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Ode a Ófelia
Denise
Naquela manhã de abril, com o céu nublado, branco pelas nuvens, ela resolveu se matar. Decidiu que dali não passaria. Passou anos de sua vida com pensamentos à solta, rodeando-a, agora era demais para aguentar, daquele dia não iria passar. Pensou em diversas formas de fazer, afinal de contas, já tinha visto diversas vezes em filmes ou detalhado em livros. Poderia pegar uma corda e colocar em volta do pescoço e pendurar pela grade que tinha na área de serviço. Seria fácil. O pescoço iria quebrar e, crack, iria embora para sempre. Aquela corda, a corda que comprou para pular e se exercitar porque queria chegar aos 50 bonita, pois o que vale uma moça que aceita envelhecer? Estaria bela e jovem. Riu. Daquele dia não passaria, seria bela e jovem para sempre. As pessoas iriam lembrar dela e diriam “ah, aquela moça que morreu tão jovem, que tragédia”, se não fosse jovem, será que seria uma tragédia? Levantou da cama e resolveu lavar o rosto. Queria morrer bela. Foi ao banheiro e passou água no rosto. Viu seu reflexo no espelho. Era tão bonita, jovem, tinha os traços de uma boneca, mas isso não era o bastante, porque rapazes sempre acham um defeito para dizer que não te querem. Eles falam para os amigos e riem pelas suas costas dizendo “ah, aquela? eca”. Mas o que era eca quando era tão bonita? Escutou tantas vezes que era bonita. Estariam mentindo para ela? Percebeu que tinha um olho maior que o outro, talvez fosse isso, talvez fosse o fato do seu olho ser maior que o outro. Lembrou que tinha corretivo, talvez isso ajudaria a esconder um pouco as olheiras e ficaria mais alerta, o olhar
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abriria. Foi no quarto, pegou o corretivo e passou. Esfumou um pouco para não ficar artificial. Estava melhor. Já que estava pegando maquiagens, resolveu pegar o rímel, afinal de contas iria abrir o olhar ainda mais. Quando viu o resultado ficou satisfeita, estava linda para morrer. Ah, essa dor no peito que não parava mais era como um peso que a puxava para baixo e arrastava e arrastava. Não tinha apetite, afinal, quando tinha 15 anos, sua mãe havia dito que estava gorda e precisava emagrecer. Perdeu 5 quilos e havia ficado magra demais, e a mãe agora mandava engordar. Quando iria ficar perfeita? Afinal de contas, não era isso que era esperado? Ser perfeita? Lembrou do resultado da prova do dia anterior. Quando viu as notas no papel, elas não pareciam pertencê-la, mas pertenciam e, o pior, dizem uma parte dela que recusa acreditar, porque por toda sua vida foi esperado algo dela que não conseguiu retribuir. A perfeição nunca seria alcançada, porque talvez não fosse para ser alcançada, e isso assustou mais que tudo na vida. pra que viveria se a perfeição não existe? Pra que viver se não for para ser perfeita? Pensou em todos os setores da sua vida: a beleza, o trabalho, o lazer e os relacionamentos. Estavam todos perto de algo que esperava para si mesma? Estava namorando o cara que sempre pensou. Viu-se triste com a situação, o namorado era sem graça demais, era menino demais, brincava demais, e ela era séria demais, não combinavam, mas o garoto gostava dela e a idolatrava. Será que o que sentia era tão importante assim? Ele gostava dela, precisaria de algo mais? Talvez não ou talvez sim. Todos os aspectos da sua vida não a deixavam feliz. Tinha largado Jesus e por isso não tinha medo, nenhum medo de se jogar com uma corda no pescoço. Com qual roupa morreria? Olhou o guarda-roupa, vendo algumas peças coloridas e outras neutras, tons de azul e tons de verde. Não havia peças decotadas, ou vestidos curtos, porque o pai desde cedo colocou em sua cabeça que rapazes têm pensamentos sujos e poderiam fazer algo com ela. Disse diversas vezes que, mesmo coberta, eles iriam descobrir formas de olhar para seu corpo, não precisava esconder tanto. Alguma
