além de ler e interpretar textos — era fingir que não estava rindo quando estava. Eu me concentrei em manter a expressão impassível. Ela não podia nos expulsar por bater em um cara que jurava que não tínhamos nada a ver com a história quando sua testemunha ocular estranhamente também retirou o que disse. Eu tinha certeza de que Boyce estava por trás disso, mas não perguntei.

Estávamos na água havia duas horas quando a garota de biquíni de listras vermelhas e brancas se dignou a falar comigo. Ela me fazia pensar numa pimenta ardida. Esnobe, mas gostosa. No entanto, eu não dava muita importância para atitude, porque uma garota bonita a bordo era raridade. Era uma visão melhor do que quilômetros de água, litoral e peixes, mesmo que não rolasse nada.


— Os caras do meu colégio que são emos, góticos ou alguma coisa assim são muito mais... pálidos que você. E menos musculosos. Pensei que o visual anêmico fosse parte do estilo de vida. Ou sei lá. Apertei um olho para dar uma olhada nela. Ela se aproximara enquanto eu me preparava para pôr iscas nas varas presas a estibordo. Hoje pescaríamos em alto-mar. — Estilo de vida? — Eu ri. — Não tenho tempo para seguir uma filosofia — gatinha, eu teria acrescentado, se ela não fosse filha de cliente. — Só sou o que sou. — E o que você é? — Ela tinha um brilho provocante nos olhos que eu não notara nas primeiras duas horas de viagem. Por outro lado, tinha passado esse tempo todo de óculos escuros, que agora mantinha sobre a cabeça, se bronzeando e tentando ignorar os pais, que trocavam insultos velados, e outros nem tanto, no fundo do barco. Um sorriso ergueu um canto da minha boca. — O que você quer que eu seja? Ela revirou os olhos. — Essa cantada funciona com as garotas por aqui? Passei a ponta da língua pelo piercing e me abaixei para abrir uma lata de iscas, um movimento que exibia os músculos que ela já havia notado. — Sim. Ela arqueou uma sobrancelha. — O que mais funciona com elas? Olhei por cima do ombro, vi que meu pai comandava o timão e, no momento, não me olhava de cara feia. — O que você acha de aprender a colocar a isca e segurar a vara enquanto falamos mais sobre isso? — Olhei para ela por cima dos óculos escuros. — Se quer mesmo a resposta para essa pergunta, talvez eu leve um tempinho para relacionar os dados. Conforme me levantei, ela se colocou na minha frente, afastando os pés para se equilibrar no balanço do barco. O mar naquele dia estava um pouco agitado, teria sido melhor ficarmos na enseada, mas o pai dela queria pescar em águas profundas. — Sei tudo sobre bad boys, iscas e anzóis... — Ela apoiou as duas mãos na grade, olhando para a água. Mas, da minha posição, atrás de seus ombros, o que ela fazia era apertar os seios até quase expulsá-los para fora do biquíni. Iscas, de fato. — E sobre segurar varas... Como é mesmo seu nome? — Landon. — Prazer, Landon. Eu sou a Chastity.


Eu sabia o nome dela, escutei quando os pais se apresentaram e disseram o nome da filha no embarque. Antes de ficar evidente que os pais passariam o dia pulando no pescoço um do outro, sussurrando comentários ofensivos ou se ignorando mutuamente. A mãe dela chegou a flertar com meu pai. Não que ele tenha notado. — Chastity. Ouvimos as palavras “sei de tudo”, “vagabunda” e “cretino ” acima do barulho das ondas e das gaivotas. Meu pai os evitava na medida do possível, considerando que estávamos todos confinados em um barco de trinta e dois pés. Chastity e eu estávamos bem no meio. — Problemas com seus pais? — perguntei. — Pai e MÁdrasta. E sim. Ela o acusou de ter um caso. Conhecendo meu pai... é bem possível. Não vamos falar sobre eles. São chatos demais, e quero me divertir um pouco nessas férias idiotas. E, Landon, você parece divertido. — Ela segurou a vara com as duas mãos e encostou o traseiro em mim. — Então, Chastity, castidade... Isso é uma denominação precisa, ou um nome inadequado? Ela riu e apoiou um ombro no meu peito, deslizando as duas mãos pela vara. — Isso é uma coisa que só eu sei e... — Ah, não se preocupa. Eu tenho total intenção de descobrir. — Filho da puta convencido, hein? Sorri para ela. — Prefiro filho da puta confiante... mas sim. O que vai fazer hoje à noite? — Hum... que tal traçar você?

Apesar do que eu disse a Chastity sobre cantadas e garotas da região, raramente me metia com elas. Elas queriam sair para encontros, ir aos bailes do colégio, relacionamentos — e eu não estava nada interessado nessas coisas. A grande maioria das garotas com quem eu ficava estava ali só de passagem. Eu as conhecia na praia, no Bait & Tackle ou em algum lugar da cidade. A gente transava na casa que alugavam, ou em quartos de hotel, ou na praia, se estivesse escuro e elas topassem. Chastity era uma possibilidade — mas não em público, no escuro ou não, e não perto dos pais dela. Quando fui buscá-la, ela disse que havia inventado uma história sobre ter


encontrado amigos do colégio em Fayetteville. — Falei que eles me levariam de volta à meia-noite, depois de uma porção de peixe e sorvete na praia. Eu não conseguia entender como eles acreditaram nisso. — Vamos pra sua casa — ela sugeriu, depois de passearmos e nos beijarmos na praia, onde havia mais algumas pessoas. — Eu não faço nenhum barulho. Prometo. Então, fiz algo que nunca fizera. Levei uma garota para a minha casa. Eram só dez da noite, mas meu pai acordava cedo e também ia cedo para a cama. O quarto dele ficava no fim do corredor, do outro lado da despensa. Atravessamos a sala escura e passamos pela cozinha, evitando todas as tábuas que rangiam. Quando entramos no meu quarto, fechei a porta e ela sussurrou: — Puta merda, isso é minúsculo. É uma... despensa? Acendi uma luz de emergência que mantinha na tomada e apaguei a luminária do teto. Chutei meus sapatos ao lado dos dela. — Quer falar sobre o meu quarto ou...? — É que eu pensava que tudo fosse maior em... Tirei a camiseta, e ela ficou boquiaberta. Eu me inclinei para beijá-la, tirei sua regata e puxei a ponta do laço em seu pescoço, soltando o top do biquíni listrado e libertando seus seios em minhas mãos. Ela se deitou sobre a cama, e eu a segui. — O que você tava dizendo? — perguntei, e ela balançou a cabeça e me puxou sobre seu corpo. Acordamos perto da uma da manhã, o que já teria sido terrível por si só, por ela estar uma hora atrasada, ter várias chamadas perdidas, mensagens de voz e de texto em seu celular, que ela deixara no silencioso. Mas acordamos por causa do meu pai. Não faço ideia do motivo, mas ele decidiu abrir a porta do meu quarto. Se já fizera isso antes, eu não sabia. Talvez estivesse verificando se eu estava em casa por algum motivo. Mas, caramba, cinco segundos depois estávamos completamente acordados. — Landon Lucas Maxfield... que merda é essa? — ele berrou, e então se virou completamente, porque Chastity sentou na cama ainda com os seios nus. — Meu Deus! Os pais dela sabem que ela está aqui? Pigarreei enquanto pegávamos as roupas e nos vestíamos, constrangidos, presos em minha cama como meu pai bloqueando a porta. — Não, pai, não sabem.


— Eles sabem que ela está com você? Olhei para ela. Chastity negou com a cabeça. — Não, pai, não sabem. — Leve essa menina de volta ao hotel. Imediatamente. Mas que merda, Landon! Que merda. Foi o máximo que ouvi meu pai praguejar na vida. Quando passamos por ele, os músculos em seu pescoço estavam tensos e seu rosto era a imagem da fúria. Eu a deixei na porta do hotel. Ela enviara uma mensagem de texto para o pai dizendo que desligara o telefone sem querer. Ele estava esperando no saguão, muito bravo, quando chegamos. — Merda — falei. — Eu cuido disso. Ele merece tudo o que passa comigo. Pode acreditar. — E se virou para me beijar. — Obrigada por fazer esta viagem ser muito melhor do que imaginei. Tem um cara na minha turma de literatura que tem piercings. Sempre achei que ele era meio esquisito, mas agora vou ter que experimentar. — E sorriu antes de entrar.

LUCAS Na noite de domingo, eu mandei a última folha de exercícios para Jacqueline com a mensagem padrão: “Nova folha de exercícios anexa, LM”. Queria falar muito mais, mas o que eu mais queria lhe dizer não podia ser reduzido a palavras. Perto das dez da noite, meu celular tocou. O rosto de Jacqueline enchia a tela, uma foto que eu mesmo havia tirado no meu sofá. Ela sorria para mim como se tivesse um segredo. A gente não se falava — exceto pelas interações na aula de defesa pessoal no dia anterior — havia uma semana. Mais importante, ela nunca havia me ligado antes. Quando atendi, ela disse: — Preciso de você. Eu me levantei, deixando o lápis e o caderno de desenhos em cima do sofá, ao lado de Francis, e fui para o quarto. — Onde você está? — Troquei as botas de cadarço pelas de caubói reforçadas que eu tinha desde os dezessete anos, o único calçado novo que comprara nos tempos do


colégio. — No meu quarto. Peguei o moletom a caminho da porta. — Chego em dez minutos. A resposta dela, antes de desligar, foi um sussurro: — Obrigada.

Entrei no prédio com a mesma facilidade da última vez, subi os degraus de dois em dois e bati à porta do quarto dela. Um tremor sacudiu meu corpo. Eu não sabia o que me esperava do outro lado, mas, se ela precisava de mim, eu estava ali. Jacqueline abriu a porta, mas não se afastou para me deixar entrar. Seus olhos se encheram de lágrimas quando ela me viu. — Jacqueline... o que... — Ele fez de novo, Lucas... E a culpa é minha. — O QUÊ? — Shhhh. — Ela balançou a cabeça, tocou meu braço e olhou para os dois lados do corredor vazio. Ouvi vozes dentro do quarto no mesmo instante em que ela sussurrou: — Outra garota. Numa festa ontem à noite. Ela tá aqui. A Erin e eu não sabemos o que fazer. — E engoliu. — Ela é caloura. Tá muito abalada, assustada, e a gente não sabia a quem recorrer. Desculpa. Segurei o rosto dela com uma das mãos. — Nunca se desculpe por me pedir ajuda. Eu faço o que for preciso por você. Ela vai conversar comigo? Jacqueline assentiu. — Acho que sim. A Erin já contou que você ensina defesa pessoal e é da polícia do campus. Mentirinhas leves, mas a menina tá tão assustada... — Entendo. — Respirei fundo e recompus a expressão. — Como é o nome dela? — Mindi. A colega de quarto de Jacqueline estava sentada na cama, com um braço em torno da menina, que lembrava muito Carlie: cabelos claros, rosto em formato de coração, traços leves e delicados, exceto pelos olhos enormes. Mas eu nunca tinha visto Carlie naquele estado.


— Oi, Mindi. Eu sou o Lucas. — Aproximei-me devagar. — V-você não parece um p-policial — ela gaguejou, respirando com dificuldade e com a voz entrecortada pelo choro. Piercing no lábio, cabelos compridos, moletom de capuz... Eu não tinha uma aparência muito confiável, e certamente não parecia um policial. Abaixei-me na frente dela, mas não muito perto. — Na verdade, eu sou aluno da universidade, mas trabalho para a polícia do campus. Ela pareceu aceitar a explicação. — Então, é o seguinte: A gente precisa te levar ao hospital para ser examinada por um médico e um psicólogo, e depois registrar uma ocorrência. — Os olhos dela se encheram de lágrimas, e eu continuei: — Você vai ter que ser muito corajosa para fazer isso tudo, mas a Erin e a Jacqueline acreditam que você é capaz, e eu também. — Com toda certeza — Erin reforçou, segurando a mão dela. — E eu não vou sair de perto de você nem por um minuto. Mindi fungou e limpou os olhos com o dorso da mão. — Tudo bem. — Sua voz era aguda como a de uma criança. — Seus pais moram perto daqui? — perguntei, me esforçando para relaxar a mandíbula. Eu seria capaz de moer vidro com os dentes. A menina balançou a cabeça. — Eles moram na Pensilvânia. Mas não posso ligar pra casa. Não posso. — O nervosismo dela crescia a cada palavra. — Eles vão ficar furiosos por eu ter bebido... — Você não precisa ligar pra eles agora — interrompi. — Mas eles não vão ficar bravos com você. — Eu esperava que isso fosse verdade. Se fosse Carlie, ou Jacqueline... Melhor nem pensar nisso agora. Respirei fundo outra vez para me acalmar. — Você pode conversar com o psicólogo sobre como contar a eles, tá bom? Ela assentiu, imitou minha inspiração profunda e, tremendo, apertou a mão de Erin. — Então devemos ir ao hospital, Lucas? — Erin perguntou. — Podemos ir com o meu carro. — Você vai estar lá também? — Mindi me perguntou com a voz rouca. Ela devia ter passado o dia todo chorando. Eu me lembrei de Jacqueline na noite da festa de Halloween. As lágrimas em seus olhos. As mãos trêmulas. Se eu soubesse onde aquele cretino morava, ele estaria morto antes do fim da noite. Olhei para Erin, e ela assentiu. — Se você quiser — respondi.


Mindi assentiu. Quinze minutos mais tarde, nós quatro entramos no pronto-socorro, e eu descobri como era difícil contar. Fixei uma expressão fria no rosto quando os detalhes da noite anterior começaram a ser revelados, antes mesmo de deixarmos o quarto. Tinha sido um evento importante — uma festa formal de várias fraternidades, com Buck e Kennedy Moore presentes —, e Jacqueline havia comparecido. Ela não era de nenhuma fraternidade, então não tinha obrigação de ir, ninguém estaria esperando sua presença. — A Erin precisava de mim para encarar o ex — ela explicou no banco de trás enquanto seguíamos para o hospital, sua voz era quase um sussurro. Eu não tinha perguntado nada. Quando ficamos sozinhos na sala de espera, eu tinha de saber se Buck havia se aproximado dela. — E então, ele falou com você? Ontem à noite? — Eu não olhei para ela, nem acrescentei um nome à pergunta. Tinha certeza de que ela sabia de quem eu estava falando. — Sim. Me chamou para dançar. Fiquei sentado em silêncio, sem conseguir olhar para ela. Eu não estava bravo com Jacqueline... não mesmo. Mas saber que ela havia se aproximado dele tanto assim sem que eu estivesse por perto me enchia de medo. Por fim, a encarei. — Eu disse não — Jacqueline continuou, como se tivesse culpa de alguma coisa. Como se enfrentasse ciúme, quando tudo o que eu sentia era pavor e uma necessidade incondicional e incontrolável de protegê-la. — Jacqueline — falei em voz baixa, forçando minha mandíbula a relaxar. — Estou precisando de todas as minhas forças para conseguir ficar aqui e esperar que a lei e a justiça cuidem desse problema, em vez de sair pelo campus caçando esse desgraçado para arrebentar a cara dele. Não estou culpando você nem ela. Nenhuma de vocês pediu pelo que ele fez. Isso não existe, ninguém pede que isso aconteça. É uma mentira de merda, usada por psicopatas e idiotas. Entendeu? Ela assentiu em silêncio, e perguntei se ele aceitou seu não. Eu corria o risco de perder a cabeça. Sentia a explosão próxima, tentando abrir caminho e irromper na superfície da minha calma aparente, prometendo a retaliação e a vingança que eu nem tinha o direito de querer. Eu estava muito perto de perder o controle. Jacqueline me contou que o ex estava com ela e que notara seu desconforto. Então, ela contou a ele o que havia acontecido naquela noite.


— Nunca tinha visto o Kennedy tão furioso antes. Ele levou o Buck para fora da casa e falou com ele, mandou que ficasse longe de mim... O que provavelmente fez com que o Buck se sentisse fraco, e foi por isso que... — Suas palavras falharam. Jacqueline acreditava que o ressentimento de Buck depois da repreensão de Moore tinha sido o motivo para ele ter estuprado Mindi. A triste verdade era que era mesmo possível. Caras como ele são covardes que explodem quando se sentem impotentes. Mas o que Jacqueline não conseguia entender era que as atitudes do cara não eram culpa de ninguém além dele mesmo. — O que foi que eu acabei de dizer? — perguntei. — Não foi culpa sua. Eu queria conseguir fazê-la acreditar em mim.

A menos que Francis tivesse aprendido a socar a porta, havia alguém ali à uma e quinze da manhã. Espiei pelo olho mágico com um taco de beisebol na mão. E então soltei o taco e abri a porta. — Jacqueline? Por que...? — Puxei-a para dentro e tranquei a porta. — O que houve? Ela me encarou com os olhos arregalados e apavorados, e meu coração quase parou de bater. — Eu só queria te dizer que... estou com saudades — ela soltou, a voz frenética, quase sem fôlego. — E talvez isso pareça ridículo... já que a gente mal se conhece, mas, entre os e-mails e as mensagens e... tudo o que aconteceu, eu tinha a sensação de que nos conhecíamos. De que nos conhecemos. E eu sinto falta de... não sei como dizer isso. Sinto falta de vocês dois. A agonia em seu rosto era... porque ela sentia minha falta? Ela não devia estar aqui. Heller morava do outro lado do quintal. Eu tinha prometido que me comportaria da maneira adequada com Jacqueline até o fim do semestre, mas o desejo que me invadia não tinha nada de apropriado. Era fogo e posse, adoração e desejo, fome e sede e uma impossível, insuportável esperança. Não suportava a ideia de ficar longe dela por cinco minutos, muito menos para sempre. Eu não podia tê-la, mas a queria muito, muito mesmo. Sua Operação Bad Boy. O troco. Senti como um mal-estar físico, interno — a fração de segundo em que meu controle deixou de existir. Quando deixei de me importar com o que perderia depois deste


momento, porque eu não poderia suportar perder o que estava diante de mim. — Que se foda — falei, empurrando-a contra a porta e colando meu corpo ao dela, abrindo sua boca com a minha e beijando como se pudesse tragá-la, engoli-la e impedir que se afastasse de mim. Afastei-me o suficiente para tirar seu casaco e levá-la até o sofá, sentá-la em meu colo, as mãos na parte de trás de seus joelhos, afastando-os para colocá-la na posição em que eu a queria, sobre meu quadril. Minha mão esquerda a puxava mais para perto, a direita segurava seu lindo rosto, enquanto eu beijava sua boca. Eu queria beijá-la para sempre. Fazer amor com ela a noite toda. Transar com ela até que ela fosse minha e de mais ninguém, sem me importar com as consequências — e havia muitas consequências entre as quais escolher. Joguei os óculos que usava à noite, sem me importar se iam bater na quina da mesa ou cair no chão do outro lado da sala. Arranquei a camiseta e depois, mais devagar, tirei a dela, minhas mãos tremendo com o esforço para ser gentil. Quando deslizei as mãos pelas laterais de seu corpo, ela se aproximou ainda mais, passou os braços em torno do meu pescoço e deslizou as mãos pelo meu cabelo. Beijei um canto de sua boca, ouvi o suspiro que era quase um gemido, e me inclinei para beijar a área sob o queixo, beijar e sugar a pele macia do pescoço, provocar os sons delicados e as palavras entrecortadas que ela murmurava quando deixou a cabeça pender para trás. Dei atenção especial àquela sarda que me deixava maluco — era como uma pequena pista deixada ali para eu encontrar, o começo do mapa do tesouro. Passei a língua por cima dela, e Jacqueline arqueou o corpo contra o meu, puxando meu cabelo. Fantasias explodiram em minha cabeça, boas demais, perfeitas demais. Eu a queria, assim... inteira. Tudo ficou mais lento. Tirei seu sutiã e segurei seus seios, provocando-os com os dedos — pequenas trilhas circulares em torno de cada mamilo, os polegares afagando a curva inferior. Ela se inclinou para me beijar, sugando minha língua e a acariciando com a dela, deslizando a mão do meu peito até o abdome e tocando o cordão da calça do pijama — flanela macia e fina que não escondia quanto meu corpo desejava o dela. Mas eu prometi. Eu prometi. Minhas mãos deslizaram pelos cabelos dela logo acima da nuca, apoiei a testa em seu ombro e fechei os olhos. — Me mande parar — murmurei.


— Não quero que você pare — ela sussurrou, e o hálito em minha orelha era pura tentação. Por um instante, deixei suas palavras doces me absolverem da promessa que eu queria quebrar, da ética que eu estava jogando no lixo, do coração que eu a deixava abrir ao meio, o meu. Deitei de lado no sofá e a puxei comigo, então abri o zíper de seu jeans e deslizei os dedos para dentro da calça, para dentro dela, afagando e pressionando enquanto ela arfava meu nome e agarrava meu braço como se nunca mais fosse soltá-lo. Eu podia fazer Jacqueline me amar. Podia ser o próximo homem na vida dela... Ah, eu sabia que não. — Jacqueline. Me mande parar — implorei, incapaz de tomar a decisão sozinho. — Não pare — ela respondeu, me beijando, enquanto eu tentava me agarrar à terra firme, mas tudo o que eu mais queria era me afogar nela. Jacqueline abriu a boca e continuou me beijando, mostrando o que poderia ser meu se eu seguisse adiante. Eu prometi. Cinco segundos. Eu tiraria sua calça e a possuiria ali mesmo, no sofá. — Me mande parar, por favor. — Três segundos. Eu a levaria até o meu quarto, a jogaria na cama e começaria com a boca em sua coxa. — Por favor. — Um segundo. Eu trairia a confiança da única pessoa que nunca desistiu de mim. — Pare — ela disse. Obrigado, falei. Ou desejei ter falado antes de adormecer com ela em meus braços.


