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Hora do adeus

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Argila

Argila

Gabriela Duarte

O burburinho crescente não deixa dúvidas: o auditório está lotado. Pela lateral do palco, dou uma bisbilhotada e assisto a uma cena que, há alguns anos, poderia parecer apavorante: um mar de pessoas prontas para me ouvir. Noto que a música ambiente é uma canção instrumental bastante familiar: “Time to say Goodbye”, que ouvi tantas vezes na voz de Andrea Bocelli. Nada mais oportuno, afinal, era realmente hora de dizer adeus àquela mulher que, por muito tempo, foi dominada por fantasmas do passado. Eu ainda tenho alguns minutos antes de ser anunciada pelo reitor. Procuro por uma sala vazia e me sento em um grande pufe preto. Um lustre com luz amarelada chama a minha atenção e, como um daqueles pêndulos que usam em sessões de hipnose, volto para algumas décadas da minha vida. Domingo, céu nublado, tempinho frio. Nada planejado. A ansiedade típica da adolescência não aceitava de bom grado os dias ociosos — dias que, atualmente, considero preciosos. Pego um jornal, passo direto pela parte de economia e de esportes, e vou para a sessão de entretenimento. Encontro o resumo da minha novela favorita, e meus olhos percorrem cada linha. Uma linha, duas linhas, três linhas... Mas o que estou lendo mesmo? Volto para a primeira letra do capítulo de segunda-feira e começo a reler: “Juliana coloca um ponto final no seu casamento com Marcos. Aurora não aceita a partida de Felícia...” — Será que botei comida para o gato?

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“Mercedes se entrega ao amor de Tadeu.” — Ah, meu Deus! Amanhã tem prova, droga, ainda tenho que estudar. “Capítulo de terça-feira: Arlindo mata Sousa.” — Como assim já é terça? O que vai acontecer na segunda mesmo? Retorno para a metade do capítulo de segunda-feira e procuro as informações que não assimilei. Leitura e pensamentos soltos se misturam novamente. Paro, respiro e busco a paciência que já está se esvaindo. Mais do que impaciente, estou frustrada. Por que isso acontece com tanta recorrência? Tem algo de errado comigo, só não sei o que é. Encontro algumas possíveis explicações, mas uma em especial não me agrada: “Posso não ser tão inteligente assim”, penso, mais uma vez. Procuro afastar essa velha reflexão da minha cabeça. Mas como um fantasma, ela aparece, volta e meia, para me assombrar. As palavras da minha mãe só reforçam essa suspeita. Não era incomum eu receber o adjetivo de “lerda” toda vez que eu demorava para entender alguma orientação ou ordem que ela dirigia a mim. E a voz da minha mãe não só alcançou os meus ouvidos, mas atingiu o meu peito e o marcou com a força da sua pancada. E por muitos anos, continuei ouvindo a dolorosa palavra “lerda”. Não da forma literal, mas através de lembranças que surgiam violentamente sempre que eu não conseguia entender algo tão rápido como eu gostaria — ou como esperavam. E assombração é um inimigo que é quase que impossível combater. Não podemos ver, simplesmente ela aparece nos momentos mais inoportunos. Como acontecia nos primeiros dias na faculdade de jornalismo, sento-me na primeira fila para diminuir a chance de me distrair com frivolidades. Próxima ao professor, atento-me para cada palavra proferida. Com o caderno em mãos, anoto tudo o que julgo importante — hábito que adquiri depois de descobrir que ele me ajuda a manter as informações fixas na minha cabeça.

Aula chegando ao fim, sentimento de satisfação e de dever cumprido. Olho para o lado e imagino que, para muitos, é só mais uma aula. Para mim, é a comprovação de que não sou tão burra assim. Porém, uma pergunta interrompe meus pensamentos e me puxa para a realidade. Foi o professor! Mas o que ele disse? Por que todo mundo está me olhando? Para meu alívio, ele volta a perguntar: — Gabriela, pode dizer a diferença entre os pensamentos de Walter Benjamin e Theodor Adorno? Coração palpitando forte, mãos suadas, rosto pegando fogo, vontade de sumir e de nunca mais voltar. Eu havia assimilado todas as explicações e certamente cheguei a anotar as distinções entre os dois pensadores. Mas ter que explicar para todos aqueles universitários é demais para mim. Eu já estava prevendo a cena: eu gaguejando, tentando expor minhas ideias e a turma toda rindo da minha burrice. E, no dia seguinte, eu ficaria popular na faculdade por toda a minha estupidez. Para enterrar de vez a minha pontinha de segurança, pude ver a minha mãe entrando na sala e dizendo na frente de todo mundo: — Lerda! Os segundos pareciam horas e todos estavam à espera de uma resposta — que deveria ser genial, no mínimo. Olhei para o professor e fiz um tímido sinal de negação com a cabeça. Subitamente, outra menina acabou com qualquer possível chance de me redimir. Não era uma solução genial, mas era uma resposta mais digna que o meu silêncio. Ao colocar os pés para fora da sala, senti-me fortemente humilhada, ultrajada, envergonhada. Uma verdadeira bomba atômica foi jogada em cima de mim e acabou com toda a minha breve sensação de vitória. Eu só pensava em como gostaria de voltar no tempo e dizer para quem quisesse ouvir — principalmente para mim: “Se eu cheguei até aqui é porque sou capaz de responder a essa pergunta”. Contudo, foi o sentimento de fracasso que me

