Golpe de 64 - 50 anos

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Diário do Pará DOMINGO, Belém-PA, 23/03/2014

FOTO: ORLANDO BRITO/DIVULGAÇÃO

xpõem expõe entos e ocumentos Docum D , antes estud como funcionários e mestres da UFPA eram vigiados e perseguidos pela ditadura: instituição reúne relatos e abrirá Comissão da Verdade

ARTE: D’ANGELO VALENTE

ISMAEL MACHADO

urante todo o período em que vigorou o regime militar no Brasil, a Universidade Federal do Pará teve seus passos vigiados. A monitoração feita pela Assessoria de Segurança e Informação (ASI), órgão vinculado diretamente ao Serviço Nacional de Informações (SNI), tinha como alvos professores, servidores e estudantes que pudessem ser considerados subversivos. O serviço de espionagem assumiu proporções tão grandes na instituição que tinha o poder de veto a contratações de profissionais. Foi o que ocorreu, por exemplo, com o professor Heraldo Maués, cuja contratação era vetada diretamente pelo SNI. No caso de professores como Edna Castro e João de Jesus Paes Loureiro, a ordem era implícita, com o órgão ‘indicando’ a não contratação dessas e de outras pessoas. O minucioso serviço de monitoramento também costumava pedir informações à reitoria da UFPA sobre professores considerados subversivos e se estendia também aos servidores e estudantes. A recomendação era sempre em se ‘tomar cuidado’ com reuniões para organização de movimentos. Essa constante vigilância está registrada em documentos oficiais guardados no Arquivo Central da UFPA, e que aos poucos vêm ganhando a luz, por conta dos trabalhos coordenados pela pesquisadora Edilza Fontes, doutora em história social e professora da Faculdade de História, do Programa de Ciência Política do curso de Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação em História Social da Amazô-

Presidente Figueiredo: último líder da ditadura foi homem forte do SNI, que

nia da UFPA. O ponto central desse trabalho ocorrerá no dia 31 de março, dia do aniversário do Golpe Militar de 1964. Será o momento em que o reitor Carlos Maneschy empossará os membros da Comissão da Verdade da UFPA, batizada com o nome do estudante César Moraes Leite, morto por um agente federal infiltrado em plena sala de aula no início dos anos 1980. “O trabalho começou em 2012, um ano depois de criada a Comissão Nacional da Verdade. Foi quando o Ministério da Educação e Cultura também se debruçou sobre o assunto”, diz a professora Edilza Fontes. o MEC pediu que as universidades enviassem documentação de 1946 a 1988, mas com um prazo curtíssimo, de 15 dias. “Era impossível fazer levantamento nesse prazo. O reitor Maneschy me chamou e a partir daí foi criado o projeto ‘Os anos de chumbo: memórias, silêncios, traumas e cultura educacional na UFPA’, visando aprofundar essa questão na universidade”. O resultado inicial foram 32 depoimentos gravados com ex-alunos e professores, que foram presos, torturados, responderam a inquéritos e, no caso de professores, foram impedidos de serem contratados pela instituição, pois eram fichados no SNI. GERAÇÕES CALADAS

Na pesquisa, a professora Edilza dividiu os relatos em três grupos ou gerações. A de 1964, a de 1968 e a que surge a partir de 1979, com

o processo de anistia e redemocratização. “Em 1964 o movimento estudantil era muito forte. Considero que a invasão da União Acadêmica Paraense [UAP] tenha sido o momento mais forte e dramático daquele período, quando a sede da UAP, onde hoje funciona o Hotel Regente, foi cercada por soldados do Exército, todos armados com metralhadoras”. Esse momento decretou, por exemplo, a prisão do hoje publicitário Pedro Galvão, que ficou 50 dias encarcerado e depois responderia a inquérito militar. O escritor João de Jesus Paes Loureiro também seria preso naqueles dias onde a ditadura dava os primeiros passos. Loureiro chegou a ser levado ao Cenimar, o temível órgão da ditadura ligado à Marinha. Lá foi torturado. Ruy Barata foi preso e levado a Cotijuba. A ditadura rapidamente sufocou os focos possíveis de reação. “Levantamos todos os jornais de 1964 a 1968, os nomes que apareciam nas páginas. Buscávamos saber se ainda estavam vivos e tentávamos entrevistas”, explica Fontes. Nomes como o de Aloísio Leal, estudante de Economia, que fabricava coquetel molotov e acabou optando pela luta armada. Ou estudantes como Celeste Medeiros e Alaíse Sales, presidente do Diretório da Faculdade de Filosofia, Ciências Humanas e Letras. Período em que o campus do Guamá, inaugurado em agosto de 1968, é ocupado e assiste a um ainda possível debate de ideias entre a Presidência da República, representada

vigiou também as universidades do País

pelo Ministro da Educação, e os estudantes, incluindo um inédito debate na televisão sobre os rumos da educação naqueles tempos fechados, e sob a influência do acordo educacional feito com os Estados Unidos (MEC-USAID), que implodiria gradativamente o ensino nacional. “O balanço que a gente faz é que até agora havia um silêncio da universidade sobre esses eventos históricos e que começam a ser descortinados. Ainda há muito o que nos aprofundarmos nessa história”, avalia Edilza Fontes.

O SNI tinha como alvos professores, servidores e estudantes. Tinha o poder de veto a contratações e costumava pedir informações à reitoria sobre os considerados subversivos. Essa vigilância está registrada em documentos oficiais guardados no Arquivo Central da UFPA, e que aos poucos vêm ganhando a luz”

ÃO: TARÇO REPRODUÇ

SARRAF

FOTOS: DIVULGAÇÃO


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Diário do Pará SEGUNDA-FEIRA, Belém-PA, 24/03/2014

O silencio para

300

Belém no dia do Golpe de 1964: soldados nas ruas, universidade fechada, bancários e portuários contidos e prisões programadas

da ameaça comunista. “Satanizaram o comunismo nas páginas de jornais”, diz o historiador. “No caso da imprensa paraense, os discursos jornalísticos acabaram solidificando opiniões, desvelando outras, mas, acima de tudo, produziram discussões, confrontos e um sem número de imagens acerca do que fosse o perigo comunista ou ameaça vermelha para a sociedade paraense. Tratava-se de matérias que “desqualificavam” o ideário marxista como estratégia de embate ideológico que permeou a Guerra Fria”, escreve Cuélar junto a Marivaldo Santos em uma monografia intitulada ‘O Vermelho nas letras de jornais - uma análise dos discursos anticomunistas na imprensa paraense de 61 a 64’. “A sociedade apoiou o golpe. O povo pediu pelo golpe. Esses discursos só existiam porque o povo clamava por isso”, diz ele. “Isso porque o medo do comunismo sempre existiu. De 1935 em diante esse medo foi uma constante entre os setores da burguesia”, lembram Cuélar e Santos.

Militares fecharam a universidade, bancários e os portuários foram contidos e políticos adversários presos. Com a prisão de 300 pessoas em Belém, afastaram qualquer risco de reação. O Pará teve um papel importante no golpe porque era o principal estado da região Norte. Aqui estava o Comando do Exército. Se o Pará tivesse resistido teríamos um cenário diferente” Pére Petit, historiador

ODUÇÃO FOTOS: REPR

res em um Brasil de transformação. Do lado de fora, os Estados Unidos, preocupados com a tendência ‘esquerdizante’ do país, vigiava, estimulava e colaborava com os planos golpistas. “Foi um golpe preventivo que se tornou uma ditadura. Nós depusemos um presidente”, admitiu Jarbas Passarinho em 2010 ao jornalista Geneton Moraes Neto. Passarinho pode ser considerado o grande mentor do golpe em terras paraenses. Articulou, conchavou e cooptou. Teria, segundo afirmam alguns historiadores, pelo menos 100 pessoas influentes nos mais diversos lugares disseminando as ideias a DO CHA MA favor de uma tomada de poder. ISMAEL “O Pará teve um papel imtalvez portante no golpe porque era urou menos de um o principal estado da região dia. A reação Norte. Aqui estava o Comanao Golpe Mi- do do Exército. Se o Pará tiveslitar no Pará se resistido teríamos um cefoi sufocada de nário diferente”, afirma Pére diata que no Petit. “Mas o Jarbas Passariime tão forma ao anúncio nho controlava a mídia e toda inte segu dia da tomada do poder pelos ela se pôs do lado da ‘revolumilitares, os opositores já ção”, complementa. haviam sido neutralizados. TRÊS ANOS ANTES “Os militares fecharam a os cári ban os A manchete chamava a universidade, con m fora ios atenção do leitor menos atene os portuár poos e ente dam rapi to. Nela, se dizia que Fidel havia tidos os. pres rios ersá adv os sido morto. Ido ao ‘paredón’. lític Foi assim, com a prisão de No texto se percebia que ‘Fidel’ 300 pessoas em Belém, que nada mais era que um galo de os militares afastaram qual- briga cubano, capturado junto quer risco de reação”, diz a centenas de outros galos em o historiador Pére Petit, ao rinhas, proibidas naquele conanalisar os primeiros mo- turbado ano de 1961 pelo presidente Jânio Quadros. “O primentos do golpe no Estado. Oficialmente a ditadura meiro a ser abatido foi ‘Fidel foi anunciada em Belém às Castro’, um bonito galo de ori15h30min. É quando o general gem cubana [daí seu nome] Orlando Ramagem, chefe do importado diretamente daqueComando Militar da Amazô- la violenta ilha (...). Fazendo jus nia, é informado via rádio- ao nome que carregava, ‘Fidel amador, a reboque de Jarbas Castro’ foi o primeiro a provoPassarinho, que ‘a revolução car seus companheiros de priteve êxito’. Foi o ponto cru- são, causando um pandemônio cial de pelo menos três anos dos diabos”, carregava nas tinanteriores, em que a gran- tas o jornal ‘A Vanguarda’, de 3 de imprensa, setores da clas- de agosto de 1961. O episódio banal é o ponto se média, oficiais das forças erva cons s tico de partida que o pesquisador armadas e polí , aram sonh am, ejar Jaime Cuélar Vellarde utiliza dores plan ra cont ico pân o m nara para demonstrar como durandissemi ucom aça ‘ame sta supo te os três anos que antecedeuma am ram ao golpe militar a imprennista’ e finalmente depuser te iden sa, de modo geral, fomentou João Goulart, o pres já ente um clima de pânico na socieleito democraticam -pre vice a edade em relação ao perigo que à época, o voto do te den pen inde sidente era voto presidencial. João Goulart, o Jango, assumira depois da renúncia teatral de Jânio Quadros e de um período nebuloso de parlamentarismo. Passou três anos buscando equilibrar-se entre os cortejos da esquerda e os anseios conservado-

ARTE: D’ANGELO VALENTE

A reação ao Golpe de 1964 no Pará durou menos de um dia: ação dos militares para calar qualquer tentativa de resistência foi fulminante e somou 300 paraenses presos


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Diário do Pará TERÇA-FEIRA, TERÇATER ÇA-FEIRA, Belém-PA, 25/03/2014 ÇA-

De jornalistas alheios a políticos desatentos ou despreocupados,os dias antes do Golpe no Pará não pareciam suscitar temores - embora já não fossem poucos os que o queriam e o articulavam ARTE: D’ANGELO VALEN VALENTE ALENTE

ISMAEL MACHADO

o dia 13 de março de 1964 o presidente João Goulart praticamente selou o próprio destino. O grande comício da Praça Central onde defendeu enfaticamente as reformas estruturantes, planejadas há tempos pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB), incluindo reforma agrária e educacional, entre outras, sedimentou o caminho para os conchavos destinados a apeálo do poder. Três dias antes, a Universidade Federal do Pará já demonstrava estar em plena ebulição. Havia greve na Faculdade de Filosofia, na Escola de Engenharia e o Serviço Social também estava agitado. Só que mesmo com os ventos mudando de direção rapidamente, havia quem não acreditasse que um golpe pudesse ser efetivado. Tanto que no dia 20 de março, o ex-presidente Juscelino Kubitschek é aclamado candidato natural do PSD para as eleições do ano seguinte. A comitiva paraense que foi ao Rio de Janeiro participar da convenção nacional do partido somava 42 pessoas. Entre elas, Líbero Luxardo, Arthur Carepa, Gurjão Sampaio e Nagib Mutran. Empolgado, o governador do Pará, Aurélio do Carmo faz um discurso onde demonstra não ser bom profeta. “Vemolo já investido na Presidência da República”, bradou, afirmando que “mais do que um candidato, JK era a ressurreição da esperança”. Não se contendo, Aurélio do Carmo foi mais longe, dizendo também que via JK sendo acutilado por todas as agressões, ameaçado de todos os modos pela ‘impertinência dos inconformados’. Os ‘inconformados’ seriam tão impertinentes que não esqueceriam as pa-

lavras do governador algum tempo depois. PONTOS CEGOS

Mesmo políticos calejados não percebiam que as coisas estavam mudando. Ao colunista Odacyl Cattete, Benedito Monteiro dizia que o candidato a governador do Pará que pretendesse o apoio do PTB (partido dele) já devia começar a linguagem reformista de Jango. Menos de dez dias depois dessa afirmação, Monteiro tentaria uma fuga cinematográfica para as Guianas num pequeno avião, mas acabaria sendo perseguido e preso nas matas de Alenquer. Havia otimismo e uma certa despreocupação no ar entre a esquerda. José Seráfico cantava vitória na eleição para presidente do Diretório Acadêmico de Direito e o líder socialista Cléo Bernardo embarcava para Santarém, seu município de origem. Talvez não tivessem lido o colunista Pierre Beltrand, de O Liberal, naquele dia 24 de março. Criticando veementemente as atividades de João Goulart, o colunista clamava por ‘democracia ou morte’. Em certo aspecto, seria atendido ao longo dos anos. O fato é que Jango adotava medidas que desagradavam determinados setores. Um exemplo era o plano de colonização na Belém-Brasília, que previa a alocação de milhares de famílias de camponeses ao longo da rodovia, já cobiçada por latifundiários. Esses ainda tentavam resolver as coisas nos velhos

termos do faroeste. Em Marabá, Osvaldo Mutran garantia aos jornais que não pretendia ‘matar’ o político local, seu desafeto. Prometia vencê-lo nas urnas. Quarenta anos depois, o velho Vavá descarregaria toda a fúria em cima de um garoto que fora apanhar fruta no quintal dele. Castigo à bala na pequena infração. A manchete do jornal alardeava que o povo levaria JK nos braços em 1965. Faltavam seis dias para o golpe, mas a comitiva do PSD, de volta a Belém, esbanjava otimismo. O comentário feito à boca não muito miúda era que o candidato a governador que tivesse o apoio do PTB e do presidente João Goulart receberia 1 bilhão de cruzeiros para a campanha política. Sem que fosse preciso ressarcimento. No sul do país o clima não era tão otimista. Leonel Brizola percebia que o cerco estava fechando e preparava uma ação defensiva contra os golpistas. Novamente Pierre Beltrand sairia em defesa dos militares. “É a politicalha invadindo os quartéis”, acusou. RECADOS

Antes, no dia 19 de março, a marcha da ‘Família com Deus pela Liberdade’ reuniria uma multidão estimada em 500 mil pessoas no centro de São Paulo. A mobilização havia sido feita pelo governador Adhemar de Barros, o homem do ‘rouba, mas faz’, empresários, políticos da oposição e mulheres religiosas. Todos imbuídos de livrar o país do comunismo. O reca-

Três dias depois do golpe, enquanto a ditadura iniciava perseguições políticas e cassações, um grupo de 44 paraenses surpreendeu o general Ramagem, chefe do Comando Militar da Amazônia, em visita cordial. Embevecido, Ramagem ouviu uma exaltação à ‘magnífica atuação’ das forças armadas na implantação da ditadura”

do parecia claro. Em Belém, Jarbas Passarinho construía o ninho propício ao golpe. No dia 29 de março, cedo, se desloca até o aeroporto Val-de-Cans e recebe a mensagem feita pelo general Castelo Branco, dando munição decisiva aos que desejavam o golpe. Ele estava selado. Era um domingo de Páscoa. No dia seguinte, Passarinho se fazia presente no aniversário do general Orlando Ramagem, chefe do Comando Militar da Amazônia. Entre rapapés e salamaleques, a conspiração se solidificava. Ramagem era tido como apoiador de Jango, mas rapidamente aderiu ao golpe. Em termos de vaidade não se arrependeria. Três dias depois do golpe, enquanto a ditadura iniciava perseguições políticas e cassações, um grupo de 44 pessoas formado entre outros, por nomes como Ajax de Oliveira, Flexa Ribeiro, Aloísio Chaves, Ronaldo Passarinho, Osvaldo Melo, Oswaldo Mendes, Antônio Couceiro e Paulo Chaves Fernandes e liderado pelo professor Clóvis Moraes Rego, surpreendeu o general em uma visita cordial. Embevecido, Ramagem ouviu a exaltação destacando a ‘magnífica atuação’ das forças armadas no episódio da implantação da ditadura. Passava das 17 horas quando o grupo exaltou o caráter cívico dos militares e ouviu em seguida a fala emocionada do general. Aplausos demorados quase abafaram as últimas palavras de Ramagem.


