Avaliação de políticas públicas reflexões acadêmicas sobre o desenv social e o combate à fome

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avaLIação de PoLÍtICas PÚBLICas:

ReFleXÕes acadêmicas sobRe o desenvolvimento social e o combate à Fome

1. Introdução e Temas Transversais 2. Transferência de Renda 3. Assistência Social e Territorialidades 4. Segurança Alimentar e Nutricional 5. Inclusão Produtiva


Presidenta da República Federativa do Brasil

Ministra do Desenvolvimento Social e Combate à Fome Tereza Campello Secretário Executivo Marcelo Cardona Secretário de Avaliação e Gestão da Informação Paulo de Martino Jannuzzi Secretário Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional Arnoldo Anacleto de Campos Secretário Nacional de Renda de Cidadania Luis Henrique da Silva de Paiva Secretária Nacional de Assistência Social Denise Colin Secretário Extraordinário de Superação da Extrema Pobreza

Introdução e Temas transversais

avaliação de políticas públicas: REFLEXÕES acadêmicas sobre o Desenvolvimento Social e o Combate à Fome

Dilma Rousseff

Tiago Falcão

Expediente: Esta é uma publicação técnica da Secretaria de Avaliação e Gestão da Informação. SECRETÁRIO DE AVALIAÇÃO E GESTÃO DA INFORMAÇÃO: Paulo de Martino Jannuzzi; DIRETORA DO DEPARTAMENTO DE AVALIAÇÃO: Júnia Valéria Quiroga da Cunha; DIRETOR DO DEPARTAMENTO DE MONITORAMENTO: Marconi Fernandes de Sousa; DIRETOR DO DEPARTAMENTO DE GESTÃO DA INFORMAÇÃO: Caio Nakashima; DIRETORA DO DEPARTAMENTO DE FORMAÇÃO E DISSEMINAÇÃO: Patricia Augusta Ferreira Vilas Boas.


Introdução e temas transversaIs


© Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome

Esta é uma publicação técnica da Secretaria de Avaliação e Gestão da Informação. Este livro apresenta, em cinco volumes, um conjunto de artigos elaborados com base na experiência de construção e resultados do Edital MCT/MDS-SAGI/CNPq n.º 36/2010.

Coordenação Editorial: Kátia Ozório Equipe de apoio: Victor Gomes de Lima, Valéria Brito, Roberta Cortizo e Clécio Fernandes Diagramação: Tarcísio Silva e Jonathan Phelipe Bibliotecária: Tatiane Dias Revisão: Alexandro Rodrigues Pinto, Júnia Valéria Quiroga da Cunha, Luciana Monteiro Vasconcelos Sardinha, Renata Mirandola Bichir, Renato Francisco dos Santos de Paula.

Brasil. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Avaliação de políticas públicas: reflexões acadêmicas sobre o desenvolvimento social e o combate à fome, v.1: Introdução e temas transversais -- Brasília, DF: MDS; Secretaria de Avaliação e Gestão da Informação, 2014.

277p. 1. Política social, Brasil. 2. Desenvolvimento social, Brasil. 3. Políticas públicas, avaliação, Brasil. I. Secretaria de Avaliação e Gestão da Informação. CDU 304(81)

Abril de 2014 Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome Secretaria de Avaliação e Gestão da Informação Esplanada dos Ministérios Bloco A, 3º andar, Sala 340 CEP: 70.054-906 Brasília DF – Telefones (61) 2030-1501 http://www.mds.gov.br Central de Relacionamento do MDS: 0800-707-2003


FICHA TÉCNICA

Avaliação de políticas públicas: reflexões acadêmicas sobre o Desenvolvimento Social e o Combate à Fome

Organizadores Júnia Valéria Quiroga da Cunha Alexandro Rodrigues Pinto Renata Mirandola Bichir Renato Francisco dos Santos de Paula

Agradecimentos Os organizadores agradecem aos especialistas que se dispuseram a participar como comentaristas nas oficinas de acompanhamento dos projetos. Gratidão especial também aos pareceristas, que dispuseram de seu tempo e experiência para contribuir com os autores dos artigos seguem listados, respeitando a opção daqueles que não autorizaram a publicação de seu nome.


Introdução e Temas transversais

avaliação de políticas públicas: REFLEXÕES acadêmicas sobre o Desenvolvimento Social e o Combate à Fome

Pareceristas Alberto Albino dos Santos

Lucélia Luiz Pereira

Alcides Fernando Gussi

Luciana Maria de Moura Ramos

Aldaíza Sposati

Luís Otávio Pires Farias

Alexandro Rodrigues Pinto

Luiz Rafael Palmier

Ana Maria Segall Corrêa

Marconi Fernandes de Sousa

Andrea Butto

Marcos Costa Lima

Antonio Eduardo Rodríguez Ibarra

Mariana Helcias Côrtes

Bruno Barreto

Mariana López Matias

Carla Cristina Enes

Marina Pereira Novo

Crispim Moreira

Marta Arretche

Daniela Sherring Siqueira

Marta Battaglia Custódio

Dirce Koga

Milena Bendazzoli Simões

Eduardo Cesar Leão Marques

Neuma Figueiredo de Aguiar

Eduardo Salomão Condé

Onaur Ruano

Elizabete Ana Bonavigo

Paula Montanger

Elza Maria Franco Braga

Paulo de Martino Jannuzzi

Fabio Veras Soares

Pedro Antônio Bavaresco

Fátima Valéria Ferreira de Souza

Pedro Israel Cabral de Lira

Fernanda Pereira de Paula

Rafael Guerreiro Osorio

Frederico Luiz Barbosa de Melo

Renata Mirandola Bichir

Haroldo Torres

Renato Francisco dos Santos de Paula

Igor da Costa Arsky

Rodrigo Constante Martins

Jeni Vaitsman

Rômulo Paes de Sousa

Juliana Picoli Agatte

Sergei Suarez Dillon Soares

Júlio César Borges

Silvia Maria Voci

Júnia Valéria Quiroga da Cunha

Simone Amaro dos Santos

Kyara Michelline França Nascimento

Simone de Araújo Góes Assis

Leonor Maria Pacheco Santos

Sonia Lucia Lucena Sousa de Andrade

Letícia Bartholo

Walquiria Leão Rego

Luana Simões Pinheiro


APRESENTAÇÃO No contexto de complexidade da ação governamental no Brasil, de arranjos federativos e articulação intersetorial na gestão e operação dos programas sociais, de volume de recursos e de profissionalização do setor público, as atividades de levantamento e organização de dados e produção de estudos e pesquisas de avaliação são fatores críticos para garantir – potencialmente – maior efetividade à Política Social. Informação e conhecimento, sistematizados de forma prática e operacional, atualizados no tempo e referidos nos domínios territoriais adequados e com escopo abrangente e multidisciplinar constituem-se em insumos básicos para a tomada de decisão técnico-política em qualquer momento do ciclo de vida ou maturação de uma política ou programa social. Dados, indicadores, estudos e pesquisas de campo são fundamentais no levantamento de evidências empíricas na formulação de uma estratégia de superação ou mitigação de uma problemática social específica, no planejamento de um arranjo operativo que permita colocá-la em ação, na coordenação de um conjunto escolhido de agentes públicos, de instituições privadas ou do terceiro setor, no monitoramento das atividades planejadas, e, enfim, na avaliação dos resultados e esforços empreendidos. No Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), a produção de informação e conhecimento para aprimoramento do desenho e gestão de políticas e programas tem sido uma atividade permanente desde sua criação em 2004, com a instituição de uma unidade de monitoramento e avaliação com status de Secretaria Nacional: a Secretaria de Avaliação e Gestão da Informação (SAGI). Em parceria com as secretarias finalísticas deste Ministério, a SAGI tem produzido um conjunto considerável de pesquisas e estudos avaliativos que contribuem para conhecer melhor os diversos públicos-alvo das políticas de desenvolvimento social, os desafios da implementação dos programas, os resultados e impactos dos serviços e ações. Este livro é, nesse sentido, mais uma contribuição para Avaliação de Políticas e Programas do MDS. Mais especificamente, trata-se de uma publicação, organizada em cinco volumes temáticos, com estudos produzidos no âmbito de edital de fomento à pesquisa – Edital nº 36/2010 – do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) por um conjunto amplo de pesquisadores de diversas instituições, de norte a sul do País. Com diferentes perspectivas disciplinares, modelos teórico-conceituais e estratégias de pesquisa, os autores dedicam-se a diferentes temáticas e problemáticas das políticas e programas do Ministério, trazendo também suas interfaces com outras políticas sociais em educação, saúde e trabalho. É uma boa amostra da abordagem multidisciplinar e multi-métodos de produção de estudos avaliativos adotados pela SAGI em seus dez anos. Neste sentido, é oportuno registrar nessa introdução alguns princípios epistêmicos, aspectos conceituais e metodológicos sobre o que se entende por Avaliação, e como ela vem se estruturando na Secretaria.

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Avaliação de Políticas Públicas tem recebido as mais diferentes definições na literatura especializada, segundo os diversos modelos conceituais, paradigmas teóritração Pública, tomando a avaliação em perspectiva mais geral como componente integrante da Análise de Políticas Públicas, como instrumento de Sistemas de Monitoramento e Avaliação de programas governamentais ou, em uma concepção mais restrita, avaliação como um tipo particular de investigação empírica acerca de programas e projetos sociais, como as avaliações de impacto experimental ou quasi-experimental. Em uma definição mais pragmática e aplicada ao campo da Gestão Pública, Avaliação refere-se ao conjunto de procedimentos técnicos para produzir informação e conhecimento para desenho ex-ante, implementação e validação ex-post de programas e projetos sociais, por meio das diferentes abordagens metodológicas da Pesquisa Social, com a finalidade de garantir o cumprimento dos objetivos dos programas e projetos (eficácia), seus impactos mais abrangentes em outras dimensões sociais, para além dos públicos-alvo atendidos (efetividade), e a custos condizentes com a escala e complexidade da intervenção (eficiência). Nesta definição, Avaliação não é entendida tão somente como uma investigação com métodos validados cientificamente para analisar diferentes aspectos sobre um programa – o que se constituiria em uma investigação de cunho acadêmico –, mas um levantamento consistente, sistemático e replicável de dados, informações e conhecimentos para aprimoramento da intervenção programática, versando sobre características essenciais do contexto de atuação, os públicos-alvo, o desenho, os arranjos de implementação, os custos de operação, os resultados de curto prazo, os impactos sociais e de mais longo prazo de um programa. Enfim, na definição aqui advogada, Avaliação tem o objetivo de produzir evidências, compilar dados

Introdução e Temas transversais

avaliação de políticas públicas: REFLEXÕES acadêmicas sobre o Desenvolvimento Social e o Combate à Fome

cos e linhas de pesquisa da Ciência Política, Ciências Sociais, Economia e Adminis-

e sistematizar estudos que contribuam para o aperfeiçoamento dos programas e projetos sociais e a consecução de seus objetivos. Avaliações que, de fato, têm uso efetivo na intervenção são desenhadas conforme as demandas de informação e conhecimento ao longo do ciclo de maturidade do programa ou projeto social. Podem ser de natureza diagnóstica – Avaliação Diagnóstica –, apoiada em fontes de dados já existentes, produzidas pelo IBGE, nos registros e cadastro públicos dos ministérios, para permitir um rápido dimensionamento e caracterização da questão social a ser objeto de intervenção. Para a formulação de programa ou projeto de mitigação ou equacionamento da problemática social identificada, em geral, são necessários novos esforços de levantamentos de campo – para o aprofundamento do diagnóstico das condições de vida, contexto econômico, restrições ambientais, capacidade de gestão e oferta de serviços – e de compilação de estudos já realizados na temática, abordando determinantes da problemática em questão e eventuais programas e projetos já idealizados, que constituem o que se denomina Avaliação de Desenho. Definidos os públicos a atender e os arranjos operacionais do programa ou projeto social, é preciso colocá-lo em ação, realizando as atividades planejadas, acompanhando sua execução mediante indicadores de gestão e de monitoramento, e identificando problemas na oferta, na regularidade e na qualidade dos serviços por meio de pesquisas de Avaliação da Implementação.


Reconhecidos e, tanto quanto possível, sanados os desafios da implementação, as demandas de informação e conhecimento voltam-se para a Avaliação de Resultados e Impactos do programa ou projeto social. Trata-se de momento de investigação mais exaustiva sobre os diversos componentes de uma intervenção, abordando não apenas o cumprimento dos seus objetivos, mas seu desenho, seus arranjos operacionais, seus impactos sociais mais abrangentes – no tempo e no território – e sobre a capacidade de inovação e redesenho frente ao contexto dinâmico em que operam os programas e projetos. Cabe nesse momento avaliar se a intervenção programática formulada conseguiu provocar mudanças na realidade social que a originou, considerando naturalmente a complexidade do seu desenho e dos arranjos operacionais, além da criticidade da questão social enfrentada. Identificar o momento adequado de avaliações dessa natureza é um misto de técnica, política e arte: avaliações precoces podem colocar a perder a legitimidade de um programa e projeto meritório que ainda não teve tempo de se estruturar; avaliações tardias podem comprometer recursos e esforços que poderiam ser usados de forma mais eficiente e eficaz na mitigação da problemática social em questão. Enfim, se o programa e projeto produzem resultados e impactos, é necessário analisar os custos envolvidos na operacionalização de suas atividades, equipamento e pessoal – Avaliação Custo-Efetividade. O custo-efetividade das intervenções, isto é, o valor gasto para produzir unidades de resultados e impactos em um período de tempo e território específicos, é certamente uma informação fundamental para avaliar a sustentabilidade dos programas e projetos no futuro e em outros contextos. Ademais tais avaliações, se bem realizadas – com contabilidade precisa de custos e vetor abrangente de indicadores de resultados – fornecem parâmetros cruciais para comparar diferentes intervenções sociais e informar gestores nas decisões técnicas e políticas acerca da continuidade, descontinuidade e expansão de programas e projetos. Em uma perspectiva metodológica, os esforços de Avaliação podem se estruturar em quatro tipos de produtos mais gerais, com maior ou menor aderência e especificidade ao problema social ou intervenção programática desenhada: Estudos Avaliativos – análises com base em dados secundários ou compilação de artigos e trabalhos já realizados anteriormente na temática, com maior ou menor abrangência; Pesquisas de avaliação – levantamentos primários, quali ou quantitativos, desenhadas com objetivos de produção de evidências mais específicas necessárias ao aprimoramento da intervenção; Meta-avaliações – recensões sobre estudos avaliativos, pesquisas e experiências nacionais, subnacionais e internacionais de programas e projetos implementados; Relatórios-síntese de Avaliação e portais Web com informação mais sumária, na forma de indicadores em geral, para comunicação mais objetiva acerca de aspectos do diagnóstico, implementação e resultados do programa e projetos. As pesquisas de campo podem ser mais estruturadas, como as enquetes quantitativas com marco amostral probabilístico – necessárias para produção de indicadores de dimensionamento de públicos-alvo ou inferência representativa quanto aos resultados dos programas – ou com amostras intencionais – mais rápidas, menos custosas, mas com limitado poder de generalização dos seus resultados. Podem ser menos estruturadas, mais exploratórias, de cunho qualitativo, como

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grupos de discussão ou entrevistas em profundidade, dirigidas a usuários e beregados da operacionalização dos serviços. São especialmente importantes para identificar questões latentes acerca da implementação dos programas, não antecipados quando de seu desenho. Um tipo particular de instrumento estruturado, as pesquisas com delineamento quasi-experimental – também denominadas de avaliação de impacto – certamente são importantes instrumentos de avaliação de programas, mas pelo tempo, recursos e conflitos éticos que estes levantamentos envolvem, têm uso muito mais dirigido para a análise do mérito e da contribuição específica das intervenções, para fins de prestação de contas a agentes financiadores do programa ou projeto. Não existe um método ou estratégia “padrão-ouro” para a produção de uma Avaliação. O melhor método é o que produz as evidências que respondem de forma consistente às demandas requeridas, ao tempo de serem utilizadas para decisões na Gestão Pública. Informação precisa mas produzida a custos e tempo não condizentes com a tempestividade da gestão ou informação rapidamente produzida mas não consistente nem robusta em termos metodológicos certamente não se prestam a orientar decisões cruciais acerca dos rumos de um programa ou projeto social. Perspectiva multidisciplinar de investigação, triangulação de métodos e de sujeitos entrevistados, esforços combinados de avaliação interna – com gestores e técnicos que conhecem os problemas e as atividades do programa e projeto – e de avaliação externa – com pesquisadores especializados e apoio de equipe de campo – é que garantem a credibilidade e robustez necessárias ao aprimoramento da gestão e do desenho das intervenções programáticas.

Introdução e Temas transversais

avaliação de políticas públicas: REFLEXÕES acadêmicas sobre o Desenvolvimento Social e o Combate à Fome

neficiários de programas e projetos, assim como aos gestores e técnicos encar-


Por fim, mas não menos importante: a efetividade das Avaliações não pode ser medida pelo número de sugestões e recomendações aportadas nas pesquisas e estudos avaliativos nos programas e projetos. Avaliações produzem informação e conhecimento que, desde que devidamente estruturados e disseminados, podem e devem ser usados para interferir cotidianamente na ação do gestor estratégico e do técnico na ponta, cujo registro formal é difícil de realizar. Ademais, e fundamentalmente, programas e projetos sociais são empreendimentos complexos, seja em termos de contexto político-institucional e escala, seja em arranjos de implementação e pessoal técnico envolvido. A introdução de inovações, redesenho de processos, descontinuidade de atividades, contratação de novos agentes e serviços – típicas recomendações derivadas de avaliações de implementação − cumprem um calendário que deve compatibilizar a agenda de prioridades de correção de problemas com as janelas de oportunidades de mudanças, sem o risco de interrupção das atividades para os públicos atendidos. Os estudos resultantes do referido edital do CNPq aqui compilados – assim como outros produzidos por consultores, empresas contratadas ou pela equipe SAGI – guardam similitude com algumas das tipologias e classificações aqui apresentadas. Mas o mais importante é a contribuição substantiva que aportam para o debate sobre as políticas e programas do Ministério. A SAGI agradece o empenho dos pesquisadores, a participação dos técnicos e gestores do MDS que se envolveram ao longo da execução dos projetos, e a competência do Departamento de Avaliação na condução de todo o processo de gestão do Edital, que culminou com a organização dessa relevante publicação. Boa leitura!

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INTRODUÇÃO MONITORAMENTO E AVALIAÇÃO DE PROGRAMAS: UMA COMPILAÇÃO CONCEITUAL E METODOLÓGICA PARA

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ORIENTAR A PRODUÇÃO DE CONHECIMENTO APLICADO PARA APRIMORAMENTO DA GESTÃO PÚBLICA Paulo de Martino Jannuzzi

A PESQUISA APLICADA ÀS POLÍTICAS PÚBLICAS E A POSSIBILIDADE DE CONSTRUÇÃO DE UMA AGENDA ESTRATÉGI-

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CA DE AVALIAÇÃO ENTRE ACADEMIA E GOVERNO Júnia Quiroga Alexandro Rodrigues Pinto Renata Mirandola Bichir Renato Francisco dos Santos de Paula

EDITAL nº 36/2010: O DESAFIO Mariomar Almeida Renata Gracioso Borges Marcelo Gonçalves Valle Roberto Camargos Antunes Josiane B. Santos

Introdução e Temas transversais

avaliação de políticas públicas: contribuições acadêmicas sobre o Desenvolvimento Social e o Combate à Fome

SUMÁRIO

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TEMAS TRANSVERSAIS PROGRAMA BOLSA FAMÍLIA: PERSPECTIVAS A PARTIR DO OLHAR DE GÊNERO E

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DA DIVERSIDADE SOCIOCULTURAL DE POVOS E COMUNIDADES TRADICIONAIS Marcelo Cardona Rocha Teresa Sacchet Kátia Favilla

1.

PROGRAMA BOLSA FAMÍLIA: UMA ANÁLISE DOS ASPECTOS SOCIODEMO-

GRÁFICOS E DAS ROTINAS DE CRIANÇAS NOS CONTEXTOS URBANO E RIBEIRI-

94

NHO AMAZÔNICO

2.

O PROGRAMA BOLSA FAMÍLIA E AS RELAÇÕES DE GÊNERO E GERAÇÃO

3.

O PROGRAMA BOLSA FAMÍLIA NA VOZ DAS PESCADORAS ARTESANAIS DO

4.

ESTRATÉGIAS DE ENFRENTAMENTO DA FOME E CONSTRUÇÕES DE GÊ-

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NA AGRICULTURA FAMILIAR DO SEMIÁRIDO DO NORDESTE

LITORAL DE PERNAMBUCO.

148

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NERO: O cotidiano das quebradeiras de coco babaçu da região dos cocais- MA

5.

SEGURANÇA ALIMENTAR E ACESSO AOS PROGRAMAS DE DESENVOL-

VIMENTO SOCIAL E COMBATE À FOME DE COMUNIDADES QUILOMBOLAS DO

202

ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL.

6.

DO PONTO DE VISTA DAS CRIANÇAS: Uma avaliação do Programa

7.

O PROGRAMA BOLSA FAMÍLIA E O ACESSO À EDUCAÇÃO ESCOLAR EM

Bolsa Família

COMUNIDADES INDÍGENAS KAINGANG E GUARANI NO PARANÁ

216

238

8.

MULHER E TRABALHO NO PROGRAMA BOLSA FAMÍLIA

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Paulo de Martino Jannuzzi2

Introdução e temas transversaIs

avaliação de políticas públicas: ReFleXÕes acadêmicas sobRe o desenvolvimento social e o combate à Fome

monitoRamento e avaliação de PROGRAMAS: UMA COMPILAÇÃO CONCEITUAL E METODOLÓGICA PARA ORIENTAR A PRODUÇÃO de conHecimento aplicado paRa APRIMORAMENTO DA GESTÃO PÚBLICA1

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ESTE TExTo é vERSão REvISADA DE ouTRo PRoDuzIDo CoMo MATERIAL DE REFERÊNCIA BÁSICA PARA

CuRSoS DE AvALIAção DE PRoGRAMAS SoCIAIS DA ESCoLA IBERoAMERICANA DE ADMINISTRAção E PoLÍTICAS PúBLICAS, oFERECIDoS NA ESCoLA NACIoNAL DE PoLÍTICAS PúBLICAS DESDE 2009, PuBLICADo EM DuAS PARTES (JANNuzzI 2011A E 2011B). A REPRoDução DoS MESMoS DE FoRMA INTEGRADA E REvISADA NESSA CoLETâNEA JuSTIFICA-SE PELA oPoRTuNIDADE DE DISSEMINAR uMA CoMPILAção úTIL DE ASPECToS HISTÓRICoS, CoNCEITuAIS E METoDoLÓGICoS ACERCA DE MoNIToRAMENTo E AvALIAção DE PRoGRAMAS No PAÍS JuNTo À CoMuNIDADE ACADÊMICA BRASILEIRA, INCITADA A PARTICIPAR MAIS DIRETAMENTE DA PRoDução DE CoNHECIMENTo PARA AS PoLÍTICAS E PRoGRAMAS Do MINISTéRIo DE DESENvoLvIMENTo SoCIAL E CoMBATE À FoME, PELoS EDITAIS DE FoMENTo À PESQuISA Do CNPQ. 2

PRoFESSoR DA ESCoLA NACIoNAL DE CIÊNCIAS ESTATÍSTICAS Do INSTITuTo BRASILEIRo DE GEoGRAFIA

E ESTATÍSTICA, PESQuISADoR Do CNPQ No PRoJETo PQ “INFoRMAção ESTATÍSTICA E SISTEMAS DE MoNIToRAMENTo E AvALIAção DE PoLÍTICAS E PRoGRAMAS SoCIAIS No BRASIL E AMéRICA LATINA”. ATuALMENTE ExERCE A FuNção DE SECRETÁRIo DE AvALIAção E GESTão DA INFoRMAção (SAGI) Do MINISTéRIo DE DESENvoLvIMENTo SoCIAL E CoMBATE À FoME (MDS).


INTRODUÇÃO A crescente atuação do Estado Brasileiro na promoção de políticas sociais, em especial a partir da Constituição Federal de 1988, tem sido acompanhada, com alguma defasagem, pelo aprimoramento da capacidade de formulação e avaliação de programas públicos no país. De modo geral, os estudos de avaliação de demandas sociais, os diagnósticos propositivos para intervenções específicas, os sistemas de indicadores de monitoramento e as pesquisas de avaliação de programas vêm se tornando mais consistentes e presentes no cotidiano dos gestores públicos, ainda que em um ritmo menos veloz que o necessário e de forma bastante desigual pelas esferas de governo e regiões do país. Em que pesem os avanços na capacidade de gestão de programas, ainda são expressivos os contrastes que se podem observar, por exemplo, no acompanhamento dos programas nas áreas da saúde e da qualificação profissional, ou entre equipes de gestores do governo federal e técnicos de prefeituras de pequenos municípios no interior do país. Há mesmo quem diga – nos círculos acadêmicos e nas diferentes esferas da administração pública – que não é por falta de estudos, diagnósticos e indicadores que os programas sociais não conseguem alcançar os resultados e impactos esperados no Brasil. Afinal, é fato que centros de pesquisa, universidades, empresas de consultoria e equipes de técnicos do setor público têm produzido, de forma sistemática ou por meio de projetos contratados, um amplo conjunto de trabalhos, artigos e estudos sobre diferentes aspectos da realidade social, referidos direta ou indiretamente ao contexto de operação dos vários programas públicos. Entretanto também é verdade que muitos desses trabalhos, mesmo os contratados para subsidiar a formulação de programas específicos, acabam se revelando como diagnósticos descritivos bastante gerais, aplicáveis a diferentes programas sociais, com contribuições certamente relevantes, mas desprovidas de informações mais particulares e “customizadas” para formatação de ações públicas mais dirigidas, no grau que se requer atualmente. Nos diagnósticos contratados pelo setor público, contribuem para isso, sem dúvida, as imprecisões ou lacunas dos termos de referência – que espelham, muitas vezes, a falta de clareza dos objetivos e natureza do programa público a ser implementado, fato decorrente, por sua vez, das deficiências de formação do gestor público – e a exiguidade de tempo e recursos para realização de levantamentos de campo específicos. Nesse contexto, acabam se justificando estudos diagnósticos mais gerais, baseados em trabalhos anteriores e em fontes de dados e pesquisas já disponíveis. Também é preciso reconhecer as limitações das pesquisas de avaliação de programas públicos como fontes de informação para readequação dos programas existentes ou proposição de novos. Nas avaliações de impacto, as constatações empíricas acerca da efetividade dos programas são, não raras vezes, ambíguas ou pouco consistentes. Nos casos em que se adotam delineamentos metodológicos quasi-experimentais, as condições para garantir a validade interna dos estudos acabam por inviabilizar a apropriação e a generalização dos resultados para avaliações mais abrangentes dos programas3.

3

WORTHERN et al., 2004.

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Vários estudos avaliativos focados no processo de implementação dos programas bre as atividades desenvolvidas e o papel dos agentes institucionais envolvidos nos programas, seja pelas limitações ou inexistência de sistemas de informações de monitoramento, seja pelas decisões metodológicas quanto às técnicas, amostras e aos casos investigados, muitas vezes escolhidos mais em função dos prazos e recursos disponíveis do que pelas perguntas as quais se quer responder. Avaliações voltadas à análise da consistência teórica e do desenho lógico de programas – que poderiam gerar conhecimento mais generalizável na área – são menos frequentes ou, pelo menos, menos conhecidas do que outros tipos de estudos avaliativos no país. Enfim, em que pesem os avanços na área, é preciso reconhecer que a insatisfação com esses estudos ainda é mais frequente do que o desejável. Como já revelava Cotta há mais de dez anos:

As metodologias de avaliação de programas sociais têm sido objeto de severas críticas. Basicamente, afirma-se que, na prática, as avaliações não subsidiam o processo decisório porque seus resultados são inconclusivos, inoportunos e irrelevantes. Inconclusivos em função das próprias limitações deste tipo de estudo, inoportunos devido à morosidade do processo avaliativo e irrelevantes porque não respondem às demandas informacionais de todos os agentes sociais afetos à intervenção.4 Situação semelhante parece ter passado os Estados Unidos (EUA) nos anos 1970, a julgar pelo relatório do General Accounting Office, que, mobilizado por demanda do Senado americano em 1974, constatou que as informações das pesquisas sociais e estudos avaliativos financiados com recursos públicos não contribuíam para o de-

Introdução e Temas transversais

avaliação de políticas públicas: REFLEXÕES acadêmicas sobre o Desenvolvimento Social e o Combate à Fome

acabam tendo baixo poder de generalização devido às lacunas de conhecimento so-

senho das políticas públicas, pela dispersão e fragmentação de temas investigados, falta de coordenação e orientação do que era de interesse governamental investigar, dificuldade de acesso e compreensão dos relatórios de pesquisas.5 Mesmo mais recentemente têm-se constatado limitações e problemas nos estudos avaliativos de programas públicos nos EUA, às vezes com desdobramentos até piores que os descritos por Cotta. De fato, como colocam Worthern et al. :

De vez em quando, uma “avaliação” mal concebida ou mal executada produz informações que, no melhor dos casos, seriam enganosas e, no pior, absolutamente falsas. Embora essas ocorrências sejam raras, podem causar problemas graves. Como geralmente tem ar de respeitabilidade, essas avaliações não costumam ser questionadas, e o resultado é que decisões importantes sobre programas e serviços essenciais baseiam-se inadvertidamente em informações falaciosas.6

4

COTTA, 1998, p.118.

5

GAO, 1977.

6

WORTHERN et al., 2004, p.44.


Conspiram para a conformação de tais problemas, entre tantos fatores, a crença desmesurada na capacidade de antecipação e implementação de programas por parte de técnicos de alto escalão que, ao não incorporar a contribuição de agentes envolvidos no trabalho, acabam por desenhar processos e rotinas que desconsideram as distintas realidades de operação dos programas. Esse tecnocratismo ingênuo invariavelmente se esquece das dificuldades de articulação e colaboração dos três níveis de governo ou de pastas sociais em uma mesma esfera e das diferenças de capacidade de gestão e controle social país afora. Tão ou mais grave, também desconsidera, na formulação dos programas, a heterogeneidade socioeconômica da população demandante, considerando-a como único público-alvo, para o qual se deve disponibilizar um mesmo conjunto de serviços, de Norte a Sul, do centro à periferia das cidades. Assim, com problemas nas fases iniciais do ciclo de gestão de programas – no reconhecimento das questões sociais e no desenho das intervenções idealizadas para mitigá-los – não se poderiam esperar resultados, de fato, impactantes. Desconhecimento sobre o estágio de avaliabilidade dos programas é outro fator a minar a credibilidade dos instrumentos de monitoramento e avaliação. A prematuridade na encomenda de estudos avaliativos de resultados e impactos, quando se sabe que o programa ainda se encontra em fase de implantação ou com problemas de gestão; e a antecipação de avaliações externas, com natureza mais de auditoria em detrimento de avaliações de caráter mais formativo, conduzidas internamente e voltadas ao aprimoramento incremental do programa constituem-se problemas mais frequentes do que se poderia esperar. São aportados volumes significativos de recursos em pesquisas de avaliação, procurando garantir representatividade amostral de resultados em nível nacional, esquecendo-se de estruturar painéis ou sistemas de indicadores de monitoramento que – com todas as limitações de cobertura, mas com a tempestividade devida – permitiriam identificar boa parte dos problemas em tempo de serem corrigidos. De fato, um dos achados sistemáticos das avaliações de programas realizadas pelo Tribunal de Contas da União é a inexistência de sistemas de informação para o acompanhamento das atividades dos programas. É ilustrativa, nesse sentido, a constatação, reproduzida a seguir, acerca da avaliação do Programa Nacional Biblioteca na Escola (PNBE), operado pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento Escolar (FNDE) do Ministério da Educação (MEC), com objetivo de distribuir acervo de livros para formação de bibliotecas nas escolas.

O trabalho constatou que o FNDE tem mostrado grande eficácia operacional na distribuição dos acervos do Programa para as escolas beneficiadas. Foram atendidas 20 mil escolas em 1998 e 36 mil em 1999, com previsão de atendimento de 139 mil escolas em 2002. Todavia, também se verificou que o PNBE não tem atividades de monitoramento e avaliação bem estruturadas. O MEC não dispõe de informações que permitam conhecer o nível de utilização dos acervos, bem como os problemas que podem estar afetando a efetividade do uso dos livros no desenvolvimento

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Para isso contribui o estágio do conhecimento do campo aplicado de monitoramento e avaliação de programas no Brasil. Enquanto nos EUA e em países europeus desenvolvidos a cultura de avaliação de programas já se encontra em estágio maduro, depois de mais de três ou quatro décadas de desenvolvimento, com marcos conceituais abrangentes e testados, com profissionais de formação multidisciplinar e com instituições especializadas, no Brasil, a institucionalização do campo é bem mais recente. Como comentam Worthern et al.7, a cultura de monitoramento e avaliação de programas nos Estados Unidos – assim como os instrumentos de planejamento e programação orçamentária – começou a se fortalecer nos anos 1960 no Governo Lyndon Johnson, quando da estruturação de vários programas sociais em nível federal, no contexto do que se denominou Great Society, e da necessidade, portanto, de garantir melhor gestão dos programas públicos naquele país. Rossi et al.8 identificam esforços sistemáticos em avaliação de programas sociais norte-americanos, já a partir da década de 1930, como desdobramento do papel crescente do Estado americano no financiamento de serviços sociais (respondendo aos efeitos da crise de 1929). A avaliação de programas, que se concentrava, inicialmente, nas áreas de educação (sobretudo na investigação de programas de alfabetização), de saúde pública (nas ações de combate à mortalidade por doenças infecto-parasitárias) e de qualificação profissional, passa, no pós-guerra, a abranger áreas como prevenção da violência juvenil, planejamento familiar, nutrição, programas habitacionais, desenvolvimento rural.

Introdução e Temas transversais

avaliação de políticas públicas: REFLEXÕES acadêmicas sobre o Desenvolvimento Social e o Combate à Fome

escolar dos alunos nas escolas beneficiadas. Tal fato é mais preocupante justamente no momento em que aumenta a escala de atendimento do Programa. (TCU, 2002, p.10).

No entanto, nos anos 1960, o campo da avaliação de programas passa por uma alta repentina e significativa, com a já mencionada ampliação dos programas sociais, e também, como lembram Rossi et al.9, com o avanço e a disseminação das técnicas aplicadas da pesquisa social, desenvolvidas nas universidades americanas. Ao contrário do que se poderia imaginar, nas décadas seguintes, a ênfase na desregulamentação e descentralização da prestação de serviços públicos e no questionamento sobre a pertinência e o tamanho dos programas sociais nos governos republicanos conservadores, que assumiram o poder mais tarde, acabou por valorizar a prática da avaliação, ao disseminar a cultura de monitoramento e avaliação para governos estaduais, municipais e organizações não governamentais. Afinal, mesmo um “estado regulador” requer instrumentos de medição de resultados para acompanhar a prestação dos serviços financiados com recursos públicos, até para justificar, com alguma base técnica e transparência, a descontinuidade de programas sociais “ineficazes” e redirecionar os gastos para outras áreas (como para as despesas militares da Guerra do Vietnã, no governo Nixon, e para defesa militar no Governo Reagan). Respondendo a essas 7

Worthern et al., 2004.

8

Rossi et al., 2004.

9

Rossi et al., 2004.


demandas, comentam os autores que, nos anos 1970, são estruturados cursos de pós-graduação, de natureza disciplinar e, mais tarde, multidisciplinar, com forte ênfase em técnicas de pesquisa (quantitativas e qualitativas), abrindo a possibilidade para criação de uma comunidade profissional de avaliadores.10 A avaliação de programas deixaria de ser preocupação apenas de cientistas sociais, em temas de pesquisas acadêmicas nas universidades, ganhando projeção e interesse na comunidade de gestores públicos como ferramenta para aprimoramento dos serviços públicos. Essa mudança qualitativa da produção e apropriação de conhecimentos na área – que parece se processar neste momento no Brasil – é muito bem registrada pela seguinte passagem de Rossi et al.:11

In its early years, evaluation was shaped mainly by the interests of social researchers. In later stages, however, the consumers of evatuation research exercised a significant influence on the filed. Evaluation in now sustained primarily by funding from policymakers, program planners, and administrators who use the findings and by the interests of general public and the clients of the programs evaluated. Evaluation results may not make front-page headlines, but they are often matters of intense concern to informed citizens, program sponsors, and decisionmakers, and those whose lives are affected, directly or indirectly, by the programs at issue. No caso brasileiro, atualmente, parte significativa da avaliação de programas públicos tem sido realizada por equipes de centros de pesquisa e universidades, com boa experiência em análise de macropolíticas, conjuntura social ou projetos de pesquisa acadêmicos, mas, em geral, sem experiência na implementação real de programas e sem reunir o conhecimento multidisciplinar requerido para a abordagem dos problemas complexos em que os programas procuram atuar.12 Não há

10

Vide, por exemplo, as publicações, eventos e sites das associações profissionais ou acadêmicas de

avaliação nesses países, entre os quais: American Evaluation Association (www.eval.org); Canadian Evaluation Society (www.evaluationcanada.ca); European Evaluation Society (www.europeanevaluation.org); e

Societé

Française d’Evaluation (www.afe.asso.fr). 11

Rossi et al., 2004, p.9.

12

De fato, no Brasil, os trabalhos de avaliação de programas públicos e seus autores encontram-se

dispersos pelas principais associações científicas disciplinares, tais como: Anpad (administração e administração pública); Anpec (economia); Anpocs (ciências sociais); Anped (educação); Abep (estudos populacionais); Abet (estudos do trabalho); Abrasco (saúde coletiva). Vale destacar alguns dos principais periódicos em que se pode encontrar estudos avaliativos: Revista do Serviço Público; Revista Brasileira de Ciências Sociais; Revista de Administração Pública; Revista São Paulo em Perspectiva; Textos de Discussão (Ipea); Planejamento e Políticas Públicas; Pesquisa de Planejamento Econômico; Texto de Discussão Ence, entre outros (alguns desses periódicos estão disponíveis no portal www.scielo. br. A partir dos anos 2000, foram criados espaços mais multidisciplinares para discussão e apresentação de estudos de avaliação de políticas públicas, entre eles a Associação Brasileira de Avaliação Educacional (www.abave.org.br); a Rede Brasileira de Monitoramento e Avaliação (http://redebrasileirademea.ning.com); o portal Políticas Públicas em Foco (www.boletim-fundap.cebrap.org.br), mantido pela Fundap e Cebrap; o sítio do Tribunal de Contas da União (www. tcu.gov.br) e da Controladoria-geral da União (www.cgu.gov.br ), além dos fóruns criados pelos programas de pósgraduação lato e stricto sensu, acadêmicos e profissionais, e das linhas de pesquisa nesse sentido em programas de pós-graduação em administração pública, economia social, saúde coletiva, direito etc.

21


dúvidas de que, em geral, essas avaliações de programas contam com equipes de técnicas quantitativas e qualitativas de coleta e análise de dados. Como nas pesquisas acadêmicas, é fundamental garantir o rigor metodológico nos estudos avaliativos, para permitir conhecimento mais circunstanciado dos problemas, as soluções idealizadas para mitigá-los e para conferir legitimidade técnica-científica na avaliação da ação governamental. Mas, como já alertado em um dos primeiros manuais abrangentes de avaliação de programas no início dos anos 1970, programas sociais são “objetos de pesquisa” inerentemente difíceis de serem tratados, pelo ambiente muitas vezes inóspito e pouco colaborativo, pelo contexto político menos ou mais favorável, pela natureza fugidia das perguntas e questões que o avaliador deve responder, pela menor ou maior disponibilidade de dados, pelo tempo e recursos disponíveis para conduzir análises mais consistentes.13 Em manuais mais recentes, como os já citados de Worthern et al. e Rossi et.al., recomenda-se que os estudos avaliativos sejam realizados por pesquisadores com conhecimento técnico e metodológico apropriado à temática em questão, mas também com experiência empírica anterior e, sobretudo, com desprendimento para inovar e improvisar nas diversas circunstâncias e dificuldades que insistem em aparecer no cotidiano prático da área. Não é incomum, pois, que estudos avaliativos realizados por “puristas metodológicos” cheguem a resultados já conhecidos do gestor de programas, ou concluam – com ingênua assertividade – acerca da necessidade de descontinuidade do programa avaliado, pela suposta baixa efetividade apurada, segundo suas escolhas metodológicas sobre o que investigar e como fazê-lo. Essas considerações iniciais – um tanto extensas, mas necessárias para contextualização e justificativa da discussão aqui pretendida – procuram situar o quadro de deficiência de sistemas de monitoramento para acompanhar as ações e os

Introdução e Temas transversais

avaliação de políticas públicas: REFLEXÕES acadêmicas sobre o Desenvolvimento Social e o Combate à Fome

competentes no emprego das boas práticas da pesquisa social e no uso rigoroso

programas governamentais no Brasil e os frequentes problemas de especificação de pesquisas de avaliação desses programas na gestão pública no país. Não é tão comum encontrar, nos gabinetes e escritórios de gestores e técnicos do setor público, especialmente em nível estadual e dos grandes municípios, sistemas de monitoramento que permitam acompanhar, por meio de um conjunto consistente e atualizado de indicadores, a ação governamental, desde a alocação do gasto público ao impacto junto aos públicos beneficiários. Muitos são os exemplos de pesquisas de avaliação que, mesmo motivadas por preocupação legítima e meritória com a eficácia e efetividade do gasto público, revelam, infelizmente, resultados triviais, metodologicamente questionáveis ou com baixa apropriação para reformulação dos programas. Este texto procura trazer alguma contribuição de natureza conceitual e metodológica para ajudar a “debelar os males” apontados anteriormente; isto é, para auxiliar na estruturação de sistemas de monitoramento e na especificação de pesquisas de avaliação que realmente se prestem ao objetivo de permitir o acompanhamento contínuo e o efetivo aprimoramento da ação governamental e, portanto, da gestão de programas.

13

WEISS, 1972.


Inicia-se com uma exposição do Ciclo de Formulação e Avaliação de Políticas Públicas e Programas, para em seguida discutir como os sistemas de indicadores de monitoramento e as pesquisas de avaliação podem e devem se integrar naquele. Esse caminho escolhido parte da hipótese de que as dificuldades apontadas no monitoramento e avaliação de programas no Brasil – e as frustrações daí decorrentes – são consequência, em boa medida, de desenvolvê-los seguindo modelos e prescrições muito particulares e padronizados, sem a devida “customização” que deveriam ter em função do estágio de maturidade dos programas – ou do momento do “ciclo de vida” em que eles se encontram –, ou, ainda, de conduzi-los sem uma análise prévia do grau de avaliabilidade dos programas e sem uma compreensão de que essas atividades se integram a processos mais amplos, igualmente importantes, da gestão de programas. Forçando um pouco o argumento para torná-lo mais claro – ainda que em prejuízo do reconhecimento do esforço meritório e do trabalho competente observado em diversos setores da administração pública brasileira –, o fato é que as lacunas de formação e o pouco domínio de conceitos e técnicas no campo de monitoramento e avaliação, na comunidade de gestores, acabam trazendo problemas na especificação dos instrumentos de monitoramento e avaliação das ações governamentais. Isso leva às conhecidas frustrações com resultados tão ansiosamente esperados e aos questionamentos sobre a utilidade dos estudos. Explicitando melhor a motivação para elaboração desse texto – agora sob o risco de simplificar demais a natureza e minimizar o alcance dos estudos avaliativos conduzidos por colegas pesquisadores nas universidades e centros de pesquisa no país –, a abordagem marcadamente disciplinar da pesquisa aplicada no campo, a sobrevalorização de algumas abordagens e modelos específicos de avaliação, o desconhecimento do contexto de operação da ação pública e da forma com que os resultados dos estudos podem ser usados mais efetivamente pelos gestores são elementos que também contribuem para conformação de tal quadro. Este texto procura, assim, em uma perspectiva modesta em substância, mas comprometida em seu sentido público, colaborar para a melhoria na especificação da demanda de instrumentos de monitoramento e pesquisa de avaliação por parte da comunidade de gestores públicos e na estruturação dos serviços a serem oferecidos pela comunidade de pesquisadores acadêmicos e profissionais. Antes de passar a uma explicação mais detalhada de cada etapa desse ciclo, vale formalizar dois termos citados correntemente no texto – políticas públicas e programas. Isso é importante para circunstanciar os limites do campo de diálogo estabelecido neste texto, já que avaliação de políticas públicas e avaliação de programas públicos são termos muito imbricados, mas referem-se a contextos muito diferentes (em amplitude) da análise da intervenção estatal. Evitando entrar em uma discussão muito extensa sobre os diferentes significados do termo – sistematizados em Villanueva14 – política pública é, na definição de Nascimento15, o conjunto de decisões tomadas por aqueles que detêm competên14

VILLANUEVA, 2006.

15

NASCIMENTO, 1991.

23


cia legal para deliberar em nome da coletividade – as instituições de Estado – via intenção de orientar sua evolução para um fim estabelecido como o desejável. Como esclarece Saravia, em

[...] uma perspectiva mais operacional, poderíamos dizer que ela [a política pública] é um sistema de decisões públicas que visa a ações ou omissões, preventivas ou corretivas, destinadas a manter ou modificar a realidade de um ou vários setores da vida social, por meio da definição de objetivos e estratégias de atuação e da alocação dos recursos necessários para atingir os objetivos estabelecidos.16 As decisões que conformam tal política pública – distributiva, redistributiva ou regulatória, universal ou focalizada – assumem diferentes formatos: podem ser enunciados de diretrizes estratégicas de governo, leis e decretos normativos, que especificam de forma mais clara e operacional tais diretrizes, a criação de organizações ou programas que vão conferir operacionalidade às diretrizes, leis e normas.17 O programa público é, pois, um dos instrumentos operacionais das políticas públicas. Mais especificamente, trata-se de um conjunto sistêmico de ações programadas e articuladas entre si, com objetivo de atender uma demanda pública específica, encampada na agenda de prioridades do Estado ou governo quanto a essas políticas. Assim, um programa social é um conjunto de atividades direcionadas para solucionar um problema vivenciado pela sociedade, em seu conjunto ou por grupos.18 Avaliação de políticas públicas, ou melhor, análise de políticas públicas, termo

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sando à solução de um problema ou ao redirecionamento de uma tendência, com

preferido por Owen19, é, pois, uma atividade muito mais ampla que a avaliação de programas. Trata do contexto político-social de surgimento da política, dos atores participantes. Volta-se mais ao esclarecimento de seu processo de construção do que da recomendação prática de como aprimorá-la, constituindo, na realidade, um campo de investigação mais propriamente acadêmico que a perspectiva técnica-profissional em que se realiza a avaliação de programas. Vale observar que há Programas, inclusive, com escopo temático e escala de operação muito mais abrangente que o usual, revelando-se mais como um guarda-chuva de outros programas mais específicos. Outros podem ser projetos de curto alcance, ou atividades que visam à produção de um produto ou serviço finalístico ou da área-meio. A discussão aqui empreendida é suficientemente ampla para contemplar essas modalidades.

16

SARAVIA, 2006, p.29.

17

VILLANUEVA, 2006.

18

ROSSI et al., 2004.

19

OWEN, 2007.


O Ciclo de Políticas Públicas e Programas Nos manuais clássicos de Ciência Política, o processo de formulação de políticas públicas tem sido apresentado recorrentemente pelo ciclo de etapas sucessivas (Policy Cycle), com mais ou menos estágios, como ilustrado no Diagrama 120. Em que pesem as críticas de longa data quanto à forma simplificada com que esse diagrama apresenta o processo político e sua própria veracidade empírica, a separação em etapas se presta aos objetivos de evidenciar, ao longo do processo, ênfases diferenciadas no planejamento, na operação ou avaliação dos programas. Justifica-se ainda para fins didáticos e para orientar o recorte analítico na pesquisa acadêmica na área.21 Nesse modelo, a primeira etapa – Definição da Agenda Política (Agenda-Setting) – corresponde aos múltiplos caminhos e processos que culminam com o reconhecimento de uma questão social como problema público e da necessidade da ação governamental para sua solução; isto é, a legitimação da questão social na pauta pública ou agenda das políticas públicas do país, em determinado momento. A etapa seguinte – Formulação de Políticas e Programas (Policy Formulation) – refere-se aos processos e atividades relacionados à construção de possíveis soluções, encaminhamentos e programas para lidar com a questão recém-legitimada na agenda. É preciso, então, em sequência – na Tomada de Decisão Técnica-Política (Decision Making) –, escolher o rumo a seguir, de ação efetiva ou não, decidindo-se por uma ou algumas das alternativas formuladas. A quarta etapa – Implementação de Políticas e Programas (Policy Implementation) – corresponde aos esforços de execução da ação governamental, na alocação de recursos e desenvolvimento dos processos previstos nas alternativas e programas escolhidos anteriormente. Por fim, é preciso analisar se os esforços empreendidos estão atuando no sentido esperado de solucionar o problema original – etapa de Avaliação das Políticas e Programas (Policy Evaluation). É necessário avaliar se é preciso realizar mudanças nos programas implementados para garantir sua efetividade; descontinuá-los, se o problema deixou de compor a agenda; ou então adaptá-los a uma nova realidade, reiniciando o ciclo. É oportuno registrar que a avaliação, como etapa do ciclo, realiza-se após a implementação. Trata-se de um momento de natureza mais reflexiva para continuidade ou não do programa. Distingue-se, portanto, das atividades de monitoramento e avaliação, que se realizam mediante os sistemas de indicadores e as pesquisas de avaliação, instrumentos investigativos que podem ser empregados a qualquer momento do ciclo, conforme discutido mais adiante. Denominar essa etapa decisiva do ciclo como avaliação somativa talvez ajudasse a evitar o duplo sentido que o termo assume na área.

20

Como apresentado nos vários textos reunidos na valiosa coletânea sobre políticas públicas

organizada por Saravia e Ferrarezi (2006), publicada pela ENAP e disponibilizada em seu sítio eletrônico (www.enap.gov.br), o Ciclo de Políticas Públicas pode ser descrito com um número maior ou menor de etapas. De modo geral, distinguem-se pelo menos três macroetapas: formulação (na qual estaria a formação da agenda), a implementação e a avaliação. Essa publicação, organizada segundo as etapas do ciclo, traz artigos clássicos que aprofundam a vasta discussão envolvida em cada uma delas. 21

NASCIMENTO, 1991.

25


A agenda política corresponde ao conjunto de assuntos e problemas que os gestores públicos e a comunidade política entendem como mais relevantes em dado momento e, não necessariamente, à lista de preocupações da sociedade ou destaques da imprensa.22 Afinal, o reconhecimento de uma questão social como problema de governo ou Estado não é um processo simples e imediato, que responde automaticamente às estatísticas disponíveis, por mais reveladoras que sejam da gravidade da questão, quando comparada a outros países ou a outros momentos do passado. Não é a vontade de um técnico do setor público, um pesquisador aca-

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DIAGRAMA 1: O CICLO DE POLÍTICAS E PROGRAMAS PÚBLICOS

dêmico ou governante eleito, portador de conhecimento empírico consistente da realidade ou com uma visão ousada, que garante imediatamente sua incorporação na agenda formal de governo. Como coloca Parada, “no toda idea entra a la agenda. No todos temas de la agenda se convierten em programas”.23 Quando existe a convicção de que um problema social precisa ser dominado política e administrativamente, é que ele se transforma em uma questão pública.24 Se parece haver solução técnica viável e factível para determinada questão social, essa entra mais facilmente na agenda. Afinal, a estrutura do setor público, pelos mecanismos institucionais existentes e operantes, é um ambiente que “digere” inovações a seu próprio tempo e estilo.25

22

JANN; WEGRICH, 2007.

23

PARADA, 2006, p.73.

24

FREY, 1997.

25

A resistência à mudança e à incorporação de inovações não é problema só no setor público,

mas também nas empresas privadas. Os mecanismos de motivação, pressão e coerção nessas últimas acabam mobilizando mudanças, às vezes a elevados custos pessoais e institucionais. No setor público, os instrumentos para mobilização envolvem, em tese, mais coordenação de esforços e convencimento, até porque as resistências podem ser bastante legítimas. Ou seja, nem toda mudança é necessariamente uma inovação “positiva”. Para o bem ou para o mal, são conhecidos os casos em que a resistência da burocracia pública acaba revertendo ou minando propostas consideradas muito ousadas.


Há várias interpretações de como a agenda é construída. Em todas as perspectivas, ela é entendida como um processo coletivo e conflituoso de definição, como assinalam Howlett & Ramesh.26 Vai sendo formada por meio de diferentes mecanismos de pressão externa de grupos organizados em partidos políticos, sindicatos, associações patronais, imprensa e outras instituições, pelas temáticas por eles entendidas como relevantes; por iniciativa interna do governo e mobilização social em função de compromissos assumidos nas eleições; pela atuação da burocracia pública no encaminhamento das demandas setoriais etc. Os atores políticos se constituem em elementos catalisadores desse processo. Eles são diversos e possuem características distintas: políticos e burocratas; empresários, trabalhadores/sindicatos, servidores públicos e os meios de comunicação.27 Grandes empresários, individualmente ou por meio de seus lobbies (grupos de pressão), encaminham suas demandas e pressionam os atores públicos, nas decisões governamentais, em favor de seus interesses. Outro ator político de grande importância são os agentes internacionais, tais como o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Mundial, a Organização das Nações Unidas (ONU), a Organização Mundial do Comércio (OMC) etc.; ou ainda os países com os quais o Brasil mantém relações políticas. Esses atores podem afetar não apenas a economia, como também a política interna do país.28 Além desses, os meios de comunicação são outros agentes importantes no processo – de modo especial, a televisão, com difusão massificada em todas as camadas da população – pois dispõem de recursos para influenciar a opinião pública na formação das demandas.29 Enfim, as organizações políticas – partidos, sindicatos, grupos de interesse – são fundamentais para que as demandas entrem na agenda política do governo e para que, uma vez nela presentes, possam se transformar em ações e programas concretos. A amplitude da agenda política estaria condicionada também ao nível de desenvolvimento econômico e tecnológico do país, já que tais fatores, ao viabilizar ganhos crescentes de produtividade na economia, permitiriam o atendimento de demandas de grupos de interesse organizados, pela ampliação da oferta, cobertura e diversidade dos serviços sociais.30 O ritmo de constituição de tal agenda de bem-estar social seria potencializado, em contextos de maior liberdade e participação política, com maior atuação de partidos políticos, sindicatos, imprensa e outros grupos de interesse. Os níveis de urbanização e envelhecimento populacional também seriam outros condicionantes importantes para entender a formação da agenda política, pela visibilidade e concretude que conferem aos problemas sociais deles decorrentes.

26

HOWLETT & RAMESH, 2003.

27

RUA, 1998.

28

Idem, ibidem.

29

FREY, 1997.

30

CAREY, 2006.

27


Na etapa da formulação da política, os problemas, as propostas e demandas exIsto é, a formulação de política envolve a busca de possíveis soluções para as questões priorizadas na agenda. Nesse momento, os elementos operacionais da política em questão precisam ser evidenciados: diretrizes estratégicas, propostas de leis, decretos normativos, programas e projetos. Em uma visão simplificada – e um tanto romântica e ingênua, como diria Charles Lindblom –, tais programas e propostas seriam elaborados pelo emprego de técnicas gerais de planejamento de projetos; conhecimentos setoriais específicos; análise de viabilidade política, de custo-benefício ou custo-efetividade das soluções; revisão crítica de experiências anteriores e boas práticas identificadas. Essas tarefas são conduzidas por técnicos do setor público, com maior ou menor participação de consultores externos, seguindo orientações emanadas de gestores públicos no topo da hierarquia. Em função da natureza do problema e orientação geral de governo, os programas propostos se classificariam em ações de cunho distributivo, redistributivo ou regulamentório.31 Na realidade, essa fase não está tão desvinculada do cotidiano da política ou tão isolada das influências das propostas dos grupos de interesse, como se supõe. Muitas vezes, as propostas de encaminhamento de soluções chegam junto com as pressões para introduzir a questão na agenda formal de governo. Se não, colocada a questão, há sempre atores com maior ou menor influência na formatação dos possíveis programas e ações.32 Levantadas as diferentes alternativas para uma dada questão social, é preciso escolher qual deverá ser adotada. Enquanto que na definição da agenda política e formulação de programas a participação de agentes não pertencentes ao governo ou Estado desempenha papel central, a tomada de decisão envolve os gestores e

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plicitadas na agenda transformam-se em leis, programas e propostas de ações.

técnicos mais diretamente relacionados à política ou ao programa. Esse é o ônus e o bônus do exercício da atividade pública. Isso não significa que outros agentes e atores não estejam ativos no processo, de modo a influenciar a decisão em um ou outro sentido, introduzindo – legitimamente em muitos casos – considerações de ordem política em rotinas de cunho mais eminentemente técnico. Como bem colocam Howlett & Ramesh:

These actors can and do, of course, engage in various kinds of lobbying activities aimed at persuading, encouraging, and sometimes even coercing authoritative office-houlders to adopt options of which they approve. However, unlike office-holders, those other actors have, at best, a voice in the decision-making process, but they do not have a vote per se.33

31

HOWLETT & RAMESH, 2003

32

JANN; WEGRICH, 2007.

33

HOWLETT & RAMESH, 2003, p.163.


Chega então o momento da implementação dos programas, projetos e ações pontuais ou mais abrangentes. A fase de Implementação é o momento em que a política pública começa a ser executada, em que os recursos alocados passam a se transformar em ações capazes de agir e mudar certa realidade. Aqui, a política adquire uma concretude objetiva maior e, por isso, começa a revelar mais explicitamente as dificuldades de sua introdução e operação pelos agentes encarregados de “pôr a mão na massa”.34 Trata-se da gestão das ações para fazer uma política sair do papel e funcionar efetivamente, compreendendo o conjunto de ações realizadas, por grupos ou atores de natureza pública ou privada, para a consecução de objetivos definidos. Envolve programação de atividades, previsionamento de recursos financeiros, alocação de recursos humanos, mobilização de agentes, interlocução com atores estratégicos, manejo dos mecanismos que assegurem a governabilidade das atividades e correção de cursos, caso se identifiquem obstáculos ou surpresas não antecipadas. É na avaliação – ou melhor, na avaliação somativa – que são confrontados os resultados esperados com os resultados alcançados. É o momento em que se dá um retorno à etapa inicial de formulação, com correções no plano de ação, caso seja uma política de ordem contínua; ou quando se decide pelo encerramento da política. É também uma etapa de verificação dos impactos desejados e indesejados. Trata-se de verificar os efeitos obtidos para deduzir consequências indesejadas nas ações e programas futuros. Como bem coloca Frey,35 a avaliação é imprescindível para o desenvolvimento e a adaptação contínua das formas e dos instrumentos de ação pública, o que pode ser denominado como a fase de “aprendizagem política”. O ciclo de políticas públicas tal como descrito é, certamente, um modelo idealizado, com aderência bastante limitada ao cotidiano verificado no Brasil ou em outros países. Como bem observa Saravia, “o processo de política pública não possui uma racionalidade manifesta. Não é uma ordenação tranquila na qual cada ator social conhece e desempenha o papel esperado”.36 Pelo que sugere Lindblom,37 atualização da agenda, formulação de políticas e programas, implementação e avaliação seriam estágios permanentes e concomitantes do processo político. A atualização da agenda política e as inovações dos programas seriam, de fato, muito mais incrementais e contínuas do que gostariam os gestores públicos. Tampouco haveria, segundo Parada, um momento de avaliação cabal das políticas e programas, sendo “[...] más habitual que cambien o se combinen com outras. Se há llegado a decir que lãs políticas públicas son imortables”.38 Boa parte da crítica feita a esse modelo se refere ao fato de ele sugerir que a administração pública, seus gestores, os atores políticos e os técnicos atuem de forma bastante sistemática e cooperativa, como se estivessem todos envolvidos na resolução de um problema consensualmente percebido, empregando métodos

34

NASCIMENTO, 1991

35

FREY, 1997.

36

SARAVIA, 2006, p.29.

37

LINDBLOM, 2006.

38

PARADA, 2006, p.72.

29


racionais e objetivos na busca da solução, de acordo com uma sequência linear racionalidade técnica no processo, a análise exaustiva dos problemas, a busca de soluções ótimas e a crença no poder revelador e conciliador do discurso técnico-científico – tão presentes nos órgãos de planejamento público – não seriam empiricamente constatáveis, nem factíveis e muito menos desejáveis. Na realidade, a formulação de políticas configura-se como um processo que envolve a interação de muitos agentes, com diferentes interesses. É marcada por apoios entusiasmados de alguns, resistências legítimas ou não de outros. Está repleta de avanços e retrocessos, com desdobramentos não necessariamente sequenciais e não plenamente antecipáveis. Como observam Jann & Wegrich:

Policy process rarely features clear-cut beginnings and endings. At the same time, policies have always been constantly reviewed, controlled, modified and sometimes even terminated; policies are perpetually reformulated, implemented, evaluated and adapted. […] Moreover, policies do not develop in a vacuum, but are adopted in a crowded policy space that leaves little space for innovation […].40 Contudo, na visão de Howlett & Ramesh,41 esse modelo de representação tem a grande virtude de facilitar o entendimento do processo complexo de interação de diversos agentes, nos múltiplos estágios por que passa a formulação de políticas públicas, oferecendo um marco metodológico geral para análises isoladas de cada etapa do processo ou das relações de cada uma com as demais, à frente ou à jusante. Esse modelo seria também suficientemente geral para ser aplicado no entendimento do processo na maioria dos âmbitos e contextos de formulação de

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de etapas bem definidas. Como diria Lindblom,39 mais uma vez, o imperativo da

políticas e programas – em nível federal, estadual, local e mesmo setorial. Jann & Wegrich42 acrescentam ainda que o sucesso e a “resiliência” desse modelo clássico às críticas de pesquisadores acadêmicos é que ele parece como um modelo prescritivo ideal a ser adotado, em que gestores eleitos governam com corpos burocráticos dotados de grande capacidade de diagnóstico de problemas, com posturas ativas e inovadoras na formulação de programas, operando com racionalidade técnica na tomada de decisões, com controle efetivo das atividades na implementação dos programas públicos e objetividade na avaliação desses.

Os sistemas de indicadores de monitoramento no Ciclo de Políticas e Programas A preocupação com a construção de indicadores de monitoramento da ação governamental é tão ou mais antiga que a própria avaliação de programas públicos,

39

LINDBLOM, 2006.

40

JANN; WEGRICH, 2007, p.44-45.

41

HOWLETT & RAMESH, 2003.

42

JANN & WEGRICH, 2007.


se forem consideradas as medidas de performance mais geral do setor público baseadas na entrega de obras e produtos e na computação de indicadores de custos de serviços, a partir da execução orçamentária. Como registram Mcdavid e Hawthorn em livro que procura oferecer uma visão integrada entre avaliação de programas e medição do desempenho governamental:

While we have tended to situate the beginnings of performance measures in the United States, in the 1960s, with the development of performance management systems such as programmed planned budgeting systems (PPBS) […] there is good evidence that performance measurement and reporting was well-developed in some American local governments early in the 20th century.43 Os autores citam as iniciativas de alguns governos locais nos EUA, antes da 2ª Guerra Mundial, na elaboração de relatórios com computação regular de medidas de eficiência dos serviços públicos então oferecidos, como a construção e manutenção das ruas e rodovias, distribuição de água e recolhimento de lixo. Os produtos e serviços disponibilizados pelo setor público municipal eram bastante simples e tangíveis, assim como a contabilização dos custos para sua produção. Mas foi a introdução das técnicas de programação orçamentária por programas no Governo Kennedy que marcaria um momento de maior aprimoramento na medição do desempenho – expresso por indicadores de eficiência e efetividade – na esfera federal americana. Ao propor a estruturação do orçamento segundo conjunto de atividades e programas afins – agora bem mais complexos que os oferecidos pelos municípios na primeira metade do século XX – e não segundo as agências e organizações que as executavam, esperava-se conseguir apurar resultados e custos mais consistentes dos serviços públicos disponibilizados e, portanto, medidas de eficiência mais precisas.44 Em que pesem o fracasso na implementação do orçamento-programa – na vinculação entre recursos-produtos ao nível de programas – e o contexto de crise fiscal do Estado, comentam os autores que a orientação voltada à medição dos resultados ganhou força nos anos 1970 e na década seguinte. Os governos conservadores desse período (em especial na Inglaterra, com Thatcher, e nos EUA, com Reagan) imprimem reformas no setor público, que vieram a ser conhecidas como o movimento da Nova Administração Pública, preconizando a adoção de instrumentos de controle e gestão de resultados do setor privado. Sem entrar na discussão acerca dos excessos, limitações e aspectos meritórios de tal movimento – debate esse já empreendido no Brasil por vários autores, com muito mais competência, autoridade e espaço do que o disponível para este texto –, o legado de preocupação com a transparência e responsabilização pública criou oportunidades para aprimoramento da gestão de programas, seja para a

43

MCDAVID; HAWTHORN, 2006, p.283.

44

MCDAVID; HAWTHORN, 2006.

31


estruturação de sistemas de indicadores de monitoramento, seja para a realização instrumentos de gestão: os sistemas de monitoramento. O modelo idealizado de “ciclo de vida” de políticas e programas apresentado anteriormente é uma referência conceitual interessante para ilustrar como os sistemas de indicadores de monitoramento podem ser estruturados e como as pesquisas de avaliação podem ser especificadas de forma a potencializar seu emprego na gestão dos programas. A proposta básica desta seção é mostrar a importância de se dispor de indicadores relevantes e periodicamente atualizados para acompanhar as atividades e a produção de serviços dos programas, que permitam corrigir desvios, reprogramar atividades ou mesmo especificar pesquisas de avaliação para entender por que determinados processos não estão se encaminhando no sentido idealizado originalmente. Como discutido em texto anterior,45 as atividades de cada etapa do ciclo apoiam-se em um conjunto específico de indicadores. Na definição da agenda, os indicadores são recursos valiosos para dimensionar os problemas sociais, servindo como instrumentos de advocacy e pressão de demandas sociais não satisfeitas. Indicadores produzidos pelas instituições oficiais de estatísticas – sobretudos os computados a partir de censos demográficos e pesquisas amostrais regulares – prestam-se bem a esse papel, pela legitimidade que gozam perante diferentes públicos. No Brasil, o relatório “Síntese de Indicadores Sociais”, publicado anualmente pelo IBGE, é uma referência importante nesse sentido, provocando grande interesse na mídia quando de sua divulgação.46 O Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) computado para países, municípios, mulheres e negros é outro bom exemplo de como uma medida simples pode mobilizar os veículos de comunicação e recolocar anualmente o debate sobre desigualdade social e os impactos das políticas públicas

Introdução e Temas transversais

avaliação de políticas públicas: REFLEXÕES acadêmicas sobre o Desenvolvimento Social e o Combate à Fome

das pesquisas de avaliação. Neste tópico do texto, discute-se o primeiro desses

na mídia e nas esferas de governo.47 Na elaboração dos diagnósticos para formulação de programas, os indicadores são imprescindíveis para qualificar os públicos-alvo, localizá-los e retratá-los de modo tão amplo e detalhado quanto possível. É preciso adequar as intervenções às características e necessidades dos demandantes dos programas. De modo geral, na elaboração de diagnósticos socioeconômicos propositivos para programas públicos, empregam-se indicadores de várias áreas temáticas analíticas ou de atuação governamental. Para desenvolver programas no campo da educação básica, por exemplo, é preciso conhecer não apenas as condições de acesso à escola, a infraestrutura escolar, o desempenho dos alunos, mas também aspectos relacionados às condições de vida dos estudantes, como moradia, nível de pobreza e

45

Jannuzzi (2005), disponível para download na Revista do Serviço Público, v.56, n.2, em www.

enap.gov.br. Outra referência para aprofundamento nesse campo é Jannuzzi (2004). 46

Essa publicação do IBGE, assim como diversas outras da instituição, está disponível para

download em www.ibge.gov.br. 47 (2005).

Uma discussão dos limites e potencialidades do IDH pode ser vista em Guimarães e Jannuzzi


renda familiar, acesso a serviços de saúde, escolaridade dos pais, fatores esses que certamente podem afetar ou potencializar as ações programáticas específicas.48 Indicadores construídos a partir dos censos demográficos são particularmente úteis nessa fase, pela amplitude do escopo temático investigado e pela possibilidade de desagregação territorial ou por grupos sociodemográficos específicos. O Censo Demográfico 2010 potencializará ainda mais essas duas características – escopo e desagregabilidade –, constituindo-se em marco importante para reavaliação das demandas sociais da população brasileira, nesse momento de ampliação da estrutura de proteção social no país. Na seleção de alternativas programáticas idealizadas para atender à questão pública colocada na agenda e eleger prioridades de intervenção, é preciso dispor de indicadores que operacionalizem os critérios técnicos e políticos definidos. Indicadores sintéticos, como o já citado Índice de Desenvolvimento Humano, o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica, o Índice da Pegada Humana (Footprint Index) ou as classificações geradas por técnicas de análise multicritério podem ser úteis para apoiar decisões nessa fase do ciclo,49 como discutido em Scandar et al.50 e Jannuzzi et al.51 Para acompanhar a implementação dos programas e, posteriormente, para gestão, quando eles entrarem em plena operação, são necessários indicadores que permitam acompanhar regularmente as ações programadas, do previsionamento e alocação do gasto à produção dos serviços e, idealmente, aos eventuais resultados e impactos esperados quando da idealização dos programas. São os indicadores que estruturam processos formais de monitoramento, entendido, nas palavras de Coutinho, como “um processo sistemático e contínuo que, produzindo informações sintéticas e em tempo eficaz, permite rápida avaliação situacional e a intervenção oportuna que confirma ou corrige as ações monitoradas”.52 Dispostos em painéis ou em sistemas informatizados, os indicadores de monitoramento devem ser atualizados com regularidade e tempestividade adequada à tomada de decisão. Idealmente, esses indicadores devem ser específicos e sensíveis às ações programadas, a fim de se tornarem, de fato, úteis para inferir se o programa está sendo implantado conforme planejado ou para permitir as correções de rumo (aspectos que só poderão ser comprovados mais precisamente por meio de pesquisas de avaliação específicas, durante ou após a implantação).

48

Um bom exemplo de indicadores para diagnósticos de programas setoriais é demonstrado

na publicação “Construindo o diagnóstico municipal”, disponível em www.cepam.sp.gov.br. Outro exemplo de diagnóstico apoiado em indicadores multitemáticos é o Diagnóstico para Programa de Qualificação Profissional do Estado de São Paulo, disponível em www.emprego.sp.gov.br. 49

No sítio www.anipes.org.br está disponível um aplicativo (Pradin) que permite entender o

potencial da Análise Multicritério na tomada de decisão em políticas públicas. 50

SCANDAR et al., 2006.

51

JANNUZZI et al., 2009.

52

COUTINHO, 2001, p.11.

33


Para isso, esses painéis ou sistemas de indicadores de monitoramento devem se dos pelos gestores e operadores envolvidos nos programas. Devem estar interligados aos sistemas informatizados de gestão do programa, no qual são registrados atendimentos prestados, informações dos agentes que o operam, características dos beneficiários, processos intermediários, que produzirão os efeitos idealizados pelo programa. Diferentemente do que se passa nas pesquisas de avaliação, na estruturação de sistemas de monitoramento não se prevê levantamentos primários de dados. Pode ser necessário criar rotinas de coleta de dados que operem fora dos círculos normais de produção de serviços dos programas, mas é preciso fazer esforços para aproveitar as informações geradas no âmbito de operação cotidiana dos programas. A criação de mais uma rotina para registro de informação, pelo beneficiário do programa ou pelo agente envolvido na implementação, pode implicar atrasos indesejados e, pior, declarações mal preenchidas que acabam não se prestando à sua finalidade original. Vale observar que, em geral, as informações compiladas e enviadas para atualização dos registros de acompanhamento do Plano Plurianual, no Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, são somente a ponta do iceberg de dados armazenados em planilhas eletrônicas e gavetas nos escritórios da administração pública. Aliás, é curioso que, nas médias e altas gerências do setor público – prefeituras, secretarias de estados ou ministérios –, reclame-se de falta de informação para gestão em meio a tanta informação continuamente produzida nas unidades de prestação de serviços públicos (escolas, postos de saúde, delegacias, centros de referência da assistência social, postos de intermediação de mão de obra, agências do INSS etc.). Para superar esse paradoxo da “escassez na abundância”, é preciso aprimorar os processos de gestão da informação nos escritórios em que se planejam e coordenam as políticas

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avaliação de políticas públicas: REFLEXÕES acadêmicas sobre o Desenvolvimento Social e o Combate à Fome

valer dos dados continuamente atualizados nos cadastros e registros administra-

e programas públicos. Os fluxos de informação, os processos de tratamento, validação, classificação e, naturalmente, de armazenamento precisam ser pensados de forma articulada, valendo-se de aplicativos e ferramentas de integração de dados (e não dos custosos – em planejamento, tempo é dinheiro – sistemas informatizados de 4ª, 5ª ou enésima geração propostos por consultorias experientes em automação de processos na iniciativa privada, mas pouco conhecedoras da complexidade operacional da gestão de programas públicos). É possível que algumas informações produzidas pelas agências estatísticas – no caso brasileiro, o IBGE, o Datasus, o Inep, entre outros53 – possam ser úteis para a construção de indicadores de monitoramento de programas, sobretudo de natureza universal ou com público-alvo numeroso. Em geral, essas fontes proveem informações para avaliações de políticas ou para um conjunto de políticas e macroações governamentais – mais adequadas para composição de mapas estratégicos da ação governamental – e não para os propósitos de monitoramento de programas específicos, em função da escala territorial de desagregação dos dados ou do tempo que levam para serem produzidas. Esse quadro pode mudar para melhor com as transformações anunciadas nas pesquisas amostrais do IBGE para 53

As pesquisas e dados destas instituições podem ser consultadas, respectivamente, em www.

ibge.gov.br, www.datasus.gov.br, www.inep.gov.br. No portal www.anipes.org.br, podem ser acessados sítios eletrônicos de órgãos subnacionais de estatística no Brasil.


a década de 2010, com maior integração conceitual, maior possibilidade de incorporação de temas suplementares, ampliação e adensamento da amostra pelo interior do país. Não só se poderá dispor de um escopo mais amplo de estatísticas e indicadores sociais divulgados mais regularmente ao longo do ano, como também referidos para domínios territoriais e grupos sociodemográficos bem mais diversos. Aos indicadores mensais de emprego, hoje restritos às seis principais regiões metropolitanas, somar-se-ão muitos outros – educacionais, habitacionais, de rendimentos etc. –, divulgados em base trimestral (semestral ou anual) para todos os estados brasileiros. Mediante o emprego de métodos estatísticos avançados, usando informação combinada dessas pesquisas com outras fontes de dados, pesquisadores de centros de análise de políticas públicas e universidades poderão estimar indicadores sociais com bom grau de precisão para domínios territoriais ainda mais específicos.54 De qualquer forma, as informações estatísticas mais gerais são úteis para que se possam disponibilizar alguns indicadores de contexto socioeconômico no âmbito do sistema de monitoramento. Afinal, todo sistema aberto, como são os programas públicos, está sujeito aos efeitos de fatores externos, que podem potencializar ou atenuar resultados. Sistemas de indicadores de monitoramento de programas de qualificação profissional, por exemplo, devem dispor de indicadores de mercado de trabalho e de produção econômica como informações de contexto, pelos impactos que uma conjuntura econômica menos ou mais favorável podem ocasionar na operação do programa. Como alternativa ou complemento às pesquisas estatísticas oficiais, é possível construir indicadores de contexto ou mesmo de monitoramento de programas, a partir dos registros administrativos de programas de grande cobertura populacional, como o Cadastro Único de Programas Sociais do Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome; a Relação Anual de Informações Sociais e o Cadastro Geral de Empregados e Desempregados do Ministério do Trabalho; e o Cadastro Nacional de Informações Sociais do INSS/Ministério da Previdência. Naturalmente, os registros de provimento e execução orçamentária do Sistema Integrado de Administração Financeira do Governo Federal (Siafi) também são importantes fontes de informação para construção de indicadores de monitoramento (sobretudo porque permitem computar indicadores de regularidade de repasse de recursos, dimensão crucial para programas que envolvem diversas ações intermediárias para viabilizar a consecução das atividades mais finalísticas). Vale registrar que os ministérios responsáveis pela gestão desses cadastros têm feito esforços importantes com o objetivo de disponibilizar as informações neles depositadas para pesquisadores e público em geral.55 54

Vide, nesse sentido, o que as agências estatísticas americanas produzem regularmente,

acessando o portal www.fedstats.gov. O Bureau of Labor Statistics gera, por exemplo, estimativas mensais de taxa de desemprego para 372 áreas metropolitanas e taxas anuais para os mais de 3 mil condados e as 50 maiores cidades americanas. O Bureau of Census, por sua vez, traz anualmente estimativas populacionais para mais de 20 mil localidades e indicadores sociais referidos a mais de 10 temáticas – de ocupação, moradia à educação – para municípios acima de 65 mil habitantes. 55

Vide, nesse sentido, os aplicativos da Senarc/MDS (www.mds.gov.br), os sistemas de consulta

on-line da Rais e do Caged no MTE (www.mte.gov.br), e os dados da Previdência na ferramenta Infologo em www.dataprev.gov.br.

35


Um bom sistema de indicadores de monitoramento não é necessariamente comfoi selecionada de diferentes fontes e está organizada de forma sintetizada e mais adequada ao uso analítico pelos diferentes gestores (Diagrama 2). É preciso encontrar um ponto de equilíbrio entre o “caos informacional”, potencialmente gerado pela estruturação de sistemas de monitoramento construídos de baixo para cima (em que participam inicialmente técnicos e gestores da base e depois de níveis táticos e mais estratégicos), e a pobreza analítica das propostas desenvolvidas de cima para baixo. Um sistema de indicadores de monitoramento não é um sistema de gestão operacional do programa, que provê acesso aos incontáveis registros diários e individuais de operação de convênios, prestação de serviços, recursos transferidos, projetos e atividades concluídas. Um sistema de monitoramento vale-se do(s) sistema(s) de gestão dos programas para buscar informações, integrá-las segundo unidades de referência comum (município, escola etc.), sintetizá-las em indicadores e conferir-lhes significado analítico. Ao apresentar informações sintetizadas na forma de indicadores, que podem ser analisados no tempo, por regiões e públicos-alvo, ou comparados com metas esperadas, esses sistemas permitem ao gestor avaliar se os diversos processos e inúmeras atividades sob sua coordenação estão se “somando” no sentido preconizado. Um sistema de monitoramento não é, pois, um conjunto exaustivo de medidas desarticuladas, mas uma seleção de indicadores de processos e ações mais importantes.

Um sistema que não provê acesso orientado às centenas de indicadores disponíveis talvez não se preste ao propósito de monitoramento (ainda que possa ser útil como base de dados para estudos avaliativos a posteriori). Também não se vale ao monitoramento um sistema em que a informação não está organizada se-

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posto de grande quantidade de informação, mas uma rede em que a informação

gundo o nível de relevância operacional-estratégica do gestor usuário. Ao gerente de processos operacionais básicos, deve estar disponível a informação essencial para o bom desempenho das atividades de seus coordenados. Ao gestor mais estratégico, devem estar disponíveis indicadores que lhe permitam acompanhar os macroprocessos segundo o modelo lógico do programa.


