Daniel Augusto © 2015 ALTAMIRA Editorial © 2015 Concebido como trabalho de conclusão do curso de Design Gráfico da Escola de Design da Universidade do Estado de Minas Gerais - ED-UEMG, sob orientação da professora Daniela Luz.
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DANIEL AUGUSTO
A MEMÓRIA É UMA CASA LEMBRANÇAS PÁLIDAS DA CIDADE DE CARLOS CHAGAS
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) E Santos, Daniel Augusto Ferreira (1982-) A Memória é uma Casa / Daniel Augusto. São Paulo: Altamira Editorial, 2015. 144 p. 79 fotografias. ISBN 85-99518-01-X 1. Fotografia 2. Memórias 3. Prosa I. Título. CDD 770 . UCD 77.04 Índices para catálogo sistemático: 1. Fotografia artística. Fotografias segundo o tema 77.04
1ª Edição 1ª tiragem - novembro 2015
Era ainda jovem demais para saber que a memória do coração elimina as más lembranças e enaltece as boas e que graças a este artifício conseguimos suportar o passado.” - Gabriel García Márquez
A MEMÓRIA É UMA CASA.
Ela se estende por corredores e salas e quartos sobe a sótãos desce a porões Eu tenho uma vela e uma planta baixa que se esmaece e sobrescreve-se mostrando muitas formas de se chegar ao mesmo lugar
Algumas são claras, outras enevoadas. Algumas exigem grandes retornos e atalhos, enquanto outras oferecem apenas obstáculos.
LEMBRAR É REVISITAR TODOS ESSES CÔMODOS.
A MEMÓRIA É UMA RUA.
No fim de setembro acontecia a festa de São Torquato, e a igrejinha do pequeno povoado de Francisco Sá via mais gente em três noites do que o resto do ano inteiro. Chico Sá, apelido carinhoso que aprendi com meu pai, sempre foi o mais charmoso dos satélites da cidade, e desde muito cedo eu caminhava por aquelas ruelas que pareciam paradas no tempo.
O casario envelheceu até certo ponto, e desde então não conseguia envelhecer mais. O gentio também: sempre os mesmos rostos, sempre no mesmo caminho, envolvidos nos mesmos afazeres.
Não era mais que a conjunção de duas ruas, uma praça, uma igreja, uma escola, uma estação de trem desativada e um cemitério. Mas as folhas em Chico Sá caiam de forma diferente. O tempo passava diferente. Eu era muito novo pra saber que eu havia me apaixonado por aquele lugarzinho onde, naquele tempo, a televisão era única e comunitária, e todo mundo se reunia na praça para assistir ao noticiário da noite, ou ao capítulo da novela da moda.
Era muito novo pra saber que ia sentir tanta saudade da época em que, enquanto meus pais assistiam à missa na pequena capela de São Torquato, eu podia sair sozinho sem perigo, e vagar pelas ruas de Chico Sá, fazendo o que ainda mais gosto de fazer: observando.
Com o coração de criança partido, eu espiava os itens de artesanato local que seriam leiloados em benefício da diocese, logo após a missa. Coração partido sim, pelo simples fato de não possuir posses para arrematar uma daquelas pequenas galinhas esculpidas em puro doce de leite, com tanto preciosismo que era até pecado imaginar-se quebrando aquela pequena obra de arte de se comer.
Assim como também me parecia brutalmente herético não quebra-las, e me privar de comer o doce de leite feito pelas senhoras mais idosas do povoado.
A GALINHA DE DOCE DE LEITE ME DESPERTAVA SENTIMENTOS AMBÍGUOS.
A MEMÓRIA É UMA ÁRVORE.
Julho indicava duas coisas durante minha infância: um curto espaço de tempo em que a temperatura baixava para níveis menos escaldantes, apenas para que pudéssemos dizer que “o inverno havia chegado”; indicava também o período do ano em que eu podia ir passar alguns dias na fazenda do tio, longe da fiscalização parental. A Fazenda Santa Fé, nome que eu só aprendi muito tempo depois de deixar minha infância, era conhecida apenas como “casa de Ti’ Pedro”, irmão caçula de minha mãe, e uma figura pitoresca.
A casa parecia deslocada no tempo e apesar de ter sido reformada, ainda obedecia a mesma lógica e divisões da época em que moravam todos lá: meus avós maternos, minha mãe e suas irmãs e irmãos, desde o nascimento.
A propriedade tinha efeitos diversos sobre mim. Lá, acordava muito cedo, porém de forma natural: simplesmente abria os olhos e despertava. Seguia o cheiro de café que vinha da cozinha, e consultava o relógio na parede - ainda não eram nem seis da manhã.
Durante o dia inteiro, eu só fazia andar. Na lembrança, o espaço era ainda maior: eu andava quilômetros até as divisas da propriedade, olhando com esses olhos de criança o que anos mais tarde eu viria a querer fotografar.
Passava horas e horas sentado debaixo de uma árvore, olhando pra cima, vendo o sol por entre as folhas, ou dentro da mata, ouvindo os pássaros cantando ou seguindo as formigas. Passava o tempo assim, até escutar, de longe, minha tia chamando pra almoçar.
À noite, ficávamos em volta do fogão de lenha, enquanto minha tia tricotava, e meu tio contava causos do hoje e do muito passado, até o sono chegar e nos recolhermos.
A NOITE HAVIAM SEMPRE VAGALUMES NOS QUARTOS.
A MEMÓRIA É UM RIO.