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Diário do Pará QUARTA-FEIRA, Belém-PA, 26/03/2014

ARTE: D’ANGELO VALENTE

aomedo Em Belém,os registros dos primeiros embates, agressões e prisões em clima golpista deram o tom ao que seria o início de décadas de coerção e suspensão de direitos. É o Brasil em ebulição

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ISMAEL MACHADO

invasão americana em Belém, tão temida por comunistas das mais variadas cepas, se deu de outra forma às vésperas do golpe militar. Enquanto uma esquadra americana se dirigia ao Rio de Janeiro, botando-se em prontidão contra qualquer ameaça aos bons ventos da ‘revolução’, em Belém eram 120 artistas que tomavam conta do Largo de São Brás. Integrantes do Novo Circo Americano prometiam um espetáculo do outro mundo ao público da capital. Enquanto a fila para entrar no circo fazia a gerência sorrir de orelha a orelha, os organizadores do Seminário Latino-Americano de Reforma e Democratização do Ensino Superior (SLARDES) mantinham-se alertas e preocupados. Era a abertura do evento no auditório da Faculdade de Odontologia da UFPA, em Batista Campos. O encontro era promovido pela União Acadêmica Paraense, presidida pelo estudante de direito Pedro Galvão. Pensado para discutir a educação, o encontro iria contar com a participação de venezuelanos. Iria. Mais uma vez, Jarbas Passarinho teria papel importante nesse contexto. Era sob inspiração dele que jovens da classe média, alguns filhos de latifundiários e empresários, se organizavam numa versão ao tucupi do Comando de Caça aos Comunistas, o mal-afamado CCC.

Na noite de abertura do encontro, eles estavam prontos para agir. Se infiltrariam no prédio, começariam a participar do evento e, em dado momento, iniciariam a provocação. A polícia estava acionada: para não confundir gregos e troianos, os jovens da direita, entre eles, o atual secretário de cultura Paulo Chaves, portavam lenços brancos. O tiro saiu pela culatra. O estudante André Nunes, membro ativo do Movimento Estudantil e do PCB, ouviu por acaso sobre os planos de invasão e repassou a informação a Humberto Lopes, também envolvido no ME, que procurou Sebastião Hoyos, especialista em artes marciais. Hoyos chamou praticantes de lutas e os postou no evento. Quando as provocações começaram, Hoyos mostrou com quantos golpes se faz uma luta a um lenço branco. Os ânimos até serenaram nessa primeira noite. Na seguinte, não. Com o golpe anunciado, todos foram presos ou perseguidos. Armados de metralhadoras, soldados cercaram o local, dessa vez onde hoje é o Hotel Regente, e iniciaram a invasão. “Fui o primeiro a ser preso”. A frase de Pedro Galvão se tornou emblemática dessa noite. Seria a primeira de tantas prisões efetuadas pelos militares a partir daí. Galvão passaria 50 dias encarcerado e depois responderia a inquérito militar. No meio da confusão, o coronel José Lopes de Oliveira, um narigudo conhecido como ‘peixe agulha’, esbofeteou José Seráfico, um dos participantes do encontro na UAP. “Foi o primeiro ato de agressão física do novo regime”, diz o pesquisador Jaime Cuélar. “Foi o momento mais dramático e simbólico naquele primeiro instante do golpe”, resume a pesquisadora Edilza Fontes. Daquele dia em diante, o medo seria companheiro constante de milhões de brasileiros. À CAÇA

‘Abre os olhos, comunista!’. A frase foi seguida de um balde de água no rosto e Benedicto Monteiro começou aos poucos a perceber efetivamente onde estava. A luz vinda de refleto-

Benedicto Monteiro: caçado nas matas, foi trazido algemado a Belém

res era intensa, quase impossibilitando se enxergar alguma coisa. Era o início da tortura psicológica e do repetitivo interrogatório que Monteiro passaria a receber, relatado no livro ‘Transtempo’. Monteiro havia sido uma figura de destaque no governo de Aurélio do Carmo, um dos secretários de Estado mais atuantes e era um deputado reconhecido entre os pares. Mas, comunista ferrenho, sabia que seria um dos primeiros a serem perseguidos com o regime recém-instaurado no país. No dia do golpe, as principais saídas de Belém haviam sido fechadas pelas forças armadas. Foi Sebastião Hoyos que viria com a solução menos esperada e mais ousada. Pegar um pequeno avião nas barbas dos militares e tentar chegar às Guianas. O plano inicial foi por água abaixo quando Monteiro decidiu ir para a terra natal, Alenquer. A avaliação - ingênua - de Monteiro é que em Alenquer se poderia fazer uma resistência popular. Caiu em si assim que chegou à casa do pai. Decidiu então embrenhar-se no mato, junto a mais três homens habilidosos no trato com a floresta. Foi na mata que Benedicto Monteiro acabou por se entregar. A foto, que já se tornou clássica na história paraense, mostra Monteiro mal barbeado, olhar firme, descalço e em roupas maltrapilhas chegando algemado a Belém. Foi levado para o quartel do 26 Batalhão

de Caçadores do Exército, atual Segundo Batalhão de Infantaria da Selva. Permaneceu preso por 60 dias. Teria os direitos políticos cassados, só voltando à vida normal no governo de Jader Barbalho, nos anos 80.

Hoyos chamou praticantes de lutas ao evento da UAP. Quando as provocações começaram, mostrou com quantos golpes se faz uma luta a um lenço branco. Com o Golpe Militar, todos foram presos. Com metralhadoras, soldados cercaram o local onde hoje é o Hotel Regente. ‘Foi o momento mais dramático e simbólico naquele primeiro instante do golpe’, diz a pesquisadora Edilza Fontes. Daquele dia em diante, o medo seria companheiro constante de milhões de brasileiros”

REPRODUÇÕES: GRUPO DE PESQUISA HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE NA AMAZÔNIA - UFPA / EDILZA FONTES (PESQUISA) / MARIA DE LOURDES RODRIGUES DA SILVA (FOTOS) / CLÁUDIO RICARDO GARCIA, PAULO SÉRGIO DA COSTA SOARES E DAVISON HUGO ROCHA ALVES (RECORTES)

Apresentados


ARTE: D’ANGELO VALENTE

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pelo caráter contra-revolucionário preventivo. A classe dominante e o imperialismo tinham sobradas razões para agir antes que o caldo entornasse”, escreveu Jacob Gorender no livro ‘Combate nas Trevas’, em 1987. “Um dos maiores mitos e mentiras no Brasil é que haveria um golpe de esquerda”, disse o escritor Marcelo Paiva em 2012, durante cerimônia do Prêmio Vladimir Herzog. Filho de pai desaparecido pela tortura, Paiva descarta a ideia defendida por Gorender. MARX NA SOLITÁRIA

ISMAEL MACHADO

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Brasil vivera anos emblemáticos entre o fim da Era Vargas e o apogeu da Era JK. Se Vargas representara outro período nacional, entre a predominância da economia rural e o início da ascensão urbana, Juscelino Kubtschesk tentaria entrar para a história como o presidente ‘modernizador’ do país. Do surgimento da Bossa Nova à conquista dos primeiros títulos mundiais da Seleção Brasileira, o momento era de euforia, como se o Brasil, o eterno país do futuro na visão do escritor Stefan Zweig, houvesse finalmente encontrado o próprio norte, simbolizado na construção da nova capital, Brasília. Mas nem tudo eram flores. Do suicídio de Getúlio Vargas ao fim da Era JK havia um crescente sentimento de que os porões do poder abrigavam setores da direita sedentos por assumir o controle do país. A volúpia pelo leme político acentuou-se nos confusos anos entre 1961 e 1963, com renúncia de Jânio Quadros, experiência parlamentarista e guinada à esquerda de João Goulart com as reformas de base. Os acontecimentos de 1964 só cristalizaram antigos anseios, desejos e ambições que haviam nascido pelo menos dez anos antes, mas também foram uma maneira de solapar o crescimento cada vez maior das ideias socializantes no país. “O período 1960-1964 marca o ponto mais alto das lutas dos trabalhadores brasileiros neste século, até agora. Nos primeiros meses de 1964 esboçou-se uma situação pré-revolucionária e o golpe direitista se definiu, por isso mesmo,

Um nativo de Marapanin acreditava na tomada de poder pela esquerda e mergulhava na luta por ela. Almeida Saré saiu da terra do carimbó e foi ser fuzileiro naval no Rio de Janeiro. Chegou à Cidade Maravilhosa em 1950, e se tornou cabo escrevente. Querendo ampliar estudos, enfurnava-se na biblioteca. Encontrou Marx e Lênin. Antes, pôs as mãos em ‘Minha Luta’, o livro que expõe as diatribes racistas de Adolf Hitler. Não concordou com nada do que leu. Percebeu o poder dos livros, quando viu um homem preso na cela solitária, por ter sido flagrado lendo Marx. “Na minha época, 90% dos oficiais eram fascistas”, lembra. A imagem o impressionou. “O homem estava quase cadáver, mas ficava dizendo: ‘vocês vão me matar, mas eu morro comunista’. Só pele e osso, mas firme”. O militar fazia parte da célula comunista do quartel, ligado ao PCB. “Eram quatro e eu acabei ficando no lugar dele depois que morreu. Todos éramos fuzileiros navais”, lembra. As reuniões eram feitas num bar na Praça Mauá. Entre um chopinho e outro, se colocavam em dias as últimas resoluções. Tudo na surdina. Na época, o PCB fazia oposição ferrenha a Getúlio Vargas. Saré foi galgando espaço no partido. Viu a ascensão de Jânio Quadros dividir a esquerda. E muitos não confiavam também na posição à esquerda de João Goulart. Mas a avaliação dos comunistas é que o partido deveria apoiar as reformas de base de Goulart, criar condições estruturantes para a entrada em cena do comunismo à brasileira. Dois dias antes do famoso comício onde Goulart defendeu em discurso impactante as reformas de base, Saré embarcava para o Chile. Foi participar do 2º Congresso Latino-americano da Juventude. Ainda no hotel, Saré leu as manchetes de jornais informando que Goulart havia encampado refinarias de petróleo. Ou seja, uma

Deposto, João Goulart chega ao Uruguai: um Brasil em transe

provocação aberta às multinacionais americanas e europeias. Saré percebeu que a resposta militar não tardaria. JANGO DEPOSTO

Não deu outra. No dia 31 de março o PCB soube que Jango havia ‘se escafedido’. “Passamos a noite na sede do partido. De manhã cedo, fui para um comício na Cinelândia. As informações eram as mesmas. Jango viajara, os militares assumiram Brasília”. Aos poucos caminhões do Exército cercavam o lugar. “Começaram a atirar de um clube militar que ficava ali próximo. Uma mulher tombou do meu lado. Fui pra casa chorando de raiva, sem poder fazer nada”. Na televisão o apresentador Flávio Cavalcante dizia que o povo estava comemorando a ‘revolução’. Saré percebeu que havia poucas opções. O prédio da UNE, por exemplo, havia sido incendiado. Fez uma malinha e se refugiou no porão da casa de um amigo. Passou três dias escondido até ser levado ao consulado do México. “Éramos uns 60 e a cada dia chegavam mais”. No México, Saré ajudou a fundar a Associação dos Exilados. As notícias vinham de jornais e o clima ainda era de otimismo em relação ao ano seguinte, de eleições. Saré foi escolhido para voltar ao Brasil clandestinamente para organizar candidaturas. Por Bolívia, fez uma operação cinematográfica para retornar a terras brasileiras, viajando em um trem caindo aos pedaços, depois em uma camionete até onde era a divisa entre os dois países. O caminho pelo mato desembocava no aeroporto de Corumbá, em Mato Grosso do Sul. Saré chegou justo no aniversário da cidade.

No Rio a ideia era ficar clandestino, mas logo foi reconhecido por um ‘companheiro’ que o aconselhou a passar uma temporada afastado. Saré retornou a Belém e de lá a Marapanin. “Em Belém estava uma vergonha, tudo desmobilizado”, lembra. Foi nesse período que conheceu Raimundo Jinkings, um dos mais importantes personagens da esquerda paraense. Mas pouco se poderia fazer. O PCB não embarcaria na luta armada, opção de outros grupos.

Saré percebeu o poder dos livros quando viu um homem preso na solitária por ter sido flagrado lendo Marx. ‘Noventa por cento dos oficiais eram fascistas’, lembra. A imagem o impressionou. ‘Ele estava quase cadáver, mas ficava dizendo: vocês vão me matar, mas eu morro comunista. Só pele e osso, mas firme’. O militar fazia parte da célula do quartel ligada ao PCB. ‘Eram quatro e fiquei no lugar dele depois que morreu. Todos éramos fuzileiros’ ”

REPRODUÇÕES: GRUPO DE PESQUISA HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE NA AMAZÔNIA - UFPA / EDILZA FONTES (PESQUISA) / MARIA DE LOURDES RODRIGUES DA SILVA (FOTOS) / CLÁUDIO RICARDO GARCIA, PAULO SÉRGIO DA COSTA SOARES E DAVISON HUGO ROCHA ALVES (RECORTES)

Comunista paraense relata os momentos decisivos que marcaram a derrubada de João Goulart enquanto era fuzileiro naval no Rio de Janeiro,a fuga de correligionários do país e os bastidores do retorno clandestino ao Brasil para organizar alguma resistência política

Diário do Pará QUINTA-FEIRA, Belém-PA, 27/03/2014


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Diário do Pará

ARTE: D’ANGELO VALENTE

SEXTA-FEIRA, Belém-PA, 28/03/2014

Eles protagonizaram no Pará alguns dos esforços em defesa do mandato de João Goulart e em posição de confronto ao regime de ditadura que se instalava com o Golpe de 1964 no Brasil.Fazer a história teve um preço: tatear os infernos das prisões,mortes e tortura

o banco traseiro da Rural Willis estacionada no meio da avenida, vi de longe os dois homens de cabelos brancos vindo em direção à camionete, conduzidos por militares do Exército que lhes apontavam suas metralhadoras”. É assim que Pedro Galvão relata a prisão de Humberto Lopes e Jocelyn Brasil, dirigentes do Partido Comunista Brasileiro no Pará, logo quando ocorrem as primeiras prisões em Belém após a instalação do golpe militar. Coronel reformado, Jocelyn Brasil seria apenas um dos muitos presos naqueles primeiros dias. A respeito das prisões feitas na União Acadêmica Paraense (UAP), os jornais fazem questão de destacar as ‘vultosas somas de dinheiro’ encontradas com os presos. Com Galvão teriam sido apreendidos 280 mil cruzeiros. As manchetes diziam que a UAP era célula da subversão. A prova: um dos cartazes do evento, com a foice e o martelo comunista em destaque (alto da página). Os locais das prisões se concentraram na área central da cidade, durante os momentos iniciais do golpe militar, antes da deliberação do Ato Institucional nº 5 (1968). Eram locais como a 5ª Companhia de Guarda, que hoje abriga o espaço da Casa das Onze Janelas, no bairro da Cidade Velha, e o prédio da Central de Polícia, onde funcionou o DOPS em Belém.