acompanhou por todo o ano acadêmico. Por muitos anos, tive que esconder dos outros o meu grande segredo: na verdade, posso até parecer inteligente, mas eu sou “lerda”. Quando eu conseguia um novo emprego, tinha certeza de que passei na entrevista porque fingi ser capaz de fazer o que o cargo solicitava. Na verdade, eu era uma fraude! Foi durante uma sessão de terapia que entendi que eu me autossabotava o tempo todo. E foi também com a minha psicóloga que contei toda a minha história: desde as leituras que pareciam eternas, até as palavras da minha mãe, que me gravaram a ferro quente como se eu fosse um boi. Tais relatos me levaram para uma consulta ao neurologista que, depois de vários testes e consultas, deixou outro rótulo em mim: o de portadora de TDAH. Mas diferente das palavras da minha mãe, esse rótulo não servia para me taxar de forma negativa. Pelo contrário: era um rótulo de um remédio bem forte e eficaz, daqueles que melhoram vários sintomas antigos e incômodos. De repente, virei novamente aquela garota que não entendia o porquê de não conseguir entender as linhas do jornal. Mas, dessa vez, ao invés de me julgar, comecei a ser gentil comigo mesma. Diante da médica que acabara de me dar o diagnóstico, as lágrimas escorriam incessantemente. Julguei que ela pudesse pensar que eu estava triste, por isso, tratei logo de explicar o motivo da minha emoção: — É que a vida toda eu esperava por uma resposta. E ela

veio.

De alma lavada e um peso de toneladas retirado das minhas costas, saí daquela sala com uma sensação de vitória. A mesma que aquela estudante de jornalismo perdeu com a pergunta do professor. Dessa vez, existia uma resposta científica para meus esquecimentos, falta de atenção e tantos outros sintomas que me faziam sentir tão diferente das outras pessoas. Antes, ao invés de ter o suporte de uma explicação lógica, eu me apoiava em palavras proferidas sem uma intencionalida-

de. Finalmente entendi — e passei a acreditar — que eu não era lerda, não era burra, não era incapaz. Eu tinha um transtorno de base neurobiológica, causado por uma vulnerabilidade genética, ou seja, totalmente além da minha escolha e controle. Sentia como se um clarão estivesse iluminando o que estava tão escuro e confuso. Era libertador entender que eu não entendia uma informação por dificuldade em focar, não por inépcia. Muito menos por ser “lerda”, palavra essa que me impediu de trilhar muitos caminhos da vida. Agora, eu me sentia amparada por meios reais para lutar contra um problema real e não mais contra um fantasma onipresente. Batidas à porta interrompem a minha visita ao passado e uma voz avisa que faltam cinco minutos para me chamarem. Levanto do confortável pufe e caminho pelo corredor com luzes amarelas. Ainda com a cabeça assimilando as últimas lembranças, percebo que esbarro em alguém. Peço desculpas, continuo andando e noto o quanto estou ansiosa e com as mãos geladas. Aprendi há um certo tempo que existem características que fazem parte da sua essência. E o nervosismo para falar em público faz parte da minha. Mas tem uma diferença significativa: aqueles fantasmas do passado não ditam mais o que eu vou fazer. Quem diria que eu daria uma palestra! Ainda mais para dar algumas dicas a fim de driblar a timidez e ter uma carreira de sucesso. Só eu sabia o quanto meu coração teimava em bater acelerado! Eu não deixei de ser tímida ou insegura, mas entendia, a muito custo, que minhas diferenças não tinham o peso que eu lhes atribuí por tantos anos. De repente, escuto uma voz chamando o meu nome — e anunciando o motivo da minha visita à faculdade na qual eu me formei: — Hoje temos o prazer de receber aqui a jornalista Gabriela Duarte, que se formou na nossa instituição. Respiro fundo e, com o pé direito, piso firme em direção ao palco. O reitor me dá um abraço gentil e faz a seguinte pergunta:

— Conte para todos nós: foi fácil chegar aonde você che-

gou?

Sob muitos aplausos, olho para a multidão e, no meio de tantos rostos desconhecidos, encontro o semblante da minha mãe. Por uma fração de segundos, achei que fosse ouvir aquele maldito adjetivo de novo. Porém, dessa vez, escuto-a dizendo: — Você é capaz. Solto o ar que estava preso sem que eu tivesse percebido e abro um sorriso. O meu melhor sorriso. E inicio a noite com uma resposta que eu estava devendo há muito tempo: — Se eu cheguei até aqui é porque sou capaz de responder a essa pergunta.

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