DIAGRAMA 2: INTEGRAÇÃO DE INFORMAÇÕES DE DIFERENTES FONTES NA ESTRUTURAÇÃO DE UM SISTEMA DE INDICADORES DE MONITORAMENTO

Para um e para outro gestor, os indicadores devem ser os pertinentes à sua esfera de decisão, ajustados à referência temporal e territorial que lhes compete e interessa. As novas ferramentas de integração de dados permitem construir painéis de indicadores de forma “customizada”, possibilitando, inclusive, acesso a informação mais detalhada se assim o gestor o desejar. Podem-se construir painéis em camadas “explicativas”, isto é, organizando indicadores segundo uma estrutura nodal, em que um primeiro conjunto reduzido de indicadores estratégicos seja acompanhado de um segundo conjunto mais amplo de indicadores mais específicos, que ajudem a entender o comportamento e a evolução dos primeiros, e assim por diante. Na realidade, trata-se de um sistema de monitoramento que reúne informações sintéticas – para análise de tendências gerais das atividades estratégicas – e informações analíticas – para entendimento mais aprofundado das tendências observadas. A proposta de acompanhamento das metas de inclusão social nos países da Comunidade Europeia segue essa lógica de estruturação, dispondo os indicadores em três painéis articulados:56 Nível 1 – conjunto restrito de indicadores-chave (lead indicators) cobrindo as dimensões consideradas mais importantes para acompanhar a exclusão social. Nível 2 – indicadores complementares em cada dimensão, que ajudam a interpretar cada um dos indicadores-chave. Nível 3 – indicadores que cada país-membro decidir incluir para acompanhar as especificidades nacionais e que ajudem a entender aqueles dos níveis 1 e 2.

56

ATKINSON et al., 2005.

37


Tal proposta de organização vem com algumas premissas básicas para escolha de outras aplicações (Quadro 1). Vale registrar que tal escolha deveria se orientar também pela análise da aderência dos indicadores às propriedades de relevância social, validade de constructo, confiabilidade, periodicidade, sensibilidade às mudanças, especificidades das ações programadas, como discutido em Jannuzzi.57

QUADRO 1: PREMISSAS PARA ESCOLHA DE INDICADORES DE MONITORAMENTO DA INCLUSÃO/EXCLUSÃO SOCIAL NA COMUNIDADE EUROPEIA •

O conjunto de indicadores não pode se pretender exaustivo e deve ser equilibrado entre as dimensões da exclusão social (saúde, educação, moradia etc.). Um conjunto muito amplo de indicadores leva à perda de objetividade, perda de transparência e credibilidade.

Os indicadores devem ter uma interpretação normativa claramente definida (Para monitorar a exclusão social a taxa de desemprego cumpre tal requisito; já um indicador de produtividade do trabalho não).

Os indicadores devem ser mutuamente consistentes, isto é, não devem sugerir tendências inconsistentes (indicadores de desigualdade como o Índice de Gini e a Proporção de Massa Salarial Apropriada podem ter comportamentos diferentes ao longo do tempo, já que medem aspectos distributivos diferentes).

Os indicadores devem ser inteligíveis e acessíveis a toda a sociedade. São preferíveis medidas simples, de fácil entendimento. Deve-se resistir

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indicadores que parece oportuno resgatar neste texto, pois podem ser úteis em

às simplificações indevidas (indicadores sintéticos).

Se o programa foi especificado segundo as boas práticas e técnicas de planejamento de projetos, deve haver um desenho lógico de encadeamento de atividades e etapas. Tal sistema deve conseguir oferecer evidências acerca da execução do gasto, da produção, eficiência e qualidade dos serviços, do consumo e usufruto por parte do público-alvo e, se possível, antecipar dimensões impactadas pelo programa. Isto é, um bom sistema de monitoramento deve prover indicadores de insumo, processo, resultado e possíveis impactos do programa. Exemplificando, tal sistema deve permitir monitorar, simultaneamente: o dispêndio realizado por algum tipo de unidade operacional prestadora de serviços ou subprojeto; o uso dos recursos humanos, financeiros e físicos; a geração de produtos e a percepção dos efeitos gerados pelos programas. Em Resende e Jannuzzi,58 é apresentado o exemplo de Painel de Indicadores de Monitoramento do Plano de Desenvolvimen

57

JANNUZZI, 2005.

58

RESENDE; JANNUZZI, 2008.


to da Educação (PDE) estruturado na lógica insumo-processo-resultado-impacto. Na dimensão insumo, deu-se prioridade aos indicadores voltados para o financiamento da educação. Para a dimensão processo, foram definidos indicadores que pudessem ser produzidos com certa regularidade e estivessem relacionados ao processo de ensino-aprendizagem, como percentual de docentes com nível superior, percentual de alunos atendidos por turno integral, entre outros. Como medida de resultados, os indicadores de proficiência da Prova Brasil, defasagem idade-série e taxa de abandono. Como apontamentos de impactos potenciais, o ingresso de jovens no ensino superior.59 Os aplicativos voltados à disponibilização de indicadores da Secretaria de Avaliação e Gestão da Informação do Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome- como a MI-Social, DataSocial e Monib- são referências certamente úteis para estruturação de sistemas de monitoramento de programas nessa perspectiva processual, não apenas no âmbito do ministério, mas de outros setores da administração pública.60 O documento “Guia metodológico para construção de indicadores do PPA”,61 elaborado pelo Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, é outra referência importante para especificação de sistemas de indicadores de monitoramento de programas, pela extensa revisão bibliográfica empreendida em sua elaboração; pela preocupação em incorporar aspectos de propostas desenvolvidas em outros estados e contextos do setor público brasileiro; pela experiência de mais de dez anos na elaboração de planos plurianuais no governo federal; e pela preocupação com clareza na exposição de conceitos, etapas e fontes de dados. Em geral, há maior disponibilidade de indicadores de processos, que espelham os esforços e produtos gerados nas ações programadas, para os quais há registros formais e maior controle operacional pelos gestores. Ainda assim, em alguns casos, é possível dispor, no painel de monitoramento, de indicadores de resultados e impactos junto ao público-alvo dos programas, buscando informações nos registros e cadastros públicos citados anteriormente. No caso do Sistema de Indicadores de Monitoramento de Programas de Qualificação Profissional, ilustrado há pouco, seria possível dispor de alguma medida de impacto do programa, com a integração de informações cadastrais dos trabalhadores qualificados com os dados da Rais ou mesmo do CadÚnico, mediante o uso do Número de Identificação do Trabalhador ou do CPF (de fato, procedimentos análogos são usados correntemente pelo Ministério do Desenvolvimento Social para fins de fiscalização na concessão de benefícios do Programa Bolsa Família).

59

No referido texto, empregou-se o aplicativo Monit – disponível em www.anipes.org.br – para

compor um painel situacional com gráficos dos indicadores escolhidos para duas unidades territoriais de interesse de monitoramento. Uma breve apresentação do aplicativo é encontrada em Jannuzi e Miranda (2008), disponível no Boletim de Estatísticas Públicas n.4, no mesmo site. 60

Consultar o “Dicionário de variáveis, indicadores e programas sociais” no endereço http://

aplicacoes.mds.gov.br/sagi/dicivip. Esse dicionário também está disponível para download em www.mds. gov.br/sagi. 61

MPO, 2009.

39


Com o avanço da informatização no setor público brasileiro, é possível também cas (em tese, escolas, hospitais, postos policiais etc.), com boa periodicidade de atualização (frequência escolar mensal, atendimentos ambulatoriais semanais etc.), o que permitiria a construção de indicadores de monitoramento relacionados ao contexto de vivência dos beneficiários de programas e ao tempo adequado de tomada de decisão. De fato, projetos sociais de alcance local têm recorrido à busca periódica de informações nesses postos de prestação de serviços públicos como estratégia de monitorar resultados e impactos de sua ação. Centros de promoção de cursos de artesanato, atividades culturais e esportivas voltados à reintegração social de jovens em comunidades muito violentas, projetos que vieram a surgir com frequência nos últimos anos, pela ação direta de prefeituras ou organizações filantrópicas, podem ter seus resultados e impactos inferidos pelo eventual aumento das taxas de frequência à escola, diminuição dos atendimentos ambulatoriais decorrentes de ferimentos ou das ocorrências policiais envolvendo jovens, entre outras informações coletadas localmente. Naturalmente, nos dois casos aqui exemplificados – programa de Qualificação Profissional e projeto social de reintegração social de jovens – os indicadores citados podem estar sendo afetados por outros fatores (conjuntura mais favorável do mercado de trabalho, no primeiro caso; policiamento mais ostensivo, no segundo) e não propriamente pela excelência do programa ou projeto. Não seriam, pois, exatamente indicadores de impacto, mas talvez indicações potenciais de impacto, que para efetiva atribuição ou vinculação causal com o programa ou projeto requereriam uma pesquisa de avaliação específica. Diferentemente dessas últimas, em que a investigação da atribuição de um efeito a um programa pode ser uma questão a avaliar para inferência a posteriori; em sistemas de monitoramento,

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obter informações referidas a unidades de prestação de serviços muito específi-

assume-se a priori, acreditando-se na validade do desenho de implementação, a vinculação de ações (e de seus indicadores) com os resultados (na forma como podem ser medidos pelas informações geradas pelo programa e outras fontes secundárias de baixo custo de aquisição).62 Indicadores de eficiência, produtividade na prestação dos serviços, de cobertura de público-alvo, de qualidade de produtos ou satisfação dos beneficiários também deveriam constar da matriz de indicadores de monitoramento. Em programas de qualificação profissional, por exemplo, com base nos registros de operação deles próprios, é possível computar indicadores como custo de formação por aluno, número médio de alunos formados por entidade credenciada, taxa de frequência ou abandono de qualificandos. Como já assinalado, um bom sistema de monitoramento deve permitir a análise comparativa dos indicadores ao longo do tempo e para distintas unidades de prestação dos serviços ou atendimento do programa, assim como em relação a padrões normativos de referência. A análise da evolução dos indicadores, de seus

62

MCDAVID; HAWTHORN, 2006.


avanços, retrocessos e permanências permite identificar falhas operativas do programa, ainda que, em geral, não possibilite a explicação dessas. Esta aí uma diferença básica entre os sistemas de monitoramento e as pesquisas de avaliação: os primeiros, ao assumir que existe uma lógica de encadeamento de atividades, delineiam comportamentos esperados aos indicadores; nas pesquisas de avaliação, alertados pelos desvios não esperados na evolução dos indicadores, buscam-se as explicações valendo-se dos métodos e técnicas da pesquisa social.63 No exemplo apresentado anteriormente, se um gestor precisar entender porque a taxa de abandono de alunos em cursos de qualificação em dada localidade ou em uma instituição está aumentando, talvez ele consiga alguma interpretação em seu próprio sistema de monitoramento – se este for um sistema que dispõe de informações analíticas, além de sintéticas. Pode ser que haja indicadores de contexto que mostrem forte aumento das vagas no mercado de trabalho regional (daí a evasão). A extração de informações do sistema para um pacote estatístico ou aplicativo de mineração de dados pode permitir ao gestor refinar sua hipóteses, se ele dispuser de conhecimento ou consultoria especializada no uso das ferramentas.64 Ou talvez ele não tenha qualquer pista adicional e busque uma explicação com o dirigente da instituição ou gestor responsável pela área. É o que Worthern et al. classificam como avaliação informal, que ocorre “sempre que uma pessoa opta por uma entre várias alternativas existentes, sem antes ter coletado evidência formal do mérito relativo dessas alternativas”. Embora não sejam pautadas em procedimentos sistemáticos, tais avaliações nem sempre “ocorrem no vácuo”: “A experiência, o instinto, a generalização e o raciocínio podem, todos eles, influenciar o resultado das avaliações informais, e qualquer desses fatores, ou todos eles, pode ser a base de bons julgamentos.”.65 Se o seu conjunto de indicadores de monitoramento não lhe permite chegar a explicações satisfatórias; se suas estratégias de visitação ou contato informal não lhe agregam evidências convincentes; ou se o processo de evasão ganha dimensões preocupantes em algumas áreas e não em outras: talvez seja o momento de o gestor pensar em encomendar uma pesquisa de avaliação.

As pesquisas de avaliação no Ciclo de Políticas e Programas O fato de se denominar avaliação a fase posterior à implementação de programas no Ciclo de Políticas e Programas cria uma distinção artificial entre as atividades de monitoramento, exercida com base nos sistemas de indicadores descritos no tópico anterior, e as de realização de pesquisas de avaliação, que podem ser feitas a qualquer momento do ciclo.

63

Idem, ibidem.

64

Um pacote estatístico gratuito de ampla difusão é o Epi-info, disponível em www.lampada.uerj.

br/, em que se pode encontrar também material de consulta e treinamento. O Weka, disponível em www. cs.waikato.ac.nz/ml/weka, é um aplicativo gratuito para mineração de dados, isto é, dispõe de rotinas para análise descritiva e exploratória de dados. 65

WORTHERN et al., 2004, p.38.

41


Na realidade, monitoramento e avaliação de programas são termos cunhados para cados na análise da eficiência, eficácia e efetividade, visando ao aprimoramento da ação pública.66 Monitoramento e avaliação são processos analíticos organicamente articulados, que se complementam no tempo, com o propósito de subsidiar o gestor público de informações mais sintéticas e tempestivas sobre a operação do programa –resumidas em painéis ou sistemas de indicadores de monitoramento – e informações mais analíticas sobre o funcionamento desse, levantadas nas pesquisas de avaliação. Como bem conceitua o documento do Tribunal de Contas da União:

O monitoramento e a avaliação dos programas de governo são ferramentas essenciais para a boa prática gerencial. A avaliação é um procedimento que deve ocorrer em todas as etapas permitindo ao gestor federal o acompanhamento das ações e sua revisão e redirecionamento quando necessário. Enquanto o monitoramento é uma atividade gerencial interna, que se realiza durante o período de execução e operação, a avaliação pode ser realizada antes ou durante a implementação, como ao concluir uma etapa ou projeto como um todo, ou mesmo algum tempo depois, devendo se preocupar com o impacto provocado pela intervenção pública em seus beneficiários.67 As tipologias clássicas usadas para classificar as pesquisas de avaliação acabam também favorecendo alguma confusão, por exemplo, considerar monitoramento como avaliação de processo. Esta última é aquela realizada quando se requer ava-

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designar procedimentos técnicos formais de acompanhamento de programas, fo-

liar as atividades de implementação dos programas, a extensão de cobertura do público-alvo atendido, a qualidade dos serviços oferecidos ou, ainda, entender as dificuldades que estão “emperrando” a efetiva operação do programa, em contraposição à pesquisa de avaliação de resultados e impactos, realizada idealmente depois de resolvidos os problemas de gestão, quando se requer, já na fase de avaliação do ciclo, uma resposta cabal às perguntas: O problema social que originou o programa foi equacionado? Qual a contribuição desse programa para isso? O programa deve continuar, ser expandido ou descontinuado?68 Cohen e Franco69 as classificam, respectivamente, como avaliações formativas e avaliações somativas. Estas últimas seriam avaliações do tipo ex-post, distintas das avaliações ex-ante, que se destinam a estudos de necessidade e viabilidade de criação de um programa. Worthern et al.70 resgatam outra classificação clássica, diferenciando as pesquisas de avaliação segundo seus protagonistas. Tem, então, a avaliação interna, conduzida pela equipe do programa; a avaliação externa, realizada por equi66

COHEN; FRANCO, 2000.

67

TCU, 2006, p. 75.

68

CARVALHO, 2003.

69

COHEN; FRANCO, 1994.

70

WORTHERN et al., 2004.


pe de consultores externos contratados; a avaliação mista, que prevê a interação dos dois grupos; e a avaliação participativa, construída juntamente com os beneficiários dos programas (que também contribuem para o planejamento). Cada modalidade tem vantagens e limitações. Se a avaliação externa parece permitir um olhar externo não enviesado e comprometido com a continuidade do programa, conferindo maior isenção à análise (supondo que os consultores são absolutamente profissionais, não preocupados com as chances de contratação em uma próxima demanda de avaliação); a avaliação interna, a mista e a participativa parecem permitir aportes mais circunstanciados na análise dos processos e resultados, além de facilitar a incorporação de melhorias na gestão do programa – objetivo último da avaliação. Avaliações internas podem ser rápidas e baratas, ao contrário das outras modalidades. As participativas podem viabilizar aprimoramentos mais efetivos, pelo envolvimento dos beneficiários no sucesso do programa. Uma tipologia de pesquisas avaliativas particularmente interessante, diante de sua aderência ao Ciclo de Políticas e Programas já exposto, é proposta por Rossi et al.,71 como ilustrado no Diagrama 3. Para esses autores, os estudos avaliativos deveriam compor um programa de investigação completo, seguindo a lógica implícita do “ciclo de vida” dos programas. Antes de tudo, seria preciso analisar a pertinência do programa na Agenda de Políticas Públicas (Needs Assessment), investigando se responde a uma demanda social efetivamente existente. Se o programa existe para responder a uma demanda pública de fato, e não a uma necessidade de autopreservação de uma estrutura organizacional criada em algum momento do passado, deveria se investigar a teoria ou o modelo de intervenção em que o programa se assenta (Design Assessment). Afinal, este é o melhor desenho lógico de intervenção, no quadro de relações institucionais prevalecente entre as esferas de governo? E frente às distintas capacidades de gestão e controle social pelo país afora? Respondidas essas questões, faria sentido, então, investigar o processo de implementação do programa (Program Process Assessment), e, caso constatada a inexistência de graves problemas quanto à entrega dos serviços ao público-alvo, faria sentido avaliar impactos e resultados do programa (Impact Assessment). Ao final, tendo-se apurado que o programa é socialmente justificável, conta com um desenho de implementação adequado, com procedimentos operacionais bem estabelecidos e com resultados efetivamente comprovados, passar-se-ia para a Avaliação da Eficiência ou Custo-Efetividade (Efficiency Assessment), para responder se o custo da operação do programa legitima-se pelos efeitos obtidos e se é replicável para outras escalas de operação. A proposta de Rossi et al.72 é certamente um avanço conceitual na forma de se entender os diferentes focos dos estudos avaliativos, para além daquelas dicotomias “avaliação de processos/avaliação de impactos”, “avaliação ex-ante/avaliação ex-post” etc. Ao propor ênfases avaliativas para cada etapa do “ciclo de vida” do programa, os autores oferecem um plano de avaliação abrangente, orientando a

71

ROSSI et al., 2004.

72

ROSSI et al., 2004.

43


especificação das pesquisas de avaliação segundo uma lógica de abordagem que proposta ajudaria a definir melhor a questão crucial para o sucesso de uma pesquisa de avaliação de programas: que aspectos do programa devem ser avaliados e quais devem ser abordados posteriormente, em função do estágio de maturidade do programa, para maximizar as chances de se obter informações úteis e relevantes para seu aprimoramento no momento.

When developing the questions around which the plan for an evaluation will resolve, therefore, it is best for the evaluator to start at the bottom of the evaluation hierarchy [Avaliação da necessidade do programa] and consider first what is known and needs to be known about the most fundamental issues. When the assumptions that can be safely made are identified and the questions that must be answered are defined, then it is appropriate to move to the next level of hierarchy. …. By keeping in mind the logical interdependencies between the levels in the evaluation hierarchy and the corresponding evaluation building blocks [técnicas e instrumentos apropriados da pesquisa social], the evaluator can focus the evaluation on the questions most appropriate to the program situation.73 Afinal, não caberia especificar uma pesquisa de avaliação de resultados e impactos se há dúvidas com relação ao estágio de maturidade dos processos e das ações previstas na implementação do programa ou, ainda, se existem suspeitas de que o desenho de implementação padece de supostos não sustentáveis em sua estru-

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tenderia a garantir, a priori, resultados relevantes e úteis ao final do processo. Tal

tura lógica de intervenção. Não caberia proceder-se a investigações complexas de Análise de Custo-Efetividade se não há certeza de que os resultados e impactos gerados pelo programa são significativos. Enfim, evidências de baixa efetividade do programa poderiam ser consequências menos de falhas no desenho ou da forma como ele foi implementado e mais da própria inadequação da existência do programa, como parece ser o caso dos programas voltados a oferecer experiência de primeiro emprego para jovens.74

73

ROSSI et al., 2004, p.81.

74

MADEIRA, 2004.


DIAGRAMA 3: INDICADORES E AS PESQUISAS DE AVALIAÇÃO NO CICLO DE POLÍTICAS E PROGRAMAS

A hierarquia de focos avaliativos de Rossi et al.75 não implica que o gestor só possa dispor de informações acerca da eficiência, da qualidade dos serviços, da cobertura de atendimento do público-alvo nas fases mais adiantadas do “ciclo de vida” do programa. Pressupõe-se que há um sistema de indicadores de monitoramento já estruturado que reúne informações indicativas nesse sentido. Pode até ser necessário encomendar pesquisas de avaliação de resultados e impactos ou estudos mais aprofundados de avaliação da eficiência em estágios ainda incipientes da implementação do programa, para responder a demandas externas de avaliação. O que os autores defendem é que se organize um plano consistente de avaliação em todas as etapas do “ciclo de vida” do programa, e que se resista à tentação de “colocar a carroça antes dos bois”, encomendando pesquisas de avaliação de forma precoce e desarticulada. É preciso ser diligente com o risco de produção de resultados irrelevantes ou, pior, com a produção de resultados precipitados em pretensa legitimidade científica. Cada um desses tipos de estudos avaliativos requer uma abordagem metodológica e/ou disciplinar diferente. Estudos de viabilidade ou necessidade de programas podem se valer de análises documentais comparativas, de recurso às técnicas de análise econômica ou mesmo às análises institucionais típicos da Ciência Política. Análise de desenhos lógicos de implementação envolve revisão de documentos usados quando da formulação do programa, emprego das técnicas de planejamento de projetos e de comparação com outros modelos de intervenção social semelhantes em outros contextos e momentos.

75

ROSSI et al., 2006.

45


A avaliação de processos pode requerer emprego de técnicas variadas de coleta por sua vez, pode demandar emprego de entrevistas com agentes institucionais, grupos de discussão com beneficiários dos programas, pesquisas amostrais, delineamentos quasi-experimentais ou estudos comparativos de casos. A especificação do delineamento metodológico adequado aos objetivos da pesquisa de avaliação pretendida é, pois, aspecto crucial. A avaliação de programas é um empreendimento técnico-científico de uso de métodos da pesquisa social para investigar a situação, problemas e diferentes aspectos da gestão de um programa público, ao longo de seu “ciclo de vida”, sua concepção ao usufruto dos produtos e serviços por ele disponibilizado, considerando o contexto organizacional e político em que ele se insere, com a finalidade última de informar as necessidades de aprimoramento de suas ações, de modo a contribuir, juntamente com outros programas, na melhoria das condições sociais da população. Como empreendimento técnico-científico, tal como na condução de pesquisas acadêmicas, a escolha do método depende dos objetivos específicos almejados pelo avaliador. A busca de dados secundários, a observação e suas variantes – visitação, observação participante etc. –, as entrevistas – semiestruturadas ou estruturadas –, os grupos de discussão, as pesquisas de campo com questionários – com amostras probabilísticas ou intencionais –, e os desenhos quasi-experimentais e não experimentais são algumas das estratégias metodológicas mais empregadas no Brasil. Cada técnica tem suas características, vantagens e limitações. Os métodos quantitativos, organizados sob a égide do modelo hipotético-dedutivo, como os levantamentos amostrais e os experimentos, compreendem técnicas bastante estruturadas – destinadas à investigação de problemas específicos –, voltadas ao dimensionamento de quantidades ou da intensidade de relações entre variáveis, supondo distanciamen-

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avaliação de políticas públicas: REFLEXÕES acadêmicas sobre o Desenvolvimento Social e o Combate à Fome

de informações usadas na pesquisa social. A avaliação de resultados e impactos,

to do pesquisador quanto ao objeto investigado. Os métodos qualitativos, baseados no princípio da produção do conhecimento pela lógica indutiva, do particular para o geral, como a observação, as entrevistas e os grupos de discussão, compreendem técnicas pouco ou semiestruturadas, para investigar exploratoriamente problemas complexos, pressupondo proximidade do pesquisador ao objeto avaliado. Foge ao escopo deste trabalho detalhar prescrições metodológicas acerca do emprego de uma ou outra técnica, dada a complexidade de cada uma e pela disponibilidade de manuais brasileiros de métodos e técnicas de pesquisa social, como os de Laville e Dionne,76 Cano,77 Richardson et al.78 e Babbie79, entre outros. Vale incluir nessa lista, como importante material de referência para delineamento metodológico de pesquisas de avaliação, o documento organizado pela Secretaria de Avaliação e Gestão da Informação do Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome.80 São apresentados 18 estudos, em sua maioria pesquisas de avaliação de programas do ministério nas áreas de assistência social, segurança alimentar e nutricional, e renda 76

LAVILLE; DIONNE, 1999.

77

CANO, 2002.

78

RICHARDSON et al., 2002.

79

BABBIE, 1999.

80

MDS, 2007. Vide www.mds.gov.br, menu “Institucional – Sagi”.


da cidadania. Na exposição do estudo avaliativo de cada programa, são apresentados as instituições e pesquisadores participantes, o período de realização, os objetivos da avaliação, os aspectos metodológicos acerca das técnicas de coleta de dados empregadas, as características da amostra e dos sujeitos entrevistados. As bases de dados de algumas dessas pesquisas de avaliação foram disponibilizadas no Consórcio de Informações Sociais da Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs), permitindo a pesquisadores e avaliadores buscar respostas preliminares para questões de outros programas similares.81 Esse material evidencia, na prática, como a natureza do programa, o estágio em que ele se encontra, os objetivos de avaliação, a disponibilidade de tempo e de recursos acabam orientando as decisões metodológicas acerca de instrumentos e técnicas de pesquisa, o tamanho, intencionalidade ou não das amostras das pesquisas de avaliação encomendadas pela Sagi. Ilustra-se como pesquisas de avaliação de processo conduzidas para vários programas procuram garantir levantamento de informações por meio de entrevistas semiestruturadas com agentes públicos em diferentes posições da produção dos serviços (gestores municipais, técnicos atendentes do público), em localidades intencionalmente selecionadas (segundo tempo de implantação do programa, por exemplo). Percebe-se, contudo, predominância de uso de questionários bastante estruturados, mesmo em estudos avaliativos de natureza mais exploratória. Constata-se também que há pouco emprego de grupos de discussão e não se utilizam ferramentas de análise estruturada de textos, mesmo nos estudos avaliativos que compreenderam mais de uma centena de entrevistas. Worthen et al. reputam essas técnicas como avanços metodológicos significativos nas abordagens qualitativas de avaliação.82 Grupos de discussão com equipes técnicas envolvidas nos programas e, sobretudo, com beneficiários desses permitem levantar rapidamente informações cruciais para aprimoramento de procedimentos e ações dos programas e também para captar dimensões de impacto não facilmente tangíveis. Exemplo ilustrativo da técnica é descrito por Carvalho, na estratégia para avaliar os resultados e impactos do programa Jovem Cidadão em São Paulo. Esse programa visava proporcionar aos estudantes de 16 a 21 anos da rede pública estadual de Ensino Médio a primeira oportunidade de experiência profissional no mercado de trabalho.

Por se tratar de um público composto por jovens, a técnica utilizada foi a de grupos de discussão, aplicando-se “dinâmicas que estimulam e facilitam a manifestação dos participantes, como simulações e jogos, tornando a pesquisa quase lúdica. Tais dinâmicas ajudam a atenuar dificuldades como inibição, timidez, desconfiança de determinados públicos. Isso é particularmente útil no caso de jovens, segmento que geralmente se caracteriza por falas lacônicas, em código, em especial diante de adultos” [...].83

81

Vide www.nadd.prp.usp.br/cis.

82

WORTHEN et al., 2004.

83

CARVALHO, 2003, p.189.

47


A análise estruturada de textos é uma técnica usada para interpretar relatos de enfrases, parágrafos como entidades empíricas, permitindo contabilizar frequências, recorrências e relacionamentos entre ideias de um conjunto de textos e documentos. No campo dos estudos de avaliação de programas, em especial nas pesquisas de satisfação ou avaliação de impacto junto a beneficiários de programas sociais, a técnica pode ser utilizada como recurso analítico para sistematizar, de forma mais objetiva e padronizada, as manifestações, opiniões e críticas presentes nos discursos dos entrevistados, e como estratégia metodológica para garantir maior replicabilidade das avaliações em outros contextos territoriais e temporais.84 Vale observar que as pesquisas de avaliação não implicam necessariamente o levantamento de dados por meio de algumas das técnicas anteriormente relacionadas. Os dados disponíveis nos registros operacionais do programa, o sistema de indicadores de monitoramento, as pesquisas do IBGE e dados de outros órgãos podem permitir fazer análises preliminares a baixo custo e tempo. O problema é que, em geral, não têm a especificidade necessária para responder questões mais particulares do gestor. Outras fontes úteis de informação secundária são os relatórios de avaliação de programas do Tribunal de Contas da União (TCU) e os da Controladoria-geral da União (CGU). Os relatórios do primeiro,85 elaborados desde 1998, são organizados em grandes tópicos, iniciando-se com a exposição dos objetivos da avaliação do programa (seção “O que foi avaliado”), da justificativa para sua realização (“Por que foi avaliado”), dos aspectos metodológicos da pesquisa avaliativa, explicitando métodos e técnicas de coleta e análise dos dados, as amostras e sujeitos investigados (“Como se desenvolveu o trabalho), e uma breve apresentação do programa (“Histórico do Programa”). Os resultados (“O que o TCU encontrou”) são

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trevistas ou de grupos de discussão de forma mais estruturada, tratando palavras,

apresentados em seções, organizadas segundo os objetivos da avaliação. Ao final, sistematizam-se as sugestões de aprimoramento para o programa (“O que pode ser feito para melhorar o programa”). Os relatórios de avaliação da execução dos programas federais, conduzidos pela Controladoria-geral da União,86 na forma de sorteios sistemáticos de estados e municípios desde 2003, são também fontes de informação muito interessantes para avaliações preliminares de processo de implementação de programas públicos. Um exemplo nesse sentido é o de Vieira,87 que empregou os relatórios da CGU para identificar os problemas de gestão municipal do Programa de Assistência Farmacêutica, em uma amostra de 597 municípios. Não existe a priori um método universal, mais legítimo ou com maior “status científico” para toda e qualquer pesquisa de avaliação, como não existe um único método para as pesquisas acadêmicas. Como bem assinalado em um importante manual da Pesquisa Social Americana acerca da prática da pesquisa científica:

84 85 86 87

JANNUZZI 2011c. Vide www.tcu.gov.br, menu “Avaliação de Programas de Governo”. Vide www.cgu.gov.br, menu “Auditoria e Fiscalização”. VIEIRA, 2008.


1. It seems to us futile to argue whether or not a certain design is “scientific” […] It is not a case of scientific or not scientific, but rather one of good or less good design […] 2. The proof of the hypotheses is never definitive […] 3. There is no such thing as a single “correct” design. Different workers will come up with different designs favoring their own methodological and theoretical predispositions […] 4. All research design represents a compromise dictated by the many practical considerations that go into social research. None of us operates except on limited time, money, and personnel budgets […] A research design must be practical. 5. A research design is not a highly specific plan to be followed without deviation, but rather a series of guideposts to keep one headed in the right direction [...].88 É estranho, pois, que ainda persista, em certas comunidades, o mito de que os delineamentos experimentais ou quasi-experimentais constituem-se nos métodos mais adequados e legítimos cientificamente para avaliação de impactos. Esses desenhos metodológicos de avaliação são inspirados no formato clássico do experimento nas Ciências Naturais. Tal modelo tem o objetivo de investigar a estrutura e intensidade de causalidade entre uma variável-efeito dependente e seus fatores determinantes. Para isso, é preciso garantir o controle da situação experimental em laboratório e o emprego de grupos tratamento (beneficiários de programas) e controle (não beneficiários) escolhidos de forma aleatória. Nos desenhos quasi-experimentais, uma das condições básicas que definem o experimento não é verificada, em geral, a designação aleatória em grupos experimental e de controle. Como ilustrado no Quadro 2 , o desenho visa avaliar a evolução dos dois grupos – supostamente idênticos no começo do experimento –, ao longo de tempo, e constatar se ao final há evidências de que o primeiro mostrou melhor performance que o segundo, em uma variável entendida como reveladora dos efeitos do programa. Programa O1 ----------------à O2 -----------------------------------------------C1

----------------à C2

Medida Pré-programa

Medida Pós-programa

O: Grupo de tratamento (beneficiário do programa). C: Grupo de controle (similar ao outro grupo, mas não é beneficiário). Grupos de indivíduos O e C definidos por designação aleatória. Se O2 – O1 > C2 – C1, ou se O1 = C1 e O2 > C2, então o programa produz impacto. 88

SUCHMAN in MILLER, 1991, p.98.

49


Na realidade, tal delineamento de pesquisa – experimental ou quasi-experimental melhor ou mais factível. Nesse tipo de desenho avaliativo, há problemas éticos (Como escolher e justificar quem vai ser beneficiário e quem vai ficar de fora do programa?); operacionais (Como evitar a evasão dos beneficiários? Como garantir que os efeitos medidos são apenas do programa em foco, em meio a um contexto crescente de intervenções sociais?); metodológicos (O indicador empregado é a melhor medida para captar a dimensão impactada? O que se supõe como dimensão impactada guarda, pelo desenho lógico do programa, vinculação estreita com as ações e atividades desse? O impacto deve ser medido sobre os beneficiários ou junto à comunidade a que pertencem?); e epistemológicos (Como os esforços de garantia da validade interna do experimento conspiram contra a generalização dos resultados? Como garantir que um programa bem avaliado em circunstâncias tão artificiais possa repetir o êxito em situações normais?)89. Ainda que todos esses problemas fossem contornáveis, restaria um de natureza prática: se os efeitos potenciais do programa, tal como medidos em uma determinada variável, não forem elevados – algo que o incrementalismo de Lindblom sugeriria –, as amostras de beneficiários atendidos e do grupo controle teriam que ser consideravelmente grandes para que os testes estatísticos possam ser aceitos sem hesitação.90 A mitificação desse desenho na avaliação de programas se deve, em alguma medida, pela origem dos estudos avaliativos centrados na investigação de programas nas áreas de educação e saúde pública, como já mencionado, nas quais esses modelos podem se viabilizar mais concretamente – pelas condições de simulação de “laboratório” em salas de aula ou pela tradição dos ensaios de tratamento clínico de doenças. A hegemonia circunstancial dos modelos quantitativos importados da

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– é um dos métodos usados para avaliação de impacto, não necessariamente o

pesquisa em Ciências Naturais, no debate sobre a cientificidade dos métodos de pesquisa a serem ensinados e adotados na pesquisa social americana nos anos 1960 – momento de expansão dos estudos avaliativos naquele país, como já mencionado – também é outro fator explicativo. Nesse contexto, como sugerem Worthern et al., o livro Experimental and Quasi-Experimental Designs for Research, escrito pelos psicólogos Donald Campbell e Julian Stanley, publicado em 1966, acabou sendo adotado como o manual de referência metodológica da comunidade de avaliadores que ora se formava. Afinal, apesar das advertências sobre as dificuldades de replicação das condições de controle laboratorial no contexto de operação dos programas sociais, “a elegância e a precisão do método experimental levaram a maioria dos avaliadores de programa a vê-lo como ideal”.91

89

WEISS, 1972; MOHR, 1995; CANO, 2002.

90

ROSSI et al., 2004.

91

WORTHERN et al., 2004, p.116.


As críticas que se seguiram nas décadas seguintes sobre aspectos éticos, factibilidade operacional e poder de generalização dos resultados de desenhos experimentais – e suas aproximações quasi-experimentais –, seja na pesquisa acadêmica, seja na pesquisa de avaliação de programas, a incorporação de avaliadores provenientes das várias disciplinas das Ciências Sociais – antropólogos, sociólogos, comunicólogos etc. – e a formalização mais rigorosa de abordagens de investigação mais qualitativas, mais adequadas aos problemas complexos e pouco estruturados da realidade social, acabaram por consolidar a percepção, na comunidade de avaliadores nos EUA, de que os estudos avaliativos requerem certo ecletismo metodológico, integrando métodos quantitativos e qualitativos. Na verdade, a maioria dos avaliadores sérios começou a entender que as abordagens quantitativas e naturalistas têm padrões metodológicos e rigor que são diferentes, e não ausentes. A maioria dos avaliadores passou a aceitar a existência das múltiplas realidades ou pelo menos das múltiplas percepções da realidade. Com essa consciência e uma legitimidade maior, a avaliação qualitativa surgiu como alternativa real – ou complemento – da abordagem quantitativa tradicional.92 Ainda assim, continuam os autores, alertando que o debate não está encerrado, na medida em que: Aqueles que preferem o uso exclusivo ou majoritário de métodos quantitativos estão, em sua maior parte, aborrecidos com a aceitação dos estudos qualitativos (apesar do fato de o trabalho quantitativo ainda manter sua posição como abordagem dominante da avaliação e pesquisa [...] Esses críticos da avaliação qualitativa queixam-se com frequência da subjetividade de muitos dos métodos e técnicas qualitativos, mostrando a preocupação de que a avaliação tenha abandonado a objetividade em favor de uma subjetividade exercida inabilmente.93 Dada a complexidade operacional, os contextos de implementação, os desenhos institucionais e a diversidade de públicos-alvo dos programas públicos no Brasil, não se pode definir uma técnica de investigação como melhor em qualquer situação. Muitos programas operam em contextos complexos, pouco estruturados para abordagens quantitativas (e muito menos para desenhos quasi-experimentais). Nessas situações, abordagens metodológicas menos estruturadas podem levantar evidências mais relevantes e úteis para o aprimoramento dos programas. É possível que permitam a estruturação de questões mais específicas a investigar, para aplicação posterior de desenhos quantitativos de pesquisa. Abordagens quantitativas e qualitativas não são mutuamente excludentes em um projeto de pesquisa ou avaliação. São complementares, compatíveis e conectáveis.

92

WORTHERN et al., 2004, p.117.

93

Idem, ibidem.

51


Pluralismo metodológico, enfoques avaliativos mistos, triangulação de abordada pesquisa de avaliação de programas partilhadas pelos autores das duas principais referências bibliográficas aqui citadas – Worthern et al. e Rossi et al. Rigor metodológico, capacidade de improvisação e maleabilidade técnica diante da complexidade do objeto de estudo, estas são as prescrições generalizáveis para qualquer equipe – necessariamente multidisciplinar – que queira encarar responsavelmente a pesquisa aplicada na avaliação de programas. Considerações finais A ampliação do gasto social no Brasil e a diversificação dos programas voltados a atender às diversas demandas públicas vêm pressionando o setor público a melhorar suas práticas de gestão. Nesse sentido, a preocupação com o aprimoramento técnico na elaboração de diagnósticos e nas atividades de monitoramento e avaliação de programas vem crescendo.95 Sistemas ou Sistemáticas de Monitoramento e Avaliação constituem-se em conjunto de atividades – articuladas, sistêmicas e tecnicamente orientadas – de registro, produção, organização, acompanhamento e análise crítica de informações geradas na Gestão de Políticas Públicas, para identificação de demandas sociais, desenho, seleção, implementação e avaliação de soluções para as mesmas, com a finalidade de subsidiar a tomada de decisão de técnicos e gestores envolvidos nas diferentes etapas do ciclo de vida ou maturação das Políticas e seus Programas. Estruturar melhor os sistemas de indicadores de monitoramento e especificar pesquisas de avaliação mais consistentes são desafios que precisam ser rapidamente enfrentados nos três níveis de governo – federal, estadual e municipal –, sob pena de estender, por mais tempo ainda, a superação das iniquidades sociais no país e

Introdução e Temas transversais

avaliação de políticas públicas: REFLEXÕES acadêmicas sobre o Desenvolvimento Social e o Combate à Fome

gens investigativas,94 complementaridade de técnicas – são essas as perspectivas

sob o risco de se perder a crença de que os programas públicos podem ser vetores impactantes da mudança social no Brasil. Este texto procurou mostrar que tais instrumentos precisam ser especificados, respondendo às demandas de informação do gestor nas diferentes fases do “ciclo de vida” do programa, de acordo com o estágio de maturidade desse. Não há uma receita única, pronta e acabada para desenhar esses instrumentos. Existem experiências, recomendações e boas práticas.

94

Triangular significa abordar o objeto de pesquisa com três (ou mais) técnicas diferentes de

investigação, como linhas não paralelas na forma de um triângulo cercando o objeto de pesquisa ao centro. 95

Vale registrar, nesse sentido, a proposta de realização de cursos de Graduação e de

Especialização em Gestão Pública a distância pela Universidade Aberta do Brasil, vinculada ao Ministério da Educação (www.uab.mec.gov.br), e operada pelas universidades e institutos federais, iniciativa fundamental para se imaginar alguma parcela dos 1,7 milhão de servidores municipais com Ensino Médio e 1,3 milhão com Ensino Superior contabilizados em 2008 nos mais de 5.500 municípios brasileiros.


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Júnia Quiroga1 Alexandro Rodrigues Pinto2 Renata Mirandola Bichir3 Renato Francisco dos Santos de Paula4

Introdução e temas transversaIs

avaliação de políticas públicas: ReFleXÕes acadêmicas sobRe o desenvolvimento social e o combate à Fome

A PESQUISA APLICADA ÀS POLÍTICAS PÚBLICAS e a possibilidade de constRUção de Uma AGENDA ESTRATÉGICA DE AVALIAÇÃO ENTRE ACADEMIA E GOVERNO

1

DouToRA EM DEMoGRAFIA PELo CENTRo DE DESENvoLvIMENTo E PLANEJAMENTo REGIoNAL DA

uNIvERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS (CEDEPLAR/uFMG) E DIREToRA DE AvALIAção Do MINISTéRIo Do DESENvoLvIMENTo SoCIAL E CoMBATE À FoME (MDS). 2

MESTRE EM FARMACoLoGIA CLÍNICA PELA uNIvERSIDADE FEDERAL Do CEARÁ (uFCE) E CooRDENADoR

GERAL DE AvALIAção DA DEMANDA Do MDS. 3

DouToRA EM CIÊNCIA PoLÍTICA PELo INSTITuTo DE ESTuDoS SoCIAIS E PoLÍTICoS DA uNIvERSIDADE

Do ESTADo Do RIo DE JANEIRo (IESP/uERJ) E PRoFESSoRA ADJuNTA DA uNIvERSIDADE DE São PAuLo (uSP). FoI CooRDENADoRA GERAL DE AvALIAção DE RESuLTADoS E IMPACTo No MDS ENTRE 2011 E 2013. 4

DouToR EM SERvIço SoCIAL PELA PoNTIFÍCIA uNIvERSIDADE CATÓLICA DE São PAuLo (PuC-SP) E

CooRDENADoR Do CuRSo DE SERvIço SoCIAL DA uNIvERSIDADE FEDERAL DE GoIÁS (uFG). FoI CooRDENADoR-GERAL DA ÁREA DE GESTão Do TRABALHo E EDuCAção PERMANENTE Do SISTEMA úNICo DE ASSISTÊNCIA SoCIAL (SuAS) ENTRE 2005 E 2009, ASSESSoR DA SECRETARIA NACIoNAL DE ASSISTÊNCIA SoCIAL (SNAS) Do MDS ENTRE 2009 E 2012 E vICEPRESIDENTE Do CoNSELHo NACIoNAL DE ASSISTÊNCIA SoCIAL (CNAS) ENTRE 2008 E 2012.


INTRODUÇÃO Este artigo reflete sobre a construção da agenda de avaliação de políticas públicas e, mais particularmente, sobre a experiência de definição conjunta de uma agenda entre academia e governo materializada por uma seleção pública de propostas de estudos e avaliação das ações do desenvolvimento social e combate à fome. Conceitualmente, não há consenso estabelecido sobre o conceito de avaliação a ser aplicado na análise de políticas públicas. Há, contudo, suficiente entendimento de que a avaliação de políticas públicas diz respeito ao julgamento de valores associados a distintas etapas do processo de produção de políticas públicas. Trevisan e Van Bellen (2008) realizam uma revisão teórica sobre tal conceito bem como dos avanços dessa prática avaliativa no Brasil. Os autores citam Garcia (2001), que cunhou um conceito abrangente pautado pelas contribuições de diversos autores: Avaliação é uma operação na qual é julgado o valor de uma iniciativa organizacional, a partir de um quadro referencial ou padrão comparativo previamente definido. Pode ser considerada, também, como a operação de constatar a presença ou a quantidade de um valor desejado nos resultados de uma ação empreendida para obtê-lo, tendo como base um quadro referencial ou critérios de aceitabilidade pretendidos (Garcia (2001:31) apud Trevisan e Van Bellen, 2008). À luz desse conceito, o julgamento de valores deve ser associado a um quadro de referência, e o seu resultado potencialmente leva à estimação da quantidade ou qualidade de determinada ação ou política. No caso da produção acadêmica brasileira na avaliação de políticas públicas, constata-se forte subordinação da agenda de pesquisa à agenda política (Arretche, 2003). Com efeito, embora a avaliação de políticas públicas não tenha trajetória consolidada no país, e nem acúmulo teórico suficiente, avolumam experiências de avaliação advindas de estudos de caso ou análises pontuais de políticas específicas. Longe de estar adequadamente sistematizado, esse conhecimento produzido tem fortalecido a formação de avaliadores no país e, também, incitado debates importantes, sobretudo quanto aos efeitos das políticas, programas, serviços e ações. Como estratégia de governo, a prática de avaliação tem crescido ao longo dos anos. De maneira ainda tímida, porém crescente, formam parte das estruturas da administração direta e indireta algumas unidades de avaliação e de estudos, em geral pequenas, dedicadas a subsidiar gestores de políticas na construção e aperfeiçoamento dos programas que integram as políticas específicas. A experiência mais exitosa no âmbito da administração federal direta é a da Secretaria de Avaliação e Gestão da Informação (SAGI) que integra a estrutura do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) desde 2004 e que avalia e monitora políticas, programas, ações e serviços nas áreas de transferência de renda, segurança alimentar e nutricional, assistência social e inclusão produtiva, além de contribuir com a formação de gestores públicos e sociais e disseminar conteúdo técnico. Seguindo parâmetros internacionais que estimulam que a avaliação de programas seja feita externamente à estrutura de implementação, muitas das pesquisas ava-

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liativas da SAGI se enquadram nesse modelo e derivam da contratação de instiutilizaram um modelo “misto”, com desenho metodológico interno – dialogado com as secretarias finalísticas e as instituições contratadas – e execução externa. Há ainda um terceiro conjunto de estudos que foram concebidos e conduzidos diretamente pela equipe interna, notadamente é um caso recorrente nas pesquisas de abordagem qualitativa. Envolvendo diferentes formas de contratação, bem como arcabouços metodológicos, o longo dos anos, entre 2004 e março de 2014, a SAGI contratou mais de 100 estudos de avaliação sobre as diversas políticas, programas, serviços e ações do MDS. Seguindo a legislação nacional e as orientações dos órgãos de controle, o processo licitatório é muito empregado nas contratações realizadas. Com isso, zela-se pelo erário público e a sua adequada utilização. Contribui-se, ainda, para a transparência do Estado no sentido de que sejam garantidas as condições para a competição aberta entre os proponentes. Contudo, a despeito das diversas qualidades dos processos licitatórios para a contratação de estudos, os mesmos geram alguns impasses à prática da avaliação. O principal impasse que cumpre mencionar é o fato de que muitas universidades, talvez a maioria delas, sente-se inibida na participação de processos licitatórios, ora porque sua estrutura interna não permite que a candidatura ofereça preços suficientemente competitivos com o mercado de institutos de pesquisa, já que o overhead pago às fundações universitárias aumenta muito os seus orçamentos, ora por despreparo administrativo para esse tipo de competição, ora por discordâncias filosóficas sobre o papel da universidade e o entendimento de muitos acadêmicos de que as instituições públicas não devem participar de processos licitatórios – os quais se adequariam às estruturas de mercado – mas sim executar pesquisas por outras vias de financiamento e apoio.

Introdução e Temas transversais

avaliação de políticas públicas: REFLEXÕES acadêmicas sobre o Desenvolvimento Social e o Combate à Fome

tuições públicas ou privadas de pesquisa. Em outros casos, as avaliações da SAGI

Independentemente das razões da ausência recorrente das universidades nos processos licitatórios, fato é que tal ausência representa potencial prejuízo à construção de conhecimento sobre as políticas públicas. A identificação dessa ausência preocupou o Departamento de Avaliação do MDS, que buscou modos de aproximar a academia da prática de avaliação dos programas, ações e serviços sob a coordenação do Ministério. Um certo incômodo relativo à ausência de uma parceria na construção da agenda de avaliação se somava à preocupação de que importantes questionamentos e provocações apresentados em estudos ou originados nos debates acadêmicos sobre as políticas de desenvolvimento social pudessem não estar chegando até o nível federal, por falta de espaços formais de interlocução. A participação em encontros, seminários e fóruns de debate tem sido recorrente para os gestores públicos, e provoca o encontro com a academia, porém a falta sentida era do processo de construção conjunta e do acompanhamento sistemático. Essa falta de porosidade entre academia e gestão também era percebida no desenvolvimento e estudo de tecnologias sociais voltadas para a promoção do desenvolvimento social.


Assim, amparado por Termo de Cooperação firmado entre o MDS e o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI)5, o MDS propôs ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), fundação pública vinculada ao MCTI que tem por finalidade promover e fomentar o desenvolvimento científico e tecnológico do país e contribuir na formulação das políticas nacionais de ciência e tecnologia, a construção de um edital de seleção pública de estudos junto às instituições públicas de ensino e pesquisa.

MATERIALIZAÇÃO DA COOPERAÇÃO: A CONCEPÇÃO DO EDITAL N.º 36/2010 Uma das iniciativas resultantes da cooperação política, técnica e programática firmada entre MDS e MCTI foi a celebração, em 2010, do Termo de Cooperação n.º 001/2010, entre o MDS e o CNPq. O acordo propiciou, por sua vez, o lançamento pelo CNPq do Edital n.º 36/2010 destinado à seleção de projetos de pesquisa sobre temas afetos ao MDS. Por meio do apoio a projetos de pesquisa ancorados em universidades brasileiras, o referido edital inaugurou uma nova abordagem no desenvolvimento de estudos e pesquisas avaliativos sobre ações do MDS. Ao invés de especificar uma a ação a ser investigada, definir os parâmetros dessa investigação e contratar uma empresa ou consultor para realizá-la, o Ministério propôs-se a financiar iniciativas desenvolvidas pelo meio acadêmico, desde que eles se enquadrassem em linhas temáticas prioritárias para a agenda social do governo federal. A ação possibilitou, ainda, a aproximação do MDS, representado pela SAGI, com as universidades públicas, por meio da prospecção de pesquisas em desenvolvimento nessas instituições sobre temas de interesse do Ministério. O Edital foi publicado em setembro de 2010 e buscou conhecer e fomentar a produção acadêmica a respeito das iniciativas recentes de proteção e desenvolvimento social e combate à fome que pudessem oferecer recomendações para melhorar ações, procedimentos ou técnicas, bem como identificar tecnologias sociais relacionadas ao desenvolvimento das políticas de transferência de renda, segurança alimentar e nutricional e assistência social produzidos pela academia brasileira. Os projetos propostos deveriam se enquadrar em ao menos um dos dezessete subtemas agregados em cinco grandes temas:

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Portaria Interministerial No 261, de 20 de abril de 2009. Institui Termo de Cooperação entre

o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome e o Ministério da Ciência e Tecnologia para a implementação de ações integradas com vistas ao Compromisso Nacional pelo Desenvolvimento Social e inclusão e tecnológica dos beneficiários dos programas sociais do Governo Federal. Publicada no DOU em 22 de abril de 2009.

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1.1) Aspecto de implementação, financiamento e avaliação dos efeitos do Benefício de Prestação Continuada (BPC – LOAS) no Brasil; 1.2) O Sistema Único de Assistência Social (SUAS) e sua implantação no contexto federativo do país. 2. Segurança Alimentar e Nutricional 2.1) Aspectos da implantação do SISAN (Câmaras intersetoriais, conselhos, conferências e planos) e sua institucionalização em estados e municípios; 2.2) O desenvolvimento de tecnologias para captação de água da chuva para produção e consumo de alimentos de subsistência das famílias no semiárido brasileiro; 2.3) Modelos de construção de cisternas para captação de água da chuva para consumo humano. 3. Bolsa Família – Estratégias para alívio e superação da pobreza 3.1) O Índice de Gestão Descentralizada (IGD) no aprimoramento da qualidade de gestão local do Bolsa Família; 3.2) As estratégias de acompanhamento familiar e de gestão das condicionalidades do Programa Bolsa Família; 3.3) Bancarização na ampliação do crédito, na aquisição de serviços e no uso de recursos financeiros pelas famílias beneficiárias. 4. Inclusão Produtiva

Introdução e Temas transversais

avaliação de políticas públicas: REFLEXÕES acadêmicas sobre o Desenvolvimento Social e o Combate à Fome

1. Assistência Social

4.1) Formas de Gestão para Implantação de Centrais de Intermediação de Profissionais Autônomos; 4.2) Avaliar os efeitos da implantação de grandes investimentos sobre a população cadastrada: aspectos de inclusão produtiva. 5. Integração 5.1) Dinâmica demográfica e sua interrelação com políticas de desenvolvimento social e combate à fome; 5.2) Analisar a integração entre serviços socioassistenciais, benefícios, transferência de renda e ações de segurança alimentar e nutricional na gestão local das políticas de desenvolvimento social e combate à fome; 5.3) Desenvolver e operacionalizar o conceito de territorialidade na promoção de ações integradas de desenvolvimento social; 5.4) Os Recursos Humanos voltados às políticas de Desenvolvimento Social e Combate à Fome: segurança alimentar, assistência social, transferência de renda e inclusão produtiva; 5.5) O acesso, a implementação e os efeitos dos programas, ações e servi-


ços de Desenvolvimento Social e Combate à Fome entre povos e comunidades tradicionais; 5.6) O acesso, a implementação e os efeitos dos programas, ações e serviços de Desenvolvimento Social e Combate à Fome entre pessoas em situação de rua e catadores de materiais recicláveis; 5.7) A dinâmica familiar, as relações de gênero e as políticas de Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Os temas e subtemas foram definidos em uma série de reuniões do Grupo de Trabalho em Avaliação e Monitoramento (GTMA) do MDS. Destinado a formular anualmente um plano de avaliação e monitoramento dos programas do MDS, o GTMA conta com a participação de representantes de todas as secretarias do Ministério, bem como do gabinete ministerial. Ao longo das reuniões, uma lista original de mais de 30 ideias originalmente apresentadas pelas diferentes unidades do MDS foi organizada em torno das prioridades que o Ministério vislumbrava naquele momento. A priorização foi estabelecida com base em critérios de relevância para a ação política e de insuficiência de conhecimento sobre o tema por parte da gestão. O Edital foi destinado somente às instituições públicas de ensino e pesquisa, por entender-se que os grupos de pesquisa dessas instituições tendem a ser mais perenes. Optou-se, ainda, pela aceitação de que o coordenador do projeto tivesse formação mínima de mestrado, por entender que a exigência do nível de doutor para a coordenação dos projetos era uma restrição que poderia inibir a participação de pesquisadores cujos estudos fossem relevantes para o objetivo pretendido, a despeito de seu nível de formação. Como a motivação do Edital foi a de provocar a aproximação entre a agenda de pesquisa da academia e a agenda de avaliação do Ministério, exigiu-se como contrapartidas, além do tradicional relatório final de pesquisa, que os pesquisadores pudessem ser convocados a reuniões e apresentações sobre as suas pesquisas ao longo do processo de sua elaboração e que produzissem um artigo que poderia vir a ser publicado pelo MDS. Após o período regulamentar de publicação do Edital (45 dias), foram apresentados 77 projetos oriundos de instituições de todas as grandes regiões do país. Dentre os projetos apresentados, 39 foram selecionados para financiamento por um comitê de cinco pareceristas especialistas nas diferentes temáticas abrangidas pelo edital, que foram escolhidos pelo CNPq a partir de sua plataforma de pesquisadores de produtividade. Os projetos selecionados são coordenados por pesquisadores vinculados a 28 instituições públicas de ensino e pesquisa do país. À época da elaboração do Edital, cogitou-se pontuar diferentemente os projetos oriundos das Regiões Norte e Nordeste, com vistas a garantir maior acesso potencial dos pesquisadores dessa região aos recursos. Embora a decisão final não tenha sido essa, cumpre observar que 18 das 39 (portanto, 46%) propostas aprovadas são oriundas dessas regiões. O prazo de execução dos projetos selecionados deveria ser igual ou inferior a seis meses, prorrogáveis mediante a apresentação de justificativa pelo coordenador

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do projeto e aprovação pelo CNPq, não podendo exceder 12 meses. O valor mádos em custeio (até o limite máximo de 20% do total do financiamento) e bolsas (modalidades “Iniciação Tecnológica e Industrial” - ITI nível A e “Desenvolvimento Tecnológico e Industrial” - DTI níveis 1, 2 e 36). O montante de recursos de fato executado foi de R$ 1.442.598,00, totalizando, portanto, o investimento médio de R$36.989,70 por projeto.

FORMATO DE ACOMPANHAMENTO DOS ESTUDOS Conforme mencionado anteriormente, a parceria estabelecida gerou no MDS o desejo de compartilhar o processo de elaboração e avanço dos projetos. Entendeu-se que isso seria positivo tanto para a gestão como para a academia, pois alimentaria a gestão com conhecimentos que viriam do acompanhamento e não só do acesso a resultados finais e fortaleceria a qualidade dos projetos desenvolvidos ao facilitar aos pesquisadores o acesso a um conjunto de dados e contatos com a gestão que de outra forma seriam mais demorados. Assim, o Departamento de Avaliação da SAGI/MDS delegou pares de técnicos para serem interlocutores permanentes de cada projeto, de forma que os pesquisadores tivessem acesso ágil à gestão. Além disso, o Departamento capitaneou a realização de duas oficinas de acompanhamento intermediário dos projetos, uma delas pouco após o início dos mesmos e a outra próxima à conclusão desses7. Nessas ocasiões, os pesquisadores foram expostos, em plenária, a diversos sistemas de informação do MDS e a exposições sobre os programas e o então recém-lançado Plano Brasil Sem Miséria. Além disso, em um dia inteiro de ambas as oficinas, os representantes dos projetos foram reunidos em discussões que ocorreram

Introdução e Temas transversais

avaliação de políticas públicas: REFLEXÕES acadêmicas sobre o Desenvolvimento Social e o Combate à Fome

ximo de financiamento para cada projeto foi estipulado em R$ 60.000,00, dividi-

simultaneamente em diferentes salas temáticas e expuseram os avanços de seus projetos para os seus pares e para debatedores oriundos das diferentes unidades da estrutura do MDS, de outros ministérios, e do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). O desenho das oficinas de acompanhamento foi reconhecido como proveitoso tanto pelos participantes da academia como da gestão e, de fato, cumpriu o propósito da aproximação das partes ao longo do processo. A apresentação do desenho das pesquisas em estágio ainda inicial, na primeira oficina realizada, foi importante para que os pesquisadores recebessem sugestões dos demais pesquisadores de sua área temática e também de gestores do MDS, possibilitando importantes desenvolvimentos teóricos e metodológicos. Por outro lado, a apresentação dos resultados finais dos diversos estudos consolidou o êxito dessa experiência, indicando a pertinência de sua continuidade. O encerramento da segunda oficina se deu com uma reflexão sobre a experiência do Edital por parte dos pesquisadores, do CNPq, do MCTI e do MDS. De forma ge6

À época da execução dos projetos, os valores das bolsas que poderiam ser contempladas

nos projetos variavam entre R$ 161,00 e R$ 3.169,37. 7

Ambas as oficinas foram realizadas em Brasília. A primeira delas ocorreu em 6 e 7 de abril de

2011 e a segunda em 29 e 30 de novembro do mesmo ano.


ral, avaliou-se positivamente a experiência, tendo sido valorizados os momentos de encontro entre a academia e a gestão; as salas temáticas que fomentaram o estabelecimento de redes entre os próprios pesquisadores, a exemplo de encontros regionais que foram concebidos a partir da parceria estabelecida nas oficinas de acompanhamento; e, com particular entusiasmo, os coordenadores com nível de mestrado sentiram-se estimulados pelo fato de terem sido elegíveis ao Edital. Houve, no entanto, críticas ao curto tempo de duração dos projetos; à dissonância entre o tempo de duração das bolsas e o tempo de duração dos projetos, sendo o primeiro mais curto que o segundo; e, finalmente, a algumas questões relativas ao formato de desembolso dos valores.

RESULTADOS DO EDITAL Talvez devido ao caráter inovador de muitos dos programas de desenvolvimento social sob a responsabilidade do MDS, que têm consolidação recente na agenda brasileira de políticas públicas, percebemos com este edital o grande interesse que temas como transferência de renda, inclusão produtiva, segurança alimentar e nutricional e assistência social suscitam entre os acadêmicos. Entretanto, considerando as formas de abordagem e enquadramento desses temas, percebemos também a pertinência da avaliação realizada por Arretche (2003) há mais de dez anos atrás: boa parte da agenda de estudos da academia continua bastante associada à agenda do governo. Por outro lado, foram percebidas também algumas dissonâncias entre certos temas e questões considerados cruciais para o aprimoramento e desenvolvimento dos programas, políticas e serviços, por parte do governo, que não encontraram lugar entre as pesquisas propostas pelos pesquisadores. Em sentido inverso, alguns questionamentos trazidos nas pesquisas às vezes tendiam a refletir dimensões não mais consideradas prioritárias na agenda do governo. Pode-se pensar, nesse sentido, que o dinamismo dos processos decisórios e das transformações institucionais dos programas nem sempre anda no mesmo compasso da agenda das pesquisas acadêmicas, colocando desafios para uma agenda conjunta de avaliações. Ainda assim, considera-se que o esforço de retroalimentação das agendas é válido e oportuno e, portanto, optou-se, em 2013, por repetir a experiência e empreender a elaboração de um novo edital conjunto entre a SAGI/MDS e o CNPq/MCTI8. A boa avaliação levou a um aumento dos recursos investidos e as críticas feitas à estrutura anterior foram incorporadas. Assim, o prazo de realização dos projetos foi estendido e aumentaram-se os limites dos valores dos novos projetos (limite de R$ 60 mil, para projetos coordenados por mestre, e R$ 100 mil para projetos coordenados por doutor). Ademais, a estrutura de acompanhamento dos estudos será mantida.

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Em setembro de 2013 a cooperação entre o MDS e o MCTI materializou-se em mais um edital para

a seleção de estudos por intermédio do CNPq. Foi lançada a Chamada MCTI-CNPq/MDS – SAGI Nº 24/2013 com o objetivo de fomentar projetos de pesquisa relativos às políticas de proteção de populações vulneráveis, assim como relativas ao desenvolvimento social e segurança alimentar e nutricional. O montante total investido nessa Chamada foi de R$ 2.747.795,00, tendo sido recebido um total de 292 propostas, totalizando uma demanda de recursos equivalente a R$ 21.460.730,10.

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Entende-se, portanto, que o fomento temático à pesquisa acadêmica pode ser um se concretize na academia e no governo. Nesse sentido, este livro é mais uma contribuição a esse esforço. Uma das contrapartidas ao financiamento foi a entrega de artigos com base nos principais resultados das pesquisas realizadas. Uma vez entregues, cada artigo foi submetido a dois pareceristas vinculados à temática pertinente sendo, necessariamente, um deles vinculado ao MDS e outro externo. Os pareceristas externos incluíam professores universitários, pesquisadores, ou especialistas. Um total de 60 pareceristas contribuiu com a revisão dos artigos. Após a revisão dos autores com base nos pareceres, avaliou-se a pertinência da publicação de cada artigo, eventualmente retornando os artigos para os pareceristas. Os cinco volumes que integram esta publicação representam a entrega final dos resultados do Edital n.º 36/2010. Os projetos de pesquisa financiados deram origem aos 34 artigos que são apresentados neste livro, organizado em cinco seções temáticas, sempre antecedidas por artigos institucionais que visam apresentar a visão do MDS a respeito de temas transversais como gênero, raça, povos e comunidades tradicionais, transferência de renda, assistência social, segurança alimentar e nutricional e inclusão produtiva. Este primeiro volume do livro reúne artigos institucionais elaborados por representantes do MDS ressaltando a relevância dessa aproximação entre a agenda de pesquisas da academia e os temas afetos ao desenvolvimento social e combate à fome. Em primeiro lugar, o Secretário de Avaliação e Gestão da Informação, Paulo Jannuzzi, apresenta a publicação e, em artigo subsequente, discute aspectos teóricos e metodológicos do monitoramento e avaliação de políticas públicas. Em seguida, no presente artigo, os organizadores do livro – Júnia Quiroga, Alexandro

Introdução e Temas transversais

avaliação de políticas públicas: REFLEXÕES acadêmicas sobre o Desenvolvimento Social e o Combate à Fome

estímulo importante para que o estabelecimento de uma estratégica de avaliação

Pinto, Renata Bichir e Renato de Paula – discutem as oportunidades e os desafios na construção de uma agenda de avaliação que combine de maneira estratégica os olhares da academia e do governo. Os principais desafios para a realização do Edital que originou esta publicação são apresentados pelo CNPq, em artigo de autoria de Mariomar Almeida e colegas. Adicionalmente, esta primeira seção do livro reúne artigos abordando os chamados “temas transversais”, que se referem a abordagens integrais e intersetoriais das temáticas afetas ao desenvolvimento social, incluindo temas como gênero, raça, povos e comunidades tradicionais, dinâmicas familiares, entre outras. O artigo elaborado pelo Secretário Executivo do MDS, Marcelo Cardona, em coautoria com Teresa Sacchet e Kátia Favilla, introduz essa discussão ao abordar os desafios para a construção de políticas voltadas a povos e comunidades tradicionais, bem como para a inserção de temas como gênero, raça e etnia na agenda das políticas públicas, levando em consideração a contribuição dos artigos que compõem essa seção temática. Em seguida temos oito artigos abordando essas temáticas transversais, oriundos das pesquisas fomentadas pelo Edital, elaborados por autores com distintas afiliações institucionais. Assim, os artigos de Afonso et. al. (UFPA) e Pires (UFPB) contemplaram recortes geracionais, especificamente a infância, na relação com o Programa Bolsa Família. O artigo de Favero e Santos (UNEB) discute a


noção de território e a convivência com o Semiárido, sob a perspectiva de gênero. Tal perspectiva é adotada também por Leitão e Inácio (UFRPE), Albuquerque et. al. (IFMA/Campus Codó) e Silva (UEPA) que estudaram mulheres de comunidades pesqueiras, quebradeiras de coco e ribeirinhas. Comunidades específicas foram abordadas por Bairros e Neutzling (UFRGS), Faustino et. al. (UEM) em artigos que se debruçaram, respectivamente sobre a insegurança alimentar em comunidades quilombolas do Rio Grande do Sul e a condição dos indígenas no Estado do Paraná sua situação escolar e o seu acesso ao Programa Bolsa Família. Na segunda seção do livro são apresentados os artigos que abordam, sob diversos ângulos e aspectos, os programas de transferência, em particular o Programa Bolsa Família e suas múltiplas dimensões – processo de cadastramento, acompanhamento de condicionalidades, formas de gestão local, entre outras. Na introdução desta seção, temos o artigo elaborado pelo Secretário Nacional de Renda de Cidadania, Luis Henrique Paiva, em coautoria com a Secretaria Adjunta da Senarc, Letícia Bartholo, discorrendo sobre a trajetória de dez anos de Programa Bolsa Família, seus avanços e os desafios para o futuro, bem como sobre a perspectiva adotada pelos autores que compõem essa seção temática. Esta segunda seção reúne quatro artigos, que abordam a temática das condicionalidades – artigos de Rogério Medeiros (UFPB) em coautoria com Nínive Machado (UFPB) e artigo de Giselle Lavinas Monnerat (UERJ) com Juliana França Nogueira (UFF) –, as condicionalidades e a gestão do Programa, por meio do Índice de Gestão Descentralizada (IGD) – Maria Ozanira da Silva e Silva (UFMA) e Maria Virgínia Guilhon (UFMA) e também o Cadastro Único – artigo de Renato Veloso (UERJ). Temas relacionados à assistência social e às territorialidades são abordados na terceira seção, a qual é introduzida por artigo elaborado pela Secretária Nacional de Assistência Social, Denise Colin, em parceria com Juliana Fernandes e Renato de Paula, discorrendo sobre os desafios atuais para a área. Na sequência, temos dez artigos que abordam diversas dimensões das desigualdades sócio-territoriais e da vulnerabilidade das famílias, além de abordarem distintas metodologias, políticas e estratégias no campo da assistência social. Novamente, estes artigos foram elaborados por pesquisadores e professores oriundos de diferentes instituições: Melazzo e Magaldi (UNESP); Vaz e Avritzer (UFMG); Bazzi, Gaviolli, De Paula, et al (UTFPR); Dedecca, Belik, Trovão e Souza(UNICAMP); Oliveira e Kassouf (ESALQ/ USP); Magalhães, Ramos, Bodstein, et al (FIOCRUZ); Montali, Garcia, Lima, et al (UNICAMP); Paiva, Rocha, Carraro, et al (UFSC); Souza, Paiva, Cavalcante, et al (UFRN). A quarta seção traz a discussão referente à temática da segurança alimentar e nutricional, sendo introduzida pelas reflexões do secretário nacional da área, Arnoldo Anacleto de Campos, acerca dos desafios atuais para a área e a contribuição dos estudos apresentados. Esta seção reúne dez artigos que versam sobre o estado da segurança alimentar e nutricional na população (Vianna - UFPB) et. al.; Sperandio e Priore (UFV); Florêncio – UFAL- et. al.); o desenvolvimento de tecnologias de captação de água para consumo humano (Pereira da Silva - IFBaiano); Batista; (UFERSA); desenvolvimento de instrumentos de medição da insegurança alimentar e nutricional (Gigante – UFPEL- et. al.); desenvolvimento de sistemas locais de segurança alimentar e nutricional (Kepple, Siliprandi – UNICAMP- e Meira - Secretaria Munici-

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pal de Ação Social de Rio Claro); Palmeira (UFCG) et. al.; Burlandy – UFF- et. al. e o

Por fim, a quinta seção abarca os desafios da inclusão produtiva no Brasil, conforme a discussão apresentada pelo Secretário Extraordinário para Superação da Extrema Pobreza, Tiago Falcão, e o ex-chefe de gabinete da SESEP, Ricardo Karam. Essa seção reúne artigos que discorrem sobre os desafios da qualificação profissional e inclusão produtiva para a população de baixa renda – artigo de Eucidio Pimenta Arruda (UFU) e Durcelina Ereni Pimenta Arruda –, os efeitos de programas de capacitação na inclusão produtiva de jovens – Frida Marina Fischer (USP) e Andréa Aparecida da Luz (USP) – e uma avaliação de metodologias de capacitação profissional associada a programas de transferência de renda – artigo elaborado por Sibelle Diniz (UFMG), Elizabeth Filizzola (IASIN), Jacqueline E. Rutkowski (Instituto Sustentar), Thiago Araújo do Pinho (UFMG), Luisa F. Lima (UFMG), Patrícia Vargas (UFMG) e Roberto L. M. Monte-Mór (UFMG).

Introdução e Temas transversais

avaliação de políticas públicas: REFLEXÕES acadêmicas sobre o Desenvolvimento Social e o Combate à Fome

Programa de Aquisição de Alimentos (Cavalli – UFSC- et. al.).


REFERÊNCIAS ARRETCHE, Marta. Dossiê agenda de pesquisa em políticas públicas. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 18, n. 51, p. 7-9, fev. 2003. TREVISAN, AP; VAN BELLEN, HM. Avaliação de políticas públicas: uma revisão teórica de um campo em construção. Revista de Administração Pública. Rio de Janeiro 42 (3): 529-50 maio/jun. 2008.

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Mariomar Almeida1 Renata Gracioso Borges2 Marcelo Gonçalves valle3 Roberto Camargos Antunes Josiane B. Santos4

Introdução e temas transversaIs

avaliação de políticas públicas: ReFleXÕes acadêmicas sobRe o desenvolvimento social e o combate à Fome

EDITAL nº 36/2010: O DESAFIO

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BACHAREL EM SECRETARIADo PELA uFPE, MESTRE EM ExTENSão RuRAL E DESENvoLvIMENTo LoCAL PELA

uFRPE. ASSISTENTE EM C&T DA FuNDAJ/CNPQ - MARIoMAR_TEIxEIRA@yAHoo.CoM.BR 2

BACHAREL EM ADMINISTRAção PúBLICA, MESTRE E DouToRA EM PoLÍTICA PúBLICA DE ALIMENToS E

NuTRIção PELA uNESP. ANALISTA EM C&T Do CNPQ - RGRACIoSo@CNPQ.BR 3

BACHAREL EM CIÊNCIAS SoCIAIS, MESTRE E DouToR EM ECoNoMIA DA TECNoLoGIA PELA uNICAMP.

ANALISTA EM C&T Do CNPQ - MARCELoG@CNPQ.BR 4

BACHAREL EM ADMINISTRAção HoSPITALAR PELA uNEB. SECRETÁRIA DA CoAGR/CNPQ.


INTRODUÇÃO O objetivo desse artigo é apresentar os desafios da construção e acompanhamento do Edital nº 36/2010 – seleção pública de propostas de estudos e avaliação das ações do desenvolvimento social e combate à fome, desenvolvido pelo Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) por meio da Secretaria de Avaliação e Gestão da Informação (SAGI), em parceria com o Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) e o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). O CNPq, criado em 1951, constitui-se em uma agência de fomento de pesquisa científica e tecnológica e à formação de recursos humanos para a pesquisa no país, sendo órgão vinculado ao Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação. O mesmo possui em sua história uma parceria com órgãos nacionais e internacionais, gerindo os recursos para fomento de pesquisa diretamente ligada ao desenvolvimento científico e tecnológico do país (BRASIL a). A parceria do CNPq com o Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome, antigo Ministério Extraordinário de Segurança Alimentar (MESA), teve início em 2003, com a publicação do Edital nº 01/2003, o qual teve como proposta a seleção pública para apoio a Projetos de Pesquisa, Desenvolvimento e Inovação em Segurança Alimentar no Agronegócio (BRASIL b). O MESA, criado em 2003, foi responsável pela implementação da Estratégia Fome Zero, política impulsionada pelo governo federal para assegurar o direito humano à alimentação adequada às pessoas com dificuldades de acesso aos alimentos. Tal estratégia inseriu-se na promoção da soberania e segurança alimentar e nutricional buscando a inclusão social da população mais vulnerável à fome (BRASIL c). Em 2004, o MESA foi incorporado ao Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), que tem como missão “promover a inclusão social, a segurança alimentar, a assistência integral e uma renda mínima de cidadania às famílias que vivem em situação de pobreza” (BRASIL d). Em 2007, o MCTI e o CNPq, em parceria com a Secretaria da Agricultura Familiar do Ministério do Desenvolvimento Agrário (SAF/MDA) e a Secretaria Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (SESAN/MDS) lançaram o Edital nº 36/2007, o qual teve como foco o desenvolvimento de tecnologias voltadas para a agricultura familiar. Em 2008, dando continuidade à parceria CNPq e MDS, foi lançado o Edital nº 38/2008, o qual teve por objetivo apoiar atividades de extensão, mediante a seleção de propostas para projetos multidisciplinares que desenvolvam diagnósticos e planejamentos territoriais por meio de ações de extensão universitária, visando à promoção de segurança alimentar e desenvolvimento local em territórios prioritários no âmbito do CONSAD – Consórcios de Segurança Alimentar e Desenvolvimento Local. Atinente aos recursos financeiros, esse Edital teve um montante de R$ 3.000.000,00, sendo 35% para as rubricas Capital e Custeio, além de 65% para a rubrica Bolsa que, após o julgamento por um Comitê ad hoc composto por especialistas, recomendou a contratação de um total de doze projetos.

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A proposta para o lançamento do Edital nº 36/2010 ocorreu no dia 29/02/2010, quinhentos mil) apenas para as rubricas Custeio e Bolsa. O CNPq viu como um desafio, pois além do recurso ser baixo, só atendia às rubricas citadas, estando o Edital desprovido de recursos para capital. A construção desse artigo busca elencar os resultados alcançados, além de pontuar os aspectos positivos e negativos no desenvolvimento do projeto. Busca ainda realizar uma análise da parceria realizada entre CNPq e MDS, tendo como instrumento um edital de seleção pública, numa perspectiva de identificar os fatores relevantes e possibilidades de futuras parcerias.

EDITAL Nº 36/2010 O Edital MCT/MDS-SAGI/CNPq nº 36/2010 foi lançado em 23/09/2011, conforme Diário Oficial da União. Teve como objetivo apoiar estudos com a finalidade de trazer elementos de avaliação que pudessem auxiliar na condução ou indicar ajustes aos programas sociais conduzidos pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, de acordo com cinco linhas temáticas (BRASIL e): 1. Assistência Social 2. Segurança Alimentar e Nutricional 3. Bolsa Família – Estratégias para alívio e superação da pobreza 5. Integração Com relação aos objetivos específicos, o propósito do edital foi conhecer e fo-

Introdução e Temas transversais

avaliação de políticas públicas: REFLEXÕES acadêmicas sobre o Desenvolvimento Social e o Combate à Fome

com um montante de recursos no valor total de R$ 1.500.000,00 (um milhão e

mentar a produção acadêmica a respeito das iniciativas recentes de proteção e desenvolvimento social e combate à fome que pudessem oferecer recomendações para melhorar ações, procedimentos ou técnicas; identificar as tecnologias sociais relacionadas ao desenvolvimento das políticas de transferência de renda, segurança alimentar e nutricional e assistência social produzidos pelas academias brasileiras. Os projetos deveriam priorizar estudos e avaliações ligados à proteção e ao desenvolvimento social no âmbito de programas, ações, serviços do MDS, que se enquadrassem nos temas e nas linhas de ações temáticas apresentadas. O recurso global do edital foi de R$ 1.500.000,00 (um milhão e quinhentos mil reais), oriundos do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), Programa de trabalho: 08.121.1006.4923.0001 - Gestão da Política de Desenvolvimento Social e Combate à Fome, Ação orçamentária 4923 - Avaliação da política de desenvolvimento social e combate à fome. Os projetos teriam o valor máximo de financiamento de até R$ 60.000,00 (sessenta mil reais), sendo financiáveis itens de bolsa e custeio, sendo que não poderia ser gasto mais de 20% do valor total solicitado em custeio. As propostas que não atendessem a este critério seriam desclassificadas.


Os projetos desse edital tiveram vigência de doze meses, sem prorrogação, com bolsas aprovadas para um período máximo de seis meses. O julgamento do edital ocorreu no período de 30/11 a 02/12/2010, com cinco especialistas nos temas abordados para julgar as 75 propostas apresentadas. Consoante à habilitação para participação na pesquisa, exigiu-se que o proponente do projeto tivesse título de mestre e/ou de doutor e vínculo celetista ou estatutário com a instituição de execução do projeto. Ademais foi permitida a participação de pesquisadores aposentados, desde que os mesmos comprovassem manter atividades acadêmico-científicas e encaminhassem declaração da instituição de pesquisa ou de pesquisa e ensino concordando com a execução do projeto. A contrapartida do proponente foi o envio do Relatório Final e a Prestação de Contas ao CNPq e um artigo sobre a pesquisa ao MDS, com detalhamento de todas as atividades desenvolvidas durante a execução do projeto e o registro de todas as ocorrências que afetaram o seu desenvolvimento.

CONSTRUÇÃO DO EDITAL Nº 36/2010 A primeira reunião para discussão sobre a construção do citado edital ocorreu no dia 29/02/2010, idealizando quem seriam seus proponentes, bolsistas e prazo para desenvolvimento do projeto. Para melhor desempenho, os gestores deveriam ler sobre o Programa Bolsa Família e Territórios da Cidadania. O prazo do projeto foi bastante discutido, pois só haveria doze meses para ser desenvolvido sem prorrogação. O proponente teria no mínimo a titulação de Mestre, não sendo vedada bolsa para pós-graduando que estivesse trabalhando com os temas abordados no Edital. Ainda nessa reunião, os gestores do MDS/SAGI ficaram responsáveis pelo envio do escopo do Plano de Trabalho, do Termo de Referência e do Termo de Cooperação.

1. ITENS IMPORTANTES PARA CONSTRUÇÃO DO EDITAL O primeiro passo foi construir o Termo de Referência para determinar os termos das ações e embasar os seus objetivos e recursos. O segundo passo foi construir o Plano de Trabalho para estabelecer objetivos e diretrizes para execução das ações e atividades pretendidas. O terceiro momento foi a assinatura do Termo de Cooperação, que é uma determinação jurídica que se concretiza entre as instituições parceiras, conforme Portaria Interministerial MPOG/MF/CGU nº 127, de 29 de maio de 2008 (BRASIL f). Com esses elementos em mãos, iniciou-se a construção de uma minuta do Edital, que junto com uma Nota Técnica e uma Resolução Normativa, informavam o gestor e o substituto do Edital. Tais documentos foram encaminhados à Instância Deliberativa do CNPq, a DEX, que é composta pelo presidente e dois diretores. Após a deliberação, a minuta do Edital e do Termo de Cooperação foram encaminhados à Procuradoria Jurídica para analise e diligência necessária para publicação do Edital.

