CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL
Memórias Urbanas de Iguape – SP
Foto da capa: Simone Scifoni
“A própria cidade, entre a floresta e o rio, comprime-se à volta da grande igreja do Bom Jesus.” (Diário de Viagem de Albert Camus)
PREFEITURA MUNICIPAL DE IGUAPE Prefeita Municipal Elisabete Negrão Secretário de Cultura Carlos Alberto Pereira Junior UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO Reitor João Grandino Rodas Pró-Reitoria de Cultura e Extensão Universitária Maria Arminda do Nascimento Arruda Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas Sandra Margarida Nitrini Departamento de Geografia André Roberto Martin Laboratório de Geografia Urbana Anselmo Alfredo EQUIPE TÉCNICA Simone Scifoni, Professora do Depto de Geografia/FFLCH/USP/Labur Danilo Celso Pereira, Geógrafo, FFLCH/USP Talita dos Santos Barbosa, Geógrafa, FFLCH/USP Projeto Gráfico Danilo Celso Pereira
Simone Scifoni (org)
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL
Memórias Urbanas de Iguape – SP
Iguape 2011
Foto: Danilo Pereira
CANTIGA PARA UMA PRINCESA De onde vem teu encanto, de onde vem tua beleza Teus becos tuas esquinas, veio do tempo do ouro e da lavoura de arroz Ainda te vejo princesa, com o teu ar de nobreza, as marcas nos velhos telhados Tuas altas calçadas, a sombra dos teus beirais Centenárias igrejas, era um tempo de opulência, que já ficou no passado Os teus velhos sobrados, casarões coloniais... Era de se admirar, o sobrado dos Toledos, as ruínas do Itaguá, o casarão dos Veigas O sobrado da Pirá... O sobrado dos Mâncios, o beco dos quatro cantos, Teu rico casario, Casarão dos Oliveiras, Rua do Funil Tem o sobrado dos Fortes, Velho prédio do Correio, Palacete Eurico Moutinho, onde guarda teus mistérios, Onde esconde teu pelourinho. Antonio de Lara Mendes
Dedicamos este trabalho a todos os iguapenses, em particular a todos que contribuĂram para a realização deste projeto, em especial aos familiares do Silvio Fernando Rodrigues, o Silvio do Despraiado (in memoriam).
Foto: Helena Rios, arquivo Iphan/SP
Sumário
11
Introdução
13
1. A Casa do Patrimônio do Vale do Ribeira
14
1.1 O Iphan e a Casa do Patrimônio do Vale do Ribeira/SP: experiências Carina Mendes dos S. Melo
23
2. Reflexões: cidade, patrimônio cultural e educação
24
2.1. Educação para o exercício da cidadania Simone Scifoni 2.2. Iguape, arquiteturas em processo e construção da proteção federal, Flávia Brito do Nascimento
35
45
3. Memórias Urbanas de Iguape: Rodas de Memórias
47 64 81 95
3.1. Cultura Caiçara 3.2. Quilombos do Ribeira 3.3. Histórias de Pedra e Cal 3.4. Águas de Iguape
107
4. Práticas em Educação Patrimonial
108 113 116 119
4.1. Trabalho com textos 4.2. Valorização dos conhecimentos tradicionais 4.3. Explorar e conhecer o patrimônio edificado 4.4. Linha do tempo: memória e história oficial
121
Sobre os autores
122
Referencias bibliográficas
“Algumas centenas de casas, mas de estilo único, baixas, caiadas, multicoloridas. [...] Iguape tem ares de estampa colonial.” (Diário de Viagem, de Albert Camus)
Foto: Helena Rios, arquivo Iphan/SP
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
INTRODUÇÃO A presente publicação é um dos produtos do Projeto Memórias Urbanas – Iguape/Vale do Ribeira, realizado por um grupo de docentes e alunos do Departamento de Geografia e do Labur da FFLCH/USP1, em parceria com a Prefeitura Municipal de Iguape e com a Superintendência do Iphan de São Paulo, durante o ano de 2011. O projeto teve como principais objetivos: envolver a comunidade local na valorização das memórias e do patrimônio cultural; registrar e documentar a memória urbana para dar visibilidade e socializar conhecimentos populares; fortalecer o vínculo das comunidades com o seu patrimônio cultural, fomentando o reconhecimento de sua importância e incentivando, assim, a participação social na sua proteção. Entendemos a Educação Patrimonial para além da simples divulgação do patrimônio: não se trata apenas de difundir conhecimentos ou de reproduzir informações a um número maior de pessoas. Trata-se, antes de tudo, de construir uma nova relação das comunidades e o seu patrimônio, possibilitando a apropriação social de conhecimentos do qual ele é suporte. Mas essa construção só pode ser feita quando se considera e se incorpora as necessidades e expectativas das comunidades envolvidas. Assim sendo, a valorização da memória coletiva foi o ponto de partida neste projeto, compreendendo que na essência dos objetos materiais, das arquiteturas e do urbanismo, há moradores e suas vivências, um cotidiano que dá vida e dinamismo a esse patrimônio. Neste sentido, o projeto envolveu a realização de quatro “Rodas de Memória”, que foram momentos de encontro nos quais pudemos ouvir e registrar as falas e relatos das vivências dos moradores, os “causos” e as histórias iguapenses. O resultado é a publicação deste volume voltado à formação de educadores que atuam no município de Iguape. Ele se encontra organizado em quatro partes: inicialmente é apresentado um relato sobre algumas experiências e reflexões sobre a atuação do Iphan/SP na Casa do Patrimônio do Vale do Ribeira; na segunda parte temos artigos que buscam introduzir e problematizar as questões relativas à própria Educação Patrimonial e as ações relativas ao processo de tombamento do Centro Histórico de Iguape; na terceira parte encontram-se os registros das quatro Rodas de Memória, organizados sob a forma de temáticas de O projeto contou com apoio do Fundo de Fomento às Iniciativas de Cultura e Extensão da PróReitoria de Cultura e Extensão Universitária da Universidade de São Paulo. 1
INTRODUÇÃO | 11
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
discussão; e na última parte incorporamos algumas sugestões de práticas educativas para que os professores possam se inspirar criando, assim, suas próprias atividades em sala de aula. A expectativa é de contribuir para a formação em Educação, pela via da memória e do patrimônio cultural.
“De todas as necessidades da alma humana não há outra mais vital que o passado”. Simone Weil
Simone Scifoni
12 | INTRODUÇÃO
Foto: Leônidas Damasceno / Acervo da Casa do Patrimônio do Vale do Ribeira O IPHAN E A CASA DE PATRIMÔNIO DO VALE DO RIBEIRA/SP: EXPERIÊNCIAS
A Casa do Patrimônio do
VALE DO RIBEIRA
CARINA MENDES DOS SANTOS MELO| 13
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE - SP
O Iphan e a Casa do Patrimônio do Vale do Ribeira/SP: experiências Carina Mendes dos Santos Melo
Este
breve
artigo
busca
relatar
tem buscado respeitar nesta relação
algumas experiências e reflexões
que vem se estabelecendo, tendo
sobre a atuação do Iphan/SP na Casa
como espaço de interlocução a Casa
do Patrimônio do Vale do Ribeira,
do Patrimônio.
onde são desenvolvidas atividades práticas no campo da educação
CONTEXTUALIZAÇÃO
patrimonial, não tendo a pretensão de
apontar
educação,
metodologias
conceitos
pedagógicas
ou
e
em
O projeto das Casas do Patrimônio
linhas
foi concebido nacionalmente pelo
estratégias
para
gestão das Casas.
Iphan
como
uma
proposta
de
transformar
as
sedes
e
representações
do
órgão,
nos
De forma geral, a linha condutora
estados, em pólos de referência local
para atuação do Iphan tem sido a
e regional, para qualificar e atender a
busca
população
pela
promovendo
participação o
social,
envolvimento
residente
em
uma
da
perspectiva de diálogo e reflexão.
população local, não apenas para o
Tratava-se ainda de uma estratégia
esclarecimento
questões
para reverter a visão negativa da
referentes ao patrimônio cultural,
população em relação à instituição
mas também, para a construção de
que possuía prolongada atuação em
uma relação compactuada, dialógica,
determinados locais.
de
de duas vias, onde entendemos como indispensável
para
as
ações
de
Em Iguape, a proposta foi conduzida
salvaguarda considerar os valores
de forma pioneira dentro do Iphan,
individuais e coletivos atribuídos por
pois a Casa do Patrimônio foi
aqueles que vivenciam os objetos e
estruturada
manifestações patrimoniais. São os
antes
mesmo
da
proteção
federal,
durante
os
olhares, as formas de sentir, os
trabalhos
de
identificação
do
valores afetivos e simbólicos que se
patrimônio cultural desenvolvidos na
14 | CARINA MENDES DOS SANTOS MELO
O IPHAN E A CASA DE PATRIMÔNIO DO VALE DO RIBEIRA/SP: EXPERIÊNCIAS
região sul do estado. Sob a temática
cidade no período de exploração do
da paisagem cultural, a partir de
ouro nos séculos XVII e XVIII,
2007,
da
passando pelo faustoso ciclo do arroz
Superintendência do Iphan em São
entre o final do século XVIII e a
Paulo, iniciou os trabalhos num
primeira metade do século XIX, pelo
amplo
identificação
crescimento e apogeu da indústria
denominado “Paisagem Cultural do
naval, até o período de ostracismo, a
Vale do Ribeira”. Naquele momento
partir de meados do século XX,
foram
primeiras
ocasionado pelos desdobramentos
representantes
ecológicos decorrentes da abertura
dos diversos municípios ao longo do
do Canal do Valo Grande no século
Vale, e que resultaram em ricos e
anterior
densos estudos, desenvolvidos com a
funcionamento
participação
marítimo.
a
equipe
projeto
técnica
de
realizadas
aproximações
as
com
e
população,
e
anuência
da
formalizados
nos
que
inviabilizou do
A
Paisagem
do
Patrimônio foi viabilizada, devido,
Ribeira; Dossiê para Registro do
principalmente, a uma parceria com
Tooro
de
a Prefeitura Municipal que enxergou
tombamento do Centro Histórico de
no projeto uma oportunidade de
Iguape
potencializar
do
Nagashi; e
Vale
Dossiê
Dossiê
da
Imigração
da
porto
seguintes documentos: Dossiê da Cultural
implantação
seu
o
as
Casa
ações
do
locais,
Japonesa, todos finalizados, tendo os
aproximando a população aos temas
dois
preservação,
últimos
resultado
em
tombamento.
patrimônio,
tombamento, etc. A formalização da iniciativa foi feita por meio de um
O tombamento de Iguape acontece
Termo
em
em
celebrado
entre
reconhecimento aos seus valores
Prefeitura
de
históricos e paisagísticos. A proteção
implementação
federal engloba seu núcleo histórico,
objetivo
o Morro da Espia e o Canal do Valo
conformar
um
Grande,
interlocução
com
dezembro
de
elementos
2009,
materiais
de
Cooperação o
Técnica
Iphan
e
Iguape da
principal a
a
para
Casa,
cujo
consistia
em
espaço
de
comunidade
testemunhos de sua história. Em
local, visando propiciar o debate e a
suma,
participação
representam
aspectos
da
social
na
gestão,
CARINA MENDES DOS SANTOS MELO| 15
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE - SP
proteção e valorização do patrimônio
Ribeira, com o intuito de socializar o
cultural. No documento, compete ao
conhecimento produzido por meio
Iphan-SP, a organização e gestão das
das ações de identificação na região;
atividades
educativas,
além
de
foram realizadas oficinas voltadas
orientação
técnica
apoio
na
para formação e capacitação como
execução de ações de iniciativa da
uma oficina de maquetes - visando
Prefeitura;
capacitar estudantes e educadores
e
à
e
Prefeitura,
a
administração e gestão da Casa de
com relação
Patrimônio,
representação espacial; e oficina de
podendo
também
–
a essa técnica de
desenvolver atividades e eventos em
biblioteca
visando
transmitir
seu espaço, de comum acordo com o
critérios e orientações básicas na
Iphan-SP.
formação e gestão de bibliotecas.
AÇÕES DO IPHAN NA CASA Inaugurada em maio de 2009, as primeiras ações desenvolvidas na Casa do Patrimônio foram voltadas principalmente para sua estruturação e consolidação como espaço cujo elemento principal, o eixo condutor das
atividades,
é
o
patrimônio
cultural, colocando em evidência sua vocação e suas possibilidades de atuação nos municípios do Vale e, especialmente, em Iguape. Assim, foi montada biblioteca especializada em temas relacionados ao patrimônio cultural, visando transformar a Casa num centro de referência regional
Foto da Oficina de Maquete, em 2009. Alunos durante os trabalhos da Oficina e uma das maquetes finalizada. Fonte: Sentidos Urbanos
dentro do Vale do Ribeira para a pesquisa
e
a
reflexão
sobre
a
temática; foi inaugurada exposição sobre a atuação do Iphan no Vale do 16 | CARINA MENDES DOS SANTOS MELO
O tombamento de Iguape acontece em dezembro de 2009. As ações do
O IPHAN E A CASA DE PATRIMÔNIO DO VALE DO RIBEIRA/SP: EXPERIÊNCIAS
Iphan na Casa do Patrimônio nos
Paulo para discutir a temática do
anos
concentram-se
patrimônio cultural especialmente
divulgação
entre órgãos preservacionistas.
seguintes
basicamente
na
e
construção da informação e das diretrizes necessárias para gestão e
A denominação nos pareceu profícua
valorização do sítio tombado. A Casa
e
desenvolve importante papel como
encontros que se pretendia realizar
canal
em Iguape, uma vez que o termo
de
aproximação
população,
com
torna-se
o
a
local
potencialmente
“conversa”
adequada
remete
à
aos
ideia
do
referencial do Iphan na cidade, e
“diálogo”. Assim, conceitualmente, o
agrega em suas ações a função de
que se tem buscado nestes encontros
atendimento
para
não é simplesmente a transmissão de
orientações
informação, de caráter unilateral,
ao
esclarecimentos técnicas
público e
necessárias
diante
das
mas a construção dela, a partir de um
questões decorrentes da proteção
formato
aberto,
onde
além
de
legal do patrimônio material da
esclarecimentos e orientações são
cidade. Alguns dos projetos que vem
possíveis intervenções, sugestões e
sendo realizados:
críticas. Em 2010, dentre outros, foram realizados encontros sobre o
Iphan Conversa
tombamento
de
Iguape;
sobre
colocação de letreiros e toldos no Com o intuito de abordar diversos
centro histórico; sobre patrimônio
temas relacionados ao patrimônio
imaterial;
cultural, os primeiros esforços de
profissionais da construção civil.
e
encontros
com
aproximação com a população no momento feitos
pós-tombamento
por
meio
de
foram
Exemplificando,
o
formato
se
encontros
mostrou muito adequado para o trato
realizados na Casa do Patrimônio,
de questões como a normatização
denominados
para letreiros e toldos em Iguape. A
“Iphan
Conversa”.
Cabe ressaltar que este título foi
partir
utilizado
para
elaborado por técnicos da instituição,
denominar uma série de encontros
com a participação e anuência da
técnicos
Prefeitura e do órgão de preservação
primeiramente realizados
Superintendência
do
na
própria
Iphan
São
estadual
de
um
primeiro
estudo
(UPPH/Condephaat),
a
CARINA MENDES DOS SANTOS MELO| 17
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE - SP
proposta foi apresentada em dois
interpretativos do patrimônio e visa
encontros “IPHAN Conversa” abertos
provocar,
à comunidade, onde foram colocadas
desconstrução da prática cotidiana e
as inadequações da proposta, tendo
dos
sido esta ajustada de acordo com as
pela cidade e requalifica[r] o olhar
necessidades dos comerciantes.
anestesiado
antes
deslocamentos
qualidade Sentidos Urbanos: Patrimônio e
de
do de
tudo,
“a
automatizados morador,
sujeito
na
dialógico”
(idem, ibidem, p. 17)
Cidadania Enxergou-se no projeto um grande Durante o I Seminário de Avaliação e
potencial
Planejamento
do
sensibilização para a normatização
Patrimônio, realizado entre 27 de
do centro histórico tombado de
novembro e 01 de dezembro de
Iguape.
