Lina Coimbra Donnard
O conflito Chechênia x Rússia A análise geopolítica por uma perspectiva realista ofensiva
Belo Horizonte 2007
Lina Coimbra Donnard
O conflito Chechênia x Rússia A análise geopolítica por uma perspectiva realista ofensiva
Dissertação apresentada ao Curso de graduação em Relações Internacionais do Centro Universitário UNI-Bh, como requisito parcial
à obtenção do título
de bacharel em Relações Internacionais. Orientador: Prof. Rafael Ávila
Belo Horizonte 2007
Donnard, Lina Coimbra 2007 O conflito Chechênia x Rússia A análise geopolítica por uma perspectiva realista ofensiva / Lina Coimbra Donnard 2007 79p. Orientador: Rafael Ávila Dissertação (graduação). Centro Universitário UNI-Bh Departamento de Relações Internacionais 1. Relações Internacionais, Geopolítica - Teses 2. Conflitos regionais - Teses
I. Ávila, Rafael II. Centro Universitário UNI-Bh. III Departamento de Relações Internacionais IV Título.
Centro Universitário UNI-BH Curso de Relações Internacionais
Dissertação intitulada “O conflito Chechênia x Rússia - A análise geopolítica por uma perspectiva realista ofensiva ”, de autoria da graduanda Lina Coimbra Donnard, aprovada pela banca examinadora constituída pelos seguintes professores:
__________________________________________ Prof. Rafael Oliveira de Ávila – UNI-BH - Orientador
__________________________________________ Prof. Rodrigo Correa Teixeira – UNI-Bh
___________________________________________ Prof. Leandro Rangel – Uni-BH
Belo Horizonte, 28 de Junho de 2007
Resumo O trabalho apresentado consiste na análise do conflito entre a Chechênia e a Rússia pontuando aspectos geográficos importantes desta região caucasiana para o Estado russo a partir da teoria Realista Ofensiva e da teoria geopolítica de Mackinder. Tem como intuito indicar uma ótica específica para o entendimento das constantes insurreições por parte da nação chechena na busca por sua independência e a motivação russa em continuar a subjugá-la através de ofensivas militares. Palavras-chaves: Geopolítica, conflito regional, Realismo Ofensivo.
Resume This academic work consists in the analysis of the conflict between Tchetchénia and Russia considering important geographical aspects in this Caucasian region to the Russian State starting from the Offensive Realism and the geopolitical theory of Mackinder. It has the intention of indicating a specific perspective to the comprehension of the constant insurrections caused by the tchetchen nation in search for her independency and the Russian motivation in continuing to subjugate it through military offensives. Key words: Geopolitics, regional conflict, Offensive Realism.
SUMÁRIO O conflito Chechênia x Rússia – A análise geopolítica por uma perspectiva realista ofensiva Introdução 08 Capítulo 1 Caracterização histórico-geográfica do conflito checheno-russo 13 1.1 - A localização geográfica da Chechênia 13 1.2 - Os recursos naturais chechenos 17 1.2.1 – Os férteis vales da bacia do Terek e do Sonja
17
1.2.2 – Florestas: um quinto do território checheno
18
1.2.3 – As jazidas de hidrocarbonetos
18
1.3 – A localização geográfica da Rússia
19
1.4 – Os recursos naturais russos
20
1.5 – O clima, as características físicas do terreno e as distâncias como fatores negativos na exploração dos recursos naturais 1.6 – A formação do povo checheno: descendentes de tribos autóctones
25
1.7 – A implantação do governo soviético em 1918
28
1.8 – A Chechênia na 2º Guerra Mundial
28
1.9 – 1991: A independência da Chechênia e a separação dos inguchétios
29
1.10 – A campanha militar russa de 1994
30
1.11 – Chechênia: soberania reconhecida no seio da federação em 1996
31
1.12 – O conflito no Daguestão de 1999: alastramento até a Chechênia
31
1.13 – Os ataques terroristas dos grupos separatistas chechenos
32
1.13.1 – 2004: O ataque à escola de Beslan
35
1.14 – A morte de Chamil Bassaev
35
1.15 – A configuração política da Chechênia na contemporaneidade
36
1.16 – A Rússia no início do séc. XXI: imagem abalada no âmbito internacional
37
1.16.1 – A questão da violação dos direitos humanos Capítulo 2
26
A teoria geopolítica de Halford Mackinder e o Realismo Ofensivo de de John J.
38 39
Mearsheimer. 2.1 – Halford Mackinder e a geopolítica do Heartland
39
2.1.2 – Mundo: sistema político fechado
40
2.1.3 – A causalidade geográfica na História
42
2.1.4 – O materialismo geográfico de Mackinder
43
2.1.5 – Oceanismo versus continentalismo
44
2.1.6 – A Ilha Mundial e o coração continental
45
2.2 – O realismo ofensivo de John J. Mearsheimer
49
2.2.1 – Anarquia e a luta pelo poder
2.3 – Riqueza e poder
Capítulo 3
49
54
2.3.1 – A base material do poder
55
2.3.2 – População e riqueza: condições para o poder militar
57
2.4 – A primazia do poder terrestre
59
2.5 – Estratégias de sobrevivência
61
Análise teórica do conflito
64
3.1 – Os pontos semelhantes entre a teoria de H. Mackinder e J. Mearsheimer
64
3.2 – Análise
68
Conclusão
78
Bibliografia
82
INTRODUÇÃO
O conflito Chechênia X Rússia vem se estendendo desde o fim da Guerra Fria e constitui um tema de interesse dos estudos de Relações Internacionais por se tratar de uma questão de autodeterminação 1 de povos e independência política de uma nação que possui grupos separatistas que buscam o reconhecimento do Estado checheno. Questões políticas e geográficas motivam a contínua dominação da região pela Rússia, a qual utiliza coerção e poder a fim de proteger sua soberania diante do sistema internacional e da balança de poder regional. A análise por uma perspectiva geopolítica e realista ofensiva se deve ao fato de a Chechênia ser uma região com recursos naturais que interessam à Rússia, como o petróleo, água e solos férteis para a agricultura, e de estar geoestrategicamente localizada, sendo motivações para que o governo russo mantenha a nação chechena sobre seu domínio. No capítulo 1, serão apresentados os aspectos geográficos de ambas as nações e a história do conflito. Apesar de ser territorialmente pequena em relação à Rússia, a Chechênia constitui uma parte considerável das capabilities russas, a começar pela sua localização geopoliticamente estratégica a qual é uma das portas de entrada para a Europa Ocidental. O território é, também, repleto de oleodutos e gasodutos os quais transportam o chamado “ouro líquido” e gás natural. No entanto, a Chechênia não é apenas o território pelo qual o petróleo é transportado, e sim detentora e produtora de 1
“Capacidade que populações suficientemente definidas étnica e culturalmente têm para dispor de si próprias e o direito que um povo dentro de um Estado tem para escolher a forma de governo. Pode, portanto, distinguir-se um aspecto de ordem internacional que consiste no direito de um povo não ser submetido è soberania de outro Estado contra sua vontade e de se separar de um Estado ao qual não quer estar sujeito e um aspecto de ordem interna, que consiste no direito de cada povo escolher a forma de governo de sua preferência.” Fonte: BOBBIO, Norberto; et al. Dicionário de Política. São Paulo: Ed. UnB. 2000 p. 70
8
parte considerável das jazidas de hidrocarbonetos da Rússia, lembrando que estas jazidas são de alta qualidade, aumentando seu valor no mercado internacional. As florestas representam um quinto do território checheno e possuem espécies como carvalhos e amieiros, permitindo a produção de madeira utilizada, principalmente, na fabricação de casas, construção de pilares de pontes e diques. Ainda se tratando de geografia, os férteis vales da bacia do Terek e do Sonja são outra preciosidade chechena, pois estão diretamente ligados à produção agrícola que, por sua vez, influi no aumento ou diminuição da população do Estado. Isso significa que quando um Estado tem uma produção de alimento abundante, a tendência é que haja um aumento no número de sua população. Para se produzir alimento o terreno fértil é uma premissa básica. A manutenção da soberania de um Estado está ligada à sua força bélica. Para se ter um exército potente é necessário ter uma população numerosa. Para se ter uma população numerosa é preciso alimentá-la para que esta cresça. E, por fim, para alimentá-la é essencial ter solos adequados para produzir alimentos. A Rússia possui uma característica geográfica que não a permite ter uma quantidade de solos férteis suficiente para a demanda nacional de produtos alimentícios: o permafrost (solo permanentemente congelado). O frio intenso da região mantém os solos do centro do país até o norte permanentemente congelados, impedindo o desenvolvimento da agricultura. O resto do território russo constitui-se basicamente de tundras, taigas e regiões mal drenadas. Para completar o conjunto de fatores não favoráveis à agricultura, a região possui pouca precipitação pluviométrica. As longas distâncias do território russo e o clima dificultam a extração dos recursos naturais. A perda da Chechênia acarretaria em mais um obstáculo na logística do transporte de produtos da Rússia e custos adicionais em seu balanço de pagamentos, já que se tornaria um território estrangeiro o qual, naturalmente, exigiria taxas para a permissão de passagem e usufruto de seus meios de transporte por Estados vizinhos.
9
Além dos recursos naturais, analisaremos; também, a formação do povo checheno ao longo da história, sempre observando o caráter conflitivo da região e a história russa, em determinados momentos paralela e em outros convergente e atuante nos fatos históricos da Chechênia. Ambas as nações estão intimamente ligadas pela sua história e pela sua proximidade geográfica. Desde o século XIII, quando houve a subjugação pelos kabardinos, a Chechênia busca sua independência. Após a conversão do povo checheno ao islamismo ocorrida no mesmo século, as ideologias e valores islâmicos penetraram e moldaram grande parte das ações chechenas. Para finalizar o capítulo, mostraremos a configuração política da Chechênia na contemporaneidade e a questão da violação dos direitos humanos, os quais colaboraram para que a Rússia tivesse sua imagem abalada perante a sociedade internacional. No capítulo 2, abordaremos as teorias selecionadas para a análise do conflito a fim de, em seguida, aplicá-las no estudo de caso e trazer à tona uma compreensão mais abrangente. A teoria geopolítica de Halford Mackinder e o realismo ofensivo de John J. Mearshiemer possuem pontos complementares que proporcionam uma ótica objetiva do conflito, permitindo a realização de ciência no meio acadêmico e informação para os que buscam compreender a situação desta região caucasiana e cujas notícias são, em geral, superficiais e pouco esclarecedoras. Em primeiro lugar, será apresentada a política do Heartland
2
a qual nos possibilitará compreender a importância da localização geográfica
da Chechênia, já que esta representa o limite oriental da area core.
3
De acordo com
Mackinder, a nação que dominar esta área será capaz de dominar a World Island e, por
2
O Heartland designa o núcleo da massa da Eurásia, coincidindo com as fronteiras da Rússia, 2 abrangendo 23 milhões de Km . No sentido leste-oeste esta região compreendia dos confins da Sibéria à massa territorial russa situada entre os mares Branco e Cáspio. De norte a sul, estendiase das costas do Oceano Ártico aos desertos e planaltos da Ásia Central. 3 A area core também pode ser denominada de Heartland, área-pivô, região-eixo, Terra Central ou coração continental.
10
sua vez, o mundo. A visão deste como um sistema político fechado 4 nos remete ao fato de que cada ação política reflete-se no sistema internacional. A causalidade geográfica 5 e o materialismo histórico
6
evidenciam o meio ambiente como fator de influência direto,
modelando a história dos povos. Outra discussão inerente à teoria de Mackinder diz respeito à rivalidade existente entre oceanismo e continentalismo, ou seja, as potências marítimas e as terrestres. Entra em questionamento qual a área de combate mais poderosa para que o Estado seja excelente em sua prática e, assim, tenha maior probabilidade de vencer. O geopolítico cita a Alemanha e a Rússia como as duas grandes potências continentais européias. Na outra parte do capítulo 2 veremos a teoria de Mearsheimer a qual se completa junto à geopolítica de Mackinder. Em primeiro lugar, a análise do sistema internacional pela perspectiva realista ofensiva, definindo o conceito de anarquia e discutindo a luta dos Estados pelo poder. Em seguida, serão abordados tópicos os quais são pontos de contato precisos entre as duas teorias aplicadas ao estudo de caso: a base material do poder, a população e riqueza como condições para o poder militar e sua base econômica. Estes três aspectos demonstram a intrínseca relação entre os recursos naturais do Estado e o grau de seu poder, podendo ser definido como “materialismo histórico”, citado anteriormente. Mais à frente, a primazia do poder terrestre para o realismo ofensivo, a diferença entre conquista e coerção, a influência dominante dos exércitos e as estratégias de sobrevivência dos Estados. Mearsheimer (2001) apresenta formas e meios os quais o Estado pode aplicar para maximizar seu poder e atingir suas metas políticas. O caráter ofensivo dos Estados que podem se dar ao luxo de sê-lo é percebido a partir da 4
De acordo com Mackinder “sistema político fechado” é a relação de interligação entre os Estados onde o cenário de ação é todo o planeta, tornando mais raro acontecimentos isolados. 5 Mackinder explica que a história universal está ligada à virtude, sorte, fatores econômicos e geografia. 6 Mackinder define o “materialismo histórico” como uma tese que explica que a vida social e política são moldadas pelos meios de produção, sendo um método de análise para o estudo da História.
11
compreensão dessas estratégias e sua aplicação. Para a ótica realista ofensiva, é uma verdade axiomática a busca incessante pelo poder por parte dos Estados, e este anseio fica evidente nas ações destes atores diante de territórios que representam uma conquista em potencial. O capítulo 3 consiste na análise teórica, ou seja, a aplicação das teorias e conceitos escolhidos no conflito entre a Chechênia e a Rússia. Esta terceira e última parte tem como intenção aplicar as teorias a um estudo de caso contemporâneo e possibilitar uma nova perspectiva para os interessados no tema. Inicialmente, serão traçados os pontos convergentes entre a teoria de Mackinder e a de Mearsheimer. Logo em seguida, será apresentada a atual imagem da Rússia perante a sociedade internacional em função de sua política externa, os recursos naturais chechenos como base da manutenção do poder russo e a análise de certas posições políticas ofensivas do Kremlin contra a Chechênia. As táticas e estratégias de coerção para manter a subjugação chechena serão discernidas e também a Chechênia como parte integrante das capabilities da Rússia, possuidora de recursos ligados diretamente à força de guerra e economia russa. Através da análise up-down e de uma seqüência de pensamentos lógicos, discutiremos o potencial checheno em afetar a balança de poder regional. O islamismo fundamentalista checheno será pontualmente discutido pois consiste em parte essencial das motivações dos grupos separatistas. Após as análises anteriores, a possibilidade de a Chechênia ser um Estado será questionada diante de sua atual conjuntura política, econômica e social. Os desdobramentos do conflito serão vislumbrados, pontuando o caráter politicamente agressivo da gestão de Vladmir Putin. Estas questões finalizam o capítulo 3, trazendo uma perspectiva do conflito e talvez outros questionamentos para estudos posteriores acerca da temática.
12
CAPÍTULO 1 CARACTERIZAÇÃO HISTÓRICO-GEOGRÁFICA DO CONFLITO CHECHENORUSSO
Antes de qualquer análise geopolítica do conflito por uma perspectiva realista ofensiva, devemos situar o mesmo geograficamente e compreender sua história no intuito de desvendar seu atual perfil político perante a sociedade internacional. O estudo da geografia da região nos proporciona clareza de pensamentos quando discutirmos o viés geopolítico deste conflito caucasiano e as motivações russas em manter a Chechênia sob seu poder. O estudo da história nos permitirá ter uma visão crítica a respeito das ações políticas, econômicas e coercitivas russas e terroristas por parte dos separatistas chechenos. As informações históricas formam a base do conhecimento para que, então, possamos fazer a análise teórica no cap. 3.
1.1. A LOCALIZAÇÃO GEOGRÁFICA DA CHECHÊNIA
A Chechênia está situada na região montanhosa do Cáucaso, entre o mar Cáspio e o mar Negro. Possui uma superfície de 19.300 Km2, um pouco menor que o Sergipe; menor estado brasileiro, e uma população que em 1989 (data do último censo), contava com cerca de 1 milhão de pessoas 7, sendo que 60 por cento vivem na república e os demais espalhados nas repúblicas vizinhas (Ingushétia e Daguestão), no Casaquistão e em 7
http://www.clubemundo.com.br/revistapangea Artigo: Ossétia do Norte: baluarte ostodoxo do Cáucaso. Acessado em 01/06/2007 às 15:00
13
cidades da Federação Russa, especialmente em Moscou . Na atualidade é difícil saber o número exato da população chechena, já que por conta da guerra metade do efetivo populacional deste país encontra-se em repúblicas vizinhas na condição de refugiados.
Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/folha/mundo/images/mapa-russia_republicas_270.gif Através do mapa é possível observar como o território checheno é pequeno em relação à Rússia, no entanto, estrategicamente localizado entre o Mar Negro e o Cáspio.
Ao noroeste faz fronteira com a Rússia e com a Ossétia do Norte, ao leste com o Daguestão, ao sudoeste com a Geórgia e a oeste com a Ingushétia. O Cáucaso é uma cordilheira da Geórgia, Armênia, Azerbaijão e sudoeste da Rússia, considerada fronteira entre Europa e Ásia. As linhas fronteiriças de maior longitude são, em primeiro lugar, com o Daguestão e, em segundo, com a Ingushétia. Ao sul, a vertente setentrional da cadeia do Cáucaso (Grande Cáucaso) é constituída por uma região de montanhas altas e geladas. O ponto culminante da Chechênia é o monte Teboulos (4.494 m).8
8
Enciclopédia Encarta 2001. Verbete “Chechênia”.
14
A região onde se encontra a Chechênia è chamada de Caucásia, a qual è dividida em duas regiões pela cordilheira do Cáucaso. Geograficamente, pode-se dividir a Chechênia em três regiões distintas. A primeira no centro-norte do país é dominada por planícies e é por onde correm, paralelamente à cadeia do Cáucaso, os dois rios mais importantes: o Terek e seu principal afluente Sonja. Nesta região estão também localizadas as duas cidades mais importantes do país – Grozni 9, a capital, e Gudermes. As atividades econômicas ligadas ao refino do petróleo e a significativa presença de russos étnicos também estão nesta porção geográfica. Foi exatamente ao longo destes percursos fluviais que aconteceu a conquista russa e é onde a Chechênia está, na atualidade, sob o controle de Moscou.