71


O parecer jurídico questionou o tipo de edital proposto, não considerando que disso, questionou o fato da exigência de titulação ser de mestre e não no mínimo de doutor, como é de praxe. Nesses casos, os gestores justificaram que com a nova demanda social solicitada ao CNPq, outro tipo de necessidade emergia e diante disso, outros tipos de propostas devem ser abarcadas, tal como o ocorrido em outros editais, entre eles: •

CT-Agro/CT-Hidro/MCT/CNPq nº 018/2005 - Seleção Pública de Propostas para Apoio a Projetos de Tecnologias Sociais para Inclusão Social dos Catadores de Materiais Recicláveis

CT-AGRO/CT-HIDRO/MCT/CNPq - nº 019/2005 - Seleção Pública de Propostas para Apoio a Projetos de Extensão e Disponibilização de Tecnologias para Inclusão Social

MCT/CNPq/MDA/CT-Agro - nº 020/2005 - Seleção Pública de Propostas para Apoio a Projetos de Geração e Disponibilização de Tecnologias de Base Ecológica Apropriadas à Agricultura Familiar

Edital MCT/CNPq/CT-Agronegócio/ MDA – Nº 23/2008 – Programa Intervivência Universitária

MCT/MDS/CNPq Nº 038/2008 - Edital Josué de Castro: Promoção de Segurança Alimentar e Nutricional em Territórios CONSAD – Etapa 1 mobilização e planejamento

MCT/CNPq Nº 029/2009 - Seleção Pública de Propostas de Pesquisa, Desenvolvimento Científico e Extensão Tecnológica para Inclusão Social.

Dessa forma, ratificou-se a conveniência da Instituição em celebrar o Edital nº

Introdução e Temas transversais

avaliação de políticas públicas: REFLEXÕES acadêmicas sobre o Desenvolvimento Social e o Combate à Fome

esse atendia a missão da instituição de pesquisa em Ciência e Tecnologia. Além

36/2010 com o MDS, que teve por objetivo apoiar estudos com a finalidade de trazer elementos de avaliação que possam auxiliar na condução ou indicar ajustes aos programas sociais conduzidos pelo Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Também, justificou que a titulação mínima exigida de mestre não impedia a participação de doutores. Após análise por parte das consultoria/procuradoria jurídicas das duas instituições sobre os Planos de Trabalho, Termo de Cooperação e o Edital final os mesmos foram encaminhados para assinatura os dois primeiros foram assinados no dia 15/09/2010 e o Edital foi publicado no dia 23/09/2010, o qual ficou aberto 45 dias para receber propostas das academias.

2. JULGAMENTO E RESULTADO A seleção de membros para julgar esse Edital apresentou certas dificuldades, visto que o período previsto para julgamento, de 30/11 a 03/12/2010, era concomitante com o fechamento da avaliação das disciplinas universitárias e seleção de candidatos para mestrado e doutorado.


No dia 09/11/2010, um dia após a data limite para submissão das propostas, foi realizado um levantamento da demanda e foram detectadas 75 (setenta e cinco) propostas. os gráfico 1 e 2 mostram as propostas por região geográfica, por Estado e por tema.

GRáFICO 1: PERCENTUAL DE PROPOSTAS APRESENTADAS POR REGIÃO GEOGRáFICA.

Fonte: Elaboração dos autores.

GRáFICO 2: PERCENTUAL DE PROPOSTAS APRESENTADAS POR estado.

Fonte: Elaboração dos autores.

As regiões que mais apresentaram propostas foram o Nordeste e Sudeste, com 32% e 39% das propostas respectivamente. Com relação aos Estados, Minas Gerais aparece, conforme Figura 2, com maior número de propostas. A tabela 1 apresenta a distribuição temática da demanda apresentada no edital, segundo a região do proponente.

73


Temas

Co

NE

N

SE S

Total

TEMA 1: Assistência Social

-

1

1

2

6

TEMA 2: Segurança Alimentar e Nutricional

-

7

-

4

TEMA 3: Bolsa Família – Estratégias para alívio e superação da pobreza

1

6

-

7

4

18

TEMA 4: Inclusão Produtiva

2

1

3

1

7

TEMA 5: Integração

-

10

4

13

6

33

Total Global

3

24

6

29 13 75

2

11

Fonte: Elaboração dos autores.

Dentre as propostas apresentadas, 39 (trinta e nove) projetos foram aprovados, com 216 bolsas, nas modalidades Desenvolvimento Tecnológico e Industrial (DTI) em todos os níveis e Iniciação Tecnológica e Industrial (ITI), nível A. os gráficos 3 e 4 apresentam características das propostas selecionadas.

Gráfico 3: Percentual de Propostas selecionadas por região geográfica.

Introdução e temas transversaIs

avaliação de políticas públicas: ReFleXÕes acadêmicas sobRe o desenvolvimento social e o combate à Fome

tabela 1: distribuição das propostas por tema e região, em números absolutos.

Fonte: Elaboração dos autores.

Gráfico 4: Percentual de Propostas selecionadas por Estado.

Fonte: Elaboração dos autores.


A tabela 2 descreve a distribuição temática segundo a região de origem dos projetos aprovados. Tabela 2: Distribuição das propostas selecionadas por tema e região, em números absolutos. Temas

CO

NE

N

TEMA 1: Assistência Social

-

1

1

TEMA 2: Segurança Alimentar e Nutricional

-

3

-

TEMA 3: Bolsa Família – Estratégias para alívio e superação da pobreza

-

3

TEMA 4: Inclusão Produtiva

1

-

TEMA 5: Integração

-

Total Global

1

SE

S

Total

1

3

1

-

4

-

4

2

9

-

2

-

3

7

3

6

4

20

14

4

13

7

39

Fonte: Elaboração dos autores.

O Nordeste se destacou no tema 5, contemplando sete proponentes; o Sudeste, por seu turno, com seis projetos. Porém, o tema 3, no Sudeste sobressaiu-se com quatro propostas. No total, o Nordeste teve 14 propostas aprovadas. É de praxe após a publicação do resultado no site do CNPq, que os candidatos não-contemplados, ou contemplados, recorram à decisão no período de dez dias. Contudo, apenas onze proponentes solicitaram revisão, sendo que um já tinha sua proposta aprovada. O embasamento das justificativas de reconsideração não questionavam o mérito do julgamento, e na sua maioria foram desclassificados por ultrapassar os 20% do valor da rubrica Custeio.

3. Acompanhamento dos projetos O MDS se propôs a acompanhar os projetos de forma didática e parceira dos pesquisadores contemplados, de maneira técnica e criativa. Os técnicos da SAGI/MDS organizaram a I Oficina de Debates, nos dias 6 e 7 de abril de 2011, com os proponentes dos projetos. Compareceram ao evento 29 (vinte e quatro) coordenadores dos projetos, além da presença do diretor da DABS e dos gestores do edital do CNPq. No mesmo modelo da oficina anterior, ocorreu a IIª Oficina, nos dias 29 e 30 de novembro de 2011, contando com a presença de 31 (trinta e um) pesquisadores. Nessas oficinas, os mesmos tiveram a oportunidade de discutir os seus trabalhos e trocar experiências entre si, apresentando as metodologias utilizadas e resultados parciais dos seus projetos, além de conhecerem ferramentas do MDS como: CadÚnico, MI Social e Censo SUAS.

CONCLUSÃO O prazo de elaboração dos editais é de no mínimo de quatro meses, em função de diversos trâmites internos. Ademais, em editais de convênios, que dependem da liberação das Assessorias Jurídicas dos órgãos envolvidos, podem sofrer dilação. Editais voltados para demanda de políticas sociais, nos formatos aqui apresentados, foram frutos das políticas implementadas a partir de 2003 - Edital MCT/CNPq/ MESA/CT - Agro nº 01/2003 –Seleção Pública de Propostas para Apoio a Projetos

75


de Pesquisa, Desenvolvimento e Inovação em Segurança Alimentar no Agronegó-

expandir a produção do conhecimento básico e aplicado sobre Segurança Alimentar no âmbito do Agronegócio, contribuindo para a garantia do acesso ao alimento em quantidade, qualidade e regularidade suficientes para nutrir e manter a saúde da população, por intermédio do apoio a projetos de pesquisa, desenvolvimento e inovação, executados por pesquisadores ou grupos de pesquisa atuantes no tema (BRASIL g). A inclusão de proponentes com a titulação de mestre gerou nova oportunidade e concorrência positiva no aperfeiçoamento dos projetos. Normalmente, o perfil do proponente exigido nos editais é com a titulação de doutor. A falta de adequada leitura dos editais é um dos grandes problemas para construção do projeto. Dessa forma mais de 50% das propostas apresentadas não foram enquadradas nos termos do Edital e foram desclassificadas.

Introdução e Temas transversais

avaliação de políticas públicas: REFLEXÕES acadêmicas sobre o Desenvolvimento Social e o Combate à Fome

cio, com o objetivo de:


Editas temáticos, tais como os aqui apresentados, não tem a avaliação de comitê ad hoc, e são temas, na sua maioria, específicos, os quais necessitam da escolha por comitê de especialistas. Existe consenso entre os membros do comitê que em pesquisas na área social, há necessidade de melhor fundamentação teórico-metodológica. Concordam entretanto que editais estimulam o envolvimento entre a academia e a sociedade civil, necessitando no entanto da participação dessa desde a elaboração do projeto até sua conclusão. É válido destacar a necessidade de investir em editais com essa abordagem; incluir visitas dos gestores do CNPq à área dos projetos, além de desenvolver fóruns de discussões entre os ministérios envolvidos, os gestores dos editais e os proponentes sobre cada projeto contemplado, a exemplo feito pelo Edital nº 36/2010. Esse formato de edital contribuiu para analisar e avaliar as políticas públicas sob um olhar nem sempre percebido pelos gestores dos Ministérios, contribuindo assim para a melhoria e o aperfeiçoamento destes e para o desenvolvimento de novos programas.

77


BRASIL a - Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Apresentação. Em: http://www.cnpq.br/cnpq/index.htm. Acesso em: 03/03/2012. BRASIL b-. Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Relatório de Gestão Institucional 2003. Em: http://www.cnpq.br/cnpq/docs/relatorio_gestao_2003.pdf. Acesso em: 09/03/2012. BRASIL c - Ministério Extraordinário de Segurança Alimentar e Combate à Fome (MESA). Cartilha para prefeituras. Em: http://www.fomezero.gov.br/publicacoes/publicacoes/ arquivos/cartilha_prefeito.pdf. Acesso em: 09/03/2012. BRASIL d - Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS). Sobre o ministerio. Em: http://www.mds.gov.br/sobreoministerio. Acesso em: 09/03/2012. Brasil e - Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Edital MCT/MDS-SAGI/CNPq Nº 36/2010. Em: http://www.cnpq.br/editais/ct/2010/036. htm. Acesso em: 09/03/2012. Brasil f – Portaria Interministerial MPOG/MF/CGU nº 127, de 29 de maio de 2008. Em: http://www.tesouro.fazenda.gov.br/hp/downloads/Portaria_Convenio.pdf.

Acesso

em: 13/03/2011. Brasil g - Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Edital MCT/CNPq/MESA/CT-Agro nº 01/2003. Em: http://www.cnpq.br/editais/ct/2003/ docs/01_ct-agro.pdf. Acesso em: 12/03/2012.

Introdução e Temas transversais

avaliação de políticas públicas: REFLEXÕES acadêmicas sobre o Desenvolvimento Social e o Combate à Fome

REFERÊNCIAS

APÊNDICE – GLOSSÁRIO Bancarização – Incentivo do governo para estimular população de baixa renda, por meio de abertura de contas eletrônicas (COSTA, Fernando Nogueira da. Microcrédito no Brasil. In: Texto para Discussão. IE/UNICAMP, Campinas, n. 175, abr. 2010. Desenvolvimento Tecnológico e Industrial (DTI) – modalidade de bolsa de longa duração utilizada pelo CNPq, com a finalidade de possibilitar o fortalecimento da


equipe responsável pelo desenvolvimento de projeto de pesquisa, desenvolvimento ou inovação, por meio da incorporação de profissional qualificado para a execução de uma atividade específica (http://www.cnpq.br/normas/rn_10_015_ anexo1_dti.htm). CadÚnico – O Cadastro Único para Programas Sociais é um instrumento de identificação e caracterização socioeconômica das famílias brasileiras de baixa renda, entendidas como aquelas com renda igual ou inferior a meio salário mínimo por pessoa (per capita) ou renda familiar mensal de até três salários mínimos. Suas informações podem ser utilizadas pelos governos federal, estaduais e municipais para obter diagnóstico socioeconômico das famílias cadastradas, para desta forma, possibilitar a análise das suas principais necessidades (http://www.mds.gov.br/ falemds/perguntas-frequentes/bolsa-familia/cadastro-unico/beneficiario/cadunico-inclusao). Iniciação Tecnológica e Industrial (ITI) – Modalidade de bolsa de longa duração utilizada pelo CNPq, com a finalidade de estimular o interesse para a pesquisa e o desenvolvimento tecnológico em estudantes do nível médio e superior ou de graduados em nível médio (http://www.cnpq.br/normas/rn_10_015_anexo1_iti.htm). MI Social – A Matriz de Informação Social (MI Social) é uma ferramenta de gestão da informação que reúne uma série de aplicativos que permitem monitorar os programas sociais do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) por meio de dados e indicadores gerenciais. Ela disponibiliza informações e indicadores sociais específicos de estados, municípios e Distrito Federal, além de regiões especiais como o Semiárido, a Bacia do Rio São Francisco e os Territórios da Cidadania (http://www.mds.gov.br/gestaodainformacao/gestao-da-informacao/tipos-de-ferramentas/matriz-de-informacao-social). Rede SUAS - A Rede SUAS, responsável pela operacionalização dos sistemas de informação do SUAS, alinhada com as estratégias e objetivos do MDS, visa proporcionar as melhores condições para o atendimento das metas da Política Nacional de Assistência Social (PNAS) (http://aplicacoes.mds.gov.br/sagi/censo2011/auth/index. php?faq=1).

79


Introdução e Temas transversais

avaliação de políticas públicas: contribuições REFLEXÕES acadêmicas acadêmicas sobre sobre o Desenvolvimento o Desenvolvimento Social Social e o Combate e o Combate à Fome à Fome


81

TEMAS TRANSVERSAIS


Marcelo Cardona Rocha1 Teresa Sacchet2 kátia Favilla3

Introdução e temas transversaIs

avaliação de políticas públicas: ReFleXÕes acadêmicas sobRe o desenvolvimento social e o combate à Fome

PROGRAMA BOLSA FAMÍLIA: PERSPECTIVAS A PARTIR DO OLHAR DE GÊNERO E DA diveRsidade sociocUltURal de povos e comUnidades tRadicionais

1

BACHAREL EM CIÊNCIAS CoNTÁBEIS PELA uNIvERSIDADE FEDERAL Do RIo GRANDE Do SuL (uFRGS) E

SECRETÁRIo ExECuTIvo Do MINISTéRIo Do DESENvoLvIMENTo SoCIAL E CoMBATE À FoME (MDS).

2

DouToRA EM CIÊNCIA PoLÍTICA PELA uNIvERSIDADE DE ESSEx – REINo uNIDo, ASSESSoRA DA SECRETARIA

ExECuTIvA Do MDS E PESQuISADoRA SÊNIoR Do NúCLEo DE PESQuISAS EM PoLITICAS PúBLICAS DA uNIvERSIDADE DE São PAuLo (uSP). 3

ESPECIALISTA EM GESTão AMBIENTAL PELA uNIvERSIDADE DE BRASÍLIA, ASSESSoRA DA SECRETARIA

ExECuTIvA Do MDS.


INTRODUÇÃO Esta seção discorre sobre os efeitos das políticas do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), em particular do Programa Bolsa Família (PBF), na experiência de vida das mulheres e de povos e comunidades tradicionais. Os oito artigos que a compõem apresentam resultados de pesquisas que, partindo de diferentes questões teóricas e enfoques metodológicos, chegam a conclusões similares. Sem negar os desafios necessários para aprofundar os efeitos das políticas de proteção social frente aos objetivos a que elas se propõem, há consenso sobre suas significativas contribuições para a superação da pobreza e ampliação da cidadania de seus beneficiários. As ações do MDS são voltadas para os grupos mais vulneráveis da população. Políticas de assistência social, de transferência de renda, segurança alimentar e nutricional e de inclusão produtiva urbana e rural têm como desafio criar políticas e serviços que atendam às necessidades destes segmentos, contribuindo para maior acesso aos direitos e expansão de sua cidadania. Esta tarefa, porém, requer compreender as desigualdades em suas especificidades. Assim, ao mesmo tempo em que o MDS desenha e implementa políticas gerais para atender os socialmente vulneráveis, diminuir as disparidades sociais e superar a extrema pobreza há o desafio para a construção de mecanismos específicos que possam lidar adequadamente com as persistentes desigualdades regionais, de gênero, raça e etnia dentre outras. Atingir este objetivo é uma tarefa complexa e implica em fazer escolhas por opções às vezes controversas. Nem sempre os direitos são acessados por aqueles que mais necessitam deles. Alguns grupos, dado sua condição de elevada vulnerabilidade, tornam-se invisíveis ao Estado. A invisibilidade social pode ser consequência de inúmeros fatores que vão desde a ausência de direitos sociais básicos, como acesso ao registro civil de nascimento, que favorece o acesso às políticas públicas, até o desconhecimento da existência de direitos. Os povos indígenas e os povos e comunidades tradicionais podem ser citados como grupos que, por diversos fatores como distância dos seus territórios, dificuldades com a língua portuguesa, preconceitos dos gestores públicos, se encontram em situação de grande vulnerabilidade e de desconhecimento de seus direitos. Alcançar esta população, levando até ela uma rede de proteção social e serviços públicos que respondam as suas necessidades, é um dos objetivos e ao mesmo tempo desafios do Estado brasileiro. A eficácia das políticas do Estado vai depender de sua habilidade de ir ao encontro desta população, de dialogar com a diversidade dos segmentos sociais e as especificidades regionais, e de levar em conta as desigualdades de gênero, raça e etnia, dentre outras. A Busca Ativa é uma estratégia do Plano Brasil Sem Miséria4- BSM - cujo objetivo é levar as políticas públicas àquelas famílias que se encontram em situação de gran-

4

O Plano Brasil Sem Miséria é uma iniciativa do Governo Federal coordenada pelo MDS que

por meio de parcerias com diferentes ministérios visa estender os benefícios de transferência de renda do Programa Bolsa Família a todos os membros da população em situação de extrema pobreza (em torno de dezesseis milhões de pessoas), enquanto ao mesmo tempo oferece oportunidade de superação desta condição através de inclusão produtiva urbana e rural e acesso a serviços públicos.

83


de vulnerabilidade social e que possuem renda per capita de até R$ 70,00 (seainda não acessam as políticas as quais têm direito, invertendo, desta forma, a tradicional lógica de que os cidadãos procuram o Estado para serem atendidos. Esta estratégia possibilita ao governo: a) Incluir as famílias pobres e extremamente pobres no Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal (Cadastro Único); b) permitir o acesso de famílias elegíveis aos programas de transferência de renda, como o PBF; c) propiciar acesso a serviços de assistência social, saúde, educação, dentre outros; d) orientar para inclusão produtiva, por meio de capacitações, mediação de contratações, acesso aos instrumentos de crédito, fomento para atividades produtivas e assistência técnica rural. O Cadastro Único é um cadastro público que auxilia o planejamento de políticas para inclusão social e econômica de famílias com renda total de até três salários mínimos ou com renda per capta de até meio salário mínimo. Os dados coletados neste cadastro possibilitam um diagnóstico sócio econômico que permite a construção de iniciativas específicas, as quais são postas em prática por meio da articulação de diferentes ministérios e secretarias de Estado, bem como da parceria entre União, estados e municípios. Assim, por exemplo, questões relativas aos problemas de povos e comunidades tradicionais - como comunidades quilombolas, povos e comunidades de terreiro, ribeirinhos e extrativistas - podem ser vistas em suas especificidades e atendidas por políticas mais adequadas. Este cadastro permite mapear os diferentes problemas e vulnerabilidades sociais, favorecendo, além de uma gestão mais eficiente de recursos, o desenho de políticas efetivas para atender necessidades específicas. A partir da identificação do público mais vulnerável e de sua inserção no Cadastro Único são

Introdução e Temas transversais

avaliação de políticas públicas: REFLEXÕES acadêmicas sobre o Desenvolvimento Social e o Combate à Fome

tenta reais). Ela consiste na identificação e inserção pelo Estado de cidadãos que

planejadas ações tendo em vista considerar as diferenças e diminuir as desigualdades sociais.

O PROTAGONISMO DAS MULHERES NO DESENHO DE POLÍTICAS SOCIAIS Uma questão polêmica no debate sobre políticas de transferência de renda condicionadas refere-se ao seu foco nas mulheres e as implicações disso para as relações de gênero e autonomia feminina. Nos países que implementam programas desta natureza há uma orientação para que o benefício seja pago às mulheres. No Brasil, o PBF atende 13,8 milhões de famílias que vivem em situação de pobreza e extrema pobreza, por intermédio da transferência direta de renda que é acessada por meio de um cartão magnético. De acordo com dados recentes da Secretaria Nacional de Renda de Cidadania (Senarc), 93% da titularidade destes cartões está com as mulheres. Pesquisas revelam que as mulheres tendem a gastar os recursos do benefício em provisões e serviços que favorecem toda a família (FIALHO, 2007; MARIANO e CARLOTO, 2009). Esta informação é corroborada por artigos desta seção,


como o de Albuquerque et al, que destacam que os recursos do PBF são predominantemente utilizados na compra de alimentos, no pagamento de contas de serviços como água, luz e gás, na compra de material escolar, em transporte e em remédios. São as mulheres também que, como destacado no artigo de Favero e Santos nesta seção, se responsabilizam por assuntos relacionados a atividades escolares das crianças e seu cuidado médico. Assim, parece racional a decisão de repassar o recurso para quem melhor faz uso dele. Estudos sobre esta política no Brasil e no mundo consideram as possibilidades, os limites e os desafios de ter as mulheres como principais beneficiárias destes programas. Se por um lado a transferência do benefício para as mulheres é considerada um fator positivo, na medida em que contribui para a sua autonomia econômica, fortalecendo a ingerência e poder de influência delas sobre as decisões familiares, aumentando sua autoestima e status comunitário, por outro, ela é vista como um meio de reforço de uma identidade feminina ligada ao cuidado e a maternidade, que reproduz um modelo de relação de gênero fundado na desigualdade. Uma das principais críticas é que o foco nas mulheres tem por base uma visão naturalizada e tradicional do papel social das mulheres, relacionado à sua condição de mãe, mas que as condições necessárias para o seu desenvolvimento humano e empoderamento pessoal, econômico e político tendem a ser secundarizadas (MOLYNEUX, 2009; JENSON, 2009). Este debate é central em estudos sobre estes programas a partir de uma perspectiva de gênero, e está presente na maioria dos artigos desta seção que tratam do tópico, tendo sido evidenciado no de Celso Antonio Favero e Stella Rodrigues dos Santos. Apesar da constatação sobre a possibilidade de naturalização dos papéis de gênero, a maioria dos autores que utilizam uma perspectiva de gênero para analisar o PBF não se opõem ao fato de que o benefício seja pago às mulheres, já que, como demonstrado nas pesquisas, isso não apenas têm uma função instrumental, senão que também favorece as mulheres. Entretanto, eles argumentam que o valor pago é insuficiente para promover a autonomia econômica delas e não permite mudanças significantes na sua condição de vida, sendo necessário para isso o planejamento de ações complementares especificamente voltadas para e ampliação de sua autonomia e empoderamento. As mulheres têm, sem dúvida, contribuído com as políticas de desenvolvimento e inclusão social por intermédio do uso efetivo que fazem dos recursos repassados pelo PBF e da observação das suas condicionalidades, porém, deve ser destacado que ações voltadas para a sua autonomia pessoal e econômica não têm ficado fora do planejamento das políticas do governo federal e em particular do MDS. No BSM, por exemplo, há um número de iniciativas neste sentido. Programas de inclusão produtiva urbana e rural têm contribuído para a capacitação técnica e profissional e para a entrada no mercado de trabalho dos beneficiários do PBF. Iniciativas como o Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (PRONATEC) e o Programa Mulheres Mil auxiliam na formação profissional e intermediação para o trabalho destes beneficiários. O primeiro - que segundo dados do SPP/Sistec de abril de 2013 já capacitou mais

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de 405 mil trabalhadores e tem média mensal de adesão de 23,4 mil alunos mente na capacitação profissional delas. Para as mulheres pobres um grande desafio é como conciliar trabalho remunerado e participação social e política, com responsabilidades familiares, como destacam artigos nesta seção como os de Maria do Rosário de Fátima Andrade Leitão e Pedro Henrique Dias Inácio. A população de baixa renda tende a ter acesso limitado a serviços públicos de cuidado para crianças de zero a cinco anos. No que diz respeito à política de creches foi recentemente criada pelo governo federal a Ação Brasil Carinhoso, que além de aumentar os benefícios das famílias que recebem o PBF, cria incentivo para a ampliação do número de vagas em creches, por intermédio de um aumento no repasse de recursos. O programa aumenta em 50% o valor do repasse do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb) para creches públicas e conveniadas com as secretarias municipais de Educação (creches confessionais, filantrópicas e comunitárias), por vaga ampliada para filhos de beneficiários do PBF em idade até 48 meses. Em 2012, mais de 381 mil crianças com este perfil foram atendidas em 22,8mil creches. Sobre as escolas em tempo integral, o Programa Mais Educação impulsionou um aumento expressivo nesta modalidade de educação desde 2008. Segundo dados do MEC enquanto em 2008 havia apenas 1.374 de escolas em tempo integral, em 2013 elas somam 47.000 unidades. Além do aumento no número de escolas, o cruzamento dos dados do Cadastro Único e do Ministério da Educação (MEC) a partir de 2011 permitiu uma focalização desta política, conduzindo a expansão de escolas em tempo integral em áreas com maior incidência

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– tem 66% de suas vagas ocupadas por mulheres, e o segundo foca exclusiva-

de beneficiários do PBF. Em 2008 este público representava apenas 28% dos beneficiários desta política em 2013, porém, eles somam 55%. A expansão no número de creches e escolas em tempo integral além de contribuir para a educação das crianças promove a autonomia das mulheres, na medida em que cria incentivos para que as usuárias destes serviços se capacitem profissionalmente e entrem ou ampliem sua participação no mercado de trabalho. Ou seja, nos últimos anos o governo tem intensificado a implementação de políticas que potencializam um aumento do nível de participação social, econômica e política das mulheres. Outra questão importante, diz respeito à capacitação dos servidores da rede socioassistencial. Os papéis tradicionais de gênero e as relações de poder entre homens e mulheres tendem a ser reafirmadas e reproduzidas no contato da população com os serviços públicos, na medida em que há uma propensão para que os servidores tenham visões de gênero compatíveis com os valores de sua sociedade. O MDS, a partir de um planejamento conjunto com a Secretaria de Políticas para as Mulheres, passou a incluir tópicos de gênero na capacitação dos profissionais da rede Suas. Os cursos introdutórios e de atualização dos profissionais da redesocioassistencial agora incluem uma perspectiva de gênero e módulos específicos, tendo em vista instruí-los em conceitos, prá-


ticas e serviços relacionados ao tópico. Esta medida visa desconstruir visões tradicionais sobre gênero e orientar políticas e iniciativas específicas voltadas para as mulheres como aquelas relacionadas à violência de gênero. Neste sentido, ela pode ser de grande relevância para aumentar a autonomia pessoal das mulheres, particularmente dado que são elas que constituem o maior púbico atendido por profissionais da rede socioassistencial. No que diz respeito às políticas de inclusão produtiva rural existem iniciativas específicas voltadas para o fortalecimento das mulheres e suas organizações. Alguns exemplos são: a) No Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) está previsto reserva de recursos para organizações constituídas por mulheres e percentuais mínimos de participação de mulheres nas suas diferentes modalidades (40% na modalidade compra e doação simultânea e 30% na modalidade formação de estoques e incentivo a produção e ao consumo de leite); b) As políticas de Assistência Técnica e Extensão Rural (ATER) têm focado nas necessidades específicas das mulheres, bem como aumentado o número de extensionistas do sexo feminino. Estas iniciativas visam à construção da autonomia das mulheres no campo que em sua maioria, embora contribuam de forma significativa para a produção da família, têm acesso limitado aos recursos provenientes da mesma. Além das ações citadas acima o MDS tem buscado adotar um recorte transversal de gênero em suas políticas públicas. Desde março de 2012, um Comitê de Políticas para as Mulheres e de Gênero, coordenado pela Secretaria Executiva do MDS, se reúne regularmente para discutir as políticas deste ministério a partir de uma perspectiva que inclui as necessidades específicas das mulheres e questões de gênero e para propor iniciativas no intuito de promover a cidadania das mulheres e a igualdade de gênero. Este comitê contribui também para melhor articular políticas centrais e da Secretaria de Políticas para as Mulheres às políticas do MDS.

DIVERSIDADE SOCIOCULTURAL DE POVOS E COMUNIDADES TRADICIONAIS: ACESSO E INSERÇÃO DIFERENCIADA EM POLÍTICAS PÚBLICAS Diversas pesquisas foram realizadas, dissertações e teses escritas sobre povos indígenas e povos e comunidades tradicionais, entretanto, ainda há necessidade de aprofundamento de estudos de efeitos produzidos por políticas públicas, sejam universais ou específicas, implementadas junto a estes segmentos. Na presente seção deste livro, a parceria governo federal e universidades produziu estudos neste sentido, avaliando políticas sociais junto aos povos indígenas, comunidades quilombolas, ribeirinhos da Amazônia, quebradeiras de coco babaçu, pescadoras artesanais. Os estudos aqui apresentados trazem conclusões diversas e inferências sobre a atuação governamental junto a estes segmentos, comum a eles, porém, é a interpretação sobre a relevância do acesso às políticas públicas, ainda que estas necessitem de adequações às diversidades socioculturais de povos e comunidades tradicionais.

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Na pesquisa sobre segurança alimentar e nutricional em comunidades quilomUniversidade Federal deste estado, os resultados apontam, por exemplo, para a necessidade de ampliação do acesso a programas de incentivo à produção local de alimentos e do acesso a informações sobre educação alimentar. Além de apresentar quadro de acesso a políticas públicas pelas comunidades estudadas e demonstrar que, no momento da realização da coleta dos dados, havia vulnerabilidades sociais mesmo dentre as famílias que acessavam programas e políticas, como a Ação de Distribuição de Alimentos e o PBF. Com relação às questões referentes ao PBF e à permanência das famílias em situação de extrema pobreza, com a Ação Brasil Carinhoso e o Benefício para a Superação da Extrema Pobreza todas as famílias que estão beneficiárias do PBF recebem, quando necessário, complemento na transferência de renda garantindo pelo menos R$ 70,00 (setenta reais) per capita. Com estas duas ações todas as famílias incluídas no PBF, pelo critério da renda, não mais estão em situação de extrema pobreza, sendo necessárias outras ações para melhoria do acesso às políticas públicas e inclusão produtiva. Ainda no âmbito do BSM tem sido implementadas ações específicas, dentro do escopo de atendimento universal às famílias em situação de extrema pobreza, voltadas aos povos e comunidades tradicionais, como a construção de chamadas públicas para a realização de serviços de assistência técnica e extensão rural direcionadas ao atendimento destes segmentos, respeitando suas especificidades. Estas chamadas tem a particularidade de buscar construir não somente com as famílias beneficiárias, mas também com as comunidades a que elas pertencem, projetos que potencializem a sua vocação produtiva. Para viabilizar os projetos, as famílias beneficiárias além de receberem a assistência

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bolas do Estado do Rio Grande do Sul, realizada por equipe de pesquisa da

técnica recebem transferência de renda não reembolsável no valor máximo de R$ 2.400,00 (dois mil e quatrocentos reais) e o acesso a insumos para a produção, como sementes. Ações como esta do BSM buscam em um primeiro momento garantir um aumento da segurança alimentar e nutricional destas famílias, provendo insumos e assessoria técnica para iniciar ou potencializar a produção de alimentos, primordialmente. Em um segundo momento, a ação visa à inclusão destas famílias como fornecedores de alimentos ou produtos, que poderão ser adquiridos tanto em mercados locais como por meio de compras públicas, como é o caso do PAA. Este programa tem potencializado ações de inclusão de povos e comunidades tradicionais como fornecedores de produtos da agricultura familiar e não somente como consumidores das cestas de alimentos fornecidas por meio de parcerias entre o MDS, a Companhia Nacional de Abastecimento (CONAB), Fundação Nacional do Índio (FUNAI), Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR) e a Fundação Cultural Palmares (FCP). Conforme demonstrado no artigo de Fernanda Souza de Bairros e Marilda Borges Neutzling, o governo federal ainda tem desafios a serem enfrentados tanto no aperfeiçoamento de políticas públicas, como na construção de especificidades que atendam à sociodiversidade de povos indígenas e povos e comunida-


des tradicionais e no direcionamento de ações para inclusão destes segmentos em políticas e programas. Os dados levantados no artigo poderão ser mais bem avaliados em conjunto com os dados da pesquisa realizada em 2011/12 pelo MDS - Avaliação da Situação de Segurança Alimentar e Nutricional em Comunidades Quilombolas Tituladas - a ser brevemente lançada. No artigo elaborado pela equipe de pesquisa do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Maranhão (IFMA), com as quebradeiras de coco babaçu da região dos cocais no Estado do Maranhão, há, assim como na pesquisa realizada pela Universidade Estadual de Maringá, constatação pelas quebradeiras de coco beneficiárias do PBF de que houve melhoria na qualidade de vida e no acesso a bens e serviços. Relatam que antes do beneficio - não precisando este tempo, podendo estar relacionado a situações vivenciadas por suas mães que também quebravam coco - passavam muita necessidade, incluindo episódios de fome pela ausência completa de alimentos. Entre as quebradeiras é ainda mencionado como positivo a constância mensal do recebimento do benefício, garantia de que não haverá “sustos” de ficarem sem esta fonte de renda, desde que cumpridas as condicionalidades. Esta constância de recursos permitiu que estas fizessem mudanças na rotina de trabalho, podendo ficar ao menos um dia por semana sem realizar a quebra do coco. Destacam, entretanto, que o benefício tem o caráter de “ajuda”, não sendo dependentes deste, pois já realizavam seu trabalho e não deixaram de trabalhar por estarem recebendo o benefício. Desta forma, há uma manutenção de sua tradicionalidade ligada ao trabalho de quebra do coco e a relação com o acesso e uso de recursos naturais, não sendo, portanto, o beneficio encarado como fator desestruturador ou desagregador da sua organização cultural e socioeconômica. O artigo fruto da pesquisa realizada por equipe da Universidade Estadual de Maringá (UEM) junto aos povos indígenas do Estado do Paraná das etnias Kaingang e Guarani apresenta dados sobre os efeitos do PBF entre os indígenas, especialmente no tocante à condicionalidade de educação integrante do Programa. O PBF é um programa de transferência condicionada de renda, possuindo duas condicionalidades a serem observadas pelas famílias beneficiárias. Há condicionalidade de saúde, que se relaciona ao acompanhamento de saúde realizado por crianças até sete anos de idade (acompanhamento vacinal, de crescimento e desenvolvimento) e de gestantes e nutrizes (acompanhamento pré-natal e das nutrizes). No que concerne à educação, a condicionalidade é voltada ao acompanhamento da frequência escolar de crianças, adolescentes e jovens com idade entre seis e dezessete anos. Para as crianças e adolescentes entre seis e 15 anos, há obrigatoriedade de pelo menos 85% de frequência escolar e para jovens de 16 e 17 anos de frequência de 75%. O cumprimento das condicionalidades tem aferição periódica pelo Estado, assegurando, assim, a permanência das crianças nas escolas e o seu acompanhamento médico, condições estas centrais para o desenvolvimento social. O cumprimento das condicionalidades permite ainda criar incentivos por intermédio da demanda por serviços para a ampliação e melhoria no provimento das políticas públicas.

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A pesquisa desenvolvida entre os indígenas Kaingang e Guarani do Estado do Paficiárias, apresentando percentuais de cumprimento da condicionalidade de educação entre 63 e 77% das famílias beneficiárias, sendo possível verificar, ainda, a diminuição da ausência escolar das crianças indígenas que antes acompanhavam os pais em atividades de coleta, confecção e venda de produtos artesanais. Em pesquisa sobre os impactos do PBF, realizada em 2009, pelo Instituto Internacional de Pesquisa sobre Políticas Alimentares5 e pela Datamétrica, constatou-se que frequência escolar entre crianças de famílias beneficiárias do PBF é 4,4% pontos percentuais maior em comparação com crianças que não são de famílias beneficiárias. Destacando ainda que a progressão de ano é 6% maior entre as crianças do Programa (SAGI/MDS, 2010). Os dados sobre as pesquisas, tanto a de impacto do PBF quanto a realizada pela UEM, demonstram que o Programa tem conseguido atingir um de seus objetivos que é o de aumentar o nível de escolaridade das crianças das famílias beneficiárias, provendo, desta forma, meios para quebra no ciclo intergeracional de pobreza. A pesquisa realizada pela UEM constata que apesar das famílias beneficiárias do PBF ainda se encontrarem em situação de vulnerabilidade social há um aumento da possibilidade de aquisição de gêneros de primeira necessidade (como alimentos e remédios), antes não acessados pela baixa renda das famílias ou até mesmo pela inexistência de renda. Constata, ainda, que apesar de lentamente, há uma melhoria do acesso destas populações a bens e políticas públicas, como saúde e educação. Atualmente o MDS está em fase de contratação de estudo de caráter etnográfico que realizará uma avaliação dos efeitos do Programa Bolsa Família especificamente entre os povos indígenas. A pesquisa será realizada em sete Terras Indígenas e

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raná apresenta um aumento da frequência escolar das crianças de famílias bene-

busca concentrar informações sobre o acesso ao PBF, formas de saque, utilização dos recursos, além de buscar informações sobre a organização socioeconomica das comunidades, atividades produtivas, acesso a políticas públicas, segurança alimentar e nutricional. Os estudos serão realizados em Terras Indígenas pertencentes a Distritos Sanitários Indígenas (DSEI), que estão também sendo avaliados em pesquisa sobre o acompanhamento da condicionalidade de saúde entre os povos indígenas. O MDS tem buscado, desta forma, concentrar informações sobre o acesso e adequação de suas políticas públicas aos povos indígenas e às suas especificidades. Esta ação soma-se aos esforços aqui representados nos artigos constantes desta seção resultados de pesquisas sobre efeitos de políticas públicas, neste caso o PBF, sobre mulheres e sobre segmentos diversos.

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International Food Policy Research Institute (IFPRI)


CONSIDERAÇÕES FINAIS Fazendo uma análise das políticas do MDS no enfoque desta seção podemos concluir que, embora existam ainda desafios para a superação da pobreza e construção da cidadania social dos grupos aqui considerados, houve avanços significativos que nos permitem afirmar que estamos no rumo certo. Nos próximos parágrafos, citamos alguns. Um dos mais significativos impactos do PBF foi a retirada de 22 milhões de pessoas da extrema pobreza, representando uma conquista sem precedentes em um país historicamente marcado pela extrema desigualdade de renda e exclusão social. O PBF propiciou aos beneficiários uma ampliação do seu acesso a alimentos que antes não eram consumidos, contribuindo para a segurança alimentar e nutricional destes, bem como a compra de insumos como material escolar, remédios, etc., que beneficiaram as crianças e a família como um todo, conforme grande parte dos depoimentos apresentados nos estudos desta seção. Possibilitou também a documentação de pessoas da cidade e do campo fundamental para o exercício da cidadania e acesso a vários direitos. No que concerne à perspectiva de gênero, embora os artigos desta seção apontem para desafios importantes no sentido de empoderamento das mulheres, eles reconhecem a contribuição do benefício em várias áreas. As mulheres se beneficiaram da transferência de renda tornando-se menos dependentes de seus maridos/ companheiros, melhorando sua autoestima e poder de ingerência sobre as decisões familiares. Com o acesso a renda houve também um aumento no status social delas. As beneficiárias alegam que os comerciantes locais passaram a focar nelas como consumidoras, ofertando-as crédito para compras a prazo. Estes são destaques apenas de um número de impactos positivos citados nos textos. A expectativa é que estes resultados somados a outros derivados de políticas de inclusão produtiva urbana e rural e da iniciativa recente de ampliação da rede de serviços públicos para a área de cuidado com as crianças irão fomentar uma maior autonomia feminina. Na perspectiva dos povos e comunidades tradicionais há nos estudos também a constatação de que o PBF favoreceu o acesso a gêneros alimentícios, sem que houvesse rompimento das atividades econômicas executadas por estes grupos. Os artigos também permitem concluir que em consequência do cumprimento das condicionalidades, houve melhora significante na frequência escolar de filhos dos beneficiárias do PBF, e no seu acompanhamento médico, o que constitui-se em fator essencial para o desenvolvimento social das gerações futuras.

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As condicionalidades do PBF conduziram também a um aumento no acesso a pomanda por estes serviços. Em termos de desafios, ainda são muitas as iniciativas políticas necessárias para o desenvolvimento pleno da cidadania dos beneficiários das políticas do MDS. Dentre estas foram destacadas nos artigos a necessidade de aprofundamento de estratégias de igualdade de gênero e empoderamento das mulheres, e a ampliação de equipamentos sociais. Sobre a proposta de ampliação do número de vagas em creches, vale destacar, porém, que a iniciativa do governo federal de ampliação do número de creches públicas no país, bem como de ampliação de vagas naquelas já existentes, deve em um curto período de tempo criar impactos positivos neste sentido. É também destacado a importância de os beneficiários do PBF conhecer mais a fundo o próprio Programa, reconhecendo-o como um direito de cidadania, podendo em contrapartida contribuir com seu aporte para o planejamento de ações do programa. Por fim, um desafio permanente posto é a necessidade de monitoramento e avaliação das políticas do governo. Assim, a realização de outras pesquisas sobre os efeitos de políticas sociais do MDS para as mulheres e entre povos indígenas e povos e comunidades tradicionais podem contribuir para aprofundar os resultados dos estudos aqui apresentados, bem como elucidar novas questões, importantes para a análise das políticas correntes e planejamento das ações futuras.

Introdução e Temas transversais

avaliação de políticas públicas: REFLEXÕES acadêmicas sobre o Desenvolvimento Social e o Combate à Fome

líticas públicas como de saúde e educação, na medida em que geraram maior de-


BIBLIOGRAFIA FIALHO, P. J. F. O programa Bolsa Família em São Luís (MA) e Belém (PA): um estudo sobre a relação entre a gestão local e os efeitos do programa na condição de vida das mulheres. Dissertação de mestrado: Departamento de Serviço Social da Universidade de Brasília, 2007. Disponível em: http://bdtd.ibict.br/. Acesso em: 07 abr. 2014. JENSON, J. Lost in Translation: The Social Investment Perspective and Gender Equality. Social Politics: International Studies in Gender, State & Society v. 16, n. 4, p. 446-483, 2009. MARIANO, Silvana Aparecida; CARLOTO, Cássia Maria. Gênero e combate à pobreza: programa bolsa família. Revista Estudos Feministas, v. 17, n. 3, p. 901-908, 2009. MOLYNEUX, M. Conditional Cash Transfers: A Pathway to Women’s Empowerment?. Pathways Brief 5. London: DFID, 2009. BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Secretaria de Avaliação e Gestão da Informação. Síntese do 1º. Relatório contendo os Principais Resultados da Pesquisa de Avaliação de Impacto do Bolsa Família – 2ª Rodada – AIBF II, Nota Técnica nº 110/2010. Disponível em: http://www.mds.gov.br/saladeimprensa/noticias/2010/agosto/arquivos/nt-110-2010-sintese-aibf-2a-rodada-educacao-e-saude-2.pdf. Acesso em: 07 abr. 2014. SUÁREZ, M.; LIBARDONI, M. The Impact of the Bolsa Família Program: Changes and Continuities in the Social Status of Women. In: VAITSMAN, J.; PAES-SOUSA, R. Evaluation of MDS Policies and Programs – Results. V. 2. Brasília: MDS, 2007.

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Tatiana Afonso - universidade Federal do Pará (uFPA) Maria Elizabeth Costa Araújo - universidade Federal do Pará (uFPA) Daniela Castro dos Reis - universidade Federal do Pará (uFPA) Simone Souza da Costa Silva - universidade Federal do Pará (uFPA) Fernando Augusto Ramos Pontes - universidade Federal do Pará (uFPA)

Introdução e temas transversaIs

avaliação de políticas públicas: ReFleXÕes acadêmicas sobRe o desenvolvimento social e o combate à Fome

PROGRAMA BOLSA FAMÍLIA: UMA ANÁLISE DOS ASPECTOS SOCIODEMOGRÁFICOS E das Rotinas de cRianças nos conteXtos URBANO E RIBEIRINHO AMAZÔNICO


INTRODUÇÃO Os estudos sobre rotinas permitem identificar o modo como crianças e jovens de diferentes contextos utilizam seu tempo avaliando tanto as atividades quanto os ambientes e as companhias. A análise do uso do tempo mostra-se capaz de revelar carências, dificuldades, assim como oportunidades de desenvolvimento e socialização (HUSTON; WRIGHT; MARQUIS; GREEN,1999; LARSON; VERMA, 1999). Cada atividade realizada em momentos específicos de tempo apresenta padrões caracteristicamente distinguíveis de comportamento, em que o participante se engaja por meio de regras, roteiro, papéis e objetivos em associação com diferentes experiências emocionais e motivacionais (SIMIONATO-TOZO; BIASOLI-ALVES, 1998). Exemplos de categorias fundamentais de atividade são: o trabalho doméstico, as tarefas escolares e o brincar (SILVA; PONTES; SANTOS; MALUSCHKE; MENDES; REIS; SILVA, 2010). Os estudos sobre orçamento de tempo de crianças têm sido realizados principalmente em países desenvolvidos, como Estados Unidos e alguns países europeus. No Brasil, tais análises giram em torno das diferenças entre classes sociais. Carvalho e Machado (2006) em ampla e aprofundada pesquisa, compararam o uso do tempo de crianças das classes popular e média alta a partir de estudantes de escola pública e particular de Porto Alegre – RS, mapeando as atividades realizadas pelas crianças quando não estão na sala de aula, traçando assim comparações quanto ao gênero (entre meninos e meninas) e quanto aos diferentes grupos sociais (classe popular e classe média alta). As mesmas autoras ressaltaram o gênero como sendo “um dispositivo simbólico e categórico, criado culturalmente, transformado historicamente e sustentado socialmente, que interfere diretamente nos usos do tempo das crianças e na organização interna das famílias” (CARVALHO & MACHADO, 2006, pp.72). E sendo assim, considera-se gênero como elemento importante nesta análise, somando-se a essa o contexto cultural no qual a criança está inserida. A diferença de gênero tende a ser maior na adolescência e particularmente entre as famílias pobres, já que em muitos lugares, os pais valorizam o trabalho doméstico das meninas e preocupam-se em investir mais nos meninos (CARVALHO & MACHADO, 2006). Em estudos sobre populações ribeirinhas amazônicas (SILVA & cols., 2010) o gênero é um fator que demarca quais são as atividades desenvolvidas por cada membro familiar e nesse sentido, “as mulheres são responsáveis pelos cuidados domésticos e atividades executáveis dentro da casa, à medida que o homem trabalha e realiza suas ocupações nos espaços exteriores” (SILVA & cols., 2010, p. 348). Associado ao gênero, tem-se o tempo destinado à escolaridade que na maioria das informações sobre as atividades, agrega dados sobre quem está ou não está frequentando a escola. Diversi, Filho e Morelli (1999) relataram que em comunidades pobres no Brasil, o dia escolar se resume em uma hora e meia, isso para que as escolas possam acomodar de 4 a 5 grupos de estudantes por dia. Outro dado de pesquisa demonstra que em muitas populações em transição, os garotos frequentam mais a escola do que as garotas (LARSON; VERMA, 1999).

95 PROGRAMA BOLSA FAMÍLIA: UMA ANÁLISE DOS ASPECTOS SOCIODEMOGRÁFICOS E DAS ROTINAS DE CRIANÇAS NOS CONTEXTOS URBANO E RIBEIRINHO AMAZÔNICO


Diferenças sobre as rotinas de crianças entre populações (industrializadas ou não, per capita) podem ser medidas a partir da quantidade de tempo gasto com tarefas diárias, como as escolares. As tarefas escolares são tidas como práticas culturais que ressaltam as relações da família com a escola (CARVALHO, 2004). Esse tipo de atividade é mais comum, no entanto, em contextos industrializados e acentuadamente mais frequentes, no caso brasileiro, em famílias que têm filhos em colégios particulares, onde são reconhecidas por pais e professores como ocupação adequada às crianças por se apresentar como um componente importante do processo ensino- aprendizagem (CARVALHO, 2004). Não apenas as tarefas escolares ensinam e direcionam a aquisição de habilidades complexas para uma criança, mas o brincar e todas as atividades associadas a essa importante categoria se apresenta como um meio pelo qual uma criança aprende e interage com o mundo real, assim como com o universo cultural/simbólico no qual está inserida (REIS, 2007). A brincadeira representa um fator de grande importância no processo de desenvolvimento e de socialização da criança, proporcionando-lhe novas descobertas a cada momento, refletindo assim, o contexto no qual está inserida. Pesquisas apontam, no entanto, que a diminuição do espaço físico e temporal destinado ao jogo, provocado pelo crescimento da indústria de brinquedos, pela influência da televisão e de toda mídia eletrônica, se apresentam como elementos indicadores de preocupações com a atividade lúdica (NETO, 1995). Neto (1995) destaca inclusive que as alterações ocorridas na estrutura social e econômica das sociedades, devidas ao processo de modernização e inovação tecnológica, geraram transformações nos hábitos cotidianos e na sua relação com os fatores ecológicos. Volpato (1999) afirma que as questões de tempo e de espaço para o jogo, a brincadeira e o uso do próprio brinquedo é um problema essencial

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presentes em contextos ecológicos diferenciados e com maior ou menor renda

das sociedades contemporâneas ou pós-industriais, entendendo que o uso do espaço, objetos de jogo e o tempo disponível para tal devam ser reconsiderados de acordo com as mudanças e razões de mobilidade de cada população, seja no meio urbano, nas periferias ou nas zonas rurais. Numa leitura ecológica, aquilo que a criança faz, os papéis desempenhados pelas pessoas ao seu redor e as relações marcadas pelas trocas afetivas, estruturam seus microssistemas experenciados (BRONFENBRENNER, 1996). Tais microssistemas apontam de maneira indissociável para as características de ordem microssistêmica desses ambientes, ou seja, a composição familiar, características dos familiares, contextos que influenciam suas rotinas (escola, vizinhança, trabalho dos pais dentre outros) e os aspectos de ordem macrossistêmica que se refere à educação, pobreza, violência, oferta de trabalho, renda familiar e políticas públicas que visam garantir os direitos à alimentação, saúde, educação, moradia e trabalho aos desfavorecidos economicamente. Sobre o microssistema familiar, muito tem sido considerado pelas ciências sociais e pela psicologia. Sabe-se que esse sistema vem sofrendo transformações importantes ao longo dos anos, no entanto, apresenta ainda uma rígida divisão sexual dos papéis e atribuições a partir do isolamento da mulher no espaço doméstico-familiar e a socialização do trabalho dos homens. Nesse sentido, as mulheres


passam ingressar na produção social, mas continuam responsáveis pela esfera doméstica (LAVINAS, 1996; SANCHES, 2001). Diante das possíveis configurações familiares, ganham destaque as monoparentais femininas. Tal fenômeno cresce principalmente entre as famílias mais pobres e está relacionado à menor capacidade de ganho das mulheres, provocada por diversos fatores cujo principal vetor é a condição de gênero articulado à classe e etnia (BUTTO, 1998; CARLOTO, 2005; LAVINAS, 1996). Segundo dados do Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) (1990) metade das mulheres que trabalham está no setor informal, destituída de direitos previdenciários. Elas trabalham majoritariamente em tempo parcial, contra apenas 15,5% dos homens. Dentre os trabalhadores que desenvolvem atividades em seu próprio domicílio, 82,2% são mulheres, indicando que as oportunidades de multiplicar suas atividades são restritas à possibilidade de compatibilização entre os limites do espaço e as atividades domésticas (PNAD, 1990). Segundo Sanches (2001), em pesquisa desenvolvida em regiões metropolitanas, os lares mantidos por mulheres possuem renda familiar inferior aos lares onde os homens são os principais contribuidores. Para a autora, nas famílias mantidas por mulheres, encontram-se as maiores taxas de desemprego. Segundo dados do Censo Demográfico de 2000, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), aproximadamente 25% das famílias brasileiras são lideradas por mulheres e esta não é apenas mais uma forma alternativa de família dentre tantas outras, já que a monoparentalidade pode ser uma dificuldade a mais que sobrecarrega, em geral, a figura feminina (YUNES, GARCIA & ALBUQUERQUE, 2007). Para as autoras, isso sugere que as mulheres de classes de baixa renda e no papel de provedoras enfrentam uma somatória de problemas e mudanças que transcendem a questão da pobreza em si, sendo de extrema importância a manutenção de políticas públicas que visam diminuir os efeitos da pobreza sobre suas famílias. Em relação às políticas públicas de ordem macrossistêmica, ganha destaque no caso brasileiro o Programa Bolsa Família. Este programa surgiu a partir do Fome Zero com a expansão recente de programas de transferência de renda direta com condicionalidade focalizado na população em situação de pobreza e de pobreza extrema, contribuindo para uma ampla redistribuição de renda entre as famílias e atuando diretamente no rendimento familiar. Para as famílias com rendimento familiar per capita de até ¼ de salário mínimo, os rendimentos de outras fontes (como o recebimento do Bolsa Família) representavam 28,0%, em 2009, do total da renda familiar, ao passo que, em 1999, essa participação era de apenas 4,4% (IBGE, 2010). Diante deste cenário, reconhece-se a importância de equipes de pesquisas brasileiras nas mais diversas áreas do conhecimento em participarem de trabalhos que busquem maior entendimento sobre os impactos dos programas que visam à redução da pobreza na vida da população. Este desafio exige técnicas e metodologias adequadas e refletem a parceria entre ciência e políticas públicas. Não é de hoje que o conhecimento científico e as políticas públicas buscam de maneira integrada respostas aos principais problemas socioeconômicos que im-

97 PROGRAMA BOLSA FAMÍLIA: UMA ANÁLISE DOS ASPECTOS SOCIODEMOGRÁFICOS E DAS ROTINAS DE CRIANÇAS NOS CONTEXTOS URBANO E RIBEIRINHO AMAZÔNICO


pactam de forma negativa a promoção do desenvolvimento humano. Dentre os produções que desde o final da década de 70 vem auxiliando na geração de métodos sensíveis à relação entre pessoas e instituições presentes nos contextos dos quais fazem parte (BRONFENBRENNER, 2011). Bronfenbrenner (1979/1996) em sua obra destaca a importância das políticas públicas não apenas aos sujeitos em desenvolvimento, mas também aos pesquisadores uma vez que serão tais políticas que apontarão os caminhos orientadores de suas questões. E desse modo, pesquisadores de áreas diferenciadas buscam construir procedimentos que tornem as ações governamentais mais eficazes nos seus propósitos desenvolvimentistas. Dos programas governamentais das últimas décadas no Brasil tem se destacado, devido sua abrangência, o PBF, instituído em 2004 pela Lei 10.836, de 09 de janeiro de 2004, e regulamentado pelo Decreto nº 5.209/04, de 17 de Setembro de 2004. Foi organizado a partir da aglutinação de outros programas sociais como o Bolsa Escola vinculado ao Ministério da Educação; o Auxilio Gás do Ministério de Minas e Energia; e o Cartão Alimentação do Ministério da Saúde. O PBF, portanto, surgiu como o programa que propõe uma ação inovadora de redução da pobreza ao longo da história brasileira, tendo como meta, além da redução da pobreza econômica, promover a permanência da criança na escola e o acompanhamento sistemático na saúde. O PBF se apresenta como um programa de transferência direta de renda com condicionalidades. Além de cumprir o critério de viver em condição de pobreza, a família contemplada pelo programa deve garantir a frequência escolar mínima de 85% para crianças entre 6 e 15 anos e de 75% para adolescentes entre 16 e 17 anos. Somada a essa condicionalidade, o PBF exige ainda que as famílias acompanhem o calendário vacinal e do crescimento e desenvolvimento das crianças menores de 7

Introdução e Temas transversais

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teóricos interessados por esta relação, ganha destaque Ürie Bronfenbrenner, com

anos e por fim, realize o pré-natal das gestantes e acompanhamento das nutrizes na faixa etária de 14 a 44 anos. Nesse sentido, em longo prazo, espera-se que estas famílias consigam romper com o ciclo de pobreza que se mantém por gerações. A transferência de renda promove o alívio imediato da pobreza. As condicionalidades reforçam o acesso a direitos sociais básicos nas áreas de educação, saúde e assistência social. A gestão do PBF é descentralizada e compartilhada por União, estados, Distrito Federal e municípios. Os três entes federados trabalham em conjunto para aperfeiçoar, ampliar e fiscalizar a execução do Programa. A lista de beneficiários é pública e pode ser acessada por qualquer cidadão. Diante da abrangência do Programa e tendo em vista sua importância para as rotinas familiares frente às condicionalidades estabelecidas, o presente trabalho teve por objetivo principal descrever o orçamento de tempo de crianças atendidas pelo PBF em contextos empobrecidos economicamente e distintos em suas ecologias: a periferia urbana da capital do Pará e a região ribeirinha amazônica (PA). O foco foi compreender a distribuição das atividades diárias das crianças atendidas pelo Programa em tais contextos, pois se acredita que o modo como estas crianças usam seu tempo pode oferecer elementos indicadores de seu desenvolvimento ao longo do tempo.


Entende-se que a caracterização dos contextos aliados à rotina das crianças permitiu verificar: 1) o uso que as crianças fazem de seu tempo, 2) a diferença de gênero no uso do tempo e 3) as diferenças do uso desse tempo em função das características das populações.

MÉTODO Participantes Participaram deste estudo 60 crianças (Participantes-Alvo), sendo 30 pertencentes à população urbana (15 meninos e 15 meninas) e 30 pertencentes à Ilha do Combu, região ribeirinha amazônica (16 meninas e 14 meninos).

Critérios de inclusão A escolha das famílias se deu pelos seguintes critérios: as crianças deveriam estar cursando entre a 1ª e a 4ª série do ensino fundamental; ser aluno (a) matriculado (a) regularmente nas escolas municipais escolhidas e ser beneficiário do PBF.

Ambiente Contexto urbano: periferia de Belém A escolha pela unidade pedagógica, localizada no bairro do Condor, levou em consideração a facilidade de acesso, assim como a parceria firmada com as instâncias educativas referentes às coordenadorias locais e Secretaria Municipal de Ensino. Esse contexto apresentou características dos bairros periféricos em que as casas e a própria escola são construções em alvenaria e/ou madeira, marcados pelo empobrecimento local e carente de alguns serviços eficientes, como exemplo, a segurança. No entanto, possuía infraestrutura básica em relação ao saneamento ambiental como coleta regular de lixo e água encanada. A escola selecionada foi uma escola municipal de ensino infantil e fundamental, pioneira no bairro (inaugurada em 1951) e sede da escola ribeirinha anexa. Possui 10 salas de aula, um laboratório de informática, quadra esportiva, local com mesas e cadeiras coberto onde as crianças aguardam seus pais e uma biblioteca. Funciona em três turnos: uma turma de educação infantil e as demais de ensino fundamental organizados em ciclos de formação – C1 (3 anos) e C2 (2 anos). A coordenadoria não dispunha de informações referentes ao número de crianças que recebiam o benefício do PBF.

Contexto ribeirinho amazônico Realizou-se a pesquisa em uma comunidade localizada na Ilha do Combu, que dista aproximadamente 15 minutos da capital com acesso exclusivo por via fluvial, a ilha é considerada como área de proteção ambiental, localizada à margem esquer-

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da do rio Guamá, com extensão de 15 Km². A comunidade selecionada encontracaracterizada pelo peculiar estuário amazônico com fauna e flora diversificadas, típicas da região. As moradias são de madeira, cobertas com telhas de barro ou amianto, construídas em palafitas e distante, aproximadamente 30 metros umas das outras. A energia elétrica antes de julho de 2011 não existia. Não há tratamento de água, sendo que a água potável é obtida em uma torneira pública, em Belém, e transportada em baldes e embalagens plásticas até a comunidade. Em termos de infraestrutura, a comunidade não possui espaços planejados para o lazer, sendo assim, as crianças participam de todas as atividades presentes na comunidade, juntamente com seus pais e demais familiares. A escola pertencente à comunidade está localizada no igarapé Piriquitaquara, caracterizada pelo estilo amazônico ribeirinho, construída em madeira sobre palafitas. Composta por duas salas de aula, pátio, copa, banheiros e sala de coordenação, além de uma área na parte externa, disponível para recreação quando o nível do rio encontra-se baixo. Possui salas multisseriadas, sendo no período matutino a educação infantil e o ciclo 1 e à tarde, o ciclo 2 que abrange crianças de 6 a 10 anos de idade. Durante as reuniões com a coordenação, os pesquisadores puderam conhecer a rotina da escola e adquirir uma lista com os nomes das crianças, obtendo ainda a informação de que todas recebiam o PBF.

Procedimentos adotados na coleta dos dados Inserção da equipe na escola da periferia urbana

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-se às margens dos rios Piriquitaquara, Furo da Paciência e Furo de São Bendito,

Após a autorização da coordenação escolar, a equipe acordou com a escola os horários de coleta, que ocorreram no intervalo entre os horários das aulas, nos turnos da manhã, intermediário e tarde. As abordagens aos responsáveis aconteceram no pátio da escola, no momento em que estes buscavam ou deixavam os filhos. O período de coleta correspondeu os meses entre abril e novembro de 2011.

Inserção da equipe no contexto ribeirinho amazônico Primeiramente foram realizados contatos com a associação de moradores e a escola, através dos quais se obteve uma lista com os nomes das crianças participantes. A unidade pedagógica da ilha dispõe de serviço de condução fluvial das crianças e jovens que frequentam tanto a própria unidade quanto escolas de ensino fundamental e médio de Belém. Por meio de um ofício, foi autorizada a viagem da equipe de pesquisa junto aos dois barqueiros que percorrem as residências, levando e trazendo as crianças da escola. Nesta oportunidade, foi possível a confecção de um mapa dos igarapés e furos que compõem a ilha, onde foram identificadas as casas dos participantes da pesquisa. A coleta dos dados ocorreu durante as visitas, respeitando a disponibilidade dos moradores, no período entre outubro de 2010 e abril de 2011.


Considerações éticas A fim de resguardar os direitos dos participantes foi utilizado um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), em que se esclarecia sobre a pesquisa fornecendo o contato dos membros da equipe, caso houvesse necessidade de maiores orientações. Submeteu-se a aprovação do TCLE (Desenvolvido pelo LED-Laboratório de Ecologia de Desenvolvimento) e da pesquisa pelo Comitê de Ética da Universidade Federal do Pará, aprovado sob o número do protocolo (CAEE – 0146.0.073.000-11).

Sobre os instrumentos Inventário Sociodemográfico (ISD) Utilizou-se inventário elaborado pelo grupo de pesquisa LEDH (que o utiliza desde 2006), no entanto, mudanças e inclusões de novos itens foram realizadas tendo em vista o objetivo de investigar especificidades do PBF. O instrumento apresenta os seguintes itens: identificação (nome, idade, gênero, parentesco, estado civil, cidade de origem, número de uniões e ano da atual união); dados sobre o benefício (titular do cartão, como conseguiu o cadastro, quanto tempo demorou para receber, a quanto tempo é beneficiário do Programa, quem vai ao banco sacar o benefício, valor do benefício e como gastou esse valor no mês anterior); orçamento familiar (quantos e quais membros contribuem para o orçamento; responsável pelo controle do dinheiro e número de famílias que sobrevivem do orçamento); caracterização do domicílio (se a moradia é própria, tipo de construção, número de cômodos, equipamentos e móveis, energia elétrica, abastecimento e tratamento da água, destino do esgoto e do lixo familiar).

Inventário de Rotinas (IR) O inventário de rotinas utilizado vem sendo aperfeiçoado pelo LEDH, sua aplicação tem permitido descrever o modo de vida das populações ribeirinhas (SILVA & cols., 2010). As entrevistas foram realizadas individualmente, solicitando ao entrevistado que descrevesse a sequência de atividades típicas desenvolvidas, a companhia e o local durante um dia da semana (segunda a sexta). O instrumento foi apresentado na forma de tabela com a disposição gráfica da divisão de um dia a partir das grandes categorias: tempo, atividade e companhia (anexo 2). A categoria tempo abarcou a representação de todos os turnos: madrugada, manhã, tarde e noite, com seis horas cada um, sendo cada hora dividida em quatro quadrantes menores que representam 15 minutos da hora referida, totalizando 24 horas de registro. Os quadrantes eram preenchidos pelo aplicador seguindo a ordem: um, dois, três e quatro, no sentido horário. As categorias relacionadas às atividades e companhias foram geradas a priori, tendo em vista a experiência acumulada pelo grupo com pesquisa sobre rotinas com população ribeirinha amazônica (SILVA e cols.,2010). A categoria atividade se subdividiu em subcategorias indicadas a partir de siglas, representando as atividades

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realizadas pelas crianças tais como: DA-dormir; H-higiene pessoal; A-alimentação; DC-dever de casa; AP-atividades programadas; C0-conversar; L-leitura, FC-festa/ comemoração; ER-evento religioso e outros. Para orientação dos aplicadores disponibilizou-se uma legenda localizada ao final da folha de aplicação. Além das subcategorias referentes às atividades, o instrumento contemplou ainda o registro das companhias, com siglas para pai ou mãe, pais, irmãos, toda a família, avós, parentes próximos, amigos e sozinho(a) (anexo 2).

Procedimento de coleta e análise dos dados A aplicação dos dois instrumentos se deu por meio de entrevistas com os pais ou responsáveis, individualmente, solicitando-se ao entrevistado que descrevesse a sequência de atividades desenvolvidas, a companhia e o local onde eram realizadas tais ações durante um dia da semana (segunda a sexta). Solicitava-se, a fim de padronizar as respostas, que relatassem sobre o dia anterior caso fosse um dia da semana, do contrário, a sexta-feira. Os entrevistadores participaram de um treinamento prévio e as entrevistas ocorriam sempre na presença de dois desses, sendo um mais experiente (estudante da pós-graduação) que conduzia a entrevista e o outro que realizava o preenchimento dos protocolos (estudante da graduação). Os dados obtidos pelos instrumentos foram dispostos em planilhas no programa Excell, sendo os dados filtrados e transformados em planilhas dinâmicas de maneira que pudessem gerar dados por meio de estatística descritiva, utilizando a técnica de descrição tabular e paramétrica.

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D-deslocamento; E-escola, B-brincar; TV-televisão, R-rádio; TD-tarefa doméstica;

As análises partiram primeiramente das informações obtidas a partir do ISD, considerando os aspectos estruturais (organização das famílias e escolaridade) e aspectos financeiros (renda geral e benefício- PBF), subdivididos em contextos urbano e ribeirinho amazônico, a fim de comparação. Para este trabalho não foram utilizadas todas as informações contidas no inventário, selecionando-se as aquelas que segundo a equipe estariam diretamente relacionadas às análises sobre rotinas. As demais compõem um banco de dados para trabalhos futuros a serem realizados pelo grupo de pesquisa - LEDH. Os dados de rotina foram agrupados conforme os contextos a partir das atividades executadas pelas crianças urbanas e ribeirinhas em um dia da semana. Organizaram-se os dados conforme a variável gênero (feminino e masculino) e companhia (sozinho, mãe, pai, avô/avó, irmãos, parentes próximos e amigos). Considerou-se no ambiente escolar os amigos como as principais companhias. Os resultados se apresentam na forma de porcentagem para melhor compreensão, o cálculo das porcentagens correspondentes a cada categoria se deu pela soma dos minutos em que a criança permaneceu em uma determinada atividade, tendo por base a soma dos minutos de um dia, ou seja, 1440 minutos (24 horas). Ressalta-se o fato de que as porcentagens têm abrangência no limite desse estudo, sem significância estatística.


Resultados e discussão Estrutura familiar Entrevistou-se 26 famílias no contexto urbano e 24 na comunidade do Combu. As famílias urbanas eram compostas por no mínimo 2 e no máximo 10 pessoas, quantidade não equivalente ao número de filhos, dada a presença na mesma residência de parentes como avós, tios, primos, sobrinha, cunhada e padrasto. Em relação às estruturas familiares encontradas, no contexto urbano, 50% apresentavam estrutura nuclear, 38% eram monoparentais femininas e em 30% havia a presença de tios e avós, principalmente quando se tinha mais de um filho, 23% dos casos. Esses achados refletem o número cada vez maior de famílias monoparentais femininas, o que se apresenta como preocupante, já que os dados estatísticos oficiais do IBGE (2010) demonstram que são as mais pobres. A situação de pobreza aliada ao arranjo familiar monoparental feminino favorece a presença de fatores de risco ao desenvolvimento das crianças, uma vez que as mães acumulam atividades do trabalho e cuidados aos filhos, necessitando de suporte familiar e social (SANCHES, 2001; COLE & COLE, 2003; YUNES, GARCIA & ALBUQUERQUE, 2007). Na comunidade ribeirinha, a quantidade de parentes em uma mesma residência variou entre três e 13 pessoas, sendo identificados além do núcleo familiar, parentes como avós, tios e primos. Nesse contexto, ressalta-se o fato de que 75% das famílias apresentavam a estrutura nuclear, sendo a maioria numerosa com três ou mais filhos (88%), o que se mostra de acordo com a estratégia de sobrevivência desenvolvida pelos moradores em manterem-se próximos em famílias nucleares e numerosas (SILVA, 2006).

Escolaridade dos pais No contexto urbano houve um número maior de pais nos ensino fundamental e médio, principalmente entre as mulheres. Registrou-se quatro pais e seis mães com ensino fundamental incompleto e com o fundamental completo três pais e três mães. Dentre os que chegaram ao ensino médio, quatro pais e oito mães e três pais e nove mães não concluíram. No contexto ribeirinho amazônico, os moradores tendem a abandonar a escola durante o ensino fundamental, já que na ilha, o ensino é oferecido até a 4ª série. Nesse sentido, 16 pais e 14 mães apresentaram ensino fundamental incompleto, quatro mães e um pai com fundamental completo, cinco mães e um pai com ensino médio incompleto e um pai analfabeto.

Aspectos financeiros O número expressivo de pessoas compartilhando um mesmo domicílio pode influenciar na qualidade de vida destas, já que a renda reunida passa a ser dividida em um orçamento comum a todos, satisfazendo ou não as necessidades de cada membro. Em ambos os contextos, as famílias viviam em situação de forte empobrecimento e relataram ganhos inferiores ao salário mínimo (R$ 545,00). Os valo-

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res declarados pelos participantes incluíram o próprio benefício, aposentadorias e

No contexto urbano, 46% das famílias investigadas relataram ganhos que apontaram renda per capita de até ¼ do salário mínimo; 24% relataram viver com renda de até ½ salário mínimo; 15% em torno de um salário e 15% não responderam. No contexto ribeirinho amazônico 71% das famílias sobreviviam com renda de até ¼ do salário mínimo; 21% com renda de até ½ salário mínimo e 8% não responderam. No que diz respeito ao benefício do PBF, as famílias relataram receber entre R$ 60,00 e R$ 200,00. o gráfico 1 demonstra a porcentagem de famílias que recebiam valores correspondentes aos seguintes intervalos: entre R$ 60,00 a 100,00 e entre R$101,00 a 200,00.

Gráfico 1 - Intervalos de valor do benefício em reais nos contextos urbano e ribeirinho (%)

Fonte: Elaboração LEDH.

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os ganhos formais e informais.

o valor em reais referente ao PBF recebido pelas famílias urbanas foi superior a R$ 101,00 em 81% dos casos. Para 19% dos beneficiários, o valor pago pelo governo variou entre R$ 60,00 e R$100,00. Para os ribeirinhos, os intervalos adotados beneficiavam 50% das famílias respectivamente. No contexto urbano, 50% das famílias que tinham dois filhos recebiam valores referentes ao intervalo de R$ 101,00 a 200,00. Nesse mesmo intervalo de valores, foram encontradas 23% de famílias com três filhos e 8% das famílias com um filho. Em relação ao intervalo com menores valores pagos (R$ 60,00 a R$100,00) surgiram 15% das famílias com um filho, no entanto, em 4% dos casos foram encontradas famílias que apresentavam três filhos. o que demonstra o não cadastramento de todos os filhos. o mesmo ocorreu no contexto ribeirinho em que 4% das famílias com dois filhos e 8% das famílias com três filhos recebiam os valores menores. As demais famílias ribeirinhas apresentaram recebimentos com valores menores para famílias com um filho e maiores com famílias com dois ou mais filhos. No entanto, não apenas o número de filhos determina a quantia recebida, dependendo também da renda familiar per capita, o número e a idade dos filhos.


Sabe-se que o controle da renda perpassa pela estrutura familiar, e nesse sentido, no contexto urbano, a mãe surgiu como a principal figura no controle dos gastos, já que em 38% dos casos (famílias monoparentais femininas) ela era a única ou a principal responsável pelos filhos. Diante desse cenário, surgem como apoios importantes, avós e tios que passam a dividir os cuidados com as crianças, o convívio e até mesmo o domicílio. Fato que em parte explica o índice de 35% de parentes assumindo o controle da renda familiar. Em relação às famílias ribeirinhas, observa-se o controle compartilhado da renda entre os pais, aspecto que condiz com a estrutura nuclear apresentada em 75% das famílias. Aliado aos dados de quantia e controle dos gastos houve a necessidade de se reconhecer o local em que as famílias receberam informações sobre o cadastro do benefício PBF. Em 69% dos casos relacionados ao contexto urbano, as famílias relataram que adquiriram o cadastro através dos Centros de Referência de Assistência Social (CRAS), 11% por meio dos postos de saúde, em 8% dos casos a própria escola informou; 4% a prefeitura e 8% outros locais. No contexto ribeirinho o CRAS não surgiu como o principal meio de se conseguir informação sobre o cadastro, sendo citado em apenas 4% dos casos. Chama a atenção o número de entrevistados que não deram respostas (29%), somado a outros locais (17%). Os locais que somados atingem 50% dos casos foram a escola e o posto de saúde. Não apenas o local em que as famílias foram informadas sobre o cadastramento, mas o tempo de espera até o recebimento apresenta-se como importante informação para compreensão da dinâmica do Programa. No contexto urbano, pouco menos da metade das famílias entrevistadas (46%) esperaram até dois anos. De dois a quatro anos foram encontradas 27% das famílias, no entanto, no intervalo de 4 a 8 anos de espera foram encontradas 19% das famílias. No contexto ribeirinho, a porcentagem de famílias que esperaram até 2 anos cai para 29%, de 2 a 4 anos obteve-se 21% e de 4 a 8 anos 37%. Evidencia-se desse modo, a dificuldade no recebimento do benefício por tais famílias e sendo assim, os resultados apontam para a necessidade de maior agilidade ao repasse dos benefícios para as famílias cadastradas. Por fim, foi perguntado às famílias como foi gasto o valor referente ao benefício no mês anterior à coleta, conforme gráfico 2. As respostas dadas indicam necessidades diferenciadas entre os contextos; para as famílias da periferia urbana, o principal destino do benefício foi o auxílio no pagamento das contas domésticas como luz, aluguel, compras no mercado dentre outras, somada à categoria alimento que foi significativamente citada. Na Ilha do Combu, no período em que foi realizada esta pesquisa, não havia energia elétrica disponível, e em comparação com o contexto urbano, os moradores da Ilha também não pagavam aluguel, IPTU, gás e serviço de água encanada. Utilizavam os recursos da floresta como água, madeira, peixes, camarões e frutos. Nesse sentido, as categorias mais citadas foram aquelas relacionadas principalmente com vestuário e material escolar. A

categoria

vestuário,

material

escolar

e

alimento

(vestuário+material

escolar+alimento) se mostrou expressiva em ambos os contextos, com uma margem maior na porcentagem do contexto urbano, conforme gráfico 2.

105 PROGRAMA BOLSA FAMÍLIA: UMA ANÁLISE DOS ASPECTOS SOCIODEMOGRÁFICOS E DAS ROTINAS DE CRIANÇAS NOS CONTEXTOS URBANO E RIBEIRINHO AMAZÔNICO


Fonte: Elaboração LEDH.

os dados apresentados até então, auxiliam na descrição das famílias participantes, tendo em vista aspectos demográficos, escolares, habitacionais, sociais e aqueles relacionados ao recebimento do benefício. A seguir serão apresentados os dados coletados a partir do Inventário de Rotina em que se evidenciou a dinâmica das famílias participantes.

dados de Rotina Introdução e temas transversaIs

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Gráfico 2 - Como foi gasto o benefício no último mês nos dois contextos

atIvIdades reaLIzadas PeLas CrIanças durante a semana no ConteXto urBano As meninas, moradoras da periferia urbana de Belém apresentaram 43% de seu tempo ligado ao descanso, seguida por lazer (26,5%). Educação surgiu com 17,1%; alimentação com 5,7%; higiene 4%, deslocamento 2,4% e evento religioso 1%. Entre os meninos, as categorias com maiores porcentagens, foram descanso (45,4%) seguida por lazer (22%). Educação surgiu com 16,5%; alimentação com 6,6%; higiene 5%, deslocamento 2,99% e evento religioso 1,04%. A realização de tarefas domésticas não apareceu neste contexto (Gráfico 3).


Gráfico 3. Categorias de atividade realizadas por meninas e meninos no contexto urbano em um dia da semana (%) meninas

meninos

Fonte: Elaboração LED.

Pode-se concluir que as meninas passaram quase 70% do tempo em descanso e envolvidas com brincadeiras. Já os meninos passaram maior tempo em descanso, no entanto, o tempo para lazer foi menor e apresentaram pequeno decréscimo em atividades relacionadas à educação. A categoria educação foi subdividida em categorias menores, a saber: o tempo em que a criança permanece na escola; o tempo que gasta com dever de casa e leitura. Sendo assim, as meninas passaram 91,87% do tempo gasto com educação em atividades realizadas na escola, 6,5% em tarefas ligadas ao dever de casa e 1,63% do tempo em atividade de leitura. os meninos, habitantes da periferia urbana, gastaram 90,3% do tempo ligado à educação em atividades realizadas na escola e 9,7% com tarefas associadas ao dever de casa. Não foi citada atividade de leitura. outra categoria relevante para esta análise refere-se ao tempo dedicado ao lazer, que, para este trabalho, envolvia as seguintes atividades: brincadeiras diversas e jogos infantis, assistir Tv e/ou DvD, conversar, jogar vídeo game ou usar o computador. o tempo dedicado ao lazer representou mais de 20% para ambos os sexos, as crianças passaram a maior parte do tempo com brincadeiras em geral, sendo que as meninas brincavam durante 52,35% e os meninos, 49,21% do tempo; o tempo destinado a assistir televisão, no contexto urbano, também foi relevante para ambos os sexos 39,79% e 36,59% para meninas e meninos, respectivamente. Em associação ao orçamento do tempo gasto com educação pelas crianças beneficiadas, foi perguntado ainda se estas realizavam alguma atividade programada durante a semana. Ao avaliar tais atividades, citada pelos responsáveis, observou-se que no contexto urbano, a necessidade dos pais em auxiliar seus filhos nos estudos, gerou a opção pelo reforço escolar. Neste contexto, o exercício de algumas programações extracurriculares foi registrado em seis famílias: uma menina realizava aulas de balé e outra, aulas de reforço em casa; dois meninos praticavam futebol e natação, sendo que um desses frequentava aulas de violino, flauta e aulas de reforço; os outros dois realizavam aula de reforço, sendo que um também realizava aulas de música.