2009, em Nova Olinda/CE, tomamos
Casas do Patrimônio, foi possível
conhecimento do Programa Sentidos
realizar
Urbanos: Patrimônio e Cidadania,
experiências
projeto
ações
Patrimônio de Ouro Preto/MG para
educativas da Casa do Patrimônio de
capacitação de monitores locais para
Ouro
o
aplicação da metodologia de roteiros
coordenador pedagógico do projeto,
sensoriais interpretativos localmente.
das
Casas
condutor Preto/MG.
das
Segundo
para
trabalhar
a
Assim, por meio da Rede um
intercâmbio com
a
Casa
de do
Prof. Juca Villaschi do Departamento de Turismo da Universidade Federal
Já foram realizadas
de Outro Preto – UFOP:
capacitação, professor
[...] a concepção deste programa se caracteriza por desconstruir práticas cotidianas de deslocamentos urbanos automatizados e de provocar novos olhares, ‘sentires’ e ‘fazeres’, com leituras diferenciadas dos feitos passados, do tempo presente e das situações futuras, potencializando a construção de novos comportamentos cidadãos. (SENTIDOS, 2010, p.30)
O
programa
metodologia
é
pautado de
na
roteiros
18 | CARINA MENDES DOS SANTOS MELO
oficinas de
ministradas Juca
Villaschi
pelo da
Universidade Federal de Ouro Preto UFOP - e pela historiadora Simone Fernandes do Escritório Técnico do Iphan em Ouro Preto / Casa do Patrimônio de Ouro Preto, em dois módulos, de 08 a 10 de novembro e de 06 a 08 de dezembro de 2010. Falta ainda o último módulo de capacitação para então disponibilizá-
O IPHAN E A CASA DE PATRIMÔNIO DO VALE DO RIBEIRA/SP: EXPERIÊNCIAS
lo para a população; a previsão é que
Projeto Cores para Iguape
a formação dos monitores termine ainda neste ano de 2011.
Em
2011
torna-se
necessidade
de
premente
consolidação
a de
Os roteiros sensoriais formulados
diretrizes e normas para o centro
nas
eixo
histórico de Iguape, por meio de
estruturador a sensibilização para a
ações mais diretas e efetivas para
questão
para
construção de manuais, documentos
intervenções no sítio tombado, busca
e projetos, visando especialmente à
evidenciar os valores que foram
valorização da área tombada. Desta
considerados
necessidade
oficinas
têm
como
da regulamentação
no
momento
do
propôs-se
o
projeto
tombamento, ao mesmo tempo em
“Cores para Iguape”, que parte de
que busca coletar que outros valores
uma negociação com os moradores
revelados
esta
da cidade para regulamentação dos
individual
serviços de pintura no seu centro
por
vivência/experiência
devem ser também considerados e
histórico.
preservados no sítio histórico. Estes dados são levantados especialmente
Assim, a partir de uma parceria com
nas oficinas de síntese e socialização
a Prefeitura Municipal, o Projeto
das impressões que são realizadas ao
Oficina Escola de Artes e Ofícios
final de cada roteiro.
(POEAO) e a empresa de restauro Estúdio Sarasá, a oficina foi realizada
Em síntese, a proposta consiste em
em
adotar o programa como projeto de
aconteceu o primeiro módulo onde se
educação patrimonial suporte para as
discutiu tipos de tintas, cores e
ações
padrões
normativas
a
serem
dois
módulos.
de
pinturas
Em
maio
adotados
empreendidas pelo Iphan/SP. Um
tradicionalmente no centro histórico,
recurso
dos
além de terem sido realizados testes
moradores no tocante à necessidade
de pintura à base de cal, com a
“de atitudes de valorização e co-
finalidade de subsidiar o primeiro
responsabilidade pela proteção do
estudo para regulamentação para
patrimônio cultural e natural” (idem,
pintura das fachadas.
para
sensibilização
ibidem, p.21) da cidade.
CARINA MENDES DOS SANTOS MELO| 19
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE - SP
O segundo módulo da oficina, no
Parcerias
final de junho, contou com nova apresentação do documento sobre
O
pinturas, juntamente com a proposta
esteve presente desde o momento
para regulamentação de letreiros e
inicial
toldos, que já havia sido apresentado
Patrimônio do Vale do Ribeira, e
à população em outubro de 2010,
caracteriza-se
num
viabiliza e potencializa suas ações
“Iphan
Conversa”.
Neste
estabelecimento de
de
criação
da
como Dentre
parcerias Casa fator
os
do que
módulo foi elaborada uma paleta de
educativas.
cores no muro dos fundos da Casa do
temos:
Patrimônio com o objetivo de servir
Iguape; Governo do Estado de São
como referência para os moradores
Paulo, por meio da Secretaria de
que queiram pintar seus imóveis
Estado da Cultura: UPPM (Unidade
situados em área tombada e seu
de
entorno, respeitando e valorizando a
Museológico) e UPPH (Unidade de
cidade, sua história, seu patrimônio e
Proteção
os materiais tradicionais de Iguape.
Histórico/CONDEPHAAT); ABAÇAÍ
Prefeitura
Proteção
Municipal
do do
parceiros de
Patrimônio Patrimônio
Cultura e Arte; Ponto de Cultura Cabe ressaltar que o projeto não
“Cultura esse é o ponto”; Ponto de
propunha
de
Cultura "Jovens da Juréia"; AAPCI –
pintura do passado para serem
Associação de Artesãos e Produtores
reproduzidos no presente. O objetivo
Caseiros de Iguape; Programa de
baseava-se na ideia de que a partir do
Promoção do Artesanato de Tradição
conhecimento técnico e da análise e
Cultural/Promoart;
avaliação dos recursos, combinações,
Amigos do Museu de Folclore Edison
contrastes e tonalidades utilizados
Carneiro Acamufec/Centro Nacional
em épocas passadas, se pudesse
de Folclore e Cultura Popular/Iphan;
construir diretrizes para o presente e
Museu Vivo do Fandango; Estúdio
futuro do sítio tombado, pautado na
Sarasá; POEAO – Projeto Oficina
conservação
da
Escola de Artes e Ofícios; Curso de
arquitetura histórica e nos anseios da
Geografia da Universidade de São
população residente.
Paulo/USP; ETEC/Iguape (Centro
resgatar
e
padrões
valorização
Associação
de
Paula Souza - Curso de Turismo);
20 | CARINA MENDES DOS SANTOS MELO
O IPHAN E A CASA DE PATRIMÔNIO DO VALE DO RIBEIRA/SP: EXPERIÊNCIAS
Casa do Patrimônio de Ouro Preto;
trabalhos realizados pelo Iphan na
Museu da Pessoa.
região.
As
reflexões
estimuladas
durante o encontro, sobre a educação Perspectivas e Desafios
patrimonial e o papel do Iphan neste processo, reposicionaram a Casa do
O
I
Seminário
e
Patrimônio de Iguape como parte de
do
uma rede nacional de Casas do
Patrimônio realizado no final de
Patrimônio. Este fato apontava a
2009 foi um momento emblemático
possibilidade
de avaliação das primeiras Casas, e
informações
de reflexão para o estabelecimento de
caminho
capaz
diretrizes
sua
enquanto
seu
de
referencial
Planejamento
de das
comuns
constituição
e
Avaliação Casas
para
formulação
atividades. Conceitualmente,
da e
troca
de
experiências, de papel
regional
um
fortalecê-la como em
pólo ações
educativas pautadas na temática do patrimônio
cultural.
Após
o
A Casa do Patrimônio tem por
encontro, passou-se denominar como
objetivo
um
Casa do Patrimônio do Vale do
a
Ribeira; contudo, a consolidação de
comunidade local, de articulação
sua atuação regional, trata-se de um
institucional e de promoção de ações
desafio a ser ainda transposto:
espaço
constituir-se de
como
interlocução
educativas,
visando
favorecer
a
com
fomentar
do
Ficou ainda o entendimento da
conhecimento e a participação social
necessária formação de uma rede
para o aperfeiçoamento da gestão,
partindo
proteção, salvaguarda, valorização e
estabelecimento
usufruto
locais/regionais. Esta rede vem se
do
construção
e
patrimônio
cultural.
(CARTA, 2010)
da
Casa, de
através
do
parcerias
formando gradativamente, o que tem possibilitado a implementação de
A Casa do Patrimônio de Iguape teve
uma diversidade de ações educativas.
participação
Nesta ótica, a gestão do espaço segue
naquele
neste
momento,
Seminário; haviam
sido
compartilhada. Em geral, os projetos
realizadas ações estruturantes, sua
que tratam de patrimônio cultural,
inauguração, as primeiras oficinas e
formas
uma exposição temática sobre os
valorização etc. são sempre bem-
de
registro,
apropriação,
CARINA MENDES DOS SANTOS MELO| 21
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE - SP
vindos e encontram a Casa de portas
coletiva e deve, antes de tudo, ser
abertas.
compreendida,
(re)construída
e
compartilhada, para que não se Para o Iphan, a Casa do Patrimônio
configure apenas como uma visão
efetiva-se
técnica
espaço
principalmente
de
interlocução
como com
a
institucional.
reconhecimento
de
O
que
a
comunidade local, uma das missões
participação social deve ser uma das
previstas na Carta de Nova Olinda,
premissas de todos os trabalhos de
aberta ao debate e à participação
identificação,
social para gestão do patrimônio
valorização do patrimônio cultural
cultural, conforme previsto no Termo
tem sido patente dentro do Iphan.
gestão,
proteção
e
de Cooperação Técnica. Tem sido estratégica nesta aproximação entre
Os desafios são muitos, mas as
a
perspectivas são promissoras.
instituição
e
desmistificando proteção
do
regional
a
o
população, trabalho
acervo e
de
equipe da Casa do Patrimônio do
patrimonial
Vale do Ribeira encontra-se num
compartilhando
responsabilidades. Entendemos
que
A
momento
de
avaliação
de
sua
atuação até o momento com o intuito a
proteção
patrimonial deve ser uma tarefa
de
desenhar
suas
próximas
diretrizes.
Referências Bibliográficas: SENTIDOS URBANOS: Patrimônio e Cidadania. IPHAN, FAOP, UFOP: Ouro Preto, 2010. CARTA DE NOVA OLINDA. Documento final do I Seminário de Avaliação e Planejamento das Casas do Patrimônio. IPHAN: Nova Olinda/CE, 2010. Disponível em: http://educacaopatrimonial.files.wordpress.com/2010/08/cartaa5_09marco2010. pdf Sites acessados: Blog da Casa do Patrimônio do Vale do Ribeira: http://casadopatrimoniovaledoribeira.wordpress.com/, acesso em 14 de agosto de 2011. Blog de Educação Patrimonial: http://educacaopatrimonial.wordpress.com/, acesso em 14 de agosto de 2011.
22 | CARINA MENDES DOS SANTOS MELO
Foto: Helena Rios, arquivo Iphan/SP EDUCAÇÃO PATRIMONIAL PARA O EXERCÍCIO DA CIDADANIA
REFLEXÕES: SIMONE SCIFONI | 23 cidade, patrimônio cultural e educação
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
EDUCAÇÃO PATRIMONIAL PARA O EXERCÍCIO DA CIDADANIA Simone Scifoni Introdução Vinte anos se passaram desde que a Constituição Federal inaugurou uma noção
renovada
cultural,
de
patrimônio
imprimindo
postulados,
os
encontravam
presentes
novos
quais
já tanto
se no
debate sobre o tema como em algumas práticas institucionais. Com a definição estabelecida no artigo 216 da Constituição superouse
a
noção
de
patrimônio
exclusivamente centrada nos “fatos memoráveis”
da
história
oficial
nacional, tal qual estava estabelecido bem antes no Decreto Lei Federal no 25, de 1937, permitindo assim a compreensão da memória nacional para
além
daquela
postura
eminentemente
celebrativa.
mesmo
tempo
isso
ampliar
a
visão
do
patrimônio desvinculando o valor cultural do caráter necessariamente excepcional bens.
A
ou
monumental
partir
da
dos
Constituição
Federal o valor cultural deve ser atribuído àqueles bens portadores de referência
à
ação,
24 | SIMONE SCIFONI
memória
Decreto-lei Federal no 25/1937: Art. 1o: Constitui patrimônio histórico e artístico nacional o conjunto de bens móveis e imóveis existentes no país e cuja conservação seja de interesse público, quer por sua vinculação a fatos memoráveis da história do Brasil, quer por seu excepcional valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico. Bens intangíveis: São aqueles de natureza imaterial tais como os saberes (conhecimentos e modos de fazer), as formas de expressão (manifestações artísticas), as celebrações (rituais e festas). Fonte: Decreto federal 3.551/2000.
Ao
possibilitou
tradicional
Artigo 216 da Constituição Federal: Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira.
e
identidade
dos
diversos
grupos
sociais que compõe a nação e, com isso,
possibilita-se
reconhecer
o
patrimônio como memória plural. Outros
avanços
estabelecida foram:
a
noção
constitucionalmente inclusão
dos
bens
como
uma
nova
intangíveis categoria
na
de
patrimônio
a
ser
EDUCAÇÃO PATRIMONIAL PARA O EXERCÍCIO DA CIDADANIA
necessidade de construir uma nova Iphan, Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, órgão vinculado ao Ministério da Cultura e criado em 1937. Está presente nos estados da federação, por meio de suas superintendências estaduais e escritórios técnicos.
relação da população com o seu
Condephaat, Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo, órgão vinculado à Secretaria de Estado da Cultura e pela Lei 10.247 de 1968. Teve sua estrutura modificada pelo decreto 50.941/2006. O processo de tombamento é regulamentado pelo Decreto 13.426/1979.
distanciamento entre os órgãos de
Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico e Cultural de Iguape, criado pela Lei 1.927 de 2007 e tem sua sede na Casa de Patrimônio do Vale do Ribeira.
resulta a fraca participação social em
patrimônio. Isso porque no Brasil, nem sempre a população se identifica com o patrimônio cultural tombado, resultado
de
um
histórico
preservação e a sociedade. Essa distância histórica, justificada pelos contextos políticos de criação dos
órgãos
de
preservação
federal e estadual paulista não se reverteu plenamente hoje e disso todo
o
processo.
Ausência
de
participação social vai desde a eleição dos bens patrimoniais, ou seja, do o
que deve ou não ser tombado,
entendimento do patrimônio natural
passando também pela definição de
como parte da natureza incorporada
usos para esses bens, principalmente
à memória social e parte da vida
no caso de patrimônios públicos, e
humana.
culmina em projetos de restauração
Estes postulados propostos desde
que nem sempre levam em conta a
então
novos
relação afetiva entre as comunidades
desafios para os órgãos públicos,
e o seu patrimônio e, portanto, os
uma árdua tarefa de pensar e
valores sociais envolvidos em uma
estabelecer outras formas de atuação
tarefa que não é meramente técnica e
para proteger o patrimônio cultural,
nem implica somente em critérios de
já que as metodologias e práticas que
autenticidade. Como resultado, via
foram utilizadas por décadas atrás,
de regra, aparecem conflitos, tensões
nem
e
protegida
e
têm
reconhecida
implicado
sempre
e
em
conseguem
dar
essas
questões
colocam
na
atualidade
que está
uma
imagem
negativa do patrimônio e dos órgãos
respostas às novas necessidades. Dentre
freqüentemente
se
de preservação.
a SIMONE SCIFONI | 25
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
Neste
contexto,
Patrimonial,
a
dentre
Educação as
diversas
localmente no seio de grupos sociais não
hegemônicos.
Propiciar
formas de aproximação entre os
mecanismos de valorização destas
órgãos de preservação do patrimônio
memórias é parte essencial do que a
e a sociedade, tem sido vista como
autora chamou de cultura política.
fundamental e com papel estratégico. No entanto, esse papel muitas vezes
Afinal, é preciso questionar, o que
tem se restringido na atuação ora
vem a ser a Educação Patrimonial,
como difusão de informações, ora
quais são seus propósitos e seus
como
princípios?
marketing
institucional.