9
Grozni é o antigo centro administrativo da Republica autônoma da Chechênia – Inguchétia (19341992) depois da Chechênia (até janeiro de 2000), transferindo para Gudermes. Termo russo que significa “temível” ou “terrível”; nome dadp ao czar Ivã IV, o Terrível (Ivan Grozni), em homenagem ao qual essa cidade foi fundada. Fonte: DEL VALLE, Alexandre. Guerras contra a Europa, Rio de Janeiro. Ed. Bom Texto, 2003 p. 370
15
Fonte: http://encarta.msn.com/encnet/features/mapcenter Através do mapa pode-se observar claramente as planícies férteis ao norte em torno do rio Terek e o sul com menos irrigação e, portanto, mais árido.
A segunda área está localizada um pouco mais ao sul da primeira, citada anteriormente, e é caracterizada por um relevo mais acidentado o qual corresponde aos contrafortes do Cáucaso. Vários afluentes da margem direita do Terek e do Sonja cortam essa região, os quais correm perpendicularmente à cadeia do Cáucaso. A constituição dessa rede hidrográfica criou uma ocupação fragmentada de vales os quais isolaram os rios das planícies setentrionais, induzindo o desenvolvimento de estruturas sociais baseadas em clãs. A vida econômico-social dos chechenos, ou seja, as transferências sazonais dos rebanhos, as migrações e as incursões, sempre seguiram o eixo norte-sul. Na contemporaneidade, a maior parte desta área encontra-se em disputa entre as forças russas de segurança e os separatistas chechenos.
16
Por fim, a terceira área corresponde às partes mais acidentadas e elevadas do Cáucaso, onde a população é bem mais rarefeita e há muitos anos tem estado sob controle dos separatistas. Estes conhecem acuradamente o meio natural facilitando, desta forma, a realização de guerrilhas, assim como o desenvolvimento de diferentes tipos de tráfico, em especial armas e drogas.
1.2 – OS RECURSOS NATURAIS CHECHENOS
Apesar de ser um território pequeno em comparação com a Rússia, a Chechênia possui recursos naturais os quais o território russo não possui. Estes recursos estão diretamente ligados à sobrevivência humana e às capabilities russas, possuindo um alto valor regional, tanto no que concerne a economia da Rússia como a balança de poder da área; ou até mesmo mundial.
1.2.1 – OS FÉRTEIS VALES DA BACIA DO TEREK E DO SONJA A pouca irrigação é uma característica latente da região do Cáucaso, possuindo como formadores da hidrografia regional o rio Terek e seu principal afluente, o Sonja. A nascente do Terek encontra-se ao norte da Geórgia, atravessando as regiões russas da Ossétia do Norte, Kabardino-Balkaria, a parte norte da Ossétia do Norte até, finalmente, atravessar a Chechênia. Ele desemboca no Mar Cáspio em forma de delta na costa do Daguestão. A Chechênia é a região onde o Terek tem maior extensão longitudinal (mais ou menos 270 km)10 e maior largura. É possível observar claramente que no vale checheno o Terek é mais caudaloso em relação às demais regiões, possibilitando à área centro-norte 10
Informação obtida através da análise do mapa da Chechênia na Enciclopédia Encarta 2001
17
chechena um solo extremamente fértil para a agricultura comparado à Rússia e o sul do Cáucaso.
1.2.2 – FLORESTAS: UM QUINTO DO TERRITÓRIO CHECHENO As florestas da Chechênia são compostas por carvalho, amieiros, bétula e faia, as quais compõem a vegetação típica da região denominada taiga. O carvalho é uma madeira muito apreciada na marcenaria, para fabricar estrados e pisos de residências e para obtenção de chapas. Os amieiros são um grupo de arbustos e árvores próprios de climas frios e temperados. A madeira desta betulácea resiste muito bem à putrefação sob a água e é utilizada para construir pilares de pontes e diques.11
1.2.3 – AS JAZIDAS DE HIDROCARBONETOS Possui grandes jazidas de hidrocarbonetos, principalmente petrolíferos no vale do Sonja. Um hidrocarboneto é um composto químico constituído apenas por átomos de carbono e hidrogênio. Os hidrocarbonetos apresentam uma propriedade em comum: oxidam-se facilmente liberando calor. Hidrocarbonetos líquidos geologicamente extraídos são chamados de petróleo (literalmente "óleo de pedra") ou óleo mineral, enquanto hidrocarbonetos geológicos gasosos são chamados de gás natural. Todos são importantes fontes de combustível. Hidrocarbonetos são de grande importância econômica porque constituem a maioria dos combustíveis minerais (carvão, petróleo,gás natural, etc.) e biocombustíveis como o plástico, ceras, solventes e óleos. Até 1940 a Chechênia representava 45% da produção de petróleo da Rússia. Hoje tem uma parcela de apenas 1%, mas suas reservas têm potencial para produzir muito mais. 12
11 12
Enciclopédia Encarta 2001. Verbete “Amieiro”. Ramonet, Ignácio. Guerras do século XXI Petrópolis, RJ: Ed. Vozes 2003 pag. 141
18
Além disso, as reservas petrolíferas da região do mar Cáspio são consideradas de alta qualidade. 13
1.3 – A LOCALIZAÇÃO GEOGRÁFICA DA RÚSSIA
Fonte: http://www.folha.uol.com.br/folha/mundo A Rússia possui uma extensão territorial continental e sua localização no globo terrestre proporciona frios intensos, dificultando a agricultura e a extração de petróleo.
Hoje, o núcleo da antiga URSS, a Rússia é uma federação que congrega 89 unidades administrativas, das quais 25 são repúblicas. Isso faz da Federação russa um país com dimensões continentais e o maior do mundo, com 17.075.200 Km2 (mais ou menos o dobro do Brasil) e as distâncias entre os pontos extremos são de 9 mil Km de leste a oeste e 2,5 – 4 mil Km do sul ao norte, o que proporciona onze fuso horários diferentes.
13
http://www.bbc.co.uk/portuguese/economia/story Artigo: “Oleoduto milionário liga mar Cáspio ao Mediterrâneo”acessado em 13/06/2007 às 15:00
19
Possui uma população de 142.894.000 habitantes (cerca de 30% menor do que a brasileira). 14 Oficialmente conhecida como Federação Russa, a República Socialista Soviética Federada da Rússia (RSFSR) era antes integrada à União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). A Rússia é um dos maiores Estados plurinacionais do mundo e possui 32 divisões étnicas. Ao norte é circundada por uma série de braços do oceano Glacial Ártico e ao leste limitase com o estreito de Bering, o mar de Bering e os mares de Okhotsk e do Japão sendo; ao todo, banhada por doze mares. O extremo sudeste da Rússia é demarcado pela Coréia do Norte. Ao sul limita-se com a China, a Mongólia, o Cazaquistão, o Azerbaijão, a Geórgia e o mar Negro; ao sudoeste com a Ucrânia, a oeste com a Polônia, Belarus (Bielo-Rússia), a Lituânia, a Letônia, a Estônia e a Finlândia, e a noroeste com a Noruega. A Rússia pode ser dividida em três extensas regiões: a Rússia européia, a oeste dos montes Urais; a Sibéria, que se prolonga em direção ao leste a partir dos Urais; e a Rússia oriental, que engloba a faixa costeira do Pacífico.
1.4 – OS RECURSOS NATURAIS RUSSOS
A Rússia tem recursos naturais bem característicos pela região de clima continental moderado e subtropical onde se encontra. De fato è rica, essencialmente, em petróleo e gás-natural, mas possui poucos solos cultiváveis e um frio intenso o qual não permite o desenvolvimento da agricultura. É incontestável que o petróleo tem um valor muito mais alto que os produtos da agricultura. Mas se tratando da Rússia, a qual possui uma
14
http://www.brazil.mid.ru/ig.html Artigo “Informação Geral” acessados em 01/06/2007 às 15:30
20
geografia e um clima que dificultam enormemente o transporte terrestre e aéreo, a importação de alimentos se torna mais cara em relação aos países temperados ou tropicais. Ressaltando que o alimento è uma necessidade vital para a sobrevivência humana, já o petróleo não. A Rússia é constituída pelas planícies Leste-Européia e Oeste Siberiana, divididas pelos montes Urais, as quais são as maiores do planeta. Três quartos do território russo são dominados por planícies e vales.
15
Essa enorme área plana é mal drenada e muito
pantanosa. À leste do rio Ienissei começam as terras baixas da plataforma da Sibéria central; a qual é caracterizada por uma superfície repleta de erosões causadas pelos rios, os quais formaram profundos cânions em alguns lugares. Portanto, as planícies cultiváveis russas representam cerca de um quarto do território. A Rússia possui quatro zonas climáticas: ártica, subártica, temperada e subtropical. Isso nos indica os invernos longos e nevosos da região, com uma temperatura de até – 50 C. O clima altamente rigoroso condicionado pela localização meridional da Rússia, com invernos longos e frios e verões curtos e frescos, proporciona temperaturas extremas, principalmente na Sibéria oriental. As massas de ar tropicais são barradas pelas altas montanhas da fronteira meridional. O oceano Atlântico é o que exerce maior influência no território, em especial no verão quando há um aumento de precipitações. Ao norte estende-se a tundra, com musgos, líquens e bétulas anãs, onde o solo é permanentemente gelado e constitui 14% do território russo16: o permafrost. Mesmo sendo rica em fosfato e turfa, material orgânico o qual constitui a primeira etapa para a formação do carvão mineral, também utilizado para melhorar solos, o enriquecimento destes é praticamente inviável devido às baixas temperaturas. Portanto, é latente que tal
15
http://www.rumbo.com.br Artigo: “Rússia: situação e geografia” acessado em 01/06/2007 às 15:40. 16 http://www.rumbo.com.br Artigo: “Rússia: situação e geografia” acessado em 01/06/2007 às 15:50.
21
clima e solo são impraticáveis para o desenvolvimento da agricultura e mais do que isso, é muito mais difícil e complicado construir neste tipo de solo e viver sob o clima do norte da Rússia. Esse fator negativo do solo se reverte na alta quantidade de produtos alimentícios importados pelo país. Na área setentrional, ao sul da tundra, a zona florestal a qual ocupa cerca de 43% do território17, se divide no bosque boreal; também chamado de taiga. Na porção central da planície oriental se estende o bosque misto. Mais ao sul, o bosque misto converte-se em uma área estreita de estepe florestal, antes de passar à autêntica estepe, constituída de ervaçais com árvores pouco desenvolvidas, que se estende pela metade ocidental da planície caucásica norte, vale meridional do Volga, sul dos Urais e algumas zonas da Sibéria ocidental. Assim como a estepe florestal, é zona cultivável e são plantados, basicamente, trigo, milho, girassol e centeio. A Rússia possui cerca de 120 mil rios18, no entanto a maioria permanece congelada no inverno, ou seja, de 8 a 9 meses no ano. Portanto, as poucas regiões cultiváveis encontram-se a sudoeste da Rússia, onde se localiza a Chechênia. A Rússia possui reservas de ouro, cobre, prata, chumbo, minério de ferro, níquel e manganês.
19
Essa variedade de metais explica o porquê de a Rússia ser uma das
maiores fabricantes de produtos de utilização civil e militar. Cerca de 80% da produção mundial de ouro vem da África do Sul e da antiga URSS.
20
Este metal não é utilizado na produção militar diretamente, mas é o de maior valor entre os demais e foi de extrema importância para a economia do país no início do século XX até o período entre - guerras devido ao sistema monetário internacional aplicado na época – o Padrão Ouro. 17
http://www.rumbo.com.br Artigo: “Rússia: situação e geografia” acessado em 01/06/2007 às 15:50. 18 http://consrio.com.ru Artigo” Geografia” acessados em 01/06/2007 às 16:00 19 Enciclopédia Encarta 2001. Verbete “Rússia” 20 Enciclopédia Encarta 2001. Verbete “Ouro”
22
As propriedades mais características do cobre são a condutividade do calor e eletricidade, a resistência à corrosão, sua maleabilidade e ductilidade. Esta última característica consiste na propriedade que este metal tem em ser reduzido a fios sem que se fragmente. É possível usá-lo em todo o tipo de cabeamento elétrico. É empregado ainda em muitos pigmentos, em inseticidas, fungicidas e as duas ligas mais importantes são o latão e o bronze. A sua utilização nas fiações de construções civis ou maquinários de alto valor agregado é essencial para que estes sejam resistentes ao frio russo. A prata é um elemento metálico branco e brilhante que conduz o calor e a eletricidade melhor que nenhum outro metal. Conhecida e valorizada desde a Antigüidade como metal ornamental, a prata é o metal mais maleável e flexível, com exceção do ouro, sendo também empregada em circuitos elétricos e eletrônicos. O chumbo é conhecido desde os tempos antigos e deriva do latim plumbum, que significa prata líquida. É empregado em grandes quantidades na fabricação de baterias elétricas e no revestimento de cabos elétricos. É usado industrialmente nas redes de canalização, tanques e aparelhos de raios X. Sua elevada densidade e propriedades nucleares, permitem que o chumbo seja usado como blindagem protetora de materiais radioativos. Este metal também é empregado na forma de compostos, sobretudo em tintas e pigmentos. O chumbo tetraetila (IV) (Pb(C2H5)4) é o principal ingrediente do antidetonante que se acrescenta à gasolina, no intuito de evitar explosões prematuras nos motores de combustão interna, mas não tem sido utilizado mais por ser considerado um agente contaminante do ar. Este metal é extremamente utilizado na produção de projeteis para armas de pequeno calibre, pois sua elevada densidade proporciona uma pequena resistência ao ar e uma alta força de choque. O óxido de chumbo é usado na produção de vidros especiais; o silicato de chumbo constitui um componente importante para os vidrados que recobrem os materiais de cerâmica e o nitrato de chumbo é um ótimo detonador. Um dos principais depósitos de chumbo encontra-se na antiga URSS.
23
O ferro é um dos elementos mais abundantes do Universo e é encontrado na natureza sob a forma de minério de ferro que, depois de passado para o estágio de ferro-gusa, através de processos de transformação, é usado na forma de lingotes. Adicionando-se carbono pode-se obter várias formas de aço. É o quarto elemento mais abundante da crosta terrestre (aproximadamente 5%) e, entre os metais, somente o alumínio é mais abundante. O ferro, atualmente, é extremamente utilizado para a produção de aço, liga metálica para a produção de ferramentas, máquinas, veículos de transporte (automóveis, navios,aviões, trens,etc...), como elemento estrutural básico de pontes, edifícios, indústria bélica em geral e uma infinidade de outras aplicações. É indispensável devido ao seu baixo preço e dureza. O uso do níquel remonta aproximadamente ao século IV A.C, junto com o cobre. Aproximadamente 65% do níquel consumido é empregado na fabricação de aço inoxidável austênico e outros 12% em superligas de níquel. O restante, 23%, é dividido na produção de outras ligas metálicas, cunhagens de moedas, baterias recarregáveis, reações de catálise, revestimentos metálicos e fundição. As ligas níquel-cobre (monel) são muito resistentes a corrosão, sendo utilizadas em motores marítimos e indústria química. A liga níquel-titânio (nitinol-55) apresenta o fenômeno memória de forma e é usada em robótica. Os principais produtores são a Nova Caledônia, Austrália, Canadá, Cuba, Porto Rico, Rússia e China.21 O manganês é um metal duro, quebradiço, branco-acinzentado tingido levemente de rosapálido e não é encontrado em estado elementar. É constituinte essencial na produção do aço; todos os aços comerciais contêm pouca quantidade de manganês, mas o aço dos trilhos de trens podem conter até 1.2% de manganês. É também empregado em baterias e cerâmicas. Adicionando-se uma pequena quantidade de manganês ao latão, há um aumento da durabilidade e resistência. Com apenas 1% de manganês, o latão marinho 21
http://www.abmbrasil.com.br página “Clipping” acessado em 01/06/2007 às 16:20
24
possui elevadíssima resistência à corrosão e é utilizado na construção de hélices de barcos e partes expostas à ação da salinidade. As ligas compostas de níquel e cobre, como a que contêm 72% de manganês, 10% de níquel e 18% de cobre possui um elevado coeficiente de dilatação térmica, e é aplicada nas construções dos termômetros bimetálicos. Equipamentos submetidos à altos impactos, onde se exige resistência mecânica e maleabilidade, também são fabricados com esse tipo de liga. Por fim, é um elemento crucial para o aproveitamento da vitamina B1 no organismo humano. A Rússia é o terceiro produtor mundial de petróleo e o segundo em gás-natural.
22
Sua
grande produção destes dois recursos naturais possibilita que ela tenha maior poder de barganha no mercado e seja auto-suficiente. A região norte é a que possui as maiores reservas de petróleo da Rússia, em especial a Sibéria.
1.5 – O CLIMA, AS CARACTERÍSTICAS FÍSICAS DO TERRENO E AS DISTÂNCIAS COMO FATORES NEGATIVOS NA EXPLORAÇÃO DOS RECURSOS NATURAIS
Para um Estado não basta apenas ter os recursos naturais. É necessário ter as condições e meios adequados para explorá-los. Como vimos anteriormente, a Rússia possui vários recursos naturais de alto valor e comerciabilidade. Mas vimos também que sua geografia e clima dificultam a produção de alimentos e a construção de malhas ferroviárias e rodovias. Essas dificuldades se tornam obstáculos físicos e econômicos para o país, pois para explorar o petróleo, por exemplo, a estrutura requerida se torna muito mais dispendiosa do que em um país de clima ameno e geografia menos acentuada. O problema em questão não está na potencialidade dos maquinários em extrair os recursos, 22
http://www.global21.com.br/guiadoexportador/russia.asp Artigo “Rússia” acessado em 02/06/2007 às 10:00
25
mas nas condições que tornam a vida humana nessas regiões praticamente impossível. Alcançar as reservas significa atravessar montanhas, pântanos, lagos, áreas de tundra intermináveis e o frio intenso. O abastecimento de alimentos aos exploradores é caríssimo devido à dificuldade de acesso.