107 PRoGRAMA BoLSA FAMÍLIA: uMA ANÁLISE DoS ASPECToS SoCIoDEMoGRÁFICoS E DAS RoTINAS DE CRIANçAS NoS CoNTExToS uRBANo E RIBEIRINHo AMAzÔNICo


A categoria atividade programada mostrou-se significativa, principalmente entre ninos e meninas. os comportamentos de conversar e participar de algum evento festivo não apareceram neste contexto.

atIvIdades reaLIzadas PeLas CrIanças durante a semana no ConteXto rIBeIrInHo De maneira geral as crianças no contexto ribeirinho amazônico passam a maior parte de seu tempo, quando não estão dormindo ou descansando, em atividades ligadas ao lazer e em atividades na escola. o gráfico 3 apresenta a porcentagem equivalente aos minutos correspondentes às categorias: descanso, lazer, alimentação, higiene, tarefa doméstica, deslocamento, evento religioso e outros. As meninas descansam 40,40% do tempo, seguida por lazer com 22%, educação surgiu com 19,9%, alimentação 5,6%, higiene 4,4%, tarefa doméstica 3,6%, deslocamento 2,4%, evento religioso 0,6% e outros 0,3%. os meninos, entretanto, passaram 43% e 21% de seu tempo nas categorias descanso e lazer, respectivamente. Em relação à categoria educação, os meninos gastaram 16,6% do tempo. Na categoria tarefa doméstica, o percentual encontrado foi de 3,8%, os demais índices apresentados foram: 6,3% em alimentação, 4,8% com higiene, 3,3% em deslocamento, 0,7% em eventos religiosos e 0,4% com outras atividades (Gráfico 4).

Gráfico 4. Categorias de atividade realizadas por meninas e meninos no contexto ribeirinho em um dia da semana (%) meninas

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os meninos; o tempo destinado ao uso do computador e DvD foi similar para me-

meninos

Fonte: Elaboração LEDH.

os meninos descansam mais e passam menos tempo em atividades ligadas à categoria lazer e em atividades ligadas à categoria educação em comparação com as meninas, conforme gráfico 3. A análise das subcategorias estabelecidas para a educação ressalta os seguintes dados: no contexto ribeirinho amazônico as meninas gastaram 85,94% do tempo com educação em atividades na escola, 13,4% com dever de casa e 0,66% leitura. os meninos gastaram 97,3% do tempo ligado à educação com atividades realizadas na escola e 2,7% com dever de casa. A atividade leitura não foi citada.


Em relação ao tempo dedicado ao lazer, as brincadeiras diversas fizeram parte de 73,49% do tempo dos meninos e de 61,91% do tempo das meninas ribeirinhas. O tempo dedicado a TV apareceu como o segundo tipo de lazer mais comum neste contexto, sendo 33,72% do tempo das meninas e 25,44% do tempo dos meninos. O comportamento de conversar apareceu principalmente no repertório das meninas ribeirinhas (4,36%), em detrimento aos meninos que dedicaram 1,06% do seu tempo para tal atividade.

Companhia durante as atividades no contexto urbano As meninas do contexto urbano passavam 38,54% de seu tempo sozinhas, 16,04% com amigos, 12,78% com a mãe, 11,32% com irmãos, 7,22% mãe e irmãos, 6,81% parentes próximos e 4,10% com a família. Já os meninos passavam 34,4% de seu tempo sozinhos e suas principais companhias foram: irmã(s)(ãos) (22,4%), amigos (16,7%), mãe (9,9%), mãe e irmãos(ãs) 7%, parentes próximos 4,1%, família (3,7%) e 1,2% pai e mãe. As meninas passavam mais tempo sozinhas, em comparação com os meninos; amigos foi a segunda categoria mais citada que esteve relacionada ao tempo gasto no ambiente escolar. Fora da escola, a mãe se mostrou a principal companhia seguido por irmãos(ãs). A principal companhia dos meninos foram os (as) irmãos (ãs), seguido por amigos, e em terceiro, a mãe. Nesse sentido, o orçamento de tempo dos meninos quando comparado ao das meninas evidencia maior disposição de compartilhamento das atividades com outras crianças e jovens. Outro aspecto relevante destaca o pouco tempo compartilhado com o pai, bem abaixo da categoria parentes próximos tanto para meninas, como meninos. Esse dado mostra-se consonante a pesquisas que destacam que em poucas sociedades os homens cuidam de suas crianças no dia-a-dia, e assim, continuam sendo considerados, na sua maioria, pelos papéis que exercem fora do âmbito das interações familiares (LEWIS & DESSEN,1999).

Companhia durante as atividades no contexto ribeirinho No contexto ribeirinho, as meninas permaneceram sós em 49% de seu tempo, 16,7% com irmãos, amigos vêm em terceiro com 15,5% do tempo, parentes próximos 9,2%, 3,1% com o pai e a mãe e 2,2% a família. Os meninos passavam 38,9% de seu tempo a sós, 19,87% com irmãos (ãs), 17,04% com amigos, 11,46% parentes próximos, 7,59% mãe e 2,31% pai e mãe. Observou-se desse modo, que meninos e meninas ribeirinhas passavam a maior parte de seu tempo em companhia de outras crianças, principalmente irmãos. Esse dado condiz com trabalhos realizados em populações tradicionais ribeirinhas (BAIA-SILVA, 2006) que aponta a importância das relações estabelecidas entre os irmãos para o aprendizado e desenvolvimento das crianças. Segundo Silva e cols. (2010) os filhos constituem um subsistema separado, que realiza atividades particulares e passa grande parte do tempo em conjunto, o que é uma característica da socialização local.

109 PROGRAMA BOLSA FAMÍLIA: UMA ANÁLISE DOS ASPECTOS SOCIODEMOGRÁFICOS E DAS ROTINAS DE CRIANÇAS NOS CONTEXTOS URBANO E RIBEIRINHO AMAZÔNICO


CONCLUSÃO extrema pobreza em que se desenvolvem as famílias, e buscam romper o ciclo de pobreza e adoecimento das crianças a partir de medidas que impõem frequência mínima na escola e acompanhamento do calendário vacinal. Como política pública, acarreta em mudanças sistêmicas nas vidas dessas famílias, principalmente nas rotinas das crianças que passaram a frequentar assiduamente a escola. Porém, ainda apresenta desafios, principalmente em relação a contextos ecológicos distintos, como no caso do contexto ribeirinho amazônico, onde apesar das famílias receberem o benefício, essas ainda encontram-se distantes dos serviços médicos e educacionais presentes nos centros urbanos. Quanto às rotinas diárias das crianças beneficiárias, a pesquisa evidenciou elementos importantes para compreensão das estruturas e dinâmicas apresentadas. Primeiramente, os arranjos familiares que conduziram a diferentes organizações das rotinas das famílias: em ambos os contextos as famílias se mostraram numerosas, com parentes morando junto ao núcleo pais/filhos e no caso ribeirinho, destacou-se a presença de muitos irmãos. Tais arranjos mostraram-se ligados aos contextos dos quais participavam, ressaltando as estratégias adotadas pelas famílias na sobrevivência e no cuidado das crianças, em que se destacou o auxílio de avós, tios e irmãos mais velhos. Outros elementos relevantes à compreensão das rotinas das crianças dizem respeito ainda aos arranjos familiares (famílias nucleares, monoparentais masculina e feminina) e a escolaridade dos pais. No contexto urbano foram observadas famílias nucleares e um número significativo de famílias monoparentais femininas, número que corrobora com o IBGE (2010) que ressalta o crescente número de mães

Introdução e Temas transversais

avaliação de políticas públicas: REFLEXÕES acadêmicas sobre o Desenvolvimento Social e o Combate à Fome

As condicionalidades impostas pelo PBF visam em primeira instância amenizar a

assumindo sem a presença dos pais, os cuidados dos filhos, situação que requer suporte social e amparo de políticas públicas, como o PBF. Em relação à escolaridade, esta variou do ensino fundamental incompleto ao ensino médio completo, com maioria no ensino fundamental completo. No caso das famílias ribeirinhas amazônicas houve prevalência de famílias nucleares com muitos filhos. Isto se explica pelo fato de viverem em isolamento provocado pela água, e sendo assim, tais famílias tendem a se manterem unidas, aspecto que garante a vivência em meio à floresta. No entanto, esse isolamento dificulta o acesso à educação e desse modo, a maioria dos pais entrevistados relataram baixa escolaridade, sendo encontrado caso de analfabetismo e a maioria parou os estudos no ensino fundamental. A partir do panorama social apresentado, as rotinas infantis refletiram tanto as diferenças contextuais quanto semelhanças, já que ambos se apresentam como contextos empobrecidos. Em relação às categorias descanso e lazer, as crianças urbanas apresentaram maior tempo gasto, com destaque à atividade assistir TV. Em comparação às crianças ribeirinhas, houve uma significativa redução nas categorias descanso e lazer (que também foram as mais significativas) e surgiu a categoria tarefa doméstica que não fora citada no contexto urbano e mostrou-se ligada às rotinas das famílias na aquisição e preparo dos alimentos como a pesca,


limpar o peixe, coleta e preparo do açaí, lavar roupas no rio, caçar, limpar a casa, alimentar os irmãos mais novos, entre outras. Em relação à categoria educação, pôde-se observar que o acompanhamento da atividade escolar no domicílio pelos responsáveis ainda é um tempo praticamente inexistente na rotina diária em ambos os contextos. Isso reflete diretamente as possibilidades dos pais e/ou responsáveis acompanharem a realização das tarefas escolares e aponta inclusive para questão da baixa escolaridade. Muitas famílias ainda encontram-se despreparadas para esse acompanhamento, já que grande parte dos pais desconhecem os conteúdos apresentados nas escolas e não dispõe de tempo suficiente para o acompanhamento escolar dos filhos. Tais tendências ganham maior agravo em comunidades vivendo afastadas, pouco visíveis ao poder público, com famílias numerosas em que as crianças cuidam de seus irmãos e não apresentam estrutura doméstica que favoreça a aprendizagem escolar. Além dessas dificuldades, a análise das rotinas das crianças ribeirinhas demonstrou a pouca oferta de atividades programadas nesse contexto relacionadas à música, artes e esporte, além do reforço escolar que fora citado no contexto urbano apenas. As rotinas apresentadas, da maneira que estão estruturadas, oferecem pouco ao aprendizado escolar, situação que requer sintonia entre a família e a escola. No entanto, ao compartilharem pouco tempo e atividades com seus filhos, os pais deixam de promover laços importantes inclusive às adaptações no ambiente escolar que passa a ser visto com pouca motivação e distante daquilo que é realizado fora da escola. Evidencia-se desse modo a importância de ações que favoreçam a interlocução entre os membros familiares, tendo um olhar diferenciado às comunidades ribeirinhas amazônicas a partir de ações que reforcem, valorizem e adéquem serviços segundo as características contextuais, apresentando desse modo ferramentas para o rompimento do ciclo de pobreza. Diante dessa percepção social, e (ainda) com pesquisas preliminares, principalmente no contexto amazônico, ressalta-se a limitação desse trabalho que, apesar de ter sido executado no período de um ano, ainda necessita de continuidade, já que pouco se sabe sobre as rotinas das crianças que recebem PBF. Falta muito a ser feito para que se possam obter dados concretos e amplos sobre as atividades diárias em contextos distintos, o que não reduz a necessidade em estuda-los para que se possa garantir a efetividade dos direitos das crianças amazônicas. Ressalta-se inclusive que a pesquisa foi feita em uma pequena comunidade ribeirinha, existindo uma grande população disposta em dezenas de ilhas, vivendo às margens dos rios cuja rotina diária ainda é desconhecida e que, portanto, precisa ser investigada. As primeiras garantias para as mudanças desejáveis à garantia dos direitos à alimentação, saúde e educação já foram dadas a partir do PBF. No entanto, apesar das crianças beneficiadas apresentarem rotinas que contemple a frequência escolar,

111 PROGRAMA BOLSA FAMÍLIA: UMA ANÁLISE DOS ASPECTOS SOCIODEMOGRÁFICOS E DAS ROTINAS DE CRIANÇAS NOS CONTEXTOS URBANO E RIBEIRINHO AMAZÔNICO


ainda não é o bastante. As famílias precisam ser orientadas e apoiadas para que desse modo, possam redirecionar as tendências desenvolvimentais apresentadas. Para tanto, um passo possível aponta no sentido do reconhecimento da rotina das crianças e especificidades contextuais, pensando em futuras adaptações entre família-escola e inclusão escolar efetiva no processo educacional, caminho pelo qual se pode reduzir o avanço dos ciclos de pobreza e miséria social.

Introdução e Temas transversais

avaliação de políticas públicas: REFLEXÕES acadêmicas sobre o Desenvolvimento Social e o Combate à Fome

possam estruturar seus ambientes domésticos às atividades escolares para que,


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113 PROGRAMA BOLSA FAMÍLIA: UMA ANÁLISE DOS ASPECTOS SOCIODEMOGRÁFICOS E DAS ROTINAS DE CRIANÇAS NOS CONTEXTOS URBANO E RIBEIRINHO AMAZÔNICO


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Introdução e Temas transversais

avaliação de políticas públicas: REFLEXÕES acadêmicas sobre o Desenvolvimento Social e o Combate à Fome

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115 PROGRAMA BOLSA FAMÍLIA: UMA ANÁLISE DOS ASPECTOS SOCIODEMOGRÁFICOS E DAS ROTINAS DE CRIANÇAS NOS CONTEXTOS URBANO E RIBEIRINHO AMAZÔNICO


UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ PROGRAMA DE PÓS GRADUAÇÃO EM TEORIA E PESQUISA DO COMPORTAMENTO LABORATÓRIO DE ECOLOGIA DO DESENVOLVIMENTO

INVENTÁRIO BIOSÓCIODEMOGRÁFICO

I – DADOS GERAIS DA FAMÍLIA 1. Aplicador: _____________________________Data: ____/____/____ Família: nº. _____ ___________________________________________________________________________ 2. Questionário respondido por:

mãe

pai

responsável

3. Comunidade: _____________________________________________________________

II - COMPOSIÇÃO FAMILIAR NOME

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Anexo 1. Inventário Sociodemográfico

STATUS FAMILIAR

IDADE

ESTADO CIVIL

OCUPAÇÃO/ LOCAL

ESCOLARID. LOCAL

DOCUMENTAÇÃO* CN

CI

CPF

CTPS

TE

CR

*CN = Certidão de Nascimento / CI = Carteira de Identidade / CPF = Cadastro de Pessoa Física / CTPS = Carteira de Trabalho e Previdência Social / TE = Título de Eleitor / CR = Carteira de Reservista

Há quanto tempo você mora na comunidade? ___________________________________ ____________________________________________________________________________ Você tem mais algum parente que more na comunidade? Quem? ________________ ___________________________________________________________________________ ___________________________________________________________________________


___________________________________________________________________________ Quantas famílias moram na residência? _________________________________________ Cidade de origem:____________________________________________________________ Em que ano se casou na atual união:____________________________________________ Número de uniões: __________________________________________________________ Como você imagina que será a vida dos seus filhos daqui a dez anos? ______________ ___________________________________________________________________________ ___________________________________________________________________________ ___________________________________________________________________________ Por que você quer que seus filhos frequentem a escola? __________________________ ___________________________________________________________________________ ___________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________

III – CARACTERÍSTICAS DO DOMICÍLIO 1. MORADIA: Própria ( ) Alugada ( ) Cedida ( ) OUTRA ________________________ ___________________________________________________________________________ 2. TIPO DE CONSTRUÇÃO: Alvenaria ( ) Madeira ( ) Taipa/Barro ( ) Mista ( ) Material reaproveitado ( ) Outros___________________________________________ 4. Nº DE CÔMODOS: ________________________________________________ 5. Quais: ___________________________________________________________________________ ___________________________________________________________ ________________ 6. EQUIPAMENTOS E MÓVEIS: Geladeira ( )

Fogão (

) Televisão ( ) Rádio ( )

Cama ( )

Outros: _____________________________________________________________________ 7. ENERGIA ELÉTRICA: Relógio de controle próprio ( ) provisada (gato) ( )

Gerador particular (

)

Im-

Sem energia ( ) Relógio Comunitário ( ) Lamparina ( )

8. ABASTECIMENTO DE ÁGUA: Rede Pública (encanada) ( ) Poço ( ) Torneira Coletiva ( ) Barco de distribuição (

)

9. Recebe algum tipo de tratamento? S( ) N( ) 10. Qual?___________________________________________________________________ 11. DESTINO DO LIXO DOMICILIAR: Coleta ( )

Via Pública/ Corrente de água Natural

( ) Queimado ( ) Enterrado ( ) Outro________________________________________ 12. DESTINO DO ESGOTO DOMICILIAR: Rede Pública ( ) Céu aberto ( ) Fossa ( ) Outro _________________________________________________________________________ 13.

Quais

são

as

doenças

mais

frequentes

na

família?

____________________________________________________________________________

117 PROGRAMA BOLSA FAMÍLIA: UMA ANÁLISE DOS ASPECTOS SOCIODEMOGRÁFICOS E DAS ROTINAS DE CRIANÇAS NOS CONTEXTOS URBANO E RIBEIRINHO AMAZÔNICO


______________________________________________________________________

___________________________________________________________________________

IV – CARACTERÍSTICAS ECONÔMICAS 1. Renda Familiar Mensal: _____________________________________________________ 2. Quais os membros que contribuem para o orçamento familiar: __________________ ___________________________________________________________________________ 3. Quem controla o dinheiro da família: ________________________________________ ___________________________________________________________________________ 4. Beneficiária de algum programa de transferência de renda? S( ) N( ) 5. Qual(s)? _________________________________________________________________ 6. Há quanto tempo? _________________________________________________________ 7. Quem é o titular do cartão? _________________________________________________ ___________________________________________________________________________ 8. Quem vai ao banco receber o benefício? _____________________________________ ___________________________________________________________________________ 9. Qual o valor do benefício? ________________________________________________ 9. Referente a quantas crianças?_____________________________________________ 10. Como você gastou o benefício no mês passado? ______________________________

Introdução e Temas transversais

avaliação de políticas públicas: REFLEXÕES acadêmicas sobre o Desenvolvimento Social e o Combate à Fome

14. Quais são os remédios utilizados? __________________________________________

___________________________________________________________________________ 11. Como você conseguiu o cadastro? __________________________________________ ____________________________________________________________________________ 12. Quanto tempo demorou para você receber o benefício? (tempo entre o cadastro e o recebimento) ______________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ 13. Atualmente você recebe (recebeu) a visita de técnicos ou profissionais de saúde/ educação? __________________________________________________________________ Observações: __________________________________________________________________________ __________________________________________________________________________ ___________________________________________________________________________ ___________________________________________________________________________


Anexo 2. Protocolo de aplicação Inventário de Rotinas HORA

ATIVIDADE

DA H A D DC B TV R TD AP CO L

FC ER OUTRO

MADRUGADA 00h-01h 01h-02h

02h-03h

03h-04h

04h-05h 05h-06h MANHÃ 06h-07h

07h-08h

08h-09h

09h-10h

10h-11h

11h-12h

TARDE 12h-13h

13h-14h

14h-15h

15h-16h

16h-17h

17h-18h

NOITE 18h-19h

19h-20h

20h-21h

21h-22h

22h-23h

LEGENDAS dormir, descansar ou acordar

R

rádio/DVD

brincar

L

Leitura

atividades programadas

P

pai

S - sozinho

D

Deslocamento

PP - parentes próximos

TD

tarefas domésticas

H

higiene pessoal

FC

festa/comemoração

TV

televisão

AV

avó/avô

CO

Conversar

E

Escola

M - mãe

DC

dever de casa

AM - amigos

ER

evento religioso

A

I - irmãos

DA B AP

Alimentação

Atividades que a criança realiza normalmente, mas que não foram citadas:

119 PROGRAMA BOLSA FAMÍLIA: UMA ANÁLISE DOS ASPECTOS SOCIODEMOGRÁFICOS E DAS ROTINAS DE CRIANÇAS NOS CONTEXTOS URBANO E RIBEIRINHO AMAZÔNICO


Anexo 3. Termo de Consentimento Livre e Esclarecido

crianças atendidas pelo Programa Bolsa Família (PBF) A presente pesquisa pretende analisar as dimensões econômicas e sociais do Programa Bolsa Família (PBF) sobre o uso do tempo de crianças atendidas pelo referido programa. As informações recolhidas serão utilizadas apenas para os objetivos do estudo proposto, salvo em caso de participação em eventos acadêmicos. Afirmo que é praticamente nula a existência de riscos para os sujeitos envolvidos, seja de situação constrangedora ou de alteração do ambiente e do comportamento destes. Os benefícios desta pesquisa para o participante serão resultantes da análise que apontará sugestões para a problemática envolvida, no sentido de que possam efetivamente melhorar a qualidade do Programa Bolsa Família. Informo que apesar da possibilidade de risco nesta pesquisa ser quase inexistente, caso haja danos provocados comprovadamente pela pesquisa, os participantes serão amparados e/ ou reparados pela pesquisa. Ressalto que os sujeitos envolvidos nesta investigação são livres para participar e/ ou para retirar-se da pesquisa a qualquer momento, solicito apenas que seja avisada sua desistência. Pesquisadora responsável: Tatiana Afonso Endereço: Travessa Mariz e Barros, 2715, AP. 1301, Ed. Torre de Itaúna – Marco. Belém/ PA Fone: (91) 3032-9594 CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO Declaro que li as informações acima sobre a pesquisa e que me sinto perfeitamente

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Projeto de Pesquisa: Dinâmica de famílias ribeirinhas e urbanas: o uso do tempo de

esclarecido (a) sobre o conteúdo da mesma, assim como os seus riscos e benefícios. Declaro ainda que, por minha livre vontade, aceito participar desta pesquisa, bem como aceito a participação das crianças que se encontram sob minha responsabilidade.

Belém, _____ de ___________ de ______.

______________________________________________________________ Assinatura do participante da pesquisa


Anexo 4. Aprovação da Pesquisa pelo ComitÊ de Ética

121


Celso Antonio Favero Stella Rodrigues dos Santos

Introdução e temas transversaIs

avaliação de políticas públicas: ReFleXÕes acadêmicas sobRe o desenvolvimento social e o combate à Fome

O PROGRAMA BOLSA FAMÍLIA E AS RELAÇÕES DE GÊNERO E GERAÇÃO NA AGRICULTURA FAMILIAR do semiÁRido do noRdeste1

1

o ARTIGo é RESuLTADo DE PESQuISAS REALIzADAS CoM BASE No PRoJETo “A APRoPRIAção, o uSo E A

REPRESENTAção DAS PoLÍTICAS DE DESENvoLvIMENTo SoCIAL E CoMBATE À FoME PELoS AGRICuLToRES FAMILIARES Do SEMIÁRIDo NoRDESTINo E oS DESLoCAMENToS NAS ESTRuTuRAS E NAS DINâMICAS FAMILIARES”, CoM FINANCIAMENTo Do CNPQ, EDITAL MCT/CNPQ N. 036/2010. AS PESQuISAS FoRAM REALIzADAS PELo GRuPo DE PESQuISA TERRITÓRIoS, HEGEMoNIAS, PERIFERIAS E AuSÊNCIAS” CoM A CoNTRIBuIção SIGNIFICATIvA DoS SEGuINTES ESTuDANTES Do DCH1 DA uNEB (ToDoS BoLSISTAS ITI, Do CNPQ): ANA TERRA PAES MIRANDA DE oLIvEIRA, CARoLINE DuMAS oLIvEIRA, CARoLyNE CAETANo SANToS Do RoSÁRIo, IÊDA CARvALHo MARTINS, JoSé SILvANo S. RIoS JúNIoR, LARISSA ELISIA CoSTA DoS SANToS, LuANA FLoRA vEIGA SouTo, LuANNA MARTINS SANToS SouzA, MAIARA BATISTA DouRADo, PAuLA CoSTA REzENDE E THAMIRES DE JESuS SANToS.


INTRODUÇÃO Nas últimas décadas, o Semiárido do Nordeste do Brasil reapareceu no mapa como “fronteira” ou lugar onde se revelam, de modos mais plenos, os encontros/desencontros entre a humanização e a desumanização, o interno e o externo, o ordinário e o extraordinário (MARTINS, 2008, p. 9-10); é nesse Semiárido que o “homem comum” (MARTINS, 2008), “simples” (IANNI, 1968), “ordinário” (CERTEAU, 1994) e “sem qualidades” (MUSIL, 2006), na figura do agricultor familiar, ao mesmo tempo em que se acomoda se rebela e produz efeitos sobre o “homem de qualidade”, cuja expressão maior é, hoje, o Agente/Estado. Neste trabalho, considerando esse contexto, a intenção é fazer um mapa dos encontros/desencontros entre esses personagens e, essencialmente, dos modos como o agricultor familiar, apropriando-se e usando programas de políticas como o Programa Bolsa Família (PBF), que o transformou de agricultor em “beneficiário”, refaz as tramas do que constitui a sua vida ordinária, torna-se sujeito e produz a “Convivência com o Semiárido”2. Destituído dessa sua qualidade, o agricultor/ beneficiário retorna como agricultor, afeta o “homem de qualidades”, tornando-se para ele “um perigo” e provocando a sua reação (MUSIL, 2006, p. 86). O Estado, expressão do “homem de qualidades”, agente de transferência de dinheiros e “sistema de peritos” (GIDDENS, 1991), e os agricultores familiares, “beneficiários”, são, portanto, os sujeitos principais dessas tramas. É, pois, pelas portas do PBF e da “Convivência com o Semiárido” que, neste trabalho, se faz a aproximação com o agricultor familiar e, através dele, com o Estado. A “Convivência” constitui-se como uma fenda através da qual se encontram os agricultores familiares envolvidos na produção do chão onde cultivam a sua vida; a “Convivência” expressa, igualmente, as contradições entranhadas nas relações do agricultor com outros personagens nos processos de produção desse chão; mas, contraditoriamente, hoje, em meio às perturbações do novo tempo, tem-se a impressão que essa mesma “Convivência” tende a ser um “fio da meada” perdido. 2

Nas últimas décadas, a “Convivência com o Semiárido” tornou-se um lema ao redor do qual se

articulam atores e projetos acadêmicos, políticos, sociais, culturais e de produção de vida. No entanto, ainda atualmente, três outras leituras do Semiárido competem com esta. Na primeira, tradicional, a região emerge como uma espécie de caricatura, onde a dissimulação e a teatralização tomam o lugar da realidade, transformando-a num símbolo que é fonte de uma profusão de sentimentos, visões e compreensões, tais como medo, vergonha, espanto, intolerância, horror; essa visão é, ainda, fortemente vinculada à de exclusão social, lugar de carência e de ausência de dinâmicas socioeconômicas relevantes, inibindo a percepção de expressões como a revolta. Como reação das elites modernizantes contra essa visão que ela considera “negativa”, nas últimas décadas, produziu-se outra, como uma espécie de contraponto “positivo”, que abre o Semiárido para empreendimentos externos considerados portadores da modernidade, do bem contra o mal, da racionalidade contra a irracionalidade; nessa perspectiva, para o desenvolvimento da região, se requer uma consciência social e política empreendedora, que seria produzida pela via da disseminação de projetos com caráter “quase” missionário e salvador e da inclusão das populações locais ao espírito empreendedor pela via da “capacitação”. A terceira abordagem, mais recente, entende que o empreendedorismo instituiu a competição não apenas entre atores sociais e econômicos, mas também entre regiões, dando origem a regiões produtoras de riquezas e, ao mesmo tempo, a regiões consumidoras de riquezas. Mas, dentro dessa visão, para enfrentar esse desequilíbrio regional produzido pela competição, que seria “natural” ao capital, e em nome do próprio capital, o Estado assume o papel de distribuidor de riquezas, gerando um mapa onde se combinam regiões produtoras de riquezas com regiões de transferência de recursos, principalmente de renda. As Políticas Públicas de Transferência Condicionada de Renda se enquadram perfeitamente nesse modelo de crescimento econômico.

123 OPROGRAMA BOLSA FAMÍLIA E AS RELAÇÕES DE GÊNERO E GERAÇÃO NA AGRICULTURA FAMILIAR DO SEMIÁRIDO DO NORDESTE


O PBF, por sua vez, permite ingressar num sistema de produção de aparatos simé entendido, aqui, como “programa oficial” e, ao mesmo tempo, como mecanismo de um sistema que só se realiza quando absorvido e refeito nas tramas da vida dos seus “beneficiários”. Ele constitui-se, assim, do mesmo modo que a “Convivência”, como espaço de produção de tensões e conflitos, como afirmação e negação, para o que a transferência de dinheiro, as “condicionalidades” e os conselhos dos peritos são os termos mais significativos. Mas, se a agricultura familiar é o chão da pesquisa, os personagens que estão na “porta” deste chão são famílias de agricultores “beneficiárias” do PBF. Mas, além de ser o personagem que está na porta, e além de constituir-se como a unidade básica desta investigação, a família aparece como um personagem que produz e participa de redes sociais que envolvem, entre outras, figuras como a do “fazendeiro”, do dono do mercado e do Agente/Estado, principalmente o Estado do PBF. A família é, ao mesmo tempo, uma unidade na interior da qual, principalmente nos momentos de crise, as contradições e os conflitos tendem a colocar em evidência as relações de gênero e gerações. Homens e mulheres, adultos, jovens e crianças: as posições desses personagens no campo/família, além das suas disposições, tornam-se problemas, objetos de disputas. É assim que, seguindo os trajetos dessas famílias ou de alguns dos seus membros, torna-se possível identificar, inclusive, os contornos dessas redes ou dos territórios que elas produzem. Semiárido, Agricultura Familiar, Políticas Públicas de Transferência Condicionada de Renda e Gênero/ Geração são as chaves que permitem abrir as portas para a realização do estudo. A agricultura familiar do Semiárido, chão/personagem da pesquisa, não é homogênea e destituída de história. Nas últimas décadas, a ideia de “Convivência com o Semiárido” tornou-se um novo modo de aproximação desse personagem/região,

Introdução e Temas transversais

avaliação de políticas públicas: REFLEXÕES acadêmicas sobre o Desenvolvimento Social e o Combate à Fome

bólico-normativos que é, igualmente, um “sistema de peritos”, de modo que ele

da sua diversidade e da sua história; tornou-se, também, um lema ao redor do qual se articularam projetos acadêmicos, políticos, sociais, econômicos, culturais e de produção de vida; tornou-se, principalmente, arena para o enfrentamento de outras designações do Semiárido, que transformaram a região na sua caricatura, num modo de dissimulação e teatralização e em fonte de uma profusão de sentimentos, visões e compreensões, tais como medo, vergonha, espanto, intolerância, horror. Transformada em sinônimo de irracionalidade, entre os anos 1970-2000 tornava-se legítima e necessária, em nome do seu desenvolvimento, a atração de agentes externos portadores da modernidade e da racionalidade, e de projetos com caráter “quase” missionário e salvador, que deram origem, primeiro, a territórios empreendedores e a territórios perdedores (HARVEY, 2006) e, mais recentemente, a territórios produtores de riquezas e outros consumidores de riquezas, com o que se esvai a própria ideia de “Convivência com o Semiárido”. Evidentemente, nenhuma dessas leituras do Semiárido é neutra. Elas pautam projetos, políticas, debates. Criam personagens e desqualificam outros. Produzem semiáridos e, igualmente, políticas para esses semiáridos. É nesse contexto, ainda, que sujeitos sociais – indivíduos, grupos sociais e territórios – produzem trajetos e deslocamentos, transformando o próprio “chão” da vida e as rotinas do seu cotidiano. Nesses trajetos que passam por “entre objetos cujas propriedades interagem com as suas capacidades” (GIDDENS, 2003, p. 132), os agentes produzem os


contornos dos seus territórios e, às vezes, os “desencaixes” (GIDDENS, 1991) ou deslocamentos. Para Giddens, destacam-se, atualmente, dois tipos de mecanismos de desencaixe que estão “intrinsecamente envolvidos no desenvolvimento das instituições sociais modernas”. O primeiro tipo ele denomina “fichas simbólicas”, que seriam os “meios de intercâmbio que podem ser ‘circulados’ sem ter em vista as características específicas dos indivíduos ou grupos que lidam com eles em qualquer conjuntura particular” (GIDDENS, 1991, p. 25). De acordo com este autor, apesar de reconhecermos diversos tipos de fichas simbólicas, atualmente, a mais importante é, sem sombra de dúvidas, o dinheiro, que “possibilita a realização de transações entre agentes amplamente separados no tempo e no espaço”; e, principalmente, na medida em que “dessocializa” relações sociais (IBID, p. 27). O segundo tipo de mecanismo de “desencaixe” é constituído pelos “sistemas de peritos” ou de “excelência técnica”, “que organizam grandes áreas dos ambientes material e social em que vivemos hoje”, e que se impõem, em grande medida, por meio de crenças que alicerçam vidas. Em comum com o dinheiro, os sistemas de peritos “removem as relações sociais das imediações do contexto” (IBID, p. 31). Ao se apropriarem do PBF - que se apresenta dinheiro e sistema de crenças que alicerça vidas - e ao assimilá-lo como ingrediente extraordinário para a produção da vida ordinária, portanto, os “beneficiários” agricultores familiares requalificam-no requalificando a própria realidade que constitui a sua vida-rotina. Com esse ato desloca-se, por exemplo, o eixo que estruturava os modos de produção da vida, que transitará do campo da “produção agropecuária” no estabelecimento para o da produção/apropriação de dinheiros. Exceto em algumas áreas do Semiárido, como nas irrigadas, a qualidade “agricultor familiar” quase desapareceu para reaparecer na identidade do “beneficiário” de políticas de assistência e do consumidor. Mas, ao mesmo tempo, ela não aniquila o agricultor familiar que, na sua rotina, modela a vida nos termos da agricultura familiar, transformada pela presença/ação do Estado. Falou-se durante muito tempo que o agricultor familiar é um personagem pluriativo. Nas novas circunstâncias, ele se torna ainda mais complexo. Essa constatação coloca, já de saída, um problema para os estudos sociológicos sobre a agricultura familiar: o que é essa agricultura familiar? Quem é o agricultor familiar no Semiárido do Nordeste? Não é o caso, neste trabalho, de retomar o fio do debate teórico, frequentemente bastante emotivo, sobre a agricultura familiar, mesmo porque já se dispõe de material bastante razoável tratando disso (SABOURIN, 2009; WANDERLEY, 2009; CAZELLA, BONNAL e MALUF, 2009). Em contrapartida, em termos mais propriamente descritivos, para as finalidades deste trabalho, parte-se da ideia de que a agricultura familiar no Semiárido não se constitui como um ente dessocializado e deslocado das dinâmicas sociais, políticas e econômicas; que ela se produz no encontro/desencontro com outros personagens e dinâmicas. Eric Sabourin, por exemplo, ao introduzir os seus estudos sobre o problema, retoma a distinção feita por Eme e Laville entre “a economia mercantil capitalista (a troca), a economia pública (associada à redistribuição do Estado) e a economia

125 OPROGRAMA BOLSA FAMÍLIA E AS RELAÇÕES DE GÊNERO E GERAÇÃO NA AGRICULTURA FAMILIAR DO SEMIÁRIDO DO NORDESTE


gratuita, não mercantil, ou não monetária, assimilada ao princípio da reciprocidao autor recupera o fio da discussão elaborada por Odile Castel, que distingue os motivos que estruturam cada um desses três regimes de economia:

o enriquecimento pessoal, por meio da maximização do lucro, motivo das atividades de troca capitalista; o compartilhamento, por meio da redistribuição praticada pelo Estado (serviços e auxílios públicos) ou por meio das atividades de proteção a bens e pessoas (seguros das associações e sociedades mutualistas); e a solidariedade econômica, realizada pela reciprocidade, motivo que fundamenta não só as atividades de ajuda mútua, como também as cooperativas e associações (SABOURIN, 2009, p. 259). Com isso, Castel, e em seguida Sabourin, recolocam o problema da tensão entre as situações objetivas postas pela economia e pela política e os interesses subjetivos dos sujeitos sociais. Além disso, no seu trabalho, Sabourin situou na história a tensão entre os três regimes de economia para mostrar como, nos diversos territórios do Semiárido brasileiro, os atores recombinam de modos originais essas economias para produzirem distintos sistemas de sociabilidade e distintas trajetórias. Considerando essa trajetória que coloca em evidência as tensões entre as três economias e, desse modo, as tensões entre personagens situados em campos distintos, convém destacar que, a partir dos anos 1980, quando o Estado (economia pública) tornou-se o agente principal para a produção desses territórios, criando, inclusive, as condições para a expansão da economia mercantil e para o encolhimento da economia gratuita (e das relações sociais de reciprocidade que acompanham essa

Introdução e Temas transversais

avaliação de políticas públicas: REFLEXÕES acadêmicas sobre o Desenvolvimento Social e o Combate à Fome

de (SABOURIN, 2009, p. 258). Em seguida, como desdobramento dessas ideias,

economia), os modos de sua presença passaram por grandes mudanças até chegarmos ao Estado Assistente Social pautado por políticas públicas de transferência condicionada de renda e, principalmente, pelo PBF. É, enfim, desse Estado, na sua relação com o agricultor familiar “beneficiário” dessas políticas, que se trata neste trabalho. Para a produção deste trabalho, além de deslocamentos no plano teórico, foram introduzidos outros no plano metodológico, que permitem a percepção da produção das políticas públicas nesse encontro/desencontro entre o Estado e os “beneficiários”3. Para isso foi elaborada uma estratégia que permitiu ao investigador fazer uma maior aproximação do agricultor que, de um jeito ou de outro, sempre e silenciosamente, escapa às conformações estabelecidas pelos mecanismos de dominação e de organização da vida social que lhe atribuem um lugar, um papel e produtos a consumir. Entendeu-se, também, que o modo mais adequado para apreender/sistematizar conhecimentos passa pela produção de mapas. Supõe-se, para isso, que

3

O agricultor é coautor dessas políticas, o que o retira do campo dos beneficiários (passivos)

e o recoloca no dos agentes (ativos).


todos os conceitos com que representamos a realidade e à volta dos quais construímos as diferentes ciências sociais e suas aplicações, a sociedade e o Estado, o indivíduo e a comunidade (...), todos estes conceitos têm uma contextura espacial, física e simbólica, que nos tem escapado pelo fato de nossos instrumentos analíticos estarem de costas viradas para ela, mas que, vemos agora, é a chave da compreensão das relações sociais de que se tece cada um destes conceitos (SANTOS, B., 2000, p. 197). Os mapas servem, portanto, como matrizes das referências que localizam os conceitos nos espaços. Isso não significa, como alerta o autor, que os mapas existem, mas que são modos de representar, apreender e organizar o real; são “distorções reguladas da realidade, distorções organizadas de territórios que criam ilusões credíveis de correspondência” (IBID, p. 197).

Figura 1:

127 OPROGRAMA BOLSA FAMÍLIA E AS RELAÇÕES DE GÊNERO E GERAÇÃO NA AGRICULTURA FAMILIAR DO SEMIÁRIDO DO NORDESTE

Fonte: http://www.seagri.ba.gov.br/mapa_baciadojacuipe.pdf

Para atender as demandas da produção de informações, primeiro, retomaram-se resultados de investigações anteriores realizadas no mesmo território, e, em seguida, concentrou-se a investigação em cinquenta famílias (50) de agricultores “beneficiárias” do PBF, vinculadas a cinco comunidades localizadas em cinco municípios do Território de Identidade Bacia do Jacuípe (TIBJ), localizado no semiárido da Bahia4. Após a identificação das comunidades participantes, os pesquisadores, munidos de técnicas artesanais, foram para as comunidades onde fizeram observação. Além

4

A divisão da Bahia em territórios de identidadefoi realizada em 2003, e, em 2007, foi incorporada

pelo governo nas suas estratégias de planejamento. Ver: http://www.seplan.ba.gov.br/mapa_territorios. html.


de ficarem durante três dias nas casas das famílias envolvidas na pesquisa, com a finalidade de conhecerem os trajetos e as redes de sociabilidade das famílias e dos seus membros e de, a partir desses caminhos nos espaços/tempos, conhecerem deslocamentos sociais. Não se pretende, no entanto, neste trabalho, fazer um mapeamento exaustivo das continuidades/deslocamentos que afetam, atualmente, as relações de gênero e geração na agricultura familiar do TIBJ. Pretende-se elaborar um conjunto de mapas que permitam identificar esses movimentos, considerando, especificamente, os sistemas e as estratégias familiares de produção de vida, os sistemas de distribuição das tarefas nas unidades familiares, as ações de produção de sociabilidades e os processos de reestruturação dos hábitos alimentares e dos cardápios familiares. Para a sua apresentação, o trabalho foi estruturado em duas partes, além desta introdução, onde são apresentadas as linhas gerais das abordagens teórica e metodológica que estruturaram o trabalho. Segue-se com a caracterização da agricultura familiar do TIBJ e dos “beneficiários” do PBF e, finalmente, com a apresentação e análise dos resultados da pesquisa qualitativa.

CARACTERIZAÇÃO DA AGRICULTURA FAMILIAR, DAS POLÍTICAS PARA A AGRICULTURA FAMILIAR E DOS BENEFICIARIOS DO PBF Quais são as características principais da agricultura familiar do TIBJ? Quem são os agricultores “beneficiários” do PBF? Quais são as características das políticas

Introdução e Temas transversais

avaliação de políticas públicas: REFLEXÕES acadêmicas sobre o Desenvolvimento Social e o Combate à Fome

membros dessas famílias, visitaram feiras, postos de saúde, escolas, igrejas, com

públicas atualmente dominantes na agricultura familiar do Território? Que importância elas apresentam para a sustentabilidade dessa agricultura? Nesta parte do trabalho, com base em dados secundários, são delineadas algumas dessas características, o que favorecerá, para o próximo capítulo, o entendimento da relação entre esses personagens e o Estado.

A agricultura familiar do TIBJ O TIBJ tem 10.954 Km² e 233.682 habitantes segundo Censo Demográfico (IBGE, 2010). Nos últimos vinte anos, perdeu populações de modo significativo: entre 1991 e 2000, a população total do Território diminuiu em 13,9% e, entre 2000 e 2010, em 2,77%. Mas, enquanto alguns municípios viveram processos intensos de evasão populacional, como Gavião (-53,6%) e Capela do Alto Alegre (-48,7), em outros, como Pintadas (-0,61%) e Várzea do Poço (-2%), a evasão foi menos significativa. O fenômeno é parte de uma tendência geral dos últimos vinte anos para todo o Semiárido do Nordeste. O que mais chama a atenção, no entanto, nesse contexto, é a evasão de populações rurais. Apesar das dificuldades que se tem para distinguir, nessa região, o rural


do urbano5, e considerando os dados das coletas feitas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), percebe-se que a assimetria entre o rural e o urbano no que se refere à evasão de populações é bastante evidente. Entre 1991 e 2007, a população rural do Território diminuiu em 57,2%; chama a atenção, igualmente, a mudança nas proporções entre população urbana e população rural: em 1991, a população rural equivalia a 72% do total; em 2000, ela havia caído para 58%. Isso significa, por um lado, que a evasão de populações rurais é maior que a urbana; por outro, que parte dos que saem do campo podem ser reencontrados nas cidades da própria região. Mas, foi exatamente no primeiro período (1991-2000) que a evasão rural foi mais significativa no Território: em nove anos ela atingiu mais de 41%. No panorama social, de acordo com dados do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), em dezembro de 2008, o TIBJ detinha um dos mais altos índices de pobreza de todo o Semiárido (78% das famílias eram consideradas pobres) e um dos maiores índices de “beneficiários” do PBF (74% da população, e 80% dos agricultores familiares eram beneficiárias do PBF)6. A taxa de analfabetismo era de 32 %; a de abastecimento de água, 35,1% e a de esgotamento sanitário urbano, 30,6%. Um olhar para a estrutura fundiária do Território contribui para melhor entender essa situação. De acordo com dados do Censo Agropecuário do IBGE, em 2006 o TIBJ possuía 27.429 estabelecimentos rurais. Desses, mais da metade (51,5%) tinham menos de 10 hectares e mais de 94% tinham até 100 ha.; 70 estabelecimentos (0,25% do total) tinham mais de 1.000 ha7. Além disso, de acordo com o “Plano Territorial de Desenvolvimento Sustentável” do TIBJ (CODES, 2010), atualmente, mais da metade das terras dos municípios da Bacia é devoluta e 105 imóveis do Território, envolvendo 76.771,50 ha de terras (quase 8% do total das terras), são improdutivos. A contribuição da agricultura familiar na produção de valor não mudou muito entre 1990 e 2007. De acordo com dados do IBGE, em 2007, ela participava com 93% dos estabelecimentos, 54,6% da área8 e 66% do valor bruto. O valor médio anual bruto produzido por estabelecimento agropecuário era, então, de R$

5

José Eli da VEIGA (2004) propõe como modelo para o estabelecimento da distinção entre urbano

e rural a combinação de três variáveis principais: 1) o “grau de artificialização dos ecossistemas”, que seria decorrente da ação da “espécie humana”; e que, para a América Latina, somadas as áreas artificializadas e semi-artificializadas, não ultrapassa os 38% (Veiga, 2004: 39): 2) a densidade populacional, para o que ele indica alguns parâmetros, como o da OCDE para a União Europeia, onde se considera rural uma área com menos de 150 habitantes por Km²; 3) o grau de desenvolvimento rural. 6

Em dezembro de 2008, havia 35.698 famílias beneficiárias; em agosto de 2009, este número subiu

para 37.985 (o que provoca um impacto significativo nos índices relativos, certamente). 7

Segundo o que estabelece a Lei 8.629/1993, pequena propriedade é o estabelecimento com

até quatro módulos fiscais; para o Semiárido do Nordeste, o módulo fiscal tem entre 25 e 35 hectares. Portanto, quase 95% dos estabelecimentos rurais do TIBJ são pequenas propriedades. 8

A área média desses estabelecimentos é de 19,2 hectares e 51,5% do total dos estabelecimentos

têm menos de 10 hectares.

129 OPROGRAMA BOLSA FAMÍLIA E AS RELAÇÕES DE GÊNERO E GERAÇÃO NA AGRICULTURA FAMILIAR DO SEMIÁRIDO DO NORDESTE


1.101,81 (com valor médio mensal de R$ 91,81)9, ou seja, valores que indicam a no estabelecimento. Essas informações permitem a elaboração de um perfil socioeconômico para a agricultura familiar do Território, onde se conjugam: 1) consideráveis perdas de populações; 2) amplo predomínio da agricultora familiar; 3) persistência de uma produção agropecuária de baixa produtividade, relativamente pouco extensa, utilizadora de tecnologias bastante simples e voltada essencialmente para a subsistência; 4) situação generalizada de pobreza; 5) diversidade de situações vividas pelas populações e, principalmente, diversidade de situações de pobreza, marcadas por diferentes combinações de formas de carências materiais desdobradas em uma multiplicidade de planos ou de âmbitos de vida.

Políticas públicas que afetam a agricultura familiar do TIBJ Hoje, três conjuntos/tipos de políticas afetam mais diretamente, cada um de seu modo, a agricultura familiar do TIBJ: as políticas de desenvolvimento (e de combate à pobreza), de previdência e de assistência social. Mas, para os fins deste trabalho, limitamo-nos a esboçar linhas gerais de políticas que influenciam mais profundamente nos modos de produção de vida na agricultura familiar da região. Uma das maiores fontes de transferência de dinheiro para o TIBJ são as aposentadorias. Em 2008 havia 38.971 benefícios previdenciários (aposentadorias e pensões) no TIBJ; desse total, mais de 81% eram rurais. O total de recursos transferidos pela previdência nesse ano, para o Território foi de R$ 200.396.411,00, ou seja, mais que o total das transferências municipais. Alguns casos aparecem como

Introdução e Temas transversais

avaliação de políticas públicas: REFLEXÕES acadêmicas sobre o Desenvolvimento Social e o Combate à Fome

insustentabilidade das famílias quando pensada unicamente a partir da produção

singulares. Por exemplo, o município de Serra Preta, que tinha 15.039 habitantes em 2007, contava com 4.164 benefícios previdenciários (28% ou 1/3 da população; ou um benefício para cada 3,6 pessoas). Para o conjunto do Território, havia um benefício para cada 6,1 habitantes. Mais curioso, ainda, fica quando comparamos a população rural do Território e o número de benefícios previdenciários: 31.645 benefícios para 125.546 habitantes, ou seja, um benefício para 3,96 habitantes . Entende-se, com isso, a importância que tem essa política para a eco10

nomia daquela população e, igualmente, os efeitos que ela produz em termos da aglutinação da população em torno de idosos.

9

Conforme dados da SEI/SEAGRI, considerando o conjunto da produção agropecuária do

território com base em séries históricas por produto, obtemos as seguintes informações: 1) considerando os principais produtos, a produção de 2008 é, aproximadamente, a mesma de 1990; 2) em 2000 houve um grande salto em termos de área plantada e de produto (no caso do feijão), a produção foi quase seis vezes maior que a de 1995); em seguida, inicia-se uma curva declinante atingindo, em 2007, patamar próximo ao de 1990; 3) a série histórica é marcada por grandes oscilações para a maior parte dos produtos e, considerando todo o período, pela permanência. Mas, finalmente, considerando o valor médio produzido por estabelecimento da agricultura familiar, sente-se a necessidade de conhecer as outras fontes de renda dessas famílias e em que proporções médias elas são combinadas. 10

Uma das explicações para essa singularidade é que os beneficiários de aposentadoria rural

nem sempre são habitantes de espaços rurais.


O Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF) é o principal instrumento de Política de Desenvolvimento para a agricultura familiar brasileira. No TIBJ, em 2008, ele injetou em torno de R$ 8.316.000,00 para 2.715 contratos (média de R$ 3.063,00 por contrato); menos de 10% dos estabelecimentos familiares do Território foram inseridos no programa. Isso significa, entre outras coisas, que, considerando o número de contratos e a média de valor alocado por contrato, do ponto de vista do Estado, a política pública de incentivo à agricultura familiar, pelo menos neste Território, não é uma política potencializadora do crescimento econômico ou do desenvolvimento rural11. A maior parte (em torno de 90%) das famílias de agricultores do Território não é reconhecida por este instrumento de política. Ainda nos anos 1980, a agricultura familiar do Semiárido foi incluída numa grande diversidade de programas de “desenvolvimento rural” e “combate à pobreza”. Desde o final dos anos 1980, num processo de descentralização, os estados nordestinos emergiram como os principais propositores/gestores desses programas. Na Bahia, a gama de programas que se situam nesse campo é relativamente larga e envolve, entre outros, os seguintes: Sertão Produtivo, Garantia Safra, Produzir, Semeando, Assistência Técnica e Extensão Rural (ATER) e Água Para Todos12. Considerando as informações disponíveis a respeito do desempenho desses programas para o período 2007-2010, constata-se que: mesmo tomados no seu conjunto, eles atingem cerca de 10% das famílias de agricultores do Território, o que coincide com os dados do PRONAF; a quantidade de recursos transferidos foi pouco significativa, de modo que, por exemplo, entre 2006-2010, o Produzir, que é o programa mais importante para a agricultura familiar do Território considerando o número de beneficiários e as quantias de benefícios, envolveu 3.417 famílias (cerca de 10% dos agricultores familiares do TIBJ) e R$ 5.156.239,24, média de R$ 1.509,00 por família (para cinco anos).

As políticas de Assistência Social e as Famílias Assistidas De acordo com dados do Cadastro Único do MDS, entre 2007 e 2010, considerando o número de beneficiários do PBF, local de moradia (urbano e rural), gênero e frequência à escola, houve no TIBJ uma relativa estabilidade para essas variáveis. Apesar dessa estabilidade, dois pontos chamam a atenção. Primeiro, em 2010, quando a população era de 233.682 habitantes (IBGE, Censo de 2010), o número de beneficiários era de 50.889, sendo que aproximadamente 22% da população eram beneficiários do programa, sendo que 38% são de origem urbana e 62% são rurais. Com relação à inclusão dos beneficiários no mercado de trabalho, considerando o total de declarantes (menos os que declararam que não trabalham e os aposentados), o número de trabalhadores sobe de 5.457 em 2007 para 6.703 em 2008,

11

Considerando os dados de uma pesquisa de campo, de 450 famílias entrevistadas, 20,8 afirmaram

que, em algum momento, fizeram financiamento via PRONAF, e apenas 4 famílias receberam financiamento via outros programas. Das 450 famílias, apenas 11% receberam assistência técnica em algum momento. 12

Embora sejam geridos pelo estado/Bahia, grande parte dos recursos alocados é federal.

131 OPROGRAMA BOLSA FAMÍLIA E AS RELAÇÕES DE GÊNERO E GERAÇÃO NA AGRICULTURA FAMILIAR DO SEMIÁRIDO DO NORDESTE


desce para 6.051 em 2009 e sobe novamente para 6.338 em 2010. Finalmente, de pelo menos, o caráter distinto do trabalho rural13. No que tange à situação da casa dos beneficiários do PBF, considerando o período 2007-2010 verifica-se, primeiro, a diminuição do número de declarantes que moram em domicílio próprio e, na mesma proporção, inversamente, o crescimento do número dos que moram em domicílios não próprios; segundo, cresce o número de casas de tijolo/alvenaria e, nas mesmas proporções, diminui o número de casas de taipa e adobe; terceiro, cresce significativamente o número de casas cujo tipo de construção é situado entre “outros” (cresce em quase 236%). As situações relativas ao abastecimento/tratamento de água, iluminação e esgotamento sanitário são as que mais chamam a atenção nesse campo. Com relação à água (rede pública, poço e outros), verifica-se um pequeno crescimento no número das casas que dispõem de abastecimento via rede pública, passando de 36,3% em 2007 para 42,4% em 2010 (63,7% em 2007 e 57,6% em 2010 situavam-se fora da rede pública)14. Nos quatro anos, em torno de 1/3 dos cadastrados se situaram entre “outros”, termo que pode envolver os que dispõem de cisternas para captação de águas de chuvas15. Mas, em todos esses casos, trata-se da disponibilidade de água para o consumo humano. Para o consumo animal e para a produção agrícola, a situação é muito mais precária. São raros no Território os agricultores familiares que dispõem desse tipo de água, o que afeta de modo considerável a produção agropecuária das famílias16. Com relação ao tratamento da água (cloração, fervura, filtração, sem tratamento e outros), houve pequenas oscilações ao longo dos quatro anos. A cloração – passou de 9,1% em 2007 para 8,8% em 2010 - é feita, em geral, em águas de cisternas (captadas de chuvas); a utilização da fervura passou de 3,4% para 2,4%; a utili-

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todos os que se declararam “trabalhadores”, mais de 90% são rurais, o que indica,

zação da filtração (que é feita, em geral, em filtros simples de barro) passou de 66,8% para 73%; a não utilização de tratamentos caiu de 18,6% para 13%, que é um número ainda bastante significativo. Em 2010, cerca de 1/6 dos beneficiários do PBF no TIBJ consumiam água sem qualquer tipo de tratamento ou se situava em “outros”.

13

Se cada domicílio tem, em média, 4,5 moradores, o número de famílias “beneficiárias” do PBF

no TIBJ é de cerca de 10.000. O número dos beneficiários inseridos no mercado de trabalho variou entre 5.457, em 2007, e 6.703, em 2008. Pode-se deduzir, portanto, que 3/5 das famílias têm pelo menos um membro inserido no mercado de trabalho e 2/5 das famílias estão fora desse mercado (não trabalham). Esses dados remetem, certamente, ao que se define, no TIBJ, como “trabalho”. 14

Dispor de abastecimento de água via rede pública não significa, sempre, que a água chega até a

casa; em muitos casos, ela se encontra disponível em chafarizes coletivos. 15

Conforme declaração feita em 2010, pelo secretário de agricultura de um dos municípios do

TIBJ, em torno de duas mil famílias do seu município não dispunham naquele momento de qualquer sistema de armazenamento de água, mesmo cisternas ou caixas. 16

. Convém lembrar que, numa perspectiva histórica, o significado da não disponibilidade de água

para o consumo animal tem uma dimensão muito mais agressiva hoje do que, digamos, trinta anos atrás. O deslocamento ou a circulação de animais para aguadas, por exemplo, era algo comum, o que hoje não é mais (impedimentos sanitários, fechamento de aguadas, a disponibilidade da “ajuda” ou da mão de obra da criança, etc.).


Em 2010, de acordo com os dados do CadÚnico, mais de 70% dos beneficiários do PBF tinham acesso à rede pública de energia elétrica (em contrapartida, cerca de 30% das residências continuam excluídas). Mas, se cresceu o acesso à rede de energia elétrica, o mesmo não se verifica com relação à rede de saneamento básico, principalmente no que se refere aos sistemas de esgotamento sanitário17. Nos quatro anos (2007-2010) permaneceu relativamente estável e muito baixo o número das moradias que dispunham de acesso a redes públicas de esgotamento sanitário: em 2010, atingia apenas 27,5% (esse número se refere, provavelmente, aos moradores de cidades). Pior ainda, mais de 45% não dispunham de qualquer sistema de esgotamento ou se situavam em “outros”; enquanto isso, 23,5% dispunham unicamente de fossa rudimentar. Em síntese, as Políticas de Desenvolvimento Rural e de Combate à Pobreza, incluindo o PRONAF, são seletivas e excludentes: apenas 10% dos agricultores familiares do Território acessam efetivamente essas políticas. Além disso, de modo geral, os que acessam o PRONAF são os mesmos que acessam as políticas estaduais de desenvolvimento e combate à pobreza. Trabalho e Previdência são os instrumentos que mais injetam dinheiros nas famílias. A importância da Assistência Social, particularmente do PBF, para a agricultura familiar do Território tem origem menos na quantidade de dinheiro transferido para cada família e mais na sua qualidade e no grau da sua universalidade: o dinheiro chega como “uma benção”, carrega consigo um sistema de crenças (o que remete ao “sistema de peritos”) e condições, privilegia o vínculo com a mulher e as crianças, insere a família (principalmente a mulher e as crianças) em novas redes de sociabilidade e de controle político (principalmente as Secretarias Municipais de Assistência Social). O dinheiro do PBF é um dinheiro diferente, produz novos circuitos e afeta as estruturas de posições e de disposições dos membros da casa. O PBF não atua como saneador de precariedades, mas, essencialmente, como mecanismo para o deslocamento do centro do sistema de precariedades, que vai da comida para as condições de humanidade. Por um lado, efetivamente, coloca-se mais quantidade e variedade de comida na mesa das famílias; por outro, no entanto, as situações estruturantes (acesso à terra, à água, ao saneamento básico, às tecnologias para a produção agropecuária, ao financiamento...) não foram alteradas. No dia-a-dia, as famílias precisam continuar inventando modos de produzir a sua vida (buscar diárias em fazendas vizinhas, migrar para terras distantes, fazer coleta e artesanato, adquirir sementes e plantar na parca terra cuja titularidade é, muitas vezes, de outros...). Nos períodos de estiagem, cada vez mais frequentes (a natureza parece mais desequilibrada) e longos, essa precariedade manifesta-se ainda mais evidente, principalmente quando se tem que buscar, em lugares não muito próximos, a água para beber; ou quando se tem que esperar a chegada do carro pipa da prefeitura, com as suas condições.

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O acesso à energia elétrica contribui de forma mais significativa para a inclusão nos mercados

como consumidores, o que se adequa mais claramente aos interesses embutidos nos novos sistemas de políticas.

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As condicionalidades embutidas no PBF escondem, além disso, por trás da comida, dução da “Convivência com o Semiárido”, pelo menos na perspectiva do Estado, torna-se mito, coisa do passado, substituída pela ideia da necessidade de convivência com o mercado (como consumidor e não como produtor).

DOS DESLOCAMENTOS NA AGRICULTURA FAMILIAR DO TIBJ O PBF foi inventado pelo Estado com a intenção de inserir famílias nas redes de consumo. Mas, ao mesmo tempo, ele produz deslocamentos nas estruturas e nos modos de viver das populações situadas abaixo da linha da pobreza. Neste, mergulhando no miúdo da vida, procura-se identificar essas continuidades e mudanças no contexto da vida-rotina das famílias, provavelmente; poucas delas imaginadas pelos produtores do programa ou mesmo passíveis de identificação quando se considera a partir da dimensão normativa. A imersão dos pesquisadores na vida rotina dos “beneficiários” permite uma melhor apreensão dos modos como esses personagens desorganizam/reorganizam a sua realidade (as suas relações com os objetos que os cercam, as suas ações no mundo, as relações com outros personagens e, inclusive, os modos como produzem as representações sociais). Quatro portas permitem a imersão dos pesquisadores nessa realidade: a das estratégias/ações de produção da vida, a da distribuição das tarefas entre os membros da casa, a das redes de sociabilidade e a dos cardápios/hábitos alimentares. É importante relembrar, ainda, que nesta parte do trabalho se lida com informações qualitativas produzidas no contato com 50 famílias de agricultores familiares “beneficiárias” do PBF. Além disso, considerando essas famílias como unidades pri-

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a necessidade de ajustamento à regulação de quem domina, desumaniza. A pro-

meiras da investigação, o foco se dirigiu para as relações entre os seus membros e, essencialmente, para as relações de gênero e geração: como elas são reconstruídas (ou não) a partir da apropriação e do uso, na unidade familiar, do dinheiro do PBF.

Sobre os sistemas familiares de produção de vida Nas últimas décadas, o TIBJ tornou-se um “território do dinheiro” (SANTOS, M., 1999); o dinheiro, a mais importante das “fichas simbólicas” (GIDDENS, 1991), tornou-se o sujeito principal na produção do Território e da agricultura familiar no Território. Além disso, a agricultura, que se fazia quase exclusivamente na articulação entre as economias gratuita e mercantil, viu a economia pública (o Estado “sistema de peritos”) tornar-se hegemônica nos processos de sua produção. Além de o dinheiro assumir o lugar das gentes e das coisas, o dinheiro público substituiu outros dinheiros, inclusive o do trabalho, alçando o Estado ao centro do campo da produção da vida. Durante a realização da pesquisa, percebeu-se que, considerando a região e os seus personagens centrais, o entendimento dos deslocamentos nos sistemas e nos modos de produção da vida passa, primeiro, pela decifração do termo “trabalho” e, em seguida, dos lugares/trabalhos dos membros da casa. Para o agricultor


familiar do TIBJ, as atividades que contribuem para a produção da vida são plurais, e o trabalho é uma delas. Além da palavra “trabalho”, para identificar essas atividades, fala-se de “labuta”, “lida-lida”, “ajuda”, “adjutório”, “macacada”, “venda de diárias”, “bicos” e “assalariamento”. Aparentemente, elas se referem a um mesmo objeto (ações de produção de vida); no entanto, elas designam diferentes posições sociais e formas de estruturar relações, de modo que se pode agrupá-las em três conjuntos de sentido: 1) o trabalho como dito (ação produtiva “do homem” realizada no estabelecimento e que resulta em “produtos” para o consumo e/ou para a venda); 2) a “ajuda”, a “lida-lida” ou a “labuta” (as ações “das mulheres” e/ou “das crianças”, e, também, as ações repetitivas, mesmo quando realizadas por homens, como a de buscar água ou alimentar animais); 3) a “venda de diárias” a “macacada”, o “dia de macaco” e o assalariamento (atividades realizadas fora do estabelecimento, mediadas por terceiros e que têm a finalidade de produzir dinheiro). Tradicionalmente, na região, o “trabalho” é atribuição do homem; mulheres e crianças “ajudam”. Mesmo no interior do estabelecimento (do sítio), o filho homem só “trabalha” quando é “liberado” pelo pai e/ou pela lei (as condicionalidades do PBF); ou quando casa: “desde os doze anos, eles ficam na angústia de quando poderão trabalhar”, dizia um agricultor de Pintadas. Só casa o homem que já trabalha, de modo que todo homem casado trabalha. Com a liberação para o trabalho, o filho/homem pode, também, trabalhar fora – “macacada”, “dia de macaco”, “venda de diárias”, “assalariamento” – para ganhar o seu dinheiro (frequentemente, isso se faz nas fazendas de café, laranja e cana do Sudeste). Portanto, a ação do homem, além de ser ação “produtiva” (produz alimentos e dinheiro), cria o próprio homem (se torna homem pelo trabalho); extensivamente, cria a mulher e a criança como os que ajudam (excluídos do campo do trabalho). A ação da mulher pode ser reconhecida em alguns casos como trabalho: quando não há homem na casa. Mas, essencialmente, o trabalho produz o homem e, negativamente, a mulher e a criança, de modo que não é o trabalho que caracteriza a mulher e a criança, mas a ajuda, que é a negação do trabalho. Esse modo tradicional de representar a produção dos indivíduos e da sociedade permanece na região, apesar de encontrarmos alguns sinais que apontam para o seu rompimento, tanto no âmbito das falas quanto da própria prática, como nos casos de grupos de mulheres que se associam para produzirem. Dois mecanismos contribuem, sobremaneira, para essa ruptura: a monetarização dos modos de produzir a vida (a chegada dos dinheiros de políticas públicas e a expansão do “trabalho assalariado”) e a “presença” das “condicionalidades” do PBF. Por um lado, não é mais só o trabalho (atributo do homem) que dá acesso ao dinheiro, de modo que o dinheiro deixa de ser coisa só de homem; por outro, com as crenças embutidas nos requerimentos das condicionalidades, a criança já não ajuda, ela estuda. O campo da ajuda encolhe: o jovem (homem) passa diretamente do “estudar” para o “trabalhar”, sem passar pela fase da ajuda; a jovem (mulher); intercala ajuda e estudo na preparação para o casamento. Além disso, hoje, entre os jovens, é quase unânime a voz que diz que o trabalho é um dos meios de obter dinheiro (o trabalho produz dinheiro). Poucos jovens homens consideram a possibilidade de trabalhar na própria roça.

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Com essa monetarização das relações, com a quase universalização do PBF na agrio mercado, são reestruturados os sistemas e os modos de produzir a vida. Essas mudanças se revelam na tensão entre trabalho e dinheiro e se desdobram nas relações entre os dinheiros de transferências públicas e dinheiros do trabalho; elas se revelam, igualmente, nas relações entre os sistemas significativos/normativos (Estado) e a vida-rotina dos agricultores. Mas, ao mesmo tempo, salta aos olhos a naturalização que vem se estruturando nos modos de cumprimento das condicionalidades do PBF, sob a responsabilidade da mulher. Quase sempre sozinhas, as mulheres respondem pelas decisões de levar os filhos ao posto de saúde, pelo acompanhamento do calendário de vacinação, pelo controle do cartão de vacina e da matricula escolar, mesmo nos casos em que contam com a presença do marido/companheiro na casa. Apenas em um dos casos, entre os cinquenta estudados, se afirmou que o homem divide essas tarefas. A responsabilização da mulher é acrescida, ainda, em decorrência, por exemplo, da ausência de um cônjuge (marido ou companheiro), cujos motivos envolvem desde a busca, por este, de trabalho em outras regiões do país, passando por separações conjugais de fato, ou pela inexistência de vínculos conjugais (mães solteiras). Essa naturalização da responsabilidade pelas condicionalidades produz, pelo menos, dois efeitos. O primeiro remete à restauração - que está subjacente na formulação do Programa - do papel atribuído à mulher na “reprodução” da vida, nos “cuidados” com os filhos, na administração das coisas da casa, fixando e essencializando a mulher a partir das funções biológicas. A restauração desse papel foi fartamente verificada em conversas com agentes governamentais locais – assistentes sociais, agentes de saúde, diretoras de escolas e professores -, quando inquiridos

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cultura familiar e com o adensamento das relações entre agricultores, o Estado e

sobre o cumprimento das condicionalidades. O segundo ponto se refere ao consenso que se estabeleceu sobre a legitimidade da preferência das mulheres pelo Programa. Entende-se, nas comunidades visitadas, que o acompanhamento do calendário de vacinas e da vida escolar é um atributo “natural” da mulher, que cuida melhor da casa e sabe melhor das necessidades. Em síntese, com a apropriação de dinheiros e de crenças embutidas nas políticas públicas, particularmente nas condicionalidades, os agricultores familiares do TIBJ reestruturaram os modos tradicionais de produzir a vida: 1) o dinheiro tornou-se a “ficha simbólica” e o personagem principal, subordinando a ele o próprio trabalho; 2) o trabalho no sentido estrito mantém-se como atribuição do homem; 3) o trabalho no sentido largo (combinação de uma multiplicidade de atividades incluindo a ajuda) torna-se uma atribuição do adulto e exclui a criança/adolescente (divisão por idade); 4) o cuidado da casa e de tudo que isso implica (condicionalidades) é atribuição quase exclusiva da mulher; 5) o sistema de produção de vida, que resultava da tensão entre as economias gratuita e mercantil, estrutura-se hoje na combinação/descombinação de três economias, com a hegemonia da economia pública e do seu dinheiro; 6) o Estado “sistema de peritos” torna-se a ficha simbólica mais importante para a definição, na agricultura familiar do Território, do que é certo e errado, justo e injusto; 7) com a apropriação dos dinheiros dos programas


de políticas públicas, principalmente do PBF, com as suas condicionalidades, foi reajustada para cima a escala de inserção das famílias na sociedade/mercado; 8) na nova escala de inserção, a contribuição solicitada de cada uma das economias para a produção da vida foi requalificada; 9) o dinheiro do PBF se torna central na nova escala de inserção social: o fortalecimento do consumo de bens e serviços no mercado; 10) adultos e crianças, mulheres e homens: as suas posições e funções nas estruturas dos sistemas de produção de vida foram alteradas, dando origem a novas tensões entre eles.

A distribuição de tarefas nas unidades familiares Dessa monetarização das relações sociais e das estratégias de produção de vida decorrem mudanças nas estruturas de posições dos indivíduos nas unidades familiares e na distribuição das tarefas em, pelo menos, três campos: 1) desvincula-se a criança/adolescente dos ambientes da produção de alimentos/bens e da produção de renda/dinheiros para situá-lo na escola (condicionalidade); 2) com relação à produção de alimentos/bens para a unidade familiar e a produção de renda/dinheiro para o acesso ao mercado de bens e alimentos, o eixo forte tende a deslocar-se do primeiro para o segundo (produção de renda/dinheiros)18; 3) opõem-se as diversas formas de produção/acesso ao dinheiro, dando origem aos diversos dinheiros: o dinheiro que resulta diretamente do trabalho, o dinheiro do PBF, o dinheiro dos bicos, o dinheiro das aposentadorias/pensões, o dinheiro do jovem. Com essas mudanças que estabelecem o primado do dinheiro, enquanto alguns dinheiros são vinculados ao homem, outros são da mulher e outros dos jovens. Essas diferenças entre os dinheiros dos indivíduos se manifestam, essencialmente, no seu uso: quem decide sobre o seu uso e em que é usado. Mas, se produção/apropriação de renda/dinheiros torna-se estruturante nos modos de produzir a vida, a economia gratuita não desaparece, mas se refaz nas novas circunstâncias, ganhando novos sentidos. Essas mudanças nos sistemas de produção de vida repercutem nas estruturas de distribuição de tarefas entre os membros das unidades familiares, dando origem a novas combinações/descombinações. No que diz respeito à divisão sexual do trabalho no âmbito das unidades familiares, aos homens cabe, ainda hoje, a responsabilidade pelas atividades ditas “produtivas”: trabalhar, vender, trocar, comprar, decidir sobre o que produzir e o que comprar; à mulher cabe cuidar da casa, dos filhos, dos pequenos animais, da horta, do artesanato feito “nas horas vagas”, buscar ajuda de parentes e vizinhos, providenciar água para o consumo; aos filhos cabe estudar; aos jovens cabe preparar-se para o casamento (emancipação). Ou seja, as tarefas da mulher são vinculadas aos usos e ao consumo da família. Essa divisão de tarefas é portadora de um caráter valorativo, que repercute, por exemplo, pelo menos no plano da representação, em maior ou menor autoestima. Esta continuidade na divisão sexual das tarefas legitima o homem no exercício do controle e da gestão dos recursos financeiros

18

A economia gratuita ou economia do dom (estabelecida na relação com vizinhos e parentes),

embora importante para a produção/reprodução das famílias na região, sempre foi considerada como uma forma complementar de obtenção de meios de vida.

137 OPROGRAMA BOLSA FAMÍLIA E AS RELAÇÕES DE GÊNERO E GERAÇÃO NA AGRICULTURA FAMILIAR DO SEMIÁRIDO DO NORDESTE


gerados na família e vincula o homem à produção, seja no estabelecimento ou fora para o mundo, repete as atividades de sempre. Mas, com o PBF, abriu-se para a mulher um novo campo de atividades, sem alterar significativamente o anterior: ela é a responsável junto ao Estado, responsabilidade que envolve a realização das condicionalidades do programa. Em uma das rodas de conversa, foi emblemática a fala de uma das mulheres: “a mulher trabalha na casa e na roça também, enquanto o homem faz serviços fora ou presta diária na terra de outras pessoas”. A mulher sempre foi para a roça, sempre “ajudou” o homem no seu trabalho na roça; mas, atualmente, quando aumenta o tempo do homem fora da própria roça, aumenta o tempo da mulher na roça, onde ela assume, frequentemente, a direção da atividade. Na fala da mulher está em jogo o “fora” e o “dentro”, como demarcadores de lugares e de posições que homem e mulher ocupam na distribuição das tarefas no âmbito da unidade familiar. Por um lado, o trabalho “dentro” é assumido majoritariamente pelas mulheres e aquele realizado “fora” é atribuído ao homem; por outro, está em andamento um processo de redefinição sobre o que é dentro e o que é fora, de modo que o fora que se concentrava na roça se torna cada vez mais o fora do estabelecimento. Além disso, quanto mais se desloca a atividade do homem para fora do estabelecimento, mais ele carrega consigo o conteúdo do termo trabalho: trabalhar é uma atividade feita fora: “o homem trabalha quando arranja serviços”. A ação da mulher na roça, que antes era própria do homem, é desqualificada. Contribui para a produção/reprodução dessa desigualdade de gênero o desencontro entre as políticas de desenvolvimento rural, como o PRONAF, vinculado principalmente ao homem (são raras as mulheres no Território que acessam o PRONAF),

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dele: “se não tiver trabalho por aqui, eu vou sair pelo mundo”. A mulher não sai

e as políticas de assistência social, como o PBF, explicitamente vinculado à mulher. Essa divisão – com raízes nas estratégias ideológicas e normativas do Estado e que envolvem, na ponta de baixo, os seus agentes extensionistas e de assistência social – contribui significativamente para a demarcação e a naturalização dessa divisão sexual das atividades na família. O Estado ganha substância enquanto “sistema de peritos”. Essa assimetria nas relações de gênero nos sistemas de distribuição das tarefas nas unidades familiares se reproduz nas relações entre gerações. Na distribuição das tarefas nas unidades familiares referentes aos filhos e filhas, se reproduz o mesmo padrão verificado na relação entre o pai e a mãe. Se, por um lado, a ajuda das crianças e dos adolescentes foi transformada em trabalho e substituída pela escola (condicionalidade), por outro, as expectativas que se tem com relação ao menino e à menina diferem. Na convivência diária com muitas famílias percebeu-se que as meninas dividem o seu tempo ajudando a mãe nos afazeres domésticos e na dedicação aos estudos; enquanto isso, alguns dos filhos mais velhos acompanham o pai em atividades da roça. Mas, em geral, eles não vão para a roça para não perderem aula: “eles gostam de estudar, não perdem aula e querem continuar estudando pra mudar de vida”. Curiosa é a fala dos meninos com relação às colegas na Escola Família Agrícola de Jabuticaba: “há disciplinas como zootecnia, que


as meninas não têm jeito para laçar um garrote”; um deles acrescenta: “só conheci na escola uma única menina que sabia ordenhar”; e outro: “as meninas preferem arrumar os quartos e limpar a escola”. A inscrição da ordem masculina nos discursos interdita tacitamente a inserção das meninas em determinadas atividades destinadas para os homens. Enfim, durante a pesquisa foi possível perceber a força expressiva com que as famílias projetam o futuro dos filhos a partir da crença na escola e no ganhar dinheiro. É com base nessas crenças que, muitas vezes, os filhos são poupados do envolvimento com afazeres domésticos ou de trabalho na roça. Pais e mães justificam o esforço que fazem para que os filhos estudem: “(...) quero que eles tenham um futuro que infelizmente não consegui conquistar”.

Trajetos e redes de sociabilidades das famílias Em quase todas as famílias que participaram da pesquisa, a mulher detém o “cartão” do PBF, o que lhe dá o acesso ao dinheiro e à definição do seu destino e a torna reconhecida pelo Estado e no mercado. A posse do cartão afeta profundamente as suas rotinas e os seus trajetos, requalificando e alargando a sua rede de relações. Na pesquisa, acompanhando trajetos de mulheres e homens, jovens e crianças, foi possível identificar as “estações” (GIDDENS, 2003) ou os lugares no trajeto onde se adensam o tempo/espaço da realização da vida. Além da casa, posto de saúde, escola, feira, mercado, casa lotérica, banco, igreja e vizinhança são paradas obrigatórias onde se materializam a apropriação e os usos do PBF pelas famílias, com a mulher protagonizando as ações. Mas, cada membro da família tem as suas próprias estações. Seguindo as suas trajetórias e observando onde param e o que fazem nessas paradas, pode-se dimensionar o que são, para esses personagens, as suas redes de sociabilidade. A forte presença de mulheres nas rodas de conversa realizadas ao longo das pesquisas, mesmo quando se teve o cuidado de convidar a comunidade, indica que é consenso na região que PBF se liga à mulher. Provocadas a falarem sobre o assunto, as mulheres, por unanimidade, concordaram em afirmar que cabe a elas a apropriação e o uso do dinheiro, pois, de acordo com as suas representações, elas sabem dar melhor destino ao dinheiro, que é destinado ao atendimento do que elas consideram as principais necessidades da casa. É um dinheiro para a casa e, portanto, deve ser gerido por elas. Ao serem provocadas pela pergunta: “(...) e se fosse o homem o que recebesse o dinheiro?”, a resposta começa com risos e com uma exclamação que faz coro: “hum... ficava metade no meio do caminho;” outras diziam: “todo não chegava em casa”; outra: “a mulher é que sabe o que precisa dentro de casa”. Essa unanimidade forma redes sociais, estabelece vínculos e, principalmente, altera a posição da mulher na sociedade. Ela afeta a própria autoestima da mulher. A sua disposição para participar de encontros referentes ao PBF, chegando a enunciar iniciativas e/ou promessas de rompimento de relação de subordinação ao homem/marido, foi bem traduzido pela resposta de uma delas, quando a amiga lhe perguntava com quem havia deixado “os meninos”: “Ah! Deixei com ele e disse que tinha uma reunião do ‘Fome Zero’, e que ele tomasse conta dos meninos porque eu não sabia que horas ia voltar”. A fala, acompanhada de expressão de

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contentamento e risos, indica um misto de vitória e dúvida. Atitudes assim foram neficiárias do programa, que possibilitam ampliar as suas redes de relações, já que agora elas andam por outros caminhos e demoram em outras estações, para além das estações tradicionais da mulher local: a casa, os vizinhos e a igreja. Mas, a despeito desses deslocamentos nas rotinas e nos trajetos que tornam as mulheres visíveis no comércio, nas filas das casas lotéricas e em estações que se tornaram obrigatórias para os beneficiários do Programa, e apesar de se ter instituído e legitimado a ideia de que o recebimento do beneficio deve ser feito “preferencialmente” por mulheres, na pesquisa ficou nítida a impressão de que tudo isso é ainda insuficiente para produzir deslocamentos mais profundos nas relações hierárquicas de subordinação homem-mulher e, sobretudo, quando se refere à participação na esfera pública. Ficou visível que se reforça com o Programa, na prática e nas representações, o lugar/papel tradicional da mulher de cuidar da casa. Produz-se uma espécie de desencontro entre o alargamento “físico” dos trajetos e a manutenção da ideia de que o lugar da mulher é a casa. Se, por um lado, é quase nula a presença de mulheres em organização sociais tradicionais (associações comunitárias, sindicatos, cooperativas) e que se situam para além dos trajetos “obrigatórios”, por outro, elas criam e ingressam em novas redes, e se encontram com mais frequência com pessoas que antes não faziam parte das suas redes. Esses novos trajetos e paragens complexificam o seu território, abrindo o leque das sociabilidades advindas dos conteúdos novos de informações que são obrigadas a adquirir para atender às novas demandas do ser mulher, como a de ser responsável pela administração do cartão do PBF. Acompanhando mulheres nos seus trajetos, foi possível observar, por exemplo, para além das relações de mercado, o estabelecimento “espontâneo” de uma rede de “entre ajuda” e solidariedade que funciona,

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verificadas em muitas comunidades, apontando para mudanças na rotina das be-

por exemplo, quando convém esclarecer dúvidas sobre os locais próprios para tirar a documentação ou sobre exigências do Programa e, ainda, para facilitar estratégias de acesso a locais e pessoas mais indicadas para resolver problemas. Nas comunidades locais, o PBF estabeleceu-se como espaço de apoio mútuo, rompendo com a sua formalidade, que exclui relações de horizontalidade19. Os encontros se refazem em lugares tradicionais, como nas rodas de “cata/quebra de licuri”, ou em lugares novos, como postos de saúde. Certeza e medo – medo por que não é um direito, é uma espécie de dádiva e é incerta – se misturam refazendo a vida da mulher. Se, por um lado, o dinheiro do Programa é certo (quantidade certa), contraditoriamente, é produtor de medo (a sua chegada é incerta). “Todo final de mês o medo bate”; por quê? “Medo de botar o cartão e não sair dinheiro; com que vou pagar as dívidas?” Os relatos expressam o caráter dessa vida precária, dessa nova precariedade, não mais necessariamente da falta de comida, mas de uma vida sujeita a determinações incontroláveis, cada

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O PBF é baseado em relações verticais tendo nos extremos o Estado e a família/indivíduo,

mediado por um sistema técnico e pelas condicionalidades, que transformam o beneficiário em objetos de controle.


vez mais fluídas e modeladas por programas que embutem incerteza, inconstância, imprevisibilidade. Institui-se um modo de vida que exige autorização do outro. “Hoje tem, amanhã não se sabe”. É assim também com o trabalho: não é “fixo” e nem “certo”. Daí os dias vividos sob-riscos e medos. Fragmentação, instabilidade, incerteza e fé (rezam muito) integram o cotidiano das famílias e afetam, sobremaneira, a mulher na condição de responsável pela casa, educação e saúde dos filhos, com o dinheiro “certo”, mas “incerto”.