21

LANDON Quando o sol se pôs, a temperatura caiu e a luz desapareceu, as festividades do recesso de primavera ganharam intensidade. A ruiva no meu colo deu a última tragada no baseado que dividíamos, a brasa queimando a ponta dos dedos indicador e polegar. — Ai! — Sua voz era um chiado de rato. Ela derrubou a ponta na areia, onde a brasa se apagou e sumiu. — Ei! — franzi o cenho, me abaixando no tronco onde estava sentado para revirar a areia como um idiota. A última coisa que eu queria era pisar em uma merda de ponta ainda acesa. — Qual é? Não tinha mais nada. — Sua voz petulante era irritante, embora eu soubesse que não havia mesmo o suficiente para mais uma tragada. Pensei em responder, mas, quando levantei a cabeça, ela estava chupando o dedo queimado. O baseado perdido desapareceu dos meus pensamentos, que se voltaram para outras vontades. Puxei a ruiva mais para perto e enfiei o dedo indicador dela na boca, chupando delicadamente enquanto ela sugava o polegar, os olhos fechados, tão chapada quanto eu. Meu queixo descansava na palma de sua mão, e eu suguei com mais força quando ela passou as unhas no meu rosto. Eu queria sentir aquelas unhas arranhando as minhas costas, e não queria esperar ou me mexer. Uma briga rápida, porém barulhenta, com meu pai por causa de mais um boletim ruim, a tarde longa e estranhamente quente e a maconha me deixaram lento e preguiçoso, mas cheio de tesão. Abri os lábios e passei a língua pelo V entre o dedo em minha boca e o polegar na dela. A ruiva fechou os olhos. Puxei para baixo um lado do top do biquíni, liberando um seio. Seus olhos se abriram rapidamente, mas ela não se afastou. Se ela não se incomodava com isso, veríamos se estava disposta a transar comigo ali mesmo, a cinco metros da fogueira e de mais ou menos duas dúzias de pessoas bebendo, fumando e/ou se pegando em volta dela. Com


sorte, ela estaria tão relaxada e excitada quanto eu. Tirando seu dedo da boca com um fraco pop, abaixei a cabeça e peguei um mamilo entre os lábios. Ela arqueou as costas, arfou e esqueceu o polegar queimado. Enfiando a mão entre nós, afastei a calcinha do biquíni para o lado. Ela arfou uma vez mais e passou os braços em torno dos meus ombros, antes de dizer as palavras mágicas: — Ah, meu Deus... isso. Agora. Agora. Minha nossa. Eu ainda nem tinha beijado a garota. Talvez nem beijasse. Uma trepada sem beijo — Seria a primeira vez, pensei. E eu estava sempre procurando coisas novas. Elas eram cada vez mais raras. Foi quando ouvi Amber Thompson gritar. Certo de que era seu habitual berro para chamar atenção, decidi ignorar. Havia uma nota de pânico no grito que eu nunca ouvira antes, mas ela devia estar no meio de uma alucinação paranoica provocada pelo idiota do irmão e o baseado que ele lhe dera. Magricelas de catorze anos não deviam fumar maconha. Não sabiam dosar. A mesma quantidade que me deixava pronto para transar com essa garota no meu colo, comer alguma coisa e dormir profundamente podia deixar a menina maluca. Eu tinha acabado de abrir a embalagem da camisinha — a única que tinha comigo — quando ouvi outro grito. Maldito irmão inútil da Amber. Com uma lata de cerveja em uma das mãos e um baseado na outra, ele estava de pé perto da fogueira, balançando de um lado para o outro, rindo com outros dois caras. A garota no meu colo gemeu e pressionou o corpo contra o meu. Segurando a camisinha em uma das mãos e o rabo de cavalo ruivo na outra, gritei: — Ei, Thompson! Rick olhou em volta uma vez antes de voltar para a conversa. — Caralho, cara — falei, e tentei de novo: — Thompson, seu bundão! Dessa vez ele olhou só para o outro lado, além da fogueira. — Por que você tá gritando? — a ruiva gemeu. Então ouvi o terceiro grito de Amber, e dessa vez a voz soou assustada e mais distante. Ninguém prestava atenção nos gritos, só eu. Fiquei de pé, tirei a garota quente e disponível do meu colo e lhe entreguei a camisinha. Em seguida a fiz se sentar, e suas mãos seguraram o cordão do meu shorts. Eu me dei conta de que ela achava que eu queria uma chupada antes da transa, e estava absolutamente pronta para isso.


Maldita noite. Segurando seus ombros com firmeza, eu disse: — Já volto. Seus lábios se curvaram levemente e ela piscou, confusa. Eu não podia criticá-la pela reação. Mesmo chapado, sabia que tinha acabado de falar a maior idiotice de todas. Amber gritou de novo, felizmente parecendo estar à mesma distância do último grito, e eu me virei e corri rumo a ele — para longe da fogueira, para longe da diversão certa da noite, amaldiçoando Thompson e a minha consciência. Longe da luz do fogo, meus olhos prejudicados se ajustaram lentamente até distinguir duas pessoas se beijando. Ótimo, pensei. Muito bom mesmo. Eu tinha abandonado a garota mais gostosa que havia conhecido em semanas para correr pela praia e descobrir que a irmãzinha de Thompson gritava quando transava. Mas a pessoa menor correu, a maior a agarrou e a imobilizou, e os dois caíram na areia. Não era um grito de “Eu quero”, era um grito de “Não quero”. Corri em direção a eles, amaldiçoando o efeito da maconha, que me fazia ziguezaguear pela areia. A última coisa que lembro com clareza é de levantar o cara do chão com a mão esquerda e desferir o soco com a direita. O impacto dos meus dedos nos ossos do rosto dele foi doloroso e estranho. Ele não caiu imediatamente, e eu bati outra vez. E de novo. De novo. Até a euforia e a fúria se unirem e chegaram ao pico, e eu meio que apaguei. Arrebentei a maioria dos vasos no dorso da minha mão e quebrei dois dedos. Nem sabia que dava para fazer isso. Minha mão direita estava destruída e doía muito. Mas, além disso, não havia nenhum outro ferimento em mim. O outro cara sofreu uma concussão que o fez beirar o coma por algumas horas. Eu podia tê-lo matado. Podia ter matado o cara, e eu não conseguia me lembrar disso. Do que eu me lembrava: algemas. Do banco de trás de uma viatura. De ser fichado na delegacia. De uma cela que cheirava a suor e urina, mas, felizmente, não abrigava mais ninguém além de mim. Porque aquilo não era uma detenção juvenil. Pessoas de dezessete anos são julgadas como adultas e vão para cadeias comuns. Superado o efeito da maconha e da surra, comecei a tremer incontrolavelmente. — Maxfield! — um oficial gritou um tempo depois, e eu levantei a cabeça. — Fiança paga. Pode tirar esse traseiro daqui... A menos que queira ficar. Eu me levantei do banco. Esperava ver meu pai. Ele estava lá, mas Charles Heller estava ao lado dele. Eu tinha


esquecido que eles estavam na cidade para as férias. Não os vira muito desde que haviam chegado. Não dedicara tempo para isso. No banco de trás do carro, a caminho de casa, eu não emitia som algum. Nós três estávamos em silêncio. Em vez de nos deixar na porta e seguir para o hotel, Heller seguiu meu pai para dentro de casa. — Preciso de um banho — resmunguei, e ninguém protestou. Quando desliguei o chuveiro, ouvi a voz deles do outro lado da fina porta. — Você está perdendo o garoto, Ray. — Houve uma pausa, e eu prendi o fôlego. — Você é meu amigo, eu amo você... e, por causa desse amor, vou dizer a verdade. Você está fazendo tudo errado. A Cindy implorou para levar o garoto para a terapia, mas você decidiu que não. Nós imploramos para não tirá-lo de perto dos amigos, de perto de nós, não levá-lo para o outro lado do país, mas você não ouviu. Ele frequentava uma escola particular, e agora ele... está deixando tudo de lado. A briga de hoje não foi a primeira, foi? E as drogas... Deve ter bebida nessa história também. Ele está usando todos os métodos de fuga que encontra. Porque foi o que você fez. Meu pai murmurou alguma coisa. — Eu sei. Mas isso não é o suficiente. Ele precisa de um objetivo. Precisa ver valor em si mesmo. — Outra pausa. Engoli, meus olhos arderam. A voz de Heller soou mais baixa, e não consegui ouvir o que ele dizia. Saí do banheiro com a toalha na cintura e, sem olhar para os dois sentados à mesa da cozinha, me tranquei no meu quarto-despensa. Vesti um shorts, tarefa que demorei três vezes mais que o normal para executar com uma das mãos. Era importante saber que Charles Heller se preocupava comigo. Não mudava nada, mas era importante. Um objetivo. Ele disse que eu precisava de um objetivo. Talvez fosse hora de desistir do colégio — meu maxilar se comprimia ao pensar em dar essa satisfação a Ingram — e ir trabalhar no barco. Se eu não acabasse preso por agressão. Eu sabia que a fiança só me manteria em liberdade até a data do julgamento. Engraçado que, de todas as brigas em que eu tinha me metido, justamente essa, que tinha um motivo justo, me causasse todo esse problema. Se Amber se recusasse a depor, eu estaria ferrado. O cara que eu quase matei era um universitário rico. Ele havia mostrado dinheiro suficiente na noite anterior para deixar Thompson de pau duro — comprou tudo o que tínhamos e distribuiu entre os amigos, como doce no Halloween. Gente da idade dele, vestida daquele jeito e dirigindo Range Rovers, não ganhava tanto dinheiro por conta própria. Você conseguiu o que queria, vô, pensei. O barco seria a minha salvação. Meu futuro.


Minha saída. Era melhor do que a prisão. Fechei os olhos. Melhor do que a prisão. Uau, agora fodeu. Assim que minha cabeça encostou no travesseiro, eu adormeci.

LUCAS Não pude resistir a olhar nos olhos de Jacqueline por um breve momento quando ela entrou na sala. Seu sorriso era hesitante, incerto, e, depois da noite passada, eu não podia culpá-la por isso. Quando acordei e a vi se preparando para ir embora, eu a acompanhei até a caminhonete e me despedi com um beijo. Conforme via aquelas luzes se afastando, soube que poderia dar aquilo que ela queria assim que me livrasse das restrições de ser monitor. Eu seria o que ela precisava, e depois a deixaria partir. Porque eu estava apaixonado por ela. No fim da aula, a loira que no começo do semestre vivia atrás de Kennedy Moore veio me perguntar sobre o horário da monitoria. Não consegui lembrar o nome dela. — Quinta-feira, na hora de sempre — respondi, vendo Jacqueline guardar o material. Conversando com o tal Benjamin, que olhou em minha direção, ela revirou os olhos e também olhou para mim. Tive uma resposta definitiva em relação a quanto ele sabia sobre o que estava acontecendo entre mim e Jacqueline quando Benjamin saía da sala e, piscando exageradamente, disse: — Escolho “Monitores gostosões” por duzentos dólares, Alex. Jacqueline enrubesceu quando ele cantarolou a música de abertura do programa de perguntas e respostas Jeopardy! a caminho da porta. Ele sorriu para mim antes de desaparecer. Nenhum de nós disse nada até estarmos do lado de fora. — Por acaso ele sabe? Sobre...? — Meus dentes tocaram o piercing enquanto ela dizia que o colega havia contado sobre mim. — Ele percebeu que a gente... se olhava. E perguntou se eu estava frequentando as suas aulas de reforço. — E deu de ombros, como se isso resumisse tudo.


Eu podia imaginar a conversa e como ela se sentiu ao descobrir outra mentira depois da traição de Moore. — Nossa. Desculpa. — Mas palavras não podiam superar aquelas mentiras, e eu sabia disso. Fomos juntos rumo à sala de espanhol, quietos e encolhidos dentro da jaqueta. Meus velhos amigos de Alexandria teriam rido e comentado que esse último dia ensolarado de outono era clima para shorts. — Reparei em você na primeira semana — eu disse. Como uma inundação depois de uma tempestade de verão, confessei tudo, como a observava na aula e catalogava seus trejeitos, desde ajeitar o cabelo atrás da orelha esquerda até os dedos musicais. Contei a ela sobre o dia chuvoso, quando ela disse “obrigada” e sorriu, e como tudo aquilo me afetou. Falei sobre o ciúme que sentia de Moore antes mesmo de ela me conhecer. — Depois, veio a festa de Halloween. Ela ficou muda. Nunca havíamos falado sobre o que aconteceu naquela noite, do meu ponto de vista. Eu admiti que a vi deixar a festa. Que vi Buck sair atrás dela. — Eu pensei que talvez... talvez vocês dois tivessem decidido sair da festa mais cedo, juntos, sem que ninguém ficasse sabendo. Que se encontrariam fora da sede ou algo assim. — Meu coração batia forte sob as costelas conforme eu lhe revelava essa grave falha: o fato de ter ficado na festa, de ter hesitado em segui-la imediatamente, enquanto um predador a espreitava e a perseguia até o estacionamento. Como eu suspeitava, Buck era mais do que um cara que ela conhecia de nome. Ela o considerava um amigo. — Ele é o melhor amigo do namorado da minha colega de quarto — Jacqueline explicou, sem me condenar ou criticar minha decisão lenta demais naquela noite. Eu me lembrava do gesto simbólico de absolvição feito pelo padre, na infância, e sentia como se ela houvesse acabado de me absolver. No mesmo momento, percebemos que não estávamos mais cercados por grandes grupos de alunos. Tinha passado do horário, ela estava atrasada para a aula. — Já tirei A. Não preciso realmente dessa revisão — ela explicou. Eu tinha uma hora antes da minha aula seguinte. Olhei para seus lábios vermelhos de frio, seguindo diretamente para terreno impróprio. Queria beijá-la bem ali, no meio do campus. — Você não me desenhou outra vez — ela comentou. E lambeu os lábios, um rápido


movimento de língua, e por algum milagre consegui desviar os olhos, em vez de empurrá-la para o meio dos arbustos e me apoderar daquela boca. — Café — falei. Eu raramente ia ao Starbucks do campus como aluno. Tinha fila, mas Gwen e Ron funcionavam como uma máquina de engrenagens bem lubrificadas. — Lucas — Gwen sorriu tensa, se recusando a encarar Jacqueline. Sem dúvida, aborrecida por eu não ter ouvido seus sábios conselhos. — E aí, Gwen. Dois americanos. E eu acho que você ainda não conhece a Jacqueline. Como uma coruja, Gwen virou a cabeça para olhar para ela. — Prazer — disse entre dentes. Jacqueline sorriu, como se minha normalmente doce colega de trabalho não a tratasse com a frieza de um iceberg. — O prazer é meu, Gwen. Adorei suas unhas... lindas! As unhas de Gwen estavam pintadas como coloridos presentes de Natal. Eu achava horrível. Mas ela cravou os grandes olhos escuros em Jacqueline, intensificando a semelhança com uma coruja. — Ah, obrigada. Eu mesma que fiz. — Sério? — Jacqueline estendeu a mão aberta, e Gwen pousou a ponta dos dedos ali, permitindo uma inspeção mais próxima e detalhada enquanto, com a mão direita, registrava nosso pedido e pegava meu cartão para cobrar. — Que inveja! Não consigo pintar as minhas nem com uma cor só, sempre faço a maior sujeira! E eu ainda toco contrabaixo, então tenho que manter as unhas curtas e não posso fazer nada divertido com elas. Graças a Deus, pensei. — Ah, que pena! — Gwen respondeu, e notei que ela havia sido conquistada. Eu estava impressionado. E também feliz por Eve não estar trabalhando, porque ela desconfiava de elogios a ponto de tratá-los como agressão. Quando nos sentamos em uma mesa no canto, Jacqueline mencionou meus óculos, provocando uma coleção de lembranças inadequadas, cortesia da minha cruel e nítida memória, dos motivos que me fizeram atirar os óculos longe. Não quero que você pare. — Eu posso te desenhar agora — sugeri, e peguei meu caderno na mochila, como se fosse uma boia que me salvaria do afogamento. Coloquei o lápis atrás da orelha, equilibrando o caderno sobre o joelho flexionado, e me reclinei para estudá-la. Jacqueline corou como se pudesse ler meus pensamentos.


Leia este, Jacqueline. Meu lápis deslizava pela página, e eu imaginava meus dedos passeando por sua pele. Eu observava seu peito arfar como na noite passada. Ela olhava para as minhas mãos como se elas interpretassem as curvas de seu corpo e as transformassem em linhas e sombras no papel. Imaginei que a desenhava em minha cama, os pulsos cruzados acima da cabeça, como a retratei no desenho preso à minha parede. Deslizaria a ponta dos dedos por seu corpo, sem fazer pressão. Apenas carícias suaves que eriçariam os pelos finos, treinariam seu corpo para reconhecer meu toque. Reagir a ele. Ela gemeria profundamente, como na noite passada, inquieta, especialmente quando meus dedos passassem por suas coxas, subindo a partir dos joelhos. Merda. Desenhar Jacqueline era uma péssima ideia. — No que você está pensando? — perguntei, tentando me distrair. — No tempo em que estava no ensino médio — ela respondeu. Tudo bem. Funcionou. Ela podia ter jogado café em mim, teria sido a mesma coisa. Presumi que pensava em Moore, mas Jacqueline acrescentou: — Eu não estava pensando nele. Ela me perguntou como havia sido o meu ensino médio, e eu vi aqueles anos em uma série de flashes — a amizade inesperada de Boyce, o desprezo de Melody, a dor de perder meu avô, meu pai e seu silêncio, as brigas, as garotas sem rosto, e Arianna transformando minhas cicatrizes e minha pele em uma narrativa de perdas. Mudei meu nome quando saí de casa, mas não era tão fácil assim me desligar de quem eu tinha sido. — Bem diferente do que foi para você, imagino — respondi. Ela me perguntou como, e eu falei a primeira coisa que me surgiu na cabeça. Nunca tive uma namorada. Ela parecia duvidar, mas não era capaz de entender o menino que fui. As festas e as transas sem envolvimento, a falta de esperança. Em algumas frases, contei a ela sobre Amber e aquela última briga, quando a fúria dominou meu cérebro e meus punhos e eu apaguei. Contei sobre a prisão. Contei sobre Charles e a saída que ele me ofereceu. — Ele é o seu anjo da guarda. — Você não faz ideia — confirmei.


Mandei a revisão para Jacqueline dois dias antes de distribuí-la aos outros alunos da monitoria, não sem antes refletir se não estaria atravessando mais uma fronteira ética com isso. Isso era favorecimento evidente. Mas do que adiantava aceitar meu lado bad boy, se eu não podia ter favoritos? Ela me respondeu dizendo que era estranho receber e-mails sobre economia assinados por mim, como se Landon e eu ainda fôssemos duas pessoas diferentes. Admitiu que quase havia recomendando Landon como monitor para Lucas — que parecia totalmente relapso, sempre distraído na aula e ausente nos dias de prova. Fiquei feliz por ela não ter me contado isso pessoalmente, porque ri alto. Ela e Mindi tinham ido à delegacia para registrar queixa contra Buck, cujo nome era Theodore Boucker III, que descobri quando o detetive entrou em contato comigo. Contei minha versão sobre o ataque a Jacqueline e nossa briga. Buck contara à sua fraternidade inteira e a quem mais quisesse ouvir que fizera sexo consensual com Jacqueline na caminhonete dela e que fora atacado por “ladrões sem-teto” depois que ela já havia ido embora, mas não prestou queixa por agressão na delegacia do campus ou na polícia regular. No dia seguinte seria minha última aula com Jacqueline. A prova final de economia estava marcada para a semana seguinte, e os dormitórios seriam fechados para as férias de inverno na semana depois da prova. Ela me mandou uma mensagem no celular:

Depois da prova final na semana que vem, o que vai acontecer?

Acendi e apaguei a tela algumas vezes. O que vai acontecer? Ela não sabia como funcionava essa coisa de bad boy? Não tinha nada de “O que vai acontecer”. Eu já provara essa teoria para mais garotas do que conseguia lembrar. Pegar e não se apegar, ou chupar e pronto, ou transar e sair andando. Diferente de todas que a antecederam e de todas que viriam depois, eu idolatraria e saborearia Jacqueline Wallace quando ela estivesse na minha cama. Uma primeira vez para mim. Fazer amor e ponto-final. Finalmente, respondi a mensagem:

Férias de inverno. Tem algumas coisas que você não sabe sobre mim. Eu jurei que não ia mais mentir para você, mas ainda não estou pronto para contar certas coisas.


Não sei se consigo. Desculpa.

Eu não esperava resposta. E não recebi nenhuma.


22

LANDON Acordei com o cheiro de café. Estranho, porque meu pai quase sempre já tinha saído quando eu acordava. Não podia imaginar que ele havia cancelado passeios préagendados para discutir minha prisão — ele nunca deixava os clientes na mão. Saí do quarto e encontrei Charles Heller sentado à mesa da cozinha, sem meu pai por perto. Diante dele havia um bloco de papel timbrado, seu notebook e uma lista telefônica. Ele olhou para mim quando entrei na cozinha. — Landon... eu queria falar com você, se você puder. Trouxe bagels e acabei de ligar a cafeteira. Vou esperar alguns minutos, para você acordar direito, e então conversamos. Pode ser? Franzindo o cenho, assenti e fui para o banheiro, onde peguei os comprimidos de analgésico no armário sobre a pia. Quase não consegui tirar a tampa com trava à prova de crianças. Minha mão estava tão inchada que parecia a de um personagem de desenho animado, doía demais. Tudo era difícil sem poder usá-la, de escovar os dentes a vestir ou despir as roupas. Escolhi uma regata e shorts, que deixei desamarrado. Sentei-me à mesa na frente de Heller, e ele empurrou um bagel recheado com muito cream cheese e uma xícara de café em minha direção. Em seguida tirou os óculos de leitura e olhou para mim, os olhos bem abertos e persistentes, estudando meu rosto, meus olhos. Eu não estava acostumado a esse tipo de exame tão atento de alguém que se importava comigo. Eu sabia que o desapontara. A vergonha era um desmoronamento, e era tão rápido e envolvente que me vi soterrado antes de poder escapar. Com os olhos fixos na xícara entre minhas mãos, lutei contra as lágrimas e esperei para ouvir o que ele tinha a dizer. — Tenho uma proposta, e você é livre para aceitá-la ou não — ele começou. — O que vou oferecer não é um presente. É um desafio. Se não quiser aceitar, ninguém pode obrigá-lo, e ninguém vai tentar. Entendeu? Eu não entendia, mas assenti em silêncio.


— Fiz uma lista de coisas que espero de você. E, ao lado delas, escrevi o que vou fazer, se atender às minhas expectativas e fizer essas coisas da melhor maneira possível. — Ele empurrou o bloco de papel timbrado para mim, e eu olhei para a folha enquanto ele citava os itens. — Primeiro: colégio. Quero que comece a ir às aulas. Todos os dias, todas as aulas. Quero que faça o melhor possível, porque quero que você vá para a faculdade. Vai ter de se matricular em alguns cursos difíceis no ano que vem para se preparar, e tem de trabalhar duro para melhorar sua média geral, porque você se meteu em um buraco bem fundo, Landon. Eu me perguntei se ele tinha ideia de como a situação era ruim. Não podia contar. — Segundo: arrume um emprego. Qualquer um. Alguma coisa que pague um salário, em vez de receber dinheiro do seu pai. Algo que lhe dê experiência em trabalhar para outra pessoa. Terceiro: pare com as drogas e a bebida. Drogas, completamente. Bebida... bem, eu seria hipócrita se fizesse você jurar que não vai tocar em uma cerveja de novo até completar vinte e um anos. Mas quero que tente, e quero que se controle. E, por fim, quero que comece a fazer taekwondo. Se quer lutar, tem que aprender a lutar direito, e vai aprender os motivos certos para isso e, mais importante, as razões para não brigar. Engoli, e a primeira coisa que pensei foi que não seria capaz de fazer todas essas coisas. Isso não era um desafio. Era uma missão impossível. Mas eu queria fazer. Eu queria. — Se você concordar com essas coisas, eis o que eu vou fazer: pagar as aulas de artes marciais. Elas me salvaram e me focaram quando eu era jovem, e acho que farão o mesmo por você. Segundo, vou usar todos os meus contatos para conseguir sua matrícula na universidade como aluno experimental. — Levantei a cabeça e o encarei, surpreso. Ele trabalhava na melhor universidade do estado. — Se não der certo, tem a faculdade comunitária. A nossa é ótima. Você pode passar um ano lá, tirar notas excelentes e pedir transferência. De qualquer jeito, a Cindy e eu queremos que você vá morar com a gente. Tem um apartamento em cima da garagem, está cheio de tralhas de que não precisamos. Você vai precisar de um emprego para pagar a mensalidade, mas a moradia nós garantimos. Dei alguns telefonemas hoje de manhã. Encontrei um dojang conceituado a cerca de vinte minutos daqui. Se aceitar o desafio, matriculo você hoje mesmo. Preciso da sua assinatura no fim dessa lista como sinal de que aceita as condições. — Ele deixou a caneta em cima do bloco e se levantou. — Tome seu café e pense. Vou me despedir da Cindy e das crianças. Eles vão pra casa hoje. Já volto. —


Heller tocou meu ombro e continuou: — Também telefonei para o policial e conversei com ele sobre o processo por agressão. Seu pai e eu vamos ver o que podemos fazer, seja qual for sua decisão aqui. Ele não tinha como saber como eu estava apavorado, como me sentira desolado dentro daquela cela. Olhei para ele para deixar claro que tinha entendido tudo, e não consegui falar. Apenas assenti. Ele bateu no meu ombro e saiu. Assinei aquele papel menos de um minuto depois de Heller ter passado pela porta.