Tradicionalmente Patrimonial
tem
a
Educação
sido
entendida
como atividade de divulgação e de
O papel e o lugar da Educação Patrimonial
transmissão de informações após a realização dos tombamentos, dentro
Pode-se afirmar que a gênese do que
da
chamamos
idéia
redentora
de
levar
hoje
de
Educação
conhecimento ao outro, conforme
Patrimonial se deu no interior dos
discutem Silveira & Bezerra (2007).
museus. Chagas (2006, p.5) nos
Ou então tem sido tratada como peça
lembra que apesar de ainda não estar
de publicidade oficial, por meio de
prevista esta expressão, as práticas
folhetos, cartazes e outros materiais
da educação patrimonial já ocorriam
de
nos museus brasileiros desde o
divulgação
elaborados
sem
preocupação didática qualquer.
século XIX, conforme constatamos na seguinte citação:
Mas há outra possibilidade, aquela de trabalhar a Educação Patrimonial em sua dimensão política ampla, a partir da concepção de que tanto a memória como o esquecimento são produtos
sociais
e
não
dados
aleatórios, segundo apresenta Chauí (2006). À história oficial celebrativa dos dominantes se contrapõe a memória
social,
26 | SIMONE SCIFONI
constituída
No senso comum a expressão “educação patrimonial” significa apenas o desenvolvimento de práticas educativas (mais ou menos transformadoras) tendo por base determinados bens ou manifestações considerados como patrimônio cultural. Esse não é um entendimento estranho a Paulo Freire, Darcy Ribeiro, Gilberto Freyre, Gustavo Barroso, Anísio Teixeira, Roquete Pinto, Liana Rubi O’Campo, Sigrid Porto, Waldisa Russio e tantos outros. De igual modo, este entendimento,
EDUCAÇÃO PATRIMONIAL PARA O EXERCÍCIO DA CIDADANIA
ainda que não lançasse mão da expressão em debate, estava presente em práticas museológicas do século XIX e no serviço educativo do Museu Nacional, formalmente criado em 1926. (grifo nosso)
A expressão surge no Brasil muito recentemente, quando em 1983 é apresentada
em
um
seminário
realizado no Museu Imperial de Petrópolis, no Rio de Janeiro, como tradução
do
termo
Heritage
Education e baseada na experiência que até então era desenvolvida na Inglaterra. A partir da edição do Guia
Básico
de
Educação
Patrimonial publicado pelo Iphan na década de 1990, o termo ganha força e se consolida.
Educação Patrimonial como um novo campo de atuação. No entanto, enquanto as práticas se ampliaram, o mesmo
não
ocorreu
com
a
fundamentação teórica e a reflexão crítica sobre estas ações, o que coloca atualmente o desafio da necessidade do debate e da construção coletiva desta fundamentação. A ausência de uma base teórica consistente nesse novo campo de atuação
chamado
de
Educação
Patrimonial tem permitido que se generalizem meramente representa
ações
de
informativo, uma
caráter o
limitação
que desse
campo. O cerne da problemática está no fato de que tais ações não transformam a realidade sobre a qual elas pretender agir, pois não foram
Guia Básico de Educação Patrimonial é uma publicação do Iphan e tem como autoras Maria Lourdes Parreiras Horta, Evelina Grunberg e Adriane Queiroz Monteiro.
pensadas para isso. No entanto, elas se
somam
e
alimentam
um
crescimento quantitativo do campo de atuação - já que nunca se falou tanto em Educação Patrimonial como
Ao longo do tempo as atividades
hoje -, porém sem necessariamente
foram ultrapassando os muros dos
significar,
museus,
processo de transformação.
se
multiplicaram
expandiram em
e
projetos
qualitativamente,
um
nos
órgãos de proteção da memória,
Acreditamos que o debate teórico
cultura e patrimônio, nas instituições
deve se posicionar, inicialmente,
de
sobre o papel e o lugar a ser ocupado
ensino
e
generalizando
organizações e
civis,
consagrando
a
pela
Educação
Patrimonial,
SIMONE SCIFONI | 27
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
problematizando questões sobre as
desde muito cedo, uma relação
quais é urgente refletir. As atividades
próxima
educativas
ser
comunidades do lugar em que se vai
relegadas à etapa final do processo de
atuar. Neste caso ela se revela como
identificação, estudo e proteção do
uma possibilidade de participação
patrimônio
social
continuarão
cultural,
meramente tombados
a
divulgação ou
como
como dos
bens
forma
de
e
na
ausência de participação social no
envolvidas.
tratadas
como
a
com
de
as
um
compartilhado,
considerando as necessidades e as expectativas
Continuarão
construção
patrimônio
resolução de conflitos gerados pela processo?
dialógica
das
comunidades
serem
apêndice,
Este é o lugar e o papel que lhe cabe.
desvinculado do planejamento das
Neste
ações de estudo? Que papel elas
Patrimonial reconhece a existência
devem
ser
de um saber local, considera e
entendidas como atividades em si
valoriza o olhar e a vivência dos
mesmas ou elas se integram a um
moradores,
projeto
para uma concepção de educação de
cumprir,
de
devem
transformação
da
realidade e do mundo que vivemos?
sentido,
a
Educação
sinalizando-se,
assim,
caráter dialógico, conforme propôs Freire (2011), na qual se busca a
Planejar uma atividade de Educação
consciência crítica, aquela que insere
Patrimonial implica em ter claro,
as
antes de tudo, as respostas para estas
mundo, uma educação libertadora.
pessoas
como
sujeitos
no
questões. O papel da Educação Patrimonial O
desafio
hoje
Patrimonial
Educação
uma “educação para o patrimônio”,
componente essencial de todo o
como se esta se restringisse apenas à
processo
compreensão
de
torná-la
deve ser o de superar aquela visão de
um
patrimônio,
é
da
identificação o
das Para
questões uma
do
significa
patrimônio.
incorporá-la como atividade pari
patrimonial
passu e integrada às pesquisas de
patrimônio e a cultura são elementos
tombamento e/ou de inventário do
de mediação, através dos quais as
patrimônio imaterial, fomentando,
pessoas podem se reconhecer como
28 | SIMONE SCIFONI
que
do
educação
libertadora,
o
EDUCAÇÃO PATRIMONIAL PARA O EXERCÍCIO DA CIDADANIA
sujeitos da realidade e do mundo.
Pressupostos para a Educação
Reconhecem-se
Patrimonial
a
partir
da
valorização de sua cultura e de uma postura problematizadora em relação
Na tentativa de iniciar um debate
à história, à memória oficial e ao
teórico que possa fundamentar mais
patrimônio.
coerentemente as ações e as práticas propomos
dois
Por meio do patrimônio e da cultura,
essenciais
mas
Patrimonial de caráter dialógico e
apenas
problematizador
sob
um
olhar
e
sob
uma
para
pressupostos uma
Educação
libertador.
perspectiva dialógica, como propôs Paulo Freire, é possível contribuir
Em
para a tomada de consciência
desmistificar
dos homens como sujeitos da
patrimônio, o que significa explicitar
sua própria história. Este sim
que os patrimônios não são objetos
deve
da
dados, cabendo ao poder público
Educação Patrimonial. Não significa
apenas a tarefa de reconhecer neles
de
ser
o
forma
objetivo
maior
primeiro
lugar, e
é
preciso
desfetichizar
alguma,
dentro
da
valores
freireana,
tomada
de
atribuídos, resultado de escolhas que
consciência em relação à cultura,
são feitas. Como nos lembra Meneses
como se esta estivesse fora da
(1996), os valores culturais não são
realidade objetiva considerada ou
espontâneos, eles decorrem da ação
como se tratasse de levar cultura aos
social, eles são produzidos no jogo
lugares
É
concreto das relações sociais. Valores
como
são historicamente constituídos, o
mediação, ou seja, como meio que
que significa seu caráter relativo ao
contribuirá para a consciência dos
tempo, as condições em que a
homens sobre o seu papel de sujeito,
sociedade opera naquele momento.
consciência de si mesmo e de sua
Isso significa que um patrimônio
ação.
reconhecido não tem valor em si
concepção
destituídos
compreender
a
desta.
cultura
mesmo,
intrínsecos.
ele
possui
Valores
o
são
propriedades
estéticas, físicas para as quais são atribuídos valores, em determinado momento e contexto histórico. SIMONE SCIFONI | 29
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
universo onde essas escolhas são Disto resulta o caráter político e,
parte do aparelho onde está sediado
portanto, conflituoso do universo
o exercício do poder? Estas questões
cultural.
devem fazer parte da Educação Patrimonial, do contrário somente
Declaram-se valores e propõem-se sentidos que podem entrar em conflito com outros valores e sentidos. O campo cultural, portanto, imbrica-se no do poder. Assim, o conflito deve ser considerado não apenas como ingrediente normal da cultura, mas ainda como instância geradora, força motriz. Como conseqüência, pretender que a cultura tenha funções anestésicas, de harmonização e integração social, já é uma forma cultural de agir (segundo interesses hegemônicos), mas desfigura o fenômeno se pretender eliminar de seu horizonte especificamente o conflito, a desarmonia, a segmentação. (MENESES, 1996, p. 92)
contribuiremos para a fetichização do patrimônio e para que este se torne um instrumento de reprodução das relações de dominação e de desigualdade social. Seguindo um modelo internacional de
proteção
do
fundamentalmente
patrimônio, francês
e
europeu, a escolha histórica dos nossos órgãos de preservação deu-se pela representação da memória a partir de tudo que é monumental e excepcional,
simulando
uma
Assim sendo, o patrimônio não é
sociedade nacional cujos símbolos
neutro,
são
são a grandiosidade e o prestígio. Ao
determinadas
mesmo tempo apagam-se os conflitos
legitimados
e as desigualdades que marcaram os
por
meio
explicitadas hegemonias
dele
e
vista
processos históricos, como quando se
perante a sociedade. Para Chagas
preserva unicamente as sedes da
(2002), na prática, não há como
fazenda,
separar memória e preservação do
deixa-se desaparecer as senzalas e as
exercício
casas de colonos.
determinados
do
pontos
poder.
de
Pergunta-se:
mas,
em
contrapartida
quem são os responsáveis pelas escolhas que se faz do que deve ou
Ainda, segundo este mesmo autor, a
não ser preservado? Como essas
desigualdade do patrimônio aparece
escolhas são feitas e em nome de
também na hierarquia de valores
quais memórias? Pode haver critério
atribuída,
absolutamente
capitais culturais na qual vale mais a
objetivo
30 | SIMONE SCIFONI
em
um
uma
hierarquia
dos
EDUCAÇÃO PATRIMONIAL PARA O EXERCÍCIO DA CIDADANIA
arte, a cultura escrita e as formas
paulista,
eruditas do que o artesanato, a
patrimonial
cultura oral e as formas populares,
tipológica e promovendo um olhar
respectivamente.
patrimônio
voltado para o interior do estado,
cultural serve, assim, como recurso
contemplando outros territórios e
para produzir as diferenças entre os
novas temáticas.
“O
ampliando e
o
sua
estoque
diversificação
grupos sociais e a hegemonia que gozam de acesso
preferencial
à
Reconhecer de vez o caráter desigual
produção e distribuição dos bens”
do patrimônio cultural é condição
(CANCLINI, 1996, p.97).
essencial
para
uma
Educação
Patrimonial libertadora e que busca a Neste modelo de patrimônio cultural,
transformação
como é possível que operários e
Reconhecer
camponeses, por exemplo, possam se
começa na eleição e sacralização do
enxergar neste conjunto da memória
patrimônio e que é preciso uma
nacional? Marins (2008), ao analisar
participação mais igualitária na sua
as políticas públicas federais em São
construção,
Paulo, é incisivo ao afirmar que as
Canclini (1994). E assim, ao garantir
escolhas
grande
uma participação social efetiva na
parte das “multifacetadas heranças
construção das políticas de proteção
culturais”. Ainda, segundo o autor a
da memória e do patrimônio, criar a
“[...] memória unívoca de uma ‘nação
condição para que a população possa
brasileira’ não acolhia, nem poderia
se identificar e se enxergar no
acolher,
patrimônio e na memória oficial. É
feitas
a
excluíram
imensa
maioria
dos
brasileiros”(op.cit, p.146).
realidade.
a
desigualdade
conforme
discute
fundamental, para tanto, considerar no
Os
que
da
processo
de
valoração
do
estudos
que
vem
sendo
patrimônio cultural, além dos valores
desenvolvidos
pelo
Iphan,
desde
estéticos e formais, os laços afetivos,
2007, para a identificação e proteção
sociais, simbólicos.
do patrimônio cultural na região do Vale
do
Ribeira
procuraram
Tem-se aqui o segundo pressuposto
enfrentar esse desafio. Criar um
essencial
mapa do patrimônio mais plural e
Patrimonial libertadora e dialógica,
representativo
ou seja, a necessidade de uma
da
diversidade
para
a
Educação
SIMONE SCIFONI | 31
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
postura problematizadora frente a
tudo fora, mas enxergar esse nosso
este patrimônio cultural e, portanto,
legado a partir de uma perspectiva
à própria realidade objetiva. Isso
mais crítica. Considerar o patrimônio
significa superar aquelas ações que
no contexto dos processos sociais, em
apresentam
seu
apenas
meramente
um
caráter
contraditório
que
e
revela riqueza mas, ao mesmo tempo,
conteúdista, enquadrando-se dentro
limitações e indigência humana. Um
do que Freire (2011) chamou de
patrimônio que pode ter sua leitura
“concepção bancária”. Nesta o ato é
feita a partir da produção de riqueza
de depositar, de transferir conteúdos
material, da técnica, do comércio e
não se propondo ao desvendamento
das mercadorias, mas que não deve
do
esconder as relações de trabalho,
mundo.
perspectiva
informativo
cotidiano
As
pessoas,
educacional
nesta são
o
desigualdade, sujeição e opressão.
público, objeto sobre o qual devemos agir.
Tal qual propõe Benjamim (2010, p.225), reconhecendo que nunca
Ao contrário, segundo o autor, a
houve um documento de cultura que
educação problematizadora é um
não fosse também um documento de
esforço
os
barbárie. “E assim como a cultura
homens, sujeitos do processo, vão se
não é isenta de barbárie, não é,
percebendo criticamente no mundo,
tampouco, o processo de transmissão
no qual pensam a si próprios e sua
da cultura. Por isso, na medida do
condição frente à realidade. “Desta
possível, o materialista histórico se
forma, aprofundando a tomada de
desvia dela. Considera sua tarefa
consciência da situação, os homens
escovar a história a contrapelo.”
permanente
no
qual
se ‘apropriam’ dela como realidade histórica, por isto mesmo, capaz de
A expressão “escovar a história a
ser transformada por eles”. (FREIRE,
contrapelo” sugere para a Educação
2011, p.104).
Patrimonial
a
necessidade
de
problematização da memória oficial, Uma
Educação
Patrimonial
superação da visão celebrativa e
problematizadora não significa, de
acrítica dos patrimônios, aquela que
forma
não vê conflitos e opressão, mas
alguma,
desconsiderar
o
conjunto de bens já constituído, jogar 32 | SIMONE SCIFONI
somente
heróis.