Deslocamentos nos hábitos alimentares e nos cardápios Embora a presença de produtos como o feijão, a farinha de mandioca, o feijão de corda e o fubá de milho, tradicionais produtos agrícolas das famílias, sejam consumidos quase todos os dias em quase todas as famílias pesquisadas, é em termos de continuidade/descontinuidade de hábitos alimentares, inscrita, inclusive, numa ordem geracional, que se expressam algumas exigências, antes ausentes, agora “naturalizadas”. Chamam a atenção, nas rodas de conversa, os conflitos de mães com relação a exigências de filhos pela inserção de alguns elementos no cardápio diário, marcando um ponto de clivagem na mudança de hábitos e de gosto:

[...] na mesa tem cuscuz e café, e o menino pergunta: cadê a manteiga? Não tem manteiga, não. Então eu não quero; é assim que eles respondem. A gente nunca teve manteiga e nunca reclamou; agora não, eles não comem o cuscuz sem manteiga. Vocês lembram? Era cuscuz seco [...]. O grupo confirma com entusiasmo e relata episódios semelhantes para confirmar: “hoje está tudo mudado”. Desses relatos pode-se inferir que, hoje, a decisão sobre o que consumir é pautada cada vez mais pela geração que experimenta o viver numa organização social definida pelo dinheiro e pela escola (merenda escolar), principalmente o dinheiro da economia pública, que traça contornos nas relações e nas dinâmicas sociais do TIBJ. No plano simbólico, nomes de alimentos antes comuns, a exemplo do “bengo” (animal parecido com o sariguê), “fufuta” (milho torrado, pisado no pilão, misturado com rapadura e cessado na peneira), “rabo seco” (mistura de farinha, pimenta e sal), dentre outros, são pronunciados pelas mulheres (nas rodas de conversa) como acidentes de vida cercados de um antes e um depois. É com certo constrangimento e como memória que os nomes desses alimentos aparecem nas conversas, diferente do modo como se referem aos alimentos adquiridos no mercado. Durante as visitas, saltava aos olhos a presença marcante da bolacha, exibida em vasilhames para os pesquisadores e saboreada por crianças, numa expressão de detentora de um gosto de prestígio social, contrastando, no entanto, com as condições precárias de vida. Dados quantificados com base em questionário resultante de uma pesquisa anterior indicam que mais da metade dos produtos alimentares consumidos pelas famílias são obtidos por meio da compra e não mais da produção direta. Produtos até recentemente considerados estranhos, como pão, macarrão, embutidos industrializados, produtos enlatados, frutas, como a maçã e a uva, ingressaram no cardápio das famílias; enquanto isso, produtos de consumo

141 OPROGRAMA BOLSA FAMÍLIA E AS RELAÇÕES DE GÊNERO E GERAÇÃO NA AGRICULTURA FAMILIAR DO SEMIÁRIDO DO NORDESTE


tradicional, como feijão, farinha de mandioca e milho são adquiridos no mercado,

Essa combinação de produtos tradicionais com novos e, também, a presença crescente de produtos adquiridos no mercado são indícios de uma continuidade/descontinuidade nos hábitos alimentares, favorecendo uma disposição de gosto por produtos produzidos fora do domicílio. Isso decorre em grande medida, da tendência para a monetarização das relações sociais e dos sistemas produtivos, articulada com a tendência de urbanização de hábitos, para o que contribui de modo significativo o ingresso das crianças na escola e, principalmente, em escolas localizadas na cidade. Essa disposição para a mudança dos hábitos alimentares é reforçada, ainda, pelo acesso à televisão, presente em quase todos os domicílios pesquisados. Com relação aos hábitos alimentares, chamou a atenção, nas pesquisas, o pequeno peso relativo do consumo de aves e porco. Há não muito tempo, criar e consumir galinha, e também porco, era algo quase inerente ao ser agricultor familiar na região. Além de diminuir a produção desses animais, no mercado, a preferência recai sobre outras carnes, consideradas mais nobres, inclusive embutidos. Nas rodas de conversas ouviu-se muito falar do pão e do macarrão, dando a impressão de que são alimentos de todos os dias. Durante uma visita, perguntou-se a um grupo de crianças: “se chegasse alguém na escola e dissesse: hoje vocês poderão escolher entre feijão e macarrão, o que vocês escolheriam?” A resposta veio na forma de um grito: “macarrão!”. Com relação ao feijão e ao arroz, que se acreditava estarem em todas as mesas da população do Território, mais de 30% das respostas a um questionário (foram entrevistadas 450 famílias) mencionaram estes produtos entre os de pouco ou nenhum consumo. Estaria em marcha na região, ao que parece, um processo de produção de novos padrões alimentares, formador de novos paladares, que exclui o que é da roça, principalmente por ser da roça.

Introdução e Temas transversais

avaliação de políticas públicas: REFLEXÕES acadêmicas sobre o Desenvolvimento Social e o Combate à Fome

o que sugere a precariedade da produção no próprio estabelecimento.

Essa percepção não é um atributo exclusivo desta pesquisa. Em um dos municípios do Território, por exemplo, a Secretaria da Agricultura desenvolve um programa visando a interferir nesse processo. Dentre as atividades do programa, são realizadas oficinas com a finalidade de desenvolver tecnologias para o aproveitamento de produtos da região e de interferir no cenário das representações, produzindo novos nomes para determinados alimentos, frutas e legumes da região. Por exemplo, com relação ao umbu, fruta típica da região, aprende-se a fazer “conserva”, que é renomeada e chamada “azeitona do sertão”. Azeitona é um símbolo do mundo urbano. Entende-se que há distintas maneiras de formar hábitos; e que a formação de hábitos se vincula às condições materiais dos sujeitos sociais que os produzem; e que estes sujeitos sociais se inserem em contextos (estruturas de tempos e espaços) determinados. Assim, por exemplo, nas circunstâncias atuais da agricultura familiar do TIBJ, o PBF constitui-se como elemento estruturante. O dinheiro do Estado e a voz do Estado (dos seus peritos) que são assimilados pelas famílias com a mediação das condicionalidades, são portadores de uma enorme capacidade de determinação: colocam no centro do cenário a mulher, a criança e a compra (de alimentos). Esse poder de interferência é acrescido na medida em que a criança vai para a escola, na cidade, onde recebe uma merenda que inclui, invariavelmente,


produtos industrializados; enquanto isso, a mulher vai para o Posto de Saúde, onde recebe formação sobre hábitos alimentares. Ora, a mulher é a encarregada de, ouvindo as crianças, colocar a comida na mesa. Estudo realizado em 2008 pelo Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (IBASE) (Repercussões do Programa Bolsa Família na Segurança Alimentar e Nutricional das Famílias Beneficiadas chega a conclusões similares às que se chegou neste trabalho: indica-se, por exemplo, que a dieta de 55% das famílias do PBF é composta por alimentos de maior densidade calórica e menor valor nutritivo; acrescenta-se, no mesmo estudo, que 21% dos beneficiários do PBF, cerca de 2,3 milhões de famílias ou 11,5 milhões de pessoas, se encontram em situação de insegurança alimentar grave; e que 34% dos beneficiários, ou 3,8 milhões de famílias, ou, ainda, 18,9 milhões de pessoas, estão em situação moderada (IBASE, 2008).

CONCLUSÃO No TIBJ, a relação dos agricultores familiares com o Estado tornou-se estruturante nos modos de produção de sua vida. Não se trata, no entanto, de qualquer Estado, mas do Estado do PBF, um Estado que controla, pela via deste programa, dois poderosos mecanismos de “desencaixe”: as “fichas simbólicas”, particularmente o dinheiro, e o “sistema de peritos”, ou seja, a capacidade de produzir crenças pela disseminação de aparatos simbólicos e normativos. Os agricultores familiares, ao se apropriarem do PBF, assimilando-o na produção do seu cotidiano, requalificam-se requalificando a própria realidade vivida. O PBF, na sua efetividade, deixa de ser, assim, apenas o programa formal, para tornar-se também um ingrediente nas estratégias de produção de vida de uma população. É, portanto, do encontro/desencontro entre esses dois personagens que emergem as principais expressões de deslocamentos na realidade dessa população. Neste trabalho, fixando o olhar neste espaço, e através de pesquisas qualitativas, procurou-se cartografar expressões desses deslocamentos. Iniciou-se traçando alguns dos contornos do Território e do que caracteriza um dos seus personagens centrais, o agricultor familiar. Ambos - Território e agricultores familiares - foram qualificados como realidades situadas na fronteira da produção do humano, ou onde a desumanização se encontra/rompe com as perspectivas de produção do humano. A precariedade é o termo que permite ingressar nesse contexto e identificar, por um lado, o Território como território do dinheiro e, por outro, a agricultura familiar como uma realidade que se constitui na entreface entre as economias mercantil, pública e gratuita e onde a economia pública torna-se o agente/ingrediente principal para a produção da vida. Mas, para além dos deslocamentos nas estruturas da realidade, o que interessou neste trabalho foi identificar as mudanças produzidas no âmbito das relações de gênero e geração na agricultura familiar. A família e, mais especificamente, a família “beneficiário” do PBF foi tomada como a unidade que estrutura a investigação. Olhando para a família foram abertas quatro portas que, conforme nosso entendimento, permitiriam o mergulho dos investigadores na realidade dos agricultores: a dos modos/estratégias de produção de vida, a da distribuição das tarefas na unidade familiar, a dos trajetos dos membros da família dando origem aos seus territórios e a dos cardápios/hábitos alimentares.

143 OPROGRAMA BOLSA FAMÍLIA E AS RELAÇÕES DE GÊNERO E GERAÇÃO NA AGRICULTURA FAMILIAR DO SEMIÁRIDO DO NORDESTE


Situados nesse contexto, como conclusão do trabalho, pode-se alinhavar pelo meda pesquisa, mas abrem portas para estudos futuros) ou ganchos que permitem identificar deslocamentos nas relações de gênero e geração na agricultura familiar do TIBJ: 1) A situação de precariedade – traço marcante na vida dessa população – ganha novos conteúdos e significados. Na agricultura familiar do TIBJ, tradicionalmente, a precariedade se manifesta nas estruturas fundiárias, nos sistemas de produção agropecuária, nos sistemas de tecnologias adotadas, nas relações dos agricultores com os “compradores de diárias” e agenciadores de mão de obra, no sistema de financiamento da produção e nas estruturas de moradia das famílias. Essa precariedade se desdobra, mais recentemente, com a disseminação pelo Estado/sistema de peritos da crença na superioridade do habitus urbano, com a substituição de políticas de desenvolvimento por políticas de assistência (de baixo grau de institucionalidade e pautadas pela transferência de mínimos existenciais), com a incapacidade das famílias de assegurarem a permanência das novas gerações no campo (e a reprodução da própria agricultura familiar), com a crescente necessidade de produzir/apropriar-se de mais e mais dinheiros para garantir a sobrevivência e com a criação de um clima de medo, um medo abstrato, “quase sem objeto”, inqualificado. É possível afirmar, nessas circunstâncias, que um dos traços mais marcantes da nova realidade da agricultura familiar do TIBJ consiste na combinação de um forte sentimento de insegurança, medo e fluidez. 2) No campo da produção da vida, as três economias se reconfiguram e se reestruturam as relações entre elas. O campo da produção da vida na agricultura familiar no TIBJ envolve estratégias onde se combinam/descombinam traços das três economias: mercantil, pública e gratuita. Mas, olhando numa perspectiva his-

Introdução e Temas transversais

avaliação de políticas públicas: REFLEXÕES acadêmicas sobre o Desenvolvimento Social e o Combate à Fome

nos quatro grupos de considerações (que não esgotam a análise dos resultados

tórica, é possível afirmar que a configuração de cada uma dessas economias e, também, as estruturas e dinâmicas de relações entre elas passaram por grandes transformações. Os agricultores familiares continuam produzindo alimentos e uma diversidade de tipos de bens nos seus próprios estabelecimentos; eles continuam vendendo produtos da roça e da sua arte e comprando nos mercados; eles continuam vendendo diárias (que, também, continuam sendo chamados “dias de macaco”) e assalariando-se em regiões distantes para completar a renda e/ou para mudar de vida; entre vizinhos e parentes, eles continuam trocando e/ou doando ajudas, trabalho e coisas. Mas, com a monetarização das relações, cresce a tendência em substituir a produção e a doação de alimentos e bens pela produção e doação de dinheiro. Além disso, se, por um lado, o lugar da produção de dinheiros tende a se deslocar do


interior do estabelecimento para fora (cresce a importância da venda de força de trabalho), por outro, com o crescimento relativo da importância da economia pública pautada na transferência de dinheiros, as estratégias de produção de dinheiros tendem a buscar um ponto de equilíbrio na relação com estratégias de apropriação de dinheiros. 3) Com as mudanças nas posições (estruturas) e nas disposições (estruturantes) nas relações entre as economias, mudam igualmente as posições/disposições dos membros da família na unidade familiar. Essas mudanças podem ser apanhadas a partir de uma grande diversidade de pontos de vista. No entanto, é no contexto das relações de gênero e geração que essas mudanças são mais visíveis. Na media em que o dinheiro se transforma em produtor de posições/disposições (monetarização), em que a apropriação de dinheiros (economia pública) se legitima e desloca (simbolicamente) para segundo plano as estratégias de produção de dinheiros (economia mercantil), e em que a mulher é alçada como o agente principal na apropriação de dinheiros (de transferências), alteram-se de uma só vez as posições/disposições dos membros da casa. A mulher deixa de ser aquela que apenas ajuda para tornar-se portadora de um cartão que lhe permite o ingresso (limitado, certamente, aos mínimos desses dinheiros) nos mercados e, também, nos sistemas políticos; por conta das condicionalidades dos sistemas de transferência/apropriação de dinheiros, os filhos deixam a roça para se tornarem estudantes. Na escola aprendem a “urbanidade” que inclui, por exemplo, hábitos alimentares e de relacionamento com as coisas do mercado. Indo para casa, essa criança passa a ditar novos hábitos, que produzem novos paladares. Nascem uma nova mulher e uma nova criança; mas, a “nova” é tão nova quanto precária, apesar de a precariedade, agora, não residir mais na pobreza de comida, mas na pobreza da desumanização: para legitimar o poder de quem o tem, ela é destituída pelo sistema de peritos da sua qualidade; nasce o “homem sem qualidade”, de Robert MUSIL (2006). 4) Produz-se, enfim, um deslocamento que não é, provavelmente, um verdadeiro deslocamento, pelo menos se considerado da perspectiva do Estado: da “Convivência com o Semiárido” para as rotinas do consumo. Nos tempos – não distantes - da efervescência dos movimentos sociais e do seu reconhecimento como interlocutores do Estado para a produção do desenvolvimento rural, a “Convivência com o Semiárido” era o lugar da agregação e de um projeto que se propunha a romper com séculos de dominação sobre as populações do Semiárido. Tendia-se, pelo menos no discurso e através de alguns instrumentos de políticas, a fortalecer a produção nos estabelecimentos de agricultura familiar ou a inserir o agricultor no mercado, fortalecendo a sua qualidade de produtor. Os novos modelos de políticas que propõem transformar os pobres em consumidores anulam a própria ideia de “Convivência com o Semiárido”, transformando-a, pelo menos na perspectiva do Estado, em um novo mito.

145 OPROGRAMA BOLSA FAMÍLIA E AS RELAÇÕES DE GÊNERO E GERAÇÃO NA AGRICULTURA FAMILIAR DO SEMIÁRIDO DO NORDESTE


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Introdução e Temas transversais

avaliação de políticas públicas: REFLEXÕES acadêmicas sobre o Desenvolvimento Social e o Combate à Fome

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147 OPROGRAMA BOLSA FAMÍLIA E AS RELAÇÕES DE GÊNERO E GERAÇÃO NA AGRICULTURA FAMILIAR DO SEMIÁRIDO DO NORDESTE


Maria do Rosário de Fátima Andrade Leitão1 Pedro Henrique Dias Inácio2

“Denunciei a fome como flagelo fabricado pelos homens, contra outros homens”. Josué de Castro (1980)

Introdução e temas transversaIs

avaliação de políticas públicas: ReFleXÕes acadêmicas sobRe o desenvolvimento social e o combate à Fome

O PROGRAMA BOLSA FAMÍLIA NA VOZ DAS pescadoRas aRtesanais do litoRal de PERNAMBUCO.

1

DouToRA uNIvERSIDAD CoMPLuTENSE DE MADRID. LÍDER Do GRuPo DE PESQuISA DESENvoLvIMENTo E

SoCIEDADE CNPQ/uFRPE E PARTICIPANTE Do NAvI - NúCLEo DE ANTRoPoLoGIA AuDIovISuAL E ESTuDoS DE IMAGEM DA uNIvERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA – uFSC. 2

MESTRE EM HISTÓRIA, BoLSISTA DE ExTENSão Do CNPQ (ExP-3), PARTICIPANTE Do GRuPo DE PESQuISA

DESENvoLvIMENTo E SoCIEDADE DESDE MARço DE 2011.


INTRODUÇÃO O artigo aborda o discurso das pescadoras sobre os impactos do Programa Bolsa Família (PBF) na vida destas trabalhadoras da pesca artesanal no litoral de Pernambuco, um tema pouco pesquisado. O texto busca visibilizar o discurso por elas construído sobre a transferência de renda a partir de suas narrativas. Ao mesmo tempo esta pesquisa dá continuidade a outras experiências de trabalhos acadêmicos resultantes de vários projetos de pesquisa e extensão universitária, desenvolvidos no Grupo de Pesquisa Desenvolvimento e Sociedade CNPq/UFRPE3 atuante desde 2002. A pesquisa ancorada na perspectiva dos Direitos Humanos cuja declaração advêm de 1948, consiste num instrumento que reconhece o direito de liberdade e igualdade entre homens e mulheres e, em outros documentos que foram criados neste processo de construção de equidade de gênero. O tema gênero e pesca aqui considerado na perspectiva de transversalidade de raça e classe social está relacionado ao conceito de patriarcado4, que nos dá subsídios que possibilitam compreendê-lo a partir das desigualdades entre feminino e masculino. Desigualdades que são historicamente construídas e legitimadas pela sociedade. Em todo o processo de pesquisa, o recorte de gênero5 esteve presente, considerando que as mulheres são priorizadas no PBF como sendo a responsável legal e preferencial para o recebimento do benefício. Além disso, as mulheres pescadoras vivenciaram durante várias décadas, a precarização do trabalho e a exclusão de direitos sociais. Até o ano de 1979, as Colônias de Pescadores eram controladas pela Marinha de Guerra, e como esta instituição não aceitava mulheres em seu quadro de trabalhadores, as pescadoras não podiam ser atores sociais na instituição que representavam os trabalhadores da cadeia produtiva da pesca. A partir de 1979, as pescadoras solteiras6 puderam obter seu reconhecimento profissional, mas dependem até hoje, assim como os homens, que o/a presidente de colônia e mais duas testemunhas atestem que são profissionais da pesca. Apesar de seus papéis ativos na atividade da pesca, as mulheres são, muitas vezes, consideradas ajudantes ou companheiras de pescadores, o que revela as dificuldades de reconhecimento de sua profissionalização na colônia de pescadores e nas instituições7 que validam sua posição de trabalhadora socialmente reconhecida na cadeia produtiva da pesca.

3

Os projetos envolvem organizações não governamentais e órgãos públicos, como Ministério

da Pesca e Aquicultura (MPA), Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM) e Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). 4

Para aprofundar o tema ver (SAFFIOTI, 2004).

5

Para aprofundar o conhecimento sobre estudos de gênero (HEILBORND e SORJ:1999)

6

Na Constituição 1988 as pescadoras tiveram acesso ao Registro Geral da Pesca e

consequentemente aos direitos sociais. 7

No diagnóstico elaborado no projeto “Ações para Consolidar a Transversalidade de Gênero

nas Políticas Públicas para a Pesca e Aquicultura do MPA”, verificou-se nas entrevistas realizadas com pescadoras de Pernambuco, Ceará, Paraíba e Pará a existência de queixas em relação ao Instituto Nacional de Segurança Social, Ministério do Trabalho e, algumas vezes, ao Ministério de Pesca e Aquicultura. Convênio MPA/078/2009.

149 O PROGRAMA BOLSA FAMÍLIA NA VOZ DAS PESCADORAS ARTESANAIS DO LITORAL DE PERNAMBUCO.


O aporte teórico sobre gênero está fundamentado entre outros/as autores/as em COVICI, 2009), análise de discurso (FOUCAULT, 1987) e sobre o Programa Bolsa Família algumas leituras que subsidiaram os debates se concentraram nas seguintes obras: (SUÁREZ e LIBARDONI, 2007; CUNHA, 2009; VIEIRA, 2009; PAES-SOUSA, 2009; MAGALHÃES, 2009; MENEZES, 2010; ANNAND, 2010; SAMPAIO, 2010; ANANIAS, 2010; ABRAMO, 2010; SILVA, BRANDÃO e DALT, 2009; MELO e DUARTE, 2010; GALVÃO, 2008; CALDEIRA, 2008; LUCAS e HOFF, 2008; KLEIN, 2007 e CRUZ, 2010). Ao iniciarmos a pesquisa “Relações de Gênero e Políticas de Desenvolvimento Social e Combate à Fome: Diagnóstico e avaliação na pesca artesanal do litoral de Pernambuco”, não imaginávamos que registraríamos as seguintes afirmações, sobre os impactos do Programa Bolsa Família, na vida das pescadoras artesanais do litoral de Pernambuco:

“Antes nem pegava em dinheiro...”8 “Melhorou muita coisa...”9 “Agora tenho um dinheiro certo todo mês”10 “Agora a gente tem o que comer...”11 “Antes era na maré, só comia ostra e sururu, agora posso comer carne e galinha”12 “No inverno ajuda muito, depois disso (do benefício) eu não me preocupo, tenho o alimento da minha família”13

Introdução e Temas transversais

avaliação de políticas públicas: REFLEXÕES acadêmicas sobre o Desenvolvimento Social e o Combate à Fome

(LEITÃO, 2010), (MANESCHY et al, 1995), (SORJ, 2010); representações sociais (MOS-

“Os homens não sabem das necessidades da mulher”14 “Porque a mulher sabe administrar melhor que o homem”15 “O homem gasta com cachaça”16 “Agora nas festas pode comprar roupa e levar presente”17

8

Para efeito de notação e arquivamento, as entrevistas obedecem a seguinte formação/

chamada: QUEST (Prefixo) + NÚMERO GERAL + ABREVIATURA DE LOCALIDADE. QUEST88SJ 9

QUEST25ITA

10

QUEST87SJ; QUEST85SJ

11

QUEST95SER;

12

QUEST36TEJU

13

QUEST75IGA

14

QUEST67CARNE

15

QUEST60CARNE

16

QUEST72CARNE; QUEST61CARNE

17

QUEST41TEJU


Estes relatos impactantes são ainda muito mais contundentes do que a informação que nos influenciou a trabalhar nesta temática e nos candidatarmos ao edital. A sensibilização para ouvir as pescadoras sobre a política de transferência de renda aconteceu a partir de conversa informal na sede da Colônia Z-10 com uma pescadora de Itapissuma que nos confidenciou que utilizaria os recursos do PBF para pagar as mensalidades do curso de flauta para a filha que havia sido aprovada no Conservatório Pernambucano de Música. Esta primeira narrativa nos motivou a conhecer este Programa de transferência de renda a partir da narrativa das pescadoras. A partir desta introdução, informamos que neste texto sobre o Programa Bolsa Família, resultado da pesquisa, “Relações de Gênero e Políticas de Desenvolvimento Social e Combate à Fome: Diagnóstico e avaliação na pesca artesanal do litoral de Pernambuco”, nossa atenção estará focada em alguns subtemas que se destacam no discurso das pescadoras, anteriormente citado. Em síntese, nos 10 enunciados acima mencionados são relevantes as questões que envolvem: 1) acessibilidade ao recurso financeiro e a segurança do recebimento mensal de um benefício econômico; 2) a presença e evidência do fomento à segurança alimentar destas famílias; 3) as questões que identificam as representações sociais sobre as relações de gênero, a partir da entrega do beneficio diretamente as mulheres.

MÉTODO As atividades foram iniciadas com o debate sobre a elaboração do instrumento de pesquisa coletivamente construído e a coleta no Banco de Teses da Capes, sobre teses e dissertações relacionadas ao Programa Bolsa Família. Na coleta de dados no Banco de Teses/Dissertações da CAPES, foram encontradas 09 teses e 99 dissertações. Foram encontrados os dados quantitativos nas seguintes áreas: 14 trabalhos nas Ciências Sociais; 27 no Serviço Social; 45 nas Ciências Sociais Aplicadas; 11 na Saúde; 2 em Demografia e 9 em outras áreas. As dissertações e teses foram elaboradas em Instituições de Ensino Superior, contando 79 nas Públicas e 29 nas privadas. No que se refere à produção bibliográfica na Pós-Graduação por Região tem-se: 3 na Região Norte; 28 na Região Nordeste; 47 na Região Nordeste; 21 na Região Sul e 9 na Região Centro-Oeste. Quanto a abrangência territorial das pesquisas 43 abordam o Programa numa dimensão nacional, os outros estudos 65 realizam estudos de casos, deste segundo grupo 04 sobre Pernambuco e metade, 02, sobre Recife. (LEITÃO e GOMES, 2011). As etapas seguintes, abaixo citadas, foram consideradas imprescindíveis no processo de execução do projeto, entre elas: nivelamento do conhecimento sobre o PBF, que foi priorizado para que toda a equipe18 se apropriasse

18

Participaram do Debate: Maria do Rosário de Fátima Andrade Leitão,Anderson Oliveira de Lima,

Claudia Maria de Lima, Clodoaldo de Souza Cavalcante Neto, Dimas Brasileiro Veras, Fernando Antônio Barros Duarte Barros Jr, Francisco Assis de Andrade Costa, Juliana Gomes de Moraes, Pedro Henrique Dias Inácio, Pedro Langsch, Phelippo de Oliveira Cordeiro Vanderlei, Iêda Litwak, Ivan Pereira Leitão, Maria Solange da Silva, Júlia Xavier Souto.

151 O PROGRAMA BOLSA FAMÍLIA NA VOZ DAS PESCADORAS ARTESANAIS DO LITORAL DE PERNAMBUCO.


da temática necessária à realização de todas as fases do projeto de pesquisa que dos dados. As reuniões aconteceram de forma periódica, cuja produção resultou na formação de um “Caderno de Discussões” onde os textos trabalhados no grupo de estudo envolveram as seguintes temáticas: transferência de renda, condicionalidades, combate a pobreza, desigualdade, inclusão social, cidadania, educação, trabalho Infantil, políticas de desenvolvimento social, educação, trabalho infantil, gênero e empoderamento. As reuniões periódicas do grupo de estudo, possibilitou nos debruçarmos sobre publicações que esclarecessem objetivos, condicionalidades, modos de execução do Programa e também a posição crítica dos/as autores/as, reflexões sobre a efetividade do programa de transferência de renda e os impactos no cotidiano das beneficiárias. A pesquisa é fundamentalmente qualitativa, por objetivarmos conhecer o discurso das pescadoras sobre o PBF, em suas especificidades e particularidades. O roteiro estruturado das entrevistas foi elaborado a partir de uma chuva de ideias com a participação de todos/as que fazem parte do Grupo de Pesquisa Desenvolvimento e Sociedade CNPq/UFRPE. Foram sistematizadas 88 entrevistas respondidas por pescadoras que recebem benefícios do Programa. Entrevistas realizadas em 11 localidades de 10 municípios do litoral de Pernambuco. As comunidades são: 1) Brasília Teimosa, 2) Olinda, 3) Pau Amarelo,4) Carne de Vaca, 5) Tejucupapo, 6) Itamaracá, 7) Igaraçu, 8) São José da Coroa Grande, 9) Serrambi , 10) Jaboatão dos Guararapes, 11) Abreu e Lima. O conjunto das respostas nos possibilitará escrever diversos artigos sobre os temas abordados nas entrevistas realizadas com pescadoras residentes no litoral pernambucano, considerando que são 32 questões sobre: 1) utilização dos recur-

Introdução e Temas transversais

avaliação de políticas públicas: REFLEXÕES acadêmicas sobre o Desenvolvimento Social e o Combate à Fome

envolveu a elaboração/aplicação do instrumento de pesquisa e sistematização

sos do Programa Bolsa Família, 2) possibilidade de mudança na dinâmica familiar com o advento desta transferência de renda diretamente para as mulheres, 3) as condições de moradia, 4) acesso à saúde e educação, 5) alimentação e 6) pesca artesanal. Importante ressaltar que estas questões buscaram incluir as diretrizes dos Objetivos do Desenvolvimento do Milênio (ODM). Também denominados “8 Jeitos de Mudar o Mundo”, o documento consiste num conjunto de metas pactuadas pelos governos dos 191 países-membros da ONU, compromisso estabelecido durante a Cúpula do Milênio, em setembro de 2000 na cidade de Nova York, com o propósito de contribuir na construção de um mundo mais justo, solidário e sustentável. Os objetivos priorizam os problemas considerados cruciais nas áreas de saúde, renda, educação e sustentabilidade, que devem ser debelados pelas nações até 2015. Resumidamente os 8 objetivos incluem as seguintes metas: 1. Reduzir pela metade o número de pessoas que vivem na miséria e passam fome. 2. Garantir a educação básica de qualidade para todos. 3. Fomentar a igualdade entre os sexos e mais autonomia para as mulheres. Dois terços dos analfabetos são mulheres.


4. Reduzir a mortalidade infantil. 5. Melhorar a saúde materna. 6. Combater epidemias e doenças. 7. Garantir a sustentabilidade ambiental. 8. Estabelecer parcerias mundiais para o desenvolvimento. Consideramos necessário abordar nas entrevistas os seis primeiros Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, com perguntas sobre as temáticas: renda, educação saúde, empoderamento, alimentação, lazer e trabalho. Esta inserção temática foi feita por considerarmos que estão inclusos na proposta de atuação do PBF a transferência de renda com condicionalidades na área de educação e saúde, que garante a titularidade do recebimento do beneficio prioritariamente às mulheres e envolve obrigatoriedade de frequência escolar; do acompanhamento médico no crescimento e desenvolvimento das crianças menores de 07 anos, acompanhamento no pré-natal, da saúde do bebê, da saúde das mulheres com idade entre 16 e 44 anos e de vacinação materna e infantil. A realização das entrevistas nas 11 comunidades acima citadas foi efetuada pela equipe de colaboradores/as que atuam no Grupo de Pesquisa Desenvolvimento e Sociedade CNPq/UFRPE. A equipe é composta principalmente por mestres, mestrandos/as e graduandos/as, nestas visitas as Colônias de Pescadores/as contou com a participação de líderes do movimento social Articulação de Mulheres Pescadoras de Pernambuco19, elas indicaram e contribuíram no agendamento com as comunidades a serem visitadas. Considerou-se necessária esta mediação para que a relação entre os diferentes atores sociais envolvidos, pesquisadores e pesquisadas, apresentasse um clima de confiança que possibilitasse respostas significativas a algumas questões tão pessoais. Para isso, faz-se importante ressaltar qual o conceito de mediação/moderação estabelecido nesta prática:

Moderação compreende a “condução de processo de discussão” cujo objetivo é promover a participação ativa de todos os integrantes do grupo na construção final do produto. Através de uma discussão objetiva e equilibrada (regulada e 19

A equipe do grupo de Pesquisa Desenvolvimento e Sociedade CNPq/UFRPE desenvolve com

a Articulação de Mulheres Pescadoras de Pernambuco o projeto Gênero, Raça e Pesca: Produção e Articulação das Pescadoras de Pernambuco/MDA/FADURPE/UFRPE.

Dito projeto realizou 21 Oficinas

Itinerantes para as mulheres nas Colônias de Pescadores do estado e uma I Feira de Economia Solidária da Pesca Artesanal em Pernambuco. As pescadoras da Articulação que nos acompanharam na coleta de dados são: Cicera Estevão Batista (COLÔNIA Z-07 em Rio Formoso), Enilde Lima Oliveira (COLÔNIA Z- 09 em São José da Coroa Grande), Josefa Ferreira da Silva (AMUPESPA no Cabo de Santo Agostinho),Lindomar Rodrigues de Barros (COLÔNIA Z- 09 em São José da Coroa Grande), Maria Aparecida Santana (COLÔNIA Z- 25 em Jaboatão dos Guararapes), Maria das Neves dos Santos (COLÔNIA Z- 18 em Lagoa do Carro), Joana Mousinho (COLÔNIA Z10 em Itapissuma), Natércia Mignac da Silva (COLÔNIA Z-1 em Brasília Teimosa), Vera Lúcia Maria da Conceição (COLÔNIA Z – 14 em Goiana).

153 O PROGRAMA BOLSA FAMÍLIA NA VOZ DAS PESCADORAS ARTESANAIS DO LITORAL DE PERNAMBUCO.


Importante comentar que na primeira comunidade visitada, Jaboatão dos Guararapes, os dados foram coletados utilizando o instrumento metodológico, grupo focal, mas foram realizadas entrevistas individuais nas outras 10 comunidades. A decisão por esta mudança na aplicação do instrumental metodológico se deve ao fato de que pesquisar sobre o PBF inicialmente gerava, entre as beneficiadas, certa apreensão sobre as possíveis consequências das respostas20, assim alguns entraves à comunicação poderiam gerar lacunas ou distorções na coleta de dados. Consideramos que o período de seis meses para a coleta de dados da pesquisa, não nos proporcionaria a certeza de que este diálogo mediado, entre diferentes atores sociais, poderia abrir espaço para troca de saberes, a partir de instrumentos da metodologia participativa, com a qual estamos acostumadas a trabalhar. Isso nos levou a um impasse, diminuir o número de comunidades, ou entrevistar de forma individualizada. Decidimos pela segunda opção, considerando que teríamos uma amostra mais consistente ouvindo relatos de pescadoras de diferentes localidades, distribuídas na Região Metropolitana do Município de Recife, no litoral norte e sul do Estado. Neste contexto, as entrevistas possibilitaram levantar dados entre outros aspectos sobre: 1) histórico e usos: coletamos dados sobre a temporalidade de recebimento do benefício, gasto/uso do benefício e percepções sobre as mudanças de vida de-

Introdução e Temas transversais

avaliação de políticas públicas: REFLEXÕES acadêmicas sobre o Desenvolvimento Social e o Combate à Fome

dentro de “limites justos”) procura-se criar um ambiente de confiança facilitando a comunicação entre os integrantes do grupo, orientando suas reflexões em direção aos objetivos deste para que se chegue aos resultados esperados. É importante que fomente a criatividade colaboração para um resultado de efeito expressivo. (COLETTE, 2010, p.14).

pois do recebimento do benefício; 2) mulher e convivência: averiguamos a titularidade e responsabilidade do gasto do benefício, a relação de empoderamento das mulheres no uso dos recursos da transferência de renda, a relação de convivência em casa com filhos e ou parentes a partir do recebimento e gestão do PBF; 3) saúde: conhecemos o acesso às diferentes instituições de saúde, clínicas, ambulância, realização de exames pré-natal, vacinação, recebimento de visitas de agentes de saúde e agenciamento de serviços nas instituições de saúde, serviços odontológicos, realização de atividades físicas e lazer; 4) alimentação: descobrimos a importância do PBF na segurança alimentar; 5) educação: identificamos a percepção das mulheres sobre aprendizado e interesse das crianças na escola e a contribuição do benefício na melhoria da educação; 6) políticas públicas: coletamos dados relacionados ao acompanhamento e disponibilidade das prefeituras sobre políticas de prevenção ao trabalho infantil, acesso das entrevistadas a outros programas sociais e sobre suspensão ou cancelamento do benefício; 7) políticas de pesca: 20

As inseguranças das pescadoras em falar publicamente sobre o benefício possivelmente

se deve ao pouco conhecimento que tem sobre os mecanismos de funcionamento do PBF. Sobre a forma como elas se apropriam do Programa (SUÁREZ e LIBARDONI, 2007, p. 139) comentam que: a apropriação do Programa pelas beneFIciárias se restringe ao recebimento de um dinheiro FIxo, que possibilita o melhor cumprimento de sua responsabilidade de cuidar das crianças. Receber o benefício signiFIca, para elas, cuidar melhor das crianças e, frequentemente, cuidar de mais crianças e, portanto, fortalecer seu papel central de maternagem e de coesão do grupo doméstico de que são responsáveis.


conhecemos as demandas das mulheres sobre políticas públicas para a pesca, a existência ou não de políticas locais de incentivo as atividades da pesca, além de comentários gerais sobre o Programa Bolsa Família.

A VOZ DAS PESCADORAS SOBRE O PROGRAMA BOLSA FAMÍLIA “Mais grave ainda que a fome aguda e total, devido às suas repercussões sociais e econômicas, é o fenômeno da fome crônica ou parcial, que corrói silenciosamente inúmeras populações do mundo”. Josué de Castro (1980)

Renda e Cidadania

155

Figura 1. Fotojornalista Juliana Leitão. Itapissuma/PE

As afirmações “agora tenho um dinheiro certo todo mês”; “antes nem pegava em dinheiro...”,“melhorou muita coisa...”, são algumas das respostas à pergunta sobre “qual a principal diferença encontrada na vida da pescadora antes e depois de receber o beneficio do Programa Bolsa Família?”. Sobre o Programa Bolsa Família (CUNHA, 2009, p. 324) chama a atenção para o debate internacional relacionado à redução da miséria e da fome, discussão que identifica como parâmetros fundamentais no processo de erradicação da pobreza e da redução da desigualdade as políticas sociais de transferência de renda. (PAES-SOUSA, 2009, p.389) atribui ao Programa a importância semelhante a outras três políticas sociais, implantadas na segunda metade do século XX: a extensão do direito previdenciário aos trabalhadores rurais não-contribuintes, nos anos 60; a implantação do Sistema Único de Saúde (SUS), a partir de 1988; e a ampliação da cobertura do ensino básico, nos anos 90. Magalhães destaca a necessidade de planejamento de ações de proteção social; da inserção das famílias em diversos serviços; do estabelecimento do perfil e grau

O PROGRAMA BOLSA FAMÍLIA NA VOZ DAS PESCADORAS ARTESANAIS DO LITORAL DE PERNAMBUCO.


de vulnerabilidade social das famílias; do subsídio a análise de casos complexos,

Nas entrevistas respondidas pelas pescadoras artesanais de Pernambuco, se evidencia a carência econômica e a condição de vulnerabilidade social em que vivem, tendo em vista os padrões de rentabilidade do trabalho da pesca artesanal, onde, segundo seus relatos, atingem uma média de R$ 150,0021 por mês, com rendas obtidas da venda dos produtos na maré. Neste contexto, a presença do benefício advindo do Programa Bolsa Família na composição do orçamento familiar, com acréscimos de recursos econômicos da transferência de renda variável entre R$ 32,00 e R$ 198,0022, consiste numa importante fonte de ingresso econômico para a manutenção da família. É importante destacar que existe mercado para os mariscos e crustáceos durante todo o ano nos bares, restaurantes e supermercados em todo litoral pernambucano, mas a venda não é realizada diretamente pelas pescadoras23, o que dificulta a geração de renda suficiente para o sustento de uma família, com a coleta, beneficiamento e comercialização destes produtos da pesca artesanal. No verão, a presença de turistas nas praias permite um aumento dos ganhos na venda direta ao consumidor, no inverno o produto diminui por causa das chuvas24 e as pescadoras estão mais dependentes da figura do “atravessador”. As narrativas das pescadoras são repletas de informações sobre as mudanças antes e depois do recebimento do benefício, sempre relacionado à obtenção de uma renda fixa e segura. Segundo elas antes de receberem os recursos do, qualquer fenômeno que limitasse os turistas e consequentemente o consumo dos pescados, impactava diretamente na manutenção familiar e na geração de renda das pescadoras artesanais.

Introdução e Temas transversais

avaliação de políticas públicas: REFLEXÕES acadêmicas sobre o Desenvolvimento Social e o Combate à Fome

como os de alta vulnerabilidade. (MAGALHÃES, 2009, p.418)

21

Importante considerar que muitas vendem a atravessadores ou trocam por outros produtos

necessários ao beneficiamento, por exemplo, sal e carvão. Também é importante mencionar que o produto mesmo produto (siri, caranguejo, aratu) obtêm preços mais competitivos no litoral sul, considerando que no litoral Norte e Região Metropolitana do Município de Recife seus preços são achatados pela presença de maior poluição ambiental. 22

Valores referentes ao ano de 2011.

23

Para ter uma ideia concreta da defasagem entre preços de mercado e os por elas praticados,

em situação de distanciamento entre a pescadora e o consumidor final, vamos relatar uma situação vivida pela equipe de trabalho em abril de 2009, quando na primeira visita a comunidade de Brasília Teimosa para iniciar um projeto da SPM/BR, as pescadoras ofereceram 6 quilos de siri beneficiado, por um total de R$18,00 dezoito reais, vale ressaltar que o preço de um quilo nos supermercados era de aproximadamente R$15,00. Outra situação vivenciada em Fortaleza na praia do Mucuripe, um pescador estava com um peixe fresco grande e queria vender por R$ 60,00 sessenta reais, os feirantes só queriam pagar R$ 43,00 quarenta e três reais, no restaurante em frente a feira do peixe nós havíamos consumido naquela semana uma peixada com apenas uma posta de peixe por este valor. Vale ressaltar que o produto perecível os/as tornam muito mais vulneráveis a estes atravessadores. 24

Afastam-se turistas e veranistas e a situação se agrava no período entre de abril e agosto,

quando as precipitações pluviométricas contribuem na baixa salinidade das zonas estuarinas, em muitas áreas é praticamente impossível extrair qualquer tipo de molusco durante estes meses, mesmo para a subsistência.


Tomando por base estes relatos, consideramos que um dos maiores problemas citados pelas pescadoras, e requisitado como ação para a implementação de políticas públicas para as mulheres trabalhadoras da cadeia produtiva da pesca, situa-se a manutenção dos estoques pesqueiros e a possibilidade de garantia de renda num fluxo mais constante, sem tanta variação sazonal, o que depende da conservação ambiental, da reprodução das espécies e de um comercio justo.

Segurança Alimentar A fome se revelou espontaneamente aos meus olhos nos mangues do Capibaribe, nos bairros miseráveis do Recife Afogados, Pina, Santo Amaro, Ilha do Leite. Esta foi a minha Sorbonne. Josué de Castro (2007)

157

Figura 2 e 3. Fotojornalista Juliana Leitão I Feira de Economia Solidária da Pesca Artesanal

As respostas das mulheres a primeira pergunta da entrevista encontravam-se, sobretudo, relacionadas às novas possibilidades de poder aquisitivo oferecido pelo Programa. As questões possibilitavam as seguintes alternativas: a) compra de alimentos; b) compra de vestuário; c) compra eletrodomésticos; d) investimento em algum curso profissionalizante; e) pagar contas (água, luz aluguel); Outros/gastos? Quais? Os relatos das pescadoras, majoritariamente estão relacionados à segurança alimentar, elas expressam os seguintes enunciados: “Agora a gente tem o que comer...”; “Antes era na maré, só comia ostra e sururu, agora posso comer carne e galinha”; “no inverno ajuda muito, depois disso (do benefício) eu não me preocupo, tenho o alimento da minha família”, também são respostas a indagação sobre qual a principal diferença encontrada na vida da pescadora antes e depois de receber o beneficio do Programa Bolsa Família. As narrativas por elas relatadas indicam problemas, considerados por elas como relevantes, consiste no caráter “incerto” e “inseguro” dos rendimentos no trabalho na pesca, por isso os impactos do PBF são tão visibilizados no discurso das trabalhadoras da cadeia produtiva da pesca no litoral pernambucano.

O PROGRAMA BOLSA FAMÍLIA NA VOZ DAS PESCADORAS ARTESANAIS DO LITORAL DE PERNAMBUCO.


Apesar do Programa de Aquisição de Alimentos, o PAA, ter propiciado o fortaleciagricultores no país, direcionando os produtos comprados pelo governo federal para as creches e escolas municipais e estaduais, além de hospitais e demais instituições públicas que oferecem alimentos aos usuários, sendo considerado um dos mais exitosos programas de consolidação do desenvolvimento social brasileiro, importante ressaltar que os produtos da pesca são parcialmente excluídos deste Programa. Entre as comunidades estudadas, o município de Jaboatão dos Guararapes atualmente adquire alimentos produzidos pelos pescadores, sobretudo, peixes de água salgada. No entanto, a incorporação de moluscos - mariscos, ostras, camarões e demais frutos do mar, que podem ser coletados e beneficiados pelas mulheres pescadoras, ainda não são suficientemente aceitos na dieta como alimentação cotidiana, principalmente em escolas e hospitais. Outro entrave ao ingresso das pescadoras no PAA, consiste na forma em que elas geralmente realizam o beneficiamento do pescado, a maioria não tem acesso a áreas impermeabilizadas por azulejos, balcão e cubas de inox, não atendendo as condições de manuseio estabelecidas pela vigilância sanitária. Esta situação gera as indagações: como resolver este impasse entre condições das pescadoras e as exigências sanitárias da segurança alimentar? Quais serão os encaminhamentos para solucionar estas questões estruturais? José Graziano Silva relaciona a solução para a fome à gestão participativa e equilíbrio ambiental, portanto, há importância em definir a questão social como elemento estruturador do governo. O autor também destaca que se faz necessária a multiplicação de mecanismos de compras e vendas diretas para reduzir custos e que é necessário se debruçar sobre os pressupostos relacionados ao de desenvolvimento local. (SILVA, 2004, p. 13-15).

Introdução e Temas transversais

avaliação de políticas públicas: REFLEXÕES acadêmicas sobre o Desenvolvimento Social e o Combate à Fome

mento da agricultura familiar e contribuído na segurança alimentar de milhares de

Neste contexto, as pescadoras de Pernambuco desempenham suas atividades a partir de economia familiar, geralmente praticando o extrativismo sem nenhum planejamento econômico e ambiental, numa sociedade regida pelo mercado e pela competitividade. Será que neste contexto, a cooperação, o comércio justo, a Economia Solidária, são algumas alternativas viáveis a estas trabalhadoras? Ou seja, priorizar a cooperação, a gestão coletiva em detrimento da competição, do individualismo e da precarização das condições de trabalho destas pescadoras geralmente marginalizadas de outros possibilidades de emprego e renda, além da manutenção da cultura gerada na pesca artesanal. A Economia Solidária, segundo OLIVEIRA e VERARDO, se apresenta como:

[...] perspectiva de desenvolvimento econômico e social baseado em novos valores culturais e em novas práticas de trabalho e de relação social. O desenvolvimento não se restringe ao crescimento econômico e deve abranger as relações entre as pessoas, a organização do trabalho, resgatar a dimensão humana na produção, na comercialização e no consumo. Deve rever as transformações sofridas no mundo do trabalho recuperando a relação entre trabalho e tempo livre e a questão socioambiental. Estamos falando de


desenvolvimento que envolve o social, o cultural, o político e o afetivo a partir do local, do espaço territorial e também no sentido mais geral, estamos falando de desenvolvimento sustentável (OLIVEIRA e VERARDO, 2007, p. 08). Estas questões acima suscitadas, embora não possa ser aprofundada neste artigo, o será em outras publicações. Tema relacionado à cooperação, ao comércio justo e a Economia Solidária que podem ser resumidas na letra da música PRESERVANDO A VIDA25, cujas compositoras são as pescadoras Maria das Neves, Glorinha, Ana Lúcia e Carminha:

Os rios com água Eu preciso Seu doutor Não privatize Não mate os peixes Não sobrevivo Sou pescador É preciso apelar para a consciência Muitas coisas tão fazendo para existência E permanência de peixes, rios e lagos Parte do mar já foi privatizado Lutamos contra. É violência, está errado. Lutamos contra o desenvolvimento insustentável Que mata os peixes e privatiza os nossos lagos. E o velho Chico está sendo violado. Nós não queremos Más ele está sendo rasgado O que queremos é nosso rio preservado Viva a vida e o meio ambiente! A finalização deste projeto apoiado pelo MDS/CNPq, previa um evento com as pescadoras, assim elaboramos juntamente com 26 pescadoras envolvidas na pesquisa, a I Feira de Economia Solidária da Pesca Artesanal em Pernambuco. Evento realizado entre dias 25 e 26 de novembro de 2011 no local conhecido como Pátio do Carmo no bairro de Santo Antônio, de Recife-PE.

25

Oficina realizada no projeto Gênero, Raça e Pesca: Produção e Articulação das Pescadoras de

Pernambuco/ MDA/FADURPE/UFRPE. Letra e música elaborada na oficina sobre meio ambiente na Colônia de Pescadores Z – 13, Jatobá, em 27de janeiro 2011.

159 O PROGRAMA BOLSA FAMÍLIA NA VOZ DAS PESCADORAS ARTESANAIS DO LITORAL DE PERNAMBUCO.


As pescadoras classificaram a participação na feira como boa e ótima. Nas suas narprojetos, em alguns casos, retorno financeiro significativo, o que fica evidente na fala de Natércia Mignac -“Ótima! Por que trocamos conhecimentos, lidamos direto com o consumidor, provamos e conhecemos os produtos das companheiras”.

Relações de gênero

Figura 4.FotojornalistaJuliana Leitão. Itapissuma/PE

No que se refere às relações de gênero, foram realizadas duas perguntas, uma sobre o recebimento do benefício proveniente do PBF ser pago diretamente as mulheres e, a segunda questionava se o benefício entregue as mulheres provocou

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rativas o evento trouxe conhecimento e experiências para novos trabalhos e novos

alguma mudança de convivência familiar, algum conflito e, se havia ocorrido mudanças nas relações familiares com o acesso a esta transferência de renda. Apesar de serem praticamente unânimes em responder que não existem conflitos relacionados à titularidade do benefício, algumas respostas são bem expressivas sobre as vantagens que elas enumeram ao serem sujeitos neste processo, entre as respostas se destacam: “os homens não sabem das necessidades da mulher”; “porque a mulher sabe administrar melhor que o homem”; “o homem gasta com cachaça”; “agora nas festas pode comprar roupa e levar presente”. Na cadeia produtiva da pesca é notória a situação precária de legitimação das mulheres como profissionais da pesca artesanal, isto se evidencia nos espaços de poder e participação política. Por exemplo: nas 11 Colônias de Pescadores pesquisadas no litoral de Pernambuco, apenas uma Colônias é presidida por mulheres. Vale ressaltar que no total de 31 Colônias de Pescadores em Pernambuco, apenas cinco26 são presididas por mulheres, e se trata de avanços recentes porque quatro delas foram eleitas no século XXI.

No que se refere à participação das mulheres nos movimentos sociais da pesca ar26

Itapissuma, Ponta de Pedras, Atapuz, São José da Coroa Grande e Tamandaré.


tesanal, (MANESCHY, ALENCAR e NASCIMENTO, 1995, p. 82) afirma que “rever, questionar e criticar o padrão de relações de gênero e o papel secundário das atribuições femininas é, portanto, tocar em visões de mundo e em atitudes muito arraigadas”. As autoras questionam a invisibilidade da pescadora na cadeia produtiva da pesca, considerando que elas geralmente aprenderam a arte de pescar com suas mães e, geralmente são elas quem transmite o conhecimento e a familiaridade com a atividade pesqueira as novas gerações, na medida em que necessitam levá-los muitas vezes as suas atividades laborais, na ausência de creches nestas comunidades. (MANESCHY, 1995, p. 86). A fragilidade social das mulheres profissionais desta cadeia produtiva tem influenciado nas decisões das pescadoras em se organizarem em movimentos sociais de resistência. O que representa uma mudança de paradigma em relação à imagem criada historicamente das pescadoras, que geralmente é compartilhada inclusive por elas mesmas, como “ajudantes” ou “dependentes”, atribuindo-lhes menor valor. Elas atuam em regime de economia familiar, realizando, na maioria das vezes, as atividades de tecer redes, beneficiar o pescado, catar mariscos, coletar e cultivar algas, pescar nos mangues e algumas vezes comercializar o produto nas praias. Pese a esta intensa participação laboral, este trabalho muitas vezes é caracterizado na condição de “ajuda”. Isto porque o conceito de gênero socialmente construído naturaliza a maternidade e o cuidado nas atividades de reprodução social, como ações inerentes as mulheres27. Sobre o tema SORJ (2010:57), afirma que “as desigualdades e diferenças de gênero repousam sobre uma norma social que associa o feminino à domesticidade e que se expressa na divisão sexual do trabalho, atribuindo prioritariamente às mulheres a responsabilidade com os cuidados da família”. Para a autora, cuidado é:

(...) um termo usado para referir-se a um conjunto de atividades diversificadas envolvidas no cuidado dos outros e pode assumir a forma de trabalho não pago, dedicado aos membros da família, ou de trabalho pago feito para outros. Concretamente essas atividades incluem cuidar das crianças, idosos, doentes, deficientes, bem como realizar tarefas domésticas como limpar, arrumar, lavar, passar, cozinhar etc. (SORJ, 2010, p.58) Relacionado à sobrecarga nas mulheres de atribuições que envolvem as atividades de reprodução social, SUÁREZ e LIBARDONI, na pesquisa sobre O Impacto do Programa Bolsa Família: Mudanças e Continuidades na Condição Social das Mulheres , explicam que:

O cumprimento das condicionalidades envolve 27

Numa reunião em Itapissuma em 11 de março de 2009, foi solicitado a um grupo de

aproximadamente 100 mulheres, que elas se apresentassem, elas se identificaram com o nome, o endereço de onde residiam e a quantidade de filhos e netos. Uma mulher se identificou com nome e endereço e complementou afirmando nunca haver tipo filhos. Não foi sugerido este tipo de informação na apresentação.

161 O PROGRAMA BOLSA FAMÍLIA NA VOZ DAS PESCADORAS ARTESANAIS DO LITORAL DE PERNAMBUCO.


Neste contexto a teoria das representações sociais, nos instrumentaliza a compreender o lugar que é atribuído às mulheres na pesca artesanal. Moscovici afirma que todas as pessoas enxergam o que as convenções, a cultura, a memória social e histórica permitem ver, e que não estaremos nunca livres de todos os preconceitos. (MOSCOVICI, 2009, p.40) Pensar, refletir, debater sobre o lugar das mulheres como sujeitos sociais na pesca artesanal brasileira, nos conduz a reflexões teóricas que dialoga com a imagem socialmente construída e a possibilidade de discurso legitimado numa sociedade que cristaliza as desigualdades sociais. Moscovici afirma que:

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principalmente as mulheres que recebem o benefício, em virtude da figura do marido ou companheiro estar ausente em muitos deles. Além disso, a presença do cônjuge, na maioria dos grupos domésticos, não influi muito quanto ao cumprimento das condicionalidades porque a postura da mãe pesa mais do que a do pai na tomada de decisões referentes à educação, saúde e tudo que tenha a ver com os filhos. Sozinhas ou acompanhadas, a feminilidade das mulheres entrevistadas se firma na maternagem, entendida como o desempenho do papel de cuidar de crianças, seja na qualidade de mãe, seja na de mãe substituta. (SUÁREZ e LIBARDONI, 2007, p.124 ).

De modo geral, minhas observações provam que dar nome a uma pessoa ou coisa é precipitá-la (como uma solução química é precipitada) e que as características daí resultantes são tríplices: a) uma vez nomeada, a pessoa ou coisa pode ser descrita e adquire certas características, tendências etc.; b) a pessoa, ou coisa, torna-se distinta de outras pessoas ou objetos, através dessas características e tendências; c) a pessoa ou coisa torna-se o objeto de uma convenção entre os que adotam e partilham a mesma convenção (MOSCOVICI, 2009, p.67). Sobre o discurso e legitimidade, FOUCAULT destaca que:

En toda sociedad la producción del discurso está a la vez controlada, seleccionada y redistribuida por cierto número de procedimientos, que tienen por función conjurar los poderes y peligros, dominar el acontecimiento aleatorio y esquivar su pesada y temible materialidad (1987:11).


No diálogo com os autores acima citados, resgatamos a letra da música28, que se constitui em palavra de ordem no cotidiano de luta do movimento social Articulação das Pescadoras de Pernambuco e que atribui à mulher um espaço de poder, geralmente invisibilizado nas relações de gênero e trabalho na pesca artesanal de Pernambuco:

Agora chegou a vez de mostrar mulher pescadora também chega lá. Norte ao Sul do nosso país, estamos aqui, só porque Deus quis. Mulher pescadora tem valor, e os nossos direitos não é um favor. Para mudar a sociedade, do jeito que a gente quer Participando sem medo de ser mulher. Sem a mulher a pesca sai pela metade. Participando sem medo de ser mulher Buscamos junto direito de igualdade. Participando sem medo de ser mulher Pra preservar meio ambiente, do jeito que a gente quer. Participando sem medo de ser mulher Pra fazer a pesca boa, do jeito que a gente quer. Participando sem medo de ser mulher. Nesta música, cuja letra está adaptada, é relevante a concepção de que a pescadora conseguirá se projetar na sociedade, que elas têm valor e que a conquista dos direitos não é uma dádiva. O texto relaciona a mudança de acessibilidade das mulheres aos direitos sociais ao exercício da cidadania, à participação e à construção da igualdade de gênero.

3. CONCLUSÃO Apesar de algumas dificuldades em se trabalhar com entrevistas elaboradas a partir de perguntas abertas, a pesquisa possibilitou conhecer vários aspectos da vida das pescadoras do litoral pernambucano e os impactos que a transferência de renda do Programa Bolsa Família apresenta em suas vidas.

28

A letra da música cantada pelas pescadoras nos momentos de exaltação da luta das

mulheres pelos direitos sociais inicia a partir de analogia a composição de: Benito Di PaulaMulher Brasileira. Agora chegou a vez, vou cantar Mulher brasileira em primeiro lugar Agora chegou a vez, vou cantar Mulher brasileira em primeiro lugar Norte a sul do meu Brasil Caminha sambando quem não viu Mulher de verdade, sim, senhor Mulher brasileira é feita de amor

163 O PROGRAMA BOLSA FAMÍLIA NA VOZ DAS PESCADORAS ARTESANAIS DO LITORAL DE PERNAMBUCO.


Nas suas narrativas ficou evidenciada a condição de exclusão social deste grupo sona rentabilidade do trabalho da pesca. No entanto, ao ouvir as pescadoras sobre o recebimento do benefício, com condicionalidades, são evidenciados alguns traços de como o impacto do recebimento do benefício é marcante e importante para as comunidades e famílias das pescadoras beneficiárias, principalmente na alimentação, na vida escolar das crianças e na saúde de gestantes e recém-nascidos. As pescadoras insistiram que existe uma demanda por creches, o que é evidenciado na presença das crianças muitas vezes com as mães nas atividades laborais, nos turnos em que não estão na escola. Também foi sinalizado pelas pescadoras que não existe onde deixá-las com segurança e ainda foi apontada que muitas contam com o beneficio para pagar reforço escolar. No que se refere ao conjunto dos dados, percebemos que apesar das três diferentes sub-regiões do litoral ter características bem específicas, ou seja, maior incidência de atividade turística no sul, maior possibilidades de comercialização do pescado na região metropolitana e maior caráter de subsistência no norte, as famílias pescadoras apresentam problemas, demandas e um perfil bem semelhante quanto ao recebimento e usos do benefício, cujo valor médio de recebimento está situado ao redor de R$ 90,00 (noventa reais). De modo geral o benefício garante às famílias maior rendimento do que teriam numa intensificação, com as atuais condições, da extração e comercialização dos produtos da pesca, principalmente durante o inverno. No que se refere à alimentação um dos pontos mais importantes da pesquisa, foi evidenciado que a maioria das entrevistadas relatou sobre mudanças positivas na dieta alimentar, ao informar sobre as possibilidades de consumir maior variedade

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cial, habitantes, muitas vezes, em localidades sem infraestrutura, com dificuldades

e quantidade de alimentos e a inclusão de outras formas de proteínas, além de vegetais, frutas e alguns alimentos industrializados. Quanto a rotina alimentar, as entrevistadas responderam que preparam as refeições frequentemente em casa e que a merenda escolar geralmente não substitui uma alimentação principal. No entanto, em algumas famílias a merenda possui um destaque diferente, muitas vezes substituindo o desjejum, almoço ou jantar. Assim destacamos o papel preponderante do benefício na compra de alimentos. No conjunto de ações relacionadas ao uso do recurso financeiro, havia também citações dispersas relacionadas a outros gastos, essencialmente, com “transporte e deslocamento”, tanto dos filhos, quanto das próprias pescadoras – mesmo para ir receber o benefício no centro da cidade, além de “material escolar”, “remédios”, “óculos”. No caso do deslocamento percebemos o quanto o isolamento de algumas comunidades dificulta o acesso das famílias a melhores condições de aquisição de alimentos e gasto do benefício29. Do mesmo modo, ter acesso a hospitais e realizar exames, representa custos de deslocamentos a ser realizado pelas famílias. 29

Por exemplo, na localidade “Carne de Vaca” ir e voltar para o centro de Goiana custa R$ 8,00

(oito reais), ou cerca de 10% do valor médio de recebimento do benefício.


Quanto à habitação, na sistematização dos dados do perfil das beneficiárias, a grande maioria das entrevistadas não paga aluguel, embora as condições de muitas moradias sejam bastante precárias e não tenham o acesso à água tratada e ao saneamento. No que diz respeito à família e ao lugar da mulher neste deslocamento de titularidade, elas afirmam, majoritariamente, que são as responsáveis pelo gasto do benefício e, que não se apresentaram conflitos em casa devido ao recebimento do mesmo. Também aplaudem a centralidade do pagamento nas mulheres, fundamentalmente pelo compromisso das mulheres com as necessidades domésticas e foram recorrentes as afirmações de que “os homens gastam com bebidas”. Sobre as relações familiares, 44 entrevistadas relataram que até houve melhoras gerais nos relacionamentos. Esta respostas são ratificadas no texto publicado por SUÁREZ e LIBARDONI ao afirmar que:

Não é tão claro que em toda parte o Programa tenha favorecido a capacidade das mulheres de tomar decisões e de negociar seu status na estrutura hierarquizada por gênero do âmbito doméstico. A dificuldade radica em que, diferente do prestígio outorgado à maternagem, não existe na cultura portada por essas famílias a ideia de que mulheres devem ter liberdade de tomar decisões e, ainda menos, de alterar as posições na hierarquia de gênero. (SUÁREZ e LIBARDONI, 2007, p. 146). O que nos conduz a reflexões sobre as relações de gênero, são muitas controversas, e opiniões sobre o Programa Bolsa Família no que diz respeito ao lugar da mulher a partir do deslocamento da sua situação de coadjuvante para a posição de titular do beneficio. Esta mudança vem a empoderar ou cristalizar ainda mais os papeis femininos que a resumem ao espaço socialmente construído e naturalizado de cuidadora da família? Sobre o tema, é relevante o posicionamento de SUÁREZ e LIBARDONI ao indicar que:

Há fortes indícios de que o benefício vem gerando inquietudes e novas percepções sobre si mesmas nas mulheres, e, teoricamente, também nos homens, já que a mudança de um ator social necessariamente tem repercussões nos outros. Essa mudança na subjetividade individual, em si mesma, é já um grande ganho. (SUÁREZ e LIBARDONI, 2007, p. 147). Finalizamos com a síntese dos principais problemas apontados pelas entrevistadas em relação à questão do trabalho na pesca: 1 – Baixa produtividade/remuneração do trabalho; 2 – Dificuldades de manutenção das atividades da pesca durante todo o ano; 3 – Precarização do trabalho e necessidades de outros trabalhos complementares ao da pesca; 4 – demanda de formação profissional e aprendizagem; 6 – Parcerias entre instituições públicas nas diferentes instancias – Federal, Estadual, Municipal, na busca de soluções à problemática por elas apresentada. De modo geral, vale ressaltar que as entrevistadas referiram-se aos custos com os filhos como principais responsáveis pelo gasto do benefício.

165 O PROGRAMA BOLSA FAMÍLIA NA VOZ DAS PESCADORAS ARTESANAIS DO LITORAL DE PERNAMBUCO.


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avaliação de políticas públicas: REFLEXÕES acadêmicas sobre o Desenvolvimento Social e o Combate à Fome

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169


Erika Felipe de Albuquerque - Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia do Maranhão – IFMA/campus Codó. Martina Ahlert - universidade de Brasília (uNB). Tatiane dos Santos Duarte - Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia do Maranhão - IFMA/campus Codó. Marineide Bezerra Ferreira - Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia do Maranhão - IFMA/campus Codó. Joana Etiene Lima e Silva - Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia do Maranhão - IFMA/campus Codó. Anderson Pereira Bezerra - Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia do Maranhão - IFMA/campus Codó. Atalicio Gomes de Sousa Moreira - Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Maranhão/ IFMA - Campus Codó.

Introdução e temas transversaIs

avaliação de políticas públicas: ReFleXÕes acadêmicas sobRe o desenvolvimento social e o combate à Fome

ESTRATÉGIAS DE ENFRENTAMENTO DA FOME E CONSTRUÇÕES DE GÊNERO: O COTIDIANO DAS QUEBRADEIRAS DE COCO BABAÇU DA REGIÃO dos cocais- ma

Eliana Silva Teles - Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Maranhão/IFMA - Campus Codó. Emanuelly karoline de Souza - Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Maranhão/IFMA - Campus Codó. khety Elane Holanda de oliveira - Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Maranhão/IFMA - Campus Codó.


INTRODUÇÃO A atividade do extrativismo do coco de babaçu é tradicionalmente ligada ao trabalho feminino no estado do Maranhão. Segundo Barbosa (2006), aproximadamente 10,3 milhões de hectares são ocupados por babaçuais neste estado, somando cerca de 400 mil famílias vivendo da economia do babaçu. Na cidade de Codó, região dos cocais, estima-se intensa participação das mulheres na quebra do coco. A análise da atividade do extrativismo do coco de babaçu, segundo autores como Rego e Andrade (2006) e Barbosa (2006), não pode prescindir de uma discussão sobre a forte presença das mulheres no desempenho desta prática. Nesse sentido é importante ter clareza de que não se está falando de mulheres abstratas, mas daquelas provenientes de famílias de baixa renda e muitas delas auto identificadas como pardas e negras, especialmente no estado do Maranhão. O município de Codó alcança Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) de 0558 (PNUD, 2008), tem uma população estimada em 118.038 habitantes (CENSO, 2010) e cerca de 50% de sua população se autodeclarou negra. Parte da população tem como fonte de renda a atividade oriunda da agricultura, pecuária e da quebra do coco babaçu. Durante os anos 1950, do século XX, passam a existir as primeiras mobilizações na luta pela possibilidade de manter a atividade da quebra de coco no estado do Maranhão, especialmente em virtude de leis sobre o uso da terra e o acesso aos babaçuais (como, por exemplo, a lei conhecida como Lei Sarney de 1969). Em 1990 foi criada Associação do Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu (AMIQCB) que integra os estados de Tocantins, Maranhão, Piauí e Pará. Essas mobilizações impulsionaram a organização das quebradeiras de coco babaçu. Na cidade de Codó, as “quebradeiras de coco” constituíram associações, sendo estas organizações coletivas uma das formas de relação destas mulheres com o Estado. Para além dessa relação, esta pesquisa procurou pensar em outra forma de relação destas mulheres com o Estado: aquela dada a partir do recebimento do benefício do Programa Bolsa Família (PBF)1. As mulheres identificadas como “quebradeiras de coco” formam parte do público ao qual se destina o Programa. No município de Codó, cerca de 18.894 famílias são atendidas pelo Programa (MDS, 2011). Neste sentido, este projeto procurou avaliar o impacto do recebimento do benefício do PBF na constituição da rotina destas mulheres, de sua identidade e de seus modelos familiares, considerando que o benefício está vinculado, prioritariamente, às mulheres/mães. Sendo também o recebimento do benefício, por parte deste público, um momento interessante para perceber como um elemento externo e provindo de uma relação com o governo ingressa num cotidiano marcado por características de gênero e classe.

1

O Programa Bolsa Família é um programa de transferência condicionada de renda que

teve início no Brasil na primeira gestão do presidente Luis Inácio Lula da Silva, no ano de 2003, tendo continuidade no governo da então presidente Dilma Rousseff. A partir do PBF, famílias com renda mensal de até 140 reais per capita, através do Cadastro Único, podem receber o benefício de R$ 32 até R$ 306 mensais, de acordo a existência/número de filhos. (MDS, 2011). O Programa Bolsa Família integra o Programa Fome Zero, marcado por diferentes medida (estruturais e emergenciais) de combate à fome no Brasil e, por esta via, de enfrentamento da pobreza.

171 ESTRATÉGIAS DE ENFRENTAMENTO DA FOME E CONSTRUÇÕES DE GÊNERO: O cotidiano das quebradeiras de coco babaçu da região dos cocais MA


MÉTODO culadas às associações de quebradeiras de coco babaçu da cidade de Codó/MA, as quais foram acompanhadas em seu cotidiano doméstico, laboral e associativo. Diante dessa perspectiva, a metodologia adotada considerou duas dimensões analíticas: a dimensão histórica e cultural (de classe e de gênero) que delineou o perfil identitário do grupo e a dimensão social do trabalho - marcado pelas representações do capitalismo na base da organização comunitária e campesina das quebradeiras de coco babaçu e suas representações geracionais. Desta forma, procurou-se apreender os sistemas de representação e de classificação do universo de pesquisa bem como as lógicas e as práticas do cotidiano das quebradeiras de coco babaçu de Codó/MA através da observação participante, da construção de diários de campo, da aplicação de questionários socioeconômicos e da condução de entrevistas semi-estruturadas. A aplicação de questionários, como um dos procedimentos metodológicos adotados para a coleta de dados, teve como meta traçar o perfil socioeconômico das quebradeiras de coco babaçu vinculadas às associações de quebradeiras de coco do município de Codó/MA2. O questionário foi formado por perguntas fechadas que abrangeram questões fundamentais como perfil pessoal e familiar (idade, estado civil, religião, casamentos, quantidade de filhos, idade dos filhos, residência); trajetória de trabalho (tempo na “quebra de coco”, outras atividades laborais paralelas, experiências de trabalho anteriores, envolvimento geracional na atividade da quebra de coco); participação na associação (tempo de participação, cargos desempenhados, participação em grupo semelhante anteriormente); participação em programas governamentais (de quais

Introdução e Temas transversais

avaliação de políticas públicas: REFLEXÕES acadêmicas sobre o Desenvolvimento Social e o Combate à Fome

O estudo teve como sujeitas da pesquisa doze (12) quebradeiras de coco vin-

programas participaram, participação no Programa Bolsa Família, participação em outras iniciativas estatais de combate à fome); e orçamento familiar (renda dos membros da família, renda proveniente da quebra de coco, outras fontes de renda).3 Esta pesquisa adotou também como procedimento metodológico para coleta de dados a realização de entrevistas semi-estruturadas com as doze mulheres quebradeiras de coco escolhidas4 para serem acompanhadas pela equipe do projeto

2

As associações acompanhadas durante a pesquisa foram: Associação das quebradeiras

e quebradores de coco babaçu do bairro Nova Jerusalém, com 362 associadas (os) e a Associação do Beneficiamento do coco babaçu do bairro Poraquer com 280 associadas (os). 3

Este levantamento inicial deveria contemplar todas as mulheres pertencentes às duas

associações de “quebradeiras de coco” que definem o universo da pesquisa. Todavia, as atividades realizadas pela associação não são freqüentadas por todas as quebradeiras de coco associadas. Por isso, adotou-se como parâmetro a aplicação de 50 questionários em cada uma das associações, totalizando, pois, 100 questionários válidos para análise. 4

A escolha das doze mulheres a serem acompanhadas se deu através da indicação das

presidentes das associações. Pedimos para que as presidentes considerassem, além do recebimento do PBF, que as mulheres indicadas tivessem as seguintes características: incluissem mulheres casadas, solteiras, divorciadas, viúvas; com composição familiar variada (tanto as que morassem com seus companheiros e filhos, como as que tivessem outros arranjos familiares); tanto tivessem a quebra de coco como única atividade geradora de renda como quebrassem coco e tivessem outra atividade geradora de renda e, que fossem de idades diversificadas.


em seu cotidiano doméstico, laboral e associativo, e com as duas presidentes das AQCB´s da cidade. Para tal, dois roteiros compostos por um esquema pré-definido de perguntas não fechadas5 foram elaborados para cada um destes grupos6.

Marco teórico-conceitual Para entender os cotidianos e as relações nas quais se envolvem as quebradeiras de coco de babaçu da cidade de Codó, sujeitas desta pesquisa, foi considerada a articulação entre as categorias de gênero e classe. As categorias de gênero e classe são pensadas no âmbito desta pesquisa de forma dialética e não estanques entre si. Retomando Aguiar (2007, p.83), podemos auferir que as hierarquias sociais “fazem parte do senso comum das pessoas e das formas como elas se classificam ou classificam as outras.” Para o autor, as formas de discriminação e de preconceito estão vinculadas, portanto, aos modos como as pessoas classificam-se. Para Aguiar (2007, p.83), a noção de classe vincula-se a posse do capital, quando a detenção o u ausência do c apital define o p ertencimento do indivíduo a uma determinada classe. É neste sentido que o autor considera que “as classes sociais são realidades objetivas decorrentes de posições que os sujeitos ocupam na esfera produtiva.” Segundo Thompson (1987, p.9), as classes são “um fenômeno histórico, que unifica uma série de acontecimentos díspares e aparentemente desconectados, tanto na matéria-prima da experiência como na consciência.” Já para Bourdieu (1996, p.26-27) “classes sociais não existem. [...]. O que existe é um espaço social, um espaço de diferenças, no qual as classes existem de algum modo em estado virtual, pontilhadas, não como um dado, mas como algo que se trata de fazer.” Todavia, para o sociólogo francês as classes são objetivamente relacionadas à posição social segundo o conjunto dos recursos econômicos, sociais, culturais e simbólicos utilizados pelos agentes para conservar sua posição, a própria estrutura do capital e a trajetória social do agente indicada ao longo dos eixos espaciais. O conceito de raça7, sociologicamente, é uma construção social que opera na vida social, pois, os seres humanos se pensam e se classificam enquanto diferentes. Logo, a cor de uma pessoa está associada a um significado simbólico. Deste modo,

5

A opção pelo roteiro de perguntas não fechadas tem como vantagem obter informações

enunciadas de forma mais livre, uma vez que, possui caráter situacional, na forma de diálogo livre quando as respostas não são condicionadas a uma padronização de alternativas. O roteiro de perguntas não fechadas permite ao entrevistador adequar o script a uma linguagem mais inteligível para o entrevistado facilitando o tom de coloquialidade. Deste modo, procurou-se abrir espaço para o entrevistado sentir-se respeitado, qualquer que seja o seu “capital cultural”, inibindo tanto quanto possível o “monopólio da palavra” por parte do entrevistador (BOURDIEU, 1999). 6

O primeiro roteiro de entrevistas elaborado para as doze quebradeiras de coco abrangeu

cinco eixos analíticos – trajetória, perfil e dinâmica familiar; trajetória na quebra do coco; Bolsa Família: usos e representações sobre o programa; fome, estratégias e políticas; gênero – contendo trinta e oito perguntas no total. O segundo roteiro, elaborado para as presidentes das AQCB´s abrangeu três eixos analíticos – trajetória, perfil e dinâmica familiar, a quebra de coco em Codó, a associação – contendo

l.

quarenta e três perguntas no tota 7

Embora a categoria raça tenha sido apontada para análise não obtivemos dados suficientes

para discuti-la.

173 ESTRATÉGIAS DE ENFRENTAMENTO DA FOME E CONSTRUÇÕES DE GÊNERO: O cotidiano das quebradeiras de coco babaçu da região dos cocais MA


a raça e a cor funcionam como um critério relevante na ocupação de posições no acesso ao mercado de trabalho e outros setores da sociedade (AGUIAR, 2005). O autor destaca-se, por sua vez, que raça não é pensada como uma categoria biológica, relacionada ao material genético de cada indivíduo, mas é pensada como uma categoria social, construída historicamente e que estrutura desigualdades existentes na sociedade brasileira. No Brasil, a fronteira entre raça e classe é muito tênue. Pode-se, portanto, afirmar que no país a pobreza tem cor. A “raça” ou “cor” é uma entre as muitas representações do universo social que orientam os critérios empregados para enfatizar e legitimar outras divisões da sociedade que nutrem as relações de poder de muitos e contraditórios modos. Logo, raça e classe se relacionam e são conceitos essenciais para se pensar as hierarquias sociais (MELO, 2005). Outra categoria fundamental acerca das hierarquias sociais é a de gênero. O conceito de gênero foi introduzido como categoria útil de análise pelos estudos feministas para interpretar as relações entre homens e mulheres. Tal categoria designaria significados simbólicos e sociais associados ao sexo. Permitindo, assim, entender que certas atividades vinculadas ao feminino não eram uma atribuição “natural”, mas sim, uma construção sociocultural, por isso mesmo, sexo e gênero seriam categorias diferenciadas (NICHOLSON, 2000). Ora, as funções associadas às mulheres como maternidade e o cuidado do lar eram entendidas como atribuições “naturais” do sexo feminino. A categoria gênero pretende, pois, entender na relação entre homens e mulheres os signos que estruturam assimetrias e desigualdades entre os sexos. Assim, gênero vem à baila para dizer que as relações entre homens e mulheres não podem ser explicadas apenas no terreno da natureza e da biologização, pois, Gênero é a organização social da diferença sexual. Mas isso não significa que o

Introdução e Temas transversais

avaliação de políticas públicas: REFLEXÕES acadêmicas sobre o Desenvolvimento Social e o Combate à Fome

sociais na estrutura de classes, ou seja, como mecanismo criador de desvantagens

gênero reflita ou produza diferenças físicas fixas e naturais entre mulheres e homens; mais propriamente, o gênero é o conhecimento que estabelece significados para diferenças corporais. [...] Não podemos ver as diferenças sexuais a não ser como uma função de nosso conhecimento sobre o corpo, e esse conhecimento não é puro, não pode ser isolado de sua implicação num amplo espectro de contextos discursivos (NICHOLSON, 2000, p. 2). Nesse mesmo sentido, para Grossi (s/d, p.4), o conceito gênero (gender) tem como origem social “as identidades subjetivas” versus a determinação biológica diferencial dos sexos. A autora diz que o gênero considera o indivíduo na relação, logo,

é uma categoria usada para pensar as relações sociais que envolvem homens e mulheres, relações historicamente determinadas e expressas pelos diferentes discursos sociais sobre a diferença sexual. Gênero serve, portanto, para determinar tudo que é social, cultural e historicamente determinado. No entanto, como veremos, nenhum indivíduo existe sem relações sociais, isto desde que se nasce. Portanto, sempre que estamos referindo-nos ao sexo, já estamos agindo de acordo com o gênero associado ao sexo daquele indivíduo com o qual estamos interagindo (GROSSI, s/d, p. 5).