LUCAS Quando cheguei para a aula de economia na manhã de quarta-feira, Jacqueline estava conversando com Moore no corredor. A rigidez dos ombros dele sugeria frustração, e seu tom de voz confirmava a impressão. — Nunca me ocorreu que ele seria capaz de fazer aquilo. Jacqueline me olhou por cima do ombro quando me aproximei e parei ao lado dela. — Está tudo bem? — perguntei. — Estou bem — ela respondeu movendo a cabeça para cima e para baixo. Encarei Moore por um instante antes de entrar na sala. Ele me reconheceu e juntou as peças antes de eu me afastar. — Aquele cara está na nossa sala? E por que diabos ele me olhou daquele jeito? Ele não ia querer saber por que o encarei, ou que eu era perfeitamente capaz de agir de acordo com aquele olhar. Jacqueline não olhou em minha direção quando eles entraram, cinco minutos mais tarde. Heller já havia começado a aula. Moore passou por mim com uma expressão carregada, e Jacqueline se sentou no lugar de sempre, serena. Respirei aliviado.

Jacqueline e Mindi planejavam entrar com um pedido de ordem de restrição temporária naquela tarde. Eu me ofereci para trocar meu turno e acompanhá-las, mas Jacqueline disse que os pais de Mindi cuidariam bem delas.


— Segundo a Erin, é provável que a tirem da faculdade. Pela centésima vez desejei ter matado aquele canalha quando tive a chance. Vi o ar sair da minha boca como fumaça e, pela primeira vez em uma eternidade, senti vontade de fumar. Só fumava quando estava bebendo — e talvez fosse isso que eu quisesse fazer. O entorpecimento do álcool. Ver o que aquela garota, apenas dois anos mais velha que Carlie, teve de enfrentar para relatar o que lhe acontecera... era inacreditável. Mindi tinha o apoio dos pais e de sua fraternidade, mas, na única vez em que a vi desde que tudo começou, ela ainda parecia vazia. Jacqueline não tinha contado a seus pais. Depois da forma como haviam desaparecido no Dia de Ação de Graças, eu podia imaginar por quê. Quando chegamos ao prédio do dormitório, ela se virou para me encarar. Apesar dos pensamentos sombrios de trinta segundos atrás, sorri ao ver seu rosto adorável quase escondido pela touca de lã sob o capuz do casaco e por um cachecol felpudo que dava muitas voltas em seu pescoço, tão alto que cobria a boca. Toquei seu rosto com um dedo gelado, acariciando a linha do queixo e mergulhandoo no cachecol ridículo, revelando seus lábios carnudos. — Eu queria te ver antes de você voltar pra casa — falei. Ela me lembrou da apresentação solo que faria esta noite, do recital a que teria de comparecer na sexta-feira e da apresentação com o grupo na noite de sábado. E eu fiquei realmente convencido de que estudantes de música tinham muito mais obrigações fora de sala de aula do que alunos de outros cursos. — Mas posso ir até a sua casa amanhã à noite, se quiser. — ela sugeriu. Ah, eu queria, sim, com certeza. Assenti. — Quero. Seus olhos eram impossivelmente grandes e azuis, os lábios rosados imploravam para ser beijados. Quero beijar você, Jacqueline, pensei. Bem aqui, agora, na frente de Deus e todo mundo. Ela permitiria. Eu podia ver em seus olhos. Para nos salvar, puxei o cachecol de volta ao lugar de antes. — Você está parecendo quase uma múmia. Como se alguém tivesse sido interrompido enquanto enrolava o seu corpo numa mortalha. — Talvez eu tenha dado um soco no nariz dessa pessoa e a deixei sangrando no chão antes que ela pudesse passar em mim aquelas coisas nojentas que usam para embalsamar as múmias — ela respondeu, e eu ri. Quando Jacqueline se inclinou em minha direção, não pude resistir e beijei sua testa, inspirando negligentemente seu


perfume. Droga. — Me manda uma mensagem hoje à tarde, quando estiver livre — pedi, dando um passo para trás. Mais tarde, a mensagem chegou:

Pronto. Ordem de restrição solicitada. Ele não pode ficar a menos de trezentos metros de nós duas.

Excelente.

Indo para a apresentação solo. Me deseje boa sorte!

Você não precisa. Tem dedos mágicos, lembra?

Sempre bati à porta dos fundos da casa dos Heller antes de entrar. Charles e Cindy nunca foram de grandes demonstrações físicas de afeto, como meus pais eram, mas nunca se sabe. Eu não queria causar um trauma a todos nós interrompendo alguma coisa quando os filhos estavam fora e eles pensavam estar sozinhos. Heller atendeu à porta. — Landon, tudo bem? Landon. Eu suspirei. — Sim. Tudo ótimo. Queria falar com você sobre... a Jacqueline. As sobrancelhas de Charles se ergueram, e ele sorriu. — Entre. Estou terminando de preparar as provas finais para a próxima semana. Meus alunos vão me odiar quando terminarem. — E esfregou as mãos, entretido demais com a ideia. Os alunos da graduação quase sempre adoravam Heller. Os da pós-graduação achavam que ele era o capeta — mas seus orientandos eram muito bem preparados. Sentamos à mesa da cozinha com duas cervejas. — Duas coisas. Primeiro, preciso explicar meu relacionamento com ela... Ele se preparou. — Tudo bem.


— Eu te disse que a conheci antes de me tornar monitor da turma dela e que me apresentei como Lucas. O que não contei foi como nos conhecemos. — Respirei fundo. — Ela foi atacada quando saía de uma festa em uma das fraternidades do campus. Eu... impedi o ataque. Ela não quis registrar queixa. — Meu Deus. — Heller empurrou o notebook para o lado e apoiou os cotovelos sobre os cadernos espalhados na mesa. — Ela foi atacada por outro aluno? Assenti. — E por que ela não quis registrar a ocorrência? Essa pessoa é perigosa, sem dúvida... — Eu... ainda não acabei. Charles ficou em silêncio, sério. — Charles, eu impedi o ataque antes... antes que acontecesse algo que pudesse ser fisicamente provado. Não houve hematomas, nem... — rangi os dentes — penetração. O cara é membro da fraternidade do ex-namorado dela. Você sabe como esses caras podem ser... Ou não acreditam, ou atacam a reputação da vítima. Não consegui convencê-la a registrar a ocorrência e, sinceramente, não me esforcei muito. Então, talvez a culpa seja minha. Acho que eu tinha a esperança de que uma boa surra o fizesse parar. Errei. — Ah, meu Deus. Ele fez de novo. — As palavras eram uma afirmação, não uma pergunta. — É. Ele estuprou outra menina. — Mas que... — Ela registrou queixa, e a Jacqueline também. E eu também. — Ele foi expulso? — Os olhos de Charles ardiam. — Não quero esse cretininho perambulando pela minha universidade. Meus lábios se comprimiram. — O comentário no departamento de polícia do campus é que vão deixá-lo fazer as provas finais, desde que ele só venha ao campus pra isso e sempre acompanhado de um membro da fraternidade. — Isso é absurdo... — Inocente até que se prove o contrário, Charles. — Eu sei. Eu sei. — E suspirou profundamente, tão frustrado quanto eu estaria. — É que... eu penso na Carlie, e isso me deixa muito furioso... — Ele se deteve. Passei um dedo sobre a cicatriz em meu pulso esquerdo, e nenhum de nós falou por um instante.


— A Jacqueline e a outra aluna entraram com uma ordem de restrição temporária. Ele tem de ficar no mínimo a trezentos metros das duas, dentro ou fora do campus, e não pode tentar nenhum tipo de contato com elas. Charles assentiu, e soube que ele pensava a mesma coisa que eu: Não é o bastante. Mas já era alguma coisa. — Você disse que eram dois assuntos? — Heller lembrou. Suguei o piercing para dentro da boca, e ele percebeu. Era um sinal revelador. Sempre que eu estava nervoso, ficava incomodado com aquela coisa. Respirei fundo. — Eu quero saber se a... humm, a restrição de relacionamento entre monitor e aluna pode ser revogada a partir de agora. Queremos sair amanhã à noite. Depois da minha revisão. Depois disso, meus deveres de monitor terão meio que terminado... Ele ergueu uma sobrancelha. — Humm. Ela mora por aqui, ou vai deixar o campus durante as férias de inverno? — Vai deixar o campus. — Ah, bem. Sugiro que não se exponham completamente antes das provas finais. Mas um encontro discreto... — E sorriu para mim. — Acho que vocês dois são capazes disso. Ele achava que Jacqueline estava prestes a se tornar minha namorada... ou que já era. Além disso, parecia animado com a ideia. Não tive coragem de esclarecer a situação.

Jacqueline estava tensa durante o jantar. Fiz massa, o que pareceu impressioná-la, de novo — mas acho que ela estava nervosa com o que aconteceu na última vez. Não haveria uma repetição, mas eu não podia dizer isso a ela sem parecer um canalha. Ei, lembra como eu quis parar na última vez? Bom, dessa vez não vou parar até você cansar de gritar meu nome. É, melhor não. Depois de colocar os pratos na lavadora, eu a puxei para perto e fingi que aquilo era uma aula improvisada de defesa pessoal, segurei suas mãos e as imobilizei atrás das costas. — Como você se livraria de um agarrão como este, Jacqueline? Ela me disse, delicadamente, que não ia querer escapar. — Mas e se você quisesse? Como faria? — insisti. Ela fechou os olhos e deu respostas concretas, chute entre as pernas, pisão no pé.


— E se eu te beijasse contra sua vontade? Eu esperava que ela usasse algum recurso aprendido na aula, uma cabeçada, talvez. Mas não. Ela disse que me morderia, e, droga, quase perdi a cabeça. Eu a beijei com cuidado, sentindo uma ponta de esperança de que me mordesse. Em vez disso, ela passou a língua pela parte interna do meu lábio e pelo piercing, e eu a coloquei sobre a bancada, mais alta que eu. Envolvendo-me com os braços e as pernas, Jacqueline introduziu a língua em minha boca. Aprofundei o beijo, acariciei sua língua com a minha e mordi a ponta quando ela tentou retirá-la. — Puta que pariu — ela sussurrou. Eu a tirei da bancada e levei para a cama, pousando-a no centro do colchão. Eu a beijei até deixá-la sem ar. Tirei seu suéter e ela desabotoou minha camisa enquanto eu voltava a beijá-la. Quando toquei o zíper de seu jeans com um dedo, ela disse: — Sim. Eu disse a ela que não fazia aquilo com alguém importante havia muito tempo, e ela entendeu mal e deduziu que eu nunca tinha feito sexo com ninguém. Quase ri, mas não tinha graça. — Nunca com alguém de quem eu gostasse ou até que... conhecesse — corrigi. — Foram coisas de uma noite. Nada mais que isso. — Tive medo de que ela não gostasse disso. Três anos com Kennedy Moore. Certamente tinha transado com ele. Mas havia uma boa possibilidade de ele ter sido o único. — Nada mais, nunca? — Não foram tantas assim. — Eu sentia que devia cruzar os dedos às costas. — Teve mais antigamente, antes da faculdade, do que nos últimos três anos. — Isso era verdade. Debruçado sobre seu corpo, eu a encarei quando ela me disse que queria. Que me queria. — Por favor, não me peça para te mandar parar — concluiu. Ela não precisava se preocupar com isso. Minha única preocupação era ir devagar para satisfazê-la. Queria que ela se sentisse bonita, desejada e total, intensa e plenamente satisfeita. Puxei seu jeans para baixo, deixando meus olhos deslizarem por seu corpo adorável enquanto despia minha camisa e minha calça. Passei os dedos por sua pele, suavemente — tracei a curva dos seios logo acima do sutiã de renda, contornei o umbigo sobre o elástico da calcinha de renda cor-de-rosa. Ela era tão deliciosamente quente, me tocando, acariciando as linhas dos meus bíceps e ombros, as palmas abertas sobre meu


abdome, a língua umedecendo os lábios. Peguei uma camisinha na gaveta do criado-mudo, mas, quando me posicionei novamente sobre seu corpo, ela tremia. Eu sabia que não era de frio, apesar de ter sido essa sua explicação quando perguntei. Ela estava tensa, quase em pânico, e eu não sabia por quê. Rezei para ter mais a ver com sua inexperiência do que com o que tinha acontecido naquela noite. Inexperiência eu podia remediar. Medo que invocava ecos de uma coisa tão perturbadora quanto o que havia lhe acontecido... contra isso eu não sabia como lutar. Eu podia parar. Podia abraçá-la. Se o medo não diminuísse, era isso o que eu faria. Eu me sentei e puxei a coberta debaixo de seu corpo. Os lençóis eram frios, e o tremor se tornou mais intenso, até que puxei o edredom sobre nós dois, me deitei sobre ela e a beijei suavemente, aquecendo-a com meu calor. Senti os músculos dela relaxarem sob meus dedos, a respiração acelerada, mas mais profunda. Apoderei-me de sua boca lentamente, com doçura, minhas mãos segurando sua cabeça, levando-a de volta ao estado excitado em que estávamos quando saímos da cozinha. Ela se aconchegou sob meu corpo, confiante, relaxada. — Está melhor assim? — perguntei, e ela respondeu que sim. — Você sabe que pode dizer. Mas dessa vez não vou pedir que diga. Eu me inclinei para beijá-la de novo, e ela se abriu para mim, enroscou minha língua na dela, lambeu meu lábio, sugou levemente o piercing e enfiou os dedos em meus cabelos, segurando minha cabeça no ângulo exato em que me queria. Quando passou as unhas curtas pelas minhas costas, descendo das omoplatas até o quadril e deixando os dedos ultrapassarem a barreira do elástico da minha cueca boxer enquanto nos beijávamos, eu soube que ela estava pronta, mas mantive o ritmo lento, disposto a saciar cada desejo que ela tivesse. Abri o fecho e removi seu sutiã, tirei a calcinha, despi minha cueca e pus a camisinha, e não deixamos de nos beijar em nenhum momento. Com uma das mãos em seu quadril, beijei profundamente sua boca conforme a penetrava e me detive por um instante, esperando que nós dois sentíssemos completamente a conexão. Quente e apertada, ela era o encaixe perfeito. É claro que era. Beijei seu queixo, o rosto, a raiz do cabelo ao lado da orelha. — Menina linda — sussurrei, saindo de seu corpo e voltando em seguida. Afagando o interior de sua boca, disse sem palavras quanto a amava. Ela arfou, agarrou meu cabelo com mais força, chupou minha língua, enroscou uma perna na minha e plantou o outro pé no colchão, arqueando as costas para responder à minha penetração e imitar meus movimentos quando comecei a me mover dentro dela.


Eu estremeci sobre seu corpo — era bom, muito bom me mover com ela, deslizar a mão pela pele macia, apertar e acariciar. Quando segurei um seio e me inclinei para capturá-lo com a boca, ela sussurrou meu nome, se contorcendo e gemendo baixinho, precisando disso, precisando de mim. Rolei para o lado e me deitei de costas levando-a comigo, as mãos em sua cintura puxando-a para baixo enquanto eu me projetava para cima, guiando-a até ela tomar o controle e estabelecer o ritmo que desejava, os joelhos pressionados contra o meu quadril, os braços tremendo. Os cabelos dela caíam como uma cortina à nossa volta, minhas mãos subiam por suas coxas, e, sob as mechas sedosas e com perfume de madressilva, eu mapeava seus seios com a língua, lambia a curva inferior, o contorno externo, a linha entre eles. Jacqueline vibrou, um som tão profundo em sua garganta que o senti com o rosto pressionado contra seu peito. — Goza, Jacqueline — sussurrei. — Goza agora, baby. — Ela gemeu de novo, frustrada, como se não soubesse muito bem o que fazer, então rolei novamente e a deitei embaixo de mim, apoiei as mãos no colchão, uma de cada lado de sua cabeça, e a penetrei fundo. — Ah, meu Deus — ela arfou, os dedos agarrando os meus. — Lucas... — gemeu de olhos fechados. — Estou bem aqui — respondi, beijando-a enquanto ela ficava ainda mais apertada e era sacudida por espasmos. Eu a segui, e nunca me senti mais satisfeito em toda minha vida.

Não conseguia ver nada abaixo de seus ombros nus, porque o edredom cobria seu corpo encolhido — mas certamente a sentia. Quente e macia, aninhada em meus braços, nossas pernas entrelaçadas. Tentei me concentrar nas partes que podia ver — traços que eu conhecia tão bem quanto os padrões gravados em minha pele. Decidi que os olhos eram meus favoritos. E também eram os traços mais difíceis de capturar no papel. Impossível ilustrar as facetas de múltiplas tonalidades e o jeito como ela me olhava. Ou talvez a boca... Toquei seus lábios e ela me olhou, cheia de expectativa. Era tão injusto quanto eu a queria. Enquanto a beijava, abaixei a coberta até sua cintura. Os homens são visuais, como os artistas, por isso me curvei ao desejo de ver sua pele nua. Ela era linda.


— Quero desenhar você assim — falei, me esforçando para não rir quando, brincando, ela perguntou se o desenho iria para a parede. Eu nunca mais conseguiria dormir, se prendesse essa imagem à parede. Ou teria de mantê-la em minha cama, repetindo o que tínhamos acabado de fazer, ou usaria minha imaginação vívida para pensar nela ali. — Fiz vários desenhos de você que não estão na parede — contei. Ops. Ela quis vê-los, claro. Deslizei a ponta de um dedo por seu seio antes de puxá-la para mais perto. — Agora? — perguntei. Por favor, agora não. Ela cedeu, mas continuava curiosa, acho, e eu me debrucei sobre seu corpo e desapareci embaixo do edredom. Desenhei com beijos suaves uma linha que descia do meio do peito e progredia lentamente. Sua respiração foi ficando mais ofegante e os dedos agarraram meus cabelos, segurando-os com mais força quando ultrapassei o limite do umbigo e continuei descendo. Rolei para um lado, beijei a parte interna de uma coxa, sugando a pele e inalando seu cheiro doce, soprando como se quisesse mostrar o caminho que minha língua pretendia seguir. Em suas mãos pequeninas, meus cabelos escuros e compridos se transformaram em algo que nunca tinham sido — rédeas. Me conduza, Jacqueline. Mostre aonde quer que eu vá. E ela mostrou.

Vesti a cueca boxer antes de abrir a porta para Francis e alimentá-lo para que nos deixasse em paz. Peguei um copo de leite e um prato com alguns brownies e voltei ao quarto levemente iluminado. Ela segurava a coberta sobre os seios, o que era divertido e excitante, considerando as últimas horas. Depois de ligar a luminária sobre a mesa, peguei meu caderno de desenhos e voltei para a cama com ela, pedindo a Jacqueline que se reclinasse sobre o meu peito. Seu quadril nu pressionava o que muito em breve seria uma sólida e pulsante ereção. Por ora, eu queria suspirar de contentamento, ou grunhir, ou fazer o barulho que um homem faz quando todas as necessidades que pode ter são saciadas. Jacqueline devorara um pedaço de brownie enquanto eu mostrava os desenhos que fizera durante o semestre — prédios do campus com arquitetura notável, projetos de


mecânica, paisagens e pessoas que considerava interessantes. Quando chegamos ao desenho que fiz dela naquele dia chuvoso, Jacqueline havia comido dois pedaços de brownie e começava o terceiro. Olhei para o teto. Valeu, vô. Agora olha para o outro lado. Perguntei se ela se incomodava por saber que eu a observava antes de ela me conhecer, mas Jacqueline parecia pensar que era só mais uma entre as desconhecidas interessantes que eu tinha retratado. — Não sei se isso me faz sentir melhor ou pior — confessei. Ela se reclinou sobre o meu braço. — Não estou mais brava por você não ter me contado que era Landon. Eu só fiquei brava porque achei que você estava jogando comigo, mas era o oposto disso. — Seus dedos macios tocaram meu rosto e o edredom escorregou para baixo. — Eu nunca poderia ter medo de você — ela sussurrou. Transferi o prato para o criado-mudo e a virei de frente para mim, acomodando seu corpo sobre o meu. Enquanto a tocava, a beijava e sugava seus seios, ela deslizava os dedos mágicos por meus cabelos e sobre minha pele, despertando completamente meu corpo. — Quer que eu pegue, hum... — ela sussurrou, e eu assenti. Jacqueline se inclinou para pegar uma camisinha na gaveta do criado-mudo. — Eu posso... ou isso é muito...? — Meu Deus, pode... por favor. — Nunca antes uma garota tinha posto uma camisinha em mim. Quando seus dedos frios e delicados começaram a desenrolar o preservativo sobre meu membro, tive a sensação de que eu era o inexperiente. E, ah, meu Deus, por mim tudo bem.


23

LANDON Arrumar um trabalho de meio período era mais problemático do que eu tinha imaginado que seria. Em uma cidade pequena, com uma famosa condenação por agressão em um passado não muito distante, ninguém se animava com a ideia de me incluir na folha de pagamento. No fundo do poço, fui me candidatar a uma vaga no último restaurante fast-food onde gostaria de trabalhar, e ainda ouvi: — Pode preencher a ficha, mas não estamos contratando agora. Era quase verão, a época mais movimentada do ano para todos os negócios nessa cidade litorânea. Não estavam contratando meu rabo. Fiquei olhando para a camisa de manga curta e a gravata de poliéster do gerente enquanto pegava da mão dele a ficha que levaria quinze minutos para preencher. Para nada. — Você não é o filho do Ray? Neto do Edmond? Eu me virei e me deparei com uma das antigas figuras extravagantes da cidade olhando para mim. Não eram poucos por ali. Esse era mais baixo e mais largo do que eu, vestia macacão de lona vermelha muito parecido com um uniforme da prisão, exceto pelo “Hendrickson Electric & AC” bordado no peito. Ele esvaziou na lata de lixo a bandeja de papéis amassados e caixas e olhou para mim outra vez. — Sim, senhor. — Estendi a mão. — Landon Maxfield. Ele apertou minha mão com uma força impressionante. — W. W. Hendrickson — disse, abreviando as iniciais, dabiu dabiu por causa do sotaque local. — Procurando emprego? Não vai querer trabalhar neste lugar péssimo. — E olhou para o gerente, que ficou vermelho. — Nada pessoal, Billy. Tive a sensação de que Bill Zuckerman não era chamado de “Billy” havia pelo menos vinte anos. Ele pigarreou e tentou não franzir o cenho, mas falhou. — Ah, tudo bem, sr. Hendrickson. — Humpf — Hendrickson bufou. — Vamos lá fora um minuto, Landon. Converse


comigo. — Ele gesticulou e eu o segui. — Pensei que trabalhasse no barco com seu pai. — Seguimos até sua caminhonete, e ele apoiou um braço na lateral da carroceria. Assenti. — Sim, senhor. Mas planejo ir para a faculdade em pouco mais de um ano, e vou precisar de uma experiência de trabalho como referência. — Quer sair da cidade como seu pai, não é? — ele perguntou, mas não pude detectar nenhuma maldade em seu tom. — Sim, senhor. Quero estudar engenharia. As sobrancelhas cheias se ergueram. — Ah, essa é uma escolha sensata de curso. Nunca entendi como seu pai teve de estudar tanto para fazer uma coisa que só distorce a verdade. Comprimi os lábios, ciente de que era inútil tentar explicar os vários cursos que meu pai fizera na área de economia para homens como o sr. Hendrickson. — Vou direto ao ponto. Tô precisando de um novo ajudante. Antes de agarrar a oportunidade, saiba que é bem provável que você leve um ou dois choques antes de aprender que fios evitar. E vou mandá-lo a porões escuros e quentes onde você vai suar em bicas, enfiar fibra de vidro nos joelhos e no traseiro, e ainda é capaz de sentir um inseto ou outro rastejando no seu pé. — Ele riu, um som quase silencioso que saiu pelo nariz. — Tive um assistente que caiu do forro da casa de um cliente por causa de um gambá. Aterrissou no meio da sala, felizmente. Felizmente? — Hum, certo. — Eu não sabia o que dizer ou perguntar. — O salário é um pouco mais do que o mínimo. Nada de bebida ou cigarro, e não se meta com filhas de clientes. E tô dizendo isso porque você é parecido com seu pai e tal, e eu já vivi isso antes. Meu rosto ficou quente. — Imagino que você sabe tudo sobre computadores e essas coisas? — Assenti, e ele continuou: — Muito bom. Preciso de ajuda com os livros contábeis. Tenho que entrar no século vinte e um antes que ele acabe. O que você acha? Arrumei um emprego, pensei.