1.6 – A FORMAÇÃO DO POVO CHECHENO: DESCENDENTES DE TRIBOS AUTÓCTONES
Em geral, quando pensamos na Chechênia, pensamos em um povo russo que se encontra em uma região vizinha à Rússia. No entanto esse pensamento é equivocado, pois os chechenos têm origens mais antigas do que possa parecer e possuem etnias e religiões diversas, constituindo um povo com uma identidade própria. Descendentes de tribos autóctones, ou seja, indígenas, repelidas para as montanhas pelos alanos (povo nômade iraniano com origem no nordeste do Cáucaso) no século VIII, os chechenos eram criadores nômades organizados em clãs. O domínio russo no Cáucaso começou no século XVIII, com a tentativa de Catarina, a Grande, de anexar a região pela força. No entanto, os invasores russos se depararam com uma resistência inesperada por parte dos muçulmanos caucasianos, os quais se uniram ao líder espiritual Shaykh Mansur Ushurma. Este místico guerreiro muçulmano checheno declarou luta, o jihad
23
, contra os russos. Em 1785, ele e seus muçulmanos
derrotaram o exército czarista, no rio Sunzha, formando sob seu governo o que hoje é conhecido como Daguestão e Chechênia. Shaykh Mansur liderou uma organização islâmica mística que surgiu no século XIV, a qual era um ramo da ordem Sufi Naqshbandi,
23
Esforço, combate pessoal com vistas ao aperfeiçoamento moral. Pode levar ao combate pelo caminho de Deu, guerra religiosa legal contra os apóstatas, os dissidentes e os pagãos que se recusam a se converter à “verdadeira fé”. Fonte: DEL VALLE, Alexandre. Guerras contra a Europa, Rio de Janeiro. Ed. Bom Texto, 2003 p. 370
26
na Ásia Central. O sufismo
24
, também conhecido como misticismo islâmico, se espalhou
rapidamente no Cáucaso e na Ásia Central, devido às atividades missionárias de estudiosos e místicos sufis itinerantes, denominados shaykhs populares ("amigos de Deus"). O culto sufi dos santos foi condenado por líderes mulçumanos tradicionais como uma prática não islâmica, no entanto, o sufismo ajudou para que mais pessoas das camadas populares se convertessem para o Islã, se tornando uma poderosa fonte de orientação espiritual e identidade social. Os shaykhs dirigiam pequenas organizações compostas por discípulos – os murids - unidos por juramentos de obediência absoluta. Os discípulos mais velhos partiam para as montanhas no intuito de espalhar a doutrina nos vilarejos. Mesmo depois da morte de Shaykh Mansur na prisão em 1793, seus discípulos prosseguiram sua resistência contra os russos. 25 Em 1824, vários líderes sufis naqshbandis denominados imames, iniciaram uma guerrilha contra a ocupação russa no Daguestão e na Chechênia a qual durou por mais de 30 anos. Imam Shamil, os mais famoso guerreiro sufi, criou um Estado islâmico na Chechênia e no Daguestão antes de sua rendição em 1859 que, no entanto, durou pouco tempo. Após a prisão de Shamil, os russos se levantaram contra os "muridistas" restantes para pacificar a região. Com o rechaço aos naqshbandis uma nova ordem chamada Qadiri entrou na luta contra a dominação russa.
1.7 – A IMPLANTAÇÃO DO GOVERNO SOVIÉTICO EM 1918
24
Misticismo árabe e persa (assim chamado porque os mantos de seus adeptos eram feitos de pelôs de camelo) que se desenvolver a partir do séc. VIII por influencia do cristianismo. Fonte: ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Ed. Martins Fontes Ltda, 1998 p. 928
25
http://www.geocities.com Artigo: “Rússia e Chechênia: raízes religiosas do conflito” Acessado em 06/06/2006 às 13:00
27
A Chechênia foi dominada pelo governo soviético em 1918, sendo palco de inúmeros combates entre bolcheviques e russos brancos, comandados pelo general Denikine no período de 1919 e 1920. De 1920 a 1922 foi incluída na República Socialista Soviética Autônoma (RSSA) das montanhas recebendo, em novembro de 1922, o estatuto de região autônoma (RA). A Chechênia integrou a República Socialista Federativa Soviética da Rússia até 1934, sendo agregada à RA dos inguchétios para formar a RA da Checheno-Inguchétia e mais tarde, em dezembro de 1936, passou a ser RSSA da Checheno-Inguchétia. A RSSA foi dissolvida no início da II Guerra Mundial, devido à ocupação do exército alemão de julho à dezembro de 1942 a fim de atingir o petróleo soviético.
26
Acusados de traição, os chechenos e os inguchétios foram deportados para
Ásia Central e só durante o processo de desestalinização puderam regressar. Em 1957 a RSSA da Checheno-Inguchétia foi reconstituída.
1.8 – A CHECHÊNIA NA 2ª GUERRA MUNDIAL
Em 1940 e 1943, durante a II Guerra Mundial, Stalin respondeu brutalmente às ações na Chechênia provindas de inimigos de guerra. O líder russo acusou certas irmandades islâmicas de colaborarem com os nazistas, o que era pouco provável, mandando em 1944 seis nacionalidades caucasianas para campos especiais na Ásia central. Entre elas incluía toda a população chechena e ingush. Cerca de um milhão de muçulmanos foram deportados e uma parte considerável foi morta. Cerca 50% da população chechenaingush, 250.000 pessoas, desapareceu após o fim da república em fevereiro de 1944.
26
http://www.clubemundo.com.br/revistapangea Artigo: “Ossétia do Norte, Chechênia e os conflitos no Cáucaso” acessado em 06/06/2006 às 13:30
28
Milhares de chechenos e outros grupos passaram mais de uma década em campos de trabalho isolados no Cazaquistão. 27
1.9 – 1991: A INDEPENDÊNCIA DA CHECHÊNIA E A SEPARAÇÃO DOS INGUCHÉTIOS A região do Cáucaso possui cerca de 25 milhões de pessoas e o traçado de suas fronteiras foi demarcado de maneira artificial entre 1922 e 1936 pelo ditador soviético Josef Stalin. 28 Em 1989, os chechenos representavam 58% da população, os inguchétios 13% e os russos 23%. A independência da Chechênia foi proclamada em 1991 por nacionalistas chechenos conduzidos pelo general Djokar Dudaiev obtendo, desta forma, o reconhecimento por parte da Rússia da sua separação dos inguchétios os quais, por sua vez, criaram em dezembro de 1992 a RA da Inguchétia. No entanto, a Chechênia recusou-se a assinar o tratado federal russo e Moscou não quis reconhecer a independência da república chechena.
1.10 – A CAMPANHA MILITAR RUSSA DE 1994
Após um bloqueio econômico de dois anos, o presidente russo Boris Yeltsin decidiu restabelecer a ordem pela força em dezembro de 1994 através de uma campanha militar
27
http://www.geocities.com Artigo: “Rússia e Chechênia: raízes religiosas do conflito” Acessado em 06/06/2006 às 13:00 28
http://www.clubemundo.com.br/revistapangea Artigo: “Ossétia do Norte, Chechênia e os conflitos no Cáucaso” acessado em 06/06/2006 às 13:30
29
extremamente violenta em especial para os civis, os quais foram vítimas de bombardeios intensos. Os russos não obtiveram nenhuma vitória decisiva, apesar de terem tomado Grozni em fevereiro de 1995, pois depararam-se com uma guerrilha bem armada mesmo após a morte do general Dudaiev em abril de 1996. Fatores levaram Boris Yeltsin a buscar uma solução para o conflito. Entre eles as numerosas perdas do exército russo, o sofrimento das populações civis, a contínua resistência chechena, a denúncia do conflito no cenário internacional, a opinião pública russa, o próprio exército e a aproximação da eleição presidencial da Rússia em junho e julho de 1996. O persistente afastamento das organizações humanitárias internacionais por parte do governo russo no front entre a Chechênia e a Ingushétia não impediu que estas transmitissem à sociedade internacional os horrores do conflito: centenas de civis mortos pelo exército russo e seus inúmeros crimes de guerra. A nação chechena teve suas principais estruturas destruídas e mais de 80.000 mortes29, correndo o sério risco de regredir seu desenvolvimento.
.
1.11– CHECHÊNIA: SOBERANIA RECONHECIDA NO SEIO DA FEDERAÇÃO EM 1996
Finalmente um acordo de paz negociado pelo general Lebed e o dirigente checheno Zelimkhan Iandarbiev foi assinado na cidade de Moscou em maio de 1996, reconhecendo a Chechênia como um Estado soberano na federação. Nas eleições de janeiro de 1997, o
29
http://www.clubemundo.com.br/revistapangea Artigo: “Moscou impõe sua pax no Cáucaso” acessado em 06/06/2006 às 14:00
30
antigo chefe do estado-maior das forças independentes chechenas e articulador dos acordos de paz com a Rússia, Aslan Maskhadov, foi eleito presidente. Em maio de 1997, é decretado o fim da guerra através de um tratado de paz assinado por Yeltsin e Maskhadov.
1.12 – O CONFLITO NO DAGUESTÃO DE 1999: ALASTRAMENTO ATÉ A CHECHÊNIA
Em agosto de 1999, um grupo de rebeldes integristas islâmicos declarou a criação de um Estado islâmico independente no Daguestão eclodindo em um novo conflito, liderado pelo chefe islâmico checheno Chamil Bassaev. A rebelião se consolidou e se alastrou até a Chechênia. A Rússia temia que uma possível independência chechena pudesse influenciar a região do Cáucaso, altamente estratégica, ameaçando seu controle na região e encadeando uma onda de tentativas de independência nas outras nações. Por representar uma área de interesse russa, os combates em Grozni entre os soldados russos e os rebeldes chechenos em janeiro de 2000, foram caracterizados pelo alto grau de violência.
.
1.13 – OS ATAQUES TERRORISTAS DOS GRUPOS SEPARATISTAS CHECHENOS
Através dos séculos, o Islã tem sobrevivido na Chechênia mesmo depois da perseguição czarista, depois soviética e, na atualidade, russa. Isso graças às poderosas e clandestinas fraternidades muçulmanas.
31
Do ponto de vista étnico e lingüístico, são mais de sete milhões de muçulmanos e os principais são os tártaros 30 e os chechenos. A primeira razão a qual impulsiona os russos a perseguirem esses povos é econômica, e consiste no fato de que ambos possuem reservas petrolíferas. A segunda é política, pois entre as demais ex-repúblicas russas e autônomas, somente os tártaros e os chechenos não ratificaram o Tratado da Federação Russa, o qual criou a presente Comunidade dos Estados Independentes de Yeltsin. Esta região caucasiana possui mais de trinta grupos étnicos, e os muçulmanos estabelecidos ali têm uma tradição de oposição ao governo russo que perdura à três séculos. Certos
grupos
movidos
por
nacionalismo,
ódios
étnicos,
independentismo,
descolonização, separatismo e enfrentamento Islã radical versus cristianismo ortodoxo promovem ataques terroristas na região do Cáucaso no intuito de forçarem a Rússia a permitir a independência chechena. A Chechênia vinha resistindo ao expansionismo moscovita por mais de um século e, na busca pela sua independência, fez ressurgir as máfias, o sentimento nacionalista e o Islã sunita. As péssimas condições de vida dos chechenos possibilitaram que estes assimilassem com mais facilidade o discurso dos missionários wahhabitas
31
, vindos da
Arábia Saudita e preparados financeiramente para pregar o chamado “islã integrista”. Os principais combatentes independentistas da Chechênia pertenciam a essa corrente islâmica, entre eles o tão conhecido Chamil Bassaev.
30
Povos mongóis e túrcidos que na Idade Média invadiram o oeste da Ásia e o leste da Europa. Habitam principalmente na região da Tartária (Federação Russa).Fonte: FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Aurélio – O dicionário da língua portuguesa. 3 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. p. 1929 31 O Wahhabismo é um movimento político-religioso puritano e ultra-ortodoxo de origem hanbalita surgido no século XVIII na Arábia. É a doutrina oficial do atual reino da Arábia Saudita. Fonte: DEL VALLE, Alexandre. Guerras contra a Europa, Rio de Janeiro. Ed. Bom Texto, 2003 p. 372
32
A configuração geográfica do Cáucaso caracterizada por elevadas e impenetráveis montanhas, vales isolados, cavernas e grutas formam um espaço perfeito para as táticas guerrilheiras. 32 O nome de Bassaev começou a surgir logo após a declaração de independência da Chechênia em 1991. Este líder terrorista não tinha o intuito de pregar o islã, e sim de combater militarmente as forças russas a fim de alcançar a autodeterminação de seu país. A Chechênia está posicionada em um ponto de conversão dos interesses petrolíferos da Rússia no mar Cáspio, por isso tem lutado até hoje pela sua independência. O primeiro ato terrorista de Bassaev, o qual o tornou mundialmente conhecido, foi o seqüestro de um avião russo com a finalidade de denunciar à imprensa internacional sua intenção em promover uma guerra contra a Rússia até que a Chechênia fosse reconhecida como uma nação independente e os direitos dos chechenos fossem respeitados. Foi então que, em 1994, Bassaev concorreu à presidência da república, classificando-se em segundo lugar e sendo chamado pelo presidente eleito a ocupar o lugar de primeiro ministro. Porém, Bassaev não teve sucesso em sua carreira política, retomando a guerra contra as autoridades russas em 1995. Os atentados de 11 de setembro de 2001 levaram a mídia internacional a especular uma possível ligação entre a Chechênia e o Afeganistão, afirmando que os separatistas chechenos eram treinados pelos talibãs nos campos da Al Qaeda sob o comando de Osama bin Laden. Em 1996 a união sagrada dos chechenos se rompeu após a vitória militar sobre Moscou, sendo submetida a um bloqueio territorial estabelecido pelas forças militares russas. 32
Schiling, Voltaire. Ocidente X Islã – Uma história do conflito milenar entre dois mundos Porto Alegre Ed. L&PM 2003 pag 167
33
O presente governo de Aslan Maskhadov, sem meio para reconstruir o país, permitiu que os wahhabitas estabelecessem feudos islâmicos e impusessem a lei corânica. 33 Proliferada a desordem no país, as máfias e o banditismo aproveitaram a situação caótica para desenvolver uma economia de rapina e criminalidade. A Chechênia foi se tornando gradativamente uma nação ingovernável, vista com temor pelas nações vizinhas e, aos poucos, abandonada pelos próprios habitantes os quais fugiam em busca de regiões mais seguras para viver. Assim como o Golfo Pérsico, a área do Cáucaso e do mar Cáspio são importantes e grandes reservatórios de petróleo e gás natural. Pela sua localização, a Chechênia se tornou o centro do interesse de duas partes que continuamente se confrontam: a Rússia e os fundamentalistas islâmicos. O Ocidente, em especial os Estados Unidos, também se interessa pela região, mas ainda não aplicou suas forças na área de forma coercitiva. Por isso a intensidade de combates: todos querem os recursos naturais os quais essa região possui.
.
1.13.1 – 2004: O ATAQUE À ESCOLA DE BESLAN
O ataque à escola de Beslan, na Ossétia do Norte, em 1 de setembro de 2004 chocou a sociedade internacional por seu grau de violência e crueldade com crianças que festejavam o início do ano escolar. Trinta homens e mulheres armados e munidos de cintos explosivos invadiram a escola e fizeram cerca de 1.200 reféns. O grupo formado
33
“Lei corânica” pode, também, ser definida como Sharia ou Lei Islâmica. Os países islâmicos são Estados religiosos onde não há uma separação entre governo e religião. As leis são baseadas na principal fonte de jurisprudência islâmica – o Corão. Fonte: http://www.publico.clix.pt Artigo: “Religiões” acessado em 02/06/2007 às 14:30
34
por terroristas chechenos manteve crianças e adultos capturados até o dia 3 de setembro e ameaçavam matar 50 crianças por cada combatente checheno morto e 20 por cada ferido, o que dificultou ainda mais a ação das forças russas. O grupo terrorista exigia a libertação de pessoas detidas na Inguchétia. O fim dos três dias de barbárie, imposto pela atribulada operação de resgate, foi marcado por 331 mortes e mais de 700 feridos. As forças de segurança russas foram criticadas pelas entidades internacionais e até mesmo pelo presidente Putin, pois evidenciaram sua incapacidade de resposta aos ataques terroristas. O líder do comando, Chamil Bassaev, declarou que as mortes poderiam ter sido evitadas caso o governo russo tivesse retirado suas tropas da Chechênia.
Os
familiares das vítimas acusaram Putin de negligência e de “conduzir o inquérito em função do cenário que lhes agrada”. 34
1.14 – A MORTE DE CHAMIL BASSAEV
No dia 10 de julho de 2006 morre Chamil Bassaev, terrorista número um da Rússia e principal comandante da guerrilha separatista chechena na República da Inguchétia, devido à uma ação do Serviço Federal de Segurança da Rússia, antiga KGB. Ele assumiu a autoria do massacre da escola de Beslan, o qual foi definido pela mídia como “o pior atentado terrorista da história da Rússia”. Desde 8 de setembro de 2004 o governo russo oferecia US$ 10 milhões para quem fornecesse informações que levassem à captura de Bassaev.
34
http://ano2004.sapo.pt Artigo: “Escola de Beslan” Acessado em 06/06/2007 às 14:50
35
No final de junho de 2006 Bassaev havia sido nomeado “vice-presidente” da Chechênia, chamada de Ichkeria pelos separatistas, após a morte do líder independentista AbdulKhalim Sadulayev. Às vésperas de sua morte, Bassaev agradeceu aos denominados mujahedin (combatente islâmico) iraquianos por terem assassinado quatro diplomatas russos no mês de junho em Bagdá.
1.15 – A CONFIGURAÇÃO POLÍTICA DA CHECHÊNIA NA CONTEMPORANEIDADE
De fato, a Chechênia ainda se caracteriza como uma nação que possui guerrilha e ataques terroristas. Todavia, a partir de 2005, as ondas de violência na região diminuíram consideravelmente, pois muitos ex-separatistas se uniram à Ramzan Kadyrov, atual primeiro-ministro e pró-Kremlin, e também devido à morte do ex-líder separatista Aslan Maskhadov. 35 Outra razão se deve ao fato de que uma parte considerável das lutas foi direcionada para outra bandeira ainda maior: Fronte do Cáucaso. Este movimento separatista clandestino na Chechênia comandado por Abdul Khalim Saidullayev, tem crescido aos poucos na região. Entre 1999 e 2000 a Rússia destruiu Grosny completamente sendo intitulada pelos jornais e revistas de “Cidade Fantasma”, que agora passa por uma restauração completa e, finalmente, começa a usufruir de estruturas básicas como rede elétrica, estradas asfaltadas, redes de esgoto, prédios importantes restaurados e novas construções. A Rússia vive um momento de crise econômica, tentando constantemente refinanciar o débito com os credores internacionais e manter a balança de pagamentos em equilíbrio. 35
http://www.otempo.com.br/internacional Artigo: “A reconstrução da Chechênia” de 29/05/06 acessado em 06/06/2006 às 16:00
36
Por ter sua economia interligada à Rússia e ter tido suas plantações e estruturas essenciais destruídas, a Chechênia encontra-se em estado de miséria; possuindo um dos menores índices de desenvolvimento do mundo. Mesmo com a atual crise na economia, a Rússia tem registrado um desenvolvimento dinâmico, diminuindo a pobreza e formando a classe média, na finalidade de recuperar a confiança e a esperança no futuro.