Outra definição trazida por Grossi (s/d) para significar as relações entre homens e mulheres são os papéis de gênero que seriam “Tudo aquilo que é associado ao sexo biológico fêmea ou macho” (GROSSI, s/d, p.76). Por fim, Grossi (s/d) traz à ideia de identidade de gênero: a sexualidade, os papéis de gênero e o significado social da reprodução para os indivíduos em uma determinada cultura. Assim, se o sexo ilustra a diferença biológica entre homens e mulheres, o gênero remete à construção cultural coletiva dos atributos de masculinidade e feminilidade (papéis sexuais) e a identidade de gênero é a categoria pertinente para pensar o lugar do indivíduo no interior de uma cultura determinada. Contudo, gênero não é pensado apenas como uma categoria relacional e social, mas também como uma categoria que supõe hierarquias entre pólos, com os homens ocupando posições de maior poder. Ora, classe, raça e gênero são categorias que devem ser pensadas em relação e não como uma soma de discriminações/desigualdades/assimetrias que perpassam a vida das quebradeiras de coco babaçu da região de Codó/MA. Se gênero, classe e raça acionam hierarquias de poder e signos “naturalizados”, são também categorias úteis para analisar identidades e relações entre os agentes sociais. Esta perspectiva ora adotada considera que atributos morais e sociológicos (por exemplo, ser mulher e pobre) são representações por meio das quais os indivíduos são classificados nos espaços sociais, segundo critérios culturais. Contudo, vale destacar que a questão racial ultrapassa a questão da classe e que, apesar de se reforçarem mutuamente, estas possuem dinâmicas independentes. Todavia, privilegiou-se analisar estas mulheres no discurso e na ação, procurando entender como elas se envolvem nos “negócios humanos” do mundo do trabalho, em certos espaços tidos como privados (o cotidiano do lar e da família) e nas esferas tidas como públicas (na associação, em reuniões com políticos) desprivilegiando a acepção de mulheres, pobres, analfabetas e sofredoras. Procurou-se, portanto, através do exercício de relativização, conferir positividade às suas vidas apontando como elas negociam representações e como constroem relações de gênero e a identidade de quebradeira de coco nas redes de relações mais amplas e diversificadas nas quais elas interagem, para além do desempenho de papéis sociais estigmatizados. Portanto, o artigo aborda: o perfil socioeconômico das quebradeiras de coco em Codó; a entrada das mulheres na quebra de coco e transmissão do saber; a dinâmica do trabalho; as relações familiares e de gênero implicadas em seu fazer laboral; a construção de sua identidade - como se vêem/sentem; analisa o Bolsa Família e os modelos e dinâmicas familiares das quebradeiras de coco beneficiadas pelo programa; o impacto do Bolsa Família entre as mulheres acompanhadas; e apresenta o olhar das quebradeiras sobre o programa, sua lógica de funcionamento, limites e possibilidades.

As quebradeiras de coco babaçu em Codó As quebradeiras de coco babaçu, abordadas por esta pesquisa, estão localizadas no espaço geográfico maranhense, da área denominada região dos cocais, localizada entre o cerrado e a mata dos cocais. A região dos cocais é composta pelos municípios de Alto Alegre do Maranhão, Coroatá, Timbiras, Peritoró e Codó. Sua

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principal caracterização se dá, em termos de cobertura vegetal, pela intensa prea 4.361,318 Km², prevalece a Floresta aberta ou de babaçu tanto na área urbana quanto na área rural do município. (PDP - CODÓ, 2006). O perfil socioeconômico das quebradeiras de coco do município de Codó é aqui apresentado por meio dos dados coletados através da aplicação dos questionários entre as 100 mulheres que freqüentavam as associações neste município. Traz, portanto, uma descrição a respeito de seu perfil pessoal e familiar; de sua trajetória de trabalho; de sua participação na associação; de sua participação em programas governamentais e de seu orçamento familiar. Em relação ao local de origem, das referidas mulheres, podemos verificar que houve um deslocamento significativo (48%) do local de nascimento, interior de Codó, para a cidade. Este deslocamento pode estar associado à procura por acesso de alguns serviços básicos como saúde, educação e trabalho. Vale ressaltar que as mulheres, apesar de terem migrado do interior, zona rural, para residirem na zona urbana da cidade, ainda mantém uma ligação intensa com o campo, haja vista, deslocar-se para a zona rural “mato”, em sua grande maioria, diuturnamente para a coleta do coco babaçu. As mulheres contempladas pelos questionários estão, em sua maioria, na faixa etária entre 41 e 60 anos (54%), são casadas (57%), católicas (92%), têm pouco estudo (56%) não sabem ler nem escrever ou só sabem assinar o nome e a maioria delas declarou-se parda (69%). Elas têm em média quatro filhos vivos e 76% delas afirmam estarem seus filhos, em idade escolar, frequentando as instituições de ensino. Organizam-se em suas residências com um agregado de pessoas, arranjo familiar (65%) para além do que se considera núcleo familiar (mãe, cônjuge/

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sença das palmeiras nestes territórios. Em Codó, cuja área territorial corresponde

companheiro e filhos (as). Quanto aos indicadores referentes às condições de moradia, verificou-se que 68% dos domicílios apresentam características urbanas - considerando-se a proximidade a comércios, postos de saúde, farmácias, correios, etc.; e que 72% dos domicílios foram apresentados como próprios de alvenaria, com ou sem revestimento, desobrigando as famílias das despesas com aluguel. Contudo, estes domicílios, em sua maioria, não têm escritura, pois os terrenos em que foram construídas as residências são oriundos de doações e ainda não foram legalizados. As residências das mulheres apresentam ter água encanada (94%), iluminação (94%) e banheiro ou sanitário (56%) com escoamento feito através de fossa séptica (42%). Elas afirmam, em sua grande maioria, terem seu lixo coletado pela rede pública (73%) e terem pavimentação ou calçamento em frente aos seus domicílios (41%), em oposição a 69% que afirmaram não ter pavimentação/calçamento total (41%) ou parcial (18%). Diante dos dados coletados sobre trabalho e renda obtivemos o seguinte perfil das quebradeiras de coco babaçu associadas: cerca de 80% das mulheres exercem atualmente a atividade de quebra. Para as que não estão exercendo tal atividade, merecem destaque as citações para os motivos do afastamento desta atividade relacionadas, em sua maioria, a doenças e acidentes oriundos da atividade


da quebra de coco. Vale ressaltar que, cerca de 60% das mulheres mencionam estar há mais de trinta anos na atividade de quebra de coco babaçu. Dos 76% das mulheres que afirmam quebrar coco atualmente, 37(trinta e sete) delas disseram ter como única fonte de renda esta atividade e 39(trinta e nove) dizem também tirar o sustento da família de outras atividades, em especial da atividade de roça/lavoura. A atividade da roça/lavoura, por sua vez, é realizada por todos os membros da família. Este trabalho ocorre em territórios ocupados por terceiros, em sua grande maioria, cabendo uma divisão na produção para pagamento do uso das terras para o plantio, seja de feijão, legumes, frutas, verdura ou arroz, o chamado arrendamento. Sendo o arroz e o feijão os plantios mais comuns. O trabalho na roça/lavoura se caracteriza como uma atividade de subsistência contribuindo para a alimentação da família durante o ano. Muitas mulheres apontam o trabalho do cônjuge/companheiros, filhos (as), como complementares a renda da família. Dentre os 73% das mulheres que afirmaram não ser a sua atividade a única renda da família, houve 52(cinquenta e duas) citações para a complementação da renda familiar pelo cônjuge/marido e 29 (vinte e nove) citações para complementação da renda familiar oriunda do trabalho dos filhos (as). Contudo, o trabalho das mulheres seja na quebra, seja em outras atividades, está sempre presente nos gastos familiares diários. Mais da metade das mulheres entrevistadas (69%) afirmaram receber o beneficio do Bolsa Família, sendo administrado (67%) por elas mesmas, e tendo como destino, prioritário, a compra de alimentos. O fato delas destinarem o recurso, prioritariamente, para a alimentação, demonstra a necessidade mais urgente das famílias, cujo indicativo se cruza com o de recebimento de alimentos, uma vez que 71% afirmam receber ou já ter recebido alimentos de alguma entidade – igreja, associação, CRAS e apontam especialmente a CONAB, cuja frequência na entrega dos alimentos é regular, mas insuficiente. A participação política em outras entidades coletivas é de apenas 26% das mulheres, Contudo, todas as mulheres contempladas pelos questionários são associadas das AQCB’s há pelo menos um ano (56%) - o que resguarda sua identidade como quebradeiras de coco babaçu e lhe permite o acesso aos benefícios vindos através das associações.

A entrada das mulheres na quebra do coco e a transmissão do saber Os dados coletados através da aplicação dos questionários expressam, de modo geral, que as quebradeiras de coco do município de Codó, residem com um agregado de pessoas, cujo trabalho que se destaca como fonte de renda familiar advém da quebra do coco babaçu, da atividade da roça/lavoura, da atividade de subsistência e, ou de trabalhos precários e informais realizado por elas ou por algum familiar. Muitas quebradeiras relataram que se deslocaram, ainda criança, para a zona urbana como forma de enfrentamento à pobreza e à fome e que foi por volta dos oito anos de idade que tiveram suas primeiras experiências com a quebra do coco atividade que passou a acompanhá-las durante quase toda a vida.

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As doze quebradeiras de coco8, acompanhadas durante a pesquisa, referenciam pois, de um conhecimento tradicional que é transmitido de geração em geração, frequentemente, entre mulheres. Todavia, muitos homens no universo desta pesquisa falaram que também quebram coco e que seus pais também quebravam. O conhecimento da quebra de coco é transmitido de pais para filhos a despeito de muitas filhas de quebradeiras não saberem quebrar coco. Neste sentido, Gorete afirma que as jovens de sua idade que moram na cidade de Codó, filhas de quebradeiras de coco, não sabem quebrar ou não “sobem no caminhão”, pois “tem vergonha” e “preferem ter vida fácil”. Segundo Gorete, estas jovens apenas se vinculam às associações para “garantir os direitos da aposentadoria” como trabalhadoras rurais. Ela diz que só futuro dirá sobre a continuidade da tradição da quebra de coco na região, já que, nos dias atuais as jovens preferem exercer outras atividades laborais. Neste mesmo sentido, Efigênia falou que tem “muitas moças” na associação que não sabem quebrar coco, não tem a quebra como trabalho, mas se associam. As mulheres que “quebram mesmo” são bem poucas e, geralmente, são mais velhas. Segundo Efigênia, poucas jovens são “quebradeiras mesmo”. Ela expressava em suas palavras que ser quebradeira de coco requer ter a quebra como trabalho diário e não apenas como meio de obter benefícios (Diário de campo 31, 18/05/2011). Dona Ana relatou que “muitos filhos de quebradeiras têm vergonha delas e que muitas vezes nem dizem que a mãe quebra coco” (Extrato de diário de campo 05, 11/04/2011). Outra questão que se relaciona com a falta de jovens na quebra de coco pode ser explicada pelo exemplo de Gorete que apesar de afirmar de “gostar do mato” e de quebrar coco, pretende “se formar” para ter futuro melhor, pois, o dinheiro que ganha com a quebra de coco não supre as necessidades básicas de sua família.

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a aprendizagem da técnica de quebrar coco às suas mães, avós e irmãs. Trata-se,

Deste modo, o futuro que Gorete vislumbra – ter uma vida melhor – não será, segundo ela, através da atividade da quebra de coco. Talvez por isso, a despeito das doze quebradeiras de coco (bem como as demais) dizer que também ensinaram a seus filhos (homens e mulheres) a técnica da quebra de coco (exceto Gorete, Socorro e Marta, pois, têm filhos ainda pequenos) os filhos destas mulheres preferem ter outra atividade laboral. Os filhos de Rosa, Rita e Efigênia, por exemplo, vão quebrar coco e fazer roça, mas não realizam estas atividades com exclusividade. Já os filhos de Rosalina, Nazaré, Teodora, Generosa, Delfina não quebram coco. Os filhos de Jesus sabem quebrar coco, mas trabalham em “firma” [empresa] com isso, somente as mulheres quebram coco. Do mesmo modo, elas ressaltam a importância dos estudos como meio de “ser alguém”, “ter um futuro diferente” a fim de não passar privações, não ter que enfrentar a fome. Por isso mesmo, compreendem o seu lugar social: de mulheres e pobres. Como ressaltado por Roseli numa reunião na AQCB do Poraquer: “eu quero

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Gorete, Efigênia, Rosa, Rita, Nazaré, Teodora, Generosa, Delfina, Rosalina, Marta, Socorro,

Jesus são os nomes fictícios das doze quebradeiras acompanhadas durante a pesquisa. Os outros nomes referem-se às presidentes das associações, maridos/companheiros ou filhos (as) das quebradeiras.


que meus filhos estudem pra ser alguém na vida que eu não fui”. Dona Ana retruca: “e você não é alguém na vida?”. Roseli responde: “sou sim, mas hoje em dia só é alguém quem tem estudo” (Extrato de diário de campo 05, 11/04/2011). Ora, a quebradeira de coco, mulher, mãe, pobre e sem estudo “não é ninguém” (Diário de campo 05, 11/04/2011). Por isso, Roseli quer que seus filhos estudem para “ser alguém” o que significa ter melhores condições de vida, não passar fome e ter um trabalho digno e valorizado. De todo modo, elas valorizam a quebra de coco, pois sempre falam do orgulho e de como gostam de ser quebradeira de coco e de estar no mato, pois, foi este aprendizado que tiveram. Durante a quebra de coco com Rita, o local de quebra foi referenciado como o “escritório” deles: “tô aqui limpando nosso escritório” (Extrato do diário de campo 74, 17/08/2011) Em uma visita a casa de Rita, Desidério já havia feito esta comparação com a equipe. Segundo ele, as ferramentas de roçar eram a sua lapiseira. Ou seja, valorizam o aprendizado tradicional que obtém, mas, consideram que “ter estudo” possibilitaria que seus filhos não passassem pelos mesmos “aperreios” que elas passaram. Por isso mesmo, estas mulheres se mudaram para a cidade a fim de que os filhos continuassem a estudar. Todavia, este entendimento de que a escolaridade permite acessar um futuro melhor não se constituiu num “projeto de ascensão” como vislumbrado pelas classes médias. Entende-se, portanto, que no contexto desta pesquisa, “ter estudo” possibilita que indivíduos cujas famílias são marcadas pela pobreza tenham mais oportunidade na vida. Percebemos que em algumas falas, mais oportunidade na vida é não quebrar coco. Para as quebradeiras de coco, como não tiveram estudo, “o jeito foi ir pra quebra”, Então, é por meio do estudo que seus filhos podem “ser alguém”.

O trabalho das quebradeiras de coco A dinâmica da atividade entre as quebradeiras de coco babaçu consiste numa rotina diária de ida para a “mata”, onde existem as palmeiras, e de retorno para a casa onde, empreendem as atividades rotineiras do lar – cuidar dos filhos e de se prepararem novamente para o outro dia na quebra. Também nos tempos de plantio e colheita, deslocam-se para a roça. A rotina diária do trabalho nos babaçuais e de aproveitamento do coco está associada há uma espécie de ritual específico traçado pelas quebradeiras, sendo seguido rigorosamente durante todos os dias em que saem de suas casas rumo à mata para desenvolverem a atividade da quebra. “[...]quando dá quatro e meia a gente já ta acordado aí começa logo a fazer as coisa de dentro de casa quando dá cinco hora aí já começa a amola machada[amolar o machado], e a arrumando sacola e bota panela e aí é que a gente vai. ( JESUS, entrevista, 15/08/2011). Ao chegarem ao babaçual relatam que,

escolhem o local para a quebra e começam a limpá-lo com facão, cortando e afastando o mato. O local onde Dona Martinha e Dona Jesus quebram coco é chamado por elas de rancharia. Depois de escolhido a rancharia elas deixam seus utensílios no local escolhido para arranchar-se. Pega somente

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Assim, após deixar a casa organizada partem para a avenida para pegar o caminhão, cedido ela prefeitura, para chegarem ao “mato”. Chegando ao local escolhido, de acordo com a quantidade de coco existente, preparam o terreno onde vão ficar durante aquele dia. Esta rotina por sua vez, traz consigo uma “incerteza”, posto que “não há um local especifico pra coletar. Muitas vezes as quebradeiras se “dividem nas áreas de coleta em equipe de 2, 3 pessoas” (Extrato do diário de campo 16, 04/05/2011). Relatam que cada uma colhe e quebra seu coco, sendo que em algumas situações quebram coletivamente e dividem o “apurado” do dia entre si. Nas áreas de coleta preparam sua alimentação9, quebram o coco e fazem o carvão com as cascas, separadas minuciosamente em montes. Conseguem separar, ao fim do dia, cerca de cinco a oito quilos de amêndoa que são vendidos na volta para a cidade por cerca de R$1,20, abaixo do preço estabelecido pelo governo (R$1,46). Algumas vezes, fabricam o azeite, que demanda mais trabalho, contudo vendem por um “preço melhor” e utilizam, em sua maioria o carvão para cozinharem em suas casas, o que ajuda a economizar com as despesas com o gás de cozinha. O trabalho dispensado com a quebra de coco é expresso por Efigênia como uma obrigação, logo que ingressa como atividade imprescindível para a manutenção da casa, embora esta não a considere como uma profissão como as demais. Embora de pouca rentabilidade, as mulheres a mantêm como a atividade principal na vida diária, haja vista que, se apropriam do babaçual seja em seu uso direto para a alimentação ou sua preparação, no caso do azeite e carvão, seja indiretamente, com a venda dos produtos gerando dinheiro (moeda) que será também utilizado, em

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o saco de nylon com as ferramentas de trabalho – machado, cacete e facão – e começamos a selecionar e coletar o coco babaçu. (Extrato do diário de campo 54, 02/07/2011).

sua maior parte, para compra de alimentos. A ocupação em outros trabalhos as impossibilita de irem quebrar. De modo que, têm quebradeira que mesmo trabalhando a semana em outros serviços mantém a rotina de quebra aos sábados, pois para ela dá para tirar o “da festa e o da feira de domingo, ai já economiza.” (GORETE, entrevista, 23/08/2011). A quebra do coco não se configura para elas um fardo pesado. Segundo as quebradeiras as conversas realizadas durante a quebra e as descontrações coletivas amenizam os esforços despendidos por elas durante a realização de seu ofício. Ressaltam, sobretudo, a disponibilidade de tempo e a liberdade que ganham para realizarem outras tarefas cotidianas. Expressam que a atividade principal da mulher é a quebra e a do homem a roça ou lavoura. Embora as duas atividades sejam acessadas pelos dois de acordo com as

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Durante as atividades de quebra as mulheres também precisam alimentar-se, e essa alimentação

varia de acordo com a quantia em dinheiro que elas dispõem no momento. Assim Leocádia disse que “pra se alimentarem no campo se leva farinha, tomate, limão, mas que tem dias que quando não dá para levar o tomate o chibé é feito sem tomate mesmo”. (Extrato de diário 5, 11/05/2011).


necessidades mais urgentes da casa. Desta forma, mulher também roça e alguns homens também participam das atividades de quebra do coco. De modo que, a produção social da existência implica por sua vez na participação dos dois gêneros.

Relações familiares e de gênero A despeito da importância do homem provedor no universo desta pesquisa, das doze mulheres acompanhadas, cinco delas não possuíam marido/companheiro/ homem em casa (Nazaré, Efigênia, Rosalina, Gorete, Generosa). Algumas delas (Nazaré, Rosalina, Generosa, Efigênia) passaram situações difíceis com seus maridos e hoje não querem ter um companheiro. Alegam que estão “véa” [velhas] ou que não tem mais paciência para homem. Todavia, destaca-se em suas falas a importância do homem provedor, do homem que deve trabalhar e do homem que dá o sustento. Nazaré apontou que “quem não tem homem ganha ajuda”, pois, no contexto cultural no qual vive o homem deve provir o “local do consumo”. Rosa conta que após ser largada com dois filhos, “foi arranjar outro para ajudar a criar os filhos”. Como ressaltou Nazaré se o homem não trabalha, não ajuda e atrapalha a mulher. Nesse sentido, Jesus contou que, depois que seu marido a “largou” ficou sozinha com seis filhos para criar. Ela fala que para sustentar seus filhos ela já passou por muito sofrimento, inclusive de ter que ficar com homens para que estes a ajudasse no sustento de sua família. Assim, Jesus afirmou: “ou eu fazia isso ou meus filho morria de fome” (Extrato do diário de campo 54, 02/07/2011). Ela considera que “foi errada”, mas que nunca “fez pouco” da cara das esposas dos homens com os quais ficava, pois essas sequer sabiam que ela era amante deles (Extrato do diário de campo 54, 02/07/2011). Ainda sobre as relações entre afins vale dizer que estas mulheres se casaram jovens, em média, antes dos 18 anos. Todavia, é expressivo o número de relações amorosas que elas possuem ao longo da vida, pois, “ter um homem” significa tanto ter um marido para provir a casa quanto ter um parceiro sexual. Por isso, como disse Ana, após o falecimento de seu primeiro marido não “esperou muito” para arranjar outro companheiro, pois, não “espero nem os vivos imagine o que tinha morrido” (Extrato do diário de campo 42, 03/06/2011). No universo desta pesquisa marca-se também a preeminência do pai ou da mãe como figura de autoridade. Jesus foi obrigada a se casar depois de “ficar perdida”. Rita buscou no casamento uma forma de se libertar da mãe. Jesus disse a filha Gorete que ela deveria cuidar da vida após a separação. Mas, também são os pais que conferem a estas mulheres solidariedade e ajuda nos momentos difíceis. Nazaré foi ajudada pela mãe quando vivia um casamento infeliz, no qual passava fome. Socorro mora com o pai que a ajuda com as crianças. Rosa quando “vivia só” morava com os pais, assim como Jesus. Rosalina diz que depois que sua mãe morreu “foi que eu fui sofrer”, por isso, “quem quer saber o que é bom fique sem mãe” (Entrevista, 06/08/2011). Como dito, a despeito da importância do homem, as relações de sangue se sobrepõem as relações contratuais de casamento. A relação mãe e filho é a preferencial entre as quebradeiras de coco, pois, nesta há um contrato moral, como ressaltou Rosalina: “o filho deve se curvar à mãe”.

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Entretanto, mesmo que a figura masculina seja entendida como provedor, Teodora, nheirismo e divisões de tarefa. Elas não negam a importância do homem provedor, mas ressaltam a necessidade de se unir para enfrentar a vida cotidiana adversa. Deste modo, estabelecem relações de parceira com seus maridos: enquanto Socorro está na rua, o marido cuida da casa, Teodora montou uma quitanda por que seu marido não podia mais trabalhar na roça por problemas de saúde, os filhos de Rosa fazem o serviço da casa e seu marido também ajuda, mesmo quando ela está em casa, Rita e Desidério, 41 anos de casamento, lutam juntos pelo bem estar da família. Nesse sentido, segundo Ahlert (2008, p.22-23).

Na bibliografia sobre grupos populares é recorrente que a figura dos homens seja associada ao provimento do sustento da casa, revelando a figura do homem provedor - configurado como uma presença ambígua (ZALUAR, 1985; SARTI, 1996, entre outros). Tal ambigüidade estaria relacionada com a instabilidade em corresponder com tal papel, devido às condições impostas da desigualdade social brasileira. O interessante na figura do provedor é sua força, apesar de sua realização plena ser rara e um tanto dotada de idealismo (FONSECA, 1995; BRITES, 2000). Outra questão é que para elas casar requer “ter papel” e não apenas assumir publicamente uma relação conjugal e iniciar uma fase de co-residência (FONSECA, 2005, p. 40). Deste modo, as mulheres que são “junta” não se consideram casadas (Socorro, Rosa). Algumas falam que não são solteiras, mas não são casadas (Nazaré). Jesus, por exemplo, mora com um companheiro, mas se diz solteira. Fato é que, ao longo da pesquisa, pode-se perceber que algumas quebradeiras de coco falam

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Rita, Socorro e Rosa narram relações de gênero marcadas por parcerias, compa-

que são solteiras, mesmo morando com um companheiro. Ou seja, para elas ser solteira possibilita ter acesso a programas do governo, obter crédito e, no futuro, obter a aposentadoria rural. Todavia, há uma razão simbólica contida nesta razão prática: como o casamento só é válido “no papel”, elas se dizem solteiras, pois, trata-se de uma categoria que possibilita quando “largadas” não ser separadas ou desquitadas. Suspeita-se, neste sentido, que estas mulheres se importam com o estado civil de desquitada ou separada (legalmente no papel), a despeito de narrarem como seus companheiros a “largaram” e como elas arranjaram logo outro companheiro. Destaca-se ainda que as mulheres (Rosa, Jesus, Efigênia, Socorro, Generosa, Rosalina, Nazaré, Gorete) explicitaram as infidelidades masculinas bem como relações violentas, possessivas e ciumentas (Nazaré, Generosa). E que há homens que agridem suas companheiras (Rosalina, Marta). A despeito dos relatos sobre violência doméstica (Jesus, Rosalina, Marta, Nazaré) elas se manifestaram e se posicionaram contrariamente à dominação masculina (especialmente Marta em relação ao seu pai). Estas mulheres que relataram casos de violência doméstica romperam com seus companheiros agressores, a despeito da violência física, psicológica e simbólica que sofreram durante o casamento.


Deste modo, a figura do homem provedor e da autoridade e a dominação masculina podem ser lidas como ideais extremamente poderosos, mas não são vividas de maneira absoluta ou estável na vida cotidiana destas mulheres. Se tais ideias existem enquanto modelos, na realidade podem ser negociados, abrindo espaço, portanto, para a agência feminina. Por isso mesmo, considerou-se analisar as relações entre homens e mulheres no universo desta pesquisa na relação e não apenas a partir da concepção de que homens subordinam as mulheres. Os dados aqui apresentados apontam que há um contexto cultural de dominação masculina, mas que estas mulheres não respondem “apaticamente a uma dominação masculina”. (AHLERT, 2008, p. 23), pois, ao passo que há reforço das hierarquias de gênero, há espaço para a agência feminina.

Como se vêem/sentem No roteiro da entrevista realizada com as doze quebradeiras de coco foi perguntado se elas gostavam de ser mulher, todas responderam que gostavam, mas as respostas foram diferenciadas. Generosa disse que gosta de “ser muié, [...] Ah porque é... sei lá minha vida é tranquila né” (Entrevista, 05/07/2011). Para Rosa a mulher que não tem marido, os homens sempre “qué dizer alguma pilera né, mais quem tem vai viver mior” (Entrevista, 06/07/2011). Socorro diz que “sempre gostei dessa parte de ser mulher” (Entrevista, 26/07/2011). Para ela, a mulher que tem curso e certificado “hoje em dia pra emprego ta tendo um pouco mais de facilidade” de conseguir emprego” Entrevista, 26/07/2011). Rita diz que “pela uma parte é bom né” ser mulher: ser mãe e “aconselhar seus filhos” (Entrevista, 27/07/2011). Efigênia disse que gosta de ser mulher, mas que “agora eu já to uma velha, mais eu gosto, agora já to mesmo no restinho mais ainda serve[...]” (Entrevista, 04/08/2011). Mesmo se considerando velha, “sei lá porque é [bom ser mulher] (risos). Porque eu acho que é bom mesmo num é” (Entrevista, 04/08/2011). Rosalina disse que “é bom a gente ser muié [risos]”. Perguntada se era melhor do que ser homem, ela respondeu: “de home eu num sei não, mas de muié e bom ser muié. Muié se arruma mio, a muié é mais calma, muié tem mais paciência, a muié é mais tanquila, a muié é mais carinhosa a muié é tudo. Né não?” (Entrevista 06/08/2011). Delfina disse que é bom ser mulher, mas que “mulher passa cada uma”, mas, “só na hora de ter um filho”, por que segundo ela, “é ruim demais” parir (Entrevista, 18/08/2011). Nazaré diz que é bom ser mulher por que a mulher sempre é ajudada e o homem não “porque é home” (Entrevista, 19/08/2011). Gorete diz que “as oportunidades pras mulheres são bem melhores agora né”, além disso, “ta bom ser mulher agora alguns anos atrás não era bom não, a mulher dependia muito do homem, hoje não hoje a mulher é mais independente dela própria” (Entrevista, 23/08/2011). Teodora diz que “ser mulher é ótimo”, mas que “só ter mulher e não ter homem nada feito. Então tem que ser os dois homem e mulher” (Entrevista, 05/09/2011). Jesus diz que é bom ser mulher por que tem serviço, mas “viver sozinha” trabalhando para sustentar os filhos é a parte ruim. Todavia, para um homem viver sozinho é mais difícil, segundo ela. Dona Marta diz que não sabe por quê ser mulher é bom.

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Ser mulher neste contexto também se inscreve nos corpos destas quebradeiras Logo, as marcas físicas que este trabalho inscreve em seus corpos denotam o dia-a-dia “difícil” que estas mulheres enfrentam. Todas possuem cicatrizes pelo corpo, especialmente nas mãos ressaltando como a quebra de coco marca seus corpos. Outra questão relacionada aos corpos destas mulheres quebradeiras de coco são as linhas de expressão, as peles enrugadas, as mãos ásperas, os pés rachados, o aspecto de maior idade do que possuem. Marcas que também expressam o “trabalho duro” que possuem. Em sua maioria, são mulheres que aos 50 anos se consideram “véa” [velha] (Generosa, Efigênia, Rosalina), não mais atraentes e dispostas a relacionamentos afetivos e sexuais. Ainda sobre como o trabalho da quebra de coco marca os corpos destas mulheres, vamos a um relato de Gorete. Ela diz que as pessoas não acreditam que ela é quebradeira de coco babaçu. Gorete conta que quando estudava no IFMA – Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Maranhão -, um dos motoristas não acreditava que ela era quebradeira de coco. Somente acreditou nela no dia que a viu em cima do caminhão juntamente com as demais quebradeiras de coco. Para ela, “acho que é bem pela minha aparência” (Entrevista, 23/08/2011), pois, as pessoas pensam que as quebradeiras são velhas, com a pele enrugada, maltratadas pelo trabalho no sol. Gorete concorda que “tem, muitas quebradeiras de coco não cuida, não se cuida entendeu? Pelo fato de quebrar coco acha que deve se desleixar, e eu não apesar de quebrar coco eu sempre me mantive bem cuidada” (Entrevista, 23/08/2011). Vale dizer que, no universo desta pesquisa, as mulheres gostam de conversar sobre sexualidade, sexo e os parceiros que tiveram. A jocosidade e as conversas “salientes” são freqüentes nos espaços e no cotidiano destas mulheres. Fonseca (s/d) ressalta

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que vão para o mato trabalhar na quebra de coco, atividade vinculada ao feminino.

que o humor, as brincadeiras e os comentários sobre as relações conjugais e sexuais estão presentes no cotidiano das classes populares. Segundo Fonseca (s/d, p. 16)

As famílias ‘populares’ definem-se justamente pelo estilo jocoso de tratar os assuntos mais prementes da vida social. E é essa jocosidade que, pela cumplicidade tácita da risada coletiva, age sub-repticiamente para transformar os diversos assuntos e as diversas regras (sejam elas oriundas dos grupos dominantes, dos ‘bons proletários’, ou dos homens) numa expressão própria aos grupos populares. As quebradeiras de coco narram também doenças relacionadas ao seu trabalho como dores nas costas, na coluna e nos joelhos. Delfina além destes sintomas apresenta pernas inchadas fruto de uma diabete. Efigênia disse que já está cansada desta vida. Elas reclamam do cansaço e da “vida corrida” que levam, pois, o trajeto até o local de quebra de coco, frequentemente, é penoso. Teodora também enfrenta alguns problemas de saúde, mas, ela continua a quebrar coco a despeito da “vista” está ruim, por conta de problema de “nervoso”, ela diz que não usa óculos, pois, “na hora que boto ele me dá aquela gastura eu fico ruim de mais e a minha gastrite vem daqui eu to no remédio controlado com um monte de remédio a lhe eu disse que não ia depender disso” (Entrevista, 05/09/ 2011).


Por fim, ressalta-se que a mesma atividade difícil, dura e penosa da quebra de coco que imprime marcas físicas nos corpos destas mulheres e ocasiona doenças é a mesma que as permite “se governar”. O trabalho não valorizado, que não lhes dá dignidade, reifica seu lugar social de mulheres pobres e escraviza seus corpos (velhice, cicatrizes, doenças) é o que lhes dá liberdade, pois, no mato “ninguém manda”, não há horários, nem patrão. Assim expressa Marta: “Sou mais ante ir pro mato [...] por que lá eu me governo quebro meus cocos do jeito que eu quero, faço carvão ai pronto [...] por que eu não gosto que ninguém me manda (Entrevista, 16/08/2011). É o ambiente que elas percorrem de forma perceptiva (INGOLD, 2000) diariamente a fim de exercer um conhecimento tradicional, transmitido de geração em geração,

É porque a gente se interte e faz modo da historia é o que a gente sabe fazer tem que quebra coco minha família quebra coco e mora tudo no interior e só sabem fazer isso porque ninguém estudou mesmo. A eu gosto de fazer o meu serviço quebrar coco e ele fazer a roça dele (TEODORA, entrevista, 05/07/2011). Trata-se do território que dá, sobretudo, significado as identidades de gênero e de quebradeira de coco destas mulheres. Desta forma, podemos identificar uma positividade na agência entre as relações familiares e de gênero de doze quebradeiras de coco da região de Codó/MA considerando que se “há uma separação que serve de referência para identificar ‘ser mulher’ e ‘ser homem’ nesse campo vivencial, as relações que lá se estabelecem são tão flexíveis quanto complexas” (BARBOSA, 2006, p. 55). Do mesmo modo, marca que as relações de gênero devem privilegiar, para além da situação de dependência e de opressão feminina, as agências femininas marcadas tanto por situações de maior vulnerabilidade quanto situações de maior privilégio. Nesse sentido, o território da quebra de coco expressa, sobretudo, “relações de gênero e de significados que se estabelecem em seu meio social” (BARBOSA, 2006, p. 35).

Modelos e dinâmicas familiares das mulheres quebradeiras de coco beneficiadas pelo PBF em Codó O Programa Bolsa Família (PBF) possui uma concepção de família que espraia a noção de pai-mãe e filhos, incluindo as famílias sem filhos. No que tange às famílias com a presença de crianças ou adolescentes, o que mais chamou a atenção da equipe de pesquisa é a plasticidade de tal concepção, já que, diante do cenário pesquisado, permite que sejam contemplados diversos arranjos e modelos de família como beneficiárias. Essa diversidade que marca os arranjos familiares aponta para a ideia de família como uma noção construída historicamente (ARIÈS, 1981) e, portanto, não universal ou pré-determinada (HERITIER, 1989). Contudo, ainda que reconhecendo o caráter de construção cultural da família, e, portanto de ficção, como diria Bourdieu (1997), é necessário entender que a família é uma ficção muito poderosa, na medida em que emana dos sujeitos e define sua própria prática10. 10

Como afirma Bourdieu, a concepção moderna de família faz com que se entenda que “a unidade

doméstica é concebida como um agente ativo, dotado de vontade, capaz de pensamento, de sentimento e de ação e apoiado em um conjunto de pressupostos cognitivos e de prescrições normativas que dizem respeito à verdadeira maneira de viver as relações domésticas: universo no qual estão suspensas as leis corriqueiras do mundo econômico, a família é o lugar da confiança e da doação” (BOURDIEU, 1997, p. 126)

185 ESTRATÉGIAS DE ENFRENTAMENTO DA FOME E CONSTRUÇÕES DE GÊNERO: O cotidiano das quebradeiras de coco babaçu da região dos cocais MA


Nas falas das quebradeiras de coco é possível perceber algumas características famílias modernas. Neste sentido, o uso que as quebradeiras de coco babaçu de Codó fazem do benefício do Bolsa Família remete exatamente ao âmbito da casa (o autor destaca a moradia conjunta como traço da família moderna) e também à importância do cuidado com os filhos. Esta semelhança, contudo, como destacou Fonseca (2004; 2006) pesquisando famílias de baixa renda no Brasil, não pode sugerir que se compartilhe de apenas uma noção correta de família. A autora mostra como os modelos de família podem se desviar da noção de família nuclear (pai-mãe e filhos) e demonstra como, no seu universo de pesquisa, apareciam características importantes de outras possibilidades de família. Entre elas a autora destaca a força do laço de sangue, de forma que as relações entre consangüíneos se sobrepõem em importância àquelas de aliança por intermédio de casamento. Além disso, mostra que o cuidado com as crianças pode ser socializado entre diferentes casas, dependendo do momento da vida das pessoas. A composição das famílias das quebradeiras de coco é variada e nela se destacam os filhos e netos de criação. A bibliografia da antropologia destaca esta prática de “circulação de crianças11” (FONSECA, 2004) como “uma prática familiar, velha de muitas gerações, em que crianças transitam entre as casas de avós, madrinhas, vizinhas, e “pais verdadeiros”. Dessa forma as crianças podem ter diversas mães sem nunca passar por um tribunal” (FONSECA, 2004, p.9). A prática da criação de filhos (não biológicos) e netos, assim como uma maior fragilidade dos laços de consangüinidade (a pensar pelo número de casamentos e uniões) (FONSECA, 2002; 2004) faz com que sejam as mulheres, seja na posição de mães ou de avós, as pessoas que arcam com os maiores cuidados com as crianças e adolescentes. Estas características refletem na forma com que se configura

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muito similares aquilo que Bourdieu (1997) denominou como características das

o cenário da distribuição do benefício do PBF entre as quebradeiras de coco entrevistadas: Quadro 1 - Distribuição do Programa Bolsa Família entre as Quebradeiras de Coco Nome: Dona Generosa Dona Delfina Dona Socorro Dona Rita Dona Jesus Gorete Marta Teodora Efigênia Nazaré Rosa Rosalina

Por quem recebe: 2 netos 1 neta 3 filhos 1 neto 2 netos (e sua nora que mora com ela recebe pelo filho) 1 filho 2 filhos e 1 sobrinha Benefício básico Benefício básico Benefício básico 3 filhos Não recebe, quem recebe é sua filha que mora em sua casa com o neto.

Fonte: Projeto MDS/CNPq 036/2010

Entre as quebradeiras, contudo, existem diferentes histórias que levaram à criação de filhos e netos e, diante disso, diferentes formas de se apropriar do dinheiro do benefício. Dona Delfina, por exemplo, recebe o benefício por uma neta de 10 11

“circulação de crianças, ou seja, o grande número de crianças que passa parte da infância e

juventude em casas que não a de seus genitores” (FONSECA, 2006, p.14).


anos de idade. A menina é filha de uma filha de Delfina, que mora em Brasília. Delfina diz que a menina está com ela desde “molinha”, ou seja, desde pequena, porque nasceu em Codó e passou a viver com a avó quando tinha três anos de idade. Delfina ainda diz que não recebe nenhuma ajuda financeira da filha para cuidar da neta, apenas a renda do Bolsa Família (cujo cartão está no nome da avó). Delfina explica que a filha não consegue lhe ajudar porque tem uma nova família na cidade de Brasília. Os casos de migração de familiares, especialmente em busca de emprego, para cidades como Brasília, Goiânia e São Paulo, são muito recorrentes na cidade de Codó. Durante a pesquisa de campo e em conversas com outros moradores, foi possível perceber que praticamente toda família possui algum membro migrante. Entre as quebradeiras pesquisadas, a migração não apareceu apenas no caso de Dona Delfina. Dona Marta, por exemplo, além de seus próprios filhos biológicos, cria filhos de uma irmã que faleceu e de outra irmã que migrou para trabalhar fora do estado do Maranhão. Rita fez o cadastro para receber o Bolsa Família em um momento em que tinha um filho menor de dezoito anos e também um neto que residia com ela, ou seja, que ela criava. O neto voltou a residir com a mãe depois de um tempo. Contudo, para não alterar o cadastro, as duas mulheres acordaram com a permanência do menino no cadastro e, portanto no cartão da avó. O filho de Rita fez dezoito anos e ela ficou recebendo apenas pelo neto e o benefício básico. Ela e a filha dividem o valor do benefício que Rita recebe, ficando cerca de 70% para ela e cerca de 30% para a filha. Sobre a divisão do dinheiro, outra situação interessante apareceu em campo. No pátio da casa de Dona Jesus residem diversas pessoas, entre elas sua filha Gorete, com seu próprio filho (que recebe o benefício), mas também Micaela, sua filha mais velha. Um dos filhos de Micaela é criado por dona Jesus desde que nasceu e outro criado pela própria Micaela. O cartão do PBF em nome de dona Jesus contempla estes dois netos. Como recebe o benefício dos dois, ela divide o valor, ficando com a metade e dando a outra parte para Micaela. O cartão está no nome de dona Jesus porque quando fez o cadastro para o Programa, Micaela tinha migrado para trabalhar, junto com o marido, no estado de Minas Gerais e os netos estavam com dona Jesus. Diante destes aspectos podemos perceber que a configuração da distribuição do benefício do Bolsa Família – quando pensamos especialmente a relação entre o ‘nome que está no cartão’ e ‘por quem se recebe’ - tem a ver com diversos fatores que influenciam, em determinado momento, o arranjo familiar. Assim, a migração, as dificuldades financeiras, etc., são elementos que influenciam diretamente na configuração da distribuição do benefício porque são elementos que também definem as famílias em determinados momentos. Como estes aspectos não são determinados ou fixados sem possibilidades de mudança – pelo contrário, são sazonais – quando se alteram, exigem que as pessoas façam pequenos ajustes na distribuição do dinheiro proveniente do Programa Bolsa Família. Estes ajustes são internos à própria família e costumam ser negociados entre as mulheres. Em alguns casos, como pudemos ver, não chegam ao conhecimento do CRAS ou da Secretaria de Assistência Social.

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Neste sentido, as dinâmicas familiares particulares, imprimem formas de lidar com são passíveis de serem feitas dentro de sua estrutura). Pensando no impacto sobre as dinâmicas familiares, não é possível medir, a partir dos dados resultantes da pesquisa, se o recebimento do benefício tem diminuído, ou não, os casos de migração, por exemplo. O que se pode dizer, a partir de uma fala de Nazaré12 é que algumas mudanças que eram comuns entre as famílias – especialmente envolvendo deslocamentos para o interior para as colheitas – têm sido repensadas sob a ótica da manutenção das Condicionalidades. De maneira geral, a utilização do dinheiro apresenta finalidades semelhantes entre as quebradeiras pesquisadas. Em um primeiro lugar, quando não se consegue outra forma de renda ou aquisição de alimentos, o dinheiro proveniente do PBF serve para comprar comida. Tal situação foi apontada por várias quebradeiras. A utilidade primeira do dinheiro que entra na casa, pelo menos aquele por intermédio das mulheres, é a alimentação. Ainda que destaquem esta finalidade primeira, ela apareceu ‘sozinha’ em poucas respostas. Ou seja, como as quebradeiras continuaram com outras fontes de renda, afinal, nunca pararam de quebrar coco ou fazer roça, o dinheiro do benefício espraia-se para além da alimentação. Neste sentido, é apontado como sendo utilizado, principalmente com duas finalidades: pagar contas domésticas como água, luz, gás; e para auxiliar nas despesas com as crianças e adolescentes, principalmente as relativas à escola. Contudo, apesar destas duas recorrências mais constantes, é possível destacar que o destino do dinheiro proveniente do benefício depende da necessidade da família naquele momento do mês, momento no qual acessam o benefício. O uso do dinheiro proveniente do Programa Bolsa Família está condicionado à situação de vida da família no momento do seu recebimento. Esta forma de repasse

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o Bolsa Família que não estavam previstas na lógica do Programa Social (mas, que

garante, portanto, que as mulheres encontrem algum grau de liberdade na sua utilização (podem usar para o que estiverem precisando mais naquele momento). Diante das dificuldades financeiras que marcam o cotidiano das interlocutoras, contudo, a possibilidade de manipulação deste dinheiro contempla normalmente as mesmas finalidades. Os destinos mais apontados pelas interlocutoras da pesquisa foram a alimentação, o pagamento de contas como água e luz, a compra do gás, gastos com material escolar e uniforme, roupas e calçados para os filhos. Em menor grau apareceram compras de eletrodomésticos e melhorias na casa. Pensando a relação entre a família e a utilização do benefício, foi possível notar que a família é a unidade básica a partir da qual se pensa o uso deste dinheiro.

12

Retomando a fala de Nazaré: “[...] se os pais num tiver incentivando eles, não é todos que se

interessa pra estudar não. E aí eu sempre to ali pra eles estudar e nunca levei assim pro interior [...] se eles faltasse na escola, uns dez dia, quinze dia, aí já, aí ia sair do programa, aí veio essa ajuda pra gente, aí já dá pra ajudar, ajudava eles, né, no material, na farda” (NAZARÉ, entrevista, 19/08/2011).


Gênero, casa, criança e o Bolsa Família O Programa Bolsa Família, na sua estrutura, toma as mulheres como prioritárias no que concerne ao repasse do benefício. Neste sentido, na maioria dos casos, são os nomes das mães ou avós que figuram nos cartões do Programa. Pensando neste elemento cabe explanar sobre como as quebradeiras percebem esta vinculação entre as mulheres e o benefício do PBF. Esta discussão é amplamente arraigada, já que em torno da mesma surgem diversas opiniões e afirmações, tanto no senso comum, quanto no meio acadêmico. As colocações acerca deste debate normalmente são dicotômicas. Alguns questionam esta vinculação, afirmando que ela recoloca a mulher numa situação de subordinação no ambiente doméstico, fazendo novamente uma ligação entre sua identidade e o papel de mãe (e, portanto, seu papel tradicional) e deixando as mulheres mais afastadas do mercado de trabalho13 (ver MEYER, 2005; KLEIN, 2005). Outros debates sobre este vínculo, pelo contrário, mostram como o benefício recebido pelo PBF empodera mulheres na formação de associações e iniciativas nos espaços próximos às suas residências. Alguns cientistas sociais, que pesquisaram famílias de baixa renda, destacaram que a relação entre o casal era marcada por uma complementaridade (ver SARTI, 1996, ZALUAR, 1985). Concluía-se que havia uma posição estrutural de homem e outra de mulher (de marido/esposa). Aos homens pertencia o mundo do que é público, enquanto às mulheres, o domínio era o privado. As próprias Ciências Sociais passam a questionar estas dicotomias como constitutivas da realidade, as entendendo como um reflexo de categorias do pesquisador, que, quando aplicadas aos grupos pesquisados, privilegiavam os espaços onde os homens estavam presentes (STRATHERN, 2006). As quebradeiras de coco babaçu de Codó, como apontado acima, destacam a importância de seu papel de mães e do cuidado da casa. Contudo, não possuem seu cotidiano marcado pela presença no ambiente doméstico, pelo contrário, deslocam-se diariamente para o trabalho. A partir destas características de suas vidas, assim como a partir dos dados sobre gênero que serão trazidos abaixo, as interlocutoras desta pesquisa podem ajudar a repensar algumas destas dicotomias que têm marcado as análises sobre o PBF e sobre as relações de gênero. Nas entrevistas as mulheres selecionadas foram inquiridas sobre a prioridade dada às mulheres no repasse do benefício. Foram perguntadas se o cartão do PBF deveria estar no nome da mulher ou do homem. Apenas Teodora disse que “tanto faz” se o cartão estiver com o nome da mulher ou do homem. Garantiu que era

13

Em outro espaço, Dagmar Meyer e Carin Klein apontam para outro enfoque instigante dos

programas de transferência de renda na área da educação e saúde que possuem as mulheres como “agentes prioritárias de sua implementação” (KLEIN, 2005, p. 31). As autoras remetem à constituição de um determinado tipo de maternidade que associa “mulher” ao status de “mãe”, reforçando as hierarquias de gênero que postulam seu espaço como o da casa (não oferecendo acesso ao mercado de trabalho) e o do cuidado dos filhos

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indiferente porque seu marido sempre sabia “fazer a feira” ou pagar as contas que teja no nome da mãe/mulher. Para Socorro, é a mulher quem sabe quais são as prioridades da casa, e, por isso, cabe a ela receber e administrar o dinheiro do benefício:

Equipe: E ai se fosse no nome do seu marido, a senhora acha que ia ter problema? Socorro: Não, não iria ter porque ele sabe da necessidade dos filhos, né? Ele sabe, até quando ele tá aqui que ele faz algum bico, a metade, 60%, 70 é pra dentro de casa, pros meninos. Aí, nos sempre assim, colocamos os meninos na prioridade, pra nós, adultos, já fica em segundo plano entendeu? Assim, criança que eles gostam muito de sair, assim, pro os lugar, festinha, algum lugar ai. Tem que mais roupa para sair do que nos. Ai nós se preocupa mais com eles do que com a gente (Entrevista, 26/07/2011). De maneira semelhante à fala de Socorro, para dona Generosa, além de serem as mulheres que sabem o que está faltando dentro de casa, são elas que têm os filhos como prioridade, não gastam dinheiro “com festa”:

Equipe: Então, conta como assim, o homem não sabe o que faz? Generosa: Sabe não, você vê, você compra direito, eles não compra as coisas direito pra casa, e sendo a mulher é melhor, é muito melhor ser pago pra mãe do que pro pai.

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chegavam a casa. O restante das quebradeiras disse que é melhor que o cartão es-

[...] Generosa: É verdade, às vezes num sabe tudo que falta dentro de casa, às vezes quer sobrar um pouquinho pra ir pra festa, pra sair na rua e tomar uma cerveja, e mulher não. Eu mesmo gosto de tomar uma cerveja, mas os luxo assim... Digo é 2,50 uma cerveja, 2,50 eu compro de feijão e fico comendo a semana todinha, a menina mamãe como é isso, a senhora faz isso... Eu minha filha, num gasto não. E o homem não ele quer saber disso né, quer saber que ta brincando. (Entrevista, 05/07/2011). Portanto, para as quebradeiras entrevistadas, conhecer as despesas da casa, saber o que comprar e “como” comprar é uma característica das mulheres. Esse conhecimento do mundo doméstico se soma a outro elemento que também funciona como legitimador dentro dos argumentos das quebradeiras para se posicionar sobre o vínculo entre as mulheres e o benefício: a mulher é quem tem os filhos como prioridade. As mulheres, na constatação das quebradeiras entrevistadas, estão mais familiarizadas com o ambiente doméstico, sendo que conhecer e cuidar bem da casa são


elementos que ajudam a definir sua identidade. Contudo, como bem mostra Claudia Fonseca, o universo feminino não se encerra no doméstico como um espaço separado do mundo da rua (FONSECA, 2004). As quebradeiras, ao valorizarem o doméstico e também trabalharem ‘fora’ de casa, borram as fronteiras da dicotomia que toma o mundo do doméstico como separado do mundo do público. O que as diferencia dos homens não é que elas não circulem amplamente fora do doméstico, mas, é que, diferentemente deles, elas sabem das prioridades da casa e não utilizam o dinheiro para festas e bebida alcoólica: As quebradeiras dizem conhecer casos de homens que gastam o dinheiro do benefício com “festa” e “bebida”, contudo, diferente dos argumentos do senso comum (que tendem a generalizar e condenar tais comportamentos), o fato de algumas pessoas não saberem se utilizar do benefício (para a casa e para os filhos, que são gastos legitimados por elas) não invalida o Programa Bolsa Família. Pelo contrário, destaca como elas são merecedoras do repasse, já que o utilizam com responsabilidade. Na entrevista com Dona Rita, ela e seu marido14, apresentam outro elemento que ainda não tinha aparecido nas entrevistas (mas, é comentado no dia-a-dia na cidade): os casos de violência doméstica envolvendo o dinheiro do repasse.

Seu Desidério: Às vezes o homem e vai bebe tudo de cana, ai ás vezes não tem de comprar o que comer. Dona Rita: (risos) Aí fica difícil é mesmo. Equipe: É seu Desidério? Dona Rita: É, como a gente já viu muita coisa assim mesmo é do jeito que ele tá falando. Seu Desidério: Tem, acontece, tem acontecido. Dona Rita: Até briga o homem batendo na mulher por causa disso (Entrevista, 27/07/2011). Em campo pode-se ver que existem casos em que, apesar do cartão estar no nome da mulher, quem retira o dinheiro do benefício pode ser outro membro da família. Dona Marta menciona que teve uma situação em que não se sentia bem e seu marido teve que buscar o benéfico para ela: “Ele recebeu, só que do jeito que eu faço ele faz certinho. Ele trouxe o dinheiro, do jeito que ele pegou lá ele trouxe pra mim, não gastou não. Quando ele vendia meus cocos ele não gastava um centavo ele trazia tudinho” (MARTA, entrevista, 16/08/2011). Marta ressaltou o fato de ser esporádico, já que, se fosse todos os meses, “não ia dar certo não”. Em um sentido semelhante, quando perguntada sobre o nome da pessoa que deveria constar no cartão, dona Rosa disse que, apesar de estar no seu nome, quem retirava o dinheiro e trazia para casa era o seu marido:

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Em diversas entrevistas as quebradeiras não estiveram sozinhas com a equipe da pesquisa. Isso

aconteceu porque havia mais pessoas nas casas e elas costumavam conversar e participar, inclusive, das entrevistas.

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Dona Rosa identifica o benefício do Bolsa Família como uma contribuição feminina pação masculina, a roça. Como afirmou, para ela o homem tem a roça e a mulher também precisa de uma renda. Estas afirmações das quebradeiras, sobre a mulher como prioritária no recebimento do benefício, vão construindo imagens distintas do que seriam os homens e as mulheres. Falando sobre as diferenças entre homens e mulheres, pensando também em relação ao mercado de trabalho, dona Nazaré acredita que

Nazaré: Por que a mulher sempre as pessoa, eles, como é que quero dizer assim sobre a ajuda, sempre eles se, deixa pensar aqui... A mulher tem mais facilidade de receber ajuda, assim tudo por tudo, porque se ela tá, ela num tem o dinheiro, precisa do, assim alguma coisa pra fazer, porque assim ela no pode fazer, assim que ela nu sabe fazer, tem muitos homem que se oferece, uns é com interesse outros sem interesse. Equipe: E a senhora acha que as pessoas não fazem isso por homem? Nazaré: É, e também ajuda porque se eu fosse um homem, na situação que eu já venho e até onde eu tô, se eu fosse um homem ninguém ajudava. Equipe: Mas, porque a senhora acha que ninguém ajudaria? Nazaré: É porque é homem.

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dentro do orçamento familiar. Isto fica evidente ao comparar com a principal ocu-

Equipe: Ah é. Nazaré: É e se diz se é homem é que homem trabalha por qualquer serviço, né? Todo serviço ele pode trabalhar e mulher não, não é todo serviço que ela pode trabalhar. Ela num pode cortar um pau pra fazer um carvão assim daqueles pau grosso né, home não, homem pode fazer. Ela num derruba, ela num broca, o que ela faz da roça é coivarar, capinar tem delas que até planta. E aí o homem é muito difícil pra achar assim uma pessoa pra ajudar e a mulher sempre mais fácil (Entrevista, 19/08/2011). Mulheres e homens são, portanto, diferentes. Mulheres tendem a privilegiar a casa e a conhecer melhor o funcionamento da rotina doméstica. Colocam os filhos em primeiro lugar, antes até delas mesmas. Tendem a contar com uma rede de apoio e ajuda (como disse Nazaré) maior que os homens, pois são vistas como podendo cumprir alguns trabalhos enquanto os homens podem fazer qualquer tipo de serviço. A roça e os trabalhos mais duros ligados a ela são vistos como espaços masculinos - isto, muito embora várias quebradeiras de coco também trabalhem na roça. O benefício do Programa Bolsa Família, portanto, figura como uma contribuição feminina dentro do espaço doméstico.


Os homens, por sua vez, são menos responsáveis. Tendem a gastar dinheiro com sua diversão, em festas e com bebidas alcoólicas. Mesmo que os maridos delas possam ir buscar o benefício pelas mesmas, e isso acontecer sem problemas (ou seja, lhes entregarem o dinheiro), é preciso manter os olhos sempre abertos, por que homem “é bicho enrolado”. Elas fazem essa vigilância, mas, reconhecem que tem outras famílias onde existem casos de violência doméstica por causa do benefício ou onde o marido gasta o dinheiro do mesmo com sua própria diversão. Dona Rosalina, por sua vez, acrescenta mais um elemento para pensar essa distinção entre homens e mulheres. Para ela, existe um caso em que o benefício não deveria estar no nome da mãe: quando a mãe tem um comportamento parecido com aquele esperado do homem

Por que a mãe ou a que seje, assim porque tem muitos pais irresponsáveis, tem muitos pais irresponsáveis, mas também tem muitas mães que são irresponsáveis, então a gente tem que caça uma vó que tem responsabilidade, entrega pra elas, como velha entendi mais. Tem muitas mãe miserável, eu conheço muie ai que recebe e tora na cana. Pai, isso ai é pros fie (filhos) se alimentar, pras crianças, porque nós, na idade que eu to, vocês não por que é essa dali, nos temos que olha pra esses ai num é não? (ROSALINA, entrevista, 06/08/2011). A fala de dona Rosalina tem bastante reflexo no universo pesquisado, já que muitas avós quebradeiras de coco são as pessoas que criam seus netos. Das doze interlocutoras entrevistadas, 05 delas recebem o benefício porque são as responsáveis por seus netos. Receber o PBF por crianças que são filhos “de criação” é uma constante. As avós, no processo do envelhecimento, com a possibilidade de melhoria de vida por causa do ganho da aposentadoria (que algumas recebem como trabalhadoras rurais) e porque ficam mais circunscritas à cidade (já que as gerações mais novas migram para outros Estados), se apresentam como alternativa para o cuidado das crianças. Quando se analisa estas ponderações sobre gênero, pensando-as de forma relacionada ao uso do benefício e aos arranjos e dinâmicas familiares, pode-se perceber que a dicotomia entre público e privado não se sustenta. Em primeiro lugar porque, apesar de se orgulharem de serem as conhecedoras e administradoras de suas casas e de colocarem os filhos e netos como prioridade, as interlocutoras de pesquisa são sujeitos determinados por várias facetas: além de serem mães e donas de casa, são quebradeiras de coco, tem um envolvimento político a partir das associações, correm atrás de melhorar suas condições fazendo o cadastro do PBF. Constituem suas casas como um ambiente privado, mas não como oposto do público, já que a casa é um espaço de fluxo constante de pessoas, especialmente de crianças. Além disso, a casa é a unidade básica a partir da qual se colocam diante da relação com o Estado. É possível concluir, portanto, que as quebradeiras, enquanto mulheres vêem como positiva a vinculação entre o benefício e a prioridade das mulheres para seu recebimento. Questionam a associação entre o status de mãe e a casa como papéis tradicionais que as aprisionam (pura e simplesmente), mostrando, a partir de suas experiências de vida, que não cabem em pólos opostos e dicotômicos.

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Dito isso, cabe pensar ainda como as quebradeiras, na sua relação com o benefício experiência como assistencialismo ou direito (AHLERT, 2008b). Para isto, serão apresentadas algumas questões sobre impactos que as quebradeiras identificam que o PBF causou nas suas trajetórias, assim como suas representações sobre o Programa.

CONCLUSÃO Existem diferentes formas de medir ou tentar perceber o impacto de um programa social nas experiências de vida do público ao qual o programa se destina. Em primeiro lugar buscar-se-á tratar de como as interlocutoras percebem, ou não percebem, uma mudança na melhoria das suas condições de vida por causa do recebimento do benefício. Quando questionadas sobre esta melhoria, algumas delas falavam do passado para confirmar uma mudança no presente. Dona Socorro ressaltou a importância no benefício no pagamento das despesas da casa e disse “lembro quando era criança, minha mãe tinha que quebrar não sei quantos quilos de coco babaçu pra comprar alguma coisa pra gente” (Extrato de diário de campo 34, 24/05/11). Em consonância com o que afirmou Dona Socorro, Nazaré e Generosa disseram que

Equipe: Mas, porque a senhora acha que num passa mais dificuldade igual, então?

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do Programa Bolsa Família, questionam outra dicotomia, a que busca classificar esta

Nazaré: Por causa dessa ajuda do, do Bolsa, assim, da Bolsa Família é só uma vez que vem no mês e o meu é só no final do mês. [...] Mas, aquela fome que eu passava, que a gente já passou muita necessidade mesmo, tinha vez que a gente tinha vontade de botar uma farinha na boca e num tinha ás vezes. Hoje já tem, a gente tem, também tem, tem, tem... (Entrevista, 19/08/11). Equipe: Então esse Bolsa família é bom, é? Generosa: É bom demais, Ave Maria, é uma ajuda muito grande que o governo mandou pra gente, o presidente. Equipe: E aí, antes do Bolsa Família como é que era? Generosa: A gente passava, porque passava mesmo né, mas ele chegou melhorou a vida da gente demais. Ai eu peguei esses neto meu e a aposentadoria, ai melhorou mais ainda. Equipe: É? Generosa: É, porque nem casa nós tinha, pra morar, e não tinha nada dentro de casa, não tinha nadinha, só as rede dos meu filho, a depois disso vocês tão vendo como tão minha coisinhas (Entrevista, 18/08/11).


A melhoria das condições de vida aparece quando se compara a situação atual com uma situação do passado, pode ser da infância, em relação à mãe que também quebrava coco (como disse Socorro) ou aos momentos em que se passava fome ou se tinha uma casa muito mais simples. Diversas vezes, essa mudança é dita mencionando uma relação entre a mulher e os filhos (com seus pedidos e necessidades):

Equipe: E mudou como a vida de vocês em receber esse dinheiro? Dona Rita: Melhorou, melhorou por que às vezes a gente num tinha nem dez centavos pra comprar o lápis o fie da gente ficava pedindo, sem a gente ter (Entrevista, 26/07/11). Antes a gente passava mais dificuldades, ai às vezes quando minha filha adoecia, pra mim comprar um remédio era maior dificuldade, hoje não. Às vezes, eu já com as outras despesas, já fica mais fácil, quando tem o dinheiro do Bolsa Família já fica mais fácil pra gente, que é 166 (reais) que eu recebo deles. Ai eles compra o material da escola, quando tá de férias é mais só pra parte da alimentação (SOCORRO, entrevista, 26/07/11). Alguns pedidos das crianças, que ‘agora’ podem ser contemplados, diante das dificuldades financeiras das condições de vida de suas próprias infâncias, podem até ser considerados uma espécie de luxo. “Hoje eles já dizem assim ‘mamãe eu quero roupa assim tal’, eu já compro. Hoje já tem assim praticamente um luxo pra eles, porque antes, quando eu era criança não tinha esse luxo assim, hoje eles já têm. Aí, eu sempre falo a gente tem que dar valor no que a gente tem (SOCORRO, entrevista, 26/07/11). A partir destas considerações pode-se concluir que o benefício do Programa Bolsa Família é percebido pelas quebradeiras de coco como tendo um impacto positivo, no sentido de que reconhecem a melhoria de suas condições de vida quando pensam em relação às suas próprias trajetórias (sua infância) e também quando falam sobre sua vida como mães e avós antes do PBF. Neste sentido e em consonância com suas falas sobre as finalidades nas quais empregam o uso do dinheiro, uma grande vantagem deste período (em que recebem o benefício) é poder comprar utilidades que seus filhos necessitam, assim como dar-lhes um pouco de “luxo” ou mesmo uma comida diferente daquela que é a comum em épocas de maior aperto econômico. Dar aos filhos algumas “regalias” que não possuíram em suas infâncias aparece como algo que as deixa satisfeitas como mães e como avós. Além disso, outros elementos foram destacados como positivos e tem relação com o formato do Programa Bolsa Família. Neste sentido, foram mencionadas qualidades do Programa que remetem à constância e ao fato do benefício ser em dinheiro. São variadas as estratégias utilizadas pelas quebradeiras de coco para combater a fome e manter suas vidas. A quebra do coco babaçu tem uma lógica muito peculiar quando se pensa na relação entre tempo e trabalho já que a quebra garante uma

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pequena quantidade de dinheiro no final de cada dia de trabalho. Outros locais mentos, e mesmo o trabalho na roça, não são formas estáveis de acessar recursos. Neste sentido, a constância do repasse do Bolsa Família, desde que cumpridas as Condicionalidades, é um elemento indicado como positivo pelas quebradeiras. Além disso, também aparecem menções de positividade ao Programa porque, ao invés de distribuir alimentos, roupas ou mesmo gerar alimentos como as roças, é uma forma das quebradeiras terem acesso a dinheiro (enquanto moeda). Nenhuma das quebradeiras de coco pesquisadas parou de quebrar coco babaçu quando passou a receber o PBF. Para as mulheres selecionadas, o benefício não é visto como única fonte de renda, mas como uma das fontes. Apesar de continuarem quebrando coco, as interlocutoras de pesquisa perceberam outro elemento considerado positivo e criado a partir do recebimento do benefício é a ‘flexibilização’ de suas rotinas de trabalho:

Rosalina: Era ruim porque eu tinha que quebrar o coco todo dia pra dar comida pros fie (filhos). Todo dia eu levantava quatro hora da madrugada, ajeitava a comida pros menino, lavava roupa, ajeitava tudo Quando era seis hora eu ia pro carro, aí ia quebra coco. Quando era de tarde, de noite, eu chegava aí, pra eles come. Aí deixava a comidinha pra eles almoçar. Quando eu chegava ia comprar pra jantar e deixar pros outros dias pra deixar pra eles, pra mim ir pro serviço. Era assim.

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e iniciativas as quais as quebradeiras recorrem para receber proventos, como ali-

Rosalina: E naquele tempo se eu dissesse ‘hoje eu num vou pro’.[...] Hoje, é domingo, é sábado. Hoje eu quebrei o coco que só deu pra fazer a despesa de sábado. Domingo eu tinha que sair brincando por aqui assim, lá pros Monte Videl, quebrar meu coco, pra de tarde eu comer, cansei de fazer isso (Entrevista, 06/08/2011). Pode-se concluir que as quebradeiras acessadas na pesquisa reconhecem um impacto positivo do Bolsa Família, como dito acima, em relação às suas trajetórias e aos momentos anteriores ao recebimento do benefício. Um elemento muito importante para perceber este impacto positivo foi a possibilidade de uma mudança em suas rotinas de trabalho. O benefício permitiu que, com algum dinheiro, elas pudessem ficar algum dia da semana sem fazer a quebra do coco. Em épocas de maior dificuldade financeira, ou como chamam, de maior “precisão”, as quebradeiras costumam dizer que “quebra coco sábado pra ter o que comer no domingo”. A constância do repasse do benefício permite uma ‘flexibilização’ desta rotina baseada na “precisão”. Nos trechos das entrevistas acima citadas é possível notar que a categoria mais usada pelas interlocutoras para se referir ao benefício do Programa Bolsa Família é a categoria “ajuda”. Enquanto categoria ‘nativa’, a “ajuda” é dada pelo governo aos mais pobres e isto é visto, pelas quebradeiras de coco, como uma responsabilidade do Estado. Utilizar a categoria “ajuda” para descrever um programa social pode ser uma faca de dois gumes, afinal, muitos não considerariam, como papel


do Estado, “ajudar” as pessoas, mas, oportunizar que tenham seus direitos garantidos. Neste cenário mais amplo, o Bolsa Família enquanto “ajuda” seria visto como meramente ‘assistencialista’, numa oposição clara em relação a o que poderia ser considerada uma efetivação dos direitos. Do ponto de vista de perceber a “ajuda” como uma categoria êmica, outros pesquisadores já apontavam que a perspectiva de separação entre ajuda e direito não costuma encontrar muito reflexo na experiência de vida dos sujeitos (SARTI, 1996). Analisando a fala de diferentes lideranças envolvidas no Programa Fome Zero na cidade de Porto Alegre, Ahlert (2008a, 2008b) destaca como a categoria “ajuda” era utilizada pra descrever atividades que estavam ligadas à política institucional. Utilizar-se da categoria “ajuda”, portanto, não excluiria a possibilidade de ver esta “ajuda” também enquanto uma efetivação de direitos. Dentre as poucas críticas que as quebradeiras fazem ao Programa (que incluem a demora entre o cadastro e o recebimento do benefício e a distância dos CRAS) o fato de pessoas que “não precisarem” estarem recebendo aparece com freqüência. A solução para estas situações, tal como apontou Gorete, é a fiscalização, é “procurar quem realmente necessita”: Destas críticas cabe destacar alguns elementos. Em primeiro lugar, questionam o poder público nos atos de fiscalização das famílias que recebem o Bolsa Família. Elas não vêem, que os funcionários dos CRAS estejam fazendo as visitas domiciliares. Elas notam uma relação entre este mau funcionamento e a lentidão nos cadastros, dando a entender que não tem clareza de que existe um número limitado de benefícios disponíveis ao município. Em suas falas, as quebradeiras reconhecem que precisaram de uma orientação inicial para ficar sabendo sobre o PBF. Ocupando esta função de comunicar estas informações, aparecem lideranças sociais, funcionários de outros programas como o PETI, pessoas ligadas a candidatos políticos e funcionários do CRAS. Na mesma medida que reconhecem como estas pessoas foram importantes para acessarem o Programa, as quebradeiras percebem que existem outras pessoas que ainda não conhecem o Bolsa Família. Identificam que tem pessoas - e indicam os moradores da área rural, que tem maior dificuldade em acessar estas informações – que são ainda mais pobres que elas e que nem sequer ficam sabendo do Programa (uma espécie de mais vulnerável entre os vulneráveis). Existem, portanto, diferentes tipos de ‘pessoas’ que podem ser identificadas nas suas narrativas: aquelas pessoas que recebem e não precisam, aquelas que precisariam muito, mas, não ficam sabendo como fazer o Bolsa Família, tem outras pessoas que procuraram fazer o cadastro, mas, sem saber a exata explicação, nunca conseguiram o benefício e tem outro grupo, que são mulheres que não batalharam o bastante para conseguir: O que é interessante ressaltar é que, se por um lado, se podia ouvir que “o Bolsa Família todo mundo tem”, com maior conhecimento do universo de pesquisa é possível dizer que existe toda uma categorização das pessoas. Esta categorização as classifica de acordo com terem ou não o benefício e sobre as formas que se utilizaram para acessá-lo. As quebradeiras que são beneficias mostram nas suas

197 ESTRATÉGIAS DE ENFRENTAMENTO DA FOME E CONSTRUÇÕES DE GÊNERO: O cotidiano das quebradeiras de coco babaçu da região dos cocais MA


narrativas que elas não são como aquelas que não sabem, não são como as que car seus direitos. Pelo contrário, destacam um papel de agência, uma “luta” para a conquista do mesmo. Estas destacam a própria agência no processo de “conseguir” o benefício, ou seja, fazer o cadastro e continuar se informando sobre ele para enfim, receber o dinheiro. Mas, além disso, suas falas comportam ainda uma concepção de aprendizado sobre o Programa Bolsa Família. Algumas quebradeiras disseram que tiveram algumas dificuldades iniciais com o PBF, especialmente porque consideraram existir uma demora entre o seu cadastramento e o recebimento. Às vezes, diante das situações de bloqueio do benefício, elas procuram ajuda, mas, não encontram as respostas que procuravam. Em outros momentos, o caráter de aprendizado sobre o Programa aparece. Como por exemplo, Dona Delfina disse que não sabia que precisava pesar a criança (ou seja, que não sabia da existência da Condicionalidades na saúde), mas, que depois que ficou sabendo, não deixou mais de cumprir com a mesma. Dona Socorro também falou sobre a importância de fazer o recadastramento: “Porque sempre assim, eles pedem pra gente atualizar os dados eu sempre vou, pra não ter nenhum problema de eu não receber depois” (SOCORRO, entrevista, 26/07/2011). O caráter de luta e esta característica de aprendizado ajudam a expandir (ou mesmo explodir) o conceito de “ajuda” tal como o senso comum e a mídia costumam entendê-lo, ou seja, associado ao assistencialismo e, portanto, à passividade dos pobres e ao pouco desejo de mudança da política pública ou social. Neste caso, a “ajuda” existe, mas, de nada adiantaria se elas não “corressem atrás” e batalhassem pelo seu cadastro. As quebradeiras criticam sim as mulheres que não fazem o mesmo, mas, ao mesmo tempo, reconhecem que existem outras mulheres que

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recebem e não merecem e também não são como aquelas que esperam sem bus-

não tem o acesso às informações que elas possuem. Assim, a forma com que elas se relacionam com o Programa – lutando para melhorar suas vidas – é a forma com que elas também lidam com o seu cotidiano – buscando variadas iniciativas para melhorar as condições de vida em suas casas. Desta forma, na análise do encontro do Programa Bolsa Família com suas vidas, puderam ser percebidas algumas recorrências. Para as quebradeiras de coco da cidade de Codó, o Programa Bolsa Família deve ser pensado na perspectiva das outras relações políticas da cidade. Não porque as mulheres não o reconheçam como um


Programa Federal, mas, porque com o atendimento sendo de responsabilidade do município, é nele que elas “lutam” para conseguir seu cadastro e seu benefício. No âmbito do município e pensando especialmente no âmbito da atividade da quebra de coco, não existem canais institucionalizados de comunicação com o Estado (com a prefeitura). O que as quebradeiras alcançam dos seus pedidos para os políticos locais, são elementos baseados em trocas (votos) e em promessas – e não em garantias com qualquer forma de estabilidade. O Bolsa Família é entendido, ou valorizado, em contraposição a este cenário, porque é reconhecido como um programa que tem constância (todo o mês o dinheiro está lá, “sem susto”). Elas questionam ainda outras leituras simplistas sobre o recebimento benefício do Programa Bolsa Família. Questionam, em primeiro lugar, aquelas afirmações de que dependem do Programa para viverem. Em diferentes falas deixaram mostrar que antes do Programa “A gente passava, porque passava mesmo né[...].” (GENEROSA, entrevista, 18/08/2011), ou seja, que antes do PBF elas buscavam outras formas de prover o sustento de suas casas. Assim como continuam se dedicando a diferentes atividades, incluindo a quebra do coco. Assim, o que o benefício permitiu foi uma redução em sua jornada excessiva de trabalho tendo mais tempo para se dedicaram a outras atividades rotineiras. Também, como possibilidade de comprar material escolar, produtos de higiene e algum “luxo” para os filhos. A constância do Programa as afastou do medo de ficar sem nenhum recurso para comprar comida, por exemplo. Importante constatar que estas conclusões estão todas condicionadas a leituras de diferentes temporalidades. O impacto do benefício é pensando analisando suas próprias trajetórias de vida, assim como os momentos anteriores ao recebimento do benefício. Dentre os impactos ou as mudanças que o PBF traz, uma delas é a possibilidade de mudar a rotina da quebra – quando se quebra coco em um dia para ter dinheiro para comer no próximo. O benefício sendo em dinheiro, permitem que elas lidem com as necessidades que surgem nos diferentes momentos do mês, de acordo com a “precisão” mais imediata da família. A relação com tempo e o trabalho é pensada de maneira diferenciada a partir do recebimento do benefício. As quebradeiras de coco - nas formas com que acessam o Programa recebem o benefício e o utilizam -, mostram a importância de um olhar cuidadoso para a relação entre o Programa Social e o público-alvo deste Programa.

199 ESTRATÉGIAS DE ENFRENTAMENTO DA FOME E CONSTRUÇÕES DE GÊNERO: O cotidiano das quebradeiras de coco babaçu da região dos cocais MA


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201 ESTRATÉGIAS DE ENFRENTAMENTO DA FOME E CONSTRUÇÕES DE GÊNERO: O cotidiano das quebradeiras de coco babaçu da região dos cocais MA


Fernanda Souza de Bairros1 Marilda Borges Neutzling1

Introdução e temas transversaIs

avaliação de políticas públicas: ReFleXÕes acadêmicas sobRe o desenvolvimento social e o combate à Fome

SEGURANÇA ALIMENTAR E ACESSO AOS PROGRAMAS DE DESENVOLVIMENTO SOCIAL e combate à Fome de comUnidades QUILOMBOLAS DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL.

1

PRoGRAMA DE PÓS-GRADuAção EM EPIDEMIoLoGIA – uNIvERSIDADE FEDERAL Do RIo GRANDE Do SuL


INTRODUÇÃO As desigualdades e as iniquidades raciais têm sido evidenciadas por diversos estudos e nos mais variados campos da vida social como educação, saúde e economia (IPEA, 2008, PAIXÃO, 2011) As iniquidades raciais em saúde são expressas pelos diferenciais nos riscos de viver, adoecer e de morrer, originados de condições heterogêneas de existência e de acesso a bens e serviços. As diferenças são consideradas iníquas se ocorrem em função de escolhas limitadas, acesso restrito a recursos (alimentação, moradia, serviços de saúde etc.) e exposição a fatores prejudiciais, por conta de injustiças (SILVA 2002, LUCHESE 2003). Conforme Valente (2002), o direito à alimentação é um direito humano básico, sem uma alimentação adequada, tanto do ponto de vista de quantidade como de qualidade, não há o direito à vida e não há o direito à humanidade. As atuais políticas e programas voltadas ao desenvolvimento social e combate a fome reconhecem que em algumas populações a vulnerabilidade social é maior, e prioriza em suas ações povos e comunidades tradicionais como indígenas, quilombolas, comunidade de terreiro, ribeirinhos entre outras. Comunidades quilombolas, sujeitos de pesquisa deste estudo, são grupos étnico-raciais, segundo critérios de auto-atribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas e com ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida, conforme Decreto nº 4887 (BRASIL, 2003). Um levantamento realizado pela Fundação Cultural Palmares do Ministério da Cultura, mapeou no Brasil 3.524 comunidades quilombolas e até início do ano de 2012, 1820 comunidades haviam sido certificadas. Dentre as comunidades com certificação expedidas, 86 estão localizadas no estado do Rio Grande do Sul, totalizando aproximadamente 3101 famílias (BRASILb,2012). Trata-se de um contingente humano considerável para o qual não existem informações sistematizadas sobre sua atual situação alimentar e nutricional. Portanto, a identificação e o perfil quantitativo das famílias quilombolas beneficiadas por programas de segurança alimentar e nutricional e expostas a maiores riscos nutricionais (com insegurança alimentar), é elemento importante na formulação, avaliação e monitoramento da Política Nacional de Segurança Alimentar instituída no Decreto Nº 7272 (BRASILc, 2010). Apesar da carência de informações específicas sobre a situação alimentar e nutricional de comunidades quilombolas, estatísticas mostram que a população negra em geral encontra-se em maior vulnerabilidade social comparando-se com população branca. A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios 2004 (IBGE, 2006) que utilizou pela primeira vez a Escala Brasileira de Insegurança Alimentar, revelou que 13.921 milhões de pessoas passavam fome no Brasil e que a insegurança alimentar era visível e reforçava a desigualdade econômica entre raças. No Brasil, 11,5% da população negra apresentava situação de insegurança alimentar grave; entre os brancos o percentual caia para 4,1%. Além disso, a população que vivia em domicílios com garantia de acesso aos alimentos em termos qualitativos e quantitativos era 71,9% de brancos e 47,7% de negros. As diferenças na proporção de insegurança alimentar grave (os que realmente passavam fome) de acordo com a cor da pele se reproduziram em todos os estados brasileiros, sendo que a região sul foi uma das que

203 SEGURANÇA ALIMENTAR E ACESSO AOS PROGRAMAS DE DESENVOLVIMENTO SOCIAL E COMBATE À FOME DE COMUNIDADES QUILOMBOLAS DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL.


apresentaram maior magnitude do problema. Em 2006, a Pesquisa Nacional de de insegurança alimentar. Na região sul observou-se uma prevalência duas vezes superior de insegurança alimentar grave em domicílio onde residiam mulheres de raça/cor negra, comparativamente àqueles onde as entrevistadas eram de raça/ cor brancas (BRASIL, 2008). Por último, a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios 2009 apontou que a insegurança alimentar moderada e grave na população brasileira em geral vêm diminuindo, porém a prevalência dessa insegurança na população negra é quase três vezes (18,6%) maior do que aquela verificada entre a população branca (7,7%) (IBGE, 2010). Dessa forma, estudo sobre o acesso aos programas de desenvolvimento social e combate à fome, e as prevalências de insegurança alimentar e nutricional das famílias residentes em comunidades quilombolas no estado do Rio Grande do Sul justifica-se pela magnitude dos problemas decorrentes da insegurança alimentar, ausência de dados sobre comunidades quilombolas e pela possibilidade de fornecer elementos importantes para a elaboração, avaliação e monitoramento de programas e ações de desenvolvimento social e combate a fome ajustadas a realidade local. Esta pesquisa tem como objetivo avaliar o acesso aos programas de desenvolvimento social e combate à fome e a prevalência de insegurança alimentar e nutricional das famílias residentes em comunidades quilombolas do Estado do Rio Grande do Sul.

