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Respingar de minha alma

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Argila

Argila

Victor Sadi

“Embora meu relato seja árido e pouco empolgante, tratando mormente de uma origem local e um fim simplório, tenho certeza que ajudará a consumir alguns momentos de ócio.” O Ninguém, em diálogo recente.

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Aos interessados. Se estão lendo esta carta é porque é de vosso saber o fim que levou esse de quem vos fala. Meu coração esteve batendo por longos oitenta e nove anos, mas isso não era sinônimo de estar vivo, pelo menos não para mim. Eu trabalhei por cinquenta árduos anos, comprei uma casa, um carro e tudo mais que o dinheiro possa comprar, e vocês não fazem ideia do que ele pode comprar... Sempre possuí todos os artigos que prometiam uma sensação de felicidade ou, melhor dizendo, uma falsa sensação. Me apeguei e virei refém do materialismo barato e isto não me trouxe nada além de uma casa cheia de móveis inutilizáveis e um coração vazio. Você pode ter tudo no mundo e ainda ser o homem mais solitário. E esse é o tipo mais amargo de solidão, o sucesso trouxe-me idolatria mundial e uma fortuna que nunca consegui gastar. Mas ele me impediu de ter uma coisa que todos nós precisamos: uma relação amorosa permanente. A minha vida pessoal sempre foi motivo de especulações na sociedade. Sou um apaixonado pelas artes, e sempre quis desfrutar da arte de amar e ser amado. Parece que meu erro

foi querer amar outro homem. Na minha juventude, amar alguém do mesmo sexo era assinar sua sentença de morte. Descobri isso ao ver meu amado revelar sua sexualidade e ser morto de forma brutal. Não encontro registros dele mais, ele foi apagado como tantos outros. Seu nome, não mais tem relevância, pois foi vítima da “higienização” que ocorreu naquela época. Sou um homem, de cabelos ralos da cor do algodão de minha plantação. De olhos caídos, e dentes que não me pertencem. Minha mãe sempre dizia que em eventos especiais é dia de vestir a melhor roupa; ela estava certa, não é sempre que se morre. Visto minha melhor roupa, um terno maravilhoso com uma gravata borboleta, está frio lá fora, então me protejo do vento com meu paletó. No entanto, antes de morrer quero, pela última vez, assistir a esse lindo e maravilhoso pôr do sol. Já não me recordo da última vez que sorri para um ser vivo. Li em algum lugar que cartas de suicídio são uma maquiagem para um pedido de socorro. Não há tempo para socorrer quem redigiu essa carta. A tristeza e a solidão fazem companhia à exaustão e preenchem o meu âmago. Tudo que eu quero é um descanso, um momento, uma pausa, um abrigo, um lar. Apenas fechar meus olhos e jamais acordar. Espero ansiosamente pela chegada dele, pois o nascer do sol é tão natural quanto morrer. Avisto a chegada dele no fim do horizonte, lindo e majestoso como sempre, iluminando e dando vida às plantas que estão em seu caminho. Ao vê-lo pela última vez, encontro o conforto que buscava, embora não da maneira que imaginava. Do meu bolso direito, conjuro uma pistola. Aponto para a minha cabeça e esvazio meu vigor. E ouço. O respingar de minha alma.

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