1.16 – A RÚSSIA NO INÍCIO DO SÉC. XXI: IMAGEM ABALADA NO ÂMBITO INTERNACIONAL
A lista de acusações do Ocidente contra a Rússia inclui: a violação da liberdade de imprensa; a ingerência violenta do Estado nos assuntos econômicos; a desigualdade de condições dos partidos políticos nas campanhas eleitorais; a situação na Chechênia, a política da Rússia em relação à Geórgia e às outras ex-repúblicas soviéticas. A mais recente acusação foi de atentado à democracia devido ao fato de a maioria parlamentar não ter desejado partilhar com as outras bancadas parlamentares os cargos dirigentes da Duma de Estado (câmara baixa do Parlamento russo). 36 O atentado ao teatro de Moscou em outubro de 2002 e o número de mortes em função da má condução dos policiais russos ao empilhar as pessoas desacordadas, porém vivas, e o atentado à escola de Beslan foram cruciais para levar a comunidade internacional à revolta diante da política de Putin. A Rússia perdeu sua antiga imagem de super potência provinda da Guerra Fria, a qual lutava politicamente de igual para igual contra os Estados Unidos e possuía alta tecnologia espacial e bélica. Perdeu o poder de impor temor às demais nações através de
36
http://www.brasil-russia.org.br Artigo: “A Rússia e o Ocidente” acessado em 06/06/2006 às 16:30
37
um governo ditatorial consolidado e agressivo em suas barganhas. Hoje, o Estado russo, nos remete apenas à clássica rotina do grande império que um dia caiu. A imagem que era de decadência foi crucialmente abalada pela incapacidade do governo russo em enfrentar e controlar os ataques terroristas chechenos e por suas investidas violentas contra civis. Em se tratando de Estados, uma das piores maneiras de se ter a “moral” baixa diante da sociedade internacional é ser acusado de infringir os direitos humanos e humanitários.
1.16.1 – A QUESTÃO DA VIOLAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS A violação dos direitos humanos na Rússia está diretamente ligada às operações antiterrorismo a qual emprega. Os crimes cometidos pelos terroristas chechenos não podem ser comparados aos cometidos pelas tropas russas, pois têm dimensões bem menores mesmo que sejam altamente violentos. Várias organizações de defesa dos direitos humanos, como a Human Rights Watch, têm acusado os russos e os chechenos próMoscou de crimes contra os civis na Chechênia onde, desde 1990, o exército russo tem aplicado uma "operação anti-terrorista". O Kremlim, obviamente, nega os crimes e argumenta que é impossível negociar com pessoas capazes de organizar um ataque terrorista contra crianças em Beslan.
.
38
CAPÍTULO 2 A TEORIA GEOPOLÍTICA DE HALFORD MACKINDER E O REALISMO OFENSIVO DE JOHN. J. MEARSHEIMER
O capítulo 1 apresentou as principais características geográficas e períodos mais relevantes da história da Chechênia interligada à da Rússia. O capítulo 2 apresenta a teoria geopolítica de Halford Mackinder e o Realismo Ofensivo de John J. Mearsheimer pois ambas se complementam para a realização deste estudo. A análise do conflito por uma perspectiva geopolítica e realista ofensiva, que será realizada no capítulo 3, se deve ao fato de o território da Chechênia ser repleto de recursos naturais, tais como petróleo, água e terrenos férteis para agricultura; e de estar estrategicamente localizada, sendo uma das portas de entrada da Rússia para a Europa. Apesar de seu território ser pouco vasto, a Chechênia constitui uma parte importante das capabilities russas, pois além dos recursos naturais, sua extensão territorial é repleta de oleodutos e gasodutos os quais transportam petróleo e gás natural aos países europeus e asiáticos.
2.1. HALFORD MACKINDER E A GEOPOLÍTICA DO HEARTLAND La geopolitica è prassi prima di essere dottrina; i popoli che la praticano non la studiano; però quelli che la studiano potrebbero essere indotti a praticarla : è perciò logico che i popoli che la praticano impediscano agli altri di studiarla” 37 Ernesto Massi, Processo alla Geopolitica, <<L’ora d’Italia>>, 8 giugno 1947.
37
“A geopolítica é praxi antes de ser doutrina; os povos que a praticam não a estudam; porém aqueles que a estudam poderiam ser induzidos à praticá-la: é, portanto, lógico que os povos que a praticam impeçam aos outros de estudá-la.”
39
A discussão central da teoria de Mackinder é sobre a disputa entre o poder terrestre e o poder marítimo em um mundo onde o sistema político é fechado 38 e entende que a história universal é baseada na causalidade geográfica. 39
2.1.2. MUNDO: SISTEMA POLÍTICO FECHADO No início do século XX as expansões das grandes potências européias estavam praticamente concluídas, dando fim à denominada época colombiana. Este período de expansões teve dois surtos simultâneos iniciados no século XV realizados a partir de dois pontos extremos da Europa: a expansão marítima portuguesa navegando pelo Atlântico e passando pelo sul do continente africano em direção às Índias e a expansão territorial russa partindo de Moscou em direção à região da Sibéria. A integração das diferentes regiões territoriais do globo terrestre completada no fim do século XIX através do terceiro surto expansionista realizado na Ásia e na África formou a sociedade internacional unificada da contemporaneidade. Com a evolução dos transportes marítimos e terrestres todas as áreas até então não exploradas, foram sendo dominadas através de uma rede de relações econômicas e políticas de cunho mundial. As terras restantes a serem exploradas no início do século XX não passavam de pântanos e desertos. Os grandes Estados hegemônicos rivais, em busca de uma divisão de mercado mundial, iniciaram uma corrida armamentista; o que acabou eclodindo em uma crise européia ainda mais grave. Por sistema político fechado, de acordo com Mackinder, entende-se que o cenário de ação é todo o planeta e, desta forma, era cada vez mais raro acontecimentos isolados ou regionais. Uma crise na mais longínqua região poderia ocasionar efeitos no centro da 38
De acordo com Mackinder “sistema político fechado” é a relação de interligação entre os Estados onde o cenário de ação é todo o planeta, tornando mais raro acontecimentos isolados. Fonte: ITAUSSU, Leonel. Quem tem medo da geopolítica? São Paulo: Ed. Hucitec; Edusp, 1999. p. 29 39 Mackinder explica que a história universal está ligada à virtude, sorte, fatores econômicos e geografia. Fonte: Op. Cit. p. 35
40
ordem internacional. As guerras locais passaram a colocar em risco a paz, pois poderiam tornar-se uma guerra mundial. Mackinder apontou pela primeira vez esse processo de interconexão política, física, econômica e militar no começo do século XX na Real Sociedade Geográfica: “De agora em diante, na era pós-colombiana, novamente nos defrontaremos com um sistema político fechado e, o que não tem menos importância, a sua esfera de ação será o mundo inteiro. Todas as explosões de forcas sociais que se produzam, em vez de se dissiparem num circuito circunvizinho de espaço desconhecido no qual dominam a barbárie e o caos, serão fielmente refletidas desde os mais distantes rincões do globo e, devido a isso, os elementos débeis do organismo político e econômico do mundo serão destruídos” 40 Mackinder observava o mundo como um âmbito sensível às ações dos Estados assim como o era na época colombiana, ações estas que tinham conseqüências para as demais nações. Quando ele fez esta formulação, em 1904, ela era audaciosa, vanguardista e inédita, pois ele confrontava uma mentalidade européia ainda vitoriana. 41
.
2.1.3. A CAUSALIDADE GEOGRÁFICA NA HISTÓRIA
40
ITAUSSU, Leonel. Quem tem medo da geopolítica? São Paulo: Ed. Hucitec; Edusp,1999. p. 30 A Era Vitoriana é definida entre os anos de 1837 e 1901 e possui este nome pois foi o período em que a Rainha Vitória reinou na Grã Bretanha. Foi exatamente o auge da Revolução Industrial e, apesar de marcar uma nova era cultural, o termo “mentalidade vitoriana” significa uma forma de pensar retrógrada e limitada. Portanto, a teoria geopolítica de Mackinder era revolucionária para seu tempo e propunha idéias que iam contra o senso comum e buscavam novas formas de análise para o sistema internacional. 41
41
A concepção de sistema político fechado permitiu a Mackinder desenvolver o conceito de causalidade geográfica na história universal no intuito de estudar os fatos históricos a luz dos fenômenos naturais e do espaço geográfico. As idéias de Mackinder quanto à influência da geografia na história têm uma visão materialista 42, unicausal 43 e teleológica 44 do mundo e da humanidade. A visão de Mackinder se estruturava no condicionamento da história pelas realidades geográficas, no enfrentamento entre o poder marítimo e o poder terrestre e no declínio do poder oceânico devido às evoluções dos instrumentos de força do poder continental. Para Mackinder “é o homem e não a natureza quem inicia, mas é a natureza quem dirige em grande parte.” 45 Em última instância, a liberdade de ação do homem, ou seja, sua virtù (virtude) está inexoravelmente ligada à sorte, ou fortuna, da economia e da geografia. 46 Mackinder explica que a história das sociedades está intrinsecamente ligada às características do meio ambiente: recursos naturais, clima, relevo, posição geográfica e espaço.
42
Mackinder define o “materialismo histórico” como uma tese que explica que a vida social e política são moldadas pelos meios de produção, sendo um método de análise para o estudo da História. Fonte: Op. Cit. p. 35 43 O conceito de “unicausalidade” é utilizado no intuito de inferir que para cada situação ou conseqüência de uma ação existe uma causa que a justifique. Ou seja, a visão unicausal de Mackinder é a de que existe uma causa central para os acontecimentos do mundo, ao contrário da visão multicausal a qual afirma que existem vários fatores para um determinado acontecimento. Fonte: http://cpl.revues.org Artigo: “The interpretation of the concepts ‘necessity’ and ‘sufficiency’ in forward unicausal relations” acessado em 02/06/2007 às 16:00 44 Teleologia: o mesmo que finalismo. É a doutrina que admite a causalidade do fim, no sentido de que o fim é a causa total da organização do mundo e a causa dos acontecimentos isolados. Fonte: ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Ed. Martins Fontes Ltda, 1998 p. 457 Verbete “Finalismo” 45 ITAUSSU, Leonel. Quem tem medo da geopolítica? São Paulo: Ed. Hucitec; Edusp, 1999. p.34 46 Op.Cit. p. 35
42
2.1.4. O MATERIALISMO GEOGRÁFICO DE MACKINDER
Segundo a visão mackinderiana, os desafios impostos pela natureza influenciam diretamente na história dos agrupamentos humanos moldando, decisivamente, o caráter das nações e definindo qual será a força a ser desenvolvida de forma predominante: marítima ou terrestre. Mackinder afirma que países insulares ou possuidores de extensas costas marítimas estão condicionados à desenvolver uma vocação oceânica em sua população. Seria uma espécie de predestinação às atividades navais e mercantis. Os exemplos mais preponderantes são os fenícios, cretenses e gregos na Antiguidade; e os ingleses, espanhóis, portugueses e holandeses na Era Moderna. Já os países de formação predominantemente terrestre favorecem o desenvolvimento de uma vocação continental em seus habitantes e de caráter expansionista. Os exemplos do Mundo Antigo são os citas e os persas; os germânicos e os mongóis na Idade Média; os russos e os alemães na Época Contemporânea. Os países com porções territoriais e litorâneas semelhantes possuíam um caráter híbrido ou anfíbio, o qual proporcionava o desenvolvimento simultâneo das duas vocações. Os exemplos de nações anfíbias são os cartagineses e romanos no Mundo Antigo, os sarracenos e os bizantinos na Idade Média; e os franceses e norte-americanos na Era Contemporânea. A partir da análise histórica, Mackinder observou que um país cujo poder terrestre era superior, poderia investir para obter mais recursos e, desta forma, tornar-se uma nação híbrida. Já o contrário, um poder marítimo ascender à posição de poder terrestre, era muito mais raro na história.
2.1.5. OCEANISMO VERSUS CONTINENTALISMO
43
Aceitar o fato de que a geografia é essencial na construção da história, é o elementochave para conceituar a rivalidade entre o poder oceânico e o poder continental. Mackinder acreditava que o decorrer dos fatos históricos poderia ser interpretado por meio da oposição oceanismo versus continentalismo, pois diversas guerras travadas ao longo da história eram entre potências marítimas e potências terrestres. As potências marítimas desfrutavam da localização insular e linhas exteriores no intuito de controlar as regiões litorâneas e manter as potências terrestres encurraladas dentro de seus próprios limites. Já as potências continentais usufruíam de sua posição central e linhas interiores para expandir em direção à territórios periféricos e conquistar saídas para os oceanos. Seguindo este modelo, na Antiguidade, as guerras greco-pérsicas e os entre atenienses e espartanos eram um exemplo do confronto entre o poder marítimo e o poder terrestre. Na Época Moderna a Guerra dos Sete Anos entre França – poder terrestre - e Inglaterra – poder marítimo - é outro exemplo desta disputa. No século XIX a rivalidade entre Inglaterra e Rússia representou a luta entre o poder terrestre czarista e o poder marítimo britânico, conhecido como Big Game. 47 São inúmeros os exemplos de rivalidade entre oceanismo e continentalismo na história, provando empiricamente a teoria mackinderiana. 48 Mackinder defendia que um poder continental poderia tornar-se um poder anfíbio caso conseguisse estruturar uma frente oceânica forte o suficiente para considerá-lo, também, uma força marítima. 47
ITAUSSU, Leonel. Quem tem medo da geopolítica? São Paulo: Ed. Hucitec; Edusp, 1999 p. 38 O fato de existirem exemplos que provem empiricamente a rivalidade entre oceanismo versus continentalismo exposta por Mackinder, não isenta sua teoria da práxis de um conceito essencial da epistemologia, ou filosofia da ciência, a “falseabilidade”. Fonte: ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Ed. Martins Fontes Ltda, 1998 p. 183 Verbete “Conhecimento, Teoria do” 48
44
Reafirmando que, para o geógrafo britânico, a situação contrária é bem menos propícia: um poder marítimo estruturar um exército e avançar em busca de extensão territorial.
2.1.6. A ILHA MUNDIAL E O CORAÇÃO CONTINENTAL A geografia e a história determinaram verdades axiomáticas como o fato de a Terra possuir seis continentes e quatro oceanos. Através de suas observações, Mackinder desafiou essas verdades ao afirmar que havia uma unicidade da superfície líquida do planeta através do conceito Grande Oceano (Great Ocean) - um único oceano totalmente interligado cujas águas eram contínuas e cobriam três quartos do globo terrestre. Dentro do um quarto restante de terras, dois terços correspondiam à Europa, Ásia e África os quais, na perspectiva mackinderiana, constituíam um único continente. Os montes Urais e o canal de Suez interligavam, ao invés de separar, a Eurásia-África as quais estavam envolvidas pelo Grande Oceano formando, portanto, a Ilha Mundial (World Island).
45
Fonte: http://www.upf.edu/materials/fhuma/portal_geos/intgeo/g2/t2/images/kno_391.jpg Mackinder, em sua teoria geopolítica, afirmava que quem conquistasse a Pivot Area (Heartland)e, em seguida, conquistasse o Inner or Marginal Crescent (World Island), poderia dominar o Insular Crescent, portanto, o mundo.
O restante da parte terrestre era formado pela Oceania e Américas as quais seriam as ilhas-continente menores que gravitavam ao redor da World Island. A tradicional divisão do planeta deu espaço à revolucionária concepção de uma extensa ilha central e três ilhas periféricas menores envolvidas por um Grande Oceano. Segundo Mackinder, oitenta e cinco por cento da população mundial na época habitava na Ilha Mundial, tornando-a basilar tanto por sua densidade populacional quanto por sua extensão geográfica.
46
A Europa passa a ser uma das penínsulas da Eurásia e, cartograficamente, ela cede sua posição central dando lugar à Pivot Área (área-pivô), sendo esta a região basilar da massa terrestre eurasiática. A área-pivô, também denominada de coração continental (Heartland), é circundada pela Europa, Oriente Próximo, Índia e China. Nessas quatro regiões marginais concentravamse dois terços da população mundial do início do século XX. A área-pivô era povoada por tribos nômades-pastoris que invadiam continuamente as regiões marginais que, de acordo com Mackinder, ajudaram no desenvolvimento da civilização européia pois forçou que a mesma reagisse com sucesso às investidas dessas tribos. Foram as invasões asiáticas do império mongol versus as reações européias encabeçadas pela expansão territorial russa que embasaram a teoria do poder terrestre. O conceito chave desta teoria esta na noção do Heartland podendo, também, ser designada de área-pivô, região-eixo, Terra Central ou coração continental. Esta idéia estratégica foi concebida por Mackinder no início do século XX e, de acordo com o geopolítico, provada empiricamente através das duas grandes guerras mundiais. O Heartland designa o núcleo da massa da Eurásia, coincidindo com as fronteiras da Rússia, abrangendo 23 milhões de Km2. No sentido leste-oeste esta região compreendia dos confins da Sibéria à massa territorial russa situada entre os mares Branco e Cáspio. De norte a sul, estendia-se das costas do Oceano Ártico aos desertos e planaltos da Ásia Central. Compreendia, geograficamente, a Sibéria, Mongólia, Tibet, Pérsia, Europa Oriental até as margens do rio Elba e Danúbio, Rússia e a porção oriental da Alemanha.49
49
ITAUSSU, Leonel. Quem tem medo da geopolítica? São Paulo: Ed. Hucitec; Edusp, 1999 p. 55
47
A perspectiva Mackinderiana era a de que “quem domina a Europa Oriental controla o Heartland; quem domina o Heartland controla a World Island; quem domina a World Island controla o mundo.” 50 O Heartland era, na descrição de Mackinder, a região de planícies mais extensa do planeta. Seus rios desembocavam nos mares do interior da Eurásia, tornando o coração continental praticamente isolado do mundo exterior. Os povos nômades-pastoris da Ásia Central tinham excelentes condições de locomoção devido à topografia plana da região. Todos estes aspectos físicos tornam o Heartland uma fortaleza natural à invasão do poder oceânico, favorecendo o aprimoramento do poder terrestre da potência que viesse a conquistar o coração continental que, por sua vez, possuía suas linhas costeiras formadas pelas quatro regiões que se articulavam ao redor desta Terra Central. A costa da Europa era voltada para o Atlântico; a Índia para o oceano Índico; a China para o Pacífico e o Oriente Próximo era circundado pelos mares Cáspio, Negro, Arábico, Vermelho e Mediterrâneo. Essas regiões anfíbias eurasianas localizadas ao redor do Heartland foram denominadas por Mackinder de Inner Crescent e eram o palco do confronto entre o poder terrestre e o poder marítimo, pois o primeiro poder procurava constantemente expandir-se em direção às regiões periféricas no intuito de obter saída para o oceano. O Inner Crescent, ou Crescente Interno, também pode ser visto como uma barreira natural utilizada para impedir o crescimento terrestre em direção aos mares e mantê-lo encurralado no interior da Eurásia.