A
história
a
EDUCAÇÃO PATRIMONIAL PARA O EXERCÍCIO DA CIDADANIA
contrapelo é recusar identificar-se
trabalhadores, de suas condições
com o opressor, é a busca por novos
reais e objetivas de trabalho e vida? É
olhares,
vista
feita uma reflexão sobre as relações
radicalmente oposto, iluminando no
de trabalho escravo e a criação dessa
processo o ponto de vista dos
riqueza
oprimidos,
edificações?
sob
ponto
dos
de
esquecidos.
material,
expressa
nas
Valorizando o trabalho vivo e o trabalhador
como
o
verdadeiro
O mesmo pode-se dizer de outros
criador de riquezas, como sujeitos da
sujeitos
cultura;
referenciados. Escovar a história a
dá-se,
assim,
um
novo
sentido a esse mesmo patrimônio.
dessa
contrapelo discute
é
história mostrar,
Diegues
(2004),
pouco conforme que
a
No Vale do Ribeira “escovar a
história caiçara ainda está por ser
história a contrapelo” pode significar
escrita,
olhar para o patrimônio e enxergar
documentação escrita sobre estas
por detrás dos casarões de pedra e
comunidades,
cal, o trabalho de tantos escravos
grandes famílias e seus engenhos e
negros e sua condição de opressão e
fazendas. Segundo este autor, o
exploração. O êxito da exploração do
caiçara, entendido como fruto da
ouro, durante o período colonial,
mistura do elemento indígena, do
somente foi possível a partir da
colonizador português e do escravo
instituição da força de trabalho
africano, teve um papel importante
escrava que abastecia os garimpos. A
na
população escrava de origem africana
mercantil, produzindo gêneros de
chegou até mesmo a superar a de
primeira necessidade para abastecer
homens livres, mostrando o papel
o mercado local, tais como a farinha
que estes trabalhadores tiveram na
de mandioca, o pescado e a lenha.
dada
a ao
manutenção
ausência contrário
da
de das
economia
criação de riquezas materiais, da arquitetura, da cidade histórica que
A perspectiva de uma Educação
hoje se identifica como de valor. Mas
libertadora e emancipatória pede que
o
esta
se ilumine e valorize a história destes
Quando
sujeitos. Trabalhar com Educação
enfatizamos a arquitetura de pedra e
Patrimonial em Iguape e no Vale do
cal tombada, é lembrado destes
Ribeira é tratar destes sujeitos da
quanto
perspectiva
estudamos na
escola?
sob
SIMONE SCIFONI | 33
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
história, tanto quanto se trata das
reconhecendo, assim, o seu conteúdo
construções
social.
do
centro
histórico,
Referencias Bibliográficas: BENJAMIM, W. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 2010. CANCLINI, N. G. O patrimônio cultural e a construção imaginária do nacional. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Brasília: Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, nº 23, 1994. p.95-115. CHAGAS, M. Educação, museu e patrimônio: tensão, devoração e adjetivação. Dossiê Educação Patrimonial nº3, Iphan, jan/fev. 2006. CHAUI, M. Cidadania cultural. O direito à cultura. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2006. FREIRE, P. Conscientização: teoria e prática da libertação. São Paulo: Centauro, 2001. FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2011. HORTA, M. L. P.; GRUMBERG, E.; MONTEIRO, A. Q. Guia Básico de Educação patrimonial. Brasília: Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Museu Imperial, 1999 MARINS, P. C. G.. Trajetórias da preservação do patrimônio cultural paulista. In: SETUBAL, M. A. (coord). Terra paulista: trajetórias contemporâneas. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2008. p.137-168. MENESES, U.B.T. Os usos culturais da cultura. Contribuição para uma abordagem crítica das práticas culturais e políticas culturais. In: YAZIGI, E.; CARLOS, A.F.A.; CRUZ, R.C.A. (orgs) Turismo Espaço Paisagem e Cultura. São Paulo: Hucitec, 1996. SILVEIRA, F. L. A.; BEZERRA, M. Educação Patrimonial: perspectivas e dilemas. In: LIMA FILHO, M.F.; ECKERT, C.; BELTRÃO, J.F. (orgs). Antropologia e patrimônio cultural: diálogos e desafios contemporâneos. Blumenau: Nova Letra, 2007.
34 | SIMONE SCIFONI
IGUAPE, ARQUITETURAS EM PROCESSO E CONSTRUÇÃO DA PROTEÇÃO FEDERAL
IGUAPE, ARQUITETURAS EM PROCESSO E CONSTRUÇÃO DA PROTEÇÃO FEDERAL Flávia Brito do Nascimento Em dezembro de 2009 o conselho consultivo
do
Iphan
aprovou
o
tombamento do Centro Histórico de Iguape, numa decisão que trouxe novidades
importantes
para
a
política de patrimônio no Estado de São Paulo. A primeira proteção em esfera federal de núcleo urbano no estado, a inclusão do patrimônio
Hermann Kruse foi um alemão, naturalizado brasileiro, contratado pelo IPHAN para expedições etnográficas. Luís Saia foi arquiteto e comandou o IPHAN em São Paulo de 1938 até o seu falecimento em 1975. Lúcio Costa foi arquiteto, urbanista e professor, nasceu em 1902 e faleceu em 1998, entre seus principais legados está o Plano Urbanístico de Brasília.
natural como parte integrante dos bens edificados, a construção do
edifícios antigos (igrejas, casas de
estudo feita de modo indissociável da
residências,
educação
o
pesquisas
em
entendimento dos vestígios materiais
quaisquer
outros
a partir dos processos históricos e de
naturais ou não que tenham interesse
sua sobreposição espacial foram de
artístico
decisões metodológicas do estudo
escreveu em ofício ao prefeito de
que se fundamentou nas muitas
Iguape em 9 de janeiro daquele ano.
transformações cultural
patrimonial
como
e
ou
fortes
antigos,
etc),
sambaquis
ou
monumentos
histórico”,
conforme
do
patrimônio
No dia quatorze do mesmo mês
campo
disciplinar
Kruse encaminha ao Diretor da então
postas desde a Constituição de 1988.
6ª Região, relatório escrito à mão e à
Por sucessivas vezes ao longo da
lápis, informando:
história
da
Superintendência
Regional do Iphan em São Paulo Iguape foi objeto de interesse. Em 1942,
Hermann
Kruse
foi
encarregado por Luiz Saia de viajar ao
município
“levantamento documentação
para de
realizar
plantas
fotográfica
e de
Iguape é um colosso.(...) Aqui o lugar é mais interessante que Ubatuba (Itanhém não conheço). Tem uma infinidade de construções, cujas idades ninguém pode saber. Todas elas construções de pedra e cal. As igrejas não são grande coisa. (...) Acho que futuramente Iguape será um campo de atividade vossa, a tal “casa de fundição de ouro”, precisa ser tombada e restaurada. (KRUSE, 1942) FLÁVIA BRITO DO NASCIMENTO | 35
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
acabou
não
ocorrendo.
O
Em 1968 o senador Lino de Mattos
tombamento de núcleos urbanos pelo
solicita o tombamento do núcleo
Iphan, não somente no Estado de São
urbano de Iguape, e, no ano seguinte,
Paulo, vem recorrentemente sendo
Lucio Costa escreve nota sobre o
retomado desde os anos 80. Tal
assunto:
movimento gerou diversas proteções de
A farta documentação fotográfica do arquivo data de 1942 (Kruse) e 1950 (Germano), - convirá pois indagar do Saia se o estado de preservação ainda é o mesmo, porque nesse caso impõese providência acauteladora definitiva de cuidado – embora tardia -, seja pelo Conselho do P.A.A. e T. do Estado, ou mesmo pela própria DPHAN.(COSTA, 1968)
As
prioridades
e
estratégias
de
trabalho estabelecidas pela geração fundadora do Iphan não levaram à proteção federal de Iguape como parte da
política
de construção
identitária nacional por meio do patrimônio. As alegações para a sua não-inclusão nos livros do tombo da instituição foram desde ausência de caráter de ancianidade e pouco valor individual até a falta originalidade das edificações e do tecido urbano sucessivamente
sobreposto
pelos
processos históricos.
Centro Histórico de Iguape foram (Processo
pelo 00469/74,
Instituição como
que não
na
origem
foram
sendo
de
da
arrolados
interesse
à
construção do nacional e de sua materialidade. Este é o caso dos núcleos de Antônio Prado (1990), São
Francisco
do
Sul
(1987),
Pirenópolis (1990) e Icó (1998). Não houve,
contudo,
em
São
Paulo
nenhum tombamento de centros históricos,
apenas
Ferroviária
de
o
da
Vila
Paranapiacaba,
pertencente ao município de Santo André. Diversos são os esforços que veem sendo realizados, desde os anos 2000, para a ampliação do estoque patrimonial
do
Iphan
em
todo
território nacional e incluir quer sejam bens isolados, quer sejam centros históricos no escopo dos
Em 1975 diversos bens imóveis do tombados
núcleos
Condephaat resolução
6/2/1975), e a proteção federal 36 | FLÁVIA BRITO DO NASCIMENTO
tombamentos federais. Bens imóveis que
não
se
determinados conceitos
enquadravam
em
parâmetros
ou
estabelecidos
são
investidos de novos significados e valores compatíveis com a proteção
IGUAPE, ARQUITETURAS EM PROCESSO E CONSTRUÇÃO DA PROTEÇÃO FEDERAL
federal. Tais esforços são, em grande
municípios:
medida, corroborados pela iniciativa
Registro, Iporanga, Eldorado e Apiaí.
das
Como
populações
e
dos
poderes
Iguape,
patrimônio
Cananéia,
urbano
foram
públicos locais que zelosos de seu
estudados os núcleos históricos de
passado e da materialidade ainda
Iguape, Iporanga e Registro, núcleos
existente
formados
em
suas
cidades,
demandam ações do Iphan.
pelas
atividades
econômicas da mineração no período colonial, pela cultura do arroz no
O tombamento do centro histórico de
século XIX ou do chá no século XX,
Iguape, da forma como foi realizado,
quer pela exploração ou cultivo, quer
só
tais
pela comercialização. Ouro, arroz e
processos. Ele foi gestado no âmbito
chá promoveram não só a formação
do projeto mais amplo sobre o Vale
dos
do Ribeira, intitulado “Paisagem
comercializadores, mas também da
Cultural:
de
zona rural de tais municípios, cujas
Conhecimento de Bens Culturais no
expressões de cultura são, dentre
Vale do Ribeira”, iniciado em 2007 e
outras,
desenvolvido nas ações de inventário
mineradoras, diversos quilombos que
do patrimônio cultural promovidas
deram
nacionalmente
pelo
propriedades
Departamento
do
foi
possível
diante
de
Inventário
Depam
-
Patrimônio
centros
vestígios origem
portos
do
terrestres.
no
Vale
foram
de
a
antigas
bairros
de
rurais,
imigrantes
japoneses e fábricas de chá,2 além de
Material e Fiscalização. Os objetivos inventário
urbanos
fluviais
e
de
caminhos
reconhecer a diversidade cultural da região, atribuir valor ao patrimônio
Como parte do processo de pesquisa
cultural,
e
fomentar
ações
de
levantamento
de
dados,
foi
salvaguarda a partir da publicização
realizada viagem de campo em que
do conhecimento produzido, além de
aconteceram diversas reuniões com
promover o desenvolvimento social e econômico por meio da promoção das referências patrimoniais. Sua
primeira
expressões
etapa
culturais
identificou em
seis
Como resultado do Inventário foi também elaborado o dossiê de tombamento de “Bens Culturais da Imigração Japonesa em Registro e Iguape”, visando à proteção de quatorze bens culturais, quase todos implantados em meio à área rural daqueles municípios. O tombamento foi aprovado pelo Conselho Consultivo do Iphan em junho de 2010. 2
FLÁVIA BRITO DO NASCIMENTO | 37
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
dirigentes locais e membros da sociedade civil a fim de incorporar as demandas e também identificar os bens
culturais
de
interesse
à
proteção. Tal atuação justificou-se pela
abordagem
da
Paisagem
Cultural, que significa a gestão de um
território
necessidade
e
de
implica
na
constituição
de
trabalho em rede, que possa articular diferentes esferas do setor público e organizações
da
sociedade
fomentando,
desta
coordenadas
de
forma,
civil, ações
proteção
A paisagem cultural, no âmbito do Iphan, apresenta-se como um nova categoria de patrimônio, pensada a partir das experiências desenvolvidas pela Unesco (1992) e das proposições estabelecidas na Convenção Europeia da Paisagem ( 2000). O instrumento jurídico para o seu reconhecimento e proteção dá-se com a Chancela da Paisagem Cultural. Segundo a Portaria 127 de 2009, do Iphan, em seu artigo 1o: Paisagem Cultural é uma porção peculiar do território nacional, representativa do processo de interação do homem com o meio natural, à qual a vida e a ciência humana imprimiram marcas ou atribuíram valores.
e
integrou-se à agenda do Revelando
valorização do patrimônio cultural.
Vale do Ribeira e foi realizado em
Ao longo deste período de trabalho
conjunto com a Secretaria de Estado
buscou-se organizar a montagem de
da Cultura, a Abaçaí Arte e Cultura e
uma rede a partir da identificação e
a Prefeitura Municipal de Iguape,
mapeamento dos agentes envolvidos
que teve por objetivo congregar as
e o estabelecimento de contatos
instituições, as municipalidades e a
iniciais viabilizados na execução dos
sociedade civil para traçar estratégias
trabalhos de campo.
conjuntas de atuação quanto ao patrimônio
cultural
do
Vale
do
No município de Iguape foi expresso
Ribeira. Compareceram cerca de 25
o interesse, por parte da Prefeitura
instituições com atuação no Vale do
Municipal, do tombamento do seu
Ribeira que puderam debater sobre o
centro histórico, pedido formalizado
tema
em junho de 2008 pela prefeitura de
expressando intenções e demandas.
município Maria Elizabeth da Silva
O centro histórico de Iguape foi
ao diretor do Depam Dalmo Vieira
entendido e estudado no âmbito dos
Filho,
do
processos históricos formadores da
Paisagem
sua fisicidade, os quais remontam ao
Ribeira:
período da exploração aurífera no
Planejamento Estratégico. Tal evento
século XVI, às atividades ligadas à
quando
da
realização
Encontro
de
Trabalho
Cultural
no
Vale
do
38 | FLÁVIA BRITO DO NASCIMENTO
do
patrimônio
cultural,
IGUAPE, ARQUITETURAS EM PROCESSO E CONSTRUÇÃO DA PROTEÇÃO FEDERAL
construção naval, a partir de meados
núcleos urbanos de São Paulo. Foram
do XVIII e à cultura de arroz no
erguidos segundo ordenamentos da
século XIX. O acautelamento do sítio
Coroa Portuguesa, para abrigar a
procurou respeitar a passagem do
administração
tempo nos espaços da cidade e
território, e cumprir funções de
proteger
guarda do território. Voltadas para as
as
muitas
expressões
pública,
funções
sociais e culturais da cidade. Olhou-
eminentemente
se para os bens imóveis de Iguape
também o contato com o interior por
considerando
as
meio do rio Ribeira de Iguape, que
inúmeras sobreposições e rearranjos
transportava os produtos, ao mesmo
espaciais constituídos ao longo de
tempo em que forjava os modos de
muitas décadas. As representações
ser e construir.
valor
de
o
impostas pelas variações econômicas,
como
litorâneas,
ocupar
caráter
portuário,
foram
históricas de diversos momentos são parte evidente de sua feição atual.
Iguape
São para, além disso, parte dos
composto por importantes casas e
sentidos
e
sobrados de pedra e cal remontam ao
históricos dos que as habitam, os
período da exploração aurífera no
quais lhes asseguram, em algum
século XVI, das atividades ligadas à
sentido,
construção naval a partir de meados
identitários,
sua
sociais
permanência
tanto
física, quanto simbólica.
tem
seu
sítio
urbano
do XVIII e da cultura de arroz no século XIX. A Igreja do Bom Jesus de
O litoral do Vale do Ribeira foi local
Iguape,
que
atrai
chave para a projeção de expedições
romeiros de todo Brasil para a festa
ao sertão, desde os primeiros tempos
do padroeiro, inaugurada em 1858, é
da conquista ibérica. A união entre as
ponto focal no tecido construído.
coroas portuguesa e espanhola entre
Sobressaem também o Sobrado do
1580 e 1640 tornou o Tratado de
Toledo,
Tordesilhas não operativo no sul do
neoclássico e as casas da Rua das
País. No litoral estão os municípios
Neves, ou do chamado Funil, o mais
de Cananéia e Iguape, construídos
antigo conjunto arquitetônico da
em pedra e cal, dentre os primeiros
cidade.
relevante
milhares
de
exemplar
FLÁVIA BRITO DO NASCIMENTO | 39
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
povoamento,
das
contingências
Neoclássico aqui se refere à arquitetura surgida durante o neoclassicismo, movimento cultural do fim do século XVIII, que utilizava elementos clássicos que remontavam a antiguidade grega e romana na composição de novas edificações.
estratégias
econômicas,
e do
território e das sociabilidades. O
núcleo
urbano
de
Iguape
caracteriza-se pela singularidade do traçado urbano, com ruas levemente
A arquitetura ainda existente em
sinuosas
Iguape
Ribeira,
pequenas ruas estreitas e com a
sucessivamente
dominante Praça da Basílica, pela
e
no
apropriada revestida
Vale e
de
novos
do
e
entrecortadas
por
significados,
impressionante riqueza dos marcos
permite também compreender certa
naturais que a circundam e dela
dimensão dos processos sociais da
fazem parte, e, finalmente, pela
cultura, como os modos de morar. A
composição de arquiteturas que lhe
arquitetura
documento
conferem aspecto de conjunto, e, ao
histórico, que deve ser interpretado e
mesmo tempo, são o testemunho dos
investido de significado, para fins de
sucessivos processos históricos e
pesquisa,
culturais dos seus muitos anos.