Desde muito cedo vivemos próximo da água. A cidade é atravessada por dois rios diferentes. Um deles passava no meu quintal. Passava em vários quintais. Os rios sempre foram fonte de lazer pra juventude da cidade. O sol e o calor sempre foram fatores predominantes sobre a cidade, e ir à água era uma compulsão à qual poucos não sucumbiam. Durante o horário de verão, eu via uma hora a mais de luz do dia para aproveitar o rio.
Sozinho, com um livro debaixo de um braço e uma flauta na mão, eu marchava em direção a uma parte afastada do rio, pra molhar os pés na água, ler debaixo de uma árvore, e tocar uma música quando sol estava se pondo.
Foi na mesma época em que eu comecei a olhar as coisas de perto: a grama, a árvore, os bichos (que deixavam eu me aproximar). Foi nessa mesma época em que eu comecei a observar a natureza nos detalhes. Meu fascínio cresceu sobre os insetos que viviam ao meu redor, e era capaz de passar horas observando uma aranha tecendo sua teia, ou formigas desmanchando o cadáver de outro animal qualquer.
Me acostumei a caminhar só pelos arredores da cidade, para além dos rios, do outro lado das pontes, onde a vegetação ficava mais densa, e as estradas perdiam a pavimentação. Gostava de ver a cidade de cima, gostava de ver a cidade de longe, pequena, como um pequeno presépio.
Era mais uma beleza que eu descobria: a cidade ao longe, em contraste com o céu mais azul que eu tenho na memória. Carlos Chagas tem dessas coisas: durante o dia ostenta um céu de um azul que incomoda na pureza. Gostava de me deitar no chão pra ver formas nas nuvens. E durante a noite, exibe um céu estrelado que nos faz lembrar como somos minúsculos.
Uma vez por mês, o céu me fazia suspirar quando a lua cheia nascia atrás dos morros além do rio.
AQUELA ESFERA ALARANJADA PARECIA CAIR EM DIREÇÃO À TERRA.
A MEMÓRIA É UMA PRAÇA.
Com a chegada de certa idade, a noite começa a ter outras cores, outros cheiros, outros sabores. Com certa idade, a noite começa a exibir outras luzes. A noite na cidade nunca foi movimentada, nem mesmo em seus tempos áureos. Sempre fomos um povo diurno, e as atrações noturnas se dissolviam muitas vezes antes do sino bater onze vezes na torre da matriz. Aos poucos que compartilhavam de um hábito noturno, restavam poucos botecos abertos, em regiões marginais.
No centro, as praças jaziam, grande parte do tempo, vazias e silenciosas. Era uma forma de sentir-se sozinho no meio da cidade. Uma forma de aproveitar o vento fresco e o silêncio, onde eles não existiam durante o dia.
NÃO TINHA INTENÇÃO DE FAZER COMPANHIA A NINGUÉM.
A MEMÓRIA É UMA LÁPIDE.
Eram esses os motivos que me levavam ao cemitério: Uma oportunidade de ficar sozinho e em silêncio, e apenas observar as coisas em seu estado natural. Cemitérios têm sempre essa semelhança com um grande museu a céu aberto, ou parque arqueológico. Principalmente se forem antigos ou mau cuidados, como são os cemitérios de minha terra natal.
Caminhar pelos corredores de túmulos era terapêutico, fazia o tempo passar num ritmo diferente. Nesse lugar onde todos descansam, eu me sentava numa tumba qualquer, pra ver o dia passar.
ALI ERA UM LUGAR ONDE Nテグ EXISTIA PRESSA.
A MEMÓRIA É UMA CIDADE.
A 556km da capital das Minas Gerais, confortavelmente incrustada no Vale do Mucuri, gentilmente abraçada por dois rios, encontra-se a Pérola do Mucuri, a pequena cidade de Carlos Chagas. Já foi chamada de Urucu, e hoje tem nome de cientista (que por sinal, nunca esteve lá) Seu maior patrimônio é o povo sorridente e acolhedor que caminha por aquelas ruas.
Carlos Chagas é um lugar para se ser criança e correr descalço na rua. É um lugar para se ter idade e colocar a cadeira na calçada e ver o tempo passar.
CARLOS CHAGAS É UMA CASA.
AGRADECIMENTOS ESPECIAIS À Gabrielle, minha esposa, por todas as vezes que teve que repetir “vai dar tudo certo”, e pelo carinho ao lidar com meu mau humor de intensidades variadas, (quase sempre) sem perder a paciência; À Aura, minha mãe, que mesmo à distância acompanhou e contribuiu para este trabalho, preenchendo lacunas nas lembranças, e sendo imensamente positiva, o tempo inteiro; À Daniela, professora e orientadora, obrigado pela paciência, pela confiança e pela dedicação. Obrigado pelo direcionamento, e pela oportunidade de trabalhar de perto com uma profissional de olhares e palavras tão afiados. Agradeço a todos os amigos pela compreensão por todos os “hoje eu não posso” e pelos “estou ocupado até o fim de novembro”. Muito obrigado, e agora eu posso!
Este livro foi impresso no formato 21,5x21,5 cm utilizando processos digitais de impressão sobre papel marcatto estile bianco 120g. “Simplifica”, tipografia utilizada nesta publicação foi desenvolvida por Kaiwa, ilustrador, tipógrafo e designer gráfico residente em Luxemburgo. Os locais fotografados para este livro são (em ordem de aparição) Casa já demolida localizada à Avenida Gabriel Passos 66, no centro de Carlos Chagas/MG; povoado de Franciso Sá; Fazenda Santa Fé; Ilha da Caju; Bairro Morada do Sol; Bairro Sagres; Torre de telefonia rural de Carlos Chagas, Cemitério de Carlos Chagas, Cemitério de Francisco Sá, entre setembro de 2004 e setembro de 2015.