.
50
ITAUSSU, Leonel. Quem tem medo da geopolítica? São Paulo: Ed. Hucitec; Edusp, 1999 p. 56
48
2.2. O REALISMO OFENSIVO DE JOHN J. MEARSHEIMER 51
A política internacional, de acordo com Mearsheimer (2001), sempre foi cruel e perigosa. Ele apresenta uma teoria que desafia a visão otimista no que concernem as relações entre as grandes potências e explica que a meta principal dos Estados é maximizar sua parcela do poder mundial, o que significa ganhar poder às custas de outros Estados (MEARSHEIMER: 2001: 2). Nos tópicos que se seguem, apresentaremos os pontos cruciais da teoria de Mearsheimer como, por exemplo, o conceito de anarquia, a luta dos Estados pelo poder, a importância da riqueza para a maximização do poder, a primazia do poder terrestre e as estratégias de sobrevivência. “Já que nenhum Estado é capaz de atingir a hegemonia global, o mundo está condenado à competição perpétua entre as grandes potências.” 52
2.2.1. ANARQUIA E A LUTA PELO PODER A teoria de Mearsheimer é focada nas grandes potências, pois estas possuem um impacto maior nos acontecimentos da política internacional.
Os Estados de maior
preponderância no cenário internacional estão sempre procurando por oportunidades para aumentar seu poder à custa de seus rivais, tendo sempre a hegemonia 53 como sua meta final (MEARSHEIMER 2001: 29). A explicação de Mearsheimer sobre o porquê de os Estados buscarem a maximização de seu poder e a hegemonia, está baseada em cinco
51
Os tópicos apresentados a seguir referem-se à obra MEARSHIEMER, John J. The tragedy of great power politics, New York: Ed. W.W. Norton & Company 2001 52 “Since no state is likely to achieve global hegemony, however, the world is condemned to perpetual great-power competition” Op. cit. p. 2 53 O estado de hegemonia, ou o hegemon, é aquele que possui tanto poder ao ponto de dominar todos os outros Estados no sistema internacional e possui os melhores recursos militares fazendo com que os demais não representem uma ameaça grave à sua soberania. Em essência, o hegemon é a única grande potência no sistema. Fonte: MEARSHIEMER, John J. The tragedy of great power politics, New York: Ed. W.W. Norton & Company 2001 p. 40
49
suposições relacionadas ao sistema internacional as quais são aspectos importantes do mesmo. A primeira suposição é a de que o sistema internacional é anárquico, o que não significa que este seja caótico ou caracterizado pela desordem. A noção realista de anarquia não tem nada a ver com conflito; e sim com um princípio de ordem o qual compreende um sistema de Estados independentes os quais não possuem uma autoridade supranacional. Mais simplificadamente “não há governo sobre os demais governos.” 54 A segunda suposição é a de que as grandes potências inerentemente possuem alguma capacidade militar ofensiva, a qual as dá os recursos para prejudicar ou destruir umas às outras. Segundo Mearsheimer (2001), os Estados são potencialmente perigosos, e mesmo que alguns possuam menos poder militar ou até nenhum, os indivíduos poderiam ainda assim usar seus braços e pernas para atacar a população do Estado inimigo (MEARSHEIMER: 2001: 30). Mearsheimer ilustra essa suposição com a frase “Para cada pescoço existem duas mãos para sufocá-lo.” 55 A terceira suposição afirma que um Estado nunca pode estar certo sobre as intenções dos outros Estados. Mais especificamente, nenhum Estado pode ter certeza de que o outro Estado não irá utilizar sua capacidade militar ofensiva para atacá-lo. Isso não significa que estes tenham, necessariamente, intenções hostis. A princípio, ele pode ter intenções benignas, mas é impossível ter cem por cento de certeza. Além do mais, as intenções dos Estados mudam abruptamente, podendo ser benigna em um momento e hostil no outro. Mearsheimer (2001) argumenta que as grandes potências se comportam ofensivamente pois é a melhor maneira de garantir a segurança em um mundo anárquico (MEARSHEIMER: 2001: 31).
54
MEARSHIEMER, John J. The tragedy of great power politics, New York: Ed. W.W. Norton & Company 2001 p. 30 55 “For every neck, there are two hands to choke it” Op.Cit. p. 31
50
A quarta suposição é a de que a sobrevivência
56
é a meta principal dos Estados. Estes
buscam manter a integridade de seu território e a autonomia de sua política doméstica. A sobrevivência sobrepuja outros motivos porque uma vez que o Estado é conquistado, ele perde a possibilidade de perseguir outros alvos. O líder soviético Josef Stalin pontuou bem sobre a questão da sobrevivência em 1927 “Nós podemos e devemos construir o socialismo na União Soviética. Mas para tal nós devemos, antes de tudo, existir”
57
. Os
Estados, de fato, perseguem outros objetivos, mas segurança é o primordial. A quinta suposição defende que as grandes potências são atores racionais. Eles são conscientes sobre seu ambiente externo e eles raciocinam estrategicamente sobre como sobreviver no mesmo. Eles consideram, em particular, as preferências dos outros Estados, como seu comportamento pode afetar os demais Estados e suas estratégias de sobrevivência. Além disso, os Estados são atentos às conseqüências de suas ações à curto e longo prazo (MEARSHEIMER: 2001: 31). Mearsheimer (2001) enfatiza que nenhuma das cinco regras isoladas tem a intenção de afirmar que as grandes potências, como regra geral, devem comportar-se de forma agressiva em relação aos demais Estados. A única suposição comum à todos os Estados é a da sobrevivência a qual, por si só, é uma meta inofensiva. De acordo com o teórico, quando as cinco suposições são casadas, elas criam incentivos poderosos para que as grandes potências pensem e ajam agressivamente em relação às
56
“Para os realistas, o interesse nacional do Estado é algo predeterminado. Esse interesse nacional é a sobrevivência do Estado e sua permanência como ator. Essa sobrevivência é o interesse nacional supremo e fundamental que deve levar à mobilização de todas as capacidades nacionais e ao qual se submetem todos os demais interesses.” Fonte: NOGUEIRA, João Pontes; MESSARI, Nizar. Teoria das Relações Internacionais – Correntes e Debates. Rio de Janeiro: Ed. Elsevier, 2005 p. 31 57 “We can and must build socialism in the Soviet Union. But in order to do so we first of all have to exist” Fonte: MEARSHIEMER, John J. The tragedy of great power politics, New York: Ed. W.W. Norton & Company 2001 p. 31
51
outras. São três os padrões de comportamento: medo, auto-ajuda
58
e maximização do
poder (MEARSHEIMER: 2001: 32). As grandes potências temem umas às outras, observam o cenário internacional com desconfiança, buscam antecipar o perigo e enxergam os outros Estados como inimigos em potencial. O medo é uma força motivadora importante da política internacional. Cada Estado tende a achar-se vulnerável e solitário, assim como afirma Mearsheimer (2001) na frase “Na política internacional, Deus ajuda aqueles que se ajudam.”
59
As alianças existem, mas
são somente casamentos temporários de conveniência. Operando em um mundo de self-help, ou auto-ajuda, os Estados quase sempre agem de acordo com seu próprio interesse e não se subordinam aos interesses de outros Estados, ou aos interesses da comunidade internacional. Apreensivos quanto às intenções dos outros Estados e conscientes de que eles operam em um sistema de auto-ajuda, as grandes potências rapidamente entendem que a melhor maneira para garantir sua sobrevivência é ser o Estado mais poderoso no sistema. Quanto mais forte um Estado for em relação aos seus potenciais inimigos, menor é a chance de que estes rivais o ataquem ou representem uma ameaça à sua sobrevivência. Desta forma, os Estados estão sempre atentos à distribuição de poder no sistema internacional.
58
“Auto-ajuda é um princípio cardeal do realismo nas relações internacionais, ou seja, nenhum Estado pode contar com outro para defender seus interesses e sua sobrevivência. Cada Estado só pode contar de maneira integral e completa com suas próprias capacidades para se defender e permanecer como ator nas relações internacionais.” Fonte: NOGUEIRA, João Pontes; MESSARI, Nizar. Teoria das Relações Internacionais – Correntes e Debates. Rio de Janeiro: Ed. Elsevier, 2005 p. 31 59 “In international politics, God helps those who help themselves.” Fonte: MEARSHIEMER, John J. The tragedy of great power politics, New York: Ed. W.W. Norton & Company 2001 p. 33
52
Mearsheimer (2001) observa o sistema como uma relação de ganhos relativos entre os Estados, ou seja, os ganhos de um representam, necessariamente, a perda de outro. Esta lógica é definida por ele como jogo de soma-zero (MEARSHEIMER: 2001: 33). Mesmo quando uma grande potência alcança uma vantagem em sua força militar em relação às outras, ela sempre continua a buscar por oportunidades para maximizar seu poder. De acordo com o teórico, a busca pelo poder só termina quando a hegemonia é alcançada, mesmo que esta meta seja praticamente impossível. Mearsheimer explica que é difícil determinar a quantidade de poder necessária para garantir a sobrevivência do Estado no presente e no futuro, e que o mesmo trabalha para garantir que os demais Estados não irão tirar vantagem. Esse jogo de soma-zero
60
leva o mundo à uma constante competição por segurança,
onde os Estados estão prontos para mentir, trapacear e usar força caso os ajude a ter vantagem sobre seus rivais. O dilema de segurança, o qual é um dos conceitos mais conhecidos na literatura de relações internacionais, reflete a lógica básica do realismo ofensivo. A essência do dilema consiste no axioma de que as medidas que um Estado toma para aumentar sua segurança, normalmente diminuem a segurança de outros Estados. Portanto, é difícil para um Estado aumentar suas chances de sobrevivência sem ameaçar a sobrevivência dos demais Estados. 61
60
O jogo de soma-zero simboliza para as relações internacionais os ganhos e perdas dos Estados. Quando um ganha o outro, necessariamente, perde. Já no jogo de soma não-zero os ganhos de um Estado não necessariamente implicam na perda do outro. Fonte: RAPOPORT, Anatol. “Lutas, Jogos e Debates” Brasília. Editora da Universidade de Brasília: 1981 61 A lógica do dilema de segurança pode ser ilustrada pela seguinte frase de Mearsheimer “The best defense is a good offense” ou seja “A melhor defesa é um bom ataque”. Fonte: MEARSHIEMER, John J. The tragedy of great power politics, New York: Ed. W.W. Norton & Company 2001 p. 36
53
2.3 - RIQUEZA E PODER
Apesar de existirem discordâncias sobre o conceito de poder e como dimensioná-lo, este ainda se encontra no centro da política internacional. Para Mearsheimer (2001) o poder está baseado nas capacidades materiais específicas que um Estado possui – as capabilities. A balança de poder, portanto, é uma função dos bens tangíveis, como divisões armadas e armas nucleares, que cada grande potência controla. Os Estados possuem dois tipos de poder: o poder latente e o poder militar. Ambas as formas de poder podem ser relacionadas, porém não são sinônimas, pois são derivadas de diferentes tipos de bens materiais. O poder latente se refere aos fatores sócio-econômicos os quais são utilizados para construir o poder militar. Segundo Mearsheimer (2001) é, em grande parte, baseado na riqueza do Estado e no tamanho de sua população. Grandes potências precisam de dinheiro, tecnologia e mão-de-obra para construir as forças militares e combater nas guerras; e o poder latente de um Estado se refere ao potencial bruto que pode ser aplicado ao competir com Estados rivais. Na política internacional, o poder efetivo de um Estado é, em última instância, uma função de suas forças militares e como estas comparam às forças militares dos Estados rivais (MEARSHEIMER: 2001: 55). Portanto, de acordo com Mearsheimer (2001), a balança de poder é, em grande escala, sinônimo de balança de poder militar. O poder militar é, em grande parte, baseado no tamanho e potência do exército de um Estado, sua força naval e aérea. Apesar de as duas últimas forças não serem decisivas para conquistar um território, segundo Mearsheimer (2001), elas certamente contribuem
54
para o sucesso de uma campanha militar.
62
“Os Estados mais poderosos são, portanto,
aqueles que possuem a força terrestre mais formidável.” 63 Desta forma, os Estados se preocupam imensamente com seu poder latente, pois riqueza abundante e população numerosa são pré-requisitos para a construção de, como citado anteriormente, de uma força militar formidável (MEARSHEIMER: 2001: 56).
2.3.1 - A BASE MATERIAL DO PODER No seu nível mais básico, poder pode ser definido, segundo Mearsheimer (2001), como os bens específicos ou recursos materiais disponíveis a um Estado. Outros acadêmicos definem poder em função das conseqüências das interações entre os Estados. Eles argumentam que tudo gira em torno do controle ou influência que um Estado exerce sobre os demais, é a habilidade de um Estado forçar o outro a fazer algo. Para Mearsheimer “o Estado mais poderoso é aquele que prevalece em uma disputa”
64
(MEARSHEIMER:
2001: 57). A balança de poder não é uma ferramenta de previsão altamente confiável do sucesso militar. A razão é que fatores não-materiais podem, às vezes, prover à um combatente vantagens decisivas em relação ao outro. Esses fatores incluem estratégia 65, inteligência, resolução, clima e doenças. Apesar de os recursos materiais isolados não decidirem as conseqüências das guerras, de acordo com Mearsheimer (2001), não há sombra de dúvida de que a probabilidade de sucesso é essencialmente afetada pela balança de recursos, especialmente em guerras prolongadas nas quais cada lado tenta desgastar o 62
Mearsheimer explica que guerras entre grandes potências são, basicamente, vencidas em terra. “Great-power wars are won mainly on the ground”. Fonte: MEARSHIEMER, John J. The tragedy of great power politics, New York: Ed. W.W. Norton & Company 2001p. 56. 63 “The most powerful states, therefore, are those that possess the most formidable land forces” Ibidem 64 “The most powerful state is the one that prevails in a dispute”. Mearsheimer coloca a seguinte questão “Quando duas grandes potências entram em conflito, não deveria o lado com capacidade material maior prevalecer?” Op. cit. p. 57 65 O conceito de estratégia é definido por Mearsheimer em “como o Estado emprega suas forças contra as forças do oponente.” Op. cit. p. 58
55
outro pela virtude da superioridade material. Quanto mais recursos um Estado tiver à sua disposição, mais ele tende a prevalecer na guerra. O teórico enfatiza a importância da estratégia.
66
Ele afirma que, provavelmente, é o mais
importante dos fatores não-materiais. Uma estratégia inteligente pode permitir um Estado menos poderoso de atingir a vitória (MEARSHEIMER: 2001: 58). Ele exemplifica sua teoria através da derrota de Napoleão para a Rússia em 1812 devido ao inverno rigoroso, doenças que levaram o exército francês a enfraquecer e à inteligente estratégia russa. 67 Diante da possibilidade de vitória, alguns Estados mais fracos iniciarão guerras contra os Estados mais potentes. 68 Segundo Mearsheimer, há três razões para não equiparar poder e resultados. Em primeiro lugar, quando focamos nas conseqüências se torna praticamente impossível avaliar a balança de poder antes de um conflito, já que esta pode ser determinada apenas depois que observarmos o lado vitorioso. Em segundo lugar, essa abordagem pode levar à conclusões não plausíveis. Por exemplo: a Rússia derrotou os exércitos de Napoleão em 1812, mas ela não era mais poderosa do que a França. Porém, definindo o poder em termos de resultados, podemos argumentar que a Rússia era mais poderosa do que a França. Um segundo exemplo é a Guerra do Vietnã (1965-72). Os Estados Unidos eram infinitamente mais poderosos do que o Vietnã do Norte, mas ainda assim este Estado
66
“Considerações e decisões relativas ao emprego do meio enfrentamentos para a produção dos propósitos específicos de uma determinada guerra”. Fonte: PROENÇA, Jr; et. Al. Guia de Estudos de Estratégia, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999 67 O exército russo, ao invés de enfrentar os franceses, foram recuando em seu próprio território em direção ao leste, enquanto o exército francês se deparava com chuvas torrenciais, frio intenso, vilas desertas sem alimentação ou recursos que pudessem ser usurpados e doenças causadas pelo frio e exaustão dos combatentes diante de condições tão precárias. Fonte: MEARSHIEMER, John J. The tragedy of great power politics, New York: Ed. W.W. Norton & Company 2001 p. 59 68 Ibidem.
56
mais fraco foi capaz de derrotar o mais forte devido à fatores não-materiais que forjaram a balança de poder, como a estratégia e a tática 69 utilizados pelos vietcongues. Terceiro, um dos aspectos mais interessantes das relações internacionais é como o poder, o qual é um meio, afeta conseqüências políticas as quais são fins (MEARSHEIMER: 2001: 60).