é
ser
valoração
patrimonial,
construção identitária e apropriação econômica. Para valorar as suas
O visível tecido urbano da cidade se
expressões
arquitetônicas
e
relaciona
compreender
seu
é
momento de ocupação do território
necessário ter em conta o contexto e
brasileiro, em que a defesa era fator
os
central para escolha do sítio. O
processos
potencial
sociais
que
as
à
sua
história
e
ao
produziram e que seguem dotando-
primeiro
as de sentido. No Vale do Ribeira
implantado junto à barra do Rio
encontram-se técnicas e formas de
Ribeira de Iguape, em Icapara, que
ocupação tanto do litoral, como
logo se mostrou vulnerável, já que
construções em pedra, e do planalto,
junto ao mar aberto. O sítio onde se
como construções com técnicas de
desenvolveu a cidade é bastante
barro.
significativo do ponto de vista da
Estas
denotam
a
núcleo
complexidade e a singularidade do
defesa
patrimônio
circulação.
material
do
vale,
resultado da sua história, de seu 40 | FLÁVIA BRITO DO NASCIMENTO
e
da
urbano
possibilidade Iguape
foi
de está
estrategicamente localizada junto a
IGUAPE, ARQUITETURAS EM PROCESSO E CONSTRUÇÃO DA PROTEÇÃO FEDERAL
três marcos na paisagem da baixada do rio de Ribeira: a oeste, o Morro do Espia, elevação de grande destaque toda
a
região
majoritariamente
plana, no norte, a cerca de 2 km do que hoje é o centro histórico, o rio Ribeira de Iguape, grande eixo de circulação de produtos como ouro e arroz em toda a história da região e, Mapa do centro histórico de Iguape. Fonte: IGC, 1943.
no sul, o braço de mar, chamado Mar Pequeno. Este garantia fácil acesso ao mar aberto, mas também, lhe dava
A função de controle conferiu a
certa
Iguape tecido bastante singular. O
proteção,
por
ter
a
Ilha
Comprida à sua frente.
núcleo
inicial,
implantado
em
terreno de topografia praticamente A implantação do sítio urbano de
plana, tem formato que se assemelha
Iguape tirou partido dos elementos
a uma elipse de pontas alongadas,
geográficos singulares da região,
onde estão os chamados funis. A Rua
tendo em vista os objetivos de
XV de Novembro e a orla do Mar
conquista
dos
Pequeno são os limites externos
de
deste formato que desaparece na Rua
outras cidades coloniais que lhe são
Major Rabelo de desenho retilíneo.
contemporâneas, a cidade não foi
As curvas suaves, as pequenas vielas,
construída em alto de elevações, o
o
que lhe tornava mais vulnerável. Esta
pequenos largos e repleto esquinas,
é uma das explicações para o traçado
garantem ao transeunte percursos
original
dinâmicos e ricos em visadas e
e
colonizadores.
do
desbravamento Diferentemente
núcleo,
fechado
ao
traçado
não
ordenado,
com
exterior, voltado para si mesmo e
perspectivas.
com aspecto de fortificação. Suas
pequenas ruas com lotes estreitos é a
ruas
com
grande praça da Basílica do Bom
pequenas aberturas para o exterior,
Jesus, cuja imponente construção
dispostas em semicírculo, como a
domina
Rua XV de novembro, contribuíam
conjunto imediato e da cidade. A
para o controle do núcleo urbano.
praça de São Benedito, de formato
em
forma
de
funil,
todo
O
contraste
composição
das
do
FLÁVIA BRITO DO NASCIMENTO | 41
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
retangular e tendo a igreja em uma
neoclássico,
de suas extremidades, situa-se numa
diversidade
das
arquitetônicas que se sobrepuseram
extremidades
do
centro
informam
sobre
de
no
do funil. O chafariz ao centro praça
térreas com fins comerciais (com
era
portas
do
sistema
de
urbano
expressões
tradicional, para fora das ruas curvas parte
tecido
a
em
toda
inicial.
Casas
fachada)
são
abastecimento da cidade que se
encontradas na Praça da Basílica. Em
iniciava onde está a Fonte do Senhor,
torno da Praça de Benedito, por
no sopé do Morro da Espia.
tratar-se de ocupação posterior ao núcleo central em torno da Basílica
O núcleo central da cidade, composto
são encontrados terrenos de testada
por
quadras,
maior, com casas implantadas na
conformadas por lotes de pequena
lateral do lote com jardins também
testada, podendo ser mais ou menos
laterais.
cerca
de
30
profundos. Estes abrigam casas de meia morada e de porta e janela, ocupando majoritariamente as Ruas XV de novembro, Rua das Neves ou do Funil e Rua Tiradentes, com trechos significativos de unidade e continuidade visual. Na Praça da Basílica e nas Ruas Nove de Julho, e em alguns pontos da Rua XV de Novembro, os lotes são maiores, e tem sobrados de dois
Testada refere-se à medida dos lotes em relação ao arruamento. Meia Morada são as edificações térreas , cujo fachadas possuem uma porta e uma janela e não apresentam recuo em relação a rua. Eclético aqui se refere ao estilo arquitetônico do fim do século XIX que exibe combinações de elementos da arquitetura clássica, medieval, renascentista, barroca e neoclássica. Envasaduras são as aberturas das paredes externas onde são colocadas as janelas e portas de uma edificação
pavimentos, casas de morada inteira com telhados de quatro águas, e são pontuadas por edificações de aspecto
A Rua Major Rebello é o limite norte
eclético ou de início do século XX.
do
Exemplares arquitetônicos como o
configurando-se
como
Sobrado dos Toledo e o Hotel São
transição,
são
Paulo, com frontões triangulares e
edificações maiores e de períodos
envasaduras
mais
de
caráter
42 | FLÁVIA BRITO DO NASCIMENTO
núcleo onde
recentes,
urbano
como
antigo, área
de
encontradas a
Escola
IGUAPE, ARQUITETURAS EM PROCESSO E CONSTRUÇÃO DA PROTEÇÃO FEDERAL
Estadual,
cuja
arquitetura
está
Matarazzo, voltada para o Valo
inserida no contexto da construção
Grande, é a expressão do uso fabril e
de escolas no período republicano.
portuário que predominou na orla da
Indo em direção ao Valo Grande,
passagem construída para ligar o rio
seguindo pela rua à esquerda da
Ribeira e o mar.
Basílica, a cidade terminava na Igreja do Rosário, voltada para o lado
Situada entre importantes marcos da
oposto
onde
paisagem como o Morro da Espia, o
originalmente havia uma grande área
Canal do Valo Grande e o Mar
livre de edificações. Na rua à direita
Pequeno, Iguape caracteriza-se por
da
guardar
da
Basílica,
Basílica,
acompanhando
em
expressões
arquitetônicas
paralelo do Mar Pequeno, seguia a
que são testemunhos dos inúmeros
Rua Tiradentes, onde se localizavam
processos socais e econômicos por
casas mais simples e que leva ao
que passou.
cemitério, afastado quatro quadras da pequena praça situada junto à
Na atribuição de valor à cidade com
fachada posterior da Basílica. Junto
vistas
ao
buscamos estudar e valorá-la como
cemitério,
a
antiga
Fábrica
ao
tombamento
federal
FLÁVIA BRITO DO NASCIMENTO | 43
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
patrimônio nacional no contexto das
constituídos ao longo de muitas
cidades
décadas, conformadoras do que se
do
território
paulista
constituídas a partir de processos
encontra hoje naquelas cidades.
históricos anteriores ao café, seja
As
exploração aurífera, seja rizicultura,
diversos
ou mesmo a própria ocupação do
evidente de sua feição atual e, neste
território, o que no que se refere aos
estudo, buscou-se entender Iguape
valores
em
no âmbito dos processos históricos
articular sentidos que vão para além
formadores da sua fisicidade. Estes
da materialidade. O que significa
são parte dos sentidos identitários,
dizer que, ao se pensar na lógica
sociais e históricos dos que as
construída expressa na atualidade
habitam, os quais lhes asseguram sua
em Iguape, tivemos em conta as
permanência tanto física, quanto
sobreposições e rearranjos espaciais
simbólica.
memoriais,
incorreu
representações momentos
históricas são
parte
Referencias Bibliográficas COSTA, Lúcio. Lucio Costa, registro de uma vivência. São Paulo: Empresa das Artes, 1969. IPHAN. Dossiê de Tombamento de Iguape. São Paulo: Minc/IPHAN, 2009. SECRETARIA DE CULTURA DO ESTADO DE SÃO PAULO. Resolução nº 06 de janeiro de 1975. Dispõe sobre o Tombamento de um conjunto de Imóveis no Centro de Iguape. Diário Oficial. São Paulo, São Paulo, 1975.
44 | FLÁVIA BRITO DO NASCIMENTO
de
Foto: Helena Rios, arquivo Iphan/SP CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
MemóriasRODAS Urbanas de Iguape: DE MEMÓRIAS | 45
RODAS DE MEMÓRIAS
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
46 | RODAS DE MEMÓRIAS
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
CULTURA CAIÇARA Em 20 de agosto de 2011 foi realizada na Casa do Patrimônio do Vale do Ribeira a primeira Roda de Memória do Projeto Memórias Urbanas, cujo tema estava voltado à necessidade de valorização da Cultura Caiçara. Os textos que estão expostos nesta publicação são recortes dos registros de falas dos convidados, os quais foram organizados na forma de temas em comum para facilitar a leitura e o trabalho com os estudantes nas escolas. Procuramos manter o tom da fala dos entrevistados, fazendo apenas uma edição dos textos visando retirar as repetições e tornar a leitura mais fluída 3. Os registros integrais das falas podem ser encontrados na biblioteca da Casa de Patrimônio do Vale do Ribeira.
Convidados: Lauro Evilásio de Andrade, nascido no bairro do Rocio, em setembro de 1953. Filho de Dona Maria de Lourdes Andrade e do Seu Antonio Pereira de Andrade. Glória do Prado Carneiro, a Glórinha, nascida na Juréia, na época, Rio Verde, em 1958. Tem quatro filhos e mora desde os 19 anos na Barra do Ribeira. Dauro M. do Prado, nascido em julho de 1964, no Rio Verde, Juréia. È da União dos Moradores da Juréia. Pedro Sardinha do Prado, o Pedrinho, nascido em 1992 em Pariquera-Açu e morador da Barra do Ribeira. Integrante da Diretoria da Associação Jovens da Juréia (AJJ). Silvio Fernando Rodrigues, nascido em 1957 no bairro do Despraiado.
Foram adotados os critérios e orientação da textualização, ou seja, quando se transforma da forma oral para a escrita eliminando-se as perguntas, os erros gramaticais e reparadas as palavras sem peso semântico, conforme Meihy & Holanda (2010). 3
RODAS DE MEMÓRIAS | 47
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
1986 – Criação da Estação Ecológica da Juréia-Itatins (Decreto nº 24.646 de 20 de janeiro de 1986)
1987 – Criação da União dos Moradores da Juréia (UMJ)
1993 – Criação da Associação dos Jovens da Juréia (AJJ)
2006 – Criação do Mosaico da Juréia-Itatins (Lei nº 12.406 de 12 de dezembro de 2006)
2009 – Extinção do mosaico e recategorização como Estação Ecológica da Juréia-Itatins
48 | CULTURA CAIÇARA
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
Infância no Bairro do Rocio:
Água encanada não existia, tinha
“O bairro era bem pequeno, hoje é
fossa nas casas, rede de esgoto nem
um dos maiores bairros do Vale do
pensar. O bairro era pequenininho. A
Ribeira. Estudei na primeira escola
única coisa de importante que tinha
do Rocio, que era de madeira, o Seu
na época, a gente chamava de campo
Francisco Costa, mais conhecido
de aviação, que é aeroporto, era da
como Chico Banana. Eu brincava na
Varig”. (Lauro)
rua,
como
nós
não
tínhamos
condição os brinquedos eram latas de leite, você enchia as latas de areia e furava, e emendava uma na outra. Festas só tinham do lado de cá. Tinha só
um
fandango,
que
não
é
salgadinho, é baile! Meu pai plantava arroz, feijão, não tinha agrotóxico, e comíamos mais peixe. Ele chegou a
Atualmente o bairro do Rocio é o mais populoso de Iguape, está separado do centro pelo Valo Grande. Neste bairro vive uma comunidade bastante diversa, com pessoas vindas de várias localidades, porém, com o predomínio de caiçaras. As principais atividades econômicas do bairro são a pesca esportiva e comercialização do artesanato local, com destaque para a confecção das panelas de Jairê. (PEREIRA JUNIOR, 2005)
plantar no lugar onde hoje é a igreja católica, lugar perto da minha casa, depois ele passou a arrendar terras lá
Crescimento
da Ilha Comprida. Meu pai era
Rocio:
pescador e agricultor. Na escola a
“[...] foi a pesca da manjuba que
gente
coisas,
trouxe muita gente pra lá. O pessoal
porém aqui, naquela época, você
deixava de plantar pra vir pescar,
definia quem era da cidade e quem
principalmente de Cananéia. Hoje
era da zona rural. Igreja era só pra
não, se você for para as ruas lá do
cá, depois que começou a chegar lá.
fundo, tem muita gente do Norte e do
Naquela época as casas eram tudo de
Nordeste do Brasil. A gente nem
madeira [...] na época tinha balsa,
conhece as pessoas que tem lá. Antes
mas a maioria atravessa de canoa,
era só compadre e comadre. Ainda
para fazer compra, não existia água
cheguei a pegar navios de pequeno
lá. Tinha um chafariz do lado de cá,
porte carregando lá no ponto da
vinha buscar num pote, banho, lavar
frente de casa, carregando arroz, que
roupa, essas coisas era tudo no rio.
vinha lá de Registro. Eu tinha uns
aprendia
bastante
do
Bairro
do
RODAS DE MEMÓRIAS | 49
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
dez, doze anos. Da minha casa para o
acho que doze comunidades. Rio das
rio hoje, dá mais ou menos uns
Pedras, Cachoeira do Guilherme,
cinquenta
Praia do Una, Grajaúna, Rio Verde,
ou
sessenta
metros”.
(Lauro)
Praia da Juréia, Barra do Una, Rio Comprido, Despraiado e Guapiú.
Infância na Juréia:
Morei lá até os 25 anos. Vim para
“Andávamos tudo a pé, pela praia.
cidade com 18 anos porque precisava
Éramos em 10 irmãos, todo mundo
me alistar, eu não conhecia luz
nasceu lá mesmo, de parteira e criou-
elétrica.
se lá. Na época tinha muito morador,
conhecer a cidade, me alistei e voltei
umas 300 famílias. A gente nunca
para lá.” (Dauro)
Nessa
época
eu
vim
veio em médico, nunca vinha à cidade para nada, só meu pai que
Migração para a cidade:
vinha fazer compras. Brincava lá
“Depois
mesmo,
brinquedos
ecológica começamos a ser retirados
como Seu Lauro falou. Meus pais,
e viemos morar na Barra do Ribeira.
meus
lá,
Meu pai e minha mãe ainda moram
nascidos e criados lá. Tinha curador
lá, ele tem 82 anos e ela tem 73,
que curava, nosso médico era o
ainda sobem a Serra da Juréia para
curador, benzia, fazia remédio de
vir para cá e voltam. A gente não
erva,
médico.
queria sair, mas fomos obrigados.
Fazíamos muito mutirão para fazer a
Fomos saindo aos poucos, alguns
roça e cada semana era um morador
foram para Peruíbe, outros para o
que fazia. Fazia a roça e a tarde tinha
Guaraú e uns poucos para a Barra.
o fandango, era o baile. Todo sábado
Nossa família veio para a Barra,
fazíamos
avós,
os
eram
ninguém
ia
todos
ao
de
tinha mutirão, até terminar a época da roça. Tinha roça de mandioca e de arroz. Meus avôs, meus tios, faziam a viola, a rabeca.” (Glorinha) “Eu nasci um pouco mais tarde que a Glorinha, da mesma mãe. Em julho de 64, no Rio Verde. Lá tem várias comunidades,
varias
50 | CULTURA CAIÇARA
vizinhanças,
que
surgiu
a
estação
O bairro Barra do Ribeira está localizado a 18 km do centro da cidade, é o local onde o rio Ribeira deságua no mar. Apesar de ser um local muito apreciado por veranistas, ainda mantém sua característica de comunidade caiçara. É também a porta de entrada para a Estação Ecológica de Juréia-Itatins (PEREIRA JÚNUOR, 2005).