— Bem, sr. Maxfield, aqui estamos nós... o começo do seu último ano. Devo admitir,


nunca pensei que você chegaria tão longe. Olhei para a diretora e pensei: Não brinca. Sobretudo com você fazendo tudo que estava ao seu alcance para me impedir. Ainda assim, o fato de ela ter tido a ousadia de me chamar à sua sala só para dizer isso não podia significar nada de bom. Ela acreditava estar acima de tudo e de todos, e, dentro dos limites daquele colégio, tinha razão. Nove meses, eu disse a mim mesmo. Nove meses e eu estaria fora dali. Não ia parar nem para sacudir a poeira dos sapatos. Então eu não disse nada. Apenas respondi aos seus olhos de contas com um uma expressão dura. Ela examinou uma folha com meus horários. — Estou vendo que se matriculou em cálculo e física. — E me olhou por cima dos óculos equilibrados sobre a ponta do nariz. — Que... ambicioso de sua parte. — Com os lábios comprimidos, as sobrancelhas meio arqueadas, as pálpebras baixas, o conjunto todo demonstrava ceticismo a respeito de minha capacidade da mudança que tivera início nas últimas semanas do ano anterior. Eu queria arrancar aqueles olhos e o ar condescendente de sua cara. Em vez de responder, repeti meu mantra em silêncio — os dogmas que aprendi em meu primeiro mês de artes marciais na primavera passada: “Cortesia, integridade, perseverança, autocontrole, espírito indomável”. Era comum as funções associadas a essas palavras se fundirem, porque cada uma delas permeava as outras. Se eu falhasse em uma, poderia falhar em todas. De que serviria a integridade sem o autocontrole? Então ali estava eu, esperando Ingram acabar comigo. Ela não ficou satisfeita com meu silêncio — isso era evidente. Seus lábios se contorceram. — Soube que uma de nossas melhores alunas o ajudou a conseguir as médias na última primavera. Ah. Pearl. Com exceção do dia em que ela me examinou para ver se eu tinha um pulmão perfurado, Pearl Frank e eu nunca havíamos conversado longe de Melody, ou além de coisas como “Pode passar isso para frente?” na sala de aula. Quase não respondi quando ela tocou meu braço na biblioteca na primavera passada e perguntou: — Landon, você tá bem? Faltavam seis semanas de aula, e durante esse tempo eu tinha de aprender tudo o que havia ignorado nas trinta semanas anteriores, mais a matéria nova. Eu estava desesperado. Mas não queria fazer essa confissão para a melhor amiga de Melody, que


também era a pessoa mais inteligente da minha turma. Pisquei e girei os ombros, estalando o pescoço. — Sim. Tô bem. Havia passado a hora inteira na sala de estudo em uma posição muito desconfortável, com os olhos fixos em um capítulo do livro de química. Com a testa franzida, ela apontou para o livro aberto. — Por que você tá olhando isso? Vimos a Lei de Dalton seis semanas atrás. Fechei o livro com raiva e me levantei. — É, bom, não entendi naquela vez e não entendo agora. — Suavizei a expressão e dei de ombros. — Não importa. Pouca coisa não era registrada pelos olhos de Pearl. — Mas você tá estudando isso agora porque... Engoli. Não queria falar em voz alta que estava fazendo um esforço de última hora para mudar meu futuro. E que tinha medo de não conseguir. — Se quiser, posso te mandar minhas anotações das últimas seis semanas, e você pode me fazer perguntas. — Seus olhos azuis propunham um desafio, não sugeriam pena. Assenti. — Tudo bem. — Não tenha medo de pedir ajuda aos professores também. Eles são pessoas comuns, sabe como é. — Arqueei uma sobrancelha, e ela sorriu. — Bom, a maioria. Ao longo das semanas seguintes, ela me salvou de repetir o penúltimo ano do colégio, não só em química, mas em literatura e pré-cálculo. Graças à ajuda de Pearl, meu cérebro acordou de uma hibernação de três anos. — Pearl Frank? — A sra. Ingram continuou, como se eu não me lembrasse da ajuda que recebi ou de quem a dera. Eu não fazia ideia de como ela sabia, mas não ia perguntar. — Sim — respondi. Ela me odiava agora. Nos primeiros meses de taekwondo, aprendi a reconhecer os sinais que alguém que progredia da irritação à fúria. Reconhecer a medida do risco de alguém perder a cabeça a qualquer segundo era necessário para a defesa, afinal. Suas indicações físicas eram pequenas, mas estavam lá. — Soube que você foi preso na última primavera, por agressão. Um recurso conseguiu trocar a sentença por um período de liberdade vigiada, felizmente. — Felizmente não era o que ela queria dizer sobre isso.


Eu não disse nada. Pearl uma vez me falou que Ingram era o tipo de líder que acreditava em adição por subtração. — É meio genialidade, meio trapaça. Eles tiram os alunos com as piores notas e funcionários com histórico ruim, e assim elevam a nota geral ou a classificação da instituição. Por fim, Ingram perdeu a paciência e me encarou, furiosa. — Por que não responde, sr. Maxfield? Uma sobrancelha minha se ergueu. — Você não fez nenhuma pergunta. Os olhos dela queimavam. — Vou ser bem clara. Não sei qual é o seu joguinho, ou qual é sua associação com a srta. Frank, mas não quero que ela perca um tempo precioso com as suas bobagens. Não acredito nem por dois segundos que você tenha a ética de trabalho ou de vida essenciais e as habilidades interpessoais necessárias para representar este colégio e seus padrões educacionais exemplares. Mordi o lábio para conter o impulso de corrigi-la. De acordo com o Estado, seu colégio estava bem longe de ser exemplar. Deixei de ouvir seu discurso sobre minha falta de integridade, capacidade de pensamento crítico e respeito por autoridade. Engraçado como pessoas que criticam a falta de respeito das outras em geral não estão dispostas a respeitar em troca. Quando ela parou, meus ouvidos zuniam. — Estamos entendidos, rapaz? — Era claro que ela esperava uma resposta para mais do que essa pergunta, ou uma reação inflamada. Mas estava prestes a se decepcionar. — Acho que sim. Terminamos aqui, sra. Ingram? — Eu me levantei, projetando uma larga sombra sobre sua mesa da janela voltada para leste, atrás de mim. — Tenho aula agora. A menos que queira fazer com que eu me atrase no primeiro dia. Em tempo, o primeiro sinal soou. Ela ficou de pé, mas ainda tinha de esticar o pescoço para olhar para mim. Durante o verão eu alcançara a altura imponente de meu pai, e ela não se importava de me ver trinta centímetros acima de sua cabeça. Enfiei a mão no bolso da frente e desloquei o peso do corpo para um lado — o mais próximo de um cessar-fogo que eu podia oferecer. Eu não tinha mais catorze anos, e essa mulher não arruinaria as minhas chances de sair dessa cidade e ir para a faculdade.


— Você está dispensado. Mas vou ficar de olho. Ãhã, pensei, virando e saindo da sala sem responder. Eu me perguntei por que diabos alguém como ela seguia carreira na área de educação, mas não ia perguntar. Nem todo mundo é lógico. Nem tudo faz sentido no final. Às vezes você tem de esquecer explicações ou desculpas e deixar pessoas e lugares para trás, porque, do contrário, eles arrastam você para baixo.

LUCAS Sábado de manhã, fazia trinta e poucas horas que eu não via Jacqueline. O sargento Ellsworth e eu nos preparamos no vestiário para o último módulo. Nós dois não devíamos aparecer antes da metade da aula, porque hoje teríamos um só propósito: seríamos “agressores”, e para isso tínhamos de manter distância emocional das “vítimas”. Quando entramos na sala, totalmente equipados, meus olhos buscaram Jacqueline de imediato. Como as outras, ela também usava equipamento de proteção completo. Elas pareciam uma tribo de minilutadoras de sumô. Ela levantou a cabeça e me viu, então baixou rapidamente os olhos e mordeu o lábio, e eu me vi dominado por uma recordação gráfica das horas que passamos em minha cama. A julgar por seu sorriso tímido, ela lembrava a mesma coisa. Distância emocional. Certo. Eu desejei, tarde demais, ter dito a Jacqueline para não me enfrentar diretamente. Podíamos praticar defesas juntos, mas isso aqui era diferente. Como atacantes, Ellsworth e eu faríamos comentários audíveis. Procuraríamos oportunidades para atacar. Não soltaríamos a “vítima” a menos que um golpe de defesa fosse aplicado corretamente — e ambos tínhamos sido treinados para julgar. Essa parte da aula era desalentadora para mim. Fingir ser um predador sexual sempre me fez querer um banho escaldante depois. Assim que as mulheres terminassem de revisar movimentos com Watts, estariam prontas para fazer o que Jacqueline me contou que sua amiga chamava de “chutar sacos com vontade”. — Ela só tá animada porque pode treinar sem machucar vocês, por causa das proteções — ela comentou enquanto nos vestíamos na quinta-feira, antes de eu levá-la


de volta ao dormitório. — Ãhã — respondi em um tom frio, e ela riu. Enquanto colocava as luvas, Jacqueline desviou os olhos dos meus e falou: — A Erin foi a primeira pessoa para quem contei. — Sua voz era muito suave. — Eu queria ter contado antes. Segurei seu queixo e a puxei para perto. — Não existe jeito certo ou errado de ser uma sobrevivente, Jacqueline. Não há roteiro. — Ela engoliu e assentiu, mas não estava totalmente convencida, por causa de Mindi. — Você sobreviveu, ela também vai. Fui o primeiro a entrar em ação. Quando me aproximei do tatame, senti os olhos de Jacqueline em mim e rezei para não termos de fazer aquilo juntos. Vicky foi a primeira voluntária, e ela chutou meu traseiro da melhor maneira possível. Eu esperava que Erin fosse a próxima, mas ela continuou ao lado de Jacqueline, que não parecia ter pressa para participar. Durante as participações de Ellsworth no tatame, eu as vi incentivando as colegas de turma, Erin gritando sugestões a plenos pulmões: — Cabeçada! CORTADOR DE GRAMA! Chuta! COM MAIS FORÇA! Enquanto isso, Jacqueline aplaudia e assobiava. Por fim, Erin apertou a mão de Jacqueline e se ofereceu para enfrentar Ellsworth, deixando para trás apenas Jacqueline e uma mulher extremamente tímida que trabalhava no Centro de Saúde. Ellsworth olhou para Erin e resmungou: — Se ela chutar minhas bolas para dentro da garganta, você vai me pagar, cara. — E se levantou. — Não sei se confio no equipamento de proteção com ela. Se a “vítima” aplicasse um bom golpe, nós de fato não o sentiríamos. Era o que todos esperavam. No treinamento, fomos orientados a encontrar nosso ator interior. Mesmo assim, quando Erin acertou Ellsworth com um chute lateral perfeito e ele caiu, fiquei um pouco preocupado. Onze vozes gritaram: — CORRA! Mas Erin também tinha um ator interior. Depois de se levantar de cima do peito dele, ela girou e o chutou mais duas vezes antes de correr para a zona de segurança, onde ficou pulando como se tivesse acabado de ganhar o campeonato dos pesos-pesados. Ellsworth ficou de pé e levantou o polegar para mim. Ufa. Fui para o tatame e esperei. Gail, do Centro de Saúde, se adiantou, tão nervosa que estava tremendo. Nesse ponto, algumas pessoas poderiam se sentir tentadas a dizer que ela não era obrigada a fazer aquilo. Mas Gail chegou até ali. Era hora de provar para ela


mesma que tinha aprendido alguma coisa. Watts instruiu em voz baixa primeiro, incentivando-a a bater com força. Fui devagar com ela, mas, quando Gail acertou socos e chutes e foi incentivada pelas colegas, passou a chutar mais forte, bater mais forte, gritar “não” e “sai de perto” mais alto. Ela chorava e sorria quando terminamos, cercada e parabenizada pelas outras. Para mim, nada se comparava a observar Jacqueline. Sem direção, ela executou uma série de movimentos e, acertando ou não, os variava. Em certo momento ela parecia presa em um abraço de urso frontal, até Erin gritar “NO SACO!”, alto o bastante para ser ouvida no estado vizinho, e Jacqueline levantou o joelho com força. Ellsworth caiu. Ela correu para a zona de segurança, onde Erin a recebeu com um abraço entusiasmado. Eu estava muito orgulhoso dela — e esperava do fundo do coração que ela nunca precisasse usar nada do que tinha aprendido ali.

Domingo à tarde, Jacqueline e eu finalmente fizemos um intervalo nos estudos para as provas finais. Enchi uma garrafa térmica com café e fomos para o lago. Eu queria desenhar os remadores nos caiaques, que Jacqueline dizia serem loucos para se aventurarem no lago com aquela temperatura. Ela se encolheu junto a mim no banco, coberta da cabeça aos pés e ainda tremendo. Eu usava meu moletom com capuz, mas estava sem luvas e sem a jaqueta de couro, porque não precisava dela. Eu a chamei de molenga por reclamar tanto do frio, e ela me deu um soco no ombro. Antecipei o soco e poderia tê-lo bloqueado, mas não fiz nada. — Nossa, tudo bem, eu retiro o que disse. Você é durona. Totalmente fodona. — E a puxei para perto para esquentá-la. — Sei dar um ótimo soco no nariz. — Suas palavras eram quase inaudíveis, sufocadas em meu peito. — É verdade. — Ergui seu rosto. — Estou até com um pouco de medo de você. — Minhas palavras de brincadeira eram mais verdadeiras do que ela imaginava. — Não quero que você sinta medo de mim. — Suas palavras foram seguidas por nuvens de ar quente, e eu a beijei até seu nariz esquentar em minha bochecha. Voltamos ao meu apartamento, onde ela me lembrou do pedido que eu fizera havia semanas, para que ela deixasse alguma coisa para eu esperar. — Então, você esteve... esperando por isso? — perguntou.


Suas roupas estavam amassadas e tortas, mas não fomos além das preliminares quentes no sofá com Francis na plateia. Se eu tinha esperado suas mãos e sua boca em mim? Ah... claro. Olhando para o meu lábio — cujo piercing eu havia sugado para dentro da boca —, ela sorriu lentamente. E me beijou antes de escorregar do meu colo e se ajoelhar no chão entre minhas pernas. Enquanto a observava desabotoar e abrir o zíper da minha calça jeans, eu estava certo de que era um sonho. Não queria me mexer e correr o risco de acordar. Mas não pude deixar de entrelaçar os dedos em seus cabelos macios para, ao mesmo tempo, tocá-la e enxergar tudo que ela fazia. Quando ela deslizou a ponta da língua da base até a cabeça do meu pau, fechei os olhos só por um instante, me perdendo em êxtase. Ela se inclinou e me mordiscou de leve, me acariciando com os dedos e depois com a língua. Eu gemi, o que aparentemente foi a resposta exata. Quando a boca morna me tragou — santa mãe de Deus —, minha cabeça caiu para trás no sofá e fechei os olhos de novo, os dedos ainda nos cabelos dela, a base das mãos sobre a face. Então ela murmurou, uma nota longa e baixa. — Caralho, Jacqueline — arfei. Dessa vez, ela não aceitou que eu a fizesse parar.

Ela me mandou uma mensagem na quarta-feira:

Prova final de economia: GABARITEI.

Tudo por minha causa, certo?

Não, por causa daquele cara chamado Landon.

Ri alto e ganhei uma sobrancelha erguida de Eve, com quem eu estava trabalhando em turno duplo. Gwen e Ron tinham duas provas finais cada um hoje, e nenhum de nós tinha prova, então aceitamos trabalhar praticamente o dia inteiro com nosso gerente. — Preciso de alguma coisa quente e doce. — Reconheci a voz de Joseph, fazendo seu


pedido a Eve. Ele esfregou as mãos nas luvas sem dedos, tentando esquentá-las. O casaco era da universidade e tinha seu nome. O gorro, que tampava as orelhas, tinha nosso mascote estampado. Ela o encarou. — Preciso do nome da bebida que deseja, senhor. Sua voz destilava veneno. Isso seria engraçado. Ou muito doloroso. De qualquer maneira, eu não podia interferir ou interromper. Joseph raramente ia à cafeteria, vivia dizendo que tudo era muito caro e que havia um marketing exagerado. Ele olhou para Eve do outro lado do balcão. — Sugestões? Não conheço todas essas bebidas chiques que vocês servem. Como eu disse, quero alguma coisa quente e doce. Só não sei se é você quem vai me dar. — Sério? É essa a sua cantada? Suas sobrancelhas se ergueram e sua boca se contorceu. — Meu bem, se você tá esperando uma cantada, não é de mim que vai receber. Você tá muito, muito longe do meu tipo. Eve reagiu furiosa. — Ah, então “quero alguma coisa quente e doce” não significa “nada”? — Hum, não. — Os olhos dele eram congelantes. — Significa que eu gostaria de uma bebida quente, ou seja, ao contrário de fria, e doce, por exemplo, com calda. Que droga. Tem um colega ou alguém para quem eu possa pedir? — Levantou a cabeça e me viu, os lábios comprimidos. — Lucas, droga, eu quero alguma coisa... — ele olhou para Eve — quente e doce. — Que tal caramelo mocha? Sorrindo, ele respondeu: — Nossa, sim... parece perfeito. — Seu sorriso desapareceu quando olhou novamente para Eve, embora ainda falasse comigo. — E obrigado por seu profissionalismo. Preparei a bebida enquanto ele pagava para Eve, em silêncio. — Vejo você na semana que vem no show do Air Review — disse ao pegar o copo. — A irmã do Elliott vem para cá na semana seguinte, aliás. Se quiser jantar com a gente, posso exibir meu amigo inteligente. — É claro — eu ri. — Parece ótimo, Joseph. Quando ele foi embora, Eve me olhou carrancuda e falou sem nenhuma entonação: — Ele é gay, né? — É.


— E você ficou aí parado e me deixou fazer papel de idiota... — Eve, nem tudo tem a ver com você. — Bati com o dedo em seu nariz para amenizar as palavras ríspidas. — Acho que você devia prestar atenção nisso. — Virei para lavar copos de liquidificador antes de a próxima leva de clientes malucos com as provas finais invadir a loja. Ela suspirou, mas não respondeu. Meu telefone vibrou anunciando mais uma mensagem de Jacqueline, que tinha mais três provas até sábado, enquanto eu só teria mais uma.

Chinês no sábado? Preciso de alguma coisa quente e apimentada para comemorar o fim do semestre. Kung Pao, talvez? ;)

Depois da conversa entre Joseph e Eve, eu ri alto de novo. Jacqueline e eu tínhamos planos de comemorar no quarto dela, depois de Erin partir para as férias de inverno.

Acho que posso dar um jeito no quente e apimentado.

*me abanando* Sim, por favor.

— Então, como você começou a tocar contrabaixo? — perguntei, pescando um talo de brócolis da embalagem. Estávamos sentados lado a lado no chão do quarto de Jacqueline, de costas para a cama dela. — Por causa do futebol — ela respondeu. Eu fiz uma careta, a imaginando de uniforme de futebol, e ela riu. — Um dos contrabaixistas da orquestra quebrou a omoplata em uma partida de futebol, e nossa professora de música implorou para um dos violinistas assumir a posição. Eu me ofereci. O fato de minha mãe não ter ficado feliz com isso foi um bônus. — Então, o relacionamento com a sua mãe não é muito bom. É isso? Ela suspirou. — Na verdade, acabei de contar a ela... sobre o Buck. Sobre tudo que aconteceu. E


ela chorou. Minha mãe nunca chora. Queria vir pra cá. — Uma ruga marcou sua testa. — Eu disse a ela que estava bem, que era forte, e me dei conta de que sou mesmo. — Jacqueline reclinou a cabeça para trás na cama e virou o rosto para mim. — Por causa da Erin... e por sua causa. Minha mente sugeriu que a característica que ela elogiava não era de um bad boy. Fiz um movimento como se tocasse um chapéu imaginário. — É um prazer servi-la, madame. Ela sorriu. — Minha mãe vai marcar uma consulta com um terapeuta pra mim. A princípio eu concordei porque seria alguma coisa para ela fazer... um jeito de ajudar. Mas, quando pensei no assunto, fiquei contente. Quero falar com alguém sobre o que aconteceu. Alguém que possa me ajudar a lidar com isso. Meu rosto estava a centímetros do dela, e eu poderia jurar que ela parecia triste por mim. Talvez por eu não ter mãe. — Isso é incrível. Fico contente por sua mãe estar do seu lado. Não era esse clima que eu queria para aquela noite. Eu tinha pouco tempo com ela. — E você? Como decidiu estudar engenharia? Quer dizer, você poderia ter cursado arte, provavelmente. Dei de ombros. — Posso desenhar sempre que quiser. Isso me acalma, sempre me acalmou. Mas não quero desenhar por ninguém além de mim. Quanto à arte no geral, não sou pintor, escultor, nem nada disso. Direcionar meus interesses para engenharia foi difícil. Eu queria fazer tudo. Ela sorriu. — Então como você escolheu? — Bom, habilidade e oportunidade. Eu não tinha considerado uma especialidade ligada à área médica. Minha ideia era projetar carros ou inventar coisas futuristas, como aerobarcos. Mas a oportunidade surgiu quando o dr. Aziz me convidou para participar do projeto, e eu aceitei. Rolei a tela do meu iPod para achar a playlist que eu queria que ela ouvisse e ofereci o fone de ouvido. Não me surpreendi ao ver que ela reagia emocionalmente à música como ninguém — uma variedade de sentimentos desprotegidos se refletia em seus olhos, e ela me olhava enquanto ouvia. Inclinei-me para beijá-la e depois a peguei nos braços, a pus na cama e me deitei ao lado dela, um braço sob sua cabeça, o outro sobre seu ventre.


Quando passei um dedo por sua orelha, ela tirou um fone e me deu. Rolei a playlist até uma música que eu tinha conhecido pouco antes de fazer minha última tatuagem — quatro linhas agora escritas na lateral do meu corpo, um poema composto pela minha mãe, artista, para o homem analítico que a amava. A canção havia desencadeado a lembrança de suas palavras, e, quando voltei para casa depois de ouvi-la, fui procurar seu caderno de poesias no sótão. Copiei os versos e os levei para Arianna, e, dois anos atrás, ela escreveu o poema na tela do meu corpo.