GUERRILHA

O paraense Nonato Mendes também sentiria o peso da perseguição. No início dos anos 1950 saiu do Pará e foi morar em São Paulo. Em 1952, já trabalhando como torneiro mecânico, foi seduzido pelo ideário comunista. Lá, conheceu um ‘companheiro comunista’, que o levou à Lapa, onde havia uma sede do PCB. “Conheci o Carlos Marighella no início dos anos 1960. Marighela foi um político e guerrilheiro brasileiro, um dos principais organizadores da luta armada contra o regime militar a partir de 1964. Era um líder. Uma força muito grande”, lembra Mendes. Foi por intermédio de Marighella que Nonato acabou indo parar em Cuba para treinamento de guerrilha, junto a pelo menos mais onze militantes. Nonato conheceu Fidel Castro, o irmão Raul e o ícone dos revolucionários, Che Guevara. Passou um ano e dois meses na ilha comunista. Em Cuba, Mendes fazia estudos políticos e socais sobre a América Latina, praticava sobrevivência na selva, aprendia a fabricar armas e explosivos e fazia longas marchas subindo e descendo morros, em treinamentos que duravam até 15 dias. Ao voltar para o Brasil, encontrou o pior dos cenários. Os militares já sabiam dos passos dos revoltosos. “Fomos traí-

Jinkings (de branco) em piquete: preso por articular greve contra o golpe

dos. Ficamos à deriva”, diz. E o nome, marcado. Nonato foi preso e torturado quando a ditadura já estava ficando cada vez mais violenta. “Me fizeram ficar nu e sentar na ‘cadeira do dragão’. O equipamento era uma espécie de cadeira elétrica, geringonça de onde saíam dois fios e uma manivela que, ao ser girada, produzia uma forte carga elétrica”, lembra Nonato. Um dos fios era amarrado no pênis da vítima e a outra ponta ficava com o torturador, que fechava o circuito no corpo do preso. “Primeiro torturavam para depois perguntar”, relata. Depois o paraense ficou preso por três anos no Presídio Tiradentes, local onde muitos opositores do regime eram encarcerados. Só retornou ao Pará depois de libertado. “Não foi difícil prender os opositores em Belém. Todos os endereços já estavam mapeados. Muitos são liberados depois de 59 dias sem acusação formal. Cinco dias depois, são presos novamente. Essa é uma das formas de desestabilizar reações”, diz o historiador Jaime Cuélar. A única reação que não houve foi por parte dos que estavam comandando Belém e o Pará. Rapidamente demonstraram apoiar os militares. Assim como a imprensa e a Igreja.

Conheci Marighella no início dos anos 1960, um dos principais organizadores da luta armada contra o regime militar a partir de 1964. Era um líder. (...) Fomos traídos. Ficamos à deriva. Me fizeram ficar nu e sentar na ‘cadeira do dragão’, uma espécie de cadeira elétrica, geringonça de onde saíam dois fios e uma manivela que, ao ser girada, produzia uma forte carga elétrica. Primeiro torturavam para depois perguntar” Nonato Mendes

REPRODUÇÕES: GRUPO DE PESQUISA HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE NA AMAZÔNIA - UFPA / EDILZA FONTES (PESQUISA) / MARIA DE LOURDES RODRIGUES DA SILVA (FOTOS) / CLÁUDIO RICARDO GARCIA, PAULO SÉRGIO DA COSTA SOARES E DAVISON HUGO ROCHA ALVES (RECORTES)

ISMAEL MACHADO

Atualmente, neste ponto, funciona a Seccional Urbana do Comércio. As prisões eram formas encontradas pelos militares para tentar calar toda e qualquer oposição. Como a de Raimundo Jinkings, um dos nomes mais significativos do comunismo no Pará. Às vésperas do golpe de 1964, Jinkings era um dos que estavam à frente na central sindical CGT planejando a deflagração de uma greve geral como forma de resistir ao golpe que, já estava mais que claro, ocorreria. No dia 1º de abril, Jinkings foi ao Sindicato dos Bancários para uma reunião convocada no dia anterior. Repleto de espiões, o local não denotava segurança, mas Jinkings não se importou e discursou de forma vigorosa, defendendo o mandato de Jango. Passaria a ser perseguido e preso durante praticamente todos os anos que viriam.


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Diário do Pará SÁBADO, Belém-PA, 29/03/2014

ARTE: D’ANGELO VALENTE

Geracoes

partidas E

ISMAEL MACHADO

u tinha uns nove anos quando minha mãe me levava pela mão na avenida Presidente Vargas, no centro de Belém, para ir ao dentista. A cena que vi não se apagou. A avenida estava tomada de jovens que, em passeata, cantavam e gritavam palavras de ordem, às vezes correndo para pichar um muro ou correndo da violência da polícia. Enquanto minha mãe procurava agarrar minha mão com força e encontrar nas calçadas, tomadas pela multidão, os caminhos ao nosso destino, vi um rapaz escrever rápido em um muro, mas não pude ler o que ali deixou”. Essa é a lembrança mais antiga que a psicóloga Ana Cleide Moreira tem dos episódios desencadeados em Belém a partir da tomada de poder feita pelos militares em 1964. Foi o relato dado por ela junto ao grupo de trabalho Direito à Memória e Verdade, do Conselho Regional de Psicologia. “Durante trinta anos da minha vida, vivi sem liberdade. Eram tempos duros, sombrios, de silêncio”, afirma. O pai da psicóloga, então uma criança, havia sido combatente na Segunda Guerra Mundial e não contava nada em casa sobre o que ocorria nas ruas da cidade. “Lembrome de alguns murmúrios, palavras em surdina sobre meus vizinhos, um casal jovem que tinha ‘se tornado comunista’, mas nada se explicava às crianças”, relata Ana Cleide.

A ditadura militar afetou não só os militantes e militares. De certa forma, famílias inteiras foram alcançadas pela sombra do silêncio. Filha de militantes políticos presos, a jornalista Úrsula Vidal sente que cresceu ‘levantando uma bandeira’. “Cresci uma criança estimulada a ser politizada”, diz ela. O que não impediu que carregasse pequenas dores e lembranças pesadas da época. “Quando eu passava em frente ao presídio São José, dizia ‘olha a escola do meu pai’”. Isso porque João Moacir Mendonça, o pai de Úrsula, militante da Aliança Libertadora Nacional (ALN), permaneceu preso no São José depois de ter sido capturado em Recife. E lá a menina ia visitar o pai. As sequelas permaneceram por mais algum tempo. “Eu tinha pânico de policial. Sempre me passava a sensação de repressão e violência. Alguns anos mais tarde, quando fui ler o ‘Brasil Nunca Mais’, que retrata os casos de desaparecimentos e torturas no país, lembrei de uma tortura vivida e contada por meu pai que me marcou muito. Entrei numa pequena crise de depressão”, revela. Ter pai e mãe diretamente envolvidos na luta contra o regime militar exacerbou na jornalista a ideia e necessidade de querer corresponder a ‘entrega’ que eles exercitaram. “Sabia que minha família tinha sido vitimada e eu cresci como se estivesse sempre levantando essa bandeira e lidando com a ferida. Não há distanciamento quando se fala desse período para mim. É a história dos meus pais, da minha família. É uma coisa que dói”. PAIS E FILHOS

Em outros casos, o entendimento era pouco, mas, mesmo assim, as crianças percebiam algo errado, estranho no ar. O escritor, radialista e publicitário Edyr Augusto carrega lembranças do ano do golpe que misturam espanto e curiosidade. “Tinha apenas dez anos em 1964. Um primo meu era de direita. Grande locutor. Um dia, estava na Kombi da PRC5 que me levava ao colégio. A pasta dele abriu. Havia um revólver. Ficou assustado. ‘Não mexe nisso’, ele me disse. Mudou o tim-

IMAGENS: DIVULGAÇÃO

Uma visita às memórias de famílias inteiras afetadas pelo regime militar reaviva dores e momentos que mudaram vidas para sempre.Sim, a ditadura instalada pelo Golpe de 1964 também foi uma dura,vil e cruel guerra contra pais e filhos

Presidente Figueiredo: laços estilhaçados transcendem o regime

bre da voz, até então carinhoso. Entendi. Outra vez, na Presidente Vargas, soldados cercaram o prédio do INSS, entre Aristides Lobo e Oswaldo Cruz. Havia comunistas em um dos apartamentos. Meu pai ordenou que saíssemos da janela. Com amigos nas duas correntes, meu pai, que detestava política, afastou-nos o quanto pôde dos acontecimentos. Meu irmão mais velho ainda participou de reuniões secretas. Nada demais”, afirma Edyr. Era um período também de falsos heróis. Tanto do lado esquerdista como dos que mandavam à época. “Adolescente, lembro de um aniversário em que fui. Um cara se vangloriava de ter estado, como soldado do CPOR, hoje NPOR, no Araguaia, onde havia guerrilha. Tudo muito secreto. Era bafo, percebemos depois”, relata Edyr Augusto. Também filho de militantes políticos que foram presos e torturados, Paulo

Fonteles Filho cresceu ouvindo ser repetida a frase que os torturadores diziam à mãe dele, Hecilda Veiga, quando ela, presa e grávida, sofria a violência característica dos porões das prisões. “Filho dessa raça não deve nascer”. Paulo conviveu com a mãe por apenas 30 dias depois do nascimento. Foi trazido a Belém, por intermédio do coronel Jarbas Passarinho. Hecilda permaneceu presa em Brasília e depois foi levada para o DOICODI, no Rio de Janeiro, ainda por ‘longos’ dois anos. A mesma coisa ocorreu com o pai, Paulo Fonteles. Depois, ambos ficaram no presídio São José entre os anos de 1975 e 1976. Durante muito tempo, a relação com a mãe seria traumática, com ausência de afetos e carinhos. “A tortura transcende famílias e gerações. Afeta a todos”, garante a psicóloga Jureuda Guerra. A ditadura foi uma guerra contra pais e filhos.

Eu tinha pânico de policial. Quando li ‘Brasil Nunca Mais’, que retrata os desaparecimentos e torturas no país, lembrei de uma tortura vivida por meu pai que me marcou muito. Entrei em depressão. (...) Sabia que minha família tinha sido vitimada. Cresci como se estivesse sempre levantando essa bandeira e lidando com a ferida. Não há distanciamento quando se fala desse período. É a história dos meus pais, da minha família. É uma coisa que dói” Úrsula Vidal, jornalista


Com focos de resistência esmagados e vozes contrárias caladas,o Golpe enfim faz assento sobre Belém: políticos apressam-se a se realinhar e a cidade transforma sua rotina à nova ordem.A ditadura mostra os dentes em uma insólita calma que toma as ruas e as praças

A BELÉM INSÓLITA

PO HISTÓRIA DO TEM NIA - UFPA / EDILZA

AZÔ PRESENTE NA AM DA RDES RODRIGUES

LOU ISA) / MARIA DE

FONTES (PESQU

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PO DE PESQUISA SÉRGIO O GARCIA, PAULO CLÁUDIO RICARD SILVA (FOTOS) / DA COSTA SOARES E DAVISON HUGO CORTES) ROCHA ALVES (RE

Outras reações ainda foram tentadas. Trabalhadores da Rodobras, por exemplo, ocuparam todo o norte de Goiás, ao longo da Belém-Brasília. Era a ‘cadeia da legalidade’, estratégia também esboçada por Leonel Brizola no sul do país. Escondido, o fuzileiro naval Almeida Saré não se conformava. Acreditava que teria sido fácil emboscar o general Olimpio Mourão no meio do caminho entre Minas e Rio. Nada disso foi feito. No dia 1º de abril, ainda no Rio de Janeiro, o governador Aurélio do Carmo afirmava serem imprescindíveis as reformas de base e que acreditava nas eleições. Algumas semanas antes havia depositado segue estampa jornal: país convulsa, o show todo o apoio ao ex-presidente A cubana Gladys Ibañes Juscelino como o nome ideal para o cargo máximo da nação. Logo depois seria o primeiDO ro governador a indicar CasteISMAEL MACHA ALINHAMENTO lo Branco como o presidente Eram posições, apesar de ideal. tudo, esperadas. No dia 25 de m carta a um A adesão foi total. O gover- março, em carta ao governador amigo, a escrito- nador sonhava em manter-se no do Rio de Janeiro Carlos Lacerda, ra norte-americana cargo. Em maio, numa tentativa Aurélio do Carmo já definira imElizabeth Bishop, de agradar aos novos donos do plicitamente essa posição. E a imentão morando no poder, Aurélio do Carmo cons- prensa torcia pelo golpe. No dia 6 iro, espantava-se tituiu a Comissão Estadual de de março O Liberal abria espaço Jane de Rio com uma ‘revolução’ em que no Investigação, “em consonância para pedir a cabeça de comunisBancos dia seguinte as pessoas estavam com os termos do Ato Institu- tas das empresas, visando a ‘resamanheceram nas praças e praias tranquilas, cional baixado pelo Comando tauração da moralidade’. fechados. Pessoas vivendo a vida normalmente. Se Revolucionário”. Todo esse esA partir de abril, a caça às correram para se estivesse em Belém e lesse os forço em agradar não conven- bruxas se tornaria intensa. Jarbas abastecer, temendo jornais, aumentaria ainda mais ceu. Sob acusação de corrupção, Passarinho comandaria uma inuma paralisação a sensação de espanto. Era, no segundo Passarinho, Aurélio do tervenção na Petrobras e em Capiapao. dade carg quili o tran eria uma Mou perd o nto, João Carm enta total da cidade. Em tão Poço, o comunista No dia 3 de abril os jornais rãodaCostaerapresonodia 6. rente. A sujeira jogada sob o tagreve, aviação parou. na gio refú pete não demoraria a fazer volu- já anunciavam que os deputados avam Alguns busc Em 2 de abril as aulas oposicionistas perderiam man- igreja e eram acolhidos por alme. seriam suspensas, Bancos amanheceram fe- datos. O vice-governador e go- guns sacerdotes. Receberam remas os jornais chados. As pessoas correram vernador em exercício Newton primenda severa de Dom Alberto atestavam o clima para se abastecer, temendo uma Miranda afirmava que o Pará Ramos em reunião. Um dos sade tranquilidade, paralisação total na vida da ci- não poderia retardar por mais cerdotes alegou que se tratava do ao os ão viári ades aero e as pleta com naut crisa Aero eito . po embora soldados tem dade ‘direito de asilo’, um prec grevaram. A aviação parou. Foi ‘abençoado movimento’. A nota tão básico. Não adiantou. estivessem de a havi ente a única lamentação do colunis- oficial enviada aos jornais era vam efeti O golpe prontidão. No dia 5, ta Pierre Beltrand, que teve de assinada também pelo Coman- sido instalado. Tanto que no dia embora autoridades adiar os programados shows de dante Militar da Amazônia, Or- 5 de abril, os jornais estamparam procurassem Ângela Maria e Jorge Ben. No lando Gomes Ramagem e pelo o aviso: ‘a comissão organizadora agitadores, Belém mais, era felicidade pura. Se di- comandante da 1ª Zona Aérea, da Marcha com Deus pela família estava ‘calma’. O zendo ‘eufórico’ com a “ressur- brigadeiro Armando Menezes. elava a manifestação previscanc golpe efetivamente No dia 2 de abril as aulas ta para aqueles dias’. Não era mais reição da democracia”, o colunista ia além, sugerindo que seriam suspensas, mas os jor- necessária. havia sido instalado. avan ao ão se expulsassem do país o que nais atestavam o clima de tranrelaç em Tanto que os O pânico ele chamava de falsos brasilei- quilidade, embora soldados esti- ço da Revolução Cubana a outros jornais estamparam ros. De fato, nos anos seguintes, vessem de prontidão para coibir países, que passou a ser a maior o aviso: ‘a comissão o exílio seria uma das atitudes manifestações que estavam ofi- paranoia dos Estados Unidos, não organizadora da adotadas pelos militares junto cialmente proibidas pelos novos se estendia a todos os oriundos Marcha com a artistas, militantes e políticos inquilinos do poder. No dia 5, da ilha. Na Maloca, era anunciaDeus pela embora autoridades procuras contrários ao regime. do o ‘show do ano’. Dona de um família cancelava Enquanto Beltrand dizia sem agitadores, Belém estava par de coxas que dispensava maicuba afro a não gostar de saber que a União ‘calma’. s, açõe a manifestação ores apresent O prefeito de Belém, Moura na (como era anunciada) Gladys Acadêmica Paraense não passaprevista’. Não era ria de uma ‘célula comunista’, os Carvalho, também não demo- Ibañes mostrava que Cuba não mais necessária” que estavam na UAP no dia do rou a assumir o próprio lugar era ocupada apenas por revolugolpe foram presos e conduzi- na história. Publicou nos jornais cionários barbudos, com charuto dos em caminhões para os quar- uma mensagem ‘ao povo para- na boca e dispostos a endurecer, téis do 26º BC e 5ª Companhia ense’ se colocando ao lado dos mesmo que com ternura. militares. de Guardas.