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
alguns irmãos foram para Itanhaem”. (Glorinha) Cultura e modo de vida caiçara: “Vivíamos da pesca e da agricultura, como
a
Glorinha
falou,
do
extrativismo, como a maioria das comunidades, seja ela quilombola, caiçara,
indígena,
ele
vive
dos
recursos que tem ali: da terra e da pesca
se
faz
o
seu
próprio
instrumento de trabalho. Sempre vivi nessas condições. Aconteciam vários mutirões, para várias coisas, então o que é um mutirão? É juntar um monte de gente para construir uma coisa
coletivamente.
Então
você
constrói a roça em um dia, para plantar dois sacos de semente de arroz.
E
aquele
cara
daquela
comunidade combinava com o da outra e da outra e da outra. Época de
Dauro, Silvio e Pedrinho.
fazer a roça todo mundo sabia que era de julho a setembro, todo mundo
segmentos da sociedade civil, que
plantava, então sabiam que era hora
estão mais afastadas, na periferia da
de acelerar o plantio”.
cidade, são expulsas pela especulação
“Para fazer canoa, duas ou três
imobiliária, pelas grandes empresas
pessoas derrubam a arvore e faziam a
ou pelas unidades de conservação
canoa, era feita de um pau só e
integral, essas três coisas expulsaram
precisava de umas vinte pessoas para
as comunidades dos seus territórios,
puxar a canoa do mato. É chamado
onde eles viviam coletivamente, cada
de varação de canoa”.
um fazendo sua agricultura onde
“As
comunidades
indígenas,
caiçaras
quilombolas, e
outros
queria, buscando seus recursos onde queriam,
era
completamente
RODAS DE MEMÓRIAS | 51
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
organizado.
Outra
de
era muito difícil porque não podia
organização [...] a gente tem uma
pegar no instrumento. A gente ouve
cultura diferenciada, um modo de
história de tios, que o pai deixava a
vida diferenciado, um modo de falar
viola encostada no canto da casa e ai
diferenciado. Qualquer um que for
se o filho pegasse, levava uma surra
para casa do meu pai vai ser muito
que nunca ia esquecer! Eles tinham
bem tratado. Ele vai te dar comida, a
que roubar a viola do pai, aí iam para
melhor coberta, por água quente
a beira do rio aprender a tocar.
para lavar seus pés, o caiçara faz isso
Também aprende muito de olhar, lá
para todo mundo. Meu pai vinha
no fandango, vendo como ele tocava,
fazer compra, ele pegava algumas
como cantava as músicas, muitos das
coisas como bolacha, coisas que não
gerações
estragavam e guardava, para quando
assim! Quando eu comecei tinha um
alguém chegar ele ter com que
pouco disto também, meu tio não me
alimentar essa pessoa. Esse é um
deixava pegar o instrumento. Os
modo de vida da comunidade. Essa
instrumentos
relação harmoniosa tanto com a
geralmente ficavam em casa e teve
natureza quanto com aqueles que
uma época que ficamos uns três
estavam ali. A gente não podia perder
meses sem fazer apresentação, aí eu
isso e quando eu senti que estávamos
peguei a viola e comecei a mexer,
perdendo
nos
estourei corda, troquei. Meu tio me
associação”.
viu mexendo, mas não falou nada,
falei
organizarmos
na
forma
para
(Dauro)
anteriores
das
aprenderam
apresentações
não falou que ia me ensinar. Só depois que eu aprendi a tocar é que
“A gente tem uma história que acho
percebi como a vontade de aprender
que acontecesse com todo mundo
é importante. Quando eu fui para o
que aprende a tocar viola. Quando
baile é que percebi que estava
faziam o fandango era muito raro
tocando errado. Teve uma festa lá na
uma
um
Praia do Una, o primeiro fandango
instrumento, não podia e ninguém
que eu ia participar, ficava ali meio
falava por que. Eu acho que era
no canto, meio de lado, mas ninguém
porque é muito fácil estourar a corda,
chamava pra participar. Aí lá na
desafina e é difícil de afinar...
comunidade
Quando eu quis começar a aprender
poucos violeiros e eu comecei a tocar.
criança
pegar
52 | CULTURA CAIÇARA
em
do
Prelado
tinha
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
O pessoal viu que eu sabia e começou
preferem isso do fandango, acho que
a chamar. Comecei a tocar de
é por vergonha da própria cultura.
maneira informal, tinha de 13 para 14
(Pedrinho)
anos. No próximo baile já fui como violeiro e meu primo Cleiton me
“O que a gente tem feito é carregar as
chamou, lá que eu senti o que era
crianças para o galpão depois da aula
tocar por duas horas, dor no dedo,
para dançar o fandango, se não
todo
é
dançar, pelo menos fica ali vendo,
emocionante. Tive outro primo que
vivenciando. Porque se a gente não
também aprendeu e a gente toca
fizer isso eles vão dançar funk
junto, o Wellington. Depois que
mesmo, eu não tenho nada contra o
toquei que meu tio começou a me
funk, mas acho que cada um tem que
mostrar
outros
valorizar sua cultura, porque essa
ritmos. A gente foi acumulando
diversidade cultural que é bonita no
conhecimento
fazemos
povo brasileiro. Chamar os jovens
crianças.
para participar, levar para a escola,
mundo
oficinas,
te
outras e
olhando,
músicas, agora
ensinamos
as
Outro instrumento que eu quero
agora
eles
aprender a tocar e ainda não sei é a
(Dauro)
tem
feito
oficinas”.
rabeca. Estou tentando e não consigo aprender porque quase não tem
“E como a gente tem o momento de
rabequista. Isso também é por conta
trabalhar, de ir pra escola, de sair,
de não deixarem a gente mexer nos
acho que a gente também tem que ter
instrumentos, isso se perdeu um
o momento de ser caiçara, da cultura
pouco. Também porque não tem a
caiçara,
convivência de fazer o mutirão e o
instrumento, sentar com um tio, com
fandango logo depois. Tem menos
o avô e perguntar como era, o que
baile. Tenho um primo que tem oito
eles faziam, pedir pra contar uma
anos e ele é fascinado por rabeca,
história. Porque não é para sempre
mas não tem ninguém que pode
que os mais velhos vão estar ali para
ensinar para ele, meu tio só toca
passar
viola. Por outro lado, tem alguns que
(Pedrinho)
de
essa
sentar
carga
com
pra
um
gente”.
não ligam mais, porque vem funk, axé, black, outras músicas e eles
RODAS DE MEMÓRIAS | 53
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
“Uma coisa legal que aconteceu sem
ouviram ele falando de “Revelando
iniciativa de nenhuma organização
São Paulo”, eles só vêm para cá, só se
foi a volta da Reiada, tem uns 3 anos
apresentam
já que ela acontece todo final de ano.
Paulo”, depois esquecem, deixam
Eles passam de casa em casa, das
eles sozinhos. Por parte da cultura eu
pessoas que aceitam e dão ofertas,
acho
dão dinheiro e isso tá indo. Partiu da
incentivos.
própria
um
fandango, vamos lá, vamos gravar.
violeiro que aprendeu toda a música
Até por parte das escolas, na época
da Reiada, nosso folião já está bem
da minha Irma ela brincava de roda,
velho, ele sabe muito, tem uma carga
não existe mais isso. Acho que em
muito grande sobre música, cultura
termos
caiçara, mas ele já está bem velhinho
resgatar tudo isso aí e falta incentivo.
e não dá mais conta de vir mostrar.
Tem
Tem um moço mais novo que tá
professores material para mostrar
levando tudo isso nas costas, porque
isso para as crianças”. (Lauro)
comunidade,
teve
no
que
tinha Se
de
que
“Revelando
que vocês
cultura colocar
tem na
ter
São
mais
fazem
o
que mão
se dos
ele que faz e está incluindo gente da comunidade e tá se expandindo. A
A Estação Ecológica da Juréia:
Associação de Jovens da Juréia (AJJ) dá
um
apoio
logístico,
com
instrumentos, essas coisas, mas eles fazem tudo sozinhos. Eles montaram o próprio grupo de fandango, quando a gente vai se apresentar e dá para levar, eles vão junto. Já participaram do Revelando São Paulo também. Isso foi uma iniciativa que pra gente serviu
como
incentivo
e
tá
Estação Ecológica é uma categoria de unidade de conservação destinada à preservação da natureza e a pesquisa científica. Nelas são proibidas a visitação pública, exceto com o objetivo científico que depende de autorização prévia do órgão responsável pela administração da unidade. A posse é de domínio público, sendo que as áreas particulares incluídas em seus limites devem ser desapropriadas (Lei nº 9.985, de 18 de julho de 2000).
avançando. Tem um menino que canta
lá
que
tem
7
anos”.
(Pedrinho)
“Na
década
de
1980,
havia
a
Nuclebrás, empresa que constrói usinas nucleares, e o Brasil tinha um
“Acho que tá faltando incentivo da cultura, do meu ponto de vista, vocês 54 | CULTURA CAIÇARA
convenio com a Alemanha para
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
construir duas usinas atômicas aqui
comunidades tradicionais vão ficar
na Juréia. Começou um movimento
bem.’ Ficamos contentes, pensando
para a construção da usina atômica.
que ia ser muito legal. De repente,
Nesse tempo cresceu o movimento
em 1986, se cria a Lei de Estação
ambientalista,
não
Ecológica, só que Estação Ecológica é
podiam construir uma usina atômica
uma unidade de conservação de
ali, porque ia destruir todo esse
proteção integral que não permite a
patrimônio. Vamos criar aqui um
presença humana. Meu pai sempre
santuário ecológico. Era uma ideia
trabalhou com agricultura, fazendo
legal, vamos deixar as comunidades
roça,
tradicionais aqui, vamos mandar
diferenciada,
todos estes veranistas embora, as
constrói a roça sem agrotóxico, sem
casas deles vão ficar para vocês. Isso
nada, mas tem o momento de pousio
era o que eles vendiam pra gente.
dessa roça, você constrói uma roça
Não era qualquer um que ia lá, o
aqui hoje, colhe todo o produto dela,
próprio Paulo Nogueira Neto, ele era
constrói uma outra aqui e vai
secretário
Franco
construindo ate voltar para aquela
Montoro, Doutor José Pedro de
primeira, onde a floresta já se
Oliveira Costa, o Zé Pedro, virou
regenerou. O solo está fértil e você
Secretário de Meio Ambiente. Iam
começa de novo, uma agricultura
tomar cafezinho com o meu pai: Zé
sustentável. O modo de vida dessas
Pedro,
comunidades
na
Fabio
dizendo
época
que
do
Feldmann,
Mario
que
é
uma
agricultura
itinerante,
no
geral,
você
é
que
Mantovani, João Paulo Capobianco
conserva esse meio ambiente. E essa
da S.O.S. Mata Atlântica, iam lá
área exatamente da Juréia, como
dizer: ‘Não se preocupem, vai dar
outras do Vale do Ribeira está
tudo certo! Vocês são maravilhosos,
preservada por quê? Por conta do
podem
eles
modo de vida dessa comunidade, de
quiserem expulsar vocês da terra nós
como ela lida com esse ecossistema,
não vamos deixar. Vamos criar aqui
com
um santuário ecológico onde vocês
(Dauro)
vão
ficar
viver
tranquilos,
se
tranquilamente,
a
pesca,
com
a
floresta”.
as
RODAS DE MEMÓRIAS | 55
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
“Meu pai foi enganado. Falaram para o meu pai trabalhar normal, ele fez a roça e já veio uma multa. Multado e meu pai não sabia de nada, não sabia por que, foi aí que acabou nossa vida lá. Começaram os guardas
a
entrar
nas
casas,
destampar panela para ver o que o pessoal estava comendo e pegar as
Glorinha e Lauro
roupas das mulheres, vê o que tinha, jogavam os colchões. Foi um inferno, acabaram
com
tudo.
Fomos
obrigados a sair, não podia plantar mais, não podia matar nada para se alimentar e foram acabando
os
estoques. Tinham dias que a gente fazia café com banana verde pros filhos da gente comer porque não
para lá. A gente quer voltar para as
tinha jeito. Como ia ficar num lugar
nossas terras, enquanto meu pai e
daqueles? Os guardas entravam nas
minha mãe vivem, não sei se vai ser
casas para ver se tinha caça, era um
possível, mas é nossa luta até hoje
inferno e fui obrigada a sair. A gente
[...] o pessoal foi saindo e foi
vivia tão feliz, era um lugar tão bom.
obrigado a fechar a escolinha que
E hoje, muito do pessoal que saiu de
tinha lá. Como o professor ia lá para
lá, tão sofrendo nas beiras das
dar aula para duas crianças? Ele saiu.
cidades e os filhos pegaram caminhos
E
errados. O que tinha lá era diferente,
acabando
a nossa cultura era outra. Foi se
também não tinha mutirão, ficou a
perdendo a cultura, e viémos aqui
maioria das coisas abandonadas.
para a Barra, montaram a Associação
Porque as pessoas saíram sem nada,
para gente não perder a cultura e
sem direito a nada, só com a roupa
nossos filhos continuarem na mesma
do corpo, porque era longe e nem
cultura, nos meus afazeres. Assim
tinham
estamos até hoje, lutando para voltar
(Glorinha)
56 | CULTURA CAIÇARA
a
escola
foi
todo
como
acabando. mundo,
trazer
as
Foi
porque
coisas”.
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
complicando
cada
vez
mais,
as
“A Lei de Estação Ecológica é para a
pessoas se mobilizando. Há uns seis
conservação da natureza, é o homem
anos a gente começou a ver que o
fora da natureza, para preservar esse
negocio era sério, começamos a
meio
futuras
participar das reuniões, discutir um
gerações. É para olhar, não para
pouco, não sabíamos muito bem o
usufruir, olhar os bichinhos, os
que era, mas já dávamos opiniões.
macaquinhos, anta, capivara... E
Em 2009, nós começamos a querer
como faz? Para mudar a lei você tem
estudar um pouco mais, trabalhar
que fazer um movimento! E foi aí que
um pouco mais com essa questão da
eu comecei a entender!” (Dauro)
cultura, da legislação. Percebemos
ambiente
para
as
que a coisa era muito grave para as “Quando eu era criança, não sabia o
pessoas que vivem na Juréia, para
que era Estação Ecológica, o que era
quem fazia mutirão, derrubava uma
polícia ambiental, nada disso. Para
roça. Graças a Deus a gente teve esse
viver na Juréia era simplesmente
conhecimento, de como derrubar
entrar lá e pronto. Mas a gente
uma roça, de que madeira é boa para
sempre ia e voltava da casa da minha
fazer cada coisa, esse conhecimento a
avó e meu pai falou que a gente não
gente conseguiu adquirir, apesar da
podia morar lá. Ele já tinha morado
pouca vivência na mata. Mas a partir
lá muito tempo e contava como era, o
daí a gente viu que precisávamos
que
fazer alguma coisa e começou a
eles
faziam,
do
que
eles
brincavam. Eu já peguei essa parte de
participar.
tecnologia,
conseguimos aprovar parcialmente o
carrinho,
controle não
remoto,
emprestava
os
brinquedos para os outros. Mas eu
Em
2006,
nós
Mosaico de Unidade de Conservação da Juréia”. (Pedrinho)
sempre tive contato com a questão da Juréia... Se tinha reunião da AJJ a
“Hoje eu posso dizer que Despraiada
gente estava lá, bagunçando, mas
virou desprezada, eu tenho uma
estava. O pessoal estava discutindo, a
professora que trabalhou lá, ela ainda
gente
pouco.
se lembra. Tenho certeza que se ela
Sempre ouvíamos um pouco, mas
for lá vai ficar triste, porque se antes
não entendíamos muito bem. Com o
a gente achava que era difícil hoje tá
passar do tempo, as coisas foram se
muito pior, tá um bagaço. Saiu muita
parava
ouvia
um
RODAS DE MEMÓRIAS | 57
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
porque a gente pesca, caça, tira Mosaico se constitui em um conjunto de unidades de conservação de categorias diferentes ou não, próximas, justapostas ou sobrepostas, e outras áreas protegidas públicas ou privadas. A gestão do conjunto deverá ser feita de forma integrada e participativa, de forma a compatibilizar a presença da biodiversidade, a valorização da sociodiversidade e o desenvolvimento sustentável no contexto regional (Lei nº 9.985, de 18 de julho de 2000).
palmito, é cultura rural [...] essas
gente de lá, os alunos não conseguem
gente quer. Então vamos trabalhar
mais ir à escola lá. Isso não é de hoje,
uma política educacional melhor,
vem acontecendo há muito tempo.
vamos discutir uma proposta melhor.