MÉTODO Foi realizado um estudo transversal de base populacional, incluindo uma amostra representativa de famílias quilombolas do estado do Rio Grande do Sul. A popula-

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Demografia e Saúde também revelou a cor da pele como um indicador importante

ção de estudo foi composta por famílias localizadas em 22 comunidades quilombolas rurais e urbanas no estado (Quadro 1). Quadro 1. Comunidades quilombolas sorteadas para amostra, Rio Grande do Sul, 2011. Município

Comunidade quilombola

Nº de Famílias

Amostra

1. Arroio do Tigre

Sítio novo

28

19

2. Canoas

Chácara das Rosas

32

21

3. Gravataí

Manoel Barbosa

34

23

4. Osório

Morro alto

160

107

5. Porto Alegre

Alpes

61

41

6. Porto Alegre

Areal – Guaranha

78

52

7.Turuçu

Mutuca

21

14

8. Taquara

Paredão

54

36

9. Viamão

Cantão das Lombas

26

17

10. Cachoeira do Sul

Cambará

46

31


11. Canguçu

Passo do Lourenço

44

29

12. Canguçu

Favila

20

13

13. Canguçu

Maçambique

42

28

14. Canguçu

Estância da Figueira

10

7

15. Cristal

Serrinha do Cristal

47

31

16. Formigueiro

Passos do Brum

36

24

17. Jaguarão

Madeira

19

13

18. Pelotas

Algodão

70

47

19. São Lourenço do Sul

Vila do Torrão (Cantagalo)

23

15

20. São Lourenço do Sul

Monjolo (Serrinha)

16

11

21. Pedras Altas

Várzea dos Baianos

27

18

22. Nova Palma

Rincão do Santo Inácio

54

36

948

634

Total

A amostra foi estimada levando-se em consideração a prevalência de insegurança alimentar moderada e grave na população negra do estado Rio Grande do Sul, que segundo a PNAD 2009, foi de 9,5 %. Estabeleceu-se (no software epiInfo) um erro aceitável de 3 pontos percentuais, efeito de delineamento de 1,5, nível de confiança de 95% e poder estatístico de 80%, totalizando 576 famílias. Ao final houve um acréscimo de 10% para perdas e recusas. Dessa forma a amostra calculada foi de 634 famílias. O processo de amostragem deu-se em duas etapas: para seleção dos quilombos utilizou-se amostragem com probabilidade proporcional ao tamanho. O número de famílias em cada quilombo do Rio Grande do Sul difere entre 4 e 275, neste sentido atribui-se um peso (ou probabilidade) a cada quilombo proporcional ao número de famílias. Assim, um quilombo com 100 famílias teve 10 vezes mais chance de ser incluído do que um quilombo com 10 famílias. O cálculo do número de famílias a serem entrevistadas em cada comunidade quilombola também se deu através da amostragem com probabilidade proporcional ao tamanho. Posteriormente de posse da lista de todas as famílias residentes em cada comunidade realizava-se uma amostragem aleatória para seleção das famílias a serem entrevistadas. O levantamento de dados foi realizado entre os meses de maio e outubro de 2011 por meio de entrevistas domiciliares diretas com um membro responsável pela família, utilizando-se questionários padronizados, pré-codificados e pré-testados. O questionário, com 120 questões, abordava diversos aspectos: condições demográficas, socioeconômicas segundo critérios da Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa (ABEP) (2012), acesso ao Programa Bolsa Família, Programa de Aquisição de Alimentos e Distribuição de Cestas a Grupos Específicos, Segurança Alimentar e Nutricional, (Segall-Corrêa e cols, 2003) entre outros. As condições de segurança

205 SEGURANÇA ALIMENTAR E ACESSO AOS PROGRAMAS DE DESENVOLVIMENTO SOCIAL E COMBATE À FOME DE COMUNIDADES QUILOMBOLAS DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL.


alimentar (SA) e os diferentes graus de insegurança alimentar foram classificados 2003), validada para a realidade brasileira e aplicada da PNAD 2009. Coletou-se ainda, medidas de peso, altura e circunferência da cintura nos respondentes do estudo. O estado nutricional dos responsáveis pelos domicílios foi avaliado através do cálculo de índice de massa corporal, respeitando as diferenças de classificação por faixa etária preconizados pela OMS (WHO, 1995): Adultos (IMC < 18,5 baixo peso, entre 18,5 e 24,99 eutrofia, de 25 a 29,99 sobrepeso e >= a 30 obesidade) e idosos ( IMC < 22,0 baixo peso, entre 22,0 e 27,0 eutrofia e > 27,00 sobrepeso). Quanto a circunferência da cintura a OMS (WHO, 2000), define como risco aumentado para doenças cardiovasculares medida da cintura >= 94 cm para homens e >= 80cm para mulheres. A circunferência da cintura permite identificar a localização da gordura corporal, já que excesso de adiposidade abdominal em indivíduos adultos tem relação direta com o risco de morbimortalidade por doenças cardiovasculares. Os questionários, depois de revisados, codificados e revisados novamente, foram digitados no programa EpiData versão 3.1. Todas as análises estatísticas foram realizadas no software SPSS versão 18.0. Antes de sua execução o projeto foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, e aprovado através do protocolo 20041. Os trabalhos iniciaram-se após apresentação e anuência da pesquisa por lideranças de cada comunidade quilombola.

RESULTADO Foram entrevistadas 588 famílias, a taxa de perdas e recusas foi de aproximadamente 7%, não excedendo o valor estipulado aceitável (10%). A maioria dos en-

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avaliação de políticas públicas: REFLEXÕES acadêmicas sobre o Desenvolvimento Social e o Combate à Fome

segundo a Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (EBIA) (Segall-Corrêa e cols,

trevistados era do sexo feminino (65,1%), estado civil casada ou em união estável (57,8%) e da raça/cor negra (89,2%). O desemprego foi relatado por 13,7% dos participantes. A Tabela 1 mostra que o excesso de peso (sobrepeso + obesidade) esteve presente em aproximadamente 60% dos entrevistados. Mais da metade (55,4%) dos respondentes tinham adiposidade abdominal e um conseqüente risco elevado para doenças cardiovasculares Tabela 1 – Características demográficas, socioeconômicas e nutricionais dos responsáveis pelos domicílios situados em comunidades quilombolas, Rio Grande do Sul, 2011 Variável

N

%

Masculino

205

34,9

Feminino

383

65,1

18 – 39 anos

248

42,2

40 – 59 anos

221

37,6

> = 60 anos

119

20,2

Sexo

Idade


Estado civil Casados ou com união estável

339

57,8

Viúvos

62

29,0

Separados/ divorciados

23

3,9

Solteiros

62

10,6

Preta

283

65,1

Parda

142

24,1

Branca

56

9,5

Outra (amarela e indígena)

7

1,2

Trabalhando

289

49,4

Desempregado

80

13,7

Aposentado/pensionista

96

16,4

Dona de casa

120

20,5

Cor da pele

Trabalhando

Índice de massa corporal Baixo peso

27

4,9

Eutrófico

198

36,2

Sobrepeso

191

34,9

Obesidade

131

23,9

207

Excesso de adiposidade abdominal* Sim

302

55,4

Não

243

44,6

* Número máximo de valores ignorados = 43 (Excesso de adiposidade abdominal)

Em relação às variáveis socioeconômicas, a maioria das famílias encontravam-se na classe econômica C (48,2%), e um percentual considerável nas classes D e E (47,7%). Do total, 27,9% das famílias quilombolas foram classificadas na categoria de segurança alimentar, predominando, assim, a condição de insegurança alimentar (72,1%), com percentuais de 24,5% e 14,2% para as formas moderada e grave respectivamente (Tabela2). Tabela 2 – Características socioeconômicas e de segurança alimentar das famílias residentes em comunidades quilombolas, Rio Grande do Sul, 2011 Variável

N

%

A

0

0

B

24

4,1

C

283

48,2

D

209

35,6

E

71

12,1

Classe socioeconômica

Nível de (in) segurança alimentar *

SEGURANÇA ALIMENTAR E ACESSO AOS PROGRAMAS DE DESENVOLVIMENTO SOCIAL E COMBATE À FOME DE COMUNIDADES QUILOMBOLAS DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL.


154

27,9

Insegurança alimentar leve

184

33,4

Insegurança alimentar moderada

135

24,5

Insegurança alimentar grave

78

14,2

* Número máximo de ignorados = 37 (Nível de (in)segurança alimentar)

No que se refere às condições de moradia, verifica-se que a maioria dos entrevistados morava em casas de tijolos (61,6%), possuíam energia elétrica (96,9%) e utilizavam o poço ou nascente como abastecimento de água (44,8%). O lixo era queimado ou enterrado em 42,7% dos domicílios, e a fossa era utilizada para o destino das fezes em 70,2% das residências (Tabela3). Salienta-se que não se levou em consideração a regularidade/irregularidade da energia elétrica. Tabela 3 – Condições de moradia das famílias residentes em comunidades quilombolas. Rio Grande do Sul, 2011 Variável

N

%

Tijolo

362

61,6

Madeira

149

25,3

Mista

63

10,7

Outros (barro, taipa, material reaproveitado)

14

2,4

Sim

570

96,9

Não

18

3,1

Rede pública

181

30,9

Poço ou nascente

245

41,8

Cacimba

132

22,5

Outros

28

4,8

Tipo de casa

Energia Elétrica

Abastecimento de água

Introdução e Temas transversais

avaliação de políticas públicas: REFLEXÕES acadêmicas sobre o Desenvolvimento Social e o Combate à Fome

Segurança alimentar

Tratamento de água Sem filtração

521

88,8

Filtração

11

1,9

Fervura

46

7,8

Cloração

09

1,5

Coletado

318

54,4

Queimado/enterrado

250

42,7

Céu aberto

03

0,5

Coletado e enterrado

14

2,4

Lixo

Destino das fezes* Sistema de esgoto

117

20,0

Fossa

410

70,2

Céu aberto

57

9,8

* Número máximo de ignorados = 04 (Destino das fezes)


A Tabela 4 apresenta o acesso das famílias quilombolas aos programas de combate à fome. A maioria dos entrevistados já ouviram falar no Programa Bolsa Família (98%), porém apenas 57% conheciam as condicionalidades do programa. O percentual de famílias beneficiadas pelo Programa Bolsa Família e distribuição de cestas era de aproximadamente 59% e 62% respectivamente. A inclusão no programa de aquisição de alimentos foi referida por apenas 1,7% das famílias, sendo que a maioria (63,8%) desconhecia do totalmente o programa. Tabela 4 – Acesso das famílias residentes em comunidades quilombolas aos programas de segurança alimentar e combate à fome. Rio Grande do Sul, 2011 Variável

N

%

Sim

576

98,0

Não

12

2,0

Sim

329

57,0

Não

248

43,0

Sim

227

58,6

Não

336

41,6

Sim

363

61,9

Não

223

38,1

Sim

88

21,6

Não

319

78,4

Nem sabe o que é

368

63,8

Não

199

34,5

Sim

10

1,7

Já ouviu falar em PBF*

Conhecia as condicionalidades do PBF

Recebe PBF

Já recebeu cesta de alimentos

Recebeu cesta de alimentos nos últimos 30 dias***

Participa do PAA

* Programa Bolsa Família ** Programa de Aquisição de Alimentos *** Número máximo de valores ignorados = 181 (Recebeu cesta de alimentos nos últimos 30 dias)

A associação de (In)Segurança Alimentar com os indicadores sócio-demográficos são descritas na Tabela 5. A classe econômica foi a única variável que apresentou associação estatisticamente significativa (p-valor <0,05) com o desfecho, 63% das pessoas com insegurança alimentar grave e moderada estão nas classes econômicas de menor poder aquisitivo (D +E), assim como a maioria dos indivíduos com segurança alimentar e insegurança alimentar leve pertencem as classes econômicas B e C. Apesar da variável sexo não ter apresentado diferença significativa na análise bivariada, foi possível perceber uma tendência de maior insegurança alimentar nos domicílios chefiados por mulheres. O estado nutricional dos responsáveis pelas famílias não apresentou associação significativa com a condição de segurança/insegurança alimentar dos domicílios

209 SEGURANÇA ALIMENTAR E ACESSO AOS PROGRAMAS DE DESENVOLVIMENTO SOCIAL E COMBATE À FOME DE COMUNIDADES QUILOMBOLAS DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL.


quilombolas. O excesso de peso (sobrepeso e obesidade) e adiposidade abdomicondição de segurança/insegurança alimentar. Tabela 5 – Prevalência de (In) Segurança Alimentar segundo características demográficas, socioeconômicas e nutricionais de famílias quilombolas, Rio Grande do Sul, 2011

Variável

Total

Segurança Alimentar e Insegurança Alimentar leve

Insegurança Alimentar moderada e grave

N (%)

N (%)

Sexo

p-valor

0,061

Masculino

192

128 (37,9)

64 (30,0)

Feminino

259

210 (62,1)

149 (70,0)

Idade

0,376

18 – 39 anos

238

148 (43,8)

90 (42,3)

40 – 59 anos

210

122 (36,1)

88 (41,3)

> = 60 anos

103

68 (20,1)

35 (16,4)

Estado Civil

0,840

Casados ou com união estável

323

195 (57,7)

128 (60,1)

Viúvos

54

33 (9,8)

21 (9,9)

Separados/ divorciados

23

16 (4,7)

07 (3,3)

Solteiros

151

94 (27,8)

57 (26,8)

Trabalhando

Introdução e Temas transversais

avaliação de políticas públicas: REFLEXÕES acadêmicas sobre o Desenvolvimento Social e o Combate à Fome

nal são verificados em mais da metade dos entrevistados, independente da sua

0,116

Trabalhando

273

176 (54,2)

97 (45,8)

Desempregado

78

39 (11,6)

39 (18,4)

Aposentado/pensionista

79

51 (15,2)

28 (13,2)

Dona de casa

118

70 (20,8)

48 (22,6)

Classe Econômica

0,000

Classes B e C

283

204 (60,5)

79 (37,1)

Classes D e E

342

133 (39,5)

134 (62,9)

Índice de Massa Corporal

0,584

Baixo Peso

25

17 (5,4)

08 (4,0)

Eutrófico

182

111 (35,1)

71 (35,3)

Sobrepeso

183

116 (36,7)

67 (33,3)

Obesidade

127

72 (22,8)

55 (27,4)

Excesso de adiposidade abdominal

0,343

Sim

289

171 (54,5)

118 (58,7)

Não

226

143 (45,5)

83 (41,3)

A tabela 6 mostra que as prevalências de insegurança alimentar eram maiores (56%) naquelas famílias que recebiam os Programas Bolsa Família e Cestas de alimentos (p<0,05). Devido o baixo percentual (1,7%) de famílias que participaram do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), não se analisou por nível de insegurança alimentar.


Tabela 6 – Prevalência de (In) Segurança Alimentar segundo estado nutricional e acesso de famílias quilombolas aos programas de desenvolvimento social e combate a fome, Rio Grande do Sul, 2011

Variável

Total

Segurança Alimentar e Insegurança Alimentar leve

Insegurança Alimentar moderada e grave

N (%)

N (%)

Recebe PBF

p-valor

0,000

Sim

226

109 (33,0)

117 (56,0)

Não

313

221 (67,0)

92 (44,0)

Sim

339

220 (65,1)

119 (56,1)

Não

211

118 (34,9)

93 (43,9)

Já recebeu cesta de alimentos

0,036

Recebeu cesta de alimentos nos últimos 30 dias

0,378

Sim

81

49 (20,0)

32 (23,9)

Não

298

196 (80,0)

102 (76,1)

DISCUSSÃO Um aspecto a ser destacado nesse estudo é que a amostra pode ser considerada representativa das comunidades quilombolas do estado do Rio Grande do Sul, tendo em vista o cuidado metodológico na seleção da amostra, o alto percentual de indivíduos entrevistados e o baixo índice de perdas e recusas. Outro aspecto positivo foi à padronização dos métodos de coleta de dados, incluindo o rigoroso treinamento dos entrevistadores e o controle de qualidade durante todo o período do trabalho de campo. Ressalta-se que esta investigação é inédita no estado do Rio Grande do Sul, uma vez que ainda não havia sido realizada nenhuma pesquisa de base populacional que contemplasse a caracterização sócio-demográfica, segurança alimentar, acesso a programas de combate a fome e estado nutricional dos responsáveis pelos domicílios de famílias pertencentes a comunidades remanescentes de quilombos. Algumas limitações também precisam ser consideradas. As diferenças entre os métodos para avaliar segurança/insegurança alimentar podem ter prejudicado a comparação com outros estudos sobre o assunto. Estudos internacionais (Ramsey, 2011; Willows, 2011), não utilizaram a EBIA para avaliar segurança alimentar e sim outros instrumentos desenvolvidos especificamente para seus países. Existe também a possibilidade do viés de causalidade reversa: por se tratar de um estudo transversal não é possível estabelecer relações de causalidade entre acesso a programas de combate a fome, segurança alimentar e avaliação nutricional. Entretanto este tipo de estudo é possível para verificar associação entre as variáveis independentes e desfecho. Nosso estudo mostrou que cerca de metade (47,7%) dos entrevistados residentes em comunidades quilombolas do estado do Rio Grande do Sul pertencia a classes sociais de menores níveis socioeconômicos (classes D+E), eram do sexo feminino (65,1%) e de cor de pele preta e parda (89,2%). Resultados similares foram verificados no inquérito denominado “Chamada Nutricional Quilombola”

211 SEGURANÇA ALIMENTAR E ACESSO AOS PROGRAMAS DE DESENVOLVIMENTO SOCIAL E COMBATE À FOME DE COMUNIDADES QUILOMBOLAS DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL.


(BRASIL, 2007), que entrevistou famílias de 2941 crianças quilombolas menores vida precárias das famílias quilombolas avaliadas neste estudo, observa-se que as condições de moradia são superiores as encontradas no estudo Chamada Nutricional Quilombola em 2006, onde a cobertura de luz elétrica era de 79,73% e o esgotamento sanitário de vala ou a céu aberto era de (45,9%). O abastecimento de água em poço ou nascente foi semelhante nos dois estudos (BRASIL, 2007). Observou-se nas comunidades quilombolas do RS uma prevalência de baixo peso de 4,9% e 58,8% de so­brepeso/obesidade, o que evidencia o processo de transição nutricional vivenciado no país, independente do nível socioeconômico, como observado por Monteiro et al. (2004). Drenowsky (2009) enfatiza que a pobreza e a obesidade estão intimamente ligadas. Os resultados encontrados em nosso estudo mostram maior prevalência de excesso de peso entre adultos quilombolas do que aquelas encontradas pela POF 2008-2009, tanto para homens quanto para mulheres. Verificou-se que grande parte (70%) dos domicílios de comunidades quilombolas do estado do Rio Grande do Sul apresenta algum grau de insegurança alimentar. Essa prevalência é bem superior àquelas relatadas em trabalhos internacionais acerca de povos e comunidades tradicionais. Estudo de Ramsey (2012) e colaboradores com adultos australianos residentes em zonas urbanas desfavorecidas, constatou que aproximadamente um quarto (25%) das famílias apresentava algum grau de insegurança alimentar. No Canadá estatísticas nacionais (Willson, 2011) mostraram que cerca de 30% da população aborígene (grupos economicamente marginalizados) experimentou algum grau de insegurança alimentar. Por outro lado, estudos brasileiros (Vianna, 2008; Favaro, 2007), utilizando a EBIA tem verificado prevalências semelhantes. Em 2008, Vianna, estudando 14 municípios do estado da Paraíba constatou 52,5% de prevalência de insegurança alimentar

Introdução e Temas transversais

avaliação de políticas públicas: REFLEXÕES acadêmicas sobre o Desenvolvimento Social e o Combate à Fome

de cinco anos de idade em 22 unidades da federação. Apesar das condições de

e Favaro (2007) avaliando comunidades indígenas de Teréna-MT verificou que 75,5% das famílias apresentavam algum grau de insegurança alimentar. Chama atenção a prevalência de insegurança alimentar grave encontrada em nosso estudo: 14,2%. Gubert e colaboradores (2010) analisando dados da PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) 2004 observaram que a região com a maior ocorrência de insegurança alimentar grave foi a Região Nordeste, onde a prevalência média foi de 14,5%, contra 3,6% na Região Sul, a de menor prevalência. Comparando esses resultados com os encontrados na PNAD 2009 para população negra do Rio Grande do Sul (9,5%), observa-se que as comunidades quilombolas apresentam maior vulnerabilidade em relação a população negra em geral, que já se encontra em desvantagem comparando com a população branca. Esse achado provavelmente se justifica não só pela pobreza das comunidades quilombolas, onde cerca de metade das famílias encontram-se nas classes sociais de menor poder aquisitivo (D+E), mas também pela exposição ao racismo. Diversos autores apontam que o racismo tem consequências nocivas na vida da população e que a variável raça/cor em estudos é uma categoria importante para definir as


populações, pois as diferenças fenotípicas que de fato existem entre elas, podem acarretar uma distribuição diferencial dos direitos. Além disso, indicadores do acesso da população a bens e serviços essenciais, como moradia, saneamento e educação também estão intimamente ligados à pobreza, a fome e a desigualdade social. (Monteiro, 1995.) No presente estudo observou-se que a única variável socioeconômica e demográfica significativamente associada com insegurança alimentar foi a classe social (medida pela posse de determinados bens). Nas classes D e E (mais pobres) a prevalência de insegurança alimentar foi de 62,9%, quase o dobro daquela verificada nas classes B e C (37,1%) . Essa grande diferença observada nas prevalências de insegurança alimentar segundo nível socioeconômico sugere diferentes contextos de estratégias de sobrevivência no próprio grupo que poderiam ser melhor exploradas. Analisando resultados da PNAD 2004, Marin-Leon e colaboradores (2009) chegam a conclusões semelhantes: condições socioeconômicas mais precárias estão associadas à insegurança alimentar nos domicílios, sendo essa situação agravada naqueles chefiados por mulheres e onde residem pessoas de raça/ cor auto-referida como negra. A ausência de bens identifica, entre os pobres, a população mais vulnerável à insegurança alimentar e pode se constituir em indicador complementar, sobretudo em estudos locais, onde há escassez de recur­sos técnicos para coleta de dados e análises mais sofisticadas. Quanto a participação em programas de combate à fome constata-se que a insegurança alimentar foi maior naquelas famílias pertencentes aos programas Bolsa Família e Cesta de Alimentos. Corroborando a hipótese de que esses programas estão realmente direcionados às famílias mais necessitadas. Da mesma forma, em 2010, Lignani e colaboradores, estudando uma amostra de 5000 domicílios com representatividade nacional constataram que famílias classificadas como tendo segurança alimentar foram menos dependentes dos benefícios do Programa Bolsa Família. Ao contrário do encontrado neste estudo, o estudo de Segall-Corrêa e cols. (2008) analisando dados de 112.716 domicílios brasileiros (PNAD 2004), conclui que os resultados obtidos em seu estudo indicavam associação positiva da transferência de renda, com a segurança alimentar, independentemente do efeito de outras condições. Com base nos resultados obtidos é possível verificar que 2/3 das famílias pertencentes a comunidades quilombolas do estado do Rio Grande do Sul tem acesso aos programas de Combate à Fome “Bolsa Família” e “Distribuição de Cestas de Alimentos” e que o PAA é quase inexistente ou desconhecido pela ampla maioria das famílias. Observou-se que apenas metade (56%) das famílias com insegurança alimentar moderada ou grave já tinha recebido os programas Bolsa família ou Cesta de Alimentos e que daqueles que recebiam a grande maioria (70%) tinha insegurança alimentar. Ou seja, embora ainda pouco abrangente o maior acesso aos programas de combate à fome nas comunidades quilombolas estão direcionados ás populações mais vulneráveis.

213 SEGURANÇA ALIMENTAR E ACESSO AOS PROGRAMAS DE DESENVOLVIMENTO SOCIAL E COMBATE À FOME DE COMUNIDADES QUILOMBOLAS DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL.


CONCLUSÃO as comunidades quilombolas do RS, o que chama por ação imediata, aumentando, por exemplo, o acesso e divulgação dos programas de combate à fome nessas populações. Além disso seria importante a implementação de políticas sociais e de saúde que visam a promoção da igualdade racial, garantindo a melhoria no acesso aos bens, serviços e programas para todos os segmentos população. Importante reforçar que o racismo constitui uma carga adicional para os grupos não dominantes, e a discriminação individual e institucional causa não só impactos negativos na vida e saúde deste segmento populacional, como também violação dos direitos humanos básicos. As desigualdades raciais no Brasil configuram-se como um fenômeno complexo, constituindo-se em um enorme desafio para governos e para a sociedade em geral.

Introdução e Temas transversais

avaliação de políticas públicas: REFLEXÕES acadêmicas sobre o Desenvolvimento Social e o Combate à Fome

Este estudo identificou uma elevada prevalência de insegurança alimentar entre


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217 SEGURANÇA ALIMENTAR E ACESSO AOS PROGRAMAS DE DESENVOLVIMENTO SOCIAL E COMBATE À FOME DE COMUNIDADES QUILOMBOLAS DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL.


Flávia F. Pires (universidade Federal da Paraíba/university of Sheffield)

Introdução e temas transversaIs

avaliação de políticas públicas: ReFleXÕes acadêmicas sobRe o desenvolvimento social e o combate à Fome

do ponto de vista das cRianças: UMA AVALIAÇÃO DO PROGRAMA BOLSA Família1

1

AGRADECIMENToS DEvEM SER PRESTADoS AoS CATINGuEIRENSES, CRIANçAS E ADuLToS, QuE

GENERoSAMENTE PARTICIPARAM DA PESQuISA; À EQuIPE QuE ENFRENTou oS DESAFIoS Do CAMPo CoM vALENTIA E, Ao CNPQ/MDS, PoR ToRNAR PoSSÍvEL ESSE REvIGoRANTE ExERCÍCIo DE PESQuISA CoLETIvA.


INTRODUÇÃO Se a antropologia pauta-se desde Malinowski em captar o ponto de vista nativo2, a ideia aqui é entender o Programa Bolsa Família (PBF), seus efeitos na vida dos cidadãos, a partir do ponto de vista das crianças, esses sujeitos que constantemente são silenciados nas pesquisas, a despeito da sua crescente importância na vida social das famílias na contemporaneidade, como salienta Manuel Sarmento (2008). Fazemos com as crianças o que Suarez et al (2006) e Rego (2008) fazem com as mulheres: “a partir de[las]” - para usar uma expressão do professor Otávio Velho (NOGUEIRA & PIRES 2010, PIRES & NOGUEIRA 2011)-, tentamos compreender o funcionamento e os efeitos do PBF3. Isso quer dizer que the voices of children should not be confined to childish concerns, como afirma Allison James (2007:267), mas também que as crianças não são apenas um meio pelo qual acessamos uma realidade mais abrangente. Nesse sentido, situamo-nos entre os estudos que recentemente no Brasil vem tomando as crianças como sujeitos e interlocutores da pesquisa sem, no entanto, excluir os adultos, a partir de uma inspiração nos trabalhos de Christina Toren (1999). O PBF é um programa de transferência mensal de renda condicionada que surgiu em 2003 e foi sancionado em 2004, a partir da unificação de uma série de programas sociais. Quando da pesquisa, o direito ao benefício, que varia entre R$ 32 a R$ 306, era das famílias com renda per capita de, no máximo, R$140,00. Com menos de uma década de implantação, o PBF é responsável, junto com outros programas de transferência de renda, por 21% na queda na desigualdade no Brasil (19952004). Junto com o Benefício de Prestação Continuada foi responsável por 28% da redução do índice Gini no mesmo período. O PBF também contribuiu para a entrada massiva das classes D e E no mercado consumidor e a queda da pobreza extrema de 12% em 2003 para 4,8% em 2008 (IPEA, 2010). O custo do programa é de cerca de 0,4% do PIB nacional (R$1,4 bilhão em março 2011), ou seja, considerado baixo, tendo em vista seus impactos macroeconômicos e sociais (SOARES et al, 2006). Como afirmam Medeiros et al (2007, p. 21): “O lado positivo dos programas analisados é indiscutível. Seus impactos sobre pobreza e desigualdade são visíveis”. (PIRES 2009; MEDEIROS et al 2007; LAVINAS e BARBOSA 2000). Embora houvesse por parte da academia, no início de sua implantação, uma reação à exigência de condicionalidades que parecem ferir os direitos humanos (ZIMMERMAM 2006; SILVA 2007; DINIZ 2007); frente aos resultados positivos parece-nos que hoje o debate em torno do PBF volta-se para o seu aperfeiçoamento e as estratégias para lidar com o objetivo último do programa: a quebra do círculo intergeracional da pobreza e criação de uma cultura cidadã, que parecem ainda estar

2

Embora a ideia de captar o ponto de vista nativo seja controversa para Favret-Saada (2005),

Geertz (2002) afirma sua validade. 3

Ideia parecida ao “a partir de” de Otávio Velho pode ser encontrada em Feitosa (2010), quando

lança mão do pensamento de Gregory Bateson: “Ou ainda, no dizer de Gregory Bateson (apud STAR; RUHLEDER, 1995, p.4), “o que pode ser estudado é sempre a relação de um infinito regresso de relacionamentos, nunca uma ‘coisa’”. Em outras palavras, o que se deve estudar não são as coisas “em si”, mas as coisas “entre si”. Mais importante que as coisas “nelas mesmas”, são suas relações, suas associações.” (FEITOSA, 2010, p.13).

219 DO PONTO DE VISTA DAS CRIANÇAS: Uma avaliação do Programa Bolsa Família


distantes de serem alcançadas. Por isso, vemos crescer os estudos sobre: avaliação4; membros familiares (REGO 2008, SUÁREZ et AL 2006; PIRES 2009); a escola e os entraves para uma escolarização de qualidade (MONNERAT et AL 2007); a precária rede de assistência à saúde (SILVA 2007); o trabalho infantil, dentre outros. Este artigo tem como objetivo apresentar alguns dos resultados do projeto de pesquisa “Do Ponto De Vista Das Crianças: o acesso, a implementação e os efeitos do Programa Bolsa Família no semiárido nordestino” desenvolvido em breves seis meses durante o ano de 2011 na Universidade Federal da Paraíba (UFPB), sob coordenação da professora Flávia Ferreira Pires, com a equipe de pesquisadores composta por Patrícia Oliveira Santana dos Santos, Fernando Antonio Dornelas Belmont Neri, Edilma Nascimento Sousa, Christina Glayds Nogueira Mingarelli, Daniela Oliveira Silveira, Christiane Rocha Falcão. Aqui nos deteremos a realizar uma avaliação do PBF, levando em conta a opinião e a voz das crianças catingueirenses. No entanto, a pesquisa sobre os efeitos no PBF na região do semiárido está sendo realizada desde o ano de 2009 e, por isso, esse artigo beneficia-se de dados produzidos em outros momentos através de outros recortes de pesquisa que, por exemplo, privilegiaram a voz das mulheres, normalmente mães, através do uso de entrevistas como técnica de pesquisa (PIRES, 2009). Embora, para esse artigo restringiremos o foco para alguns efeitos não esperados do PBF observados durante a pesquisa de campo. Embora breve, a pesquisa propiciou um sem número de importantes debates, que pela profundidade ainda não puderam ser totalmente analisados. O aprofundamento de algumas das questões que serão aqui levantadas faz-se essencial e está sendo elaborado a medida em que os pesquisadores concluem seus estudos. Patrícia Oliveira está dando prosseguimento à pesquisa no Programa de Pós-Gra-

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avaliação de políticas públicas: REFLEXÕES acadêmicas sobre o Desenvolvimento Social e o Combate à Fome

o empoderamento feminino e a conseqüente reestruturação do poder e status dos

duação em Antropologia (UFPB), no curso do mestrado, dedicando-se a compreender as consequências das condicionalidades, cuja punição apenas incide sobre as famílias com crianças em idade escolar, tema o qual também foi debatido na sua monografia de fim de curso (Santos, 2011). Jéssica Silva (2011) dedicou sua monografia de fim de curso a entender a profundidade das mudanças sociais como resultado da expansão do consumo, principalmente infantil, propiciado pelo benefício. Edilma do Nascimento Souza (2011) e George Ardilles Silva Jardim (2010a) nas suas monografias de fim de curso dedicaram-se à dinâmica familiar geracional no que diz respeito a escolarização das crianças mais jovens, em detrimento das gerações anteriores. Além desses, Antonio Silva (2011), Silva e Pires (2011), Benjamin 2010, Pires et al (2011), Fernando Neri (2011), Silva Jardim (2010b) são apenas alguns estudos realizados pelo nosso grupo de pesquisa CRIAS (Criança: Sociedade e Cultura) e dialogam intensamente com a pesquisa aqui apresentada. Nesse sentido, o texto aqui apresentado tem como objetivo cental realizar uma avaliação do PBF na cidade de Catingueira, Paraíba, a partir das crianças. Para isso, lançaremos mão de alguns dados empíricos considerados relevantes pelos

4

Em 2009, o CNPq junto com o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome/MDS,

lançou edital específico para pesquisas de avaliação de políticas públicas no valor total de R$ 1,5 milhão, pelo qual essa pesquisa foi beneficiada.


próprios nativos quando o assunto é o programa. Em primeiro lugar, dedicaremos atenção à expansão do consumo como efeito do programa; em segundo lugar, analisaremos o papel da condicionalidade escolar na manutenção do benefício. Para concluir, discutiremos as consequências do aumento do consumo e da imposição da frequência escolar para a população estudada.

MÉTODO Usamos como técnica de pesquisa a observação participante, na medida em que cada pesquisador ficou “hospedado” na casa de uma família beneficiada, ali realizando suas refeições, as pernoites e, mesmo com as limitações impostas pelo tempo rápido da pesquisa (5 dias), vivenciando o cotidiano familiar. Além disso, a equipe realizou “Oficinas de Pesquisa” que funcionaram por dois dias, em dois turnos e aconteceram em uma das escolas da cidade, em duas salas de aula adequadamente preparadas, durante as férias escolares. As Oficinas de Pesquisa consistiram em 6 grupos focais de aproximadamente 1 hora e 30 minutos, com crianças de 06 a 08 anos (2 grupos), 09 a 10 anos (2 grupos), e 11 a 12 anos (2 grupos), e desenhos e redações temáticas. Foi solicitado às crianças que desenhassem ou escrevessem sobre o Programa Bolsa Família e uma vez terminada a atividade, as crianças apresentaram suas obras para os colegas e os pesquisadores5. As atividades nas “Oficinas de Pesquisa” eram estruturadas da seguinte forma: boas vindas; solicitação do consentimento das crianças em participar da pesquisa, pedido de autorização para uso dos desenhos, redações e depoimentos; apresentação de cada participante através de uma brincadeira; rodada de perguntas (grupo focal propriamente dito); pausa para lanche; produção de desenhos e redações; socialização dos desenhos e redações; e finalmente a despedida com uma brincadeira. As perguntas versavam sobre o entendimento e avaliação do PBF, acesso ou não a bens de consumo e serviços infantis e familiares, empoderamento feminino e infantil, percepções de classe social, trabalho e escola. Vários acontecimentos sensibilizariam a equipe, como quando Júlio César, de 07 anos de idade, que ao invés de devorar o seu sanduíche, como as outras crianças faziam, preferiu guardá-lo para levar para sua avó. As precárias condições de vida das famílias “hospedeiras”, que em alguns casos não dispunham de água encanada e saneamento básico, levando a pesquisadora a apreciar a água que sai da torneira na pia da sua cozinha não mais como regra, mas como uma excepcionalidade. O envolvimento afetivo criado entre pesquisadores e as crianças das casas onde moraram, especialmente em uma casa chefiada pelo pai, cuja mãe estava

5

Recorra a Pires (20011a: 31-62) para uma discussão sobre o uso da técnica do desenho e da

redação, sempre aliado a uma conversação sobre os mesmos com seus autores, de forma que o desenho sirva como mote para o diálogo entre o pesquisador e as crianças e as crianças entre si. É preciso esclarecer que as redações das crianças foram editadas e corrigidas a fim de facilitar a compreensão do leitor.

221 DO PONTO DE VISTA DAS CRIANÇAS: Uma avaliação do Programa Bolsa Família


ausente. As negociações entre pesquisadores e nativos foram constantes e objeto tamanha a fecundidade desses debates, no entanto, apresento apenas dois rápidos episódios. Alguns catingueirenses ficaram receosos com a nossa presença, associando-nos aos “fiscais de governo” que vinham destituí-los de seu direito ao benefício. Esse medo nos fala da precariedade histórica da garantia dos direitos sociais, que são entendidos como se pudessem, ao sabor de qualquer evento, serem revogados. Outro evento diz respeito a ajuda de custo que os pesquisadores deram às famílias, como forma de recompensá-los pela gentileza em nos receber. No entanto, o dinheiro foi rapidamente isento de seu teor mercantilista na medida em que foi usado para comprar “gentilezas” para o próprio pesquisador, como bolo, refrigerante, presentes, etc., num estonteamente exemplo do segundo movimento exigido pela dádiva, segundo Marcel Mauss (1974) . Catingueira, o município escolhido para a realização da pesquisa, é uma cidade pequena, com 4.812 habitantes segundo o CENSO 2010, IDHM de 0,56 segundo PNUD 2000, localizada no semiárido do estado da Paraíba, no Alto-Sertão; cuja população, com raízes camponesas, divide-se entre a zona urbana e a zona rural, chamada de “sítios”. Um contingente populacional estimado de 2.992 pessoas, ou seja, 62% da população6 é beneficiário do Programa (foram beneficiadas 813 famílias no mês de setembro de 2011), junte-se a isso a baixa monetização da região, e temos a constatação de que os efeitos do PBF podem ser ali mais facilmente observados, em comparação às cidades de médio e grande porte, aspecto também ressaltado pelo Sumário Executivo da Avaliação de Impacto do PBF (CEDEPLAR/UFMG e SAGI/MDS, 2007). Do total de 1.190 famílias cadastradas, 1.151 contam com renda per capita mensal de até 1/2 salário mínimo, o que as caracteriza como extremamente pobres. Do ponto de vista da economia local, as famílias

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avaliação de políticas públicas: REFLEXÕES acadêmicas sobre o Desenvolvimento Social e o Combate à Fome

de intensas discussões no grupo de pesquisa; e poderiam ser objeto de um artigo,

sobrevivem através da agricultura de subsistência, pequenos comércios, empregos na prefeitura e benefícios, como o PBF e as aposentadorias. Imagem 1: Mapa de Catingueira.

6

Calculado a partir da Média de Pessoas por Domicílio (Censo IBGE 2010) (3,68), do número de

habitantes e de famílias beneficiadas.


RESULTADOS E DISCUSSÃO Concentramos nosso foco na questão do consumo e da escola, na medida em que são temas relevantes do ponto de vista das crianças quando o assunto em pauta é o PBF. Se de um lado é o Programa que garante o acesso a bens de consumo, de outro, é a escola que garante a sua continuidade. O acesso ao dinheiro, representando pelo cartão do benefício, a ida ao banco ou a casa lotérica e o próprio dinheiro (moedas e notas) são constantes dos desenhos das crianças, a exemplo de: Imagem 2: Indo retirar o dinheiro na Caixa, o cartão dentro da bolsa da mãe, de Estefania, 10 anos

223

Imagem 3: Eu indo para lotérica tirar o dinheiro, de Denilson, 9 anos de idade

DO PONTO DE VISTA DAS CRIANÇAS: Uma avaliação do Programa Bolsa Família


Embora o dinheiro seja endereçado pelo governo às mães, foi observado que elas lhes a seguir, mas, também transferem diretamente parte do dinheiro às crianças. Não é incomum que a criança tenha a senha de acesso ao recurso e esteja habilitada pela mãe a retirá-lo, como mostra a Imagem 2, na qual lê-se: “Eu desenhei eu indo para lotérica tirar o dinheiro”. Quanto aos valores, as mães geralmente repassam de R$0,25 a R$2,00/R$5,00 para as crianças pequenas e até R$15,00/ R$20,00 para os adolescentes. Isto funciona como incentivo à escolarização e é uma forma de fazer justiça para com aquela criança que vem se esforçando nos estudos. As crianças, por sua vez, entendem que esse dinheiro pertence à mãe ou à família, embora reivindiquem parte dele, como escreve Silvana (12 anos) na sua redação:

E aí, quem deveria receber o Bolsa Família, a mãe ou as crianças? No caso a mãe quem deve receber, mas também tem que dá um dinheirinho aos filhos. De maneira sintética poderíamos afirmar que, como as mães de família, as crianças também priorizam o consumo de alimentos (Pires 2010a, 2010b; Benjamin 2010; Silva, J. 2011). Há dois conceitos nativos que ajudaram-nos a entender os gastos com as e das crianças: os brebotos (brebotes) e burigangas, ou seja, comidas de criança. Os brebotos seriam: bala, pelota ou pirulito, chocolate, chiclete, etc; as burigangas seriam pastel, sanduíche, coxinha, salgadinho e pipoca industrializados, refrigerante, lanches no colégio ou na rua etc. Os adolescentes acrescentam aos brebotos e burigangas, compras ligadas ao vestuário, artigos de higiene e beleza e gastos com diversão (internet). Quando perguntado sobre o destino do dinheiro do PBF que a mãe lhe dá, Sebastião, (11 anos) confirma:

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priorizam as crianças no momento das compras, como veremos com maiores deta-

Sebastião: Eu compro o que eu quero. Pesquisadora Flávia: Você compra o que? Sebastião: Besteiras que criança gosta. Pesquisadora Flávia: Tipo o quê? Sebastião: Pipoca, balinha... É importante lembrar, todavia, que no caso de famílias extremamente pobres, para as quais o benefício é a única fonte de renda, seu emprego se dá quase que exclusivamente na alimentação familiar. De fato, Duarte, Sampaio & Sampaio (2009) estimaram que 88% das transferências foram utilizadas por famílias rurais na compra de alimentos7. Correa (2008) constata que houve aumento do consumo de todos os gêneros alimentícios como consequência do PBF. Como deixa evidente a redação de Francisco (11 anos):

Este cartão serve para tirar o dinheiro do Bolsa Família para a gente comprar o nosso pão de cada dia [...]. Chama a atenção o fato de que é esse dinheiro que garante a alimentação familiar, 7

Os dados são relativos à pesquisa de campo realizada pela Universidade Federal de Pernambuco

em 2005, com 838 famílias de agricultores familiares de 32 municípios dos estados de Pernambuco, Ceará e Sergipe (DUARTE, SAMPAIO & SAMPAIO, 2009).


a compra dos alimentos básicos, chamados de “o grosso”, no caso das famílias extremamente pobres; enfatizando sua importância para a garantia da segurança alimentar dos beneficiados. Sem dúvida, Paloma (11 anos) está certa quando escreve que: O Programa Bolsa Família serve para aqueles que não têm o que comer. No grupo focal, Nildo (11 anos), apregoa:

Pesquisadora Flávia: E o que mudou na sua vida depois do Bolsa Família? Nildo: Hoje ficou melhor. Pesquisadora Flávia: Ficou melhor foi? Por que? Nildo: Por que dá pra comprar as coisas de comer. Pesquisadora Flávia: Dê um exemplo do que vocês compram que não compravam antes? Nildo: Um bocado de coisa. Pesquisadora Flávia: Bolacha recheada? Nildo: Não. Comida. Pesquisadora Flávia: Que tipo de comida? Nildo: Arroz, feijão, macarrão, carne. Segundo Correia (2008), quanto mais dependente do benefício a família é, mais significativo é o aumento do consumo de cereais, açucares, feijões e carnes, nesta ordem, enfatizando a necessidade de ações de educação sobre segurança alimentar para garantir o consumo de alimentos saudáveis. O que, segundo nossa experiência, mostra-se um tema complexo, pelas seguintes razões, discutidas alhures: “Em se tratando de comunidades que viviam abaixo da linha da pobreza, em que as mães conviviam com o desgosto de não ter o que dar de comer aos filhos, o PBF contribui enormemente para o sentimento de dever cumprido materno, já que agora podem, além de garantir a subsistência, ceder aos prazeres de consumo infantis. Além disso, é muito difícil que uma mãe, que tenha o dinheiro, negue um pedido alimentar de seu filho tendo em vista a longa história de privações alimentares, sobretudo, quando ela era criança” (PIRES 2010a:8). Ao lado disso, pesam também os primeiros casos constatados em Catingueira de obesidade infantil, mas, que são geralmente vistos, pelas famílias, segundo o entendimento de que ser gordo é bonito e saudável, como é comum da região sertaneja. Em se tratando de famílias pobres, ou seja, que contam com outra fonte de renda além do PBF, o dinheiro é empregado de formas variadíssimas. No que diz respeito à alimentação, enquanto as famílias extremamente pobres compram o “grosso”, as famílias pobres podem, com o benefício, diversificar sua dieta, comprando mais carne, ovos, verduras, legumes, frutas. Na sua redação, Jordânia (9 anos), exemplifica:

Todo mundo precisa do Bolsa Família para se alimentar bem, senão nossa mãe não compra frutas e legumes e muitas coisas boas e legais. Além disso, o dinheiro possibilita o pagamento de contas mensais (água, aluguel, eletricidade); de despesas com a farmácia; do parcelamento de bens, como eletrodo-

225 DO PONTO DE VISTA DAS CRIANÇAS: Uma avaliação do Programa Bolsa Família


mésticos e motos8; investimentos no incremento da renda familiar, como a compra oferta na igreja católica. Por fim, observamos que algumas famílias poupam parte do recurso, com fins ao planejamento da compra de um bem de valor elevado, como um terreno ou o material de construção para a casa própria, ou um bem ainda indefinido9. Às vezes, as crianças e os adolescentes não gastam o dinheiro no decorrer de alguns dias ou meses, poupando-o para comprar algum bem de maior valor, como uma peça de vestuário que a mãe não queira lhe oferecer, uma bicicleta, um celular, etc. Existe em algumas casas o hábito de utilizar o “porquinho” como forma de poupança.10 Vale destacar, como faz Rego (2008), que a constância do recebimento, o que possibilita o planejamento familiar, é um aspecto muito ressaltado pelas famílias beneficiadas e, segundo Hanlon et al (2010), essencial para que as transferências de renda sejam de fato políticas de desenvolvimento e não apenas assistencialistas. Na sua redação, Emanuela (11 anos) discorre sobre esses empregos variados do benefício:

O Programa Bolsa Família é muito importante primeiramente porque ajuda nas despesas da casa, a comprar material escolar, roupas, calçados, merenda escolar, comprar pipoca, balas no dia-a-dia. Ajuda a cuidar dos pais e das crianças, ajuda a pagar água, luz, supermercado, reforço escolar e etc... Se o benefício é da família, por que as crianças são priorizadas? É uma pergunta importante a ser respondida. Em que pese a crescente importância das crianças na vida familiar, como já destacado, a população local parece lançar mão da historicidade das políticas sociais a fim de dotar ao benefício seu destino. Embora os gastos com o benefício do PBF não sejam tutelados pelo governo - o que re-

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de gêneros para serem revendidos e até a doação do dízimo da igreja evangélica e a

presenta, segundo Lavinas & Barbosa (2000), um avanço em relação aos outros programas sociais no Brasil, como o Vale-Gás, o Fome-Zero etc. -, o PBF parece ter sido assimilado a partir da prioridade às crianças, parcialmente explicado pela sua semelhança com o Programa Bolsa Escola (PBE). Parece-nos então que, do ponto de vista nativo, o PBF é entendido como uma continuidade do seu antecessor, o PBE, e nesse sentido, é importante lembrar que o PBE constituía-se em um recurso destinado exclusivamente às crianças. Além disso, o PBF utiliza-se da condicionalidade escolar como forma de garantia do benefício, o que acaba por enfatizar o

8

Que além de meio de transporte familiar muito valorizado na região, são usadas com meios de

geração de renda, através, por exemplo, do escoamento de produção agrícola, vendas de porta a porta, dentre outros. 9

Mas que não se engane o leitor com a ilusão de que o benefício é maior que as necessidades das

famílias; as poucas famílias que poupam chamam a atenção pela planificação otimizada das suas despesas. Aliás, as crianças avaliaram positivamente o PBF, mas sugeriram o aumento dos valores recebidos, como forma de aperfeiçoamento da política, assunto ao qual nos deteremos em momento oportuno. 10

Geralmente, é na festa do padroeiro da cidade que a criança quebra o “porquinho” para gastar

o dinheiro com diversões e alimentos que só estão disponíveis na cidade neste período, como algodão doce e o parque de diversões.


papel das crianças e dos adolescentes no recebimento do dinheiro11. É sobre isso que discorremos agora. Associada a expansão das possibilidades de consumo, o PBF traz como prerrogativa fundamental a escola, como primeiro compromisso das crianças. Em consonância com os ideais modernos (ARIÈS 1981), para o PBF lugar de criança é na escola. Isso se dá através da condicionalidade escolar, que obriga as crianças de 6 a 15 anos de idade a uma freqüência escolar mínima de 85% da carga horária e aos adolescentes de 16 e 17 anos de idade a uma freqüência escolar mínima de 75% da carga horária. Embora a escola já estivesse presente no município para a geração das mães, a valorização dos estudos por parte da família, principalmente das meninas, não era largamente observada. Somava-se, para a geração das avós, todavia, a escassez de escolas no município o que representava um duplo impedimento à escolarização: escassez de escolas e falta de valorização dos estudos por parte da família. Para as crianças dos sítios, principalmente os grandes deslocamentos necessários para se chegar à escola mais próxima eram suficientes para inviabilizar o estudo formal. A falta de incentivo das famílias foi mais observada no caso das mulheres, que ouviam de seus pais que mulher não precisava aprender a ler e escrever, alardeando os perigos morais da atividade, já que com essa habilidade elas podiam “escrever cartas para os namorados”. Embora mesmo no caso dos homens, poucas foram as famílias entrevistadas em que os pais incentivavam a escolarização. Hoje o acesso à escolarização é entendido como completamente diferente dos tempos das avós/avôs e das mães/pais, ressaltando-se a facilidade de acesso à escola e à escolarização e os avanços alcançados. Uma mãe (40 anos) de dois adolescentes, quando entrevistada, nos afirmou que sempre aconselha seus filhos a estudarem, dizendo-lhes:

[...] estudem! Porque hoje é muito fácil, o governo até paga para vocês estudarem. Do ponto de vista do MDS, espera-se que a obrigatoriedade da freqüência escolar como forma de garantir o recebimento do benefício seja capaz de motivar as famílias a mandarem suas crianças para a escola, mesmo no caso daquelas famílias que não valorizam os estudos, evitando que as crianças sejam assimiladas precocemente e precariamente ao mercado de trabalho. Com olhos no futuro, espera-se que uma vez na escola, às crianças seja garantida uma melhor empregabilidade

11

Vale a pena pensar também sobre a mudança de status dos membros familiares como um

processo mais abrangente, em que parece pesar uma crescente importância dadas às crianças em detrimento da prioridade masculina, que era endereçada ao marido/ pai. Isso é observável nas refeições familiares, em que outrora o marido era o primeiro a ser servido pela esposa, o que parece estar se invertendo nos dias de hoje, em função da priorização das crianças.

227 DO PONTO DE VISTA DAS CRIANÇAS: Uma avaliação do Programa Bolsa Família


quando na idade adulta; assim replicando a ideia de que lugar de criança é na esque vem afetando várias gerações de famílias pobres, que pode ser pensada a partir da formulação: Imagem 4 – Ciclo Intergeracional da Pobreza

(elaboração da autora)

As famílias priorizam o consumo infantil e realizam o repasse financeiro direto para a criança na medida em que entendem que a condicionalidade escolar é a

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cola para as próximas gerações, e rompendo, por fim, o círculo vicioso da pobreza

que, de fato, conta para o recebimento do benefício, enquanto as condicionalidades ligadas à saúde são mais entendidas como direito, na medida em que não resultam em punição (suspensões ou cortes). O controle da freqüência escolar é bastante rígido e, de fato, leva à suspensão e ao corte do benefício, ao passo que no município ninguém tem conhecimento de benefícios suspensos em função do não cumprimento das condicionalidades da saúde. Entretanto, crianças e adultos conhecem pessoas que tiveram seu benefício suspenso ou cortado em função do não comparecimento ao colégio ou por erro no envio dos dados municipais escolares (PIRES 2011b). Na cidade pesquisada, a relação do PBF com a escola é tão evidente que uma criança (Demerson, 10 anos) chegou a dizer que o dinheiro do PBF passava pela professora: o governo tira o dinheiro do banco, o banco manda para professora. Uma menina de 10 anos de idade, Fabiola, quando solicitada que desenhasse sobre o PBF desenhou de fato a escola do Bolsa Família, como podemos apreciar:


Imagem 5: Escola do Bolsa Família, de Fabiola, 10 anos

Uma vez que associam o benefício à escola, quando perguntadas de quem é o benefício, as crianças não hesitam em requerê-lo. Nildo e Paloma, ambos com 11 anos de idade, concordam quando foram perguntados De quem é o benefício?:

Nildo: Eu digo que é a criança que recebe. Pesquisadora Patrícia: Por quê? Nildo: Porque ela estuda. Paloma: Se é ela que estuda aí tem que receber. Nildo: É porque ela tem que receber se é ela que está estudando. Para isso, as crianças lançam mão da linguagem dos direitos, porque entendem que é o estudo que garante o benefício. Em foco, Lucas (11 anos) e Silvana (12 anos):

Lucas: É importante o Bolsa Família. Pesquisadora Patrícia: Porque tu acha que é importante? Lucas: Porque eles devem dá, por que nós estudamos. Silvana: Nós estudamos e temos o direito de receber. Pesquisadora Flávia: Então, toda criança que estuda tem o direito de receber? Silvana: Tem. Um dos problemas dos Programas de Transferência Condicionada de Renda (PTCR), como o PBF, é a necessidade de comprovação da pobreza familiar, o que segundo Suplicy (2007), leva a estigmatização do pobre. A ideia de uma renda básica da cidadania, como ocorre no Alaska, USA em que todos os cidadãos, independente

229 DO PONTO DE VISTA DAS CRIANÇAS: Uma avaliação do Programa Bolsa Família


da renda comprovada, recebem uma porcentagem do PIB, tem como fim prevenir ocorre. Já que, segundo elas, o recebimento do PBF está condicionado à freqüência escolar e não à renda da família. Para elas, não importa se a família é rica ou pobre12, desde que tenha crianças na escola, o recebimento do benefício deveria ser garantido. De forma que, para as crianças, o programa não estigmatiza o pobre. Veja o extrato do grupo focal em que falam Lucas (11 anos) e Nildo (11 anos):

Pesquisadora Patrícia: E tem alguém rico aqui em Catingueira que recebe o Bolsa Família? Lucas: Tem. Pesquisadora Patrícia: Tem? Lucas: Eu acho que tem. Pesquisadora Patrícia: Porque tu acha que tem? Lucas: Eu acho que tem. Porque as que filhas dele13 estudam, aí tem que receber também. Nildo: Agora não receba14? Se é a frequência escolar que garante o benefício, logo, entende-se que as famílias sem criança em idade escolar não deveriam receber. Nathanaelly (10 anos) escreve:

[...] Para as mães poderem receber o Bolsa Família todas as mães devem ter crianças, se não tiverem crianças não podem receber. Isso leva-nos a curiosa constatação de que a punição prevista no programa incide apenas sobre as famílias com crianças em idade escolar. Em outras palavras, as famílias sem crianças em idade escolar não estão sujeitas à suspensão ou corte do

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esse estigma. Todavia, em Catingueira, para as crianças, essa estigmatização não

benefício, uma vez que não se submetem à condicionalidade escolar. Esta consideração atiça o debate em torno da legitimidade do caráter punitivo do direito à escola, agora de um outro ponto de vista – já que a punição é prerrogativa apenas de um tipo de família. Aqui temos uma oportunidade para pensar a legitimidade das condicionalidades e o debate em torno dos direitos humanos e de cidadania que elas suscitam (ZIMMERMAM 2006; SILVA 2007; DINIZ 2007). As condicionalidades são, de fato, sujeitas à controversas, afinal, o acesso à escola é um direito. Além disso, concordo com Hanlon et al (2010) quando afirmam que os pobres querem ver seus filhos escolarizados, mas lhes faltam dinheiro para garantir esse sonho: transporte escolar, uniforme, calçados, material escolar resultam em despesas. Os autores afirmam que não há nenhuma evidência de que as condicionalidades de fato funcionem (:131). Segundo eles, é acesso ao dinheiro que permite que as famílias enviem seus filhos para a escola, tornando a condicionalidade

12

Embora não seja o tema do artigo, foram interessantíssimas as conceitualizações das crianças

sobre riqueza e pobreza, os pobres sendo caracterizados como aqueles que não tem onde tomar banho, têm que implorar por comida ou pegar no lixo, não têm casa (moram na rua) ou família. Os ricos, são os comerciantes na sua maioria, que podem consumir tudo o que quiserem. 13

Referindo-se ao dono do maior estabelecimento comercial da cidade.

14

Interjeição que, aproximadamente, quer dizer: “Como não receberia?”


desnecessária. Todavia, sendo uma condicionalidade que incide apenas em um tipo de família, aquelas com crianças em idade escolar, o debate em torno desse aspecto do Programa merece um esforço de pesquisa ainda mais detalhado.

CONCLUSÕES E LIMITAÇÕES DA ANÁLISE Nesse artigo realizamos uma breve apresentação de alguns dos resultados da pesquisa “Do Ponto De Vista Das Crianças: o acesso, a implementação e os efeitos do Programa Bolsa Família no semiárido nordestino”, focando o ponto de vista das crianças, embora a presença dos adultos se faz evidente em inúmeros momentos através da fala direta ou de considerações gerais; e enfatizando alguns aspectos do consumo e da frequência escolar como dois temas importantes no que diz respeito ao PBF. Nesse sentido, o artigo trata sobretudo dos efeitos do PBF. Sabendo que o recebimento do PBF é direito das crianças e sabedora de que são elas quem “trabalham15”, ou seja, estudam pela manutenção do benefício, as crianças estão em condições de negociar, principalmente com a mãe, detentora do direito ao recebimento do benefício, suas necessidades e seus pequenos luxos, sob a ameaça de não ir à escola. Nestes casos em que a criança não queira ir ao colégio ocorre uma negociação entre mãe e filho(a). Os termos da negociação podem ser dinheiro, um pedaço maior de carne, a liberação das atividades domésticas a que a criança é responsável, a escolha do prato a ser preparado, um ovo no cuscuz, uma peça de vestuário, liberdade para ir à lan-house ou visitar amigos, dentre outros. Se esses mimos não são suficientes, a mãe, por sua vez, ressalta a necessidade da freqüência escolar visando o recebimento do benefício, colocando a responsabilidade do sustento familiar e da própria criança, nas mãos do aluno. A ameaça, no sentido de “se você não for à escola vai faltar o alimento para todos, especialmente para você”, parece ser o suficiente para convencer a criança da necessidade de frequentar o colégio. Observamos, então, uma responsabilização da criança pela manutenção do benefício. Responsabilidade a qual ela tem conhecimento e abraça.16 Como foi dito, mesmo não sendo a elas claramente direcionado, as crianças requerem parte do benefício da família, em um claro exercício político. Os membros familiares, notadamente a mãe, reconhecem a legitimidade nesse pleito, uma vez que estudar é entendido como trabalho pesado, cansativo. Na verdade, parece-nos

15

No contexto estudado, a escola pode ter apenas tomado o lugar do trabalho, na medida em

que a atitude da criança frente a sua responsabilidade com a freqüência escolar é da mesma natureza da sua responsabilidade com o trabalho propriamente dito. Já que mesmo completamente desapontadas e desinteressadas pelos estudos, as crianças continuam frequentando o colégio. Tememos que a escola seja entendida pelas crianças como uma nova forma de trabalho e, o que é pior, trabalho forçado. Mas essa é mais uma hipótese de pesquisa a qual planejamos nos dedicar (PIRES, 2011b). 16

Ao mesmo tempo, a negociação em torno da ida à escola também revela padrões de dependência

da geração mais velha em relação às gerações mais novas, o que parece ser largamente negligenciado nos estudos socio-antropológicos que tendem a enfatizar justamente o contrário, mas foi ressaltado por alguns autores como Fortes (1938) e Schildkrout (1978).

231 DO PONTO DE VISTA DAS CRIANÇAS: Uma avaliação do Programa Bolsa Família


que é justamente por que a escola é entendida como trabalho pelos membros ser reconhecidos direitos individuais à riqueza familiar porque entende-se que as crianças são essenciais para a sua produção; reverberando as ideias do economista norueguês Jens Qvrotrup (2008) quando afirma que o Estado e a sociedade devem reconhecer que estudar é a forma de participação das crianças na divisão social do trabalho nas economias nacionais das sociedades contemporâneas e, portanto, elas têm direito legítimo a gozar da riqueza da nação, por exemplo, exigindo boas escolas, adaptação das cidades às suas necessidades, que sejam ouvidas sobre políticas públicas que as afetam diretamente e naquelas que dizem respeito à sociedade de modo geral, etc. Nesse sentido, esse exercício político das crianças refere-se, no curto prazo, ao atendimento de demandas imediatas, advindas da possibilidade de aquisição de novos bens de consumo pelas famílias e pelas crianças mesmas. Entretanto, não temos condições ainda de vislumbrar a quebra no círculo vicioso da pobreza em função de um reposicionamento do lugar da escola para as crianças e os adultos. Embora seja verdadeiro que as crianças estão na escola, o que as estatísticas mostram, isso não garante que elas estejam sendo educadas ou que conseguirão realmente quebrar o círculo vicioso da pobreza. Na verdade, tememos pelo estado precário das escolas e da educação públicas.

Muitos são os campos de investigação abertos por essa pesquisa, apontamos alguns ao longo deste texto, como a necessidade de aprofundar o debate em torno da educação como dever e do acesso à saúde como direito; as consequências da punição das condicionalidades incidir apenas sobre famílias com crianças em idade escolar; a escola como nova forma de trabalho forçado, dentre outros. Ademais, esperamos ter mostrado com esse texto a importância de incluir as crianças nas

Introdução e Temas transversais

avaliação de políticas públicas: REFLEXÕES acadêmicas sobre o Desenvolvimento Social e o Combate à Fome

familiares que, por isso, está sujeito à recompensa. Dessa forma, a elas parecem

nossas pesquisas, como sujeitos e interlocutores legítimos. O conhecimento que as crianças têm do PBF é acurado e crítico. Se elas são afetadas pelas políticas sociais, nada mais coerente que ouvi-las.


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233 DO PONTO DE VISTA DAS CRIANÇAS: Uma avaliação do Programa Bolsa Família


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avaliação de políticas públicas: REFLEXÕES acadêmicas sobre o Desenvolvimento Social e o Combate à Fome

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235 DO PONTO DE VISTA DAS CRIANÇAS: Uma avaliação do Programa Bolsa Família


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SIGLAS PBE – Programa Bolsa Escola PBF – Programa Bolsa Família PTCR – Programas de Transferência Condicionada de Renda MDS- Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome UFPB – Universidade Federal da Paraíba

Introdução e Temas transversais

avaliação de políticas públicas: REFLEXÕES acadêmicas sobre o Desenvolvimento Social e o Combate à Fome

RELATÓRIOS DE PESQUISA


237 DO PONTO DE VISTA DAS CRIANÇAS: Uma avaliação do Programa Bolsa Família


Rosângela Célia Faustino - universidade Estadual de Maringá (uEM) Maria Simone Jacomini Novak - universidade Estadual de Maringá (uEM) keros Gustavo Mileski - uEM - universidade Estdual de Maringá (uEM) Paulo Caldas Ribeiro Ramon - universidade Estadual de Maringá (uEM) vanessa de Souza Lança - universidade Estadual de Maringá (uEM) Mariana Mendonça Bernardino - universidade Estadual de Maringá (uEM)

Introdução e temas transversaIs

avaliação de políticas públicas: ReFleXÕes acadêmicas sobRe o desenvolvimento social e o combate à Fome

O PROGRAMA BOLSA FAMÍLIA E O ACESSO à edUcação escolaR em comUnidades INDÍGENAS KAINGANG E GUARANI NO PARANÁ


INTRODUÇÃO O Programa Interdisciplinar de Estudos de Populações - LAEE / Laboratório de Arqueologia, Etnologia e Etno-História, desde 1997, desenvolve projetos junto aos povos indígenas no Paraná. Com característica interdisciplinar, abrange pesquisadores de diferentes áreas do conhecimento por meio de pesquisas qualitativo-quantitavivas, bibliográfico-documentais e de campo, bem como projetos de extensão, sociais e pedagógicos em diferentes Terras Indígenas (Tis) no Paraná. A população indígena no Estado está estimada em mais de 25.000 (vinte e cinco mil pessoas) sendo que destas, cerca de 15.000 (quinze mil, vive em Terras Indígenas e os demais nas cidades (BRASIL, 2011; ISA, 2008). O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), no documento Tendências Demográficas: uma análise dos indígenas, informa serem 32.000 os indígenas do estado. Tal divergência possivelmente seja oriunda de categorizações, pois a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) trabalha com dados dos indígenas residentes nas TIs, enquanto o ISA e o IBGE contabilizam indígenas autodeclarados, incluindo os que não residem permanentemente nas TIs. Esta população abrange três etnias diferentes, os Guarani, os Kaingang e os Xetá, vivendo em 30 TIs, demarcadas, rtomadas ou em processo de demarcação. A Funai se mantém como órgão do Governo Federal responsável pelas políticas públicas indigenistas principalmente voltadas à questão de terras. A partir da implementação da Lei n.º 8.080, de 1990 (BRASIL, 1990) a Fundação Nacional da Saúde (FUNASA) foi responsabilizada pela saúde indígena até meados de 2011, quando reformulações estruturais resultaram na criação do Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI), também responsável pela saúde, mas implementada pelo Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina (SPDM)1. A pesquisa foi desenvolvida em duas TIs Kaingang do Vale do rio Ivaí e duas TIs Guarani Nhandewa, no Norte do Paraná. A população total abrangida está estimada em cerca de 2.427 (duas mil quatrocentas e vinte e sete) pessoas. Os indígenas habitantes da TI Ivaí, no município de Manoel Ribas - PR, e TI Faxinal, no município de Cândido de Abreu - PR, são da etnia Kaingang, cujo somatório da população é de cerca de 2.039 (duas mil e trinta e nove) pessoas, todos falantes da língua indígena kaingang, sendo que jovens e adultos têm maior domínio da língua portuguesa do que crianças e idosos. O uso da norma culta da língua portuguesa, oral e escrita é praticamente inexistente, inclusive entre os que frequentam a escola. O povo Kaingang pertence ao tronco linguístico Jê2, sendo referido também como Jê do Sul, e é o mais numeroso povo indígena do Brasil Meridional, incluindo-se entre as cinco etnias com maior contingente populacional no Brasil na atualidade e sendo também um dos maiores grupos falantes da língua indígena no Brasil. 1

A Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina (SPDM), entidade privada sem fins

lucrativos, executa ações complementares, gozando da condição de Certificado de Entidade Beneficente de Assistência Social (CEBAS), vencedora de chamamento público, EDITAL Nº 01/2011, proposto pelo Ministério Público Federal em face de Ministério da Saúde – Secretaria Especial de Saúde Indígena. Disponível em <http://ccr6.pgr.mpf.gov.br/atuacao-do-mpf/acao-civil-publiva/docs_classificacao_tematica/acao-civilpublica-pr-df-de-05-de-outubro-de-2011> Acesso: 05 de Dezembro de 2012. 2

Conforme quadro de Ayron Rodrigues fazem parte do grupo Macro-Jê os grupos Xavante,

Kayapó, Timbira, Panará Xakriabá, Xerente, Kaingang, Panará, Karajá, Kariri, Maxacali .

239 O PROGRAMA BOLSA FAMÍLIA E O ACESSO À EDUCAÇÃO ESCOLAR EM COMUNIDADES INDÍGENAS KAINGANG E GUARANI NO PARANÁ


Os Guarani Nhandewa pertencem aos grupos Tupi-Guarani, do tronco linguístico Tupi3. Foram praticamente dizimados, devido à expropriação e ocupação das terras da região do Norte do Paraná por companhias exploradoras de capital privado. Nesse processo perderam a língua indígena como língua materna. Apenas alguns poucos velhos são falantes da língua guarani e os professores indígenas trabalham em sua revitalização via escola. Atualmente, os Guarani que habitam o

Norte do Paraná ocupam duas terras já demarcados, a TI Laranjinha, localizada no município de Santa Amélia-PR e a TI Pinhalzinho, localizada no município de Tomazina - PR, lutam para recuperar uma parte (TI Iwy Porã), antiga extensão da TI Laranjinha da qual foram expulsos nos de 1960 por fazendeiros da região. Os grupos habitantes das TIs Laranjinha e Pinhalzinho somam aproximadamente 388 (trezentos e oitenta e oito) pessoas, que vivem de pequenas roças familiares, produção de artesanato e empregos temporários. Do ponto de vista da cultura, vários grupos familiares lutam pela revitalização das práticas religiosas e linguísticas. De forma geral, as terras que lhes foram determinadas, além de não ser suficiente para prover o sustento de todos por meio de roças familiares, tem o solo desgastado, apresentando baixa produtividade. O artesanato, importante fonte de renda das famílias, encontra-se em condição reduzida, devido ao desflorestamento que destruiu as matérias-primas (taquara, sementes, penas, cipós, fibras). Os municípios nos quais estão inseridas as TIs oferecem poucas oportunidades de trabalho.

Introdução e Temas transversais

avaliação de políticas públicas: REFLEXÕES acadêmicas sobre o Desenvolvimento Social e o Combate à Fome

Os Kaigang vivem em áreas demarcadas, as Terras Indígenas (TIs), distribuídas nos estados de São Paulo, Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná, havendo ainda aqueles que vivem fora das terras, nas periferias de centros urbanos ou em zonas rurais destes estados. No Paraná há aldeias urbanas sendo criadas por grupos antes dispersos, que agora, com os direitos adquiridos a partir da Constituição de 1988, buscam uma reorganização sociocultural e espacial.

Manoel Ribas possui um índice de desenvolvimento humano (IDH) de 0,729, o IDH de Cândido de Abreu é de 0,666, o de Tomazina é de 0,716 e o de Santa Amélia, 0,711, segundo dados do IBGE (2010). Estes estão entre os municípios do Estado com mais baixo IDH, ou seja: maior pobreza e menores condições de renda. Nessas condições, a situação é mais grave para os indígenas que sofrem preconceito tendo dificuldade de qualificação profissional, domínio da língua portuguesa oral e escrita na norma culta, falta de documentação completa e acesso aos meios de transporte adequados.

OBJETIVOS O objetivo principal da presente pesquisa foi identificar e analisar o impacto da política de distribuição de renda na melhoria do acesso a escola; compreender as relações contidas na política de transferência de renda; levantar os usos, os bene-

3

De acordo com o lingüista Aryon Dall’Igna Rodrigues, os Nhandewa, Kaiowa e Mbya falam

dialetos do idioma guarani, família lingüística Tupi-Guarani, tronco lingüístico Tupi. Neste rol se incluiriam também os povos chiriguano, guarani-ñandeva (Chaco paraguaio), ache, guarayos e izozeños, habitantes da Bolívia e Paraguai. Uma variante do guarani é falada pela população (provavelmente 90%) não indígena do Paraguai, país bilíngüe guarani/espanhol (ALMEIDA & MURA, 2003).


fícios e as particularidades encontradas no Programa Bolsa Família direcionadas aos indígenas “aldeadas” no Estado do Paraná. Sobretudo, neste artigo buscou-se discutir a situação das comunidades indígenas e apresentar dados coletados ao longo do desenvolvimento do projeto.

MÉTODO Após seleção e nivelamento da equipe de pesquisa foram realizados levantamentos, estudos teóricos e documentais sobre a questão indígena no Paraná e sobre o Programa Bolsa Família (PBF). Na sequência foram realizadas visitas às TIs e reuniões comunitárias para explicação dos objetivos da pesquisa e solicitação de Termo de Anuência dos caciques e lideranças comunitárias. Foram feitas visitas ao posto da Funai para apresentação do projeto aos técnicos responsáveis pelas TIs envolvidas e comunicação sobre o pedido de autorização da pesquisa. Em visitas às unidades de saúde e escolas situadas nas TIs, enfermeiros, equipes pedagógicas, professores, agentes indígenas de saúde e demais servidores que atuam nas instituições foi informado sobre a pesquisa a ser desenvolvida e solicitado o apoio dos entes governamentais. Os instrumentos de coleta de dados (questionário estruturado e roteiro de entrevistas dirigidas) foram elaborados e testados entre famílias indígenas beneficiárias nas TIs após os Termos de Anuência. O questionário foi composto de 21 questões e contemplou identificação da TI, etnia, residência, número de filhos e dependentes, frequência à escola, uso da língua indígena, atividade principal e outras questões socioeconômicas e educativas. Com base nos levantamentos (Tabela 3), foi possível realizar um planejamento do número de questionários a serem aplicados. O questionário foi testado primeiramente na TI Faxinal e Laranjinha, e após os ajustes necessários, aplicado às demais TIs em um período de seis meses, com visitas semanais. Foram realizados levantamentos em bases de dados e sites governamentais (FUNASA, Dia a Dia da Educação-PR). Em seguida procedeu-se à sistematização e análise dos dados no LAEE / Laboratório de Pesquisa, com vistas à criação de um banco de dados e à elaboração de relatórios. Tabela 1 – Número de famílias nas TIs estimando-se o número a ser pesquisado Famílias Terra Indígena:

Famílias/Funasa

Faxinal

156

Ivaí

308

Cadastradas

Beneficiárias

274

251

22

Laranjinha

51

61

40

Pinhalzinho

57

29

20

Fonte: Dados coletados no site do MDS (fev. de 2011) e Funasa (fev. de 2011).

241 O PROGRAMA BOLSA FAMÍLIA E O ACESSO À EDUCAÇÃO ESCOLAR EM COMUNIDADES INDÍGENAS KAINGANG E GUARANI NO PARANÁ


O trabalho de campo realizou também um levantamento documental em livros de equipe pedagógica e direção das escolas. A pesquisa de campo extrapolou o âmbito das TIs e estendeu-se aos principais locais de comércio frequentados pelos indígenas nos municípios do entorno, para um levantamento dos produtos consumidos pelas famílias beneficiárias do Programa. As informações coletadas em campo foram sistematizados e passaram a compor um banco de dados, utilizando-se o programa Microsoft Access 2010. A elaboração de um quadro geral revela o trabalho realizado. Das 431 famílias Kaingang cadastradas no CadÚnico recebem o benefício, ao todo, 347 famílias, das quais foram entrevistadas 210 famílias. Das 87 famílias Guarani cadastradas, apenas 50 são beneficiárias. Ao todo, foram entrevistadas 49 famílias. Tabela 4 – Número de famílias beneficiárias por TI Famílias Terra Indígena

Famílias/Funasa

Cadastradas

Beneficiárias

Entrevistadas

Faxinal

156

145

101

66

Ivaí

316

286

246

144

Laranjinha

51

58

28

25

Pinhalzinho

57

29

22

24

Dados coletados no site do MDS (Nov. 2011) e dados da pesquisa de campo (2011).

Buscou-se confrontar dados e observar se há perda do benefício por parte de famílias indígenas e assim elencar elementos que pudessem apontar a relação entre a condicionalidade (de frequência às escolas) e os movimentos (mobilidade social), trabalho no artesanato e empregos temporários destas populações.

Introdução e Temas transversais

avaliação de políticas públicas: REFLEXÕES acadêmicas sobre o Desenvolvimento Social e o Combate à Fome

matrícula das unidades escolares situadas nas TIs, abrangendo entrevista com a

RESULTADOS E DISCUSSÃO Os Kaingang das TIs Faxinal e Ivaí Sobre a presença dos grupos Kaingang no Vale do Ivaí, Mota (2003) evidencia que está relacionada com a expansão das fazendas de gado nos Campos Gerais e na região de Guarapuava - PR, ocorrida desde o início do século XIX. Este processo impeliu os Kaingang a se instalarem nas matas das serras do vale do rio Ivaí, onde passaram a sofrer a pressão das populações não índias que lá habitavam. A partir do século XIX, os registros históricos disponíveis documentam a estratégia reivindicatória para manutenção de seus territórios junto ao Estado. Mota (2009) assim descreve o processo migratório ocorrido nos séculos XIX e XX, de mineiros, nordestinos e paulistas para o Estado do Paraná, como uma clara expansão capitalista com o intuito de explorar as terras férteis do Norte e Oeste paranaense:

A frente cafeicultora no Paraná pode ser vista como uma frente capitalista competitiva, e não como uma “frente pioneira”, pois admitindo que pioneiro é o que vai adiante,


é o que abre caminho, o lavrador e o pequeno proprietário são pioneiros; na estrutura em estudo, porém, não coube ao lavrador a decisão de migrar: os fluxos foram determinados pelo movimento do capital, ou seja, a frente capitalista, ao fazer a prévia ocupação dos espaços “vazios” por grandes propriedades, antes que lá chegassem os lavradores e os pequenos proprietários, cumpriu o pioneirismo (MOTA 2009 p. 52) Na ocupação, limpeza (derrubada da mata, extermínio ou expulsão das populações que habitavam os territórios paranaenses) e venda da terra a proprietários privados, houve uma série de conflitos com os grupos indígenas, que não aceitavam passivamente a perda de seu espaço de sobrevivência, ou seja, seus territórios. Conforme Tommasino e Fernandes, em texto elaborado para o Instituto Socioambiental (ISA, 2003), evidencia-se que o contato dos indígenas Kaingang com a sociedade envolvente efetivou-se no século XIX, quando os primeiros chefes políticos tradicionais, sem ter outras saídas, fizeram algumas alianças com os conquistadores e ficaram conhecidos como capitães. Os autores afirmam que esses capitães foram fundamentais na pacificação dos demais grupos arredios vencidos e aldeados entre 1840 e 1930. Os conflitos e as estratégias de negociação levaram o Poder Público a atender parte das reivindicações dos grupos Kaingang. O Governo do Paraná decretou, por meio da Lei n.º 853/1909, que uma porção de terras na margem direita do rio Ivaí ficaria reservada aos indígenas. O art. 1º da citada lei assim determinava: “O governo do Estado fará medir e demarcar as áreas de terras reservadas em tempos aos índios, em vários pontos do Estado, por decreto do executivo” (MOTA, 2003, p. 93); entretanto, os estudos de Mota e Novak (2010) sobre a questão territorial no Estado do Paraná apontam que estes mesmos territórios sofreram nova alteração em 1949, devido a um acordo entre a União e o Governo do Estado, da qual resultou outra redução significativa dos territórios indígenas em quase todo o Paraná. Essa demarcação deu origem às TIs Ivaí e Faxinal, localizadas na região central do Estado do Paraná, mais precisamente, nos municípios de Manoel Ribas e Cândido de Abreu, respectivamente. A primeira, com uma área de 7.306 hectares e uma população estimada de 1.420 (um mil quatrocentos e vinte) pessoas, composta por 308 (trezentas e oito) famílias (FUNASA, 2010), teve a sua homologação e regularização em 1991; e a TI Faxinal, que possui uma área de 2.043 hectares e um população estimada de 619 pessoas, divididas em 156 famílias (FUNASA, 2010), também teve sua homologação e regularização em 1991. Tradicionalmente, os Kaingang viviam da caça, pesca e coleta e faziam um complexo manejo ecológico de seus territórios, de forma que a alimentação era farta o ano todo. Para tanto, tinham um amplo conhecimento sobre a sazonalidade. Conheciam as florestas, os animais, os rios e diferentes tipos de peixes, elaboravam armadilhas de pesca (a mais conhecida é o pari), e a quantidade de peixes adquiridos era suficiente para alimentar um grupo familiar extenso. Conheciam diversos tipos de abelhas e seus hábitos, tinham sofisticadas técnicas de encontrar as colmeias e retirar o mel.