REPRODUÇÕES: GRU

ARTE: D’ANGELO VALENTE

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Diário do Pará DOMINGO, Belém-PA, 30/03/2014


ARTE: D’ANGELO VALENTE

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Em 1968 o Regime Militar pôs em prática seu mais duro plano contra a democracia brasileira desde o golpe de 1964.O AI-5 fechou o Congresso e deu plenos poderes a Costa e Silva, mas também acendeu o pavio da resistência

ISMAEL MACHADO

nstalada a ditadura no país, ainda sob o manto de uma democracia ou ‘revolução democrática’ e com apoio de setores da imprensa, da igreja e sociedade civil, o Brasil viveu quatro anos entre o fechamento total e pequenas frestas onde os opositores ainda podiam ir às ruas protestar. Só que a partir de 1968 o cenário foi ficando mais cor de chumbo. O advento do Ato Institucional número cinco, o AI-5, no dia 13 de dezembro de 1968, mutilou ainda mais as possibilidades de participação democrática civil dos brasileiros. A assinatura do AI-5 provocou a frase tristemente célebre do ministro Jarbas Passarinho: “Às favas os escrúpulos de consciência”. Era um sinal que passaria a valer quase tudo. Para muitos dos opositores a opção era a luta armada. Diversas organizações de esquerda defendiam a prática. Umas, acreditando na possibilidade de uma guerrilha urbana. Outros, na guerrilha rural. De uma forma ou de outra, o período era de muita impetuosidade. Quem minimamente ousasse argumentar contra tinha logo o dedo apontado contra si. Imobilismo era o mínimo de acusação feita. A OPÇÃO ARMADA

A Guerrilha do Araguaia se transformaria num dos episódios mais nebulosos da história recente do país, mas antes dela, o Pará poderia ter sido palco de outra guerrilha, planejada pela Aliança Libertadora Nacional (ALN). Foi a morte do principal nome da ALN, Carlos Marighella, que frustrou os planos dos militantes da organização.

Diário do Pará SEGUNDA-FEIRA, Belém-PA, 31/03/2014

Em 1969, dissidentes do PCB que formaram a Aliança Libertadora Nacional (ALN) já vinham preparando o movimento guerrilheiro desde o início do ano em pelo menos cinco locais ao longo do rio Tocantins e da rodovia BelémBrasília. Os focos guerrilheiros seriam próximos a cidades como Imperatriz, no Maranhão, Conceição do Araguaia, no Pará e Tocantinópolis, então pertencente a Goiás. “A opção pela guerrilha rural foi consequência do endurecimento do regime militar, com o AI-5”, diz João Moacir Mendonça, à época militante da ALN. “As duas principais facções políticas da época, o PCB e o PCdoB divergiam quanto à metodologia da resistência ao governo militar. O PCdoB, de orientação maoísta, pregava a luta armada. O PCB, de orientação soviética, se orientava pela frente ampla contra a ditadura, mas sem pegar em armas. Foi a dissidência do PCB que deu origem à ALN, liderada pelo Marighella. E a orientação inicial era a guerrilha urbana”, conta Mendonça. Sem dinheiro para levar a ideia adiante, a ALN partiu para ações urbanas, como assaltos a bancos, para arrecadar fundos para a guerrilha rural. “Em Minas Gerais e em São Paulo, locais aonde se chegou a cogitar a eclosão de movimentos guerrilheiros, a situação mostrou-se desfavorável. O Pará tinha as condições necessárias. Havia problemas latifundiários, havia a BelémBrasília, que apontava para a capital federal, e havia a selva”, explica Mendonça. As estradas vicinais já existiam ao longo da rodovia Belém-Brasília. Seriam boas rotas de fuga, de acordo com o planejamento inicial. Próximo a Marabá, havia a nascente do Rio Capim, outra rota de fuga caso bloqueassem as estradas. O PCdoB já estava nas imediações, mas a ALN não sabia. A estratégia utilizada era alocar cinco pessoas em cada uma das localidades. Cidades como Conceição do Araguaia, São Domingos das Mangabeiras, Imperatriz e Tocantinópolis, ao longo da Belém-Brasília. Militantes que teriam de morar nessas localidades, se possível casar com as pessoas que já moravam lá, se transformar em camponeses, ter lotes de terra. Mendonça funcionava como o elo entre todos esses núcleos. Médicos, advogados, marinheiros, estudantes, todos passaram a ter de aprender a lidar com a terra. As primeiras pessoas a serem levadas foram estudantes de Belém.

Pedro Alcântara Carneiro, Vanderly Gomes Camorim, João Capiberibe e a mulher Janete, estavam entre os primeiros a serem estabelecidos em uma vila de Conceição do Araguaia. Camorim e Alcântara já eram procurados pelos órgãos da repressão. Capiberibe ainda não estava na lista dos procurados. Três estudantes secundaristas de Belém também foram encaminhados a Conceição do Araguaia. “Outras pessoas estavam recebendo treinamento em Cuba e chegavam afoitos, querendo pegar em armas. Mas tinham de esperar, porque ainda não estava acontecendo nada, era um período de preparação”, diz Moacir. No início os moradores dos locais não entendiam a presença dos forasteiros, mas depois, com a criação de pequenas escolas, com a ajuda na saúde e na educação sanitária, os militantes começavam a angariar simpatia. Essa estratégia mostrouse mais eficaz do que a primeira tentada, que era a de falar diretamente em revolução e guerrilha aos camponeses. As mulheres se rebelavam, já que não aceitavam que ‘levassem os maridos para a guerra’. VÉSPERA DA GUERRILHA

Uma importante fonte de apoio eram os padres dominicanos. Com a morte de Marighella, no entanto, essa ajuda foi cessando. Isso porque os militares divulgaram a versão de que os dominicanos haviam entregado Marighella à repressão, para desarticular esse apoio. “Isso fez com que fosse desarticulado o trabalho de campo, porque perdemos um dos principais colaboradores”, avalia Mendonça. A experiência de preparação da guerrilha durou um ano. Os militantes da ALN ficaram nos núcleos entre Conceição do Araguaia, Marabá, Imperatriz e Tocantinópolis entre o início de 1969 até agosto de 1970. A morte de Marighella representou o começo do fim da guerrilha. A primeira queda foi de João Carlos Capiberibe, que estava em Belém. A prisão dele levou a uma série de queda de aparelhos em todo o País. “Havia um trato. Todos sabíamos que seríamos torturados, não havia jeito. Havia então um pré-acordo: tenho que entregar alguma coisa, mas que não dê em nada”, diz Mendonça. Torturado, Capiberibe disse que iria encontrar com Moacir Mendonça em Imperatriz, mas deu a data errada. Três dias depois da data marcada para o encontro, Mendonça percebeu que algo es-

Marighella, morto: ALN recorreu a assaltos para financiar guerrilha rural

tava errado e saiu do hotel que serviria de ponto. Viu o Exército cercar o local e teve a certeza que Capiberibe caíra. Os soldados foram a Tocantinópolis, onde estavam Camorim e Alcântara, presos pela Polícia Federal e trazidos a Belém. Mendonça conseguiu sair de Imperatriz e fugir até Recife. Em Belém, os que davam apoio na retaguarda, como Roberto Correa, Carlos Sampaio, Margareth Refkalefski, entre outros, também já haviam sido detidos. Paulo Fonteles e Hecilda Veiga seriam presos em Brasília. Moacir Mendonça voltou a Belém e foi até as áreas onde haviam sido estabelecidos os núcleos e desarticulou cada um deles. “A mensagem era clara: cada um estava por sua conta, já que não havia mais condições de receberem apoio. Que cada um voltasse ao seu local de origem ou a outro local que fosse mais seguro”. O próprio Moacir Mendonça optou para ir a Recife em 1971, onde voltou a viver na legalidade. Em julho de 1972 foi preso em casa. A ideia da guerrilha do Tocantins e BelémBrasília já havia sido sepultada há um ano. Outra guerrilha, no entanto, já estava em curso na região e demoraria mais três anos para ser totalmente debelada pelo governo militar: a Guerrilha do Araguaia.

A opção pela guerrilha rural foi consequência do endurecimento do regime militar, com o AI-5. As duas principais facções políticas da época, o PCB e o PCdoB divergiam quanto à metodologia da resistência ao governo militar. O PCdoB, de orientação maoísta, pregava a luta armada. O PCB, de orientação soviética, se orientava pela frente ampla contra a ditadura, mas sem pegar em armas. Foi a dissidência do PCB que deu origem à ALN, liderada pelo Marighella. E a orientação inicial era a guerrilha urbana” João Moacir Mendonça, ex-militante da ALN


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Diário do Pará TERÇA-FEIRA, Belém-PA, 01/04/2014

ARTE: D’ANGELO VALENTE

IMAGENS: TARSO SARRAF - REPRODUÇÃO - ARQUIVO

A Guerrilha do Araguaia é até hoje um dos mais controversos capítulos da história do Regime Militar instalado pelo Golpe de 1964: da migração de militantes ao coração do país nos anos 1960 até a dizimação da resistência em 1975, a violência e o horror deram o tom a uma guerra suja

Guerrilheiros mortos nos conflitos na região do Araguaia: ditadura travou guerra vil e secreta nos anos 1970 ISMAEL MACHADO

omprido’ mal podia se colocar de pé. Os passos eram trôpegos. A roupa estava em frangalhos, os pés cheios de bolhas e feridas e o corpo, cada vez mais magro, padecia de malária. Foi assim que ele se apresentou a uma pequena propriedade em São Geraldo do Araguaia. À assustada família moradora do local, ‘Comprido’ se entregou. Era o fim da jornada para ele. O homem alto e magro, de olhos claros, conhecido por ‘Comprido’, era, na verdade, Cilon da Cunha Brum, gaúcho que fez parte do grupo de militantes do PCdoB entranhados na Guerrilha do Araguaia. Já quase totalmente dizimada pelos militares, a guerrilha, em 1975, era uma sombra do que se prenunciava ainda no final dos anos 60. A confiança dos combatentes havia se esvaído. Cilon se entregou, ainda com esperança de sair vivo das matas paraenses. Preso, foi executado dias depois. Seu corpo nunca foi achado. Nem será, segundo depoimento do coronel Paulo Malhães, à Comissão Nacional da Verdade. Segundo o militar, que teve participação ativa na repressão, os corpos de todos os guerrilheiros enterrados no Araguaia foram retirados, eviscerados e jogados ao rio com pedras servindo de peso. Verdade ou não, o fato é

que até hoje, apesar dos esforços feitos pelo Grupo de Trabalho Araguaia, encarregado de tentar encontrar as ossadas, pouco se conseguiu de efetivo. ‘SEM SOBREVIVENTES’

A Guerrilha do Araguaia foi um movimento de resistência ao governo militar que havia tomado o poder em 1964. A partir da segunda metade dos anos 60 e início dos anos 70, o PCdoB enviou 69 militantes para a região conhecida como Bico do Papagaio, entre o atual Tocantins, Maranhão e, principalmente, Pará. A maioria dos militantes eram estudantes. A estratégia era fazer com que os militantes, já perseguidos e visados nas grandes cidades, criassem vínculo com os moradores locais, sedimentando as possibilidades de um movimento de resistência nascida a partir do campo. Exemplos não faltavam. Da China maoísta ao Vietnã, passando por Cuba, a ideia de guerrilha encantava jovens opositores do governo. Caetano Veloso chegaria a citá-la na música ‘Alegria, Alegria’. A guerrilha foi dizimada pelo governo brasileiro em três campanhas militares de cerco e aniquilamento. Na primeira campanha, derrota vergonhosa. Depois, os militares passaram um ano esquadrinhando os adversários numa das maiores ações de espionagem e infiltração da história recente do país.

A última campanha veio com uma ordem de cima: ‘sem sobreviventes’. Assim foi feito. O auge do confronto se deu entre os anos de 1972 e 1975 e se estendeu também a moradores locais. Camponeses que se mostravam simpáticos aos guerrilheiros foram presos e torturados. Outros foram cooptados, alguns à força, outros atraídos pelas recompensas, a guiar os soldados na mata e a caçar guerrilheiros. O MAL AVIZINHADO

Índios Akeawara-Suruí também foram obrigados a participar das ações. Entre as atrocidades cometidas no período, estava a exigência das forças armadas em pedir a cabeça dos guerrilheiros mortos como comprovação da morte deles. Índios e camponeses foram instados a cumprir a ordem. O ponto central de torturas era a Casa Azul, em Marabá, onde atualmente funciona a sede do DNER. No local, os prisioneiroseramtorturados.Muitos eram eliminados depois. Não só militantes guerrilheiros passaram pela Casa Azul. Camponeses também permaneceram presos e torturados na casa, com as sevícias sendo comandadas por agentes que usavam a alcunha de ‘doutor’. Romeu Tuma e Sebastião Curió seriam dois dos‘doutores’quefrequentavam a casa no momento dos ‘interrogatórios’. A partir de 1975, com a derrota da guerrilha, teve

início o que se chamou de ‘Operação Limpeza’, com todos os restos dos mortos sendo ocultados. E um manto de silêncio e medo se espalhou pela Região do Araguaia por muitos anos.