Eu fico triste porque se você chegar
Porque vocês já sabem do problema,
para um jovem que tá lá e perguntar,
já
eles não vão saber te responder nada
discutindo essa questão de trazer o
de
eles
jovem para a cidade. Isso não ajuda,
aprendem na escola, mas não sabem
vamos fazer com que o jovem
nada da cultura do lugar. Se você
continue no seu território e vamos
perguntar para eles: ‘tinha baile?’,
levar condições para lá. Internet,
eles te dirão: ‘Não sei.’; e tinha baile!
antena são coisas que não são
Muita gente
lá também fica triste
difíceis, fazer um convenio com o
porque com essa coisas dos jovens
governo federal. São investimentos
irem estudar longe, eles acabam
públicos que tem que ser feitos...
ficando sozinhos, perdendo os filhos,
Agora se você dá condições de ele
porque
vão
ficar lá até o ensino médio, aí ele
trabalhar, vão estudar[...] as crianças
quer fazer a faculdade dele, tem
sofrem com isso, porque estando no
direito de escolher, de sair. Mas ter
lugar é mais fácil aprender. As
certeza de que quando ele tiver desse
pessoas que moram lá, eles vivem de
tamanho aqui eles vão querer voltar,
uma maneira... Teve uma época que
porque o sitio é um lugar bom para
uma professora foi para lá e ficou na
viver, não é um inferno. Porque esses
minha casa, ele disse que nós éramos
jovens vão embora e não querem
igual índios, não me surpreende,
voltar? Por causa dessas condições de
lá,
eles
eles
sabem
saem
o
de
que
lá,
escolas estão tirando as pessoas do meio do mato e levando para a cidade, então isso vai esvaziando. Que política é essa que nós estamos fazendo? De esvaziamento dessas comunidades? Será que é isso que a gente quer? Não, não é isso que a
sabem
que
estamos
aqui
estrada, da falta de emprego. O poder 58 | CULTURA CAIÇARA
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
público tem que investir mais, nós
ele e sempre que vamos para lá
estamos
fazemos um mutirão. Nós juntamos
perdendo
o
local
de
moradia. (Silvio)
sempre para não perder a nossa cultura.
A
gente
trabalha
com
“Espero um dia estar lá na casa do
artesanato, com os jovens, com a
meu avô sossegado, poder chamar
caixeta,
meus amigos para ir visitar a casa do
oficinas de dança de música, fazemos
meu avô. Porque hoje ir à casa do
fandango. As crianças vão crescendo
meu avô não é fácil, não posso levar
e pensando em outras coisas, não
visita lá, nada que pareça com
sabem fazer uma roça, usar a palha, o
turismo. Tem uma concessão para o
machado, não sabem como colhe o
meu avô morar lá, aí eu posso ir
arroz, como pilar o arroz, fazer o
visitar, mas se ele não estiver lá no
cuscuz. Vai perdendo aquela coisa,
futuro, a Juréia vai acabar para mim
você solta um moleque desse no
e para a minha família. Quem sabe se
mato,
a lei mudar, todos nós possamos ir lá.
(Glórinha)
instrumentos
ele
não
vai
musicais,
sobrevive”.
Fica aí a interrogação para o futuro”. (Pedrinho)
“Foi aí que criamos a União dos Moradores da Juréia (UMJ), da qual
A luta pela cultura e pela terra:
eu sou presidente, em 1989. Mas a
“Conseguimos
dos
luta começou em 1987. Começamos a
irmãos, só tem dois que moram em
reunir todas as comunidades da
Itanhaém e Peruíbe. Nós ficamos na
Juréia para lutar pelos direitos das
Barra, montamos a Associação e
comunidades tradicionais. O objetivo
estamos todos juntos, vamos sempre
da UMJ é mudar a lei, criar uma
à casa do meu pai, tem mutirão.
unidade de conservação de uso
Fizemos uma roça de mandioca para
sustentável para que as comunidades
juntar
alguns
RODAS DE MEMÓRIAS | 59
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
continuem com seu modo de vida.
pressão era muito forte, mas eu não
Porque todas as comunidades ali
ia desistir da luta. Eles mandaram
vivem nesse sistema. A gente travou
meu pai lá para Peruíbe e minha mãe
uma briga muito grande para ter esse
ficou lá sozinha. Era época de eleição.
direito.
perseguição
Eu fui até o Secretario de Meio
muito grande da parte do Estado
Ambiente, Edis Milaré, contar como
contra o meu pai, porque eu era uma
estava a situação da nossa família.
liderança que estava organizando a
Ele me garantiu que ia mandar meu
comunidade. Eles diziam para o meu
pai para casa, mas que depois das
pai que em cobra eles pisavam na
eleições não sabia o que ia acontecer,
cabeça. Meu pai me pedia para parar
nem se ele mesmo estaria ali, por
com medo que eles me fizessem algo.
enquanto meu pai ficaria em casa
Eu pedia para eles lhes responder
tranquilo, porque três meses antes e
que eu era um filho rebelde que não
três
ouvia
foi
ninguém podia ser demitido. Nesses
obrigado a falar isso mesmo. Mesmo
seis meses corri para aposentar o
assim eles cortaram a energia. Existia
meu pai, conseguimos depois de
um
algumas
Houve
seus
uma
conselhos.
sistema
de
Ele
gerador
que
meses
depois
tentativas.
eleições
Em
entraram
Nuclebras na Juréia. De vez em
reintegração de posse contra a casa
quando eu usava esse telefone para
do meu pai. Pensei que não ia ganhar
mobilizar a comunidade, para marcar
do governo, mas o Bom Jesus de
as reuniões, porque era o único que
Iguape
tinha, eu esperava meu pai dormir e
Encontrei com um amigo que me
ia lá ligar. Quando o Estado percebeu
indicou uma advogada que era a
foi lá e cortou o telefone. Eles
favor das comunidades. Consegui
cortaram a energia elétrica que tinha
falar com ela e fui até seu gabinete,
em casa e meu pai me pressionava,
pois ela estava com o processo e ia
tinha medo de perder o emprego. Eu
despachá-lo. Quando a encontrei, ela
dizia a ele que se ele não perdesse o
me instruiu a fazer um abaixo-
emprego,
o
assinado para reverter a situação.
território. Eles estavam nos usando,
Com o abaixo-assinado ela deu ao
colocando um contra o outro. Fui
meu pai uma concessão de direito
perderíamos
obrigado a sair de lá, porque a 60 | CULTURA CAIÇARA
sempre
uma
seguida
alimentava o sistema telefônico da
nós
com
das
ajuda
ação
a
de
gente.
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
real de uso a titulo precário, por
“A gente sente que tem um avanço
enquanto ele tá lá seguro”. (Dauro)
muito pequeno, mas tem. Em passos curtos
a
gente
tem
conseguido
“Criamos um projeto de lei e levamos
algumas coisas. Espero que em
para o Secretário José Goldemberg,
poucos anos a gente possa caminhar
que começou a pressionar o Instituto
mais tranquilamente, porque a gente
Florestal para mudar a lei. O IF não
tá cansado de vir aqui falar de tudo
queria mexer na Juréia de modo
isso. Ninguém olha pra isso como a
algum, mas com alguma pressão eles
gente olha. Ninguém, eu falo dos
mesmos criaram outro projeto de lei,
poderes em si. Ninguém sabe o que é
um projeto de transformar a estação
passar
me um parque, mas parque também
ambiental na janela do seu quarto
não prevê a presença humana, só que
para saber o que você está fazendo
permite a visitação pública o que
ali, abrindo a porta do seu armário
traria dinheiro e investimentos. Nós
para ver o que tem guardado ali,
falamos que não, o que nós queremos
olhando o fumeiro do fogo para ver
é
de
se você não tem nenhuma caça. A
sustentável.
gente está vivendo o que já viveu
uma
na
alguns anos atrás, um regime militar.
Despraiada, outra na Barra do Una,
Porque a gente não pode fazer nada,
as demais comunidades estão fora
nosso regime é não poder caçar, não
desse contexto. Em seguida o Fabio
poder praticar a cultura que a gente
Feldmann mandou entrarem com
tem [...] a lei do mosaico caiu em
uma ação de inconstitucionalidade
2009, e a gente se sentiu mais
para derrubar essa lei, foi o que o
motivado a participar da questão
procurador geral fez. Entrou com
política. Esse ano nós entramos na
uma ação dizendo que a lei tinha
diretoria da Associação, somos novos
vício de iniciativa, significa que o
ainda
legislativo
o
trabalhando para que esse projeto de
executivo. Derrubou a lei e é tudo
lei seja aprovado de novo, que o
estação ecológica de novo. A gente
desenvolvimento
está na briga de novo”. (Dauro)
implantado na Juréia. A gente quer
que
se
conservação Criaram-se
criem de
unidades
uso
duas:
não
pode
onerar
a
noite
nisso,
com
mas
a
polícia
estamos
sustentável
seja
voltar lá e trabalhar um pouco no que meus pais e meus tios, meus avós RODAS DE MEMÓRIAS | 61
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
trabalhavam na Juréia. Por exemplo,
Comissão Nacional, a reivindicação
o que minha tia Glória falou: colher
principal é o território. Tendo nosso
arroz, eu não sei colher arroz. Não é
território nós podemos fazer tudo:
porque não quiseram me ensinar,
pesca, mutirão, fandango, tudo... Na
mas porque não teve oportunidade
Juréia nossa briga, nossa luta é
mesmo. Muita coisa que a gente sabe,
mudar a lei. Transformar toda aquela
muito nome de planta, é porque vai
área em reserva de desenvolvimento
passando no Morro da Juréia e eles
sustentável,
vão falando o que é. Essa questão de
voltar para lá, assim nós também
aprender as coisas que a gente não
tomaríamos conta dos recursos que
sabe, é bem a questão de não ter essa
tem ali. Ao contrario, tem muito mais
vivência, não estar ali trabalhando
gente aqui, no posto de saúde, tem
com os avós e os tios, fazendo roça,
muito mais fila. Lá nós temos outros
canoa. Só vi fazer uma vez e assim
recursos, chás, ervas, não precisamos
não dá para aprender e muitas das
vir até aqui nos médicos. Porque
coisas que a gente perdeu se devem a
vindo para cá, nós também estamos
isso, não tem como aprender se a
sujeitos as doenças daqui, ao stress.
gente
não
vive
no
“O esforço de pesca hoje é muito grande, por conta desse êxodo, as comunidades saindo do seu lugar e vindo para Iguape. Lá tinham uns mil pescadores, aqui deve ter uns três Lá
nós
atividades:
o
tínhamos
que
possamos
lugar”.
(Pedrinho)
mil.
para
outras
extrativismo,
a
A Reserva de Desenvolvimento Sustentável é uma área natural que abriga populações tradicionais, cuja existência baseia-se em sistemas sustentáveis de exploração dos recursos naturais, desenvolvidos ao longo de gerações e adaptados às condições ecológicas locais e que desempenham um papel fundamental na proteção da natureza e na manutenção da diversidade biológica (Lei nº 9.985, de 18 de julho de 2000).
agricultura, etc. aqui só têm a pesca.
Se o governo desse espaço pra gente
E todo mundo veio para cá pra
viver, ia todo mundo viver melhor,
pescar e não tem recurso para todo
ter uma qualidade de vida garantida.
mundo. Isso tem acontecido com
Eles estão expulsando nossos povos
comunidades de todo o Brasil, nas
do território, eles vem inchar a
reuniões que nós temos com os
cidade... Vocês têm que nos ajudar a
outros
levar esses povos de volta para o seu
povos
tradicionais,
62 | CULTURA CAIÇARA
na
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
lugar, porque lá também é de vocês
povo, para que a cultura caiçara
[...] finalizando, quando a gente
continue, tem que mudar a lei da
mudou a lei de novo e derrubaram a
Juréia para todas as comunidades.
lei (Mosaico da Juréia) e voltou a ser
Para criar um instrumento jurídico e
estação
promotor
ter mais força para falar em nome
público de Santos entrou com uma
das comunidades caiçaras, que tenha
ação civil pública dizendo que o
uma abrangência nacional. Temos
governo tinha 120 dias para tirar
que
todo mundo da estação ecológica,
comunidades, não temos que ter
porque lá não é permitida a presença
vergonha de ser caiçara, porque ser
humana. Nós entramos com um
caiçara
mandado
comunidades
ecológica,
de
o
segurança
pública
dar
visibilidade
é
muito
para
essas
bom.
indígenas
As e
coletivo, chamamos a defensoria
quilombolas têm um marco legal,
pública e explicamos que estão
elas estão na lei. E nós precisamos
querendo tirar todo mundo de lá,
dar
fizemos manifesto, abaixo-assinado,
caiçaras para que um dia elas
divulgamos no “Revelando o Vale do
também estejam. Porque a partir do
Ribeira”. Conseguimos segurar à
momento que você tem um marco
liminar, mas foi julgada agora e a
legal, você tem como cobrar mais
gente perdeu. E tá todo mundo no fio
afinco do poder público”. (Dauro)
visibilidade
às
comunidades
da faca de novo. Mas para salvar esse
RODAS DE MEMÓRIAS | 63
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
QUILOMBOS DO RIBEIRA Em 27 de agosto de 2011 foi realizada na Casa do Patrimônio do Vale do Ribeira a Roda de Memória do Projeto Memórias Urbanas, cujo tema estava voltado às questões sobre a presença do negro na história da região. Sob o tema Quilombos do Ribeira, este encontro buscou registrar elementos dessa história pouco conhecida e trabalhada nas escolas. Cabe destacar que a Lei federal 10.639, de 2003, institui a necessidade de incorporar nos currículos escolares a História e Cultura Afro-brasileira e nossa intenção foi contribuir com material para que os educadores possam fazer esta abordagem a partir da história local.
Convidados: Francisco de Sales Coutinho, o Chico Mandira, nascido no município de Cananéia na comunidade do Quilombo do Mandira. Presidente da Cooperostra. Irene M. Coutinho, nascida no município de Cananéia na comunidade do Quilombo do Mandira. Anna Maria de Andrade é antropóloga e trabalha no Instituto Socioambiental (ISA). Coordenou o Inventário Nacional de Referências Culturais das Comunidades Quilombolas do Ribeira. José Rubens Fortes, nascido em Iguape. Formado como professor de educação básica, atuou como mestre de escola nos municípios de Iguape, Pariquera-Açu e Registro. É autor de uma coluna mensal no jornal A Tribuna de Iguape. Júlio Cesar da Costa, poeta popular no Vale do Ribeira, nascido em Maracatu. Integrante do Batucajé e autor dos livros “Cacos de Mim” (1994) e “Sortilégios e Tesouros: poemas, causos e lendas do Vale do Ribeira” (2007).
64 | QUILOMBOS DO RIBEIRA
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1888 - Lei Áurea 1912 - Registro das terras dos Mandira 1969 – Criação do Parque Estadual Jacupiranga 1988 – A Constituição Federal determina a regulamentação dos territórios das comunidades quilombolas 1998 – Criação da Cooperostra 2002 – Criação da Reserva Extrativista do Mandira 2003 – Decretos regulamentam o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação e titulação de territórios quilombolas 2009 – Criação do Grupo Batucagé do Vale do Ribeira
RODAS DE MEMÓRIAS | 65
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
Escravidão em Iguape “É encontrável aqui na região de Iguape vestígios de engenho, de senzalas, de obras feitas por escravos, da
existência
do
negro
na
comunidade, mas que não estava abarcado
por
um
trabalho
acadêmico, então nos distribuímos alguns afazeres e de minha parte
Chico Mandira
ficaram temas relacionados a cultura. O que constatamos é que o negro começou a chegar no Brasil no começo da colonização e em Iguape no século XVII com a mineração de ouro, esse ouro não era como o do norte em que se escava o rochedo, aqui o ouro era de aluvião, de rio. De
Irene Mandira
inicio os escravos foram trazidos para esse afã, de trabalhar na coleta do ouro. O negro da mineração tinha uma formação diferente do negro que trabalhou depois no arroz, ele tinha essa mesma ocupação lá na África, então ele já veio com o conhecimento do garimpo. Este negro era alto,
Júlio
magro, esguio e de perna fina porque os senhores distinguiam o negro pela batata da perna, entendia-se que o negro de perna fina era mais eficaz no trabalho. Não se tem registros de Iguape até Santos de entrepostos negreiros, então eles eram trazidos e vendidos sucessivamente até chegar aqui
na
região
de
Iguape.