Amor não é a ausência de lógica mas a lógica examinada e recalculada aquecida e encurvada para se encaixar dentro dos contornos do coração. Nossas mãos começaram a deslizar — meus dedos escorregando por baixo de sua blusa enquanto eu a beijava. Ela me avisou que Erin poderia voltar a qualquer momento — aparentemente, sua colega de quarto ainda não havia partido para as férias de inverno. Alguma coisa a ver com um ex-namorado que tentava reconquistá-la. — Por que eles terminaram? — perguntei. Segurei seu seio, prestes a procurar o fecho do sutiã — na frente ou nas costas dessa vez? — Por minha causa — ela disse, e eu me detive. — Não desse jeito que você está pensando. O Chaz era... o melhor amigo do Buck. — Seu corpo todo se enrijeceu simplesmente por pronunciar o nome dele, e eu a puxei mais para perto. Buck já devia ter ido embora, e provavelmente não voltaria no próximo semestre — não se Charles se envolvesse nisso. Ele conhecia alguém no comitê disciplinar, e eu tinha certeza de que de alguma maneira recorreria a esse conhecido. — Não cheguei a te contar sobre o que aconteceu na escada de incêndio, né? — Jacqueline perguntou. Eu fiquei tão tenso quanto ela. — Não. Ela engoliu em seco. — Há um mês mais ou menos, todas as máquinas de lavar do meu andar estavam ocupadas, então fui ao segundo para dar uma olhada se tinha alguma livre. — A voz dela


era tão baixa que eu não podia mudar de posição sem deixar de ouvi-la. — Quando eu estava voltando pra cá, o Buck me pegou na escada. Ele ameaçou... — E engoliu de novo com dificuldade, deixando a lacuna para eu preencher. — Então eu disse para irmos ao meu quarto. Pensei que, se conseguisse levá-lo até o corredor, as pessoas que estivessem por lá o veriam e me ouviriam mandando ele ir embora, e ele teria que ir. Eu a segurava com força demais. Eu me dei conta, mas meus músculos haviam solidificado. Eu não conseguia soltá-la. — Tinha cinco pessoas no corredor. Eu disse para ele ir embora. Quando percebeu o que eu tinha feito, ele ficou furioso e deu a entender que tínhamos transado na escadaria. E, pela cara de todos que estavam no corredor... pelas histórias que circularam depois... todo mundo acreditou nele. Ele não entrou no quarto de Jacqueline. Mas pôs as mãos nela. E a amedrontou. De novo. Senti a fúria protetora e a impotência devastadora crescendo, e eu não sabia o que fazer com isso. Eu não queria machucar Jacqueline, tampouco assustá-la, mas não sabia o que fazer com a raiva que borbulhava dentro de mim e ameaçava transbordar. Eu a apertei contra a cama e a beijei, pressionando um joelho entre suas pernas. Senti sua resistência, e meu cérebro gritou: MAS QUE MERDA VOCÊ TÁ FAZENDO ? Tentei recuar, mas as mãos dela, presas entre nós, agarraram e seguraram meu cabelo com força, e ela abriu a boca, me sugando para dentro e me beijando de volta com a mesma intensidade. Eu estremeci, amando-a, amando-a tão intensamente que mal podia respirar. Imaginando se era essa a sensação de amar alguém, ou se eu era apenas um atormentado incapaz de amar do jeito certo, porque tudo o que eu sentia era uma necessidade insana, frustrada, um buraco negro na alma. Eu estava me desfazendo nas mãos dela, desmoronando. Eu tinha que parar. Isso tinha que parar. Eu havia dado o que ela queria, o que precisava — e estava despedaçado a seus pés. Como ela podia não ver? Eu não conseguia mais fazer esse jogo. Tinha de salvar o pouco que restava de mim. Quis despi-la e possuí-la uma última vez. Abrir suas pernas e adorá-la. Fazê-la gritar meu nome e estremecer embaixo de mim. Queria fingir, mais uma noite, que podia pertencer a ela. Que ela podia ser minha. Deitei sobre ela, a beijei, e soube que não ia acontecer. Sua colega de quarto voltaria a qualquer momento, e era melhor assim. Eu não tinha como preencher o espaço que eu queria que ela preenchesse. Diminuímos o ritmo, deitando lado a lado, e comecei a compor minhas falas derradeiras.


Então ela perguntou sobre os Heller e sobre os meus pais, e eu me deitei de costas e respondi às perguntas. E aí... — Como era a sua mãe? — Jacqueline... — falei, e Erin pôs a chave na fechadura. Eu me levantei enquanto ela entrava, e Jacqueline também ficou de pé. Erin tentou dar a impressão de que tinha roupa para lavar, mas eu disse: — Eu já estava de saída. — E amarrei as botas, lamentando não ter escolhido as velhas botas de caubói, porque assim poderia simplesmente enfiá-las nos pés. — Nos vemos amanhã? — Jacqueline disse da porta, os braços envolvendo o próprio corpo. Fechei o zíper da jaqueta e respondi: — As férias de inverno já começaram oficialmente. Acho que é melhor aproveitar a ocasião para nos afastarmos um pouco também. Ela se encolheu, surpresa. Depois me perguntou o motivo, e eu me tornei racional, sem nenhuma emoção. Ela estava saindo da cidade, eu também, pelo menos na semana de Natal. Jacqueline ainda tinha de fazer as malas, e Charles precisava de ajuda com as notas — o que era mentira, mas ela não tinha como verificar, não que eu soubesse. Disse a ela para me avisar quando voltasse à cidade e me abaixei para beijá-la — um beijo rápido, vazio. Nada do que ela merecia. Nada do que eu sentia. Eu me despedi e fui embora.


24

LANDON Eu sabia que não era o único aluno no colégio que não tinha computador, mas era assim que eu me sentia. Normalmente usava o da biblioteca, ou aproveitava o laboratório de programação, ou a máquina da Hendrickson’s. No entanto, naquele dia eu não tinha laboratório nem ia trabalhar, por isso estava usando o computador pré-histórico da Oficina Wynn’s. — Você devia comprar um notebook barato — Boyce comentou. — Você trabalha pra caralho, sei que tem grana, e tenho certeza que não está mais fumando nem injetando o que ganha. Depois de digitar o endereço do site onde eu esperava que minhas notas finalmente estivessem disponíveis, fiquei esperando o computador carregar para digitar minha senha. Boyce observava o pai pela divisória de vidro sujo e cheio de digitais de graxa, pedaços de fita adesiva, manchas de sabe-se lá o quê e décadas de ninguém pensando em comprar limpa-vidros. — Tô economizando pra faculdade. — Era a desculpa que eu repetia todas as vezes que me recusava a gastar dinheiro com alguma coisa. — E eu nunca injetei nada. — Sei, sei. — Ele apertou meu bíceps. — Seus braços grandes e duros são reservados apenas para agulhas de tatuagem. Eu o empurrei. — Cala a boca, cara... Notas quase inalcançáveis no exame de admissão eram minha única esperança de entrar na faculdade com as notas patéticas que eu tinha no colégio. Nem mesmo nota 8 seria suficiente este ano. Usei todos os testes gratuitos online que encontrei e todos os guias de estudos da biblioteca nos últimos oito ou nove meses. Se minhas notas nesse maldito exame não fossem ridiculamente altas, eu estaria ferrado, e não haveria carta que Heller pudesse tirar da manga para mudar isso. Apertei “enter”, a tela piscou várias vezes, e então ali estavam: os números que


determinavam meu futuro. Eu me recostei na cadeira e fiquei olhando, meu coração batendo muito depressa. Eu tinha conseguido. — Noventa e oito por cento? — Boyce ergueu as sobrancelhas e assobiou. — Isso significa o que eu acho que significa? Caralho, cara. Eu sabia que você era um gênio, mas puta que pariu. — Ele me agarrou pelos ombros e me sacudiu, rindo. Com exceção de Heller, Boyce era a única pessoa que sabia quanto eu queria escapar. E como eu precisava disso. — Cara, você conseguiu. Assenti, ainda atordoado. — Ah, cara. — Ele me empurrou. — Isso é uma merda. Vou ficar preso nesta droga de cidade enquanto você vai embora transar com milhares de universitárias. Balancei a cabeça e sorri. Boyce certamente se concentraria na única parte da faculdade que lhe interessaria. Tarde demais, ouvimos a batida da porta de uma caminhonete. — Merda — dissemos ao mesmo tempo. O sino sobre a porta badalou logo depois de eu limpar o histórico, desligar o computador e pular da cadeira, mas o pai de Boyce não era um completo idiota. — Seus cretinos, tão vendo pornografia no meu computador de novo? — ele rosnou antes mesmo de fechar a porta. Os cabelos ralos estavam de pé, como se tivesse levado um choque. Tecnicamente, só olhamos pornografia no computador dele uma vez, embora eu tivesse certeza de que Boyce repetia a façanha sempre que podia. Chegamos a um acordo tácito de que ver pornografia juntos era estranho demais. — A gente tava olhando as notas da prova de admissão na faculdade — Boyce explicou, acompanhando os movimentos do pai. Eu nem sabia que ele era capaz de unir essas palavras em uma frase. — Mentiroso de merda — o sr. Wynn disparou e atacou. Saímos do caminho, Boyce se esquivou do punho que voou sem muita força em direção à sua cabeça, daquele jeito que a gente sacode a mão para espantar uma mosca. O pai dele continuou xingando enquanto seguíamos até a porta. Boyce e eu havíamos nos unido por causa de pais negligentes e mães ausentes, mas os paralelos paravam por aí. O pai dele era um idiota violento, o meu era quieto e distante. A mãe dele tinha abandonado o pai — e os dois filhos — quando Boyce ainda era pequeno demais até para se lembrar bem dela. E ele não parecia culpá-la pela


deserção. “Se eu fosse ela, também teria chutado a bunda dele”, foi tudo o que disse sobre o assunto. — Hora de comemorar, meu amigo. — Boyce me levou para o Trans-Am enquanto o pai o amaldiçoava da porta da oficina. — A hora de sair é às seis! — ele berrou, ignorando o fato de ter fechado a oficina por duas horas no meio da tarde para visitar uma “amiga” na cidade vizinha, alguém que Boyce e eu não sabíamos ao certo se existia. Como uma mulher podia achar Bud Wynn atraente era algo que estava além da nossa capacidade de imaginação. — Seu imprestável de... Batemos as portas ao mesmo tempo, e Boyce girou a chave na ignição e ligou o som, enquanto eu relutantemente agradecia pela mudez de meu pai.

LUCAS Jacqueline iria para casa em dois dias. O espaço entre nós parecia magnetizado — eu não conseguia pensar em outro jeito de descrevê-lo. Lutei contra essa atração cada segundo das últimas vinte e quatro horas. Sabia exatamente onde ela estava, e queria estar lá. Esperava que, quando ela partisse, quando estivesse longe de mim, eu pudesse ter um pouco de paz. Carlie e Caleb estavam no meu apartamento jogando videogame. Estavam naquela bolha na qual o colégio dá duas semanas de folga e não se tem nada para fazer além de comer, dormir tarde e ganhar presentes tanto quanto se é capaz de enxergar — porque aos dezesseis e aos onze anos, ninguém consegue enxergar muito longe. Você acha que sim... mas não. Não posso dizer que a perspectiva dos dois era contagiante, mas era divertido de ver. Houve uma batida à porta, mas eu não estava esperando ninguém. Antes que pudesse pensar, Carlie se levantou e foi abrir. — Quem é, Carlie? — perguntei a caminho da porta e estendendo a mão para a maçaneta. — Não vá abrindo a porta assim... — É uma garota — ela falou, revirando os olhos grandes e escuros. Uma garota? Que garota? Carlie puxou a porta. — Jacqueline? — perguntei desnecessariamente, porque claro que era Jacqueline,


aparecendo depois de eu ter me despedido. — O que você está fazendo aqui? Ela virou para descer a escada e, sem pensar, eu a segurei pelo braço. O impulso a tirou do chão. Eu a segurei com as duas mãos e a puxei contra o peito, e meu coração parou, voltou a bater, falhou, depois disparou como um trem. Quando ela se contorceu como se quisesse se soltar, me dei conta de que uma linda garota tinha ido abrir a porta do meu apartamento. — Ela é a Carlie Heller — sussurrei, aproximando a boca de sua orelha. — O irmão dela, Caleb, também está aqui. Estamos jogando videogame. Ela desabou contra o meu peito resmungando desculpas desnecessárias. A última coisa que eu podia sentir quando a tinha nos braços era pesar. — Talvez você não devesse ter vindo sem me avisar, mas não vou dizer que estou triste em te ver. Eu a confundi. Era óbvio. Improvisei uma desculpa implausível sobre tentar protegê-la com essa separação, e meu cérebro me acusou — mentiroso — enquanto ela me dizia que não fazia sentido. — A menos que... você não queira — Jacqueline murmurou. A menos que eu não queira? Meu corpo todo preparava um motim, caso eu a deixasse partir pensando que eu não a queria. Passei as duas mãos na cabeça. — Brrr! Ei, vocês dois vão entrar ou não? — Carlie falou atrás de mim. — Porque eu vou fechar essa porta. Jacqueline estava tremendo, e eu estava descalço do lado de fora em pleno inverno. Segurei a mão dela e a puxei para dentro, me recusando a considerar o sorriso de cem watts de Carlie. Ela voltou para o canto do sofá, onde Francis se deixou pegar e acomodar de um jeito que o teria feito arranhar qualquer outra criatura do planeta. Caleb, protestando contra a interrupção porque estava acabando com Carlie e comigo, fez um comentário azedo e levou uma cotovelada da irmã, enquanto eu conduzia Jacqueline ao meu canto do sofá. Depois de fazer as apresentações, sentei no chão na frente dela e pensei no que devia fazer agora. Território desconhecido, era isso. Havia dado a ela todos os motivos para desistir, e ela não desistia. Minutos depois, Carlie, disposta a fazer todas as coisas se conformarem aos seus caprichos românticos, piscou para mim e puxou o irmão para fora do apartamento, sem se preocupar se ele queria ir ou não. Tranquei a porta quando eles saíram e virei para me apoiar nela. — Então... Eu achei que a gente ia dar um tempo — falei.


— Você disse que a gente ia dar um tempo. — Ela ainda estava irritada. Lembrei que ela tinha que ir embora na terça de manhã — que as férias eram decretadas pela universidade, afinal — e ela concordou. Olhei para o chão, sabendo muito bem o que eu era para ela. Eu tinha que contar. Tinha que colocar tudo para fora, porque Jacqueline estava entendendo tudo errado. Eu havia me protegido muito bem. Tão bem que ela não conseguia enxergar a verdade. — Não é que eu não queira ficar com você. Eu menti, antes, quando disse que estava te protegendo. — Meus olhos buscaram os dela, e eu a vi quieta e encolhida no canto do sofá. Tão impossível, tão linda. — Estou protegendo a mim mesmo. — Minhas mãos descansaram sobre a porta, e eu pus para fora a coisa que mais temia, e o desejo que havia ganhado tempo, querendo me esmagar. — Não quero ser o cara que você vai usar para esquecer seu namorado, Jacqueline. Dava para ler seus pensamentos. Mesmo de longe. Ela não tinha certeza de como eu sabia, mas percebeu que eu sabia. Esperei que ela tentasse explicar que se importava comigo — porque eu sabia que isso era verdade. Esperei que ela argumentasse que não estava pronta, declarasse que estava me dando o que podia e perguntasse por que eu não me contentava com isso. — Então por que você está assumindo esse papel? — ela questionou, em vez de fazer tudo que eu esperava, se levantando e atravessando o tapete com os olhos cravados nos meus, firmes. — Eu também não quero isso. Aceitei seu corpo invadindo meu espaço como ela invadira meu coração. Jacqueline quebrara a parede entre nós, tijolo por tijolo, até fazê-la desmoronar e virar poeira aos meus pés. — O que é que eu vou fazer com você? — perguntei, as mãos segurando seu rosto, e ela disse que podia pensar em uma ou duas coisas. Sem querer esperar para ouvir que coisas eram essas, eu a peguei nos braços e a levei para a cama. Adorava suas botas tolas forradas de pele. E elas foram para longe. Adorava a blusa de tricô rosa e branca, que lembrava uma aquarela que minha mãe pintara quando eu era pequeno, uma cena da praia na casa do meu avô. E lá se foi a blusa também. Adorava o jeans justo que simplesmente não escorregava pelo quadril — tive de puxá-lo enquanto ela se remexia. Eu puxava. Ela se remexia. E lá se foi a calça também. O sutiã e a calcinha tinham a maciez da seda e combinavam com o tom creme da


pele dela. Fecho frontal. Adeus, sutiã. O último pedacinho de tecido cobria a parte de seu corpo que eu queria provar logo. Adeus, calcinha. Ela estava nua no meio da minha cama, e eu, completamente vestido, mas descalço. Fiquei em pé e olhei para ela, prolongando o momento. Jacqueline se agitou, o peito subindo e descendo, as mãos agarrando o edredom embaixo dela. Sem pressa, puxei a manga comprida da minha camiseta. A agitação se intensificou quando puxei as mangas pelos braços, flexionando-os. Joguei o cabelo para trás e inspirei profundamente, como se desse uma leve pisada no freio. Mais devagar. Mais devagar. Meu jeans era surrado — eu não usava esta calça para sair porque ela parecia estar a um passo da desintegração espontânea. Rasgada em três ou quatro lugares, desfiada na bainha, nas costuras e no cós, que repousava sobre os ossos de minha bacia. Um botão aberto. Dois. O peito de Jacqueline subia e descia, subia e descia, os seios fartos que eu queria sentir contra o peito, nas mãos e nos dedos, no rosto enquanto sugava aqueles mamilos rígidos. Como se eu dissesse isso em voz alta, ela gemeu baixinho. — Calma, baby — sussurrei. No terceiro botão eu já poderia ter abaixado a calça, porque estava folgada o bastante para isso. Eu me detive. Ela arfou. Quarto botão. Empurrei a calça para baixo e a tirei. Os olhos dela passeavam por mim. Jacqueline lambeu os lábios. Sim. Suas mãos se fecharam, os punhos cerrados nas laterais do corpo. Um joelho se levantou. Cueca boxer descendo e saindo. Ela começou a se levantar, mas apontei um dedo e balancei a cabeça. Fica. Aí. Lendo a ordem silenciosa em meus olhos, ela se deitou e mordeu o lábio. Peguei a carteira da mesa atrás de mim e puxei uma camisinha, que coloquei imediatamente. Um joelho sobre o pé da cama. Sua pele macia era um banquete, e eu queria devorá-la. Ela abriu as pernas, apenas o suficiente para me dar as boas-vindas. Queria deslizar a ponta da língua de seu tornozelo até a coxa, lambendo e abrindo uma trilha lenta, torturante. Eu queria saboreá-la, mas isso teria de esperar, porque eu precisava possuí-la. Agora. Rastejei para frente, meu corpo estremecendo com a antecipação, como o dela. Quando me levantei sobre seu corpo, ela estendeu as mãos para mim e eu me detive, então olhei em seus olhos e a penetrei completamente. Seus braços cercaram meus ombros, os dedos agarraram os cabelos em minha nuca e ela gritou. Passando a língua por sua boca, eu a beijei e fiquei parado. Minha, pensei. Sua, seu corpo respondeu.


Comecei a me mover, e ela me agarrava com força, gemia e sussurrava, gritava e me puxava para dentro, para todos os lugares onde eu queria estar. Ela explodiu segundos depois, e eu imediatamente enfiei a língua em sua boca, afagando profundamente e engolindo seu prazer, fazendo-a minha. Grunhi seu nome, estremecendo, e a levei comigo quando caí para o lado. Eu te amo, pensei, mas não ouvi nenhuma resposta.

Os dedos dela se moviam pelas pétalas tatuadas sobre o meu coração. — O nome da minha mãe era Rosemary. Mas as pessoas a chamavam de Rose. — Você fez isso como uma homenagem a ela? Assenti com a cabeça no travesseiro. — Fiz. E o poema do lado esquerdo. Foi ela que escreveu. Para o meu pai. Seus dedos traçaram o poema, e eu estremeci. — Ela escrevia poemas? — Às vezes. — O rosto de minha mãe sorriu para mim, uma lembrança que eu não podia situar agora. Eu me apegava a tudo dela que podia. — Geralmente, ela preferia a pintura. Jacqueline fez um comentário sobre os genes artísticos e as partes de engenheiro de que eu era feito, e eu ri da imagem mental criada pelo comentário, me perguntando em voz alta onde estavam as partes de engenheiro. Ela quis saber se eu tinha alguma pintura da minha mãe. Respondi que havia alguns quadros pendurados na casa dos Heller, porque eles eram muito próximos. Talvez eu os mostrasse a ela. Outros estavam no sótão dos Heller ou na casa do meu pai. Ela começou a me perguntar sobre a amizade entre eles, e a princípio pensei que fosse apenas curiosidade sobre o antigo relacionamento entre os Maxfield e os Heller. — Eles eram muito próximos. Antes. “Antes” era uma palavra descomplicada, e nunca expressaria tudo que eu havia perdido quando minha linha do tempo se dividiu em duas, me arrastando para um “depois” do qual eu nunca escaparia. Eu não conseguia enxergar através daquela cortina, nunca, e ver minha mãe como ela era. Tocá-la. Ouvir sua voz como deveria ter sido. — Lucas, eu preciso te dizer uma coisa — Jacqueline anunciou, e havia uma nota de desconforto em sua voz.


Virei a cabeça, olhei para seu rosto quando ela explicou que havia ficado curiosa sobre a morte de minha mãe e havia procurado seu nome em um obituário online. Eu sabia muito bem o que ela tinha encontrado. O pesadelo do qual eu nunca poderia acordar. Meu coração ficou frio como pedra, e eu mal conseguia respirar. — Encontrou a resposta que estava procurando? — Encontrei — ela murmurou. Pena. Foi o que vi em seus olhos. Permaneci deitado, os olhos ardendo enquanto eu pensava nos artigos que Jacqueline devia ter lido. Pensei se ela havia vasculhado os fatos procurando a parte sobre mim. A minha culpa. Tentei chegar a um acordo com isso. Ninguém, além dos Heller e do meu pai, conhecia os detalhes. Eu nunca falava disso com ninguém. Não suportava nem pensar — como poderia falar sobre isso? Então processei o que ela havia acabado de dizer, que falara com Charles. — O quê? — Lucas, desculpe se eu invadi sua privacidade... — Se? Por que você foi falar com ele? Será que os detalhes mórbidos publicados nos jornais não foram o bastante para você? Ou não foram pessoais o bastante? Pulei da cama e vesti o jeans, minha voz soando como gelo, como uma navalha cortando minha pele. Meus pulsos queimavam. Não sei o que eu disse ou não a ela — os detalhes que nunca tive coragem de pronunciar em voz alta. Não tinha importância. Ela conhecia todos eles. Sentei-me com a cabeça apoiada nas mãos, tentando respirar, revendo tudo... Por favor, Deus, não...

Um barulho distante me acordou, mas eu virei para o outro lado, chutando o lençol. Eu estava com calor, mas com preguiça demais para levantar e ligar o ventilador de teto. Deitado de lado, olhei pela janela para o quintal, pensando em Yesenia e no fim de semana que se aproximava. Eu seguraria a mão dela. Um beijo, talvez, se conseguisse ficar sozinho com ela. Se ela deixasse. Meu Deus, estava quente. Deitei de costas. Ter treze anos era ser uma fornalha. Eu queimava comida e energia como uma chama sugando oxigênio. “Você come tanto que vai nos deixar sem casa e sem lar antes de completar quinze anos!”, minha mãe disse quando me viu comendo as sobras que pretendia esquentar para o jantar. Em vez disso, pedimos comida. Ela não quis toda a porção dela, então comi o que sobrou em seu prato.