2.3.2 - POPULAÇÃO E RIQUEZA: CONDIÇÕES PARA O PODER MILITAR O poder latente constitui os recursos sociais dos quais um Estado tem disponível para construir suas forças militares. Apesar de existirem variações de recursos, o tamanho da população de um Estado e sua riqueza, são os componentes mais importantes para gerar o poder militar. O tamanho da população importa bastante, pois grandes potências requerem grandes exércitos os quais podem ser somente alcançados em países com população numerosa. Por exemplo, países com pequenas e médias populações não podem alcançar o status de grande potência em um mundo onde a Rússia, Estados Unidos e China possuem, respectivamente, 147 milhões, 281 milhões e 1,24 bilhões de habitantes. 70 O tamanho da população também possui importantes conseqüências econômicas, pois segundo
Mearsheimer
“somente
grandes
populações
podem
produzir
grandes
riquezas.”71 Para Mearsheimer (2001), riqueza é importante, pois um Estado não pode construir uma força militar poderosa se não tiver dinheiro e tecnologia para equipar, treinar e modernizar
69
“Considerações e decisões relativas ao emprego do meio forças – físicas e morais – para os propósitos do enfrentamento. Fonte: PROENÇA, Jr; et. Al. Guia de Estudos de Estratégia, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999 70 MEARSHIEMER, John J. The tragedy of great power politics, New York: Ed. W.W. Norton & Company 2001 p. 61 71 “Only large populations can produce great wealth”. Ibidem.
57
continuamente suas forças de batalha. Além do mais, os custos das guerras entre grandes potências são enormes. A despeito do tamanho da população e riqueza serem fatores essenciais para o poder militar, Mearsheimer (2001) usa a riqueza individualmente para medir o poder potencial. Essa ênfase na riqueza não se deve a fato de ela ser mais importante do que a população, mas ao fato de a riqueza incorporar as dimensões demográficas e econômicas do poder. Como mencionado anteriormente, um Estado deve ter uma população numerosa para produzir uma grande riqueza. Desta forma, é razoável afirmar que Estados possuidores de uma riqueza abundante terão, também, grandes populações. No entanto, não é praticável utilizar o tamanho da população para avaliar o poder latente, pois o número da população geralmente não reflete as diferenças das riquezas entre os Estados (MEARSHEIMER: 2001: 61). Em suma, “uma vasta população não garante uma grande riqueza, mas uma grande riqueza de fato requere uma vasta população”. 72 O conceito de riqueza tem vários significados e pode ser medido de diferentes formas. É importante escolher um indicador de riqueza que reflita o poder do Estado. Mais especificamente, ele deve capturar a riqueza mobilizável do Estado e seu nível de desenvolvimento tecnológico. O termo riqueza mobilizável se refere aos recursos econômicos que um Estado tem à sua disposição para construir as forças militares. É mais importante do que a riqueza como um todo, pois o que importa não é simplesmente quão rico um Estado pode ser, mas o quanto desta riqueza está disponível para ser gasta na defesa nacional. É, também, essencial ter indústrias que produzam as mais novas e sofisticadas tecnologias, pois estas são, invariavelmente, incorporadas aos armamentos mais avançados.
72
“A large population does not ensure great wealth, but great wealth does require a large population” MEARSHIEMER, John J. The tragedy of great power politics, New York: Ed. W.W. Norton & Company 2001 p. 62
58
O Produto Interno Bruto (PIB)
73
é uma ferramenta para se medir a riqueza de um Estado
e, apesar de muitas vezes não capturar diferenças importantes na riqueza mobilizável e na tecnologia dos diferentes Estados, ele faz uma análise razoável dessas duas dimensões de riqueza – a mobilizável e a tecnologia – quando as grandes potências possuem níveis similares no desenvolvimento de sua economia (MEARSHEIMER: 2001: 62). Portanto, segundo Mearsheimer (2001), é possível que dois Estados tenham PIB’s similares mas tamanhos de população e níveis de industrialização diferentes. O teórico exemplifica da seguinte forma: um Estado pode ter uma indústria de base fraca, mas uma população vasta a qual uma porção significativa está empregada na agricultura, enquanto outro Estado é altamente industrializado, mas consideravelmente pouco populoso. Estados altamente industrializados possuem, invariavelmente, mais riqueza excedente para investir em defesa do que os Estados semi-industrializados, principalmente porque grande parte dos produtos produzidos pela classe camponesa é consumida no local pelos próprios camponeses. Somente os Estados com indústrias mais avançadas são capazes de produzir grandes quantidades de armamentos sofisticados os quais os militares necessitam para sobreviver em combate.
2.4 - A PRIMAZIA DO PODER TERRESTRE
73
“O Produto Interno Bruto (PIB) é o somatório de todos os bens e serviços finais produzidos dentro do território nacional num dado período, valorizados a preço de mercado, sem levar em consideração se os fatores de produção são de propriedade de residentes ou não-residentes.” Fonte: VASCONCELLOS, Marco Antonio S.; GARCIA, Manuel E. Fundamentos de Economia. São Paulo: Ed. Saraiva, 2003 p. 104
59
De acordo com Mearsheimer (2001), o poder na política internacional é, em grande escala, um produto das forças militares de um Estado. Grandes potências, porém, podem obter diferentes tipos de forças de combate e o quanto o Estado adquire de cada força tem implicações importantes para a balança de poder. “O poder terrestre é a forma dominante de poder militar no mundo moderno.”
74
O poder
de um Estado está amplamente embutido em seu exército e na força naval e aérea que dão suporte às forças terrestres. Em linhas gerais, “os Estados mais poderosos possuem os mais formidáveis exércitos”.
75
Desta forma, ao medir a balança do poder terrestre
temos um indicador bruto, porém seguro, do poder relativo das grandes potências rivais. Grandes massas de água limitam o poder de projeção das forças terrestres. Quando contrapomos exércitos a uma grande área de água como o Oceano Atlântico para que combatam entre si, provavelmente nenhum deles terá muita capacidade ofensiva contra seu rival (MEARSHEIMER: 2001: 83). O poder parador das águas é de grande valor não apenas por ser um aspecto central do poder terrestre, mas também por possuir conseqüências importantes para o conceito de hegemonia. Especialmente, segundo Mearsheimer, pela presença de oceanos em grande parte da superfície terrestre torna possível para qualquer grande potência alcançar a hegemonia global. O teórico argumenta que o poder terrestre é o instrumento militar decisivo. Guerras são vencidas por grandes batalhões e não por frotas aéreas ou navais. O maior poder é o Estado com o exército mais forte. Os padrões de aliança formados durante a Guerra Fria (1945-1991) são evidências de que o poder terrestre é o principal componente do poder militar. Em um mundo dominado
74
“Land power is the dominant formo f military power in the modern world.” Fonte: MEARSHIEMER, John J. The tragedy of great power politics, New York: Ed. W.W. Norton & Company 2001 p. 83 75 “The most powerful states possess the most formidable armies”. Ibidem
60
por duas grandes potências, poderíamos esperar outros Estados-chave para juntarem forças com a potência mais fraca para conter a mais forte (MEARSHEIMER: 2001: 84). Durante a Guerra Fria, os Estados Unidos eram mais ricos em relação à União Soviética e ainda possuíam vantagens significativas em sua força naval, em suas bombas estratégicas e mísseis nucleares.
76
Todavia, França, Alemanha Ocidental, Itália, Japão,
Reino Unido e, eventualmente China; consideraram a União Soviética o Estado mais poderoso no sistema. O fato é que os Estados aliados aos Estados Unidos o fizeram porque temiam o exército soviético, e não o exército americano (MEARSHEIMER: 2001: 85). Mearsheimer explica que o exército tem uma importância suprema na guerra, pois é o instrumento militar principal para conquistar e controlar um território que, por sua vez, é o objetivo político fundamental em um mundo de Estados essencialmente territoriais. Para o teórico o poder terrestre tem o potencial para ganhar grande parte da guerra por si só. O motivo principal para tal afirmação se deve ao fato de ser difícil coagir uma grande potência e, em especial, destruir a economia de um inimigo somente através de bloqueios ou bombardeios. Duas afirmações de Mearsheimer ilustram bem suas idéias sobre o poder terrestre: “Somente o exército pode derrotar o oponente rapidamente”
77
e “O
potencial ofensivo de um Estado está, em grande parte, embutido em seu exército.” 78
2.4 - ESTRATÉGIAS DE SOBREVIVÊNCIA
76
MEARSHIEMER, John J. The tragedy of great power politics, New York: Ed. W.W. Norton & Company 2001 p. 85 77 “Only armies can expeditiously defeat na opponent.” Ibidem p. 87 78 “A state’s offensive potencial, in other words, is embedded largely in its army.” Ibidem
61
A guerra é a principal estratégia que os Estados aplicam para adquirir poder. O argumento de Mearsheimer (2001) consiste no fato de que o Estado conquistador pode explorar a economia de um Estado conquistado. Riqueza pode ser extraída de um Estado ocupado através de impostos, confisco da produtividade industrial ou até mesmo confiscando a maquinaria das indústrias.79 Uma segunda alternativa um tanto atraente para os Estados seria o blackmail
80
– em
português “chantagem” – pois consiste na ameaça do uso da força, e não seu uso real, para produzir resultados. No entanto, o blackmail é difícil de atingir, pois grandes potências estão dispostas a lutar antes de se submeter às ameaças de outras grandes potências (MEARSHEIMER: 2001: 138). Outra estratégia para ganhar poder é o bait and bleed 81, através do qual um Estado tenta enfraquecer seus rivais provocando uma longa e custosa guerra entre eles. Uma terceira estratégia, e segundo Mearsheimer mais promissora, seria o bloodletting 82 o qual um Estado toma medidas para garantir que qualquer guerra na qual um adversário esteja envolvido seja prolongada e fatal. Balancing83 e buck-passing84 são, segundo Mearsheimer, as principais estratégias que as grandes potências utilizam no intuito de prevenir os agressores de desordenar a balança de poder.
79
MEARSHIEMER, John J. The tragedy of great power politics, New York: Ed. W.W. Norton & Company 2001 p. 149 80 O termo blackmail é definido por Mearsheimer como “Um Estado pode ganhar poder às custas do seu rival sem precisar de ir para a guerra através da ameaça do uso da força militar contra o seu oponente. Ou seja, através de ameaças coercitivas e intimidação.” Ibidem p. 152 81 “Essa estratégia consiste em um Estado fazer com que dois rivais se engajem em uma guerra prolongada para que eles ‘sangrem’ um ao outro enquanto ele permanece às margens do conflito com seu poder militar intacto.” Ibidem p. 153 82 Mearsheimer explica que no bloodletting “o foco é ter certeza de que qualquer guerra entre um de seus rivais se torne longa e cara no intuito de minar suas forças.” Ibidem p. 154 83 “Com balancing, uma grande potência assume a responsabilidade direta em prevenir um agressor de desordenar a balança de poder. A meta inicial é deter o agressor mas, se falhar, o Estado responsável pelo balancing irá lutar a guerra.” Ibidem p. 156 84 “Buck-passing é a principal alternativa de uma grande potência ameaçada para equilibrar a balança de poder. Um buck-passer tenta fazer com que outro Estado carregue a carga de
62
Balancing é a estratégia onde os Estados ameaçados se comprometem seriamente em conter seus oponentes perigosos. Ou seja, eles se dispõem em arcar com a responsabilidade de intimidar - ou lutar se necessário – o agressor. No buck-passing os Estados tentam colocar uma grande potência para deter o agressor enquanto eles se ocupam com outras coisas. As estratégias de appeasement e bandwagoning
85
não são muito úteis para lidar com
agressores. Ambas têm o intuito de conceder ao Estado rival poder, o qual é uma prescrição de problemas em um sistema anárquico. Com bandwagoning se entende que o Estado ameaçado perde a esperança em prevenir o agressor de ganhar poder às suas custas e, então, junta forças com o inimigo mais perigoso do agressor para, ao menos, ganhar alguma porção dos despojos da guerra. Já a estratégia de appeasement é mais ambiciosa. O pacificador se concentra em modificar o comportamento do agressor concedendo à ele poder, na esperança de que este gesto o faça se sentir mais seguro, desencorajando ou eliminando suas motivações para agredir (MEARSHEIMER: 2001: 139). A última estratégia é a busca dos Estados pela hegemonia regional. As grandes potências buscam dominar sua região e tentam prevenir seus rivais localizados em outras áreas de ganhar a hegemonia.86
acovardar ou combater um agressor enquanto permanece na periferia do conflito. O buck-passer reconhece a necessidade de prevenir o agressor de aumentar sua parcela de poder mundial mas procura por outro Estado ameaçado pelo agressor para executar essa tarefa onerosa.” Ibidem p. 157-158 85 Mearsheimer argumenta que ambas a estratégias partem do princípio de conceder poder ao agressor e, portanto, violam a lógica da balança de poder e aumentam o perigo do Estado usar esse poder contra os demais. Grandes potências que se preocupam com sua sobrevivência não devem nem apaziguar nem se juntar aos adversários de seu agressor.” Fonte: MEARSHIEMER, John J. The tragedy of great power politics, New York: Ed. W.W. Norton & Company 2001 p. 162 86 Ibidem p. 141
63
CAPÍTULO 3 ANÁLISE TEÓRICA DO CONFLITO
“Uma intervenção armada na Chechênia é inadmissível. Se infringirmos este princípio, o Cáucaso se levantará e haverá tanta desordem e sangue que ninguém nos perdoará.” Boris Yeltsin 1994
Após apresentarmos o conflito checheno-russo histórico-geograficamente e as teorias de Mackinder e Mearsheimer, analisaremos o cenário contemporâneo da região caucasiana considerando os dados apresentados e dados atuais pelas perspectivas teóricas abordadas no capítulo 2. Este terceiro capítulo tem como intuito fazer uma análise geopolítica através da ótica realista ofensiva do conflito e buscar o entendimento de certas ações políticas da Rússia contra a Chechênia.
3.1 – OS PONTOS SEMELHANTES ENTRE A TEORIA DE MACKINDER E MEARSHEIMER
Mackinder, em sua teoria geopolítica, enxerga o mundo como um sistema político fechado, ou seja, uma crise regional pode ocasionar efeitos no centro da ordem internacional. No conflito entre a Chechênia e a Rússia esse aspecto pode ser aplicado partindo do pressuposto que esta crise pode ter conseqüências na balança de poder
64
regional, uma vez que os grupos separatistas chechenos reinvidicam a independência, podendo causar uma onda de insatisfação nos países vizinhos ainda sob domínio Russo como, por exemplo, a Kabardino-Balkária, Ossétia do Norte e Inguchétia. Desta forma, a Rússia poderia perder mais uma vez parte de seu poder assim como ocorreu no fim da Guerra Fria, quando a mesma perdeu o domínio sobre as repúblicas da Letônia, Lituânia e Estônia. O geopolítico disserta sobre a causalidade geográfica, que consiste no estudo dos fatos históricos à luz dos fenômenos naturais e do espaço geográfico. No estudo de caso apresentado, os recursos e virtudes do território checheno são fatores importantes para compreender a política agressiva do governo russo na Chechênia, ou seja, algumas das motivações que impulsionam a Rússia a manter seu domínio formando parte da história dessa região caucasiana desde o fim da Guerra Fria. Um exemplo se refere aos vales férteis do rio Terek. Mackinder define o materialismo histórico como a formação da vida social e política de uma nação através dos meios de produção, isto significa que a história é condicionada pelas realidades geográficas e que a ação do homem é em função da economia e da geografia. Portanto, no conflito apresentado, a Chechênia pela sua realidade geoestratégica no Cáucaso, pelos vales férteis ideais para a agricultura, pelas reservas de petróleo e pelos oleodutos e gasodutos que perpassam seu território, teve parte de sua história junto à Rússia formada devido às características de seu meio ambiente. Talvez, se a Chechênia não tivesse as virtudes de seu território, a Rússia não investiria para manter seu domínio. Mackinder afirma que os desafios impostos pela natureza moldam o caráter das nações. Portanto, os desafios impostos pela natureza da Rússia – território vasto, com frio intenso, tipo de flora e de terreno - fizeram com que esta tivesse um caráter continental, sendo potente em seu poder terrestre.