menina em algum lugar talvez tivesse pensado nisso “se eu usar uma roupa decotada pensarão que sou fácil e com isso não tentarão dar em cima de mim, pois caras adoram um desafio”. Mas não é assim que o pensamento humano funciona, alguns rapazes gostam do desafio, e outros gostam das coisas fáceis e acessíveis. É assim que funciona, isso é vida, combinações que não fazem sentido. Gostava de um macacão verde, um tom musgo, que apertava bonito na cintura, a cintura fina que a fazia parecer uma modelo. Não podia usar um soutien, mas não tinha problema, afinal estaria morta mesmo, pelo menos a roupa era bonita. Com o que seria enterrada? Um tom de vermelho para parecer viva? Nossa, quem vestiria um defunto para parecer vivo? Vestiu o macacão e em seguida ouviu a campainha. Desceu as escadas rapidamente. Encontrou a vizinha perguntando se tinha deixado o portão aberto, disse que não, e ela foi embora. Isso a fez pensar. Quem a encontraria? Morava sozinha, poderia passar dias sem que alguém a encontrasse. Resolveu então comer algo. A garrafa estava vazia e por isso teve que fazer café. Enquanto a água fervia, olhou pela janela e viu que o sol estava saindo, e um dia ensolarado iria aparecer. Era um ótimo dia para estender uma roupa, provavelmente iria secar rapidinho. Resolveu que essa seria sua última ação antes de se matar. Foi ao quarto e pegou a muda de roupas brancas no cesto de roupa suja. Era assim que tinha aprendido a lavar roupa, separando por cores, muitos não sabiam disso e misturavam tudo. Aquele conhecimento prático de casa era inútil agora, não iria mais usar. Pegou a roupa e desceu as escadas, aquelas escadas eram tão chatas para subir. Quando chegou naquela casa pela primeira vez, achou que era um máximo casa com escadas, mas logo se viu cansada. Enquanto a água fervia e borbulhava, agitou-se e colocou a roupa no tanquinho, enchendo de água e sabão em pó. Colocou um pouco de água sanitária. Por que estava lavando roupa? Aquela roupa era inútil, nunca mais a usaria. Parecia que um movimento de sempre fazer o que era certo a perseguia. Como uma obsessão, precisava acordar antes das sete, precisava dormir
antes da meia noite e sempre fazer suas tarefas. Se não fossem realizadas, sua paz acabava. Resolveu voltar para a cozinha e passar o café. Voltou logo para fechar a torneira e não desperdiçar água. Foi à cozinha e pegou o que era necessário para tomar seu café da manhã. O café era o único momento em que momentos eram apenas momentos presentes e não se via perturbada por pensamentos futuros. Quando acabou, percebeu que era hora de se matar… mas não… a roupa tinha acabado de bater, tinha que trocar a água. Isso demoraria um pouco. Resolveu então voltar para o quarto, enquanto o tanquinho batia pela segunda vez a roupa. Viu, ao entrar no recinto, que a cama estava bagunçada, por isso resolveu arrumar as coisas, dobrar as roupas e ajeitar tudo no seu devido lugar. Separava as coisas por cores, assim economizava tempo e tudo parecia pertencer a uma ordem. Tudo tinha ordem em sua vida, as roupas, os sapatos e os cremes, eles estavam todos ajeitados no seu devido lugar. Queria que alguém colocasse ordem em sua vida da mesma forma que colocava os sapatos no lugar, alguém para mandá-la tomar banho ou comer, como sua mãe era na infância. Porém a mãe não estava ali, estava trabalhando e com isso não tinha quem a mandasse fazer as coisas. Uma vez chegou a dormir sem tomar banho, ninguém se importava como andava, apenas quando suas ações envergonhavam a outras pessoas. Cresceu com aquela ideia de pessoa perfeita, que, a cada dia, parecia uma mentira, nada era perfeito e nada era certeiro. Será que seu primo sentia-se assim, ou os