Ouvi o barulho de novo. Minha mãe devia estar acordada. Às vezes ela andava pela casa quando meu pai estava fora, sentia falta dele. Eu devia ir dar uma olhada... Meu relógio marcava quatro e onze. Ugh. Quatro horas até eu ver Yesenia. Eu podia acordar mais cedo, ir para a escola cedo. Talvez eu a encontrasse sem todas aquelas amigas e suas risadinhas, e poderíamos conversar sobre... alguma coisa. Como meu jogo que se aproximava. Talvez ela quisesse ir me ver jogar algum dia. Virei quando alguém se debruçou sobre mim. Pai? Mas ele estava fora da cidade. Arrancado da cama, eu cambaleei. Alguma coisa foi socada dentro da minha boca quando a abri para gritar — sufoquei e não consegui emitir som nenhum, nem cuspir o que me calava. Esperneei e me debati, mas não conseguia me soltar. Não conseguia mover os pulsos. Fui empurrado de joelhos aos pés da cama, e então ele sumiu. Tentei levantar, pegar meu telefone e ligar para a polícia, mas eu estava preso. Meus pulsos estavam amarrados. Tentei raspar as amarras com as unhas, soltá-las, mas estavam apertadas demais. Plástico. Era plástico. Forcei as amarras, mas elas não cediam. Tentei girar as mãos para ver se conseguia desamarrá-las. Ou dobrá-las e puxálas, como Harry Houdini, mas o plástico só cortava meus pulsos. Minhas mãos eram muito grandes. Minha mãe dizia que meus pés e minhas mãos eram como as patas fofas e largas de um filhote que um dia seria um cachorro enorme. Do seu quarto no fim do corredor, minha mãe gritou. Eu congelei. Ela gritou meu nome. — Landon! Houve um estrondo e um barulho de alguma coisa quebrando, e eu me debati com mais força, sem me importar com a dor. Eu não conseguia responder. Não conseguia avisar que estava a caminho. Minha língua empurrava o pano dentro da boca. — O que você fez com ele? O que você fez com ele? LANDON! Mais palavras, o som de uma bofetada — mão aberta sobre pele nua, mais gritos, e eu ouvi todos eles, mas não os registrava porque havia um zumbido em meus ouvidos e meu sangue rugia, o coração batia retumbante. Ela estava chorando. — Ai, Deus. Meu Deus. Não. Não. Não-não-não-não-não! — Gritos. — NÃO! NÃO-NÃONÃO-NÃO! — Choro. — Landon... Puxei com mais força, levando a cama comigo até a porta, meus pés empurrando o chão, minhas pernas fazendo um grande esforço. A cama bateu na cômoda, depois na parede. Eu não sentia minhas mãos. Eu não conseguia mais ouvi-la. Não conseguia ouvi-la. O pano finalmente caiu da


minha boca. — Mãe! MÃE! — gritei. — NÃO TOCA NELA! MÃE! — Meus pulsos estavam em chamas. Por que eu não era forte o bastante para quebrar essas estúpidas tiras de plástico? Gritei até ficar rouco e continuei gritando. Tiro. Parei de respirar. Meus membros tremiam. Meu peito estremeceu. Eu não conseguia ouvir nada além dos meus batimentos. Meu sangue. O barulho cada vez que eu engolia. Meus soluços inúteis. — Mãe... Mamãe... Vomitei. Desmaiei. O sol nasceu. Meus pulsos e braços estavam cobertos de sangue. As amarras em meus pulsos estavam cobertas de sangue. Tudo marrom, seco, coçando. Chamei minha mãe, mas eu tinha gritado demais. Um grasnado saiu da minha garganta, mais nada. Inútil. Eu era inútil. Uma porcaria inútil. Você é o homem da casa enquanto eu estiver fora. Cuide bem da sua mãe.

— Quer que eu vá embora? — ela perguntou. — Sim — eu respondi.


25

LANDON O número de alunos na minha formatura do colégio era quarenta e três. Esse número poderia facilmente ter sido quarenta e dois. Eu havia sido uma das eliminações planejadas desde o primeiro dia de aula. Provavelmente antes disso. Nesta cidade, recomeço é algo que não existe; levamos nossas histórias de um ano para o outro como uma lista de defeitos presa na camiseta. O único motivo para eu ter atravessado o ginásio de beca e capelo era o homem na terceira fileira da arquibancada. Sentado ao lado do meu pai. Meus colegas e eu entramos pela porta lateral enquanto a banda — sem os membros que estavam se formando — tocava o processional. Sentados em um grupo de azul, nós nos agitávamos enquanto a sra. Ingram, nossa estimada diretora, garantia que todos teríamos um futuro brilhante e radiante. Eu sabia que ela era um poço de baboseiras, assim como suas afirmações otimistas. Olhei para as duas linhas verticais entre seus olhos, sinais permanentes deixados por décadas de olhares hostis dirigidos a alunos inaceitáveis. Aquelas linhas faziam seu discurso de formatura parecer ainda mais sinistro. Muitos dos meus colegas submetidos a lavagem cerebral — os que tiravam notas quase perfeitas desde que aprenderam a escrever o próprio nome — acreditavam que começariam a faculdade na primavera e teriam o mesmo desempenho, a mesma facilidade. Idiotas iludidos. Os cursos do oitavo ano da minha escola particular eram mais difíceis do que qualquer coisa que haviam exigido de nós ali. Entrar em uma boa universidade não era ganhar na loteria. Era conquistar o direito de trabalhar duro pelos próximos quatro anos. Como oradora da turma, Pearl fez o discurso esperado sobre oportunidades e escolhas e sobre fazer do mundo um lugar melhor — e ela usou de fato esta frase: “Fazer do mundo um lugar melhor”. Como uma das integrantes dos melhores dez por cento da nossa turma — quatro pessoas —, ela seria automaticamente admitida na universidade que escolhesse, enquanto eu havia conseguido com muito esforço um período de


experiência no mesmo campus que ela tinha escolhido. Eu gostava mais de Pearl que da maioria das pessoas sentadas à minha volta, e não duvidava de que ela sabia como trabalhar duro. Só esperava que não apostasse em melhorar o mundo. Na segunda página do programa da cerimônia, meu nome aparecia na base da primeira coluna. Meu sobrenome era a metade alfabética da nossa sala — aluno número vinte e dois de quarenta e três. A posição era adequada. Na opinião de quase todo mundo ali, eu era mediano. Medíocre. Não era excepcional, mas não era um fracasso completo, embora alguns — como a diretora Ingram — acreditassem que isso ainda era algo para se ver. Quando chamaram meu nome, atravessei o assoalho de madeira gasta na frente da banda, olhando por cima do ombro da diretora para o peixe gigante — nosso famoso mascote — retratado em detalhes na parede oposta. Como mascote, sua expressão deveria ser agressiva, determinada a alcançar a vitória, mas, de verdade, ele só parecia um estúpido peixe irritado. Eu tinha decidido que atravessaria o palco encarando a vadia que tinha feito da minha vida um inferno durante quase quatro anos. Para mostrar que ela não tinha conseguido acabar comigo. Fosse isso verdade ou não. Então, acima dos aplausos obrigatórios e do barulho da plateia, ouvi o grito de Cole: “LANDOOOOON”, o gritinho agudo de Carlie e o assobio estridente de Caleb. — Ele ensaiou pra caramba a semana inteira, cara — Cole me contou naquela manhã, quando Caleb demonstrou suas novas habilidades ensurdecedoras menos de cinco minutos depois da chegada dos Heller. — Minha mãe só não o amordaçou porque ele é pequeno. Se fosse eu, estaria ferrado. O reinado da diretora sobre mim chegava ao fim. Depois desse momento, ela não poderia mais me atingir. Peguei o diploma enrolado com uma das mãos e, com a outra, apertei sua mão fria, como tínhamos sido instruídos a fazer. Olhei para a câmera, ignorando o pedido do fotógrafo para sorrir. Um flash ofuscante depois, e eu soltei sua mão, me afastando sem ter feito contato visual. Ela não era mais importante. Quando sentei na cadeira dobrável de metal entre Brittney Loper e P.K. Miller, olhei de soslaio para os meus colegas de classe. Dos quarenta e três, trinta e um estariam partindo para a faculdade em três meses. Alguns tentariam beisebol, ou atletismo, ou a equipe de líderes de torcida, e descobririam que não eram bons o bastante nem para as


segundas opções da faculdade. Alguns se imaginavam no comando estudantil do campus ao qual chegariam como um entre milhares de zés-ninguém. Seriam um entre centenas de calouros durante a semana do trote, desesperados por um grupo definido de semelhantes. Outros entenderiam o esquema e aprenderiam a sobreviver. Alguns fracassariam, e outros voltariam para a cidade com o rabo entre as pernas. Eu com certeza não seria um desses. Doze colegas pretendiam ficar por ali, encontrando ou mantendo seu emprego na indústria da pesca ou no comércio, no turismo ou com as drogas. Eles se casariam e engravidariam — de preferência nessa ordem, mas não necessariamente. Seus filhos frequentariam as escolas que, depois de treze anos, os transformariam em adultos sem nenhuma aquisição além de um diploma quase inútil. Daqui a dez anos, talvez cinco, alguns se perguntariam para que diabos estudaram — por que se mataram com a álgebra, a ginástica, a literatura e a banda. Iam querer uma resposta, mas não haveria nenhuma.

— Maxfield. — Boyce Wynn tirou uma lata do cooler e jogou para mim, o alumínio molhado do gelo derretido. O nome dele tinha sido o último a ser chamado naquela tarde, o último diploma que Ingram entregou de maneira ressentida. Ele ficaria ali, fingindo que aquele golfo era o oceano, que a cidade era seu reino. Trabalharia para o pai na oficina, iria às festas na praia ou dirigiria até a cidade para uma ocasional mudança de ritmo... Pouca coisa mudaria para Boyce. — Ei, Wynn. Ele apertou minha mão e nos inclinamos para frente até nossos ombros se tocarem — um cumprimento ritual e um acontecimento muito distante do dia em que nos espancamos e depois viramos amigos. Ainda havia uma cicatriz no meu rosto do choque sólido de seu punho, e ele tinha uma idêntica no canto do olho, deixada pelo meu. — A gente tá livre, cara. — Ele levantou a lata para o céu, como um atacante com uma bola de futebol americano, agradecendo a Deus por um milagroso touchdown. Depois abaixou a lata e bebeu um longo gole. — Estamos livres. Foda-se aquela escola. Foda-se a Ingram. Foda-se aquele peixe. Alguns espectadores riram, garotos mais novos com um ou dois anos pela frente. Um


deles repetiu: — Foda-se o peixe — e riu baixinho. Eu tentei não imaginar a possível pichação. Boyce olhou para a praia, para o outro lado do círculo. — E fodam-se as vadias, cara — acrescentou em voz mais baixa. Eu sabia para onde ele estava olhando e para quem. Ele era uma das poucas pessoas que sabiam a verdadeira história de Landon Maxfield e Melody Dover. O tempo pode ser um cretino seletivo quanto à velocidade com que cura. Dois anos atrás, eu sentia o ardor da humilhação sempre que ouvia seu nome ou olhava para ela. Eu não a havia perdoado, e certamente não tinha esquecido, mas, quando Clark Richards terminou com ela definitivamente — uma noite antes de sair da cidade e ir para a faculdade, nove meses atrás —, eu nem ligava mais para essa merda. — Merda — Boyce ecoou meu último pensamento e amaldiçoou a areia sob os nossos pés, alto o bastante para eu ouvir. — Pearl e Melody vindo pra cá. — Pearl Frank ainda era o demônio pessoal de Boyce. Assenti uma vez, grato pelo aviso. — Oi, Landon. — O tom de voz meloso de Melody e as unhas deslizando por meu braço me fizeram recuar. Como essas duas coisas um dia tinham sido como ar em meus pulmões? Olhando para o lado, bebi meia lata de cerveja antes de responder: — Srta. Dover. Ela riu e tocou meu antebraço com a mão pequena, macia, como se meu tom fosse sedutor, em vez de desdenhoso, como se me encorajasse a continuar. Eu me perguntei se ela havia esquecido o que significaria continuar comigo. Olhei em seus olhos verdes, e ela olhou para mim por entre os cílios densos, removendo a mão lentamente. Abraçando a si mesma, embora estivesse calor, ela adotou uma posição que convidava à inspeção mais atenta. Melody vestia um biquíni preto de tirinhas com uma túnica transparente que fazia as vezes de vestido. Os cabelos loiros escapavam com calculada imperfeição do coque torcido que ela fizera no salão para a formatura. As argolas de ouro e a pulseira de pingente, também de ouro, cintilavam mensagens de como ela estava distante do meu mundo. Não que eu precisasse dessas pistas. Ela já tinha me dado esse recado com toda clareza dois anos atrás, e eu nunca o esqueci. A lição foi dura. — Vamos improvisar uma festa de formatura na piscina da Pearl em meia hora — disse Melody, depois de uma comunicação silenciosa entre elas. — Os pais dela viajaram


para a Itália logo depois da formatura, não vão estar lá. Se quiserem ir, vai ser legal. P.K. e Joey vão levar vodca. Levem o que quiserem. Melody se aproximou de mim o suficiente para eu sentir o calor de sua pele perfeitamente bronzeada e seu cheiro familiar, alguma coisa picante e floral, artificial. Dessa vez os dedos afagaram meu peito nu, o polegar girando em torno do piercing em meu mamilo. — Uma festa na piscina? — Gesticulei com a lata. — Temos uma praia, caso não tenham notado. Fogueira acesa, cerveja na mão. Por que íamos querer uma piscina? — É uma festa privada. Poucas pessoas. — Melody torceu o nariz para alguns garotos mais novos que estavam peidando perigosamente perto da fogueira, onde debatiam sobre os gases humanos serem mesmo gás ou não. A probabilidade de algum idiota pôr fogo na própria bunda era bem grande. — Só para formandos. Pearl também olhava para os mais novos, bebendo e balançando a cabeça, uma sombra de sorriso no rosto. Boyce desviou os olhos de Pearl para mim e levantou uma sobrancelha, informando que ficaria mais do que satisfeito em acompanhar essa repentina mudança de planos. Dei de ombros. Por que não? — Tudo bem — Boyce falou para Pearl. — Daqui a pouco a gente vai. Não comecem a festa sem a gente. Melody revirou os olhos, mas Boyce não percebeu e, se tivesse notado, não teria se importado. O pobre coitado só tinha olhos para Pearl.

O trailer que Boyce dividia com o pai parecia se debruçar sobre a oficina, como se o veículo corroído estivesse caindo de bêbado e não conseguisse mais se manter em pé por conta própria. Duas das três janelas de Boyce abriam a centímetros da parede externa da oficina, então a ideia de que o trailer precisava de apoio físico era plausível. Uma vez lá dentro, viramos imediatamente à direita, tentando evitar o sr. Wynn, instalado na frente da tela plana que ocupava quase toda a parede da “sala de estar”. Como era de esperar, ele não havia comparecido à formatura do filho. O pai de Boyce: bêbado à noite, de ressaca de manhã, cruel e sóbrio o dia inteiro, e assim por diante. Ele não era confiável. — O que esses dois merdinhas tão fazendo em casa durante o jogo? — ele urrou sem se mover da cadeira rasgada, que era onde acabava dormindo com mais frequência.


Boyce certa vez me contou que lutara contra a vontade de pôr fogo naquela cadeira uma dúzia de vezes. As ameaças de Bud Wynn agora já nem eram mais registradas. Um ano atrás, Boyce reagira durante uma surra, e desde então o pai só rosnava, não mordia. Agora com dezoito anos, Boyce provavelmente o mataria, e os dois sabiam disso. A situação promovia uma trégua desconfortável que eu nunca ia entender. Depois de pegar porcarias suficientes para um delito, mas não o bastante para um crime, voltamos ao Trans-Am do meu melhor amigo e seguimos até a mansão dos Frank, do outro lado da cidade. — Eu vou pra cima — Boyce anunciou, apertando os botões do som como se programasse um foguete. — Como assim? — Esta noite. Eu. Pearl. Vou. Pra. Cima. Significa: as pernas dela abertas, eu entre elas. — E olhou para mim quando não respondi. — Qual é? Mordi a argola em meu lábio, odiando ter que dizer o que tinha de dizer. Odiando preferir não dizer — especialmente para o meu melhor amigo. — Só... tenha certeza de que é isso que ela, você sabe... — Landon, porra, cara. — Boyce tirou o boné de beisebol, balançou a cabeça e pôs o boné de novo, agora com a aba para trás. Ele bufou, mas manteve os olhos na estrada. — Você não me conhece? Não que eu tenha alguma, você sabe, moral de verdade — e riu —, mas eu escuto você. Escutei. Entendi. Não sei qual é o seu problema e tenho certeza que não quero saber. Mas se e quando eu transar com aquela brilhante e pequena... — Ele parou, incapaz de chamar Pearl de alguma coisa que ela não era. — Primeiro ela vai implorar, ou eu nem vou encostar nela. Certo? Ele me olhou carrancudo e eu assenti uma vez, satisfeito. Eu não teria explicado qual era o meu problema, se ele perguntasse. Mas ele não perguntou. Pensei em Melody. Se ela implorasse por mim agora, eu concordaria? A resposta foi um quieto e decidido sussurro. Não. — Ei, Wynn. Quero voltar pra praia, cara. Ele abaixou o volume. — Você não quer ir? Balancei a cabeça e ele suspirou. — É claro, cara. Quem precisa de uma piscina se temos a merda do oceano?


— Não tô te pedindo pra desistir da sua última chance de pegar a Pearl. Um canto de sua boca se levantou num sorriso malicioso e ele arqueou uma sobrancelha. — Ah, não tô desistindo. Se os pais dela viajaram hoje... vão ficar fora uma semana, pelo menos. — Cara, a gente acabou de se formar, e ela vai pra faculdade em poucos meses. Você teve três anos... — Nunca diga nunca, Maxfield. Isso é o mais legal de ser um filho da puta teimoso. Não desisto nunca. — Nós rimos e ele fez o retorno em um trecho mais largo da estrada, aumentou o som e voltou para a praia.

LUCAS O silêncio nunca é totalmente desprovido de som. Tem alguma coisa a ver com o ouvido humano, se esforçando para ouvir. Mesmo quando não há nada, tem uma frequência, uma vibração. Como um satélite procurando sinais de vida onde não há. A voz do meu pai sumiu. Cuide bem da sua mãe. Minha mãe se foi. Landon! Minha respiração estrangulada, áspera e barulhenta, ficou mais contida. Inspirei. Soltei o ar. Engoli. Respirei de novo. Ouvi cada uma dessas ações dentro da minha cabeça. Então ouvi um miado. Francis pulou na cama e veio em minha direção. Ele bateu o topo da cabeça no meu bíceps, e eu deixei as mãos caírem de onde estavam, pressionando as laterais do meu rosto. Minha testa descansou nos joelhos, os cotovelos pressionando as coxas. Ele bateu a cabeça em mim mais uma vez, com força, como se tentasse me conduzir, e eu sentei. Descalço. Jeans surrado. Sem camisa. Cama. Jacqueline. Virei, mas ela tinha ido embora. A cama era um mar de lençóis, cobertores e travesseiros que haviam enfrentado uma tempestade. Uma tempestade muito boa. E então ela me contou o que tinha feito. A dor abriu um buraco no meu peito e eu fechei os olhos com força, apertando-os com os dedos. Não seguiria por esse caminho de novo. Quer que eu vá embora? Meus olhos se abriram. Ah, meu Deus. Eu havia dito que sim.


Levantei, encontrei minha camiseta do avesso no chão. Desvirei-a e a vesti apressado, peguei as meias e as botas e enfiei nos pés. Agarrei a jaqueta nas costas de uma cadeira na cozinha e as chaves em cima da bancada. Eu podia consertar isso. E consertaria. Coloquei a jaqueta, passei pela porta e desci a escada. Entrar no dormitório dela não seria tão fácil dessa vez, havia pouca gente por lá. Quase todo mundo deixava o campus assim que as provas finais terminavam. Eu telefonaria para ela quando chegasse lá. Teria de convencê-la a me deixar entrar. Pediria desculpas. Imploraria, se preciso. De joelhos. Eu esperava do fundo do coração que ela atendesse. Do contrário, acamparia na carroceria de sua caminhonete. Eu me preparava para montar na moto quando ouvi passos na calçada. Jacqueline, correndo para mim — mas ela não me viu. Ela estava olhando para a base da escada do meu apartamento. Prestes a gritar o nome dela, me preparei para ir encontrá-la, mas ela foi para o chão, e eu vi Buck, a mão agarrando seus cabelos. Ah, porra, não. Ele caiu em cima dela, mas Jacqueline o empurrou para o lado, o desequilibrou. Ela engatinhou tentando se afastar, mas Buck a seguiu. Eu o agarrei quando ele estendia a mão para pegá-la, o joguei longe e me plantei entre os dois. Olhei para Jacqueline e vi sangue cobrindo seu peito. Um grande círculo escuro, como um ferimento de arma, desabrochando, fatal. Não, porra, não, porra, não... mas ela rastejava para trás apoiada nas mãos e seus olhos estavam arregalados. Se tivesse levado um tiro ou uma facada no peito, ela nem estaria se movendo. Quando ele levantou, vi que seu rosto estava ensanguentado embaixo do nariz. Ela tinha arrancado sangue do sujeito E eu arrancaria mais. Meus olhos estavam quase ajustados à escuridão, mas os Heller tinham luzes com sensor de movimento, e nós ativamos uma delas. A luz se acendeu de repente, um pequeno holofote sobre a cena de luta. Os olhos escuros de Buck estavam focados e determinados, não havia sinal de álcool lhe prejudicando a coordenação. Ele tentou desviar de mim, mas eu não o deixaria chegar perto dela nunca mais. Acompanhei seus movimentos sem deixar de encará-lo, atento a Jacqueline e a sua exata localização. Senti sua presença atrás de mim como se fosse parte do meu corpo. Carne da minha carne. Sangue do meu sangue. — Vou arrebentar essa sua boca, seu emo de merda — ele ameaçou. — Não estou bêbado dessa vez. Estou completamente sóbrio, e vou quebrar a sua cara antes de comer


essa sua putinha de dez maneiras diferentes. De novo. Palavras fracas de um homem fraco. Ele não sabia que já estava morto. — Você está enganado, Buck. Tirei a jaqueta e arregacei as mangas, e ele foi o primeiro a atacar. Bloqueei o golpe. Ele repetiu o movimento — porque o cretino não aprendia —, e eu bloqueei de novo. Correndo em minha direção, Buck tentou um de seus previsíveis movimentos de luta. Soco no rim. Tapa de mão aberta na orelha. Ele recuou e apontou para Jacqueline. — Sua vaca. Você acha que é boa demais pra mim... mas não passa de uma puta. Eu me segurava por um fio de cabelo. Ele queria que o fio arrebentasse, porque as pessoas esquecem o que estão fazendo quando se deixam dominar pelo temperamento. Cometem os erros estúpidos que eu não pretendia cometer. Meu temperamento permaneceria contido até Buck estar desorientado no chão. Quando ele tentou me agarrar de novo, segurei e torci seu braço, tentando deslocar o ombro. Ele girou acompanhando o movimento, mas eu acertei um soco em seu queixo. Assim que a cabeça virou por causa do impacto, acertei-lhe outro soco na boca. Buck piscou, olhou para mim, procurou uma área exposta. Não ia acontecer. Furioso, ele rugiu alto o bastante para acordar a vizinhança inteira e me atacou. Conforme a gente caía, ele conseguiu me acertar duas vezes antes de eu girar, segurá-lo e usar o impulso de seu próprio movimento para fazê-lo aterrissar de cabeça. Incrível quantos caras são desajeitados o bastante para não antecipar essa reação. Não perdi tempo admirando minha obra. Enquanto ele balançava a cabeça e tentava clarear a visão depois de cair de cabeça, eu o imobilizei sobre a grama — não no concreto, infelizmente — e o soquei. Pensei no terror nos olhos de Jacqueline. Os cabelos dela presos nas mãos dele. Meu nome — Landon —, a última palavra que minha mãe falou. Pow. Bati de novo. Um soco depois do outro. E não ia parar. Alguma coisa me puxou para cima e para longe. Não. NÃO. Lutei para me soltar e estava quase conseguindo quando palavras penetraram na minha mente. — Pare! Ela está segura. Ela está segura, filho. Charles. Parei de resistir, e ele afrouxou um pouco a força que fazia nos braços, mas não me soltou, me amparando quando comecei a tremer. Buck não se movia. Virei para procurar Jacqueline, mas sabia onde ela estava. Charles me soltou e eu cambaleei até ela, caí de joelhos a seu lado, meu corpo todo tremendo. Seus olhos ainda


estavam arregalados, seu lindo rosto tinha hematomas, e havia respingos de sangue no queixo e nas bochechas. Aproximei a mão da mandíbula que mudava de cor rapidamente. Ela se encolheu e eu afastei a mão. Jacqueline estava com medo de mim. Do que tinha acabado de acontecer... outra vez. Não consegui mantê-la segura. Então ela se ajoelhou. — Por favor, me toque. Preciso que você me toque. Estendi a mão e a abracei com cuidado, sentei-me no chão e a puxei para o colo, para o círculo dos meus braços. Sua blusa estava colada ao peito. — Esse sangue é dele? — perguntei. — Do nariz? Ela se aninhou em meu peito e assentiu, olhando para si mesma com repugnância. Jacqueline era uma guerreira, coberta de sangue do inimigo. Eu queria bater no meu peito de orgulho, e ela devia se orgulhar também. — Boa menina. Meu Deus, você é incrível. Ela puxou a camiseta numa reação de pânico. — Preciso tirar essa coisa. Preciso tirar essa coisa. — Tá bom. Daqui a pouco — prometi, segurando seu rosto e evitando o local machucado. Implorei perdão por tê-la mandado embora, meu coração ainda disparado sob a orelha dela. Eu mal conseguia me ouvir falar. Se ela nunca me perdoasse, eu não poderia culpá-la. — Desculpa por ter procurado informações sobre ela. — Jacqueline falou. — Eu não sabia... — Shhhh, baby... Agora não. Me deixa só te abraçar.. — Ela estremeceu. Minha jaqueta estava na grama perto de nós. Eu cobri Jacqueline e a puxei mais para perto, deixando meu corpo se acalmar. A polícia tinha chegado, e uma ambulância também. Eles colocaram Buck na maca, o que significava que ele não estava morto. Charles nos chamou para dar um depoimento ao policial com quem estava conversando, e eu me levantei devagar, puxando Jacqueline comigo. Nós dois cambaleávamos um pouco, nos apoiávamos um no outro. Enrolados em cobertores e casacos que cobriam o pijama, Cindy, Carlie e Caleb acompanhavam tudo da porta da casa. Vizinhos saíam para o jardim ou olhavam da janela, através das quais era possível ver árvores de Natal iluminadas. Alegres luzes de Natal piscavam com as luzes das viaturas e da ambulância.