‘Comprido’ se entregou à assustada família de uma pequena propriedade em São Geraldo. Era o fim da jornada. Cilon Brum fez parte dos militantes do PCdoB na Guerrilha do Araguaia. Se entregou com esperança de sair vivo das matas paraenses. Preso, foi executado dias depois. Nunca foi achado. Os corpos de todos os guerrilheiros enterrados no Araguaia foram retirados, eviscerados e jogados ao rio com pedras servindo de peso”


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Diário do Pará

Foi um longo e duro período de distensão entre o Golpe de 1964 até a redemocratização do país e a retomada das eleições diretas em 1982.O ideário militar se agarrou às escaramuças da ditadura o quanto pôde,até ceder.Ao Brasil,ficaram desafios

FOTOS: ARQUIVO

ARTE: D’ANGELO VALENTE

QUARTA-FEIRA, Belém-PA, 02/04/2014

naram uma exilada”, explicou. Dulce organizava assinaturas a favor da Anistia, denunciava prisões e torturas e foi peça importante nessa história. No Brasil os que não partiram lutavam pelo fim da ditadura. Artistas ainda eram censurados. O teatro em Belém foi um dos mais perseguidos no período. Diretores e atores como Cláudio Barradas, Geraldo Salles, Henrique da Paz, Edyr Augusto, Salustiano Velho, Octávio Barata, entre outros, sempre estavam às voltas com censores. GALVÃO NEGA JORNAIS

ISMAEL MACHADO

subida ao poder de Ernesto Geisel, em 1975, era saudada, de forma desconfiada, como uma possibilidade de abertura. Esse foi o recado dado pelo general ao substituir Médici, que trazia no currículo o período mais violento do período ditatorial e um ‘milagre econômico’ feito para durar pouco. Geisel conduziria, não sem atropelos, a chamada abertura lenta e gradual. Só que em dezembro de 1976, o episódio conhecido como a chacina da Lapa, com a execução de três lideranças do PCdoB, mostrou que Geisel não era tão diferente assim do antecessor. Mesmo assim, as pequenas brechas possibilitadas nos anos de Geisel no poder permitiram que o país começasse a pensar na volta da democracia e a lutar pela anistia dos presos políticos. Com Geisel teve fim a censura prévia, embora a censura propriamente dita tenha se estendido até os anos 1980. A militante Márcia Rodrigues teria papel fundamental na luta pela anistia. Márcia, na verdade, era Dulce Rosa de Bacelar Rocque. O codinome era usado junto ao partido comunista. Atraída pelos acontecimentos de 1968, Dulce Rosa começou a se envolver com a oposição ao regime. Impressionou tão positivamente que ganhou uma bolsa de estudo para Moscou, onde passou dois anos. Depois foi para a Itália. Lá, fazia denúncias contra a ditadura no Brasil. “Saí para estudar na França, ou seja, isso foi o que disse a todos os amigos e parentes quando viajei para União Soviética”, revelou Dulce. “Como consegui ficar em Moscou, me tor-

A resistência se fazia de várias formas. Resistência foi o nome de um dos principais jornais alternativos de oposição a surgir em Belém na década de 1970. Surgiu paralelo à criação da Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos, que tinha nomes como Humberto Cunha, Paulo Fonteles, Isa Cunha, entre outros, em suas fileiras. A guerrilha nos impressos também era crucial. O publicitário Pedro Galvão, um dos principais líderes estudantis na época do Golpe Militar de 1964, inclusive, nega, classificando de totalmente inverídicas, as informações publicadas pelos jornais da grande imprensa à época de sua prisão na UAP, logo após o Golpe, que informavam estar ele com ‘vultosas’ somas de dinheiro (ver matéria “À resistência, camaradas”, publicada pelo DIÁRIO em 28 de março). “Nem sabia disso porque à época estava preso e não lia os jornais e eles [os jornais] eram totalmente mentirosos em relação ao que estava se passando”, afirmou Galvão. O publicitário diz que uma leitura desatenta faria com que se pudesse pensar que ele realmente tinha essa quantia em dinheiro à época, o que nem de longe é verdade. A reportagem, parte da série que aborda o período da ditadura militar no Pará, na verdade, mostra, em determinados momentos, como a imprensa paraense foi conivente com o golpe e como em muitas vezes divulgava notícias que não correspondiam à verdade. Essa manipulação é ressaltada durante várias reportagens dessa série. Tanto que no texto é enfatizado que são as manchetes de época. O texto ressalta a importância de Pedro Galvão (assim como de outros militantes) para a histórica luta em defesa da democracia brasileira e também enfatiza

Protesto no fim dos anos 1970: só no governo Geisel o regime iniciou o recuo que levou à redemocratização

a idoneidade moral com que Galvão sempre se portou diante da própria história. LUTA DESIGUAL

A resistência dos movimentos populares e de trabalhadores no Pará foi uma das mais emblemáticas ao longo dos anos da repressão estabelecida pela ditadura militar. Apesar das dificuldades de transporte, comunicação e da própria vigilância realizada pelo regime dos militares, várias lideranças da sociedade civil surgiram no Pará e contribuíram com a organização da luta contra a ditadura em todo o Brasil. “Em 1976, afigurava-se aqui no Pará uma luta cruel e desigual. Os guerrilheiros do Araguaia tinham sido dizimados, a oposição democrática quase calada, os sindicatos nas mãos dos pelegos, na quase totalidade; o movimento operário desarticulado, o movimento estudantil esfacelado, buscando a reorganização na clandestinidade; os partidos revolucionários todos buscavam uma saída, uma forma de, à plena luz do dia, se fazer ouvir e propagandear a luta pelas liberdades políticas”, escreveu Isa Cunha em 1987, por ocasião do aniversário de 10 anos da SDDH, quando ela era a presidente da entidade. “Nós vivíamos numa tensão constante, de que a qualquer momento a gráfica poderia ser invadida e nós fôssemos presos pelo regime”, relata Paulo Roberto Ferreira, um dos antigos editores do Jornal Resistência. A pastora da Igreja Luterana, Rosa Marga Rothe, que par-

As pequenas brechas possibilitadas nos anos de Geisel no poder permitiram que o país começasse a pensar na volta da democracia e a lutar pela anistia dos presos políticos. Com Geisel, teve fim a censura prévia, embora a censura propriamente dita tenha se estendido até os anos 1980. (...) Sob a vigilância de arapongas, os entulhos da ditadura foram sendo postos aos poucos de lado. Os conflitos agrários se intensificaram, resultado direto da política dos militares para a Amazônia”

ticipou ativamente das mobilizações da SDDH e dos movimentos religiosos de resistência, lembra a vigilância constante do regime. “Nós fazíamos nossas reuniões escondidos, mas nós sabíamos que estávamos sempre sendo observados. Ou eram os agentes infiltrados, ou era

um caminhão que parava próximo de onde nós estávamos e que ficavam nos olhando pelo retrovisor. Existia um risco sempre, mas isso nunca nos impediu de lutar contra a repressão”. A Lei de Anistia, promulgada em 1979, ampliou essas possibilidades. O passo seguinte era a volta da democracia. O ‘Movimento Diretas Já’ foi o ápice dessa luta. Belém chegou a reunir milhares de pessoas em grandes comícios na antiga avenida 1º de Dezembro. Uma paraense, a cantora Fafá de Belém, teve papel fundamental também nesse movimento, que reuniu de jogadores de futebol a artistas e políticos dos mais diversos matizes. Em 1982, foi realizada a primeira eleição direta para governador do Estado. O MDB seria o principal partido a galvanizar a oposição à época, mesmo com chegada ao cenário do PT. Em Belém, o DIÁRIO DO PARÁ foi criado para dar apoio à candidatura de Jader Barbalho, o candidato oposicionista. Jader venceu. Ao longo dos anos 1980, mesmo sob a vigilância dos arapongas do governo, os entulhos da ditadura foram sendo postos aos poucos de lado. A principal mancha no Estado ainda seriam os conflitos agrários que se intensificaram na década, resultado direto da política dos militares para a Amazônia. Mas a partir de 1989, com a primeira eleição direta para presidente, a democracia voltaria a ser o caminho escolhido no país.


A14 PARÁ

Diário do Pará

s da região viam o horror da

Soldados do Exército em

0, moradore guaia: no início dos anos 197 o contra a Guerrilha do Ara

guerra suja bater à porta

açã

ARTE: D’ANGELO VALE

ÇÃO - ACERVO O GLOB NTE / FOTO: REPRODU

O

DOMINGO, INGO, Belém-PA, Belém20/04/2014

foi sacudida s 1970, a região do Araguaia ano s do go lon Ao . iro jue Ca a de pânico nas Caianos, Perdidos, Caçador, re si, mas que refletiam o clim ent as lad iso e ent tem ren flitos resultantes de uma por guerras encobertas, apa aia. Mas foram também con agu Ar do a ilh err Gu a pel manchado de sangue. hostes militares causado de terra quase sempre estava aço ped se, um de on o, fog e ro s da União até o auge da cri colonização feita a fer es e representantes armado nes do po ião cam reg a re , ent 80 s ças ano s mu uriou, no início do Go Das primeiras escara sco nci Fra e o mi Ca de res Aristi ários, paranoia com torturas, conflitos agr causada pela prisão dos pad r, lita mi al ent am ern gov política Araguaia foi o epicentro da pistolagem. der e incentivo à prática de po ortagens especiais de so abu ta, anticomunis de hoje na série de oito rep tir par a ive rev RÁ PA DO IO É essa a história que o DIÁR depois’. o vei e qu rra gue ‘A a intitulad

ISMAEL MACHADO

a o cachorro. Um batia pel e e na outra fer- com tad me nci pri ma s, nu trá r po tro . ia frente, ou minicanos na região ter do a s err do gu e nd gra a fiUm en s veria. DE CAIANOS A palmente na cabeça. Me Os relatos dominicano 6) Me e as forças do bem precio iní do o PERDIDOS (1968 a 197 içã nce aram os dedos nos olhos. mostram como Co . m” ria sen os ece val eu perder aia foi sendo ocupada ao benziam bateram até se res lhe ser mu de As do o dia 2 de Aragu usa Ac do século. Uma ocupahistó- tidos”, conta. junho de 1972, longo quando contavam essas padre nunca eso e o, film eir ao ilh e err ant gu elh que, sem ia à porta. O bat rra r. gue A s. o trabalhador ção ria me eceu o no do torturado ano Glauber Rocha, jun andado de longe qu com , ito érc rural Elicias do bai Ex o. o red sm nte Alf bo no me ndeira, se ves- Tene da tou Deus e o Dia Ferreira man- pelo general Ba primeira guerra, os elo Na du O o. chã s de no aço i, dal ped to Per cu de. pro ver Silva tia de pouco reagiram. mba), camponeses u a terra desde então. acu cho (m ecô os ter an de nic ros mi rei do daria em anos - ter rou os padres que O cenário mu Na lembrança dos mais an vam ma cla . pro aia os agu írit Ar esp do os em Conceição tarde, no início li- seguintes. para tigos está outra o preto Osvaldão, um dos pis o o Com uma coragem rara and qu 0, nun- dos anos 197 guerrilheiros, era imortal, os padrões da época, de o Zezinho ‘da deres leir gri e , se o eir tol ia hav e Dina, combatente famosa ciou os horrores que ’ contratou 60 peões a par par des eta Co bol bor . em tes ava an transform ierm det , passado até dois meses ada rub der a s. aia para um fugirdasbalasdossoldado “Saí de Conceição do Aragu e mantivessem uma qu na do as tad nan con ias de tór os his viç As inada rm para trabalhar em ser Te . tro cen no am a nar erv tor Qui- res porta das casas se derrubadas na Fazenda efa, decidiu que a ordem tar a ado os. Todos se tornaram lev á, Par xadá Bovino do o com a re- murmúri sm me o er faz era aos olhos das forças Baiapelo empreiteiro Neco dores se diri- suspeitos ha bal tra Os va. ser am adas. E a tortura deitou raí no. Juntamente comigo for . Enquanto bota- arm efa tar à aos ou am gir alh esp se res rra do No início dos outros homens, trabalha o, Zezinho zes. A gue o va as árvores ao chã Pelo menos 300 es. com nes os po tad tra cam s mo o Fo s. fog braçai anos 1970 o atearam levados até Bacasos e seus capangas am pre for os, es rav del esc os eir do ha dad ver s os trabal grileiro Zezinho ‘da a fa- ao redor. Todo povoado no quilômetro um ba, os. viv e impedidos de deixar s ado Codespar’ contratou que res foram queim Transamazônica, em São da 68 em e qu zenda. Um dos homens a Foi nesse clim 60 peões para nte Araguaia. Depois sesaiu comigo foi brutalme errilheiros João do gu de a lev a sa um Ca 8 a a 196 par s uma derrubada. mim transferido ria ao gou espancado por um policial che B do de prei- ligados ao PC Terminada a tarefa, Azul, em Marabá, centro iCa u do litar, mandado pelo em fun e aia ar- Baixo Aragu enquanto botava as turas durante a guerrilha. teiro. Depois de suport zada depois pelo tor ati ho reb vel s, o ano os, ng mi s Do mê Em São árvores ao chão, mos mais ou menos um como Boa Vista do 12 ito ram érc Ex ete “M . bra ree lem im no Maria Zezinho e seus de trabalho nesse reg iro Quatro anos depois, Caihe á. ban Par um em vins ser me do ho a 15 capangas atearam solvemos desistir seria palco da primeira beber s ano sem s, nu ros po tod r o, sai uen s a- peq ço. Não pudemo fogo ao redor. Todos erra. A Guerrilha do Ar sede que gu ta tan ti o, nc Sen Fra er. ro, com gen ou o que o Neco e os trabalhadores heio guaia. bebi urina de um compan rno s nos impediu, inclusive com nte gra mi todas Para os foram queimados ro”. Os homens faziam no ram apoio da polícia”. rta apo e qu mesmo, em vivos. Foi nesse - destinos ra as necessidades ali ter Elicias conseguiu fugir, de da sca bu em as aia “M clima que em como Aragu pé. O cheiro, horrível. pois de recusar ser usado m tida, cumpria-se outra ara me jog pro os dad sol den s os 1968 uma leva de o dia Cíce- quand re pistoleiro. Passou 12 Pad de A e ia. tev fec a, hia pro a lavar a sujeir guerrilheiros ligados tro da mata, na compan de lua cheia, água par s ite no e, s Na sed de ro. do e do ao PCdoB chegou na quem, desespera da fome, dos mosquitos do chão os mais velhos contavam ar tom a ade par alid u loc à ixo aba gar palaao Baixo Araguaia medo, até che porta de casa as antigas . caata u rel tro o”, on sm enc me de on ceade Batista, e fundou Caianos. vras do mítico religioso berto de ValiRo cha re o pad eir O on inh cam tarona. Um var, o ser Quatro anos depois sentiu o peso da i- rense. “Para se sal nce bém Co tam até rt ou cou lev o rio Rio Da o mado ela seria palco nejo teria de atravessar de junho de ei- guerra. No dia 1º nd Ba ção do Araguaia. da sca bu em naia mi da primeira guerra: or Aragu preso em São Do foi 2 197 o ssã O relato do trabalhad mi pro da a Guerrilha do s em ra Verde, terra aguaia, junto a irmã rural é um dos mais antigo ria a era do gos do Ar rgi Su . nça s. era aça esp Gr e Maria das raviAraguaia” pe malig- dominicana relação ao sistema de esc nci prí ’, rde ei Ve nh paapa ‘Ca ra ho Pará onda “Durante uma dão moderna utilizada no no. O rio se encheria de as nic crô de o livr do e faz parte


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Diário do Pará SEGUNDA-FEIRA, Belém-PA, 21/04/2014

Uma arquitetura para

ARTE: D’ANGELO VALENTE / FOTO: REPRODUÇÃO - ASBEGA

o conflito Assentadasnaregião doAraguaia,multidões debrasileirosatraídos pelapropagandado RegimeMilitarparaa ocupaçãodaAmazônia protagonizaramuma perversaconjunçãoque deuorigemàgrilageme àpistolagemnoPará: alutaruralinstalava-se

Região do Araguaia: nos anos 1970, palco de conflitos que transcenderam a guerrilha e ainda ecoam hoje ISMAEL MACHADO

E

les chegavam aos montes. Atraídos pela propaganda oficial do governo a respeito da Amazônia, os nordestinos aboletavamse em ‘paus de arara’ e acorriam ao eldorado verde que era a região do Araguaia. Do outro lado do rio, no ainda estado de Goiás- mais tarde Tocantins-, o monsenhor Augusto Dias de Brito se preocupava. Como aquelas famílias seriam alojadas na terra era o desafio a ser vencido. Não seria fácil. Em abril de 1971 a União tomava para si cem quilômetros de cada lado das rodovias federais. A ideia era ter mais controle em uma região já conhecida por ser um barril de pólvora. Sentindo-se lesado, o governo paraense boicotava dados e informações para o recém-instalado escritório do Incra em São Geraldo do Araguaia, numa flagrante queda de braço entre o Iterpa e o órgão federal. O caos fundiário se alastrava. O religioso recorreu então ao governo do Estado, solicitando 23 glebas de pouco mais de quatro mil hectares cada para assentar os migrantes sem-terra. Em dois anos depois do ato da União, o governo do estado publicou no Diário Oficial que as glebas estavam reservadas para colonização. Sem auxílio oficial e sem autorização por escrito, o monsenhor Augusto Dias de Brito começou a assentar 3.500 famílias.