65
O teórico também afirma que quem conquistar o Heartland e, em seguida, conquistar a World Island, conquistará o mundo. A Chechênia se encontra em um dos limites ocidentais do Heartland e, desta forma, é um pequeno território constituinte da zona a ser conquistada pelo hegemon que deseja dominar o mundo. A teoria realista ofensiva de Mearsheimer complementa a de Mackinder para se fazer a análise do conflito Chechênia x Rússia. Ao dissertar sobre a base material do poder, Mearsheimer (2001) afirma que o poder pode ser definido como os bens específicos ou recursos materiais disponíveis (capabilities) à um Estado, ou seja, os recursos naturais irão, em grande parte, formar sua riqueza a qual edifica o poder latente (riqueza do Estado e tamanho de sua população) para, então, construir forças militares. Por representar bens específicos, como o petróleo, gás natural e os vales férteis do rio Terek, e recursos disponíveis à Rússia, como os oleodutos e gasodutos, o governo russo mantém mais uma vez seu domínio a fim de não perder parte de seu poder latente. Isso se associa, em parte, com o conceito de causalidade geográfica apresentada por Mackinder. Segundo Mearsheimer (2001), o poder terrestre é a forma dominante de poder militar no mundo moderno e guerras são vencidas por exércitos, os quais são o instrumento militar principal para conquistar e controlar um território que, por sua vez, é o objetivo político fundamental em um mundo de Estados essencialmente territoriais. De acordo com Mearsheimer (2001), é muito difícil destruir um inimigo somente com bloqueios e bombardeios. O que se pode observar do estudo de caso é o fato de a Rússia, desde 1999, utilizar um exército numeroso se comparado aos combatentes chechenos: quase 100 mil russos contra 8 mil mujahedins.87 A Rússia também utilizou o poder aéreo diversas vezes para destruir seus alvos, mas este foi somente um auxiliador do exército russo. A forma mais 87
Artigo “Riscada do mapa”. Veja, São Paulo: Ed. Abril, n. 8, p. 52-53, fev. 2000
66
comum de dominação da Chechênia, e observada pela sociedade internacional, foram as investidas do exército vermelho para controlar os rebeldes no período de 1994 a 1996 e depois a partir de 1999. De acordo com Mearsheimer (2001) as grandes potências sempre buscam oportunidades para aumentar seu poder às custas dos rivais na intenção de atingir a meta final: ser o hegemon. O teórico explica que mesmo sendo uma meta praticamente impossível, em última instância, a dominação do mundo é o alvo das grandes potências, por isso sua teoria é denominada ofensiva. Mesmo a Chechênia não tendo potencial para ser rival da Rússia, o Kremlin exerce uma política ofensiva a fim de continuar a usurpar os benefícios que esta pequena nação oferece e não perder parte de seu poder. A causalidade geográfica de Mackinder e a importância da riqueza pontuada por Mearsheimer se complementam, pois os recursos naturais e virtudes do espaço geográfico de um Estado são os fatores que irão formar suas riquezas como, por exemplo, sua economia que, por sua vez, formará as bases para a construção da força bélica. O materialismo histórico de Mackinder complementa a discussão sobre a base material do poder de Mearsheimer, pois uma vez que as ações do homem são influenciadas pela economia e geografia; e a vida social e política moldadas pelos meios de produção, os bens específicos ou recursos materiais serão sua base de sustentação. Desta forma, as ações dos Estados serão, em certa medida, proporcionais ao tamanho de sua economia e às possibilidades de recursos materiais que a geografia doméstica proporciona. À luz do materialismo histórico e da base material do poder, a riqueza de metais do território russo proporcionou que a Rússia fosse um dos grandes fabricantes de armas na II Guerra Mundial, tendo uma indústria bélica competitiva; exportando para diversos
67
países e aumentando sua riqueza nacional (PIB). Outro recurso importante são as jazidas de hidrocarbonetos que fazem da Rússia a segunda produtora mundial de petróleo. O continentalismo apresentado por Mackinder e o poder terrestre dissertado por Mearsheimer integram-se, pois o Estado de caráter continental é mais forte, segundo o geógrafo, e tem mais chances de dominar o mundo; e os Estados com poder terrestre desenvolvido independente de serem continentais ou insulares, segundo a ótica realista ofensiva, são aqueles com maior probabilidade para ganhar as guerras. Por último, a visão teleológica de Mackinder de que Estados buscam conquistar o Heartland para, então, conquistar a World Island para, por fim, dominar o mundo; se complementa à idéia de Mearsheimer (2001) de que a meta final dos Estados é a hegemonia no intuito de também dominar o mundo. Porém, Mearsheimer sabe dos limites práticos decorrentes desta tentativa, uma delas devido ao poder parador da água. 88
3.2 – ANÁLISE
Assim como citado no tópico 1.16, a imagem contemporânea da Rússia por parte da sociedade internacional é de ex-grande potência. Após inúmeras ações anti-terroristas mal sucedidas contra os separatistas chechenos, uma política interna definida como regime autocrático 89 por inúmeros veículos de imprensa como a BBC e as revistas Época
88
Mearsheimer explica que a água se torna uma barreira quando um navio tenta transportar um exército até um território controlado e bem defendido por uma grande potência rival. Fonte: MEARSHIEMER, John J. The tragedy of great power politics, New York: Ed. W.W. Norton & Company 2001 p. 114 89 Autocracia também pode ser definida como ditadura, absolutismo, tirania ou autoritarismo. Designa-se toda classe dos regimes não-democráticos especificamente modernos, isto é, dos regimes não-democráticos existentes nos países modernos ou em vias de modernização. Fonte: BOBBIO, Norberto; et al. Dicionário de Política. São Paulo: Ed. UnB. 2000 p. 372
68
e Veja
90
e uma economia frágil sustentada por constantes empréstimos do FMI, a Rússia
pode ser considerada como uma potência em decadência. Mesmo o atual presidente Vladimir Putin, desde 2000 no poder, tendo feito aquilo que o ex-presidente Boris Yeltsin não fez na sociedade russa nos seus oito anos de poder (1991-1999), que foi trazer um pouco de estabilidade, a bipolaridade de seu caráter como líder manteve a desconfiança da sociedade internacional. Em certos momentos, como na reportagem de novembro de 2001 da revista Veja com o título “O novo rei do petróleo” Putin assume a identidade de “modernizador” e interessado em vincular a Rússia ao Ocidente e, mais especificamente aos Estados Unidos. E mais: discursou à empresários americanos sobre a importância de fazerem parcerias contra o terrorismo e demonstrou seu interesse em entrar na Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN). Em outros momentos, assim como Stalin, ele declara acreditar ser necessário usar uma “ditadura da lei” no sentido de aplicar uma política rígida no âmbito interno. A questão concerne no fato de que ditadura conota à desrespeito à lei, assim como o concretizou a partir da condenação de Mikhail Khodorkovski. 91 O envenenamento com polônio do dissidente russo Alexander Litvinenko em 2006 o qual acusou Putin como mandante do assassinato
92
e a morte da jornalista Anna
Politkovskaya 93 , somente corroboraram para a decadência da imagem do Kremlin. O ex-
90
FONSECA, Ana Claudia. Poderes Imperiais. Época, Rio de Janeiro, n. 290, p. 112-113, dez. 2003 ou TEIXEIRA, Jerônimo. A pátria dos conspiradores. Veja, São Paulo, edição 2012, n. 23, p. 122-123, jun. 2007. 91 Homem mais rico da Rússia e financiador de partidos de oposição à Putin, preso em outubro de 2003 sob acusações duvidosas de fraude e evasão fiscal, podendo pegar até 30 anos de prisão. Fonte: FONSECA, Ana Claudia. Poderes Imperiais. Época, Rio de Janeiro, n. 290, p. 112-113, dez. 2003 92 TEIXEIRA, Jerônimo. A pátria dos conspiradores. Veja, São Paulo, edição 2012, n. 23, p. 122123, jun. 2007. 93
http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/story/2006/10/061010_russiajornalistafuneralfn.shtml Politkovskaya era conhecida por ser uma forte crítica do presidente Vladimir Putin e da política do Kremlin em relação à Chechênia. Ela foi encontrada morta a tiros no elevador de seu prédio. Era uma das poucas jornalistas russas a escrever a respeito de abusos dos direitos humanos na Chechênia e muitos russos acreditam que sua morte foi resultado de um assassinato
69
agente secreto russo Alexander Litvinenko teria descoberto que o FSB
94
teria sido o
verdadeiro responsável por uma série de atentados ocorridos em cidades russas
95
,
incluindo Moscou. Tudo para justificar a entrada do país em guerra e garantir a posição das forças de segurança no governo da Chechênia. Neste período, Putin era diretor da FSB e já era o escolhido de Boris Yeltsin para assumir a presidência. 96 Essa política rígida do governo do presidente russo se reflete na Chechênia através, em especial, do seu poder terrestre. A Rússia mantém soldados nas principais cidades chechenas a fim de que qualquer indício de rebelião seja controlado antes de obter proporções maiores. Em novembro de 1999, em Helsinque, vários dirigentes ocidentais condenaram a Rússia pelos bombardeios sobre a Chechênia e condenaram a ofensiva como um “desafio ao Ocidente”. Essa afirmação revela as orientações antieslavo-ortodoxas que levam os “ocidentais” a censurar os russos por sua investida na Chechênia. 97 Madeleine Albright
98
, uma das principais ativistas a favor das intervenções ocidentais no
Iraque e na Sérvia, advertiu o presidente Putin pouco após a renúncia de Boris Yeltsin “Uma infelicidade é infligida em dose maciça a uma população civil chechena, ao mesmo tempo militarmente e pela aparição de tantos refugiados (...). A Rússia paga o preço no plano internacional e se encontra cada vez mais isolada.” 99 O domínio russo no Cáucaso começou no século XVIII, com a tentativa de Catarina, a Grande, de anexar a região pela força. A política do Kremlin pode ser considerada encomendado. Fonte: Artigo “Funeral de jornalista atrai centenas na Rússia” acessado em 17/06/2007 às 17:00 94
Serviço de Segurança Federal Russo A invasão do teatro de Moscou em 2002 com mais de 100 mortos e o atentado na escola de Beslan em 2004 com quase 200 crianças mortas são dois exemplos que chocaram o mundo. 96 Um thriller na vida real. Época, Rio de Janeiro, Ed. Globo. N. 473, p. 86-88, junho 2007 ou TEIXEIRA, Jerônimo. A pátria dos conspiradores. Veja, São Paulo, edição 2012, n. 23, p. 122-123, jun. 2007. 97 DEL VALLE, Alexandre. Guerras contra a Europa, Rio de Janeiro. Ed. Bom Texto, 2003 p. 309 98 M. Albright foi Secretária de Estado dos Estados Unidos de 1997 a 2001. 99 Op. cit. p. 310 95
70
ofensiva, pois a Chechênia passou a fazer parte do Império Russo a partir de 1859 sendo, antes desta data, independente. Segundo Mearsheimer (2001), a Rússia não alcançou mais a hegemonia após 1815. Ao contrário, sua posição na balança de poder européia foi declinando no passar dos cem anos seguintes.
100
Os altos e baixos do poder militar russo nos dois séculos passados
podem ser explicados, em grande parte, pelas mudanças em sua posição na hierarquia de riquezas. 101 Somente a partir de 2005 sinais de recuperação foram notados com um superávit de US$ 765 bilhões. Para 2007, o governo federal russo prevê que o PIB será de 1,2 trilhões de dólares. 102 A Rússia, na história, sempre teve um caráter continental sendo considerada por Mackinder como a grande potência terrestre do início do século XX junto à Alemanha.103 Na atualidade, o exército russo conta com aproximadamente 1,5 milhão de soldados, sendo o instrumento militar principal para controlar a Chechênia segundo a perspectiva realista ofensiva. 104 Por ter perdido parte de seu poder e influência com o fim da Guerra Fria, a Rússia vem tentando manter sua hegemonia regional sobre alguns países da ex-URSS. Vários países da região do Cáspio e ex-integrantes da URSS (Geórgia, Cazaquistão, Quirguistão, Tadjiquistão, Turcomenistão e Uzbequistão) declararam sua independência e possuem soberania, ou seja, decidem sobre suas questões internas sem interferências diretas de outros Estados, em especial, da Rússia. Um exemplo bem sucedido de “emancipação” seria o Azerbeijão. O Estado azeri, após declarar sua independência, 100
MEARSHEIMER, John J. The tragedy of great power politics, New York: Ed. W.W. Norton & Company 2001 p. 69 101 Op. cit. p. 70 102 www.news-of-russia.info/russia/03.htm Acessado em 19/06/2007 às 22:00 103 ITAUSSU, Leonel. Quem tem medo da geopolítica? São Paulo: Ed. Hucitec; Edusp, 1999. 104 http://www.vermelho.org.br/diario/2005/0627/0627_cska_futbol.asp Acessado em 19/06/2007 às 22:20
71
passou a decidir sobre as questões de suas reservas petrolíferas e, hoje, possui acordos de exploração, pesquisa, de traçado de canalizações e de comercialização com companhias americanas.
105
Porém, a Rússia se recusa a reconhecer a independência e
insiste em manter seu controle na Chechênia. A Chechênia localiza-se em uma região geoestratégica no Cáucaso sendo um dos limites ocidentais do Heartland de Mackinder e território fundamental para o domínio do continente eurasiático.
106
Não é em vão que os Estados Unidos têm como uma de suas
estratégias reforçar seus pontos de ancoragem na Eurásia, tomando o controle das novas rotas energéticas do Cáucaso.
107
Del Valle (2003) pontua que “os Estados Unidos
consideram a Ásia Central e as regiões muçulmanas petrolíferas e gaseíferas da exURSS como a zona estratégica mais importante do mundo.” 108 O especialista em estudos estratégicos Zbigniew Brzezinski
109
considera a região do
Cáucaso como estratégica e a Rússia, consciente da importância desta zona, mantém sistematicamente seu domínio sobre a Chechênia. Hoje a ex-grande potência tenta através principalmente do poder terrestre, manter seu domínio sobre esta pequena nação, pois em seu território, existem riquezas petroleiras, gaseíferas e canalizações que os transportam para os mercados ocidentais e asiáticos. Um dos mais antigos e importantes oleodutos construído ainda na época da URSS cruza o território da Chechênia. 110
105
DEL VALLE, Alexandre. Guerras contra a Europa, Rio de Janeiro. Ed. Bom Texto, 2003 p. 168 Op. cit. p. 157 107 Em maio de 2005 é inaugurado na Azerbeijão o oleoduto de 1,6 mil quilômetros que passa pela Geórgia e Turquia, até o porto turco de Ceyhan. Foi construído a partir de um consórcio entre empresas americanas e britânicas. Fonte: http://www.bbc.co.uk/portuguese/economia/story/2005/05/050525_caspioccba.shtml Artigo “Oleoduto milioránio liga mar Cáspio ao Mediterrâneo.” Acessado em 14/06/2007 às 12:00 108 DEL VALLE, Alexandre. Guerras contra a Europa, Rio de Janeiro. Ed. Bom Texto, 2003 p. 156 109 Conselheiro na segurança do presidente dos Estados Unidos entre 1977 e 1981, membro fundador do Conselho de Relações Exteriores (CRE), especialista no Centro de Estudos Estratégicos. Fonte: Op. cit. p. 17 110 http://www.clubemundo.com.br/revistapangea/show_news.asp?n=236&ed=4 Artigo: “Ossétia do Norte, Chechênia e os conflitos no Cáucaso” Acessado em 14/06/2007 às 12:30 106
72
Segundo avaliações do National Security Council (NSA) as reservas de hidrocarbonetos do Cáspio seriam o terceiro reservatório mundial logo após o Oriente Próximo (35 por cento do planeta) e a Sibéria. A zona do Cáspio teria, provavelmente, 16 por cento das reservas mundiais (178 a 200 bilhões de barris) 111, sendo estas formadas por um petróleo leve de alta qualidade, o denominado petróleo convencional o qual possui o maior valor do mercado.
112
Ainda mais do que petróleo, é repleta de gás natural (1.000 a 7.340
bilhões de metros cúbicos). 113 Segundo a embaixada da Rússia no Brasil, a Chechênia tem uma produção anual de 2 milhões de toneladas de petróleo por ano.
114
Esse número corresponde a quase 15
milhões de barris. Sendo o valor do barril em torno de US$ 65,00, a produção anual da Chechênia somente em petróleo corresponde à mais de 955 milhões de dólares. O FMI prevê que o preço do barril de petróleo irá chegar ao patamar de 95 dólares até 2030. Mesmo a Chechênia sendo uma pequena parte no que concerne o PIB da Rússia, ainda assim ela representa parte da base material do poder russo, principalmente porque há uma probabilidade de os lucros aumentarem com a valorização do petróleo aumentando, por sua vez, a riqueza da Rússia que edificará o poder latente formando, por último suas capabilities. A Rússia, em março de 2006, fechou um megacontrato com a China para vender gás natural suprindo a população chinesa a partir de gasodutos localizados na Sibéria e no leste russo. Isso significa que para abastecer sua demanda interna e, desta forma, manter seu poder latente, é provável que a Rússia aumente a exploração de petróleo e gás
111
DEL VALLE, Alexandre. Guerras contra a Europa, Rio de Janeiro. Ed. Bom Texto, 2003 p. 168 http://www.bbc.co.uk/portuguese/economia/story/2005/05/050525_caspioccba.shtml Artigo “Oleoduto milioránio liga mar Cáspio ao Mediterrâneo.” Acessado em 14/06/2007 às 12:00 113 DEL VALLE, Alexandre. Guerras contra a Europa, Rio de Janeiro. Ed. Bom Texto, 2003 p. 168 114 http://www.brazil.mid.ru/embrus/home.htm (site da Embaixada da Rússia no Brasil) Acessado em 19/06/2007 às 15:00 Artigo “Verdade sobre a Chechênia” fev. 2005 112
73
natural na Chechênia, pois esta se encontra mais próxima dos centros produtivos russos, demandando um custo menor em transporte. Além do mais já existem oleodutos e gasodutos que passam por Grozni e chegam até a cidade russa de Novorossisk. Após a nomeação de Bassaev como primeiro ministro em 1998, o governo de Grozni começou a utilizar o oleoduto que passava pela mesma cidade como arma de chantagem, ameaçando suspender o trânsito de petróleo caso Moscou não reconhecesse definitivamente a independência da Chechênia.
115
Os rebeldes chechenos tentaram a
qualquer preço impedir a passagem do petróleo do Cáspio de passar pela Rússia. O território checheno, além das reservas de hidrocarbonetos possui, ao norte, planícies extremamente férteis. Os vales banhados pelo rio Terek e Sonja, seu principal afluente, são perfeitos para a agricultura. É interessante observar que a Chechênia é a região onde o Terek tem maior extensão longitudinal (mais ou menos 270 km)
116
e maior largura. No
território dos demais países ele é mais estreito e não proporciona a mesma irrigação. A Rússia, apesar de ter dimensões continentais e 120 mil rios, possui poucas zonas cultiváveis devido ao permafrost. O frio intenso durante nove meses do ano faz com que os rios permaneçam congelados e o solo também, impedindo a agricultura. Além disso, grande parte do território russo é composto por taigas, tundras e pântanos. Seguindo a ótica de Mearsheimer (2001) de que o poder terrestre é a forma dominante de poder militar no mundo moderno e de que as guerras são vencidas com exércitos, podemos dizer que para se manter o domínio em uma região e ser considerado uma grande potência, é necessário que o Estado tenha um vasto exército que seja também forte, capacitado e equipado. Para se ter um exército é preciso ter população. Para se ter população é preciso alimentá-la bem para que ela cresça. Para alimentá-la é preciso ter um local que tenha a maior produtividade possível. Esse local é a Chechênia. Mesmo com
115 116
DEL VALLE, Alexandre. Guerras contra a Europa, Rio de Janeiro. Ed. Bom Texto, 2003 p. 62 Informação obtida através da análise do mapa da Chechênia na Enciclopédia Encarta 2001
74
as técnicas modernas no intuito de aumentar a produtividade nas plantações, o frio na Rússia e na Sibéria são tão intensos que essas práticas podem, praticamente, ser desconsideradas. Mearsheimer (2001) enfatiza que a riqueza mobilizável, ou seja, os recursos econômicos que um Estado possui à sua disposição para construir as forças militares é a mais importante das riquezas. 117 A Chechênia representa parte da riqueza mobilizável da Rússia como citado anteriormente no que se refere principalmente aos oleodutos e gasodutos podendo, desta forma, afetar as suas capabilities, sendo estas as capacidades específicas que um Estado possui. Esta pequena nação pode além de afetar as capabilities russas, também afetar a balança de poder regional, pois uma vez que ela se declarar independente pode ocorrer uma onda de reivindicações separatistas das outras repúblicas russas não-independentes. O governo russo, liderado pelo ex-agente KGB Vladmir Putin, manipula a imprensa russa e, desta forma, é praticamente impossível se ter dados econômicos da Chechênia. Mesmo assim, é possível que ela afete a balança de poder não só por seus recursos naturais, mas por fatores não-materiais como a estratégia e a inteligência. 118 No conflito de 1994 a 1996 os combatentes chechenos utilizaram estratégias e táticas de guerrilha parecidas com a dos vietcongues e derrotaram o exército russo, o que propiciou um período de relativa paz até 1999 quando os grupos separatistas foram acusados de ataques terroristas na Rússia e o exército vermelho entrou em ação para controlá-los e evitar que houvesse uma contaminação independentista nas repúblicas vizinhas. A perspectiva da causalidade geográfica de Mackinder nos permite estudar os fatos históricos à luz dos fenômenos naturais e do espaço geográfico. A Chechênia possui 117
Veja mais em MEARSHEIMER, John J. The tragedy of great power politics, New York: Ed. W.W. Norton & Company 2001 p. 55 118 Mearsheimer cita ainda mais três fatores não-materiais: resolução, clima e doenças.