Charles contou à polícia sobre a ordem de restrição que Jacqueline solicitara contra Buck e, sem nenhuma hesitação, me apresentou como namorado dela. Confirmando tudo que ele dissera, inclusive sobre ser seu namorado, Jacqueline apoiou as costas no meu peito, segurou meus braços em torno de sua cintura e deu seu depoimento: como Buck a empurrara para dentro da caminhonete e fechara a porta. Como ela usara os movimentos que aprendera nas aulas de defesa pessoal para sair do carro. Meus braços a apertaram com mais força, e eu me senti enjoado. Não conseguia ouvir os detalhes. Queria arrancar Buck daquela maca e terminar o serviço. Quando a polícia e os paramédicos foram embora, fomos cercados pelos Heller. Eles ofereceram material de primeiros-socorros, xícaras de chá, comida — mas eu disse que tinha tudo em casa e garanti que cuidaria bem dela. Charles e Cindy me abraçaram, envolvendo Jacqueline também, talvez por eu não deixá-la se afastar de mim mais do que alguns centímetros. Quando abrimos a porta do apartamento, Francis saiu e parou no corredor. — Obrigado — murmurei, afagando sua cabeça uma vez antes de ele descer a escada e desaparecer em suas andanças noturnas. No banheiro, examinei o rosto de Jacqueline, olhei nos olhos dela e perguntei se ele a agredira. Foi difícil pronunciar as palavras. Ela negou com a cabeça e disse que ele só a havia agarrado com muita força. — O lugar onde acertei a cabeçada nele tá doendo mais. — E passou os dedos sobre a testa. — Estou muito orgulhoso de você. Quero que você me conte a respeito, quando puder... e quando eu estiver em condições de ouvir. Ainda estou muito bravo. — Eu estava lá quando ela dera o depoimento, mas não suportei ouvir os detalhes. As mãos no corpo dela. A dor que ele causou. Despi Jacqueline com cuidado, delicadamente. Uma lentidão diferente de horas atrás. Sua blusa, seu sutiã e minha camiseta foram para a lata de lixo, e eu a levei para um banho morno. Ela era perfeitamente capaz de fazer essas coisas sozinha, mas parecia entender que eu precisava fazer isso por ela. Ensaboei e beijei cada hematoma e esfolado, odiando saber que ela tinha sido ferida. Apoiei os braços no azulejo e fechei os olhos quando ela fez o mesmo por mim. Os músculos de seus braços estavam doloridos, por isso a envolvi em uma toalha e a sentei na lateral da banheira. Enquanto enxugava seu cabelo, desembaraçando as mechas com os dedos e absorvendo a umidade com outra toalha, ela me contou que a


última vez que alguém havia feito isso por ela tinha sido no sexto ano, quando ela caiu da árvore e quebrou o braço. Jacqueline sorriu e eu ri, duas coisas maravilhosamente incongruentes com aquela noite. — Acho que tinha um garoto e um desafio envolvidos — ela continuou. Garoto de sorte. Mas não tanto quanto eu. Eu me abaixei diante dela e pedi que ela ficasse comigo, pelo menos aquela noite. Jacqueline tocou meu rosto e olhou nos meus olhos. Os dela estavam preocupados, cheios de compaixão. Ela sabia o que tinha acontecido com a minha mãe, mas eu precisava confessar o que ela não sabia. Não podia mais mantê-la comigo sob falsos pretextos. Precisava contar tudo. — A última coisa que meu pai me disse antes de sair foi o seguinte: “Você é o homem da casa enquanto eu estiver fora. Cuide bem da sua mãe”. — Engoli em seco, ou tentei. Minha garganta doía, tentando conter as lágrimas que se recusavam a continuar represadas. Eu as senti em meus olhos quando as dela escorreram e lavaram seu rosto. — Eu não protegi a minha mãe. Não consegui salvá-la. Jacqueline me abraçou, e eu desabei com o rosto enterrado em seu peito, sobre seu coração. Minutos mais tarde ela disse: — Vou passar a noite aqui. Você pode fazer uma coisa por mim também? Respirei fundo, incapaz de negar qualquer coisa a ela. — Sim. O que você precisar. — Pode ir comigo ao concerto do Harrison amanhã à noite? Ele é o meu aluno favorito da oitava série, e eu prometi que ia ver a apresentação. Concordei com o pedido, exausto demais para tentar entender o que ela pretendia — porque agora a conhecia o suficiente para olhar dentro daqueles olhos e ver quando ela tramava alguma coisa. Não me importava. Eu faria qualquer coisa que ela me pedisse.

Há muito tempo eu não entrava em um auditório de colégio. A garotada da orquestra tinha mais ou menos o tamanho de Caleb, embora ele teria ficado na fileira dos menores. Os meninos eram divertidamente insuportáveis, andando por ali de smoking preto, se debruçando sobre as cadeiras para flertar com as meninas,


todas em longos vestidos roxos. — Srta. Wallace! — chamou um dos meninos de smoking, um loiro que acenou para ela de um grupo até notar minha presença. Seus olhos escuros se arregalaram. Jacqueline acenou de volta, mas ele parecia devastado por ver o amor de sua vida sentado ao lado de outro homem. Eu não podia culpá-lo. — Imagino que esse é um dos garotos que têm uma queda por você — falei, mordendo o lábio e mantendo a expressão impassível. Se Jacqueline gostava daquele menino, eu não queria menosprezá-lo rindo de sua reação deprimida ao fato de a srta. Wallace ter alguém. Ter tido alguém. E ela teria alguém de novo em algumas horas, se dependesse de mim. — O quê? Todos eles têm uma queda por mim. Sou uma universitária gostosa, lembra? — Ela riu. Inclinei-me um pouco para dizer como ela era gostosa, e pedi que ficasse comigo de novo naquela noite. — Eu estava com medo que você não fosse pedir — ela respondeu. Bobinha. Harrison era um garoto corajoso, porque deu uma dúzia de rosas para a minha garota depois do concerto. Ele estava constrangido, vermelho para combinar com as flores, mas admirei seu cavalheirismo diante do receio. Jacqueline agradeceu, aproximou o buquê do rosto e cheirou as flores. Disse ao garoto que ele a deixara orgulhosa, e ele ergueu os ombros e inflou o peito. Sorrindo, Harrison respondeu: — Eu não teria conseguido sem você. A resposta a fez sorrir. — Você fez todo o trabalho e ensaiou muito. Eu dava respostas semelhantes a alunos gratos que acreditavam ter sido aprovados em economia só por minha causa. — Você tocou muito, cara. Eu queria saber tocar algum instrumento — falei. O garoto me mediu da cabeça aos pés, e contive o impulso infantil de dizer que ele não ia querer seguir por esse caminho. — Obrigado — Harrison respondeu, me olhando com curiosidade. — Isso aí no seu lábio... doeu? Dei de ombros. — Não muito. Nada que alguns palavrões não resolvam. — Legal. — Ele sorriu.


Jacqueline sabia escolher seus favoritos. E eu também.

Arrumamos a caminhonete com toda a bagagem que ela ia levar para as férias de inverno em casa, e Jacqueline entregou a chave do dormitório. Passaria sua última noite na cidade comigo. — Não quero ir pra casa. Mas, se eu não for, eles vão vir me buscar. — Vestindo uma das minhas camisetas, ela escovava os dentes na pia do meu banheiro. Depois de enxaguar a boca, Jacqueline me encarou pelo espelho. — O que aconteceu ontem foi a gota-d’água pra minha mãe. Ela não ficou tão perturbada nem quando eu caí da árvore. Meus braços a envolveram. — Vou ficar aqui esperando você. Eu prometo. Se quiser voltar antes, pode ficar aqui comigo até os dormitórios abrirem. Mas vá, dê uma chance a ela. Ela me encarava pelo espelho, e seus olhos se encheram de lágrimas. Jacqueline sabia que jogo eu estava fazendo, mesmo discretamente. — E você também vai dar uma chance ao seu pai? Ardilosa, essa Jacqueline. Fiz uma careta sem desviar os olhos dos dela no espelho. — Sim. Vou. Ela suspirou e fez biquinho. — Agora que você me obrigou a ir, posso ter uma despedida apropriada? Minhas sobrancelhas se ergueram e desci as mãos até a barra da camiseta, sussurrando: — Nossa, claro. Eu me vi no espelho, levantando a camiseta de Jacqueline e a passando por sua cabeça, segurando seus lindos seios, afagando os mamilos com os polegares. Uma de minhas mãos desceu para cobrir seu ventre, escorregar para dentro da calcinha, cruzando a barreira de renda. Sua boca se abriu enquanto eu a tocava, e sua cabeça caiu para trás, sobre meu ombro, mas Jacqueline não fechou os olhos. Tão linda. Eu adorava vê-la responder ao meu toque. Nunca me cansaria disso. Ela levou a mão para trás do quadril e me tocou. Eu gemi, pressionei o corpo contra a mão dela e senti seu corpo vir de encontro ao meu. Beijei seu pescoço, fechando os olhos


para sentir seu cheiro. — Pronta para ir pra cama? — Cama, sofá, mesa da cozinha, o que você quiser... — ela respondeu, e eu gemi. Quando recuperei equilíbrio suficiente para abrir os olhos, eles estavam escuros e cinzentos como o céu em um dia chuvoso, contrastando com o profundo azul de verão dos olhos dela. O espelho do banheiro havia se tornado o mais apimentado vídeo interativo que jamais vi. — Tudo bem, então — respondi, deslizando os dedos para dentro dela. — Vamos ficar aqui mesmo, baby. — Hummm... — ela gemeu, fechando os olhos.

Jacqueline estava deitada em meus braços, e nós dois estávamos exaustos. Pia do banheiro, missão cumprida. Cadeira da escrivaninha, missão cumprida. Sofá, missão cumprida duas vezes. No entanto, eu me imaginei acordando com ela em minha cama em algumas horas, e decidi que ainda tinha mais uma etapa da despedida a cumprir. Ainda acordada, ela olhava em meus olhos. Humm. — O que você achou do Harrison? — perguntou. — Parece um bom garoto. — Ele é, sim. — Seus olhos acompanhavam os dedos que acariciavam a região embaixo do meu queixo. Eu a puxei para perto e perguntei o porquê da pergunta. — Está querendo me largar e ficar com o Harrison, Jacqueline? Esperava que ela revirasse os olhos e risse, mas, em vez disso, ela me encarou. — Se o Harrison estivesse naquele estacionamento aquela noite, no seu lugar, você acha que ele ia querer me ajudar? O estacionamento. Com Buck. — Se tivessem dito a ele para cuidar de mim, você acha que alguém o culparia por alguma coisa se ele não fosse capaz de impedir o que aconteceu naquela noite? Meus pulmões se comprimiram. — Eu sei o que você está tentando dizer... Ela não me deixaria escapar com tanta facilidade, embora tremesse em meus braços. — Não, Lucas. Você está ouvindo, mas não sabe. Seu pai não esperava realmente


que você fizesse isso. Provavelmente ele nem se lembra de ter dito aquilo para você. Ele acha que é o culpado pelo que aconteceu, e você acha que a culpa é sua, mas a verdade é que nenhum dos dois tem culpa. — Seus olhos lacrimejavam, mas não deixavam os meus. Eu a segurava como se estivesse caindo da face da Terra e não conseguisse respirar. Sem gravidade, sem oxigênio. — Eu nunca vou esquecer os gritos dela naquela noite. Como eu poderia não me culpar? — Meus olhos se encheram de lágrimas, e as dela já corriam soltas. Sua mão direita ainda tocava meu rosto. Espremida entre nós, a esquerda agarrava a minha, me segurava com ela. Suas lágrimas molhavam o travesseiro enquanto ela me fazia ver o menino que eu havia sido. Nunca perguntei a meu pai se ele me culpava — ele vivia preso em seu luto eterno, se culpando enquanto ninguém mais o culpava. E eu seguia seu exemplo. — O que foi que você me disse, várias e várias vezes? Não foi sua culpa — Jacqueline falou. Ela sugeriu que eu conversasse com alguém que pudesse me ajudar a me perdoar. Eu só queria conversar com ela, mas não podia lhe pedir isso. Cindy sugerira terapia muitas vezes, jurando que tinha servido para ajudá-la a superar a perda da melhor amiga, mas eu me tornara adepto de insistir em dizer que estava bem. Estou bem. Tá tudo bem. Mas não estava. Estava tudo, menos bem. Aquela noite tinha me destruído. Eu me protegi com muralhas para não desmoronar ainda mais, mas nenhuma defesa é eficiente para proteger você de todas as dores possíveis. Eu ainda era tão vulnerável quanto todo mundo, inclusive a garota em meus braços. Mas podia lidar com isso. Podia amar. E talvez eu pudesse cicatrizar.


26

LANDON Fazia muito tempo que eu não tinha medo de nada. Eu estava apavorado, mas não ia demonstrar. Isso não era nada. Nada. — Pronto, Landon? — Heller perguntou, e eu assenti. Tudo que eu tinha já estava no bagageiro do SUV de Charles. Eu não tinha muita bagagem além de uma sacola e uma mochila, e a maioria das minhas roupas estava amarrotada dentro de sacos plásticos como o lixo que eram. Eu tinha conseguido umas caixas vazias na Bait & Tackle para acomodar meus livros e os cadernos de desenhos. Elas cheiravam a peixe. O que significava que a caminhonete de Heller e tudo o que eu tinha estariam fedendo a peixe quando tivéssemos percorrido cinco ou seis quilômetros de estrada. Mas valeria a pena. Liberdade. Eu não queria voltar nunca mais. Segurando sua caneca de “Pescadores pegam com linha e anzol”, meu pai estava parado na varanda de tábuas podres. Era um milagre que algo feito de madeira pudesse sobreviver ali, mas aquela casa se mantinha em pé havia décadas — desafiando o vento, a chuva, as tempestades tropicais e a incansável água salgada, que permeava a cidade toda com seu cheiro salobro dia após dia. Quando eu era criança e aquela casa era do meu avô, eu adorava as visitas de verão, as mesmas que meu pai detestava, mas que minha mãe insistia em fazer. — Ele é seu pai — dizia ela. — É o avô do Landon. Família é importante, Ray. Agora meu pai ficaria e eu ia embora. Dentro da casa malconservada na praia, dava para ouvir as ondas do golfo o tempo todo, dia e noite. Quando eu era mais novo, ficar ali era como me hospedar em uma casa na árvore ou em uma barraca no quintal por uma semana — sem os confortos de casa, mas tão distante da minha vida real que tudo parecia incrível e de outro mundo. Rústico, ao estilo de uma ilha deserta. Depois de um dia explorando a praia e torrando no sol, eu estendia uma das toalhas


que minha mãe sempre comprava antes das nossas férias e deixava na casa do meu avô. As macias toalhas de banho eram compridas o bastante para acomodar meu corpo infantil e largas o suficiente para guardar as conchas que eu recolhia durante longos e quentes dias na praia, que era tudo menos a costa branca que eu descrevia para os meus amigos em Alexandria, onde eu morava. Olhando para o vasto céu escuro e para as milhares de estrelas piscando como se se comunicassem entre si, eu sonhava com quem eu seria quando crescesse. Gostava de desenhar, mas era bom em matemática — bom o bastante para ser chamado de nerd, se não fosse minha habilidade no gelo. Eu podia ser artista, cientista, jogador profissional de hóquei. Cercado por aquela aparente infinidade de céu, areia e mar, eu acreditava que minhas opções eram muitas. Que ingênuo de merda eu era. Aquelas toalhas de banho agora eram como todo o resto aqui. Gastas. Usadas. Tão perto da inutilidade quanto alguma coisa pode ser sem se tornar inteiramente inútil. Meu pai parecia mais velho do que era. Ele tinha quase cinquenta anos — pouco mais jovem que Heller —, mas parecia uma boa década mais velho. Água salgada e sol têm esse efeito. Ser um cretino sem coração e fechado tem esse efeito. Longe demais, Landon. Longe demais. Tudo bem. A dor tem esse efeito. Ele me viu carregar minhas coisas para o veículo de seu melhor amigo, como se fosse normal um pai transferir para outra pessoa suas obrigações paternais — como no dia em que o filho único sai de casa para ir para a faculdade. Mas ele fazia isso havia um tempo. Cabia a mim escolher se ia falhar, fracassar ou superar a vontade de acabar com a minha vida desde que tinha treze anos. Cinco anos de sobrevivência, um dia após o outro. Cabia a mim escolher se ia me levantar ou não. Se ia para a escola ou não. Se ia me importar com alguma coisa, com alguém, ou não. Heller me deu uma chance de escapar, e eu com certeza não ia me desculpar por agarrá-la. — Dê um abraço de despedida no seu pai, Landon — Heller murmurou quando fechamos o porta-malas. — Mas ele não... nós não... — Tente. Confie em mim.


Contive um suspiro antes de me virar e caminhar até a escada da frente. — Tchau, pai. — Meu tom era obediente, algo que eu fazia por Heller e por mais ninguém. Ele pousou a caneca sobre a balaustrada. Suas mãos estavam vazias. Eu o deixava com seu silêncio e sua solidão, e de repente me perguntei como esse momento seria diferente se minha mãe estivesse viva. Ela teria chorado, teria me abraçado enquanto eu a abraçava e a beijava para me despedir, e teria dito que se orgulhava de mim, me faria prometer que telefonaria, que voltaria logo para casa, que contaria tudo. Eu teria chorado abraçado a ela. Pelo bem da única mulher que nós dois havíamos amado, abracei meu pai, e ele correspondeu em silêncio.

Olhei pelo retrovisor e vi a cidade ficar menor. “Objetos no espelho estão mais próximos do que aparentam.” Apesar de uma incômoda curiosidade, eu não olharia para trás para checar se era verdade. Aquela cidade ridícula e os anos que eu tinha vivido nela desapareceriam de vista em cinco minutos e se apagariam da minha mente assim que eu pudesse esquecê-la. — Faça o que quiser com o rádio — disse Heller, e eu olhei para frente. — Desde que não seja aquela gritaria que o Cole usa para ofender os próprios ouvidos. Não suporto aquela poluição sonora que ele chama de música. O filho mais velho dele tinha quinze anos agora. Sempre que estávamos juntos, ele imitava meu jeito de vestir e o tipo de música que eu ouvia, andando atrás de mim e repetindo tudo que eu dizia ou fazia — nem sempre uma grande ideia, admito. Sua atitude de vida parecia ser: Se alguma coisa irrita seus pais, faça-a. Pisquei como se estivesse surpreso. — O quê, nada de Bullet for My Valentine? Nem de Slipknot? Ri da careta agitada de Heller, certo de que ele não acreditava nem queria saber se esses nomes eram de bandas de verdade. Essa foi a única resposta que tive, além do habitual suspiro estoico. Liguei meu iPod no som e escolhi uma playlist que havia montado na noite passada e dado o nome de “Foda-se e adeus”. As músicas eram um pouco menos violentas do que o título sugeria, em consideração ao meu companheiro de viagem. Eu podia compartilhar da atitude de Cole com relação ao meu pai, mas não ao dele.


Não via os filhos de Heller com muita frequência — embora isso estivesse prestes a mudar, agora que eu viveria no quintal da família. Literalmente. Minha nova casa seria o espaço em cima da garagem deles, um espaço que servira de depósito para caixas, livros, decorações de Natal, equipamentos de ginástica e móveis velhos. Minhas lembranças de lá eram vagas. Quando eu visitava os Heller, dormia em um colchão de ar no quarto de Cole. Evitando a viagem no último minuto todas as vezes, meu pai me colocava em um ônibus com minha mochila e instruções rígidas para não fazer nenhuma bobagem enquanto estivesse lá. Eu não era mais criança, e essa não seria uma visita de uma semana. Era um universitário que precisava de um lugar para morar por quatro anos. Um adulto que não podia pagar um dormitório ou um apartamento, além da mensalidade. Heller me disse que eu pagaria o aluguel, mas não seria muito. Eu reconhecia caridade quando a via, mas, por uma única vez em minha vida patética, eu a agarrei com as duas mãos como se fosse a ponta de uma corda de resgate.

LUCAS — Eu dirijo nas primeiras duas horas, e você pode dirigir nas duas últimas. — Jacqueline pôs os óculos escuros e sorriu para mim do assento do motorista de sua caminhonete. — Mas não durma, ou podemos ir parar em El Paso. Preciso que me ensine o caminho. Quando ela saiu de ré, eu acenei para Carlie e Charles, colocando os meus óculos de sol. — A estrada que vai pra lá é outra. Você não é tão perdida. Ela balançou a cabeça e suspirou. — É sério. Não desafie o destino. Você vai se arrepender. Podemos passar o recesso de primavera perdidos, dirigindo sem rumo. Quando parei para pensar que Jacqueline estava indo comigo para casa, dirigir sem rumo durante uma semana não pareceu tão ruim assim. Balancei a cabeça. — Acho que eu devia ter comprado um GPS de presente no seu aniversário. Ela torceu o nariz. — Seria um presente sensato. — Ah, claro, esqueci... Não trocamos presentes sensatos.


Ela tinha me contado que os pais sempre compravam um para o outro (e para ela) presentes práticos e tristes, mas tinham conseguido estabelecer uma nova marca — agora compravam os próprios presentes. — Minha mãe comprou um novo aparelho de ginástica pra ela, e meu pai comprou um grill — ela me disse quando falamos sobre a noite de Natal. — É um grill grande, com queimadores laterais e gavetas de aquecimento, e quem se importa, porque, caramba, comprar os próprios presentes de Natal? Eu não disse a ela que a ideia me parecia ótima. Se ela não gostava de presentes práticos, eu estava destinado a uma vida de impraticabilidade. Pode mandar. Nós dois fizemos aniversário nos dois últimos meses. O presente que ela me deu: dirigir um Porsche 911 por um dia. Nada prático. Heller e Joseph ficaram mortos de inveja. Mandei uma foto para Boyce, e ele mandou uma mensagem de volta:

Foda-se o código dos manos. Vou roubar sua mulher. Tá avisado.