PURGATÓRIO VERDE

Se os nordestinos viram inicialmente as terras amazônicas como o paraíso, Brito haveria de enxergar nos costumes uma ante-sala para os ardores do inferno. Tanto que em abril de 1974 esboçaria um regulamento básico para as colônias. Digno da Santa Inquisição, proibia terreiros, feiticeiros, crendices, desordeiros e suspeitos terroristas. Além disso, abolia os cabarés. O regulamento, com 16 itens, foi solenemente ignorado pelos moradores locais. Para os lavradores, as preocupações eram outras. Sem infraestrutura, lotes demarcados oficialmente, documentos de posse e sem escolas, estradas e postos de saúde, ficar na terra era um esforço descomunal. E numa região cercada por conflitos, era de se esperar que eles chegariam. Não tardaram. A cena passou a se repetir com frequência. Pessoas se dizendo donas da terra ameaçavam os colonos e tentavam a todo custo expulsá-los do local. Dalvo Rodrigues da Cunha ameaçava famílias de cinco lotes. Já em 1973, era a vez de César Sebastião Martins cobiçar três lotes. Outro grileiro, Ronaldo Assumpção, também reivindicava terras ocupadas pelos colonos. Em comum, os três personagens tinham o apoio e o aparato da Polícia Militar, sempre disposta a efetivar com rapidez os despejos das famílias. A ainda jovem Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (Sudam) contribuía para o caos fundiário. Desde a cri-

ação, em 1966, até 1975, o órgão já havia aprovado 33 projetos agropecuários para Conceição do Araguaia e 20 projetos para Santana do Araguaia. Os dois municípios eram os líderes em projetos aprovados. Grupos empresariais nacionais e estrangeiros encontravam facilidades em se instalar na região. Tinham bons créditos bancários e fartos incentivos fiscais. Desde 1967 o governo do Estado ampliava os benefícios, com uma lei que proporcionava a isenção total ou parcial de imposto de circulação de mercadoria para empresas agrícolas, madeireiras e pecuárias. O que atrapalhava eram os pequenos trabalhadores rurais já ocupantes das terras em questão. ACIRRAMENTO

Um sinal que o conflito ganharia outras dimensões foi dado em abril de 1976. No lote 7, uma gleba localizada no Baixo Araguaia, soldados da Polícia Militar armavam-se para tentar prender o lavrador Raimundo Ferreira Lima, conhecido por ‘Gringo’. Os policiais se deslocaram até Itaipavas. Não contavam com a resistência de ‘Gringo’, que não se deixou ser preso e se escondeu nas matas. Gringo escapou dessa vez, mas cinco anos depois tombaria, vitimado pela pistolagem em ‘outra guerra’ no Araguaia. A violência com que esses despejos eram feitos foi um dos estopins para o acirramento dos conflitos. Em 1976, um ano depois de oficialmente extirpada a Guerrilha do

Araguaia, uma nova guerra, a dos Perdidos, sacudia a região do Araguaia. Nela, camponeses, padres, Polícia Militar, pistoleiros e grileiros praticamente fizeram justiça à fama de terra sem lei que costuma acompanhar o Pará.

Sem auxílio oficial, monsenhor Brito começou a assentar 3.500 famílias. Sem infraestrutura, lotes demarcados, escolas, estradas e postos de saúde, ficar na terra era um esforço descomunal. Numa região cercada por conflitos, eles logo chegariam. (...) A cena passou a se repetir. Pessoas se dizendo donas da terra ameaçavam colonos e tentavam expulsá-los a todo custo. A violência dos despejos foi um dos estopins. Em 1976, um ano depois do fim da Guerrilha do Araguaia, uma nova guerra, a dos Perdidos, sacudia a região”


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Diário do Pará QUARTA-FEIRA, Belém-PA, 23/04/2014 IVO

OIS/ARQU

CIO GRAB

ÃO MAURÍ FUNDAÇ

ARTE: D’ANGELO VALENTE / FOTO: REPRODUÇÃO MERAMENTE ILUSTRATIVA

Entre 1972 a 1979, as lutas fundiárias deixaram 60 mortos no Araguaia. De 1978 a 1979, porém, um conflito armado marcou história: nos lugarejos de Cigana e Caçador, se viu a primeira vitória de trabalhadores rurais pela posse da terra. Eles venceram na Justiça, mas só com armas em punho fizeram valer direitos e repeliram a violência da pistolagem

O advogado Paulo Fonteles (alto, ao centro): por lavradores, CPT aderiu à guerra jurídica, mas luta exigiu tiros

ISMAEL MACHADO

dia parecia ter sido escolhido a dedo. Era 25 de julho de 1978. A data comemora o Dia do Lavrador. Como presente, o fazendeiro Neif Murad recebe de um juiz a ordem de despejo para retirar colonos de um lote próximo a Itaipavas. Novamente a Polícia Militar acompanha com celeridade os oficiais de justiça. Mas o despejo não é feito no Lote 73, como especifica a ordem judicial, e sim em Cigana e Caçador, lugarejos a cerca de 30 quilômetros dos lotes. O despejo é feito de forma violenta. Juntam-se polícia e homens contratados por Murad. Invadem posses, arrancam moradores das casas, comandam espancamentos. Barracos são queimados e os colonos, levados a São Geraldo. Nem todos. Um lavrador resiste. Vicente Matão de Aquino, o ‘Péno-Toco’, foge mata adentro. É perseguido por dois pistoleiros. Vira caça na floresta onde costuma ser caçador. Por dois dias os pistoleiros fazem trincheira, rastreiam os passos do colono. Disparam. Julgam que o lavrador está morto. Neif Murad organiza um churrasco comemorando ter se livrado de um entrave. Durante três dias, ‘Pé-noToco’ se esconde na mata. Dorme ao relento. Come o que pode arrancar da floresta. Retorna à posse destruída. É recebido como herói. A comunidade decide resistir. Dessa vez,

com reforço judicial. Com pouco tempo de existência, a Comissão Pastoral da Terra percebe que precisa lidar com algumas das armas dos adversários e contrata advogados. O primeiro se mostra muito atarefado com outras demandas. O segundo se joga de corpo e alma na missão. Nove anos mais tarde, Paulo Fonteles pagaria com a própria vida o preço de ter defendido trabalhadores rurais em tempos de turbulência agrária. Mas, em 1978, Fonteles teria motivos para comemorar. No dia 2 de setembro, consegue a reintegração de posse aos colonos. É a primeira vitória judicial protagonizada pela CPT. Neif Murad entra com outra ação, em uma área ao lado do Caçador. Consegue autorização judicial e o despejo é feito mais uma vez com violência. Fonteles rebate judicialmente e vence de novo. Só que dessa vez a ameaça é explícita. O próprio advogado de Murad diz que há homens armados prontos para impedir a reintegração. “Nem tentem entrar”, avisa. Murad vai além. “Vou transformar lavrador em bagaço”, afirma dias depois. A reintegração é adiada. Só viria a ocorrer cinco meses depois, em fevereiro de 1979. Já que a Polícia Militar justificava a ausência alegando não ter contingente suficiente para desafiar os jagunços de Murad, trinta colonos de outras posses, armados de espingardas de caça, dão apoio ao oficial de justiça. É uma reintegração tensa, com mais de duas horas de negociação junto ao capataz de Neif Murad, conhecido como Xavier. EM ARMAS

Quatro dias depois da reintegração, Xavier e quatro pistoleiros bloqueiam a estrada

de acesso ao Caçador. “Pé-noToco” chama companheiros e cria um atalho pela mata. Xavier passa a ameaçar realizar despejos por conta própria. Os posseiros estão armados e contam com apoio de outros colonos. Permanecem firmes. O capataz se sente encorajado a expulsar os colonos. O confronto se torna aberto no dia 26 de março. O tiroteio cerrado fere um vaqueiro e Xavier percebe que o fim da contenda não será como de costume. E foge, abandonando mulher e filhos. Nunca mais é visto na região. A guerra continua. Em abril, três homens ligados a Murad são postos para correr em novo tiroteio. Os pistoleiros do fazendeiro, pouco acostumados a enfrentar resistência, abandonam o chefe à própria sorte. Outro fazendeiro, Luís Resende, tenta o mesmo procedimento. Os posseiros de Caçador resistem. Caçador foi efetivamente a primeira vitória conquistada por trabalhadores rurais na luta pela posse da terra. Venceram na Justiça, mas isso não foi suficiente. Tiveram de enfrentar a tiros as ameaças de pistoleiros. Também venceram naquele primeiro momento. Organizados, fortaleceram as ocupações. Quatro grandes áreas ociosas seriam ocupadas nos próximos meses. Sumaúma, São Pedro, São José e Açaizal abrigariam 250 famílias. De 1972 a 1979, a guerra pela posse da terra deixara 60 mortos como saldo. E, se o dia 26 de março de 1979 podia ser comemorado como o dia da vitória, com a fuga de pistoleiros diante de trabalhadores rurais, os anos seguintes acirrariam ainda mais a disputa. Outras guerras vi-

riam. A de Cajueiro, já nos anos 1980, seria simbólica. Padres e trabalhadores rurais seriam presos. Os órgãos de informação das Forças Armadas passam a monitorar os conflitos de perto e, livre da guerrilha, Sebastião Curió afia as garras e sobrevoa o Araguaia, buscando ampliar ainda mais o próprio poder. Mais sangue mancharia o sul do Pará.

Juntam-se polícia e homens contratados pelo fazendeiro Murad. Invadem posses, arrancam moradores das casas, comandam espancamentos. Barracos são queimados e colonos levados a São Geraldo. Um lavrador resiste. Vicente Matão de Aquino, o ‘Pé-no-Toco’, foge mata adentro. É perseguido por dois pistoleiros. Vira caça na floresta onde costuma ser caçador. Por três dias se esconde na mata. Dorme ao relento. Come o que pode arrancar da floresta. No retorno, é recebido como herói. A comunidade decide resistir. Dessa vez, com reforço judicial”


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Diário do Pará TERÇA-FEIRA, Belém-PA, 22/04/2014

A guerra de

ARTE: D’ANGELO VALENTE

Perdidos Em1976,oAraguaia acabou sacudido por umconflitoalimentado porumgraveimbróglio fundiário quejáenvolvia 30anosdedescasosdo EstadoedaUnião.De novo,erambrasileiros contrabrasileiros,numa vilescaramuça,agora agravadapelaDitadura. Tambémferida,aigreja tevequetomarpartido

to, desconfiado que fossem guerrilheiros. Recém-chegado do Rio Grande do Sul, o padre Florentino Maboni foi enviado às pressas ao local dos conflitos. Nas mãos, um documento que naqueles tempos valeria pouco: uma carta do bispo de Conceição do Araguaia, Dom Estevão Cardoso de Avelar. Em mensagem direta aos colonos, Dom Estevão encerrava a missiva afirmando: “Devo dizer-lhes que estou tomando todas as providências para que a justiça se faça e vocês permaneçam em suas terras para a paz da nossa querida pátria, já tão abalada pelos abusos do poder econômico”. ESTOPIM POLÍTICO

ISMAEL MACHADO

O

s motivos reais são quase desconhecidos, mas, em 1945, o então interventor federal no Pará, coronel Magalhães Barata, faz uma generosa doação de 50 milhões de hectares de terra no Araguaia para a Fundação Brasil Central, que tinha como membro, entre outros, o futuro presidente do Brasil, Jânio Quadros. A terra, nunca demarcada e sem receber benfeitoria, foi aos poucos sendo ocupada por colonos, ansiosos por uma terra para plantar e morar. Em 1961, o governador Moura Carvalho tornaria nula a doação, mas o estrago já estava feito. A origem da Guerra dos Perdidos, em 1976, está diretamente vinculada a essa confusão imobiliária. Em 1976, os posseiros receberam a notícia de que a terra seria demarcada com a anuência do Incra. A polícia viria junto aos topógrafos para garantir a retirada dos colonos. Em uma reunião de emergência, os trabalhadores rurais decidiram enviar a Belém o lavrador Joel Rodrigues de Souza. A ideia era manter contato com as autoridades e buscar solução ao problema. Nada foi resolvido. Os posseiros sentiam que mais uma vez a terra lhes faltaria. Em São Geraldo, três agentes pastorais vindos do Rio de Janeiro para dar apoio às comunidades foram presos pelo Exérci-

Os topógrafos iniciavam os trabalhos. Em Belém, Incra e Iterpa empurravam responsabilidades. Os colonos procuraram o Exército, que também foi de pouca valia. De volta a área, os colonos pediram aos topógrafos para ver a autorização do Incra. Não havia. O serviço fora encomendado pelos que representavam a Fundação Brasil Central. A guerra era iminente. No dia 27 de outubro, 18 soldados da Polícia Militar chegavam a Perdidos para dar proteção aos topógrafos na demarcação das terras. Fortemente armados, foram avisados pelos trabalhadores rurais que o serviço não deveria prosseguir. Acompanhado do guia, o seminarista Hilário Lopes, padre Maboni, esforçavase para chegar a tempo de evitar o confronto. Chegou tarde demais. Na manhã do dia 28, a polícia entrou nas terras ocupadas. Os posseiros, como avisado, armaram-se e prepararam uma emboscada aos PMs. No intenso tiroteio, foram mortos os soldados Ézio Araújo dos Santos e Claudomiro Fonseca. Outros dois sairiam feridos. E, enquanto as balas zuniam nas matas araguaias, o lavrador Joel Rodrigues chegava a Brasília pedindo providências. Enquanto zanzava de gabinete a gabinete sem ser ouvido, lavradores entrincheiravam-se na floresta. Foi esse o clima encontrado pelo padre Maboni ao chegar a Perdidos no fim da tarde. Todos sabiam que a vingança da Polícia Militar seria pesada. Principalmente porque em Belém, o clima de comoção era amplia-

do pelo uso político feito pelo governador Aloísio Chaves, coronel da velha guarda. Com um discurso que inflamava ainda mais os ânimos, acusando a presença comunista entre os lavradores, Chaves fez questão de carregar o caixão. Três dias depois do primeiro confronto, aproximadamente 50 soldados da PM invadiram Perdidos. Batiam em quem aparecesse pela frente. Barracos foram queimados. Mais de 100 pessoas foram detidas. Entre elas, o padre Maboni e o seminarista Hilário. Perdidos e Boa Vista foram isoladas. Ninguém entrava ou saía. Quem era encontrado nas estradas ou nos rios era sumariamente preso. Maboni clamava a Deus pelo fim dos confrontos, mas foi o oposto dele que conseguiu a rendição dos trabalhadores. Um policial conhecido por ‘Satanás’ trocou o uniforme de PM pelo do Exército e negociou junto aos colonos o fim dos confrontos armados. Acusado de portar balas e facas, padre Maboni foi levado a São Geraldo. Encontrou cerca de 60 posseiros já presos anteriormente. Todos estavam incomunicáveis. Maboni e Hilário foram torturados no período de prisão. A tortura se deu em Xambioá, que já tinha presenciado torturas a guerrilheiros do Araguaia. O interrogatório e a tortura duraram das 7h às 17h30. Anos depois, o seminarista relataria a sessão ao padre Ricardo Rezende: “...ainda era espancado com chutes, ‘telefones’ [quando se bate com as palmas das mãos abertas nos ouvidos da vítima], faziam-me deitar no chão com as mãos postas e diziam ‘reza para nós vermos’. Também encostavam o revólver em minha cabeça e com o dedo no gatilho iam contando até cinco. Quando chegavam ao cinco, diziam: ‘Agora tu respondes a pergunta ou eu disparo esta bala na tua cabeça’”. Hilário lembrou ainda ter sido obrigado a ficar agachado em direção a uma faca com a ponta para cima. Não podia levantar e, se sentasse, seria ferido com a faca. Depois, passaria por uma sessão de choques. Encapuzado, não via o que estava ocorrendo ao redor, mas ouvia lavradores passan-

do por situação semelhante. Os colonos eram postos em fila e recebiam coronhadas de fuzil na cabeça. Já Maboni foi transferido junto a alguns dos lavradores para o presídio São José, em Belém, acusado de ser cúmplice do assassinato dos soldados. Os abusos cometidos contra padre Maboni azedaram de vez as relações entre a igreja e o Estado. No dia 26 de novembro, depois de sucessivas denúncias da CNBB, Maboni foi solto e mandado para o Rio Grande do Sul. Depois de dois meses presos, os posseiros retornaram a Perdidos. E, mesmo com a 8º Circunscrição da Justiça Militar dando o parecer que o caso não fora um atentado à Segurança Nacional, num processo de oito volumes e duas mil folhas, até 1984 nenhuma solução efetiva para o problema da terra foi apresentado. Situações como a de Perdidos, no entanto, seriam fundamentais para o surgimento da Comissão Pastoral da Terra. Principalmente porque, dois anos depois da Guerra dos Perdidos, haveria outra ‘guerra’: a do ‘Caçador’.