243 O PROGRAMA BOLSA FAMÍLIA E O ACESSO À EDUCAÇÃO ESCOLAR EM COMUNIDADES INDÍGENAS KAINGANG E GUARANI NO PARANÁ


Em relação ao pinhão, uma das principais fontes tradicionais de alimento dos grupos no Paraná, os Kaingang tinham sofisticadas formas de coleta, preparação (sopa, farofa, bolo, pinhão sapecado, etc.) e conservação.

O pinhão é um dos principais alimentos dos Kaingang. Chegando seu tempo vamos ao mato, limpamos embaixo do pé, aí cortamos uma árvore comprida pegamos feixes de taquara e uma taquara bem comprida. Com a árvore comprida fazemos uma escora no pé de pinhão e vamos fazendo um tipo de argola com as taquaras e amarrando bem firme no pinheiro e no pau da árvore cortada até chegar lá em cima. Uma pessoa que está em baixo alcança a taquara comprida que ele vai usar para bater nas cabeças de pinhão. Quando estas estiverem no chão aqueles que estão embaixo vão empilhando. Quando termina a coleta todos pegam uns paus de mais ou menos 50 centímetros e vão batendo até partir no meio. Os que ficam do lado vão escolhendo o pinhão e pondo nos balaios. (Relato do cacique Pedro Rej Rej Lucas, TI Faxinal). Nas roças familiares – de toco - cultivavam milho, feijão, batata-doce, abóboras, mandioca e outros vegetais. Após a colheita, os restos destas roças atraíam ani-

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Quando a gente sai pescar observa na beira do rio ou banhado as abelhas sentadas, aí uma voa e volta sentando no mesmo lugar. Quando uma voa reto, plainando as asas para subir ela irá para onde está o enxame então ficamos sabendo onde tem o mel. (relato do professor indígena Alexandre Krenkag Farias, TI Faxinal).

mais (pacas, catetos, tatus, codornas, jaús, nambus, jacus e outros), que eram caçados em armadilhas por eles elaboradas. Com o aldeamento esses processos de trabalho coletivo repleto de regras sociais, se perderam em grande parte, devido à restrição da terra e destruição da fauna circundante. A organização Kaingang permitia-lhes uma existência autônoma, e seus conhecimentos, em todas as áreas, garantiam-lhes o enfrentamento e as soluções de todos os problemas.

Quando a criança indígena ficava doente, os parentes mais próximos falavam para os mais velhos da família. Sem dizer nada, o velho levantava, saía e ia ao mato buscar o remédio. Às vezes ele preparava o remédio na mata mesmo ou trazia em brotinhos, já amarrados na mão. Chegando a casa colocava na água ou aplicava direto onde estava a dor. Os velhos não contam para todo mundo os nomes dos remédios e nem para quais doenças servem, pois se contarem o remédio perde a força e não cura mais. Chega uma hora que a pessoa velha vai contar para a pessoa certa e só para ele, dando conselho para não contar para os outros. (relato do professor indígena Alexandre Krenkag Farias, TI Faxinal)


Inúmeros são os relatos orais, a literatura e os documentos que evidenciam o conhecimento dos povos indígenas e capacidade de viver com autonomia. Parte desse material foi sistematizada por estudiosos da área, tais como Mota (1998, 2003, 2009), Tommasino (1995), Fernandes, R.C. (2003), Fernandes, L. (1941) entre outros, no entanto grande parte de todo esse conhecimento foi inviabilizado pela destruição ambiental, que poluiu rios e dizimou muitas espécies animais e vegetais colocando os indígenas para viverem na dependência do poder público.

Os Guarani das TIs Laranjinha e Pinhalzinho Os Guarani dividem-se em três grupos: os Nhandewa, os Kaiowa e os M’bya. A procedência do grupo Nhandewa do Paraná é diversificada. MOTA (2003), TOMMASINO (1995) e ALMEIDA (1981) demonstram que os grupos possuem antecedentes relacionados: 1) com remanescentes dos grupos reduzidos pelos jesuítas, nas missões, nos séculos XVI e XVII, os quais, depois da destruição destas, ficaram dispersos nas florestas da região; 2) com os Kaiowa, que foram trazidos por funcionários do Império para a Província do Paraná a partir de 1852, sendo alocados nos aldeamentos de São Pedro de Alcântara e Santo Inácio; 3) com os Nhandewa originários do Mato Grosso e Paraguai, que tentavam chegar ao litoral e acabaram fixando-se ali; e 4) com os Guarani dos vários grupos que foram aldeados por Curt Nimuendaju no Posto Indígena Araribá, no Estado de São Paulo, nos anos de 1912/1913 e trazidos para a TI Laranjinha - PR no período de 1930 e 1940. As terras demarcadas para os Guarani, com as invasões de fazendeiros, passaram por um processo de redimensionamento, demonstrando que as terras reservadas pelo governo às populações indígenas no início do século XX sofreram contínuas diminuições (MOTA 2003). As TIs Laranjinha e Pinhalzinho situam-se às margens do Rio das Cinzas e do Laranjinha. O território (Tekohá) ocupado por essa etnia é fundamental para sua forma de organização, o (Teko). Almeida e Mura (2003) afirmam que o Tekohá (a terra, mato, campo, águas, animais e plantas) é o lugar físico onde se realiza a vida guarani, sendo esse o lugar/espaço das relações familiares, atividades religiosas e de trabalho. Tradicionalmente, o Tekohá deve ser um lugar que reúna condições físicas (geográficas e ecológicas) e estratégicas que permitam compor, a partir da relação entre famílias extensas, uma unidade político-religioso-territorial. Com o aldeamento, segundo Almeida e Mura (2003), houve uma interrupção da continuidade territorial na qual se dava a organização sociocultural Guarani, pois agora estão reunidos em uma pequena parcela de terra cujo entorno está totalmente devastado. Assim, os Guarani das TIs Laranjinha e Pinhalzinho não podem mais viver como seus antepassados, quando manejavam extensas áreas para a execução de suas atividades agrícolas, utilização do sistema de rotação de roças – manejo ecológico – para a produção de alimentos, a caça e coleta. Na impossibilidade de reproduzir seu sistema de reciprocidade, deixaram de usar sua língua materna e, junto com ela, boa parte de seus conhecimentos e tradições.

Com relação aos indígenas da TI Laranjinha (cerca de 234 pessoas), que vivem em uma área restrita de 284 (duzentos e oitenta e quatro) hectares – a cidade mais próxima é Santa Amélia, um pequeno município de quatro mil habitantes, com

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Nestas TIs, cerca de 50% das famílias (aquelas cujos membros têm um emprego com remuneração fixa ou aposentadoria) têm alimentação diária e melhores condições de vida; mas as famílias que dependem exclusivamente dos recursos oferecidos pela terra enfrentam uma situação de muita pobreza e privações, pois ainda que consigam produzir os alimentos básicos (arroz, feijão, mandioca, abóboras), quando recebem as sementes a tempo de fazer o plantio nas devidas estações, não têm como comprar os demais produtos que precisam (óleo, café, açúcar, sabão, roupas, calçados, etc.). É drástica a devastação ambiental produziu grande desgaste do solo e não existem no entorno dessas terras áreas de matas nativas preservadas, com exceção de alguns poucos hectares preservados dentro da própria aldeia. Com a floresta destruída, as espécies da flora utilizadas para artesanato e medicamento desapareceram. Na pequena mata (cerca de dez alqueires) preservada na TI vivem alguns animais, como tatu, porco-do-mato, capivara e jaguatirica, alguns pássaros, cuja caça é regulamentada e cada vez mais escassa, porém suas carnes são as fontes de proteína de algumas famílias.

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um dos piores IDHs do estado, oferecendo, assim, reduzidas oportunidades de trabalho e renda a seus habitantes. Já a TI Pinhalzinho tem uma população de habitantes e 57 famílias, com uma área demarcada de 593 (quinhentos e noventa e três) ha, nas proximidades da cidade de Tomazina – PR, que também tem um baixo IDH. Desta forma, os indígenas Guarani vivem muitas dificuldades, que geram tensões constantes, causadas principalmente pela disputa dos poucos empregos existentes na área e pelo acesso às roças, que não são suficientes para todas as famílias.

A devastação ambiental do entorno acabou com os animais sagrados com os quais os antigos rezadores se comunicavam nos sonhos para receber informações, avisos e ensinamentos. Com a perda da língua, ocorrida gradativamente desde meados de 1940 (FAUSTINO 2006), os valores sagrados, transmitidos por meio da palavra foram sendo substituídos por novos valores, veiculados pela língua portuguesa, pelos meios de comunicação de massa (rádio e televisão), alterando sobremaneira sua forma de ver e entender o mundo. Estes elementos, somados às dificuldades de subsistência, cada vez mais têm levado, principalmente os jovens, a sofrerem pela falta de perspectivas de futuro, que para eles se apresenta muito incerto. Conforme demonstra um estudo realizado sobre os jovens indígenas,

O forte desejo de consumo de produtos industrializados, estimulado pela mídia que chega cada vez mais aos jovens indígenas por meio de rádios e televisão; disputas internas, adultérios, brigas por motivos torpes, espancamentos, agressões e outras manifestações de violências crônicas geradas pela falta de perspectivas, pelo alcoolismo, grassam as aldeias em seu cotidiano, tornando as pessoas, os jovens particularmente, vulneráveis às alternativas “fáceis” e ilícitas para ganhar dinheiro, ou às “difíceis” como é o caso de muitos que, por falta de uma escolarização mais ampla, de acesso a informações, aceitarem condições de trabalho desumanas beirando à escravidão (CIMI, 2007, p. 25).


As dificuldades de sobrevivência enfrentadas pelos grupos, além de ter-lhes causado, em muitas situações, a perda da língua, têm promovido o rompimento dos laços familiares e grupais, afetando as formas nativas de transmissão dos conhecimentos da cultura. Neste sentido, considera-se de suma importância o apoio institucional do governo e das universidades para o fortalecimento das lutas indígenas. Assim, consideramos fundamentais, entre as políticas públicas, as políticas de transferência de renda, como o Programa Bolsa Família, objeto da análise subsequente.

Políticas públicas e populações indígenas No decorrer da história do Brasil, diferentes políticas indigenistas responderam à situação das populações indígenas, ora visando à guerra, tendo o indígena como inimigo do projeto colonizador, ora buscando a aculturação e integração deste à sociedade envolvente por meio da conversão religiosa e da utilização de sua força de trabalho. Por orientações dos organismos internacionais como a OIT – Organização do Trabalho (Convenção 107 de 1957 e Convenção 169 de 1989), a legislação brasileira reconheceu os indígenas como cidadãos, tendo sido estas populações incluídas nas políticas públicas desenvolvidas a partir do final dos anos de 1980, no contexto das políticas de inclusão social, respeito e reconhecimento à diferença. A década de 1970 representou o início de um período de crise estrutural da sociedade capitalista, exigindo do sistema reformas para combater o desemprego e a pobreza estrema de grandes contingentes populacionais em diferentes partes do mundo. Os chamados “anos de ouro do Capital”, oriundos da produção industrial do período do Pós-Guerra (1948-1973), haviam chegado ao fim, e com eles ruiu o estado de bem-estar social4. Nesse período as economias centrais (EUA e Inglaterra) adotaram e implementaram reformas neoliberais, como tentativa de salvaguardar a ordem do sistema. É inerente a essa lógica neoliberal, como marcam Mathis, Nascimento e Gomes (2010, p.11),

[...] cortar gastos e desativar programas sociais na perspectiva dos direitos e criar “novos” programas seguindo o princípio da seletividade e da focalização das ações públicas nos segmentos mais necessitados da população, uma vez que a diminuição da pobreza absoluta constitui também uma condição de estabilidade econômica e política. De acordo com Faustino (2006, p. 131), os documentos emanados dos organismos internacionais evidenciam que as populações indígenas estão entre as mais po-

4

O Estado do Bem-Estar Social (Welfare State), baseado nas ideias de John Maynard Keynes

(1883-1946), constituiu-se de uma série de medidas tomadas para a revitalização do capitalismo. Para isto foi necessário um forte investimento estatal na economia, incentivando as indústrias de base e de transformação, o desenvolvimento de políticas públicas, a permissão da sindicalização, o atendimento às reivindicações trabalhistas por meio da elaboração de legislações protetoras do trabalho livre. Acreditavam os pensadores defensores dessa intervenção que com o incentivo ao consumo se estimula a produção. (Faustino, 2006; Netto e Braz, 2007).

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bres do mundo. Esta conclusão também está presente em alguns documentos da tégias do Banco Mundial, da Organização das Nações Unidas, da Organização das Nações Unidas para a Educação Ciência e Cultura (Unesco) e outros, para justificar a necessidade de intervenção e investimentos (decorrentes de empréstimos) que visam atacar e aliviar a pobreza extrema no contexto atual. Nesse momento foram estimulados projetos de desenvolvimento destinados aos grupos vulneráveis e inclusão desses grupos nas demais políticas públicas. Ao apresentarem uma revisão das concepções de necessidade e renda mínima, Mathis, Nascimento e Gomes (2010) salientam a contribuição de Marx, pensador do século XIX que, juntamente com Engels, formulou o materialismo histórico, analisou o processo de expropriação/privatização da terra e exploração capitalista que leva à miséria de grandes contingentes humanos em todas as partes do mundo. A partir desse referencial os autores mostram a preocupação do sistema capitalista, representado por organismos internacionais como o Banco Mundial, no início dos anos 1990 e ao longo das duas últimas décadas, é aliviar a pobreza extrema através de programas que ampliem o acesso dos pobres aos serviços básicos de infraestrutura e criem condições para a geração de renda familiar. No Brasil, país periférico do sistema (ARRIGHI, 1997), as políticas de redistribuição de renda se justificam pelos altos índices de concentração de renda. Em um breve percurso de Gini (medida variável de 0 a 1 que calcula a distribuição de renda: quanto mais próxima a 0, menor a concentração de renda), podemos observar na tabela abaixo como esse índice se configura ao longo das décadas finais do século XX. Tabela 2 – Coeficiente de Gini brasileiro

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política educacional dos anos de 1990, voltada à educação intercultural e às estra-

1970 0,574

1980 0,590

1988 0,600

1989 0,630

1990 0,610

Fonte IBGE 2011

Dados de 2009 trazem um coeficiente de Gini de 0,518 (IBGE, 2010). Já o Paraná possuia um Gini Estatal de 0,770 no ano de 2006. Assim, comparado a outros países, o Brasil está entre os dez países que mais acumulam renda, e na esfera estatal o Paraná apresenta um coeficiente alto de concentração de renda. Tabela 3 – Coeficiente de Gini paranaense 1985 0,749

1995 0,741

2006 0,770

Fonte: IBGE 2006

Ao descreverem os processos econômicos contemporâneos na América Latina, Baer & Maloney (1997) abordam a origem da política neoliberal no final dos anos de 1970, no Chile, ampliada pela classe dominante e seus representantes para todo o continente latino americano ao longo das últimas quatro décadas, consistindo basicamente em uma primazia do setor privado no manejo de recursos públicos. Sob a vigência desta política econômica, a despeito de seu discurso de


inclusão social e de reconhecimento da diversidade cultural (FAUSTINO, 2006), para BAER & MALIONEY (1997, p. 49), a concentração de renda se mostra alta:

Esses padrões se intensificaram no primeiro centenário após a independência na terceira década do século XIX. O sistema de latifúndio expandiu-se às custas das comunidades nativas, e assim os benefícios do boom nas exportações de bens primários, na segunda metade do século, foram em sua maioria concentrados em um pequeno número de proprietários de latifúndios e investidores estrangeiros, nas áreas de minas, utilidades públicas e agricultura. Após a Constituição de 1988, seguindo as diretrizes internacionais que já apontavam para programas de transferência de renda como forma de combater a pobreza e a vulnerabilidade de grupos e famílias de baixa renda, as políticas de proteção social no Brasil, como apontam Vaintsman et al. (2009), iniciaram um processo que culminaria na criação do PBF e em uma política de assistência social pautada em direitos. Conforme Silva (2007), a origem do Bolsa Família ocorreu antes de 2004, ano de sua oficialização. No estudo desta política pode-se destacar, em 1991, o início dos debates sobre as dificuldades das famílias que vivem em extrema pobreza para manter as crianças nas escolas, buscando, por meio de uma política compensatória (remuneração direta), uma política estruturante (manutenção da escolaridade infantil) diretamente ligada à educação. De acordo com SILVA (2007, p. 1.434),

As famílias extremamente pobres, com renda per capita mensal de até R$ 60,00, independentemente de sua composição, e as famílias consideradas pobres, com renda per capita mensal de entre R$ 50,01 e R$ 120,00, desde que possuam gestantes, ou nutrizes, ou crianças e adolescentes entre zero a quinze anos. O primeiro grupo de famílias recebe um benefício fixo no valor de R$ 50,00, podendo receber mais R$15,00 por cada filho de até quinze anos de idade, até três filhos, totalizando o benefício mensal em até R$95,00 por família. As famílias consideradas pobres recebem uma transferência monetária variável de até R$ 45,00, sendo R$15,00 mensais por cada filho de até quinze anos de idade. Ressalta-se que o Bolsa Família vem ampliando seu público alvo, incluindo o atendimento de famílias sem filhos, como o caso dos quilombolas, famílias indígenas e moradores de rua. (SILVA 2007, p.1434) Campos (2003), ao destacar a origem do Programa, salienta que estava em estudo desde 1987, na Universidade de Brasília, e em 1995, no mandato do então governador do Distrito Federal Cristovam Buarque (1995-1999), foram implementados os programas Bolsa Escola e Poupança-Escola, sendo que este último se caracterizava da seguinte forma:

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Concomitantemente a este projeto, o município de Campinas - SP, em caráter experimental, implementou um programa de transferência de renda, inicialmente com dois objetivos básicos. O primeiro deles visava ao combate direto à pobreza, para assim reduzir o ciclo intergeracional; e o segundo consistia da condicionalidade de frequência à escola e a programas de saúde, acreditando-se que assim haveria uma melhoria na qualidade de vida e na instrução dos futuros cidadãos. A partir dos anos 2000 ampliaram-se os debates sobre a criação de programas de proteção social, com aumento dos recursos investidos e introdução dos programas de transferência de renda com condicionalidades do Governo Federal. Já nos primeiros anos do governo de Luiz Inacio Lula da Silva,

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Cada família cadastrada recebia um salário mínimo mensal; em troca, deveria garantir a matrícula e a freqüência de seus filhos entre 7 e 14 anos na escola. Ao final de cada ano, as crianças aprovadas recebiam um salário mínimo, que era depositado na Poupança Escola. Ao final da 4ª e da 8ª séries, o aluno podia sacar parte dos recursos acumulados e, ao final do ensino médio, o restante (CAMPOS, 2003 p.187).

A unificação dos programas federais de transferência de renda no Bolsa Família (exceto o PETI neste momento) foi um dos primeiros passos para a racionalização da gestão dos programas contra a fome e a pobreza, o que viabilizaria sua expansão nacional. Por sua vez, a formação do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), em janeiro de 2004, criou as condições organizacionais para a integração ou articulação entre os diferentes programas assistenciais. (VAINTSMAN et al., 2009, p.736). Originando-se nestas iniciativas, a Lei 10.836, de 2004, instituiiu o PBF como uma ação unificada de distribuição de renda. Sobre este assunto, Kerstnetzky (2009, p.73) evidencia que o complemento de renda representado pelos benefícios é essencial para o alívio das várias privações, das quais a mais crítica é a subnutrição infantil, sobretudo porque pode atingir as capacidades intelectuais da criança, apresentando-se, ao longo do ciclo da vida, como baixo desempenho escolar e baixa capacidade para o exercício de muitas outras potencialidades humanas. Com uma maior cobertura e maiores investimentos, o programa Bolsa Família tornou-se o “carro chefe” da política de proteção social do Governo Lula, incluindo a população mais pobre e vulnerável ao sistema de proteção e ao mercado de consumo popular e acirrando o debate público (principalmente pela imprensa e partidos conservadores) sobre o caráter assistencialista e eleitoreiro dessa política; mas o enfoque no combate à pobreza e inclusão dos mais pobres em uma política de proteção social, de certo modo, de acordo com Vaintsman et al. (2009), deixou em segundo plano as disputas ideológicas envolvendo “focalização versus universalismo” dando espaço para a ampliação e sucesso do programa governamental. É necessário acrescentar, de acordo com os pesquisadores, que a atuação de órgãos multilaterais,


principalmente a do Banco Mundial, teve influência tanto no financiamento como na difusão de experiências em eventos internacionais sobre as políticas adotadas. Sobre o impacto dessa nova política de assistência social, um de seus efeitos foi:

[...] o significado social, político e simbólico de inclusão de um amplo segmento populacional a um sistema público de assistência social por meio da criação de mecanismos de provisão de benefícios e de serviços fora dos padrões tradicionais do assistencialismo/clientelismo. Não se trata apenas de acesso ao consumo via transferência de renda, mas da criação de bases institucionais e organizacionais para a incorporação dos segmentos sociais mais pobres e vulneráveis a um sistema de proteção, em que benefício assistencial não significa assistencialismo, mas direito. Ainda que as relações particularistas permaneçam um fenômeno longe de ter desaparecido da esfera pública, sobretudo na área da assistência social, a construção do SUAS e a institucionalização do Programa Bolsa Família como meio de segurança de renda criaram um campo de ação universalista para a área da proteção social (VAINTSMAN, 2009, p. 739). Em relaçção ao acesso à escola, os estudos são quantitativos e poucas são as reflexões e discussões teóricas que contribuem para uma compreensão ampla do assunto. Com relação às populações indígenas os estudos são ainda mais raros. A revisão bibliográfica5 não identificou trabalhos sobre a temática do Programa Bolsa Família entre indígenas no Estado do Paraná. Encontrou-se um estudo sobre os Terena no Mato Grosso do Sul, de Fávaro et al. (2007), no qual os autores destacam o grande auxílio do Programa para os índios aldeados na TI de Buriti - MS, principalmente no que tange à alimentação, fato muito similar e até certa medida genérico em relação a populações não indígenas, mas não necessariamente idêntico. Diante da condicionalidade imposta, os autores destacam o impacto inicial na educação em confluência com as tradições indígenas.

Em Mato Grosso do Sul, ainda, foram ressaltadas as dificuldades de indígenas em cumprirem as condicionalidades escolares, seja pelos problemas de chuvas que isolam as escolas das áreas onde moram, seja pelos rituais de iniciação das crianças na vida adulta [...]. Em entrevistas semiestruturadas com gestores, foram expressas dificuldades nas questões referentes ao acompanhamento do cumprimento das condicionalidades, como nos municípios de Mato Grosso do Sul, com famílias que migram (nômades). Essa dificuldade revela o problema da intensa mobilidade espacial das famílias de baixa renda (BRASIL, 2008, p.192). 5

O levantamento foi realizado nos periódicos indexados à base de dados do Portal WebQualis,

disponível no endereço virtual <http://qualis.capes.gov.br/webqualis/consulta/periodicos>. Os dados retornados foram organizados e sistematizados um banco de dados que compõe o atual acervo do LAEE.

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No Paraná, coforme a situação apresentada nesse texto, as populações indígenas grandes distâncas percorridas pelas famílias em busca da matéria prima e, posteriormente na viagem aos municípios maiores, para sua comercialização acarretando longos períodos de ausência que levava a muitas faltas na escola. Não obstante, a pesquisa evidenciou que, embora a situação permaneça – pois, como o artesanato é uma das principais fontes de renda das famílias e a matéria-prima (Bambusa vulgaris) está cada vez mais difícil de ser encontrada no entorno, as famílas se ausentam da TI em busca do produto – porém, a condicionalidade do Programa tem proporcionado maior conscientização das mães e busca de novas estratégias para conciliar o trabalho no artesanato e a permanência das crianças na escola indígena. Outras questões que interferem na codicionalidade da permanência das crianças na escola indígena são as saídas da família em busca de alguma atividade remunerada nas cidades, os conflitos internos das facções, as expulsões, a falta de terra para as roças familiares e de insumos (sementes, ferramentas) e insentivos para que todos possam trabalhar na própria TI, a desestruturação familiar e o alcoolismo. Estes são alguns dos problemas identificados que podem interferir diretamente nas condicionalidades para participação das famílias indígenas na política de transferência de renda proposta pelo Programa Bolsa Família no Paraná. A situação de vulnerabilidade social e insegurança alimentar das populações indígenas contribui para que 86% das famílias indígenas inscritas no Cadastro Único para programas sociais seja beneficiada com o Bolsa Família, segundo dados apresentados por Carvalho et al. (2008):

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vivenciam inúmeras dificuldades. Entre os Kaingang, um dos problemas são as

Cumpre destacar que o Cadastro Único de Programas Sociais do Governo Federal se constitui em instrumento de coleta de dados e informações com o objetivo de identificar as famílias com renda mensal per capita de até meio salário mínimo. Nesse sentido, a inserção de famílias na base nacional não significa, necessariamente, sua inclusão no PBF, uma vez que o programa beneficia famílias em situação de pobreza (com renda mensal per capita de R$ 60,01 a 120,00) e extrema pobreza (com renda mensal per capita de até R$ 60,00).Em média, cerca de 86% das famílias indígenas cadastradas recebem o benefício do PBF, significando que um alto percentual atende aos critérios de pobreza e extrema pobreza acima mencionados. O valor médio do benefício pago a essas famílias é de cerca de R$ 87,42 (oitenta e sete reais e quarenta e dois centavos) mensais, valor considerado alto se comparado à média nacional de R$ 75,38 (setenta e cinco reais e trinta e oito centavos) (CARVALHO et al., 2008, p. 61, grifos nossos). Apresentando dados de 2008, Carvalho et al. (2008, p. 62) apontam que o total de famílias indígenas cadastradas no CadÚnico e no Bolsa Família no Brasil é de 62.178, as famílias que são efetivamente beneficiárias são em número de 53.513 e o valor em reais que é repassado a estas famílias é R$ 4.678.163,00. Sobre o estado do Paraná os autores mostram que existiam, até aquele momento, 2.479


famílias indígenas cadastradas, das quais 1.875 eram beneficiárias do Programa, sendo o valor em reais repassado de R$ 162.218,00. O gráfico abaixo revela que, nas quatro TIs pesquisadas, a grande maioria dos beneficiários recebe o recurso regularmente. Isto pode estar relacionado ao fato de o Programa garantir uma renda mínima e assim ter possibilitado uma nova organização das atividades de trabalho no artesanato. Na TI Ivaí identificou-se que mesmo antes do Bolsa Família existia uma organização de mães Kaingang do mesmo grupo familiar em um sistema semelhante ao mutirão, para a produção do artesanato (FAUSTINO 2006), porém, atualmente, algumas mulheres têm se reunido em grupos de quinze ou vinte, sendo que umas ficam responsáveis pela busca da matéria-prima, outras pela confecção e outras pela venda do artesanato, o que acarreta menos tempo de ausência à escola dos filhos, os quais as acompanham. Se este sistema pode parecer muito simples para os não índios, é muito complexo em um grupo de mulheres Kaingang do Ivaí e demandou muito emprenho pois exige profundas mudanças na organização sociocultural nativa no que se refere à forma de trabalho, divisão e apropriação de seus resultados. Tem sido cumprida a condicionalidade de frequência escolar, uma vez que o registro da presença nas escolas é feito diariamente pelos professores e acompanhado pela equipe pedagógica, pela direção escolar, pelos caciques das Tis, pelos técnicos da FUNAI, pelos Núcleos Regionais de Educação e Secretaria de Estado da Educação.

253 O PROGRAMA BOLSA FAMÍLIA E O ACESSO À EDUCAÇÃO ESCOLAR EM COMUNIDADES INDÍGENAS KAINGANG E GUARANI NO PARANÁ

Fonte: Banco de dados sistematizado a partir dos dados coletados na pesquisa de campo (2011).

Como um dos objetivos, a pesquisa focalizou também a disseminação das políticas públicas no interior das TIs. Nas duas TIs Kaingang predominam o uso da língua kaingang e a organização sociocultural tradicional nativa (TOMMASINO, 1995; FERNANDES, 2003; MOTA, 2009; FAUSTINO, 2006), ao nível de exclusão (MOTA et al., 2003), e grande parte da população adulta tem baixo índice de escolaridade (FAUSTINO, 2011), o que dificulta a compreensão e acesso a informações. Nesse sentido, os técnicos da FUNAI e as direções das escolas têm feito um trabalho junto às lideranças e famílias para melhor acesso das comunidades ao Programa Bolsa Família. A pesquisa evidenciou que 38 famílias Kaingang não souberam responder a origem de seu benefício. Para conseguirem a documentação e o cadastramento contaram com o apoio de assistentes sociais e para matricularem e manterem as crian-


ças na escola tiveram a ajuda de professores, da equipe pedagógica, da direção e instituição contribui para a disseminação do Programa no interior da comunidade, a providência de documentos e o encaminhamento de famílias a serem atendidas pela assistência social. Em relação ao número de dependentes, a pesquisa contou com os registros das escolas e da unidade de saúde e de informações provenientes de famílias que responderam ao questionário, chegando aos seguintes resultados:

Fonte: Banco de dados sistematizado a partir dos dados coletados na pesquisa de campo (2011).

Na análise sobre os produtos adquiridos com a renda do Programa Bolsa Família, destacamos que na cidade de Manoel Ribas - PR os comerciantes financiam o deslocamento dos indígenas da aldeia para a cidade para realizar suas compras nos mercados, o que acarreta certa dependência; porém, pela distância e dificuldades de acesso a outros centros urbanos, aos Kaingang não restam alternativas. Observou-se, durante as pesquisas de campo, que o percurso (cerca de 10 km) é realizado mais de 17 vezes ao longo do dia em períodos do recebimento do

Introdução e Temas transversais

avaliação de políticas públicas: REFLEXÕES acadêmicas sobre o Desenvolvimento Social e o Combate à Fome

das lideranças. Na TI Faxinal, onde ainda existe o escritório da FUNAI, o trabalho da

benefício. Esse transporte é feito por caminhões de porte médio, modelo F-2000, que transporta os indígenas na carroceria. Os caminhões saem dos mercados com destino à aldeia, e lá chegando, o transporte é organizado por um indígena (contratado pelos comerciantes), que também tem a incumbência de traduzir as informações para os Kaingang sobre a organização para compra e entrega da mercadoria. Ao chegar à cidade, muitos vão para estabelecimentos como farmácias e lojas de confecções, mas a grande maioria adquire gêneros alimentícios nos mercados que financiam o transporte. Na TI Faxinal o transporte também é realizado por um caminhão, mas este é de propriedade da comunidade, adquirido em um projeto realizado pelo LAEE/UEM, com verbas do Programa Fome Zero em 2007, e faz o percurso cidade-aldeia no máximo duas vezes ao dia. Quanto ao uso do recurso do Bolsa Família, citamos o relato de um comerciante da cidade de Manoel Ribas-PR:

[...] as compras aumentaram com o Bolsa Família, os Kaingang compram comida: arroz, feijão, dorso (carcaça do frango). Meu caminhão faz muitas viagens para a aldeia, em média umas 12 a 17 viagens, dependendo do dia; a gente acaba dando carona para muitos índios que vêm comprar. Não ligo


se eles vêm para comprar no meu ou em outro mercado. [...] também compram chinelos. que atualmente é o calçado dos índios. Agora no frio compram cobertor [...] parcelo na folha de caderno um cobertor de 60,00 a 90,00 em até 6 vezes. [...], Quando compram vem toda a família [...] antes do Bolsa Família era só o dinheiro do aposentado, daí ficava difícil para eles; mas agora tem os dois, o dinheiro dos aposentados, que nunca deixam de ajudar a família, e dos que recebem Bolsa Família.” (depoimento coletado com comerciante, dono de um supermercado em Manoel Ribas. Março de 2011 – Diário de Campo. Paulo Caldas Ribeiro Ramon, s/p.) Os coeficientes e índices econômicos supracitados, como também o relato coletado em campo, confirmam que a situação econômica dos indígenas no Paraná é de extrema pobreza. Por exemplo, na TI Ivaí, de uma população de 1.420 pessoas apenas 2% têm renda fixa (salário de professores, de motoristas, de agentes de saúde e aposentadorias (MOTA et al., 2003). A terra é pouco produtiva e as sementes nem sempre chegam no período certo para o plantio. Com a redução dos territórios de manejo, houve mudanças nas tradições, no trabalho e na forma das moradias. Atualmente as casas indígenas são feitas de alvenaria, financiadas por programas governamentais. Devido à falta de madeiras e sapé, raramente se vê uma casa tradicional nas Terras Indígenas no Paraná. Há também uma proibição da FUNASA em relação às construções de madeira com o argumento de que favorecem a maior proliferação de parasitos e doenças respiratórias. Além de a lenha ser escassa, nas casas de alvenaria não se pode mais fazer o fogo no interior, e assim os Kaingang vão perdendo sua forma tradicional de aquecimento e passam a necessitar de gás, agasalhos e cobertores. Com a criação de animais domésticos (porcos, galinhas, cavalos) na Terra Indígena, sem o manejo adequado, houve a proliferação de parasitoses, o que gerou a necessidade de usarem calçados e fármacos que nem sempre estão disponíveis nas unidades de saúde (MOTA, et al, 2003)

255 O PROGRAMA BOLSA FAMÍLIA E O ACESSO À EDUCAÇÃO ESCOLAR EM COMUNIDADES INDÍGENAS KAINGANG E GUARANI NO PARANÁ


Introdução e Temas transversais

avaliação de políticas públicas: REFLEXÕES acadêmicas sobre o Desenvolvimento Social e o Combate à Fome

Figuras 1 a 4: Indígenas trabalhando no artesanato


Figura 5. Criança indígena que tem material escolar fazendo tarefa em casa

257 O PROGRAMA BOLSA FAMÍLIA E O ACESSO À EDUCAÇÃO ESCOLAR EM COMUNIDADES INDÍGENAS KAINGANG E GUARANI NO PARANÁ

Figura 6. Chinelos adquiridos com o recurso do Bolsa Familia, deixados na porta da escola indígena. Pesquisas realizadas nas mesmas TIs em períodos anteriores (FAUSTINO, 2006) revelaram que um dos maiores problemas da ausência de crianças à escola ocorria em períodos de inverno rigoroso, devido à falta de roupas de frio e, principalmente, à falta de calçados. Os trajetos apresentam buracos que em períodos de chuva dificultam a chegada das crianças à escola. Os pais cujos filhos andavam descalços declararam sentir vergonha diante das professoras não índias, de médicos, dentistas, enfermeiros e outros profissionais que trabalham nas TIs, bem como de autoridades como prefeito e vereadores, pois sempre eram orientados sobre a necessidade de as crianças andarem calçadas para evitar parasitos e acidentes com resíduos depositados nos trajetos. Assim justificavam que não mandavam os filhos


para a escola para não expô-los à vergonha diante dos não índios, que andam com

É importante ressaltar que durante muito tempo os Kaingang e Guarani resistiram à oferta de educação escolar, porém, ao perderem grande parte das formas tradicionais de vida - como caça, pesca, coleta, rituais etc. - aceitaram e passaram a reivindicá-la, e esta hoje se transformou em uma necessidade tanto para acessarem os conhecimentos técnicos de que necessitam e alimentação para as criança como para buscarem novas alternativas de vida. Os dados coletados nas escolas e unidades de saúde ajudaram a elaborar um quadro da situação da frequência escolar nas escolas das TIs Faxinal e Pinhalzinho. Com os dados possíveis de inferir, encontramos no Pinhalzinho (tabela 6), nas séries iniciais do Ensino Fundamental, uma situação de 16 alunos matriculados em 1989, enquanto a população totalizava 80 pessoas. Os dados de matrícula seguem em declínio, com evidência acentuada em 2005, quando havia apenas oito crianças matriculadas na escola da comunidade; mas um novo crescimento do número de matriculados vem se mostrando a partir de 2007. Grande parte dos acontecimentos que levaram à diminuição do número de escolares na década de 1990 deveu-se tanto à transferência para as escolas da cidade (utilizando o mesmo transporte destinado aos jovens do Ensino Médio), pelo descrédito na qualidade da escola indígena, quanto a mudanças das famílias para outras TIs motivadas por conflitos políticos internos. Tabela 4 - Número de alunos matriculados e população na TI Pinhalzinho

Introdução e Temas transversais

avaliação de políticas públicas: REFLEXÕES acadêmicas sobre o Desenvolvimento Social e o Combate à Fome

roupas e calçados.

Ano

Número de alunos matriculados

População

1988

Dados não disponíveis

Dados não disponíveis 80

1989

16

1998

11

88

2000

15

Dados não disponíveis

2001

13

Dados não disponíveis

2002

12

Dados não disponíveis

2003

12

Dados não disponíveis

2004

10

Dados não disponíveis

2005

8

Dados não disponíveis

2006

9

Dados não disponíveis

2007

12

Dados não disponíveis

2008

17

Dados não disponíveis

2010

Dados não disponíveis

155

2011

Dados não disponíveis

154

2012

Dados não disponíveis

154

Fonte: Dados coletados na Escola da TI Secretaria Municipal de Manoel Ribas PR e dados da Funasa (2010) e ISA (2008).

Na tabela com os dados coletados na TI Faxinal (tabela 7), em que a administração da FUNAI era feita por técnicos comprometidos com a melhoria das condições de vida da comunidade indígena, principalmente pelo senhor Dário Moura e a senhora Tereza Schactae (por iniciativa pessoal instituíram a Pastoral da Criança, horta comunitária, sopão, etc., para ajudar na nutrição infantil), mas também pelo


cacique, que permaneceu por quinze anos no poder, acompanhando as famílias e orientando para que mandassem seus filhos para a escola, foi registrado o crescimento contínuo de matrículas nos anos de 2000, e essa relação está também para o crescimento da população. É importante ressaltar que, apesar de atualmente o acesso à educação escolar ser uma realidade nas TIs, devido às políticas públicas de inclusão social (FAUSTINO, 2006), a escola ainda não atinge a todos, assim como os resultados obtidos por meio da educação (FAUSTINO, 2011) por si sós não garantirão sucesso no acesso a bens e serviços e na revitalização dos modos de vida tradicionais. Neste contexto, a renda mínima alcançada com o PBF mostrou-se de suma relevância para a melhoria das condições de vida dos indígenas no Paraná. Tabela 5 - Número de alunos matriculados e população na TI Faxinal Ano

Número de alunos matriculados

População

2002

64

Dados não coletados.

2005

106

442

2008

190

511

2010

214

576

2011

213

576

Fonte: Dados coletados na Secretaria Municipal de Manoel Ribas-PR e dados da Funasa (2010).

259 CONCLUSÃO Procurou-se neste trabalho evidenciar que, em períodos anteriores à expropriação das TIs, os Kaingang e Guarani, assim como as demais etnias existentes no Brasil, tinham nas suas organizações socioculturais a garantia da sobrevivência com abundância de alimentos e saúde, sem dependência. Tais organizações se alteraram drasticamente com a colonização exploratória e a venda de suas terras, pela destruição do meio ambiente, poluição dos rios e do solo e redução dos territórios tradicionais, passando os indígenas a viver, em grande parte, na dependência do Poder Público. As atuais políticas públicas, como o PBF, embora não os tenham tirado da dependência, têm possibilitado o acesso aos gêneros de primeiras necessidades, como alimentos, e uma maior permanência e aprendizagem das crianças na escola, pois 77,27% delas, como se evidenciou na TI Faxinal, e 63,89, como se observou na TI Ivaí, cumprem a condicionalidade da frequência escolar e por isso continuam a receber o benefício. Esses dados demonstram diminuição da ausência escolar de crianças que acompanhavam os pais na coleta de matérias-primas, na confecção e venda de artesanato por longos períodos no ano. Esta política federal, associada a outras iniciativas estaduais e municipais - como a merenda escolar, a casa da família indígena, o leite das crianças, o material escolar, a formação de professores indígenas em magistério específico, a reforma e ampliação das escolas, a elaboração de materiais didáticos diferenciados e outras

O PROGRAMA BOLSA FAMÍLIA E O ACESSO À EDUCAÇÃO ESCOLAR EM COMUNIDADES INDÍGENAS KAINGANG E GUARANI NO PARANÁ


-, embora lentamente, tem proporcionado a estas populações um melhor acesso a

Pôde-se também evidenciar algumas relações contidas no próprio interesse do comércio das cidades do entorno em valorizar mais a presença indígena na cidade, uma vez que esta representa incremento nas vendas. Em pesquisas anteriores (FAUSTINO, 2006) ficou demonstrado que os indígenas perambulavam pelas cidades vendendo ou trocando seu artesanato por alimentos, com pouquíssimas possibilidades de adquirir roupas e calçados, tendo os grupos de viver de doações e auxílios particulares raros devido o baixo IDH dos municípios do entorno. O acesso a alimentos de qualidade, em quantidades suficientes e adequadas à cultura alimentar, ainda é um obstáculo a ser ultrapassado por essa população. É importante lembrar que o significado da produção de alimentos na cultura dos Terena, conforme demonstra o estudo apresentado, vai além da manutenção do corpo e faz parte do modo de ser Terena (FÁVARO et al. 2003). Nesse sentido, a garantia da terra, tantas vezes reivindicada pelas lideranças, bem como ações de inclusão e a participação comunitária, devem ser priorizadas a fim de que possam promover a segurança alimentar e nutricional com maior autonomia aos grupos étnicos. Consideramos serem necessários estudos das questões sócio-históricas, econômicas, linguísticas e culturais de cada grupo indígena para que possamos ter uma melhor compreensão sobre o papel da escola e o pleno acesso a ela para as comunidades em um momento em que não podem mais praticar, na totalidade, suas formas de vida tradicionais. Em relação aos Kaingang e Guarani no Paraná, destacamos a importância de as pesquisas levarem em consideração o papel das lideranças e das instituições so-

Introdução e Temas transversais

avaliação de políticas públicas: REFLEXÕES acadêmicas sobre o Desenvolvimento Social e o Combate à Fome

bens e serviços como educação e saúde.

ciais que com elas interagem, como a Funai, a Funasa, as prefeituras municipais, as Secretarias de Estado, a SEED - que é encarregada da gestão da educação escolar nas TIs - e as universidades, quando atuam na captação de recursos para pesquisa e/ou intervenções sociais, pois ações coordenadas resultam em conquistas mais duradouras para as comunidades.


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261 O PROGRAMA BOLSA FAMÍLIA E O ACESSO À EDUCAÇÃO ESCOLAR EM COMUNIDADES INDÍGENAS KAINGANG E GUARANI NO PARANÁ


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263 O PROGRAMA BOLSA FAMÍLIA E O ACESSO À EDUCAÇÃO ESCOLAR EM COMUNIDADES INDÍGENAS KAINGANG E GUARANI NO PARANÁ


Lana Claudia Macedo da Silva1/universidade Estadual do Pará (uEPA)

Introdução e temas transversaIs

avaliação de políticas públicas: ReFleXÕes acadêmicas sobRe o desenvolvimento social e o combate à Fome

MULHER E TRABALHO NO PROGRAMA BOLSA Família

1

AGRADEço A LEITuRA ATENTA Do PRoF. João LuIz DA SILvA LoPES. SuAS oBSERvAçÕES CuIDADoSAS

CoNTRIBuÍRAM PARA o REFINAMENTo Do MATERIAL oRA APRESENTADo.


INTRODUÇÃO E MÉTODO O texto propõe examinar o efeito do maior programa de transferência de renda do mundo, o Programa Bolsa Família (PBF), relacionado às categorias trabalho e família. O PBF integra o núcleo de estratégia do governo federal no enfrentamento à pobreza, por meio da transferência de renda aos grupos mais pobres da população. Nesse sentido, é interesse deste estudo analisar a quantidade e qualidade do acesso ao mercado de trabalho entre as mulheres beneficiárias em comparação às não beneficiárias do Programa. Embora o PBF não seja direcionado para a integração das mulheres ao mercado de trabalho, essa análise é possível na medida em que, suas ações têm a mulher como principal beneficiária. O estudo compara essas categorias analíticas em uma das capitais daquela que é a maior região brasileira em termos territoriais e, ao mesmo tempo, a mais escassa quanto aos índices populacionais. Em uma relação inversa a extensão territorial, o último Censo Demográfico (2010) aponta a região Norte como a segunda menos povoada (15.864.454), à frente apenas da Região Centro-oeste (14.058.094). A Região Norte apresenta o segundo pior percentual no Índice de Desenvolvimento Humano (0,75), do país. A despeito disso, é a que recebe o segundo maior (19,41%) investimento do governo federal no que diz respeito aos programas de transferência de renda social, mormente, o PBF, segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicilio (2006). A Região ainda apresenta poucos estudos sobre os impactos dos programas sociais de combate à pobreza. A Amazônia, tão alardeada nas campanhas ambientalistas, representa um modo de vida peculiar, por permitir a aproximação entre natureza e cultura. Essa visão romântica é alvo de inúmeras controvérsias entre governo, instituições públicas e privadas, pesquisadores e população local. A visão idílica da região se espraia para a metrópole de Belém, considerada “portão de entrada da Amazônia”, lugar onde “começa a Amazônia”, portanto, a “capital da Amazônia”. Mais do que slogans aproximando a cidade ao espaço natural com claros propósitos turísticos (COSTA, 2006), essas denominações expressam o imaginário social que acompanha a região e seus habitantes, trazida pelos primeiros viajantes a aportarem na Amazônia no século XVI. O processo de urbanização de Belém, entre os séculos XVII e XIX, sugere uma cidade “de costas” para aquela que seria sua maior riqueza natural, a fauna e flora. A pesquisa possui caráter quantitativo e qualitativo. O aspecto quantitativo do estudo está presente na leitura dos dados mensuráveis elaborados em formato de tabelas e gráficos. Esse formato permitiu maior visualização dos dados coletados em campo. O caráter qualitativo da pesquisa está presente em todas as fases da pesquisa, desde a elaboração, passando pela execução e análise do material. Adotou-se a concepção de pesquisa qualitativa trabalhada por Chizzotti:

265 MULHER E TRABALHO NO PROGRAMA BOLSA FAMÍLIA


Nas ciências sociais a abordagem qualitativa de pesquisa possui espaço privilegiado por acreditar que essa leitura converge para a expressão dos sujeitos socialmente construídos, por meio da interpretação dos fenômenos segundo seu contexto e, da compreensão das falas e simbologias, nem sempre explícitas em um primeiro olhar. Quanto às técnicas de coleta de dados adotadas trabalhou-se o questionário semi-estruturado, a observação, o diário de campo e a entrevista semi-estruturada. O questionário contemplou questões pré-elaboradas versando sobre diferentes aspectos da vida familiar e trabalhistas dessas mulheres: identificação, informações gerais sobre os filhos, cuidados com as crianças, distribuição das tarefas domésticas, despesas domésticas, benefício social e situação de trabalho da depoente. Antes da aplicação dos questionários realizou-se o pré-teste visando verificar a pertinência do questionário elaborado para a coleta, assim como, sua adequação aos objetivos da pesquisa e quanto à objetividade das perguntas e dos procedimentos previstos. Esse primeiro teste foi realizado com dez questionários. Somente após a verificação e adequação do instrumento às necessidades do campo

Introdução e Temas transversais

avaliação de políticas públicas: REFLEXÕES acadêmicas sobre o Desenvolvimento Social e o Combate à Fome

“A abordagem qualitativa parte do fundamento de que há uma relação dinâmica entre o mundo real e o sujeito, uma interdependência viva entre o sujeito e o objeto, um vínculo indissociável entre o mundo objetivo e a subjetividade do sujeito. O conhecimento não se reduz a um rol de dados isolados, conectados por uma teoria explicativa; o sujeitoobservador é parte integrante do processo de conhecimento e interpreta os fenômenos, atribuindo-lhes um significado. O objeto não é um dado inerte e neutro; está possuído de significados e relações que sujeitos concretos criam em suas ações”. (CHIZZOTTI, 2003, p. 79).

procedeu-se a aplicação dos 40 questionários restantes. A entrevista semi-estruturada com a amostra de 10 mulheres provedoras do domicílio, representado 20% das mulheres pesquisadas. Utilizou-se roteiro previamente estabelecido permitindo o diálogo em outras direções conforme a interação pesquisador e interlocutor. As mulheres foram entrevistadas separadamente, segundo os locais e horários de sua conveniência. O roteiro constou de perguntas abertas discorrendo sobre as seguintes categorias: trabalho, filhos, educação, atividade doméstica, família e políticas públicas. Acrescenta-se, porém, que a finalidade do roteiro não é estabelecer limites à entrevista, ao contrário, as perguntas possuíam caráter aberto permitindo a inclusão de questionamentos outros que porventura não constassem no roteiro, obedecendo ao próprio fluxo da conversa. Assim, a entrevistada foi conduzida a falar sobre determinados assuntos pertinentes ao trabalho por meio de perguntas estabelecidas no roteiro.

MULHER NO PROGRAMA BOLSA FAMÍLIA Diversos países da América Latina a partir dos anos 90 passam a receber políticas de combate à pobreza. São programas direcionados aos segmentos pobres da po-


pulação e tem seu benefício condicionado às exigências que devem ser cumpridas pelo indivíduo e pela família beneficiada. As condicionalidades dizem respeito às áreas da educação e saúde. No campo da educação, as famílias têm a obrigação de manter crianças e adolescentes na escola de 06 a 15 anos com freqüência de no mínimo 85% das aulas por mês. Na área da saúde, as crianças menores de 7 anos que recebe o beneficio assume o compromisso de acompanhar o cartão de vacinação, além do crescimento e desenvolvimento. As mulheres na faixa de 14 a 44 anos também devem fazer o acompanhamento e, se gestantes ou nutrizes (lactantes), devem realizar o pré-natal e o acompanhamento da sua saúde e do bebê. O principal objetivo do PBF é a superação da pobreza no seu grau mais extremo, tendo como eixos principais:

Diminuição imediata da pobreza, por meio da transferência direta de renda às famílias; Reforço do direito de acesso das famílias aos serviços básicos nas áreas de saúde, educação e assistência social, por meio das condicionalidades, o que contribui para as famílias romperem o ciclo da pobreza entre gerações; Integração com outras ações e programas dos governos, nas suas três esferas, e da sociedade para apoiar as famílias a superarem a situação de vulnerabilidade e pobreza”. (MDS, 2009, p. 04). Abramo (2005) considera que o questionamento acerca da abordagem da questão de gênero nas Políticas Públicas brasileira é necessário por dois motivos: em primeiro lugar, pelo fato das desigualdades e a discriminação de gênero serem problemas que dizem respeito á maioria da população brasileira, pois neste caso não estamos falando de grupos específicos da população, ou de minorias, mas, sim da ampla maioria da sociedade brasileira, visto que, a população brasileira é constituída em mais da metade por mulheres. O segundo motivo está relacionado ao fato de que todos os indicadores sociais (educação, emprego trabalho, moradia dentre outros) mostram existir uma ampla desvantagem das mulheres em relação aos homens, especialmente quando se analisa a inserção da mulher no mercado de trabalho (SANCHES, 2009; OIT, 2007, 2010; GOLDENBERG, 2000; BORGES, 2007; BRUSCHINI, 1998, UNIFEM, 2004). Acrescento a esses dois aspectos um terceiro: embora o PBF não seja um programa direcionado às mulheres, ele acaba por assumir esse papel. Segundo Lima e Silva (2010) no ano de 2009, a quase totalidade das famílias atendidas (92,0%) dos responsáveis legais pelo programa eram mulheres, portanto, não se pode analisar o programa sem perceber a peculiaridade de gênero e a importância que a mulher assume na família. A opção por priorizar as mulheres como beneficiarias do PBF encontra respaldo em estudos que afirmam que elas tendem a investir o beneficio na família e nos filhos, enquanto os homens tendem a destinar parte desses recursos para si próprios (FIALHO, 2007; MARIANO & CARLOTO, 2009, 2011). Tais análises reafirmam a maternidade como sendo um dos pilares da identidade feminina, enaltecendo a capacidade de “altruísmo” das mães. Impressiona o fato dessa relação entre essa visão maternal e as políticas públicas de combate à pobreza

267 MULHER E TRABALHO NO PROGRAMA BOLSA FAMÍLIA


terem gerado pouco debate em âmbito acadêmico, visto que, as mulheres cada

Não é novidade afirmar que mesmo diante da nova conjuntura no mundo do trabalho, as mulheres continuam ganhando menos que os homens, e, por sua vez, as mulheres negras recebem menos que as pardas e estas menos que as brancas, revelando a interseccionalidade entre as categorias gênero, raça e classe. O relatório Igualdade no trabalho: enfrentando os Desafios lançado pela Organização Internacional do Trabalho (OIT, 2007) apresenta os principais aspectos da discriminação no mercado de trabalho em contexto brasileiro nos últimos dez anos e pondera:

“Neste cenário de mudanças, talvez as de maior significado para o futuro sejam a presença definitiva e crescente das mulheres em busca de oportunidades profissionais e a intensificação da discussão sobre a desigualdade racial no país, que se instala na agenda pública, trazendo à tona dados irrefutáveis sobre a discriminação da população negra no trabalho, sofrida com dupla intensidade pelas mulheres negras”. (OIT, 2007, p. 01). Ainda segundo a OIT (2007) desde 1995, ocorre o aumento da ocupação feminina em 2,1% ao ano em comparação à masculina. Contudo, o aparente progresso oculta uma situação de discriminação, pois as mulheres permanecem voltadas para as atividades consideradas de âmbito feminino, tais como, os serviços sociais e o trabalho doméstico.

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vez mais estão sendo orientadas para o mercado de trabalho.

“O Rio e a Barca: onde tudo começou... Esse rio é minha rua Minha e tua, mururé Piso no peito da lua Deito no chão da maré” (Música: Esse rio é minha rua. Letra: Paulo André Barata e Ruy Barata) Para além da musicalidade paraense que canta e encanta os nascidos na terra, os versos acima traduzem a geografia local. A simbiose entre o rio e a rua expressa o cotidiano de uma comunidade que tem o rio como local de trabalho e sociabilidade. A vivência com as águas está presente desde os primeiros passos, onde aprendem a nadar, a pescar, a navegar e, principalmente relacionar-se com o meio circundante. Assim é o lócus deste estudo, a Vila da Barca, uma das maiores áreas palafíticas da Região Metropolitana de Belém, as proximidades do centro da cidade. Trata-se de um bairro periférico, localizado em uma área nobre, com uma área territorial de 2.317 km², segundo dados da prefeitura (PMB, 2003). Não há consenso quanto ao período de nascimento da Vila. Furtado e Santana (1974) fazem referência a década de 40, versão contestada por outros estudiosos. Vilar (2008), Farias Junior (2006) e Santos et al (2010) apontam a década de 1940


como marco no processo de ocupação da Vila da Barca. Diogo (2010) sugere os anos de 1920, a partir de depoimentos de antigos moradores da localidade, bem como, de extensa pesquisa bibliográfica baseada em jornais locais, romances e artigos científicos. Controvérsias a parte, todos parecem concordar com a origem do nome Vila da Barca”, conforme reportagem extraída do jornal “O Estado do Pará”:

“Ninguém, poderia nascer com um destino tão bom e tão humano, como aquela Barca enorme guardando o característico das Caravelas históricas, construídas no Pará, com madeiras paraenses e pelos operários. Aquela coisa nascia com alma, trazia como as criaturas o seu destino e teria de cumpri-lo, com a mesma paciência dos predestinados, o mesmo ar inexorável. Chegou ir a Portugal. Levava em seu bojo rapazes engajados para essa acidentada viagem. Mas, seria, o seu destino. Em qualquer parte onde ficasse tinha de ser cumprida a sua sorte. Seria uma Vila, com homens pobres trabalhando, com mulheres e filhos. A baia a engoliu, a lama da beirada a chupou. O rio compreendia o porque daquela volta: a barca seria a companheira das marés das águas subindo, macias e lânguidas, como se fosse uma amante enchendo-a de carícias. E talvez contassem histórias. A barca deveria ter muitas histórias para contar. Jogada na beirada além do curro Velho, ficou esperando pelo seu futuro” (PEREIRA, 7/10/1941). Pesquisadores, habitantes locais e romancistas acreditam estar relacionada a uma embarcação de origem portuguesa, apreendida pela Capitania dos Portos e que teria naufragado ou encalhado na área, servindo como moradia a sua tripulação. Embora tal embarcação nunca tenha sido encontrada, a história parece ter sido contada e recontada de geração em geração entre seus habitantes, como se contam as narrativas mitológicas da Amazônia. Também é ponto facultativo entre estudiosos e poetas a formação humilde da vila. Trecho da reportagem “Os recantos que Belém não conta a ninguém”, descreve essa gente:

“Outros foram chegando. Aquela gente expulsa da Penitenciária, vinda de outros logares. E, essa gente, uns restos de flagelados, pacientes, cosidos nos sofrimentos mais amplos das torturas incríveis, ficaram pensando. Nessa Vila da Barca as mulheres perderam o seu verdadeiro sentido do “porque vieram ao mundo”. Não é o trabalho que lhes tirou esse sentido. É a luta pela vida. É o modo e as conseqüências desses trabalhos. Vivem no trabalho desde os seis anos. São as ‘socorros’ das fábricas de tecidos, meninas que “servem” os as operários maduros e limpam alguma coisa ou as ‘escolhedeiras’ das Uzinas de beneficiamento.

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Um documentário produzido no ano de 1964 também trata a respeito dos primeiros moradores da Vila:

“A maior parte dos habitantes da Vila da Barca vive do trabalho nas feiras que abastecem diariamente os bairros pobres de Belém. Os produtos vendidos nas feiras, principalmente frutas nativas, são adquiridos nos barcos que vem do interior. Comprando em pequenas quantidades, individualmente e sem depósitos, além de pagarem preços já elevados, os feirantes conseguem somente uma pequena margem de lucro”. (VILA DA BARCA, 1964, s/p) Trata-se, portanto de “intermediários” responsáveis por adquirir os produtos com os “atravessadores”, estes sim, fazem o transporte de gêneros alimentícios do interior para abastecer a cidade. Revelando o contínuo campo-cidade e a relação de dependência desta aos produtos vindos da região insular. A proximidade da Vila à maior feira aberta da América Latina, o mercado do Ver-o-peso, constitui um aspecto facilitador dessa relação.

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São levadas desde criancinhas pelos pais e vão aos poucos entrando na existência. Desde criancinhas conhecem todas as amarguras, não chegam a pensar na vida. E, talvez, não saibamos descobrir a alma dessa gente, o custo da falta desse conhecimento. Perguntando, responderão prontamente – Praque? A vida do subúrbio está cheia de ‘Praquês’. Os pais? Onde encontrá-los? Na fábrica de tecidos, nas Usinas de beneficiamento, nos curtumes? Não sabem”. (PEREIRA, 1941, p.01)

Quanto ao aspecto populacional da Vila, Furtado e Santana (1974) chamam a atenção para a renda dos moradores, que oscilava na faixa de um salário mínimo e, as atividades encontradas: ajudante de pedreiro, lavadeira, vendedor ambulante, jornaleiro, peixeiro, balconista de mercearia, empregada doméstica, servente de obras, carregador e outras relacionadas à construção civil. Mais de trinta anos se passaram após os primeiros escritos acadêmicos sobre a Vila e seus habitantes sem que nenhum estudo fosse produzido. É, na primeira década do século XXI que a Vila da Barca volta a despertar o interesse acadêmico, talvez motivado pelos programas sociais que ali se instalaram nos últimos anos, como o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Em 2003, a Vila da Barca possuía mais de 4 mil pessoas residindo em sua maioria em área de estivas2. O levantamento sócio econômico realizado pela PMB, por meio da Secretaria Municipal de Habitação (SEHAB), no período de julho a agosto de 2003, verificou que a maioria da população que aí reside possui baixo poder aquisitivo em decorrência de uma série de fatores como: a baixa escolaridade e,

2

Denominação utilizada para caracterizar as principais vias de circulação dos moradores das

áreas de baixadas, onde o acesso é efetivado por meio de pontes (estivas) construídas em madeira sobre as áreas alagadas.


por conseguinte, a precariedade no acesso ao mercado de trabalho formal. A principal fonte de renda dos moradores da área está quase que em sua maioria vinculada ao setor informal de trabalho. Grande parte dos moradores está desempregada; outros vivem de trabalhos esporádicos, o que intensifica a vulnerabilidade da maioria das famílias. Segundo Silva, M. (2006), o número de trabalhadores com carteira assinada é insignificante; são poucos os aposentados e pensionistas. A principal atividade econômica na comunidade é o comércio, sendo comum a venda de ovos, peixes e enlatados e gêneros alimentícios da região como o açaí, o tacacá, a farinha de mandioca, as frutas regionais (cupuaçu, bacuri, taperebá, murici, etc...). A mão-de-obra autônoma é constituída por carpinteiros, pedreiros, encanadores, empregadas domésticas e uma ínfima quantidade de pescadores que ainda sobrevivem do rio. Segundo Branco:

“Desde o início de sua ocupação, o espaço da Vila da Barca esteve associado ao estigma de pobreza, violência, prostituição etc. Sendo que residentes de fora desta área sempre tiveram uma visão equivocada desta realidade. A violência urbana, na área, é igual ou inferior aos demais bairros de Belém, apesar do estereótipo pejorativo, construído ao longo dos anos acerca deste lugar. Os moradores da área são penalizados por esta situação e acabam sofrendo diversas discriminações”. (BRANCO, 2009, p. 104). Como dito antes, a Vila da Barca faz parte do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) implementado pelo governo federal. O projeto foi pensado para 736 famílias, embora na Vila da Barca existam 4.000 famílias. Até o ano de 2004 foram remanejadas 136 famílias. Há um decreto federal que obriga a entrega dos apartamentos pela prefeitura de Belém até 2012. Representantes da Associação dos Moradores da Vila da Barda falam a respeito do “choque social”, pois os moradores nas palafitas não pagavam luz, água, IPTU, DARF, PARF, além dos reparos, lajotas e outros consertos e coleta de lixo que era inexistente nas palafitas. Localmente os moradores diferenciam à área de palafitas chamando de “Vila Velha” e a área onde estão construídos os apartamentos chamando de “Vila Nova”. Em visitas à área podem-se perceber muitos contrastes entre a propaganda de governo e a realidade enfrentada pelos moradores da área. Contudo, recomendam-se pesquisas sobre o assunto que visualizem as mudanças sócio-ambientais ocorridas após o PAC, como essa ação está modificando o contexto e a vida dos moradores da Vila.

PERFIL DAS MULHERES PESQUISADAS A faixa etária das mulheres pesquisadas compreende desde os 24 até os 86 anos, revelando a diversidade geracional. Esse aspecto apresenta-se como positivo, pois favorece diferentes gerações falando sobre o tema em questão. Contudo, percebe-se que entre as mulheres que recebem o benefício o maior percentual está na faixa etária de 25 a 35 anos (10), enquanto que entre as que não recebem o be-

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nefício há uma predominância na faixa de 35 a 44 anos (9). Esse fato pode ser direcionado às famílias, em situação de pobreza extrema, com crianças e adolescentes em idade escolar. Quanto à escolaridade das mulheres pesquisadas na Vila da Barca, nota-se a prevalência das mulheres com ensino fundamental incompleto tanto entre as beneficiárias quanto entre as que não recebem o benefício do PBF, 17 e 10 respectivamente. Em seguida, entre as mulheres que completaram o ensino médio o número se equivale entre as que recebem o PBF e as que não recebem (7). O fundamental completo foi informado por duas (2) mulheres entre as beneficiárias e mesmo número entre as não beneficiárias. Entre as que não completaram o ensino médio uma (1) recebe o PBF e duas (2) não são beneficiárias. Uma das mulheres que recebe o PBF declarou nunca ter estudado, no outro extremo do quadro, uma das mulheres beneficiárias possui o ensino superior incompleto. O dado referente a baixa escolaridade das moradoras da Vila da Barca é recorrente em outros estudos sobre a localidade. Farias Júnior (2006) em dissertação de mestrado apresentada à Universidade Federal do Pará buscou compreender “O fracasso escolar e a realidade educacional da Vila da Barca” provenientes do processo de exclusão social em que seus moradores se encontram. O autor, morador das palafitas e, portanto, legítimo representante da Vila considera que:

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justificado dada a idade reprodutiva das mulheres pesquisadas, visto que, o BF é

“Analfabetismo, não acesso à escola, reprovação, repetência, defasagem nos estudos e evasão, ainda que permaneçam vigorantes nesta localidade, já enfrentam uma certa resistência por parte daqueles que pareciam “predestinados” ao insucesso escolar. Já começam a perceber que, embora as condições para se estudar permaneçam difíceis, eles podem mudar o rumo do que parecia “predestinado” e da própria história que vivenciam”. (FARIAS JÚNIOR, 2006, p. 212-3). Outros estudos apontam que 80% dos responsáveis legais pelo PBF não possuem ensino fundamental completo, sendo que as regiões Sul e Sudeste possuem o menor número de analfabetos, enquanto as regiões Norte e Nordeste apresentam os piores índices de escolarização (CONSTANZI & FAGUNDES, 2010). Neste estudo, o percentual de mulheres beneficiárias pelo programa que não concluíram o ensino fundamental é bastante significativo ao representar mais da metade das mulheres pesquisadas nessa situação. Uma visão geral do quadro sugere que as mulheres que recebem o benefício são aquelas que tiveram menos acesso e oportunidades de estudo, pois quase dois terços dessas mulheres (71,4%) possuem no máximo o ensino fundamental. No que concerne a naturalidade, a maioria das mulheres são oriundas da capital paraense, tanto entre as que recebem o beneficio (18) quanto entre as que não recebem (14). Em seguida, aparecem as provenientes do interior do Estado do Pará, oito (8) entre as beneficiárias e cinco (5) entre as que não beneficiárias. E, por fim, as que migraram de outros Estados como o Amazonas e outras regiões como o Nordeste (Ceará, Recife e Maranhão), duas (2) entre as que recebem PBF e três (3)


entre as que não recebem. Em outras palavras, 92,9% das mulheres beneficiárias são provenientes do Estado do Pará, enquanto que entre as que não recebem o beneficio esse percentual é de 86,3%. A raça/etnia foi outro elemento presente nos questionários. Optou-se pela auto-classificação e as respostas foram: predominantemente a raça/etnia parda, com vinte e três (23) entre as beneficiárias e dezenove (19) entre as não beneficiárias, em seguida vem a branca: três (3) entre as beneficiárias e uma (1) entre as que não recebem o benefício. Entre as que responderam negra duas (2) estão as beneficiárias do PBF e, igualmente, duas (2) entre as não beneficiárias. Destaque-se que, a categoria “parda” apresenta outras subcategorias, como por exemplo, a morena, a morena clara e a cor de jambo. No que tange a interseccionalidade entre as categorias gênero, classe e raça, nota-se a predominância da cor “parda” no município em estudo. A miscigenação do povo brasileiro constitui um processo de “embranquecimento” da nação visando o gradativo desaparecimento do negro. Nesse sentido, Belém reproduz o cenário de desigualdade encontrado a nível nacional. Em relação à situação conjugal atual das entrevistadas, obtiveram-se os seguintes resultados: treze (13) mulheres declararam viver em união estável entre as beneficiárias, enquanto que oito (8) encontram-se em mesma situação conjugal entre as não beneficiárias. O número de solteiras entre as não beneficiárias equivale ao número das que vivem em união estável (8), entre o grupo das beneficiárias as solteiras também representam esse número. As viúvas perfazem quatro (4) entre as beneficiárias e as não beneficiárias. E, por fim, as casadas estão em menor grupo entre as beneficiárias (3) e, também, entre as não beneficiárias (1). Entre as beneficiárias doze (12) se declararam solteiras ou viúvas, portanto, não contam com a presença masculina, enquanto que entre as não beneficiárias esse percentual se eleva para dezesseis (16). Nas ciências sociais esse modelo de família é denominado de “família chefiada por mulher” e apresenta um quadro de complexidade e ambigüidade. Outro elemento considerado revelador do modo de vida dessas mulheres diz respeito aos filhos. Os dados mostram que doze (12) mulheres tem entre 2 a 3 filhos entre as que recebem o PBF, e entre as que não recebem, esse número sofre um acréscimo alcançando quatorze (14) mulheres. Entre as beneficiárias o número de mulheres que tem acima de 4 filhos chega a treze (13), no grupo das não beneficiárias esse dado está bem abaixo com quatro (4) mulheres. E, entre as mulheres que possuem somente um filho, entre as beneficiárias representa apenas uma (1) mulher e as não beneficiárias somam duas (2) mulheres. A média de filhos por mulher está em 3,1 filho para cada mulher pesquisada na Vila da Barca.

O PROGRAMA BOLSA FAMÍLIA E A PARTICIPAÇÃO DAS MULHERES NO MERCADO DE TRABALHO Como dito no início do texto, a categoria trabalho servirá de embasamento para analisar a inserção e participação das mulheres beneficiárias, ou não, do Programa

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Bolsa Família no mercado de trabalho. Entre as mulheres pesquisadas, dezesseis neficiárias esse percentual sofre ligeira queda perfazendo quatorze (14) mulheres. Por outro lado, doze (12) mulheres beneficiárias não trabalham, enquanto que no grupo das não beneficiárias esse número cai para oito (8). Em termos comparativos, o dado mostra que na Vila da Barca, embora o maior número de mulheres trabalhe, esse número é maior entre aquelas que não recebem o beneficio do governo (63,6%) em contraposição as beneficiárias (57,1%). Outro número revelador, diz respeito a duas (2) beneficiárias que nunca exerceram nenhuma atividade remunerada, enquanto que no outro pólo, das mulheres não beneficiárias todas trabalham. Contudo, afirmar que essas mulheres não trabalham em função do benefício que recebem constitui uma análise superficial do fenômeno. Igualmente, não se concorda com a análise empreendida por Sorj e Fontes em estudo comparativo nas Regiões Nordeste e Sudeste sobre a articulação entre trabalho e família, as autoras consideram que:

“O efeito negativo na quantidade e na qualidade do trabalho das mulheres é maior no Nordeste do que no Sudeste, provavelmente porque no Nordeste os recursos monetários do Bolsa Família rendem mais do que no Sudeste e, por isso, desestimulam a inserção das mulheres em trabalhos menos precários”. (SORJ e FONTES, 2010, p. 71). Embora nosso estudo seja na Região Norte é possível traçar alguns paralelos entre a pesquisa supracitada, tendo em vista que, a Região Norte e Nordeste apresentam os piores Índices de Desenvolvimento Humano (IDH) do país, aproximando-se em

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(16) beneficiárias desempenham alguma ocupação ou atividade, entre as não be-

relação a alguns aspectos sociais e econômicos. Nota-se que, ambas as regiões há falta de políticas públicas direcionadas para essas mulheres no que compete ao campo do trabalho. A baixa escolaridade associada à falta de qualificação profissional impulsiona essas mulheres para atividades de baixo status social, com parcos rendimentos e expostas a condições de trabalho marcadas pela precariedade. Há que se considerar também, a ausência de creches para atender aos filhos dessas mulheres, pois na condição de mães, a creche e pré-escola constituem condição si ne qua non para que essas mulheres possam trabalhar e ter onde deixar sua prole em segurança. Contudo, dados do MEC (2010) apontam que somente 5,4% das crianças de zero a três anos estão matriculadas em creche públicas no município de Belém, que contabilizam 56 creches. Como o mercado formal exige tempo e dedicação maior, não somente para entrada, mas, sobretudo, para permanência neste setor, é pouco provável que as mulheres nessas condições tenham dificultado seu acesso ao mercado formal. Comumente, essas mulheres estão situadas em atividades exercidas em âmbito doméstico (lavadeira, cozinheira, vendedora de gêneros alimentícios, pequenos comerciantes, etc..). Entre as mulheres que exercem alguma atividade laboral, a categoria “autônoma” foi citada por dez (10) mulheres beneficiárias e sete (7) não beneficiárias do PBF.


Nessa categoria estão: jogo do bicho, confecção de arranjos para noivas, manicure, vendedora de açaí, vendedora de tacacá e, principalmente, pequenos comércios comumente denominados de “tabernas”. O alto percentual de trabalhadoras nessa ocupação revela o baixo acesso e participação dessas mulheres no mercado formal. O serviço doméstico foi igualmente citado tanto pelas quatro beneficiárias (4) quanto pelas quatro não beneficiárias (4), considerado a porta de entrada no mercado de trabalho urbano para mulheres migrantes de pouca ou nenhuma escolaridade. Para a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD, 2005), o trabalho doméstico em 2005 abrangia cerca de 6,7 milhões de pessoas, entre as quais, 93,2% eram mulheres, representando cerca de 16,9% do total do emprego feminino. De acordo com Sanches o trabalho doméstico constitui uma das ocupações mais marcadas pela precariedade dos vínculos e pelo não cumprimento da legislação do trabalho:

“O trabalho doméstico é classificado como parte da economia informal. Mais do que por uma correspondência direta com os diferentes conceitos de informalidade, essa modalidade de ocupação parece estar assim classificada pela dificuldade em incluí-la nas definições correntes do trabalho e do mercado de trabalho, pois estas ainda não incorporam a esfera da reprodução como criadora de valor. Não é, pois, a precariedade (real) do trabalho doméstico que o define como informal, mas o lugar que ocupa na concepção tradicional do que é uma atividade econômica”. (SANCHES, 2009, p.884). Nesse sentido, as meninas e mulheres que migram do espaço rural para o urbano, sem escolaridade e em busca de melhores condições de vida são fortes candidatas a compor o quadro de empregadas domésticas nas grandes cidades brasileiras. O fato de o trabalho doméstico acontecer em âmbito privado e por ser uma prática naturalizada, isto é, aceita cultural e socialmente, dificulta a percepção da mesma como um problema social. Não raro, nas camadas sociais menos favorecidas o ingresso das mulheres no mercado de trabalho ocorre desde a infância. Nessa fase inicial da vida, o trabalho consiste em uma “ajuda” ao grupo doméstico caracterizando uma situação de trabalho infantil. Os dados ratificam a situação de trabalho infanto-juvenil onde quase a metade das mulheres, isto é, 46,4% das mulheres beneficiárias do PBF iniciaram suas atividades laborais antes dos 18 anos de idade, enquanto que para as mulheres não beneficiárias esse percentual se eleva para 72,7%, sendo que dessas, 13,6% afirmaram ter começado a trabalhar antes dos 10 anos de idade. O exercício de uma ocupação em idade escolar compromete a escolaridade dessas mulheres e colocam em risco toda a trajetória desses sujeitos que tendem a reproduzir o modelo de exclusão vivenciado por suas famílias, com o agravante aos aspectos de gênero, raça/etnia e classe. Quanto ao rendimento mensal, entre as beneficiárias 46,4% recebem de ½ a 1

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salário mínimo (SM) e entre as não beneficiárias há ligeiro acréscimo de 68,2%. ficiárias 13,6% recebem entre 2 a 3 salários. Ainda nesse aspecto, entre as beneficiárias sete (7) mulheres começaram a trabalhar após os 30 anos, no grupo das mulheres não beneficiarias esse dado é inexistente. A renda familiar das mulheres beneficiárias também suscita informações preciosas para este estudo, 83,7% recebem menos de 1 salário mínimo3, sendo que 40,5% recebem menos de ½ salário, entre as não beneficiárias nenhum grupo familiar recebe menos de ½ salário, em compensação 54,0% recebem 1 salário mínimo. Os números são reveladores da situação de precariedade em que, principalmente, as mulheres beneficiárias do programa se encontram, pois 96,4% recebem até 1 salário mínimo, coadunando com as expectativas do Programa de atender as famílias que se encontram em situação de extrema pobreza, recebendo até R$120,00 per capita.

CONCLUSÃO Sob a ótica de gênero, considera-se que o Programa Bolsa Família possui caráter paradoxal. Se um lado confere certa autonomia às mulheres beneficiárias na medida em que elas passam a assumir o poder de compra e consumo; por outro lado, o programa navega no sentido contrário da politização da naturalização do vínculo existente entre o sexo feminino e as atividades de âmbito doméstico. No que tange ao acesso ao mercado de trabalho e à qualidade desse trabalho, ambos os grupos de mulheres encontram-se em situação precária de acesso ao mercado de trabalho dada a baixa escolaridade e qualificação. Contudo, entre o

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Entre as beneficiárias somente 3,6% recebem 2 SM, enquanto entre as não bene-

grupo das beneficiárias a situação é agravada dada a alta inserção no mercado de trabalho informal. Considera-se que, a menor participação no trabalho formal das mulheres beneficiárias ocorre em função da ausência de políticas públicas direcionadas para essas mulheres no que compete ao campo do trabalho, pois como a maioria possui o ensino fundamental incompleto, sua inserção ao mercado de trabalho se dá de

3

O salário mínimo corresponde a R$545,00 (quinhentos e quarenta e cinco reais) no ano da

pesquisa (2011).


maneira precária submetida a atividades de baixo status social, com menor rendimento salarial e expostas a condições de trabalho marcadas pela precariedade conforme observado em outro estudo sobre as condições de trabalho das agentes comunitárias de saúde no município de Ananindeua, região metropolitana de Belém (SILVA, L., 2011). Outro dado recorrente diz respeito à ausência de equipamentos públicos para atender aos filhos dessas mulheres, pois como a maior parte dessas mulheres são mães, a creche e pré-escola constituem condição si ne qua non para que essas mulheres possam trabalhar, tendo onde deixar seus filhos em segurança e sob cuidados de profissionais especializados. Para que o Programa Bolsa Família alcance seus propósitos, isto é, minimizar os efeitos e romper o círculo vicioso da pobreza seria importante que paralelo a essas ações houvesse uma política de formação e qualificação direcionadas às mulheres para inserção ao mercado de trabalho e, não somente, de transferência de renda como é corrente nos programas governamentais. Contudo, o estilo de vida urbano-ribeirinho precisa ser reconhecido e respeitado como um modo de vida peculiar que busca a harmonia entre ambos os espaços. Acredita-se que as políticas devem ser pensadas para e a partir dessas mulheres, contemplando suas reais necessidades, daí a importância de estudos que venham compreender o modo de vida dessas comunidades. O estudo ora apresentado revela que as mulheres têm os pequenos comércios como principal atividade, pois permite ao mesmo tempo, a conciliação entre as atividades de reprodução e de produção. Nesse sentido, cursos como: empreendedorismo, manipulação de alimentos e técnicas de venda pode auxiliar para que elas aprimorem suas atividades laborais, contribuindo para que as mesmas se projetem enquanto mulheres produtivas. Reitera-se a importância do Programa Bolsa Família para a maior autonomia das mulheres no que diz respeito a aquisição e administração do benefício. Contudo, a maneira como o programa está implementado no município de Belém confere à mulher o estatuto de esposa e mãe, reforçando as funções maternais e de cuidado; em oposição à mulher trabalhadora. Assim, o PBF reproduz o dualismo clássico que associa o espaço doméstico e privado à figura feminina, privando-a da conquista de sua cidadania, pensada enquanto ser de direitos e deveres.

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avaliação de políticas públicas: REFLEXÕES acadêmicas sobre o Desenvolvimento Social e o Combate à Fome

REFERÊNCIAS:

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Introdução e Temas transversais

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