No aniversário de Jacqueline, eu escolhi uma das aquarelas de minha mãe — um horizonte chuvoso em Paris — que encontrei no sótão de meu pai quando fui visitá-lo nas férias de inverno. Mandei emoldurar para ela. Jacqueline ficou muito quieta quando abriu o pacote, e lágrimas escorreram por seu rosto. Tive certeza de que minha aptidão para escolher presentes tinha acabado de ser posta em xeque, e nunca mais me deixariam escolher um presente para alguém. Mas ela se jogou em meus braços, e, uma hora mais tarde, enfiei os dedos em seus cabelos e a beijei. — Espera — falei. — Meu próximo aniversário é só daqui a onze meses. Como foi que isso aconteceu?

Jacqueline estava dormindo encolhida no banco do passageiro, e eu confrontava o fato de estarmos a quinze minutos do litoral. Eu levava minha namorada para casa, ela conheceria meu pai taciturno e meu melhor amigo do colégio, um eterno inconveniente. E, que merda, dormiríamos na despensa? Droga. Eu devia ter reservado um quarto de hotel.


— Hummm... — Ela acordou devagar, bocejou, esticou as pernas, alongou os braços, e depois se sentou de uma vez, piscando. — Chegamos? Eu assenti. — Quase. Havia uma fila para a balsa. Bem-vindos ao recesso de primavera em uma cidade litorânea barata. Para a qual eu levava minha namorada de apenas três meses. Um sentimento pesado se alojou em meu estômago, como se eu tivesse engolido uma barra de ferro. Se ela não houvesse acordado naquele momento, talvez eu tivesse feito um retorno antes de embarcar. Um homem vestido de laranja apontou para a balsa mais à esquerda, e nós subimos a rampa de embarque. Quando desembarcássemos do outro lado, estaríamos a cinco minutos de casa, talvez dez, considerando o trânsito de turistas que injetavam dinheiro naquela comunidade depois dos meses fracos de inverno. Para mim, não havia nada de incomum ou extraordinário naquele lugar, mas Jacqueline se sentou ereta, os olhos bem abertos para absorver tudo — os prédios cobertos de murais e pintados com cores radiantes, as lojas e os restaurantes voltados para o turismo, as ruas pavimentadas que terminavam em quintais sem calçada, a água e os barcos quase sempre visíveis logo ali. — Palmeiras! — Ela sorriu. — São tão fofas! Olhei para ela com uma sobrancelha erguida. — Quer dizer, comparando com as de, sei lá, Los Angeles. Lá são altas e finas. Aqui parecem saber que não há muitos prédios altos ou colinas com as quais competir. São... — Atarracadas? Ela riu. — Fofas. Depois de algumas ruas e curvas, estacionei na alameda de cascalho na frente da casa do meu avô, agora do meu pai. Engoli em seco e olhei para Jacqueline. — Não sei como ele vai ser com você. Quer dizer, ele não vai ser grosseiro nem nada disso. Sempre foi educado com os clientes, e tenho certeza de que, na pior das hipóteses... — Lucas. — Ela segurou minha mão e a afagou. — Vai ficar tudo bem. Não tô esperando abraços e uma festa de boas-vindas. Ele é um homem quieto, como você. Eu entendi. Franzi o cenho. Como eu? Ela virou minha mão e beijou o dorso, rindo como se pudesse ler minha mente, e


provavelmente podia. Toquei sua nuca com a mão esquerda, puxando-a para perto quando nos debruçamos sobre o console. Enroscando os dedos em seus cabelos, eu a beijei, e o medo que dominava minha mente se acalmou. Ela estava ali comigo porque queria. Tínhamos conversado sobre meu pai; ela estava preparada. Graças às sessões semanais de terapia, eu começava a entender como ele lidava com a dor da perda, mesmo que fosse uma reação longe da ideal para a maioria das pessoas. Meu pai podia não estender o tapete vermelho, mas seria educado. Boyce podia ser um cretino, mas ela provavelmente o amaria do mesmo jeito. E a cama da despensa não era menor que a do dormitório dela — um dos meus lugares favoritos do mundo. — Obrigado — falei. Nossas testas se encontraram, e eu vi os dedos de sua mão livre traçando as linhas de tinta em meu braço. Jacqueline inclinou a cabeça e me beijou outra vez, a língua brincando com meu piercing. Ela adorava brincar com a argola quando nos beijávamos, e fez biquinho quando eu contei que teria de tirá-la quando começasse a fazer as entrevistas de emprego. — Por nada — ela sussurrou em minha boca. Nossos olhos se conectaram e minha mão tocou seu rosto. Amo você, declarei em silêncio. Estava pronto para falar em voz alta, mas não sabia como. Não era algo que eu já tivesse dito a uma garota. Não era uma coisa que eu já tivesse sentido, não de verdade. Não assim. Agora parecia bobagem um dia eu ter pensado que amava Melody Dover. O que eu sentia por ela era real, mas era como ficar no primeiro degrau da escada, em vez de subir até a metade. Quando bati à porta, meu pai apareceu atrás da tela, e seu rosto estava mais próximo de um sorriso do que eu já tinha visto nos últimos anos. — Filho — ele disse, pegando uma das bolsas de minha mão. — Entre. Todas as janelas estavam abertas, e a casa toda era dominada pelo cheiro salgado do golfo do outro lado da faixa de areia, do lado de fora da porta do fundo. Meu pai havia pintado as paredes e a madeira do revestimento, e os tapetes velhos deram lugar ao desgastado piso de madeira que, de algum jeito, parecia cem vezes melhor. Uma das pinturas de minha mãe enfeitava a parede atrás do sofá. Eu estava olhando para a tela quando o ouvi dizer: — Você deve ser a Jacqueline. Ela ainda segurava minha mão. — Sim. É um prazer conhecê-lo, sr. Maxfield.


Com esforço, desviei os olhos do quadro, vi meu pai apertar a mão da minha namorada e quase sorrir de novo. — Pode me chamar de Ray. Estou feliz por ter vindo com o Landon, humm... Lucas. Essa era nova. Ele pegou as duas bagagens e as levou... para o quarto dele? Jacqueline o seguiu, olhando para os móveis simples, mas limpos, com a mesma expressão com que havia examinado a cidade, registrando detalhes sem perder nada. Olhei para dentro do quarto de meu pai, mas não era mais o quarto dele. A cama de meu avô havia sido empurrada para a parede oposta à porta, e lá estava o criado-mudo com um abajur novo. A cômoda estava do outro lado. Havia lençóis novos na cama, e as paredes tinham um leve toque de azul. Mais uma pintura de minha mãe enfeitava a parede sobre a cama, e uma corda trançada emoldurava o espelho sobre a cômoda. Meu pai deixou as duas bolsas no chão ao lado da cama. — Achei que precisariam de um espaço para vocês... quando viessem. Eu me mudei para o antigo quarto do seu avô há algumas semanas. Agora posso ver o golfo pela manhã, assim que acordo, descobrir como vai ser a navegação. — O quarto é lindo — disse Jacqueline, olhando pela janela para o pequeno bosque de palmeiras ao lado da casa. A praia era visível ao longe. — Adorei. Essa é uma das pinturas da sua esposa, não é? — E se aproximou do quadro para examiná-lo, enquanto eu continuava encarando meu pai. — Sim, é — ele respondeu. E virou para mim: — Depois que você mexeu em algumas coisas dela no Natal, achei que ela ficaria triste por pensar que suas pinturas estavam guardadas no sótão, em vez de estarem aqui, onde podem ser vistas. — Meu pai comprimiu os lábios e assentiu. — Bem, vou deixar vocês dois descansarem. Já têm planos para hoje à noite? Balancei a cabeça. — Hoje, não. Vamos encontrar o Boyce amanhã. Ele assentiu. — Vou ver o que tenho para o jantar, se quiserem comer aqui. Vários quilos de peixe pescado ontem. Podemos fazer alguma coisa com isso. — Sim. É claro. Parece ótimo. Meu pai assentiu novamente e saiu, puxando a porta até quase fechá-la. Eu me deixei cair sentado na cama. — Caramba.


— A gente nunca falou sobre a minha mãe, frases que começam com ela teria. Jacqueline estava deitada de bruços e eu deitei e a encarei, meu dedo traçando desenhos invisíveis em suas costas. Durante o jantar, nós três conversamos sobre minha formatura iminente e o projeto de pesquisa com o dr. Aziz, que modificara completamente minha maneira de pensar sobre o que aprendi nos últimos quatro anos, propondo uma direção inesperada. “Sua mãe teria ficado orgulhosa”, ele dissera, e Jacqueline segurara minha mão sob a mesa recentemente envernizada, porque sabia que peso tinham aquelas palavras. Agora estávamos deitados na cama, no quarto onde meus pais ficavam sempre que vínhamos visitar esta casa nos meus primeiros treze anos de vida. Meu pai agora ocupava o quarto que era de meu avô, cujas paredes ele pintara de verde-água. Lá também havia quadros de minha mãe. A despensa era usada novamente para guardar comida e também uma pilha perfeita de caixas contendo velhas pastas. Os buracos na parede foram fechados e pintados. A luminária de três lâmpadas deu lugar a uma lâmpada simples de teto. Eu ri quando entrei no espaço apertado para pegar um dente de alho, como meu pai tinha pedido. Ali eu me senti seguro, e de repente fui tomado de assalto pela constatação de que sempre me sentira seguro naquele lugar. De algum jeito, aquele era meu porto seguro enquanto todo o resto ia para o inferno. — Obrigada por ter me trazido. — Jacqueline virou o rosto para mim na escuridão, seus olhos refletindo o luar pálido que entrava pela janela. O som das ondas lambendo a areia entrava no quarto como uma pulsação lenta, mansa. — Obrigado por ter vindo comigo. Ela se aproximou um pouco mais. — Não vai me contar para quais empregos se candidatou? — Não. E você sabe por quê. — Você quer que eu me transfira para o melhor curso de música que encontrar, sem levar em conta onde você vai estar — ela recitou, e seu tom sugeria um revirar de olhos. — Mas... não suporto pensar que em seis meses, não, em cinco meses podemos estar em lados opostos do país. Eu não pretendia colocar nenhuma distância entre nós nos próximos dois anos, mas não revelaria meu plano até tudo dar certo. Dependia de sorte, e eu não queria que ela se decepcionasse. Tracei a linha de seus cabelos da têmpora até um lado do queixo e


segurei seu rosto. — Você não vai me perder. Mas não vou fazer com você o que ele fez. Você tem sonhos, e eu quero que os siga. Preciso que você faça isso. Porque... — Respirei fundo. — Eu te amo, Jacqueline Wallace. Ela engoliu em seco e seus olhos se encheram de lágrimas. — Eu te amo, Landon Lucas Maxfield. Meu coração cresceu e eu me inclinei para beijá-la, amá-la, me apoderar dela. Em suas palavras formais, ouvi o eco do meu futuro — um futuro do qual, eu tinha certeza, nenhuma distância me desviaria: Eu recebo você, Landon Lucas Maxfield... Sorte podia ser conquistada e criada. Podia ser descoberta. Podia ser recuperada. Afinal, eu tinha encontrado essa garota. Encontrei meu futuro. Encontraria o perdão. Minha mãe teria ficado feliz por mim. E, pela primeira vez em muito tempo, eu não me sentia culpado em relação a isso.


Epílogo

Jacqueline foi convidada a se transferir para três dos cinco cursos de música aos quais se candidatou, mas, quando recebeu a carta de Oberlin informando sua aceitação, nenhum dos outros teve importância. Dez segundos depois de acessar sua caixa de e-mail, ela pulou do meu sofá gritando e com isso mandando Francis direto para baixo da cama. Quando tive certeza de que ela gritava de extrema felicidade, e não por causa de uma aranha do tamanho da minha mão, abri os braços e ela se jogou neles. — Parabéns, baby — murmurei contra sua boca, adorando vê-la tão feliz. Jacqueline mandou uma mensagem de texto para Erin. Telefonou para os pais. Mandou um e-mail para o diretor da orquestra do colégio. Então calculou quão longe estaríamos um do outro quando ela se mudasse, se eu continuasse ali. Duas firmas de engenharia na cidade me assediavam intensamente, e eu as considerava de verdade. Tinha ainda uma entrevista com outra empresa especializada em robótica de semicondutores — um trabalho de design tão legal que eu nem poderia ter imaginado quatro anos atrás, quando todas as minhas energias estavam focadas em entrar na faculdade. Levei Jacqueline para comemorar e me recusei a discutir os quilômetros, as horas e os anos diante de nós. — Hoje, não — repeti, até ela desistir. Se tivéssemos que namorar a distância pelos próximos dois anos, então seria exatamente isso que faríamos. Mas a entrada de Jacqueline na Oberlin havia me dado um novo objetivo. Em dezembro passado, eu havia jantado com Joseph, Elliott e Reni, irmã mais nova de Elliott, que cursava o terceiro ano de medicina na Universidade Case Western, em Cleveland. O esforço evidente para me aproximar dela foi inútil, mas eles nos aproximaram de outra forma. Fascinada com os detalhes do projeto de pesquisa do qual eu faria parte nos cinco meses seguintes, Reni me falou sobre um de seus professores cujo campo de pesquisa era bioengenharia. Quando mandei um e-mail para ela perguntando sobre possíveis indicações de emprego, ela encaminhou meu currículo para esse professor. Ele era um dos três fundadores de uma pequena empresa de bioengenharia em Cleveland. Um dos outros


conhecia o dr. Aziz e viu o nome dele nas minhas referências. Uma semana mais tarde, recebi um telefonema e um convite para me candidatar a uma vaga. A sorte havia sido lançada. O resto era comigo. — Por que você não me conta pelo menos onde vai ser essa entrevista? — Já fazia quarenta e cinco minutos que Jacqueline tentava me induzir a dar pistas em todos os intervalos comerciais do drama zumbi a que assistíamos. — A gente não devia contar tudo um ao outro? — Seu tom açucarado e a expressão de quem quer descobrir segredos, com os grandes olhos azuis fixos nos meus, quase me fizeram falar. Ela era boa nisso. — Boa tentativa — sorri, e ela franziu o cenho. — Vou perguntar para a Cindy. — Foi por isso que eu também não contei a ela. Jacqueline bateu o pé, o que me fez rir até ela me empurrar para o canto do sofá e dizer: — Adoro quando você ri. É tão bonitinho! — E passou os braços em torno do meu pescoço, agarrando meus cabelos para me beijar. Balancei a cabeça e tracei seus lábios com a língua antes de mergulhar em sua boca. Disposto a beijá-la até deixá-la sem sentido, sussurrei: — Bajulação não vai adiantar nada... mas, por favor, por favor, continue tentando.

Minha festa de formatura foi no quintal dos Heller. Depois de não sair de casa por mais de oito anos, meu pai tirou três dias de folga para ir assistir à cerimônia. Sua presença era também uma demonstração de confiança nos melhores amigos. Vendo os três juntos, tive esperança de que aquele fosse o início de um novo hábito para ele. Eu ainda não havia contado a ninguém meus planos para o futuro, mas Charles, Cindy e meu pai sabiam que eu tinha algumas propostas e trocaram olhares de cumplicidade à mesa do café da manhã, quando anunciei que havia feito minha escolha. No entanto, eu tinha de contar a uma pessoa antes de lhes informar minha decisão final, e essa pessoa estava bem ali na minha cozinha, guardando sobras de churrasco no freezer. — Aceitei uma oferta de emprego na sexta-feira — comecei, e ela mal respondeu. Fiquei me perguntando no que ela estava pensando, até que Jacqueline me encarou, incapaz de continuar arrumando os pacotinhos de carne. Minha menina corajosa mal


conseguia conter as lágrimas. Eu a levei para o sofá e a abracei. — É uma empresa nova... tem menos de dez funcionários. Os fundadores são pesquisadores da área de cardiologia e estão desenvolvendo formas não invasivas de mapear atividade eletrocardiográfica para diagnóstico e tratamento de disfunções cardíacas. Eles também querem desenvolver equipamentos invasivos melhores, e querem alguém com conhecimento básico de materiais flexíveis duráveis. A ruga em sua testa sugeria que ela estava confusa. Contei quanto me pagariam e expliquei que o valor seria complementado com ações. — Se a empresa for bem, e eu sei que vai, os funcionários também ficarão bem. Começo a trabalhar na semana seguinte ao Quatro de Julho. Ela me olhou tentando sorrir, mas não me enganou nem por um segundo. Eu sabia no que ela estava pensando — quase dois mil quilômetros de distância. Respirei fundo. — Então, minha única dúvida é a seguinte: será que eu devo morar em Oberlin e ir até Cleveland todos os dias para trabalhar, ou morar em Cleveland e ir até você todos os dias? — Vi sua expressão mudar quando terminei de falar. Seus olhos se arregalaram e encheram de lágrimas. A boca se abriu e ela resmungou alguma coisa que soou como O quê? — Ah, eu não te falei? A empresa fica em Cleveland. — A meia hora de Oberlin. Teríamos seis semanas de separação entre a minha mudança para Ohio e a dela, mas empurrei esse detalhe para o fundo da mente quando ela mergulhou em meus braços. Hoje era meu dia de comemorar, e eu a levei para o quarto para mostrar todas as celebrações que tinha em mente.

Seis semanas de separação foram o inferno. Quando meu voo aterrissou, eu estava quase esmurrando a janela para sair do avião, atravessar o aeroporto e correr para a caminhonete de Jacqueline. Depois de almoçar com os pais dela, nós sairíamos para dois dias de estrada de volta a Ohio. Planejávamos parar para dormir em Kentucky, dirigir o dia seguinte inteiro e chegar ao novo dormitório dela à noite. Como sempre, tudo e todos desapareciam quando eu a via. Jacqueline pulou da caminhonete e me encontrou na frente do veículo, usando um vestido branco e um


cardigã leve e de mangas curtas desabotoado. Minha mala caiu no chão e eu a abracei. — Sentiu minha falta? — perguntei com a boca bem perto da dela. Uma das mãos descansava sobre a base de sua coluna, e eu a puxei mais para perto, escorregando a outra mão para baixo do cardigã para encontrar a pele nua. O vestido não tinha pano nenhum nas costas. Puta merda, o dia seria longo. Ainda não era nem meio-dia, e eu já imaginava a hora em que fecharíamos a porta do nosso quarto de hotel à noite. — Se me beijar você vai descobrir quanto. — Ela ficou na ponta dos pés, os olhos provocantes enquanto meus dedos passeavam por suas costas. Levei-a para o lado do passageiro da caminhonete e a empurrei contra a porta. Queria soltar os botões do vestido em sua nuca, e ela sabia disso. Jacqueline não se moveu, e eu compreendi que não era o único que me sentia torturado. Capturei sua boca com a minha. Desenhei seus lábios carnudos com a ponta da língua antes de invadir sua boca. — Hummm... — ela gemeu, a língua acariciando meu lábio superior antes de puxar a minha para dentro da boca. Aprofundei o beijo lentamente, e de repente ela se afastou. Seus pés voltaram ao chão e as mãos agarraram meus bíceps sob as mangas da camiseta. Os olhos estavam muito abertos e cravados nos meus. — Lucas. — Humm... Ela olhou para minha boca. — Você...? Isto é...? — Gostou? — perguntei, e ela estremeceu da cabeça aos pés. — Eu sabia que você sentia falta do piercing no lábio. Achei que precisava de outra coisa para brincar enquanto nos beijamos. — Quero ver. Obediente, abri a boca e mostrei a bolinha bem no meio da minha língua. — Ah... Ah, meu Deus... — Ela lambeu o lábio inferior e os olhos buscaram os meus. — É verdade o que dizem sobre isso? Um canto de minha boca se ergueu e uma sobrancelha se levantou. — Acho que vamos descobrir hoje à noite. — E a beijei de novo, dessa vez mergulhando completamente em sua boca. Ela gemeu, um som impaciente. Interrompi o beijo e a segurei pela nuca para cochichar em seu ouvido. — Então me diz, quanto tempo dura essa coisa de Operação Bad Boy? Porque estou fazendo de tudo para prolongá-la.


Ela engoliu o ar e apoiou o rosto em meu ombro. — Ai, meu Deus. Não acredito que você sabia disso. Levantei seu queixo. O rosto de Jacqueline estava rosado. — Como eu tô me saindo? Atendi a todos os seus desejos, ou falta alguma coisa? Eu posso ter emprego fixo e estar completamente apaixonado pela minha namorada... — E a beijei. — Mas a minha imaginação ainda é mal-intencionada.

Costumava haver um motivo para separar antes e depois. De um lado, ficava tudo o que era bom e bonito — um sonho que não podia ser tocado nos momentos de vigília. Lembranças da minha mãe estavam presas ali, e eu me esforçava para esquecê-las, porque só me feriam e condenavam. O outro lado era esforço. Resistência. Meu depois era a realidade crua, e não havia nada a fazer senão sobreviver a ela. E então veio Jacqueline. Esse amor. Essa cura. Essa nova realidade em que antes e depois não eram mais separados por um abismo solitário. Na qual todos os momentos eram uma lembrança tangível e uma promessa do que estava por vir. Cada momento era um antes e um depois. Cada momento era um agora a ser vivido — e eu saborearia cada um deles, começando por este segundo, com essa garota em meus braços.


Agradecimentos

Agradeço aos leitores que me escreveram depois de ler Easy. Suas histórias foram emocionantes, inspiradoras, persuasivas e fortalecedoras. Obrigada a todos que me contaram que acabaram se matriculando em cursos de defesa pessoal, dando início à terapia ou passando o livro para uma amiga, filha, irmã ou sobrinha. Abraços a cada um de vocês. Agradeço a Kim, minha irmã do coração, por ser minha Erin. Agradeço ao meu avô, meu pai e meu irmão, por serem homens que se manifestam, respeitam, protegem e defendem as mulheres em sua vida. Todos os dias vocês me ensinaram como um homem deve ser, como deve me tratar. Por causa de vocês, não me contento com menos. Obrigada, Paul, meu marido incrível, por ser um desses homens. Seu amor e apoio são tudo para mim, e eu não poderia fazer nada disso sem você. Todo amor aos meus pais e aos meus sogros. Sou abençoada e grata por ter cada um de vocês em minha vida. Obrigada às minhas brilhantes parceiras críticas e leitoras beta: Colleen Hoover, Tracey Garvis Graves, Elizabeth Reyes, Robin Deeslie e Hannah Webber, e também à minha editora, Cindy Hwang. Suas sugestões e colaboração foram cruciais para dar vida a Lucas nestas páginas e fazer jus à sua história. Um agradecimento especial aos meus agentes, Jane Dystel e Lauren Abramo, que deram orientação essencial e me mantiveram sã enquanto eu navegava por esta carreira ainda nova. Sou muito grata a vocês. Por fim, a todos que sobreviveram a algo devastador — que arruinou sua autoconfiança e distorceu seu mundo com um único golpe. Se você encarou isso, ou desmoronou, ou varreu para baixo do tapete durante anos, pouco importa. A cada dia você se torna mais forte. A cada dia você está se curando. A cada dia que sobrevive, você está dizendo a esse acontecimento, pessoa, doença ou lembrança: VOCÊ NÃO ME DEFINE. Continue assim.


Este e-book foi desenvolvido em formato ePub pela Distribuidora Record de Serviรงos de Imprensa S.A.


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Epílogo Agradecimentos Colofão


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