75
recursos e virtudes que condicionam sua história. Talvez, se esta nação não representasse uma riqueza considerável para o Estado russo, ela teria tido fatos históricos um pouco diferentes. O próprio Mackinder ressalta que a história das sociedades está ligada às características do meio ambiente. Partindo do pressuposto mackinderiano de que os desafios impostos pela natureza moldam o caráter das nações, é possível entender o porquê de a Rússia ser uma potência continental. As grandes potências, segundo Mearsheimer (2001), sempre procuram oportunidades para aumentar o poder às custas dos rivais. É fato que a Chechênia ainda está sob controle russo e, portanto, não pode ser considerada formalmente como uma rival. Aliás, certamente jamais o será, pois suas dimensões não a permitem ser uma rival da Rússia. Ainda assim, os separatistas chechenos, na luta pela sobrevivência, adquiriram uma posição de rivalidade em relação à Rússia. Na guerra entre a Rússia e a Chechênia de 1994 a 1996, como citado anteriormente, o exército russo foi humilhado pelos rebeldes chechenos os quais usaram uma tática parecida com a dos vietcongues na guerra do Vietnã (1964 -1975).
119
Em 1999, usando
uma tática similar à empregada pelos americanos na Guerra do Golfo, os quase 100 mil soldados russos só colocaram o pé para fora das trincheiras depois de a artilharia e os ataques aéreos reduzirem os alvos à pó sem se importarem com a população civil. O jornalista fotográfico Antoine Gyori relatou, na revista Manchete de dezembro de 1999
120
:
“O armamento russo é ultrapoderoso. Os chechenos têm uns poucos mísseis, mas sobra espírito de luta. Para defender Grozni eles ficavam nas colinas sem proteção. (...) A situação é totalmente desigual.” Ao ser questionado sobre o futuro da guerra o jornalista respondeu: “Acho que o conflito ainda se estenderá, apesar da superioridade militar
119
Inferno na Chechênia. Veja, São Paulo, n. 49, p. 52-53, dez. 1999 Chechênia – A guerra do fim do milênio. Manchete, São Paulo, n. 2488, v. 48, p. 45-48 dez. 1999 120
76
russa. Os chechenos são experientes e conhecem bem as vilas e montanhas. Eles já venceram uma guerra anteriormente. São jovens e contam com uma nova vitória.” 121 O armamento da Rússia era poderoso em relação ao checheno, pois os recursos naturais do espaço geográfico da Rússia (causalidade geográfica) permitiram que esta formasse a base material do poder para, então, produzir riquezas, em especial a indústria bélica. Em 1994 a Rússia não contava com os fatores não-materiais chechenos, como a estratégia e inteligência dos mujahedins (combatentes islâmicos) em utilizar a geografia em seu favor. Muitos russos foram persuadidos de que “os rebeldes chechenos eram apenas peões a serviço dos interesses “islâmico-ocidentais.” 122 O que poucos sabiam era que eles tinham sido formados no Afeganistão pelos serviços secretos sauditas, paquistaneses e americanos contra os soviéticos.123 Os mujahedins conheciam muito bem o relevo da região, por isso se escondiam nas montanhas obrigando o governo russo a enviar tropas para alcançá-los, o que deixava os combatentes chechenos em vantagem mesmo que com armamentos inferiores. O islamismo radical dos guerrilheiros chechenos é um dos fatores que os impulsiona a continuar a guerra, principalmente porque eles lutam contra um agressor cristão-ortodoxo.124 Os custos da guerra para a Rússia são exorbitantes (em torno de 40 milhões de dólares por dia)
125
e, por isso, é questionável se compensa investir no controle da Chechênia. O
fato é que se não compensasse a Rússia não o faria partindo do pressuposto realista que os Estados são racionais e fazem cálculos de ganhos e benefícios todo o tempo. A rota
121
Artigo “Chechênia – A guerra do fim do milênio”. Manchete, n. 2488 v. 48, p. 56-59, dez. 1999 DEL VALLE, Alexandre. Guerras contra a Europa, Rio de Janeiro. Ed. Bom Texto, 2003 p. 309 123 Op. cit. 310 124 “Combatam no caminho de Deus os que lutam contra vocês (...). Não sejam transgressores. Matem-nos em toda parte em que os encontrarem; expulsem-nos dos lugares de onde eles expulsaram vocês (...). Combatam-nos até que não haja mais sedição e que o culto de Deus seja restabelecido. Saibam que Deus está com aqueles que o temem.” – Alá a Maomé, Corão, tradução de D. Masson (única tradução francesa reconhecida pela OCI). Surata II, excertos dos versículos 190 a 195. 125 http://www.bbc.co.uk/portuguese/omundohoje/omh00011406.htm Artigo “Quem paga a guerra na Chechênia?” Acessado em 19/06/2007 às 16:00 122
77
do petróleo, também denominada de “nova rota da seda” por Del Valle (2003), passa pela Chechênia que se encontra em uma posição central no que concerne os oleodutos e a região do Cáspio. A autocracia russa e a manipulação da imprensa não são em vão. Mearsheimer (2001) explica que os Estados estão prontos para mentir e trapacear. Uma das formas é o uso da mídia para impedir que a sociedade internacional saiba a realidade da Chechênia. O teórico também argumenta que a última estratégia do Estado é buscar a hegemonia regional. Sendo a hegemonia mundial praticamente impossível, segundo o próprio Mearsheimer (2001), resta à Rússia manter uma política ofensiva sobre a nação chechena pela sua localização estratégica e recursos naturais, no intuito de não perder mais poder na balança mundial como ocorrido no fim da Guerra fria.
CONCLUSÃO
O conflito russo-checheno vem se estendendo desde o fim da Guerra Fria e, segundo analistas, está longe de acabar. Não somente pela política ofensiva da Rússia devido às riquezas e localização geoestratégica da Chechênia, mas pelo islamismo radical dos grupos separatistas chechenos. “Para os islamistas, a Europa é a civilização ‘ímpia’ por excelência, a que ousa impor suas concepções do mundo à civilização ‘superior’ (Ismat al-Umma) do Islã, ‘a melhor comunidade suscitada entre os homens’ (Corao, III, 110).” 126 O mundo islâmico considera as guerras do Afeganistão e da Chechênia como “guerras de agressão”
127
da área ortodoxa ex-comunista contra o Islã. Os islamistas consideram que
126
DEL VALLE, Alexandre. Guerras contra a Europa, Rio de Janeiro. Ed. Bom Texto, 2003 p. 347 “O termo ‘agressão’, criado para indicar atos de violência armada de um Estado contra o outro, é, hoje, usado em sentido mais amplo, com referência não somente a um ataque militar mas também a qualquer intervenção ‘imprópria’ de um Estado com prejuízo do outro. O termo está, contudo, associado a uma conotação negativa, tanto que é usado para indicar atividade de um Estado inimigo, nunca do próprio Estado. O tipo de agressão clássica é a penetração das fronteiras
127
78
os russos possuem as mesmas fontes ideológicas que os liberais anglo-saxões ou socialdemocratas europeus: o iluminismo, materialismo, secularismo, relativismo moral e religioso, separação das esferas espiritual e temporal, liberalização dos costumes familiares e sexuais.
128
A ideologia comunista atéia nunca foi aceita pelos muçulmanos
das repúblicas da ex-URSS, e por isso a combateram corajosamente no Afeganistão e Chechênia. 129 Eric Hobsbawn, em seu livro Era dos Extremos – O breve século XX cita que “no início da década de 1990 observadores advertiam para o perigo de auto-extermínio nacional na Chechênia, pois a maioria das famílias chechenas foi arrastada a um relacionamento tipo vendeta.”
130
Ou seja, tantos bombardeios, investidas violentas do exército russo, falta de
condições básicas como água, saneamento, luz e alimento fizeram surgir um sentimento de vingança na população chechena contra a Rússia. O poder terrestre checheno jamais poderá ser comparado ao poder terrestre russo, não somente pelas diferenças no tamanho do território e população, mas porque parte dos recursos naturais chechenos são direcionados para a formação da riqueza russa, impedindo que a Chechênia tenha sua própria riqueza, até porque os diversos bombardeios a partir de 1999 destruíram as estruturas básicas das principais cidades como Grozni e Gudernes. Da mesma forma que a crença islâmica impulsiona os mujahedins a lutar pela independência da Chechênia, a Rússia impulsionada pelas riquezas que ela representa, pela busca pelo poder e pela hegemonia regional, continuará a manter seu domínio sobre esta nação, principalmente porque o governo russo sabe que, após a destruição de
de um Estado por parte das forças armadas de um outro Estado.” Fonte: BOBBIO, Norberto; et al. Dicionário de Política. São Paulo: Ed. UnB. 2000 p. 17 128 DEL VALLE, Alexandre. Guerras contra a Europa, Rio de Janeiro. Ed. Bom Texto, 2003 p. 347 129 Op. cit. 348 130 HOBSBAWN, Eric, Era dos Extremos – O breve século xx, São Paulo. Ed. Companhia das Letras, 1995, p. 360
79
Grozni nos conflitos dos últimos anos, a Chechênia não tem condições de se sustentar economicamente e depende dos financiamentos russos para sua lenta reconstrução. A perda da Chechênia por parte da Rússia acarretaria em um déficit em seu balanço de pagamentos não somente pela perda significativa de reservas de petróleo, mas porque a Chechênia certamente passaria a cobrar taxas pela passagem do petróleo e gás natural russo em seus oleodutos e gasodutos. A teoria do Heartland de Mackinder, de que quem conquistá-lo e, em seguida, conquistar a World Island poderá dominar o mundo não acontece na atualidade, pois a Rússia constitui a maior parte do Heartland e, no entanto, ainda não dominou o planeta. Apesar de que vale ressaltar que a Guerra Fria foi a disputa entre os Estados Unidos capitalista contra a Rússia socialista, ambos buscando a vitória para dominar o mundo com suas doutrinas; e a Rússia neste período era de fato uma grande potência. Após a morte do líder separatista Aslan Maskhadov em março de 2005 por tropas russas, os grupos chechenos prometeram manter a resistência. Maskhadov era considerado um rebelde moderado que defendia o diálogo com o governo russo. Uma semana antes de morrer ele afirmou que tudo o que bastava para por fim ao conflito no Cáucaso seria “um diálogo cara a cara de 30 minutos” com o presidente Putin. 131 Infelizmente, principalmente após a morte de Maskhadov, não há previsão de paz na região do Cáucaso. O caráter agressivo de Putin para exercer o poder é uma tradição política russa que dificilmente irá mudar, assim como o caráter radical dos grupos separatistas. O conflito entre a Chechênia e a Rússia nos leva a concluir que os recursos naturais e o espaço geográfico, são fatores preponderantes para a formação da História.
131
http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/story/2005/03/050309_checheniabg.shtml Artigo “Sem Maskhadov, chechenos prometem manter resistência” acessado em 17/06/2007 às 18:00
80
Ao lembrar que, na perspectiva realista ofensiva, o sistema internacional é anárquico, que a Rússia herdou a liberdade soviética de resolver seus problemas internos sem prestar contas ao mundo externo e que o conflito entre a Chechênia e Rússia está impregnado por doutrinas religiosas, podemos concluir que este ainda se estenderá por um longo período até que os separatistas chechenos entendam que a população, em geral, deseja paz e tranqüilidade e que o governo russo considere sua história do século XIX; quando a Chechênia era independente, e internalize os valores dos direitos humanos. Este trabalho acadêmico se propôs a apresentar, no capítulo 1, os aspectos geográficos da Chechênia e da Rússia e a história do conflito. No capítulo 2, foram abordadas a teoria geopolítica de Halford Mackinder e o realismo ofensivo de John J. Mearsheimer, pois ambas possuem pontos complementares para a realização da análise teórica. No capítulo 3 as duas teorias abordadas foram aplicadas no conflito a partir de dados apresentados no capítulo 1. Este ensaio propôs fornecer uma análise objetiva através da complementação eficaz da geopolítica e do realismo ofensivo no intuito de descobrir e compreender as motivações de cunho geográfico e político que impulsionam a Rússia a manter seu domínio na Chechênia. Através dos dados apresentados e da análise do conflito pode-se chegar as seguintes conclusões: a Chechênia, mesmo sendo um Estado territorialmente pequeno em relação à Rússia, está localizada estrategicamente na região do Cáspio no que concerne a passagem dos oleodutos e gasodutos, representando parte do poder latente russo. O território checheno possui jazidas de petróleo de alta qualidade e gás natural que representam uma parcela do PIB russo e, portanto, parte de rua riqueza a qual constrói a força bélica. A Chechênia é controlada, em grande parte, pelo poder terrestre da Rússia, o exército vermelho o qual impede que os separatistas chechenos espalhem ainda mais a ideologia de autodeterminação. Caso a Chechênia declare sua independência, a balança de poder regional poderá ser afetada, pois outras repúblicas
81
poderão reivindicar a separação da Federação Russa. Desta forma, a Rússia perderia espaço geográfico, o que significa perder recursos naturais e, consequentemente, riqueza e população para a formação do exército nacional. A política do governo russo é ofensiva, pois a Chechênia já foi uma nação independente, e somente na Guerra Fria se tornou uma república russa. Outras nações da ex-URSS, hoje, são soberanas. A conjuntura atual da Chechênia não a permite ser independente, pois ela necessita dos investimentos do Estado russo para sua reconstrução após a guerra iniciada em 1999. O conflito não tem previsão de fim, pois não são apenas questões geopolíticas que o fundamentam, mas religiosas. Trata-se do jihad entre os muçulmanos fundamentalistas e os cristãoortodoxos.
BIBLIOGRAFIA
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Ed. Martins Fontes Ltda, 1998 BOBBIO, Norberto; et al. Dicionário de Política. São Paulo: Ed. UnB. 2000 Chechênia – A guerra do fim do milênio. Manchete, São Paulo, n. 2488, v. 48, p. 45-48 dez. 1999 DEL VALLE, Alexandre. Guerras contra a Europa, Rio de Janeiro. Ed. Bom Texto, 2003 Enciclopédia Encarta 2001 FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Aurélio – O dicionário da língua portuguesa. 3 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. FILHO, Daniel Arão Reis; Tchetchênia: o Império na Encruzilhada. 1996. 26 p. Artigo livre. Professor titular de História Contemporânea, Universidade Federal Fluminense, UFF
82
FONSECA, Ana Claudia. Poderes Imperiais. Época, Rio de Janeiro, n. 290, p. 112-113, dez. 2003 HOBSBAWN, Eric, Era dos Extremos – O breve século xx, São Paulo. Ed. Companhia das Letras, 1995, Inferno na Chechênia. Veja, São Paulo, n. 49, p. 52-53, dez. 1999 ITAUSSU, Leonel. Quem tem medo da geopolítica? São Paulo: Ed. Hucitec; Edusp, 1999. MEARSHEIMER, John J. The tragedy of great power politics, New York: Ed. W.W. Norton & Company 2001 NOGUEIRA, João Pontes; MESSARI, Nizar. Teoria das Relações Internacionais – Correntes e Debates. Rio de Janeiro: Ed. Elsevier, 2005 PROENÇA, Jr; et. Al. Guia de Estudos de Estratégia, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999 RAMONET, Ignácio. Guerras do século XXI Petrópolis, Rio de Janeiro: Ed. Vozes 2003 RAPOPORT, Anatol. “Lutas, Jogos e Debates” Brasília. Editora da Universidade de Brasília: 1981 SCHILING, Voltaire. Ocidente X Islã – Uma história do conflito milenar entre dois mundos Porto Alegre: Ed. L&PM 2003 TEIXEIRA, Jerônimo. A pátria dos conspiradores. Veja, São Paulo, edição 2012, n. 23, p. 122-123, jun. 2007. VASCONCELLOS, Marco Antonio S.; GARCIA, Manuel E. Fundamentos de Economia. São Paulo: Ed. Saraiva, 2003 http://www.brazil.mid.ru/embrus/home.htm Acessado em 18/06/2007 http://www.bbc.co.uk/portuguese/economia/story/2005/05/050525_caspioccba.shtml Acessado
em
13/06/2007
83
http://www.clubemundo.com.br/revistapangea/show_news.asp?n=141&ed=4
Acessado
em 02/02/2007 http://www.port.pravda.ru Acessado em 03/02/2007 http://www.feiradeciencias.com Acessado em 03/02/2007 http://www.enciclopedialibre.com Acessado em 03/02/2007 http://www.periodic.lanl.gov/elements Acessado em 03/02/2007 http://www.webelements.com Acessado em 10/02/2007 http://www.environmentalchemistry.com Acessado em 10/02/2007 http://www.frigoletto.com.br/recnaturais/petroleorussia.htm Acessado em 10/02/2007 http://www.info.sapo.pt Acessado em 05/05/2007 http://www.opec.org Acessado em 05/05/2007 http://www.brasil-russia.org.br/ap3 Acessado em 06/03/2007 http://www.geocities.com/ibnkhaldoun_2000/chechenia.htm Acessado em 06/03/2007 http://www.dw-world.de/dw/article/0,2144,1858286,00.html Acessado em 06/03/2007 http://www.otempo.com.br/internacional/lerMateria/?idMateria=44358
Acessado
em
Acessado
em
06/03/2007 http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2001/011120_prussia.shtml 06/03/2007 http://www.global21.com.br/guiadoexportador/russia.asp.
Acessado em 02/06/2007
http://www.publico.clix.pt/nos/livro_estilo/24-religioes.html Acessado em 02/06/2007 http://ano2004.sapo.pt Acessado em 06/06/2007 http://cpl.revues.org/document433.html Acessado em 02/06/2007 http://clipping.planejamento.gov.br/Noticias.asp?NOTCod=204150
Acessado
em
13/06/2007
84