garotos do curso que fez anos atrás? Eles, com suas escolhas e decisões, em que tudo parecia tão fácil? Cresceu pensando que seria uma das três coisas: filha, mãe e esposa, mas não queria ser nenhuma das três, queria ser ninguém, ao mesmo tempo que queria ser mandada, queria ser livre para fazer o que desejava. Esses pensamentos atribulados a fizeram lembrar da roupa batendo no tanquinho e desceu. Trocou a água, uma, duas e a terceira vez, como a mãe havia ensinado. Torceu com força e sentiu os calos formarem nas mãos. Após aquilo, sentiu-se um pouco feliz. Pensamentos som-
brios voltaram a atormentar sua mente, e se viu pensando novamente na ação que iria realizar pela manhã, todos os dias acordando sendo forçada a comer e tomar banho. Uma vida de acontecimentos sem sentido que, por alguns segundos, trariam-na felicidade, como acender uma vela ou então lavar uma roupa e tirá-la do varal, banhos de piscina ou sentir o cheiro de tempero do mercado. Mas todos esses momentos valem a pena? Por uma vida de surpresas, que nem sempre eram surpresas boas? Não tinha feijão cozido e por isso resolveu fazê-lo, catar feijão, colocar água, umas três folhas de louro e colocar pressão na panela. O cheiro era bom. O cheiro de feijão cozinhando era bom. Talvez devesse viver por aquele feijão. Andou de um lado para o outro, não havia pegado o celular a manhã toda e resolveu verificar se havia alguma coisa. O plano de saúde havia mandado o boleto para pagar, mas por quê? Não havia assinado. Será que estão renovando anualmente? Por que fariam aquilo? O coração estava palpitando, estava tendo um ataque de pânico, daqueles que provocam uma taquicardia e a faziam chorar, quis chorar tanto e tanto, chorar era o único jeito que havia encontrado na vida para retirar um pouco de angústia. Sua mãe a mandava parar de chorar, porque chorar a fazia parecer fraca na frente das pessoas, e quando uma mulher teria o privilégio de parecer fraca? Quando chorava, sentia tanta raiva e tanto ódio de não poder chorar e assim chorava mais, porque quando chorava sentia que estava desestabilizada ou louca. Homens não choram… Principalmente porque não podem, porque, se pudessem, também chorariam, se todos pudessem, também iriam chorar, porque tirar um peso do peito deveria ser algo a ser feito sem críticas, sem julgamentos. Por que julgam a forma de se livrarem da dor? Por que não marcou a hora que colocou o feijão para cozinhar? Deveria ter marcado, agora não sabia quando desligar, resolveu desligar. O que iria almoçar? Já passava a hora, talvez devesse se matar ao entardecer. Ou talvez não? Ou talvez sim? Por que agora duvidava de uma decisão formada? Por que sentia que deveria não duvidar? Por que não
podia mudar de ideia antes que passasse a corda em volta do pescoço e se jogasse da cadeira e, assim, o pescoço quebraria, sua consciência iria embora para sempre, talvez fosse para o inferno? Não lidaria com as situações que passava. Em toda a sua vida, não se contentou em ser apenas uma pessoa, queria ser a pessoa, não queria ser Ofélia que se matou e só serviu para deixar Hamlet mais enlouquecido. Pobre Ofélia, jogou-se no rio e morreu. Será que foi assim? Só se sabe que ela ficou maluca antes de se matar, deveria ter prestado mais atenção ao ler a peça. Assim, quando era criança, gostava de brincar de histórias que provavelmente nunca aconteceriam e se enchia de sonhos que nunca aconteceriam. A vida era um pouco mais feliz, mas agora havia crescido e se tornado quase-pessoa. Para se tornar uma pessoa era um pouco mais complicado, porque você precisa lidar com o que o mundo te dá e isso não é uma situação boa. Teria que lidar com os dias, os dias que veriam e a fariam querer tomar decisões como a de hoje. Resolveu esperar mais um dia. Talvez amanhã receberia uma notícia boa.