Em 27 de outubro de 1976, dezoito PMs chegavam a Perdidos para dar proteção a topógrafos que demarcavam terras. Fortemente armados, foram avisados pelos trabalhadores rurais que o serviço não deveria prosseguir. Padre Maboni e o seminarista Hilário Lopes se esforçavam para chegar a tempo e evitar o confronto. Chegaram tarde demais. No tiroteio foram mortos dois soldados. Enquanto as balas zuniam nas matas, o lavrador Joel Rodrigues pedia providências em Brasília, de gabinete a gabinete, sem ser ouvido. Lavradores entrincheiravam-se na floresta”


ARTE: D’ANGELO VALENTE / FOTO: REPRODUÇÃO

A8 PARÁ

Apósextirparaameaça armada daGuerrilha do Araguaia,nofimdos anos1970aDitadurase viudiantedaeclosão deváriosnovosfocos deconflitosnaregião. Aviade‘pacificação’ paraoProjetoCarajás colocaemladosopostos padresprogressistas, lavradoresearepressão encarnada pelomajor Curió:aguerraéreacesa

Diário do Pará QUINTA-FEIRA, Belém-PA, 24/04/2014

Os padres Camio e Goriou: opção pelos pobres em entreatos dos conflitos

‘terroristas’ impunha receios, principalmente porque os braços, olhos e ouvidos do governo estavam por toda parte, com a presença de moradores assalariados da delação. NOVA GUERRILHA

ISMAEL MACHADO

a ‘Guerra do Caçador’, um religioso, Padre Maboni, foi preso e torturado. O incidente mostrava que as relações entre a igreja e o Estado haviam chegado a um ponto de ruptura quase total. Do apoio inicial ao golpe militar - por parte da ala mais conservadora do clero - a uma posição explícita de confronto, o cenário era de mudança. O sul do Pará abrigava os mais empenhados em caminhar ao lado dos colonos. A ‘opção pelos pobres’ era o pensamento dos mais idealistas. Foi esse o cenário encontrado por dois padres franceses que haviam tido uma passagem tumultuada pelo Laos. Pertencentes às missões estrangeiras de Paris, Aristides Camio, 36 anos, e Clemente Montagne, 45 anos, sabiam das dificuldades a serem superadas, inclusive entre os próprios pares, já que foram recebidos com certa desconfiança pelos colegas. No início de 1978, mais dois padres chegam também do Laos. Francisco Goriou e Miguel de Moal. O primeiro se une a Clemente e vai para Xinguara. A outra dupla se concentra em São Geraldo. Mesmo com o Exército espalhando a informação de que padre estrangeiro não era padre, os quatro embrenharam-se pelo interior dos municípios. Foram a Itaipavas, onde 42 famílias haviam sido despejadas. Foram à antiga Caianos, onde o povo, ainda ressabiado da ‘guerra’ de poucos anos antes, assistia à missa do lado de fora da igreja. A fama de padres

Os constantes conflitos levaram os trabalhadores a olhar com mais cuidado para o sindicato que os representava, até então mantido a rédea curta pelas forças armadas, com um interventor ligado ao governo. A partir de 1979, a ideia de passar a controlar o próprio sindicato ganhou força entre os colonos. Em janeiro de 1980, é formado oficialmente um grupo de oposição para disputar a eleição no sindicato, marcada para junho. Mas, entre a formação da chapa e a eleição, a guerra não seria esquecida, com forte resistência colona. No fim de 1979, um pistoleiro havia morrido em confronto com lavradores na região conhecida como ‘Pau d’Arco’. Outro pistoleiro morreu em uma área chamada Tupã Ciretã. Na São Francisco, mais pistoleiros saíram feridos ao enfrentar um grupo de camponeses. Em Flor da Mata, mais três feridos. Na gleba Canadá, outros quatro. Foi um momento em que os colonos decidiram responder com bala as violências sofridas. As contrarrespostas vinham com violência redobrada. Abusos sexuais e violência contra crianças se tornaram comuns. No dia 30 de dezembro de 1979, em Bela Vista, antiga Caianos, seis lavradores são tocaiados. O governo federal arregalava os olhos com a situação. O delegado do DOPS Franklin Marques chegou ao Araguaia acompanhado de 40 soldados da PM para investigar os ocorridos. O Araguaia não era um lugar seguro para se estar. Em 1980, entre maio e novembro, a Comissão Pastoral da Terra contabilizava 33 mortos por questões de terra. Desde Caianos, a guerra pela terra já registrava mortes às centenas. A CPT procurava soluções junto ao governador Alacid Nunes. Não encontra-

va eco. Em Brasília, se falava em nova guerrilha. Em outubro de 1979, o major Curió reúne com representantes do Incra, do Serviço Nacional de Informação (SNI) e com membros da Polícia Militar, em Sobra da Terra, no Baixo Araguaia. A ordem era pacificar a terra para não atrapalhar os planos do ‘Projeto Carajás’, que envolvia de mineração a exploração de monoculturas na região. O investimento estrangeiro precisava de um mínimo de condições para se instalar sem problemas na região. Um ano depois, é criado o Grupo Executivo das Terras do Araguaia-Tocantins (Getat), para tentar solucionar a questão da legalização das terras, mas subordinado diretamente ao Conselho de Segurança Nacional (CSN). Na prática, passa a ser mais um braço forte contra os posseiros. Foi o que ocorreu quando explodiu a ‘guerra do Cajueiro’. Na região conhecida como Castanhal, próximo a Cajueiro, o Incra iniciou uma demarcação em 1979. Famílias antigas seriam expulsas dos castanhais. Isso porque, em Cajueiro, um homem conhecido como Olímpio vendera terras ao deputado goiano Juracy Teixeira. Quase no mesmo local, outro ‘fazendeiro’, chamado José de Almeida, começou a comprar posses. Pistoleiros foram contratados para vigiar as terras. Mais de 90 posseiros correram até a casa paroquial de São Geraldo. Buscavam apoio para impedir a demarcação. O Getat só considerava 40 como posseiros antigos. Os outros seriam invasores no entendimento do órgão federal. Os posseiros iniciam a resistência. A partir de 1981, a Polícia Federal começa a repressão aos colonos. Em julho, seis posseiros são presos. DA MISSA À GUERRA

O dia 8 de agosto caiu num sábado. Era o dia que os padres Francisco Goriou e Aristides Camio reservaram para uma missa em favor dos

posseiros ao lado das glebas em litígio. A quilômetros dali, a Polícia Federal planejava mais uma retirada- e prisãode colonos. A coordenação do Getat pediu aos padres que a missa fosse cancelada. Não foi atendida. A Polícia Federal adiou a ação para o dia 10. Durante a missa, os mais de 60 posseiros foram informados de que a Polícia Federal se deslocava para a área. Dois colonos, João Matias e Simplício, eram alvos preferenciais, por serem vistos como líderes. No dia 11 de agosto, 50 lavradores se reuniram na posse de João Matias. Decidiram resistir. A caminho das glebas, duas viaturas do Getat, trazendo, entre outros, dois funcionários do órgão, três agentes da Polícia Federal e um gerente da fazenda do deputado Juracy Teixeira. No dia 13 de agosto, os dois grupos se encontraram. De um lado, 20 lavradores; do outro, as duas viaturas do Getat. Saldo: um morto e vários feridos. O morto era o pistoleiro Luiz Antonio dos Santos. Feridos, os agentes da Polícia Federal, dois funcionários do Getat e o gerente do deputado. Para o governo, o que ocorreu nas regiões de Castanhal e Cajueiro era o ressurgimento da guerrilha.

Desde Caianos, a guerra pela terra já registrava mortes às centenas. Em 1979, o major Curió reuniu com o Incra, o SNI e a PM no Baixo Araguaia. A ordem era pacificar a terra para não atrapalhar o ‘Projeto Carajás’. (...) Os padres Francisco Goriou e Aristides Camio reservaram missa em favor dos posseiros. Informaram que a Polícia Federal se deslocava para a área. A decisão foi resistir. (...) No dia 13 de agosto, o saldo: um morto e vários feridos. Para o governo, o que ocorreu em Castanhal e Cajueiro era o ressurgimento da guerrilha”


A6 PARÁ

Diário do Pará SEXTA-FEIRA, Belém-PA, 25/04/2014

Uma missa para a

tempestade ARTE: D’ANGELO VALENTE / FOTO: MIGUEL CHIKAOKA

Emagostode1981um helicópterodoExército rasgaosilêncio deSão Geraldo.Ocercoseabate sobolugarejo:prisõese espancamentosiniciam arespostadaDitadura aoconfrontodeCajueiro eCastanhal.Nãotardou aprisãodospadres CamioeGoriou.Agorao cleropassaaoroldos perseguidospelaLeide SegurançaNacional

Cerco à igreja de Trindade, no ato ecumênico contra condenação dos padres Goriou e Camio: dois anos presos

ISMAEL MACHADO

A

imagem pouco lembrava a de um padre tradicional. Acabando de enrolar um cigarro feito à mão, o ‘pauronca’, sandália havaiana e uma calça de barra curta, conhecida como ‘pega-frango’, o corpo magro e cheio de gesticulações, Aristides Camio compartilhava aos outros padres a preocupação com os desdobramentos do confronto entre posseiros e o grupo que estava nos veículos do Grupo Executivo das Terras do Araguaia-Tocantins (Getat). Na emboscada, haviam sido feridos o delegado Alan Kardec, os policiais federais Osias Mendonça, Lumar de Oliveira e Aquiles Pinto Filho, além de Benício Duarte, funcionário do Getat. O pistoleiro Luiz Antônio dos Santos foi o único a morrer. O dia era 18 de agosto de 1981 e Camio estava em Conceição do Araguaia. Havia motivos para preocupação. Menos de dois dias antes do embate, Camio e Goriou haviam celebrado missa nos lotes ocupados. No mesmo instante em que o corpo e o sangue de Cristo eram ofertados aos colonos, a repressão oficial parecia querer o mesmo dos posseiros. Liderados por João Matias, 50 colonos decidiram resistir. Treze deles participariam da emboscada aos enviados do Getat e ainda estavam foragidos na mata. Um bilhete tosco e escrito por um João Matias de pouca familiaridade com as letras havia chegado às mãos dos padres, já

anunciando o confronto e alertando que os religiosos também estariam marcados. “Foi a missa dos padres que o governo transformou o que seria mais um conflito de terras num rumoroso caso de crime contra a Segurança Nacional. Um crime comum se transformou em guerra revolucionária e como tal foi julgado pela Justiça Militar”, lembra o advogado Egydio Salles Filho, que viria a defender os padres num dos mais famosos julgamentos ocorridos no Pará. PRESOS E JULGADOS

Francisco Goriou, o padre Chico, percebeu que as coisas sairiam totalmente do controle quando viu o corpo do pistoleiro Luiz Antônio chegar à cidade, junto com os feridos. No dia seguinte, começaram a chegar a São Geraldo reforços da Polícia Federal e um helicóptero do Exército. De pronto, onze lavradores foram presos. Antigos guias da Guerrilha do Araguaia foram chamados a entrar novamente em ação. A vila passou a ser controlada. Ninguém entrava ou saía sem permissão. Para os moradores seriam dias de terror. Maria Noêmia da Silva, mulher do posseiro Raimundo Resplandes Coelho, viu a irmã Iracema e o cunhado Alfredo nas mãos dos policiais. O relato feito ao padre Aristides era apenas um dos muitos que ocorreriam nos próximos dias. No dia 15 de agosto, a Polícia Federal invadiu a casa de Iracema e Alfredo. “Senta pra morrer”, disseram a ela. Alfredo foi arrastado para fora, enquanto os policiais diziam que iriam ‘quebrar duas balas na cabeça dele’. Os oito filhos do casal rodearam a mãe. Um deles disse ‘não mate minha mãe, que nós somos de Deus’. “E nós somos

do Diabo”, ouviu como resposta. Alfredo seria surrado até ficar com os ‘dentes moles’. Passou quatro dias preso. A casa de João Matias é invadida e quase que totalmente destruída. No dia 18, os 13 lavradores se entregam à polícia. São mantidos presos e incomunicáveis na sede do Getat em São Geraldo. Começam os interrogatórios. O líder João Matias é mantido algemado por oito dias num jipe, isolado dos outros. Todos são enquadrados na Lei de Segurança Nacional. No dia 31 Aristides Camio e Francisco Goriou são presos. Na casa paroquial onde moram são apreendidos máquinas de escrever, mimeógrafo, rádio, papéis, documentos e dinheiro. Também são mantidos incomunicáveis. Doze dias depois, padres e posseiros são levados para Belém em avião da Força Aérea Brasileira. Ficam mantidos no prédio da Polícia Federal. Ninguém consegue falar a sós com nenhum deles. Defendendo os padres, os advogados Egydio Sales Filho e Eduardo Greenhalgh. Luiz Carlos Seixas e Heleno Fragoso apontam as irregularidades encontradas. O cerceamento dos direitos de defesa, a proibição dos advogados de falarem a sós com os presos, o nãoacesso aos autos do inquérito e a incomunicabilidade dos presos estão entre elas. Na Polícia Federal, o senador Teotônio Vilela, o deputado federal Jader Barbalho e a deputada pernambucana Cristina Tavares tentam contato com os presos. São barrados na porta da PF. Decidem então ir a São Geraldo conversar com os lavradores. São acompanhados por Paulo Fonteles, pelo padre Ricardo Rezende e três jornalistas. São

abordados por soldados do Exército. A chegada das mulheres de sete posseiros presos revela os espancamentos sofridos pelos lavradores. E no dia 9 de outubro, os dois padres são sigilosamente transferidos de Belém a Brasília. O inquérito destina-se a expulsá-los do país. “Foi dona Vivi, mulher do presidente em exercício, Aureliano Chaves, foi quem impediu a expulsão dos padres”, lembra Egydio Sales Filho. Católicafervorosa,nãoadmitiaotratamento dado a religiosos. Instou o marido a rever a expulsão. Aureliano acatou e criou uma crise com os militares. Os advogados José Carlos Dias de Castro, Heleno Fragoso, Luiz Eduardo Greenhalgh e Egydio Salles Filho sustentaram que a denúncia contra o padre François Gouriou é de toda omissa, e que a contra o padre Aristide não tem fundamento. Também arguiram a incompetência da Justiça Militar para julgar o caso, além de pedir a absolvição de ambos, na hipótese de o Tribunal entender que não houve crime contra a Segurança Nacional. Apurados os votos dos ministros, o Superior Tribunal Militar, por maioria de votos, reduziu para dez e oito anos as penas de reclusão dos padres Aristides e Gouriou, anteriormente condenados a 15 e 12 anos respectivamente. Os posseiros ficaram com a pena mínima prevista no artigo 31 da Lei de Segurança Nacional, fixada em oito anos de reclusão - com exceção de João Matias da Costa, que teve a condenação fixada em nove anos. O julgamento durou 22 horas. Oito ministros apoiaram o voto do relator, conde-

‘Foi a missa dos padres. O governo transformou mais um conflito de terras em caso de crime contra a Segurança Nacional. Um crime comum se transformou em guerra revolucionária e como tal foi julgado pela Justiça Militar’, lembra o advogado Egydio Salles Filho. O padre Goriou percebeu que as coisas sairiam do controle ao ver o corpo do pistoleiro Antonio chegar à cidade. No dia seguinte, chegaram a São Geraldo reforços da PF e helicóptero do Exército. Onze lavradores foram presos. Ninguém entrava ou saía da vila. Para moradores, seriam dias de terror”

nando os padres e posseiros. O ministro Julio Sá Bierremback votou pela transferência dos processos dos padres e posseiros para a Justiça Comum e os ministros José Fragomeni, Gualter Godinho e Jacy Guimarães Pinheiro absolveram o padre François Gouriou por insuficiência de provas. Gouriou receberia o título de cidadão paulistano em 1983. Entre a prisão e a liberdadedetodososenvolvidos,foram maisdedoisanos.Umafotofeita por Miguel Chikaoka (ver nesta página) mostra o clima que envolveu o julgamento. Uma igreja totalmente cercada por soldadosdoExército. A libertação dos presos foi no dia 17 de dezembro de 1983. Os estampidos que se ouviram em São Geraldo não foram de balas. Foram foguetes - e o carnaval pareceu antecipado.


A7 PARÁ

Diário do Pará

ARTE: D’ANGELO VALENTE / FOTOS: REPRODUÇÃO

SÁBADO, Belém-PA, 26/04/2014

Nosrelatóriosde espionagem,ospadres CamioeGouriou eramos insufladoresdaagitação contraogovernono início dosanos1980 noAraguaia.Arapongas descrevemrelaçõescom organizaçõesligadas aoPartido Comunista Francês,manuaisde guerrilha ruraleosseus especiais interessespor terraseprocessoscontra osposseirosnaregião

ISMAEL MACHADO

D

esde a Guerrilha do Araguaia todos os passos na região eram monitorados. No início dos anos 1980, o temor era o surgimento de novos focos guerrilheiros. No dia 21 de outubro de 1981, o Ministério da Aeronáutica era informado sobre ‘atividades subversivas da esquerda clerical na Região do Araguaia’. O documento originado do CISA, o Centro de Informações da Aeronáutica, dá um histórico dos conflitos. No dia 8 de maio de 1980, o fazendeiro Fernando Leitão Diniz foi assassinado num tiroteio com posseiros na área. Os conflitos se seguiram e chegaram ao auge com o assassinato de Raimundo Ferreira Lima, o Gringo, posseiro e agente pastoral da Diocese de Conceição do Araguaia. Segundo os relatórios de espionagem, Gringo era quem ‘insuflava’ os posseiros da área contra os órgãos do governo e o Grupo Executivo das Terras do Araguaia-Tocantins (Getat), a mando dos padres Aristides Camio, François Jean Marie Gouriou, conhecido como ‘Padre Chico’, e Nicola Arpone. ARAPONGAS

O desencadeamento de operações de informações e a instauração de um inquérito com base na Lei de Segurança Nacional, comprovaram, segundo os militares, novo surto de agitação detectado ma região do Araguaia, à época com menos de 120 mil habitantes.

Durante as operações de informações desenvolvidas, os agentes sustentavam que os padres Camio e Gouriou tinham em seu poder levantamentos completos da área, como por exemplo, cópia de todas as certidões das propriedades, croquis das posses e invasões e cópias de todos os processos impetrados na Justiça pelos posseiros da região do Araguaia. Os padres tinham ainda um levantamento estratégico do município de Conceição do Araguaia, como prédios, energia elétrica, estabelecimentos hospitalares, de ensino, principais produtos exportados e importados, aeroportos e campos de pouso, entre outras informações, que eram repassadas para a França através de cartas. Os arapongas dividiam em três campos as ações e atividades desenvolvidas: no campo religioso, político e subversivo. As ações iam de distribuição de panfletos estimulando os trabalhadores à luta de classes à confecção de cartilhas políticas, com táticas e métodos de atuação subversiva no meio rural, inclusive o modo de como agir e fazer uma emboscada. Eram ministradas aulas sobre socialismo, marxismo e proletariado. Os recursos financeiros recebidos eram do Partido Comunista Francês, uma organização chamada Fraternité, e dos Missionários Estrangeiros de Paris (MEP). Ao examinarem o livro-caixa do padre Goriou, os agentes descobriram que a soma recebida no período de 1977 a 1981 foi de aproximadamente US$ 1 milhão. O CLERO VIGIADO

No dia 11 de novembro de 1981, outra apreciação do CISA a respeito das atividades subversivas da esquerda clerical, mostrava que após os conflitos em São Geraldo do Araguaia, que resultaram na prisão e abertura de inquérito com possibilidades de expulsão dos padres Gouriou e Camio, o ‘clero progressista’ tem procurado encobrir o fato, através da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, CNBB. Organizações como o PT, o Comitê de Defesa dos Direitos Humanos do Pará, Comitê Brasileiro de Anistia, a Comissão de Justiça e Paz e o PMDB manifestavam solidariedade aos religiosos. A discussão chegou ao Congresso Nacional, com o presidente do Senado, Jarbas Passarinho, defendendo a expulsão dos padres. Do lado contrário, o senador Teotônio Villela posicionava-se a favor dos religiosos. A ação dos padres franceses foi monitorada desde o início pelos militares. No dia 20 de outubro de 1981, a informação de

número 73 chegada ao Comando Aéreo Regional (Comar) tinha a transcrição de um relatório em francês feito pelos padres. O documento foi interceptado pela operação de informações na região do Araguaia. A tradutora juramentada Lila de Araújo Rhone foi responsável pela transcrição em português. O relatório era uma espécie de ata de uma reunião do MEP (Missionários Estrangeiros no Brasil) feita entre os dias 20 e 22 de janeiro de 1981, no Rio de Janeiro, com Jean Paul Bayzelon, superior geral da sociedade. O grupo estava completo. Isto é, com os sete membros, incluindo François Gouriou. Cada membro tinha de expor e situar os problemas defrontados nas dioceses onde trabalhavam. Aristide Camio, Jean Louis Purguy, Clemente Montagne e Gouriou, da Diocese de Conceição do Aragauaia, informaram que a violência causada pelos conflitos de terra era resultado de um trabalho pastoral iniciado há quatro ou cinco anos, de conscientização, da liberação dos camponeses por eles mesmos e por suas próprias forças. Segundo os missionários, faltava uma visão política lúcida da ação do empreendimento e muitos não viam ainda as implicações da fé com a política. ‘Não estão ainda conscientes que lutando pela terra, eles lutam contra o sistema a partir de sua fé’, diziam os missioná-

rios. O documento falava ainda da posição desse setor da igreja em ‘pregar a violência’, argumentando que a violência já estava instalada no Brasil. GUERRILHA

Para as forças armadas o conflito do Cajueiro se configurou como uma nova guerrilha. É o que deixa clara a informação número 112, de origem do CISA, em 26 de agosto de 1981. Recebido pelo IV Comando Geral do Ar, da Aeronáutica, o documento diz que, após uma semana de operações, podiam ser considerados os seguintes resultados: primeiramente, “a presença dos meios aéreos da FAB causou impacto de consequências imediatas” e, além disso, “o pessoal que compôs o grupo de emboscada aos agentes federais e Getat entregou-se”. O inquérito policial a cargo da Polícia Federal indicava que a emboscada teve em parte, ‘motivação’ aproveitada por ação imprópria do órgão do Getat, que teria atendido a interesses imediatistas (retirada de posseiros) de políticos da região (deputados Juracy e Evandro, do Pará), que teriam acionado a PF para tal retirada. Sobravam críticas ao Getat, de funcionamento lento e sem a dedicação que a complexidade da situação recomendava. Por fim, o documento afirmava que o padre Aristides era fortemente indiciado como mentor da ‘guerrilha’.

Todos os passos na região eram monitorados. No início dos anos 1980, o temor eram novos focos guerrilheiros. Em 1981 o Ministério da Aeronáutica era informado sobre ‘atividades subversivas da esquerda clerical no Araguaia’. (...) Os arapongas dividiam as ações em três campos: religioso, político e subversivo. Iam da distribuição de panfletos pela luta de classes à confecção de cartilhas com métodos de atuação subversiva rural, inclusive sobre como fazer emboscadas. Aulas falavam sobre socialismo, marxismo e proletariado”


A14 PARÁ

Diário do Pará DOMINGO, DOMING DOM INGO ING O, Belém-PA, 27/ 27 27/04/2014 04/2014

ARTE: D’ANGELO VALENTE / FOTO: DIDA SAMPAIO - AE

FOTOS: REPRODUÇÃO

SALGADO FOTO: SEBASTIÃO

Laureadocomoo ‘pacificador’dosplanos daditaduraparao Araguaia,omajor Curióencarnou como poucostodososvis legadosesignificados doRegimeMilitarpara aAmazônia: dorastro deviolência sefundou umterritórioondeainda hojesecolhemosfrutos amargosdosconflitos fundiários.Apeleja resiste-edesafiaopaís

Curió: presença constante nos episódios que sufocaram levantes no Araguaia e entre raízes de conflitos no Pará

ISMAEL MACHADO

ebastião Moura, o major Curió, foi a presença mais constante em todos os episódios na região do Araguaia. Reuniu com os padres tentando cooptar apoio, reuniu com Incra e o Grupo Executivo das Terras do Araguaia-Tocantins (Getat), buscando soluções alternativas para o problema da terra. Acendia velas para todos os santos possíveis. Pressionou de todas as formas para que o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Conceição do Araguaia não passasse às mãos dos trabalhadores. Quando os padres Aristides Camio e Francisco Goriou e os 13 posseiros foram presos em 1981, pressionou os lavradores a mudar versões. “Instaurou-se o reino do terror, onde não faltou sequer o choque elétrico. Obrigaram os lavradores a esquecer o passado para articular uma versão inverossímel. Tivemos provas fartas, documentos vários que revelam os espancamentos e as coações que os lavradores tiveram na roça e na sede do Getat, principalmente por parte da Polícia Federal”, revelou padre Ricardo Rezende. LIDERANÇAS ASSASSINADAS

Curió foi visto pelo menos quatro vezes em Belém, entrando de madrugada no presídio São José, ‘visitando’ os presos. A de-

núncia chegou a ser feita pelo diretor do presídio, coronel Bahia, inconformado com a quebra de hierarquia. O temor era a guerrilha. Os conflitos pela posse da terra eram observados por esse clima. A própria eleição do Sindicato dos Trabalhadores Rurais em 1980 é cercada por essa paranóia. A oposição é comandada por Raimundo Ferreira Lima, o Gringo, agente pastoral que em 1976 havia escapado da morte na Guerra dos Perdidos. No dia 29 de maio, Gringo retornava de São Paulo. Havia mantido contato com grupos de operários, buscando informações sobre a organização sindical. Por falta de ônibus no horário, dormiu em Araguaína, em Goiás. Às seis horas da manhã estava de pé. Ia a um encontro em frente ao banco Bradesco, no centro da cidade. Tomou um táxi para isso. Foi a última vez que o viram vivo. Gringo foi sequestrado por José Antonio, filho adotivo de Fernando Leitão Diniz, fazendeiro morto havia pouco tempo, em 1980, em confronto com posseiros em São Geraldo. A vingança alcançava uma liderança rural. Gringo foi o escolhido. O agente pastoral foi encontrado meia hora depois, na saída da cidade, com um dos braços quebrados e baleado com vários tiros. Ainda agonizava quando o acharam. Dos considerados grandes líderes dos trabalhadores rurais, Raimundo Ferreira Lima foi o primeiro a ser morto. Não seria o último. Entre 1980 e 1984, foram 35 trabalhadores rurais assassinados. O outro lado também teve o sangue derrama-

do. No mesmo período, pelo menos 41 pistoleiros e latifundiários também foram mortos em confrontos ou emboscadas com os colonos. Já no período anterior aos anos 1980, o saldo era mais desigual. Mais de 60 lavradores haviam sido assassinados. Menos de dez pistoleiros haviam sido mortos, contabilizava a Comissão Pastoral da Terra.

Ainda que não ostensiva, a ‘guerra’ se mantinha no Araguaia e se estenderia a quase todo o Pará. Em 1996 os sem-terra de Eldorado dos Carajás saberiam disso. E o mal-disfarçado apoio policial ao latifúndio se mostraria de forma completa.

A GUERRA À SOMBRA DE CURIÓ

O receio de uma revolta generalizada durante a prisão dos padres franceses Camio e Goriou fez com que o Exército percorresse vilas e povoados do Baixo Araguaia, recolhendo armas de caça dos colonos. Foram destruídas sob um trator e depois lançadas ao rio. Só depois de terem certeza que os camponeses estavam desarmados é que os padres foram presos. Enquanto o Exército ostentava a força, Curió agia pelos bastidores. Tinha do governo federal carta branca para proceder como lhe conviesse. O status privilegiado e a vaidade pessoal não permitiam que aceitasse ingerências. Os padres da região não se curvaram a ele. Sem poder atrair a igreja para o seu próprio lado, Curió passou a persegui-la. Durante os anos seguintes, enquanto Curió se tornava ‘dono’ de grande parte da região, os fazendeiros e madeireiros não tolerariam mais as revoltas e resistências. Passaram a contratar milícias armadas e efetivaram a eliminação seletiva de lideranças rurais. Paulo Fonteles, João Canuto, Dezinho, padre Josimo, João Batista, entre outros, foram assassinados nesse contexto.

Enquanto o Exército ostentava a força, Curió agia pelos bastidores. Tinha carta branca do governo federal. O status privilegiado e a vaidade pessoal não permitiam ingerências. Os padres não se curvaram. Sem atrair a igreja, ele passou a persegui-la. Durante os anos seguintes, enquanto Curió se tornava ‘dono’ de grande parte da região, fazendeiros e madeireiros não tolerariam mais resistências. Passaram a contratar milícias e efetivaram a eliminação seletiva de lideranças rurais. Paulo Fonteles, João Canuto, Dezinho, padre Josimo, João Batista, entre outros, foram assassinados nesse contexto”


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