66 | QUILOMBOS DO RIBEIRA
Os
José Rubens e Anna Maria
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
empresários não possuíam grandes levas de escravos, cerca de 10 a 15 escravos
por
propriedade.
Esses
negros trabalharam na coleta do ouro até a exaustão desse ciclo por volta de 1700, então temos o inicio do ciclo do
arroz
que
foi
muito
mais
significativo pra região. Segundo se entende esse negro trabalhou no arroz, nos engenhos e moravam nas senzalas próximas, estavam sobre o domínio do senhor. Já os quilombos possuíam um agrupamento mais amplo
e
se
constituíam
pelos
escravos libertos, ou os negros que não se encontravam mais sob o julgo. Essa época do ciclo do arroz por volta de
1800
é
o
responsável
pela
construção desses casarões e das Igrejas aqui em Iguape”. (José Rubens) Bairro do Mandira “Hoje o bairro do Mandira conta com 24 famílias, mais ou menos 115 pessoas. Nossa comunidade é uma das mais antigas de Cananéia, somos a sexta geração na comunidade. No quilombo Mandira, tudo possui este nome, o sítio, o rio e o sobrenome dos moradores, porém os negros mais antigos não possuíam esse sobrenome, à época era Vicente, e depois que o pessoal passou a ser
A Constituição Federal de 1988, nos artigos 215 e 216, reconhece aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos.
chamado de Mandira, e adotamos esse nome. Esse nome Mandira vem de uma historia muito antiga, remete ao Dilúvio de Cananéia de 1615 que está
no
Cananéia.
livro O
de
histórias
Mandira
é
de uma
comunidade quilombola reconhecida pelo Estado, Fundação Palmares, porém, ela é diferente dos demais quilombos onde os negros fugiam e iam
para
lugares
distantes
e
formavam seus quilombos, locais onde os Capitães do Mato não poderiam localizá-los. O Mandira era uma fazenda de produção de arroz, na época em que o Vale do Ribeira produzia muito arroz. Teve o dono de escravo chamado Antonio Florêncio de Andrade, ele teve três filhos, dois homens e uma mulher, um deles com uma escrava. Esse filho se chamava Francisco Vicente. Na época, com o falecimento no D. Antônio, ficou apenas a filha mulher, Celestina de Andrade, como proprietária do sítio. Porém, ela queria ir embora para Minas por conta da exploração de ouro, então ela doou o sítio para seu RODAS DE MEMÓRIAS | 67
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
meio irmão, o filho da escrava, surgia
suas terras, herança do pai, ele
então a família Mandira. Alguns
pegava a canoa a remos, com a
foram
muitos
família, e ia até Cananéia e de lá
ficaram, entre eles o João Antônio.
através da praia chegava em Iguape e
Este teve dois filhos, um chamava
pegava um barco chamado Vapor de
João e o outro Antonio. Quanto a
Iguape e ia até São Paulo para brigar
esse ultimo existem muitas histórias,
pelo terreno no Mandira e ganhou a
que ele era muito forte, carregava sua
questão, registrando as terras como
canoa nas costas, ele era muito forte
sendo do Mandira em 1912. Bom,
e ao mesmo tempo muito ruim, então
quando a Celestina doou a terra para
ele levava a canoa dele pra um lugar
o Francisco foi em 1888, antes da Lei
muito
para
Áurea. Naquela época o pessoal do
ninguém mexer, segundo o que
Mandira era muito discriminado,
contavam, ele jogava lá no barranco
eram briguentos, andavam juntos e
porque era muito pesado. Já o João
começaram a falar “lá vem a negrada
era diferente, era calmo, era vidente e
do Mandira” e o pessoal achava que
previa
estavam
eles ocupam a área, mas na verdade
com
a
eram proprietário. Então, teve a
comunidade. Muito inteligente ele se
questão desse Coronel que queria
tornou na região como um advogado
registrar a terra no nome dele, e o
dos
meio
embora,
distante
as
porém
nas
coisas
acontecendo
com
pobres,
costas
que ele
mesmo
e
não
tendo
de
sobrevivência
da
frequentado a escola ele aprendeu a
comunidade era a caça, a pesca, a
ler e escrever em casa. Quando ele ia
lavoura, conhecida como agricultura
defender as pessoas no juiz ou na
familiar, mas nos conhecemos toda
delegacia
o
vida como lavoura e também chegou
escrever.
a década de 1950, 1960, começamos
Naquela época tinha os coronéis, e
a explorar Caxeta e o Palmito Juçara.
um chamado Coronel Cabral que
Na época o pessoal do sítio tinha um
ainda hoje possui terras na região,
grande amor pela natureza, pela
ele queria ser dono da área sobre
água, pela mata, por tudo aquilo que
domínio do Mandira, queria ser dono
se sobrevivia dele. Cipós, eles só
de toda área, uma área muito grande
tiravam cipó maduro quando eles
de terra. Na época não existia
precisavam, os que estavam verde
estradas, então para ele defender
eles deixavam pra tirar pro futuro.
escrevente
ele
ditava
tinha
o
que
68 | QUILOMBOS DO RIBEIRA
que
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
Eles preservavam a natureza, tinham
cultura dos negros, caiçaras, por isso
um
Juçara
que tinha caça, as pessoas viviam da
antigamente se tinha dez pés de
caça, eu me criei comendo carne de
palmito eles tiravam 5 ou 6 e
caça, meu pai nunca foi no mercado
deixavam o resto para repovoamento
comprar um quilo de carne. No
e alimentação dos bichos, assim era
passado os homens respeitavam a
feito também com a caça”. (Chico)
natureza. Tem uma parte de mato lá
cuidado.
O
Palmito
que estávamos fazendo uma trilha, Modo de vida na comunidade
uma área de um sítio arqueológico,
quilombola
sambaqui, uma mata em que meu
“Hoje é proibido caça. Antigamente
avô falava que ali não poderia
tinha porque o pessoal respeitava o
derrubar, em qualquer lugar poderia
ciclo de reprodução dos bichos. A
pra fazer roça, mas ali só poderia
partir do meio de maio até agosto é o
tirar madeira pra fazer um cabo de
mês de caça de paca, tatu, veado e
foice, uma casa, ela tinha que ser
depois dessa época o pessoal não
preservada pra esses fins”. (Chico)
caçava porque é a época de cria. Se matar uma caça entre agosto e
Remanescentes de quilombo
outubro, além de matar a mãe irá
“Quando
matar os filhotes. A única caça que
éramos uma comunidade negra, o
era morta o ano todo era o porco do
padre João Trinta disse isso e o povo
mato e o cateto porque eles criam o
ficou tudo revoltado contra ele, não
ano todo, então não tem época de
queríamos
criação, o pessoal sabia dessas coisas,
negros, tínhamos vergonha disso.
não
ensinar.
Depois começamos a nos identificar
Tinha a questão que o pessoal fala
como negro quando duas irmãs
“não pode caçar”, mas naquele tempo
vieram fazer alguns estudos na
quando nascia um filho homem, o
comunidade e ficamos sabendo que
pai da criança, ou avô, já pegava a
enquanto
espingarda e saia na rua e atirava pra
alguns direitos. Então hoje nós
cima e você sabia que nascia um filho
assumimos
homem, e se fazia isso para que
remanescentes de quilombo. Fruto
aquela criança se tornasse um ótimo
de várias reuniões, nós conseguimos
caçador, era tradição, fazia parte da
descobrir qual a nossa situação,
precisava
ninguém
ficamos
ser
sabendo
classificado
quilombola que
somos
que
como
teríamos negros
RODAS DE MEMÓRIAS | 69
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
nossos
direitos,
a
questão
do
hoje nos fazemos uma festa para
trabalho das ostras e desse como
arrecadar
fundos,
pelo
sendo desqualificado. E com esse
tentamos, antigamente o pessoal
trabalho também foi responsável pela
fazia o terço. Dia 12 a noite tem o
elevação da nossa estima e passamos
terço cantado e de manha cedo tinha
a assumir esse trabalho também,
o terço normal. Então o pessoal de
nesse contexto tivemos a criação da
várias
cooperativa”. (Irene)
Município de Jacupiranga iam pra
comunidades,
menos
até
do
festa, ai eles levavam arroz, porco, Tradições
galinha e tal. Lá a noite eles faziam
“Quanto às tradições religiosas, hoje
um café e colocavam tudo ali e todo
elas diminuíram muito se comparado
mundo tomava café e comia daquilo
da época dos meus pais, o que
ali, todo mundo junto em comum.
preservamos ainda é o terço cantado,
Depois do café as mulheres pegavam
já o Fandango está muito pouco,
todo a doação, cortavam e faziam a
apenas o meu cunhado que sabe
carne com arroz, e ali pelas 11 da
tocar
meninos
noite tinha a janta e ninguém
começaram a praticar capoeira mas
comprava nada, nós tínhamos o que
pararam também, não sabemos, mas
sobrava e o que o pessoal trazia e de
os jovens não tem mais interesse na
manha tinha outro café, o que a gente
nossa cultura, eles querem sair. Das
chamava de alvorada e outro terço
festas religiosas nos temos apenas a
cantado. Quem vendia alguma coisa
do padroeiro, a de Santo Antonio,
nas festas eram as moças que faziam
mas as outras festas que tínhamos
broinhas
antes como o carnaval, as reiadas, os
vendiam pra rapaziada... eram as
moleirões, não tem mais”. (Irene)
únicas que vendiam alguma coisa.
o
fandango.Os
de
mandioca,
então
Depois mudou, o pessoal começou a “No tempo em que éramos jovens
fazer barracas e não tem mais àquela
tinha muito fandango, tinha porque
coisa de trazer as coisas, tem que
nós éramos solteiros e queríamos
comprar... então mudou a festa de S.
namorar, então quase todo fim de
Antônio, mas ainda tem o terço
semana tinha fandango e mutirão,
cantado, que já foi gravado pelo
outra coisa que acabou praticamente.
pessoal
Outra coisa era a festa de S. Antônio,
memórias, muitas coisas se perderam
70 | QUILOMBOS DO RIBEIRA
do
Itesp.
Então
são
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
porque os jovens não querem mais
comunidade
não
vai
ter
acesso
saber de fandango”. (Chico)
porque está lá na academia, e seria muito importante que isso voltasse
“As pessoas chamam qualquer coisa
principalmente
de mutirão, mas tem o mutirão, a
poderem entender, por exemplo,
pojuba e o ajutório. Mutirão é
porque
quando alguém queria fazer uma
Ivoporundura. As pessoas precisam
roça ou canoa ou uma coisa desse
tem o conhecimento do que é seu, e
tipo, ai juntava 30 a 40 pessoas que
esse é um pouco do sentido da nossa
trabalhavam o dia inteiro e o dono da
poesia da oralidade, ela não é feita
roça dava o almoço e a janta e a noite
pra ficar presa no papel, ela foi feita
tinha o fandango, o baile, isso é
pra
Mutirão. A pojuba também tinha
compreensão, essa é a principal
baile, mas as pessoas que eram
ferramenta do meu trabalho. Não
convidadas almoçavam em casa e
tenho pretensão de dizer que é um
depois do almoço iam trabalhar até a
trabalho bom ou ruim, melhor ou
noite e depois tinha a janta e o baile.
pior, mas é um trabalho autentico,
O ajutório o pessoal juntava 10 a 15
nosso e quando começamos com esse
pessoas e iam fazer uma roça ou
trabalho as pessoas perguntavam o
trabalhar numa casa e todo mundo
que a gente ia ganhar falando do vale
dava o café, o almoço, café da tarde e
do Ribeira? Gente, é aquela coisa que
depois as pessoas iam embora, não
para você entender essa questão do
tinha baile. Hoje eles convidam 4
advento
pessoas pra trabalhar em alguma
fronteiras em que o mundo está
coisa e fala que é mutirão, não é, isso
pequeno, o Chico mesmo já virou
é ajutório”. (Chico)
cidadão do mundo, mas a gente
Ivoporundura
dialogar,
precisa
para
pra
global,
aprender
da
a
os se
jovens chama
permitir
questão
entender
a
das
o
“Imaginam o quanto de produção de
próprio espaço da gente, como a
mestrado e doutorado foi produzido
gente vai ser universal se não
nesses anos, e o que voltou à
conhecemos nem o nosso quintal.
comunidade? Pouquíssimo neh. Você
Precisamos nos apropriar do nosso
já pensou uma pessoa que foi
gueto, do nosso espaço”. (Júlio)
entrevistada em 1977, uma pessoa de 80 anos, é um material que a RODAS DE MEMÓRIAS | 71
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
Criação do Parque Estadual de
e
Jacupiranga
sobreviver. Éramos perseguidos pela
“Na década de 1960 foi criada na
policia ambiental, quando a gente
nossa comunidade o Parque de
voltava e ouvia a fala da polícia na
Jacupiranga,
sete
beira do porto a gente corria e virava
até
a canoa e escondia a coleta porque
vários
nos não tínhamos o dinheiro para
quilombos, inclusive parte do sítio do
sobreviver, imagina para pagar a
Mandira foi incluída. Com isso o
multa,
Estado criou a Polícia Ambiental e as
tínhamos vontade de mudar isso,
comunidades foram proibidas de
quando foi em 1993 o pessoal da
fazer tudo. Não poderia caçar, fazer
Universidade de São Paulo (USP),
roça, tirar palmito, caxeta, e ai nós
através
resolvemos
do
estiveram em Mandira e fizeram uma
Mandira, na década de 1970, 85%
proposta para o meu tio, já falecido,
das terras. E algumas pessoas que
de fazer um trabalho na comunidade.
não venderam, como minha mãe e
Naquela
alguns dos meus tios, ficaram lá, mas
chamado
tinham que sobreviver de alguma
trabalhava
maneira, ai a única solução foi partir
trabalhou na estrada do Itapitangui
para trabalhar com ostra. A parir de
ao Ariri e conheceu a história da
então passamos a viver da ostra a
comunidade e acabou simpatizando
partir de 1978”. (Chico)
pela nossa causa e junto ao Diegues
municípios Jacupiranga,
pegando desde
Cananéia
pegando
vender
o
sitio
você
precisa
era
realizou
vender
muito
do
difícil.
professor
época
tinha
Renato na
esse
para
Então
Diegues,
um
rapaz
Sales
que
SUDELPA,
trabalho
ele
junto
à
Criação de ostras
comunidade. Na época o Instituto
“Nós trabalhávamos com ostra como
Florestal (IF) contratou um técnico
clandestinos,
em
que foi gestor do Parque da Ilha do
quantidade muito grande porque o
Cardoso, ele fez um trabalho no sul
preço era muito pouco, vendíamos
com
para o atravessador e como todos
comunidade com a proposta de
sabem, quem produz e vende para o
engorda
de
atravessador não estabelece o preço
melhorar
a
do produto, é o atravessador quem
Quando começou esse trabalho com
diz quanto quer pagar pelo produto,
a USP e o IF começamos a trabalhar
tirando
ostra
72 | QUILOMBOS DO RIBEIRA
mexilhões.
Ele
ostra
chegou para
qualidade
da
na
tentar ostra.
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
de outra maneira com a ostra,
implantar nas suas comunidades,
pegávamos
ela
levávamos
para
esperávamos
no
mangue
e
então começou uma mobilização dos
o
viveiro
e
técnicos que estavam nos apoiando
sua
engorda.
Nos
trabalhávamos com ostra a muitos
para
que
nós
saíssemos
da
clandestinidade”. (Chico)
anos e nós ficamos receosos de mudar nossa técnica de trabalho,
“Então surgiu a ideia de criar uma
mas
cooperativa,
eu
falei
que
ia
fazer
a
uma
associação
experiência e se não desse certo eu
pequena
empresa.
voltaria pra mesma atividade. Foi
havíamos
criado
quando eu chamei um técnico do
Reserva Extrativista do Mandira,
Instituto de Pesca, na década de
pois à época alguns ambientalistas
1960, também teve um estudo de
viram um casal de mico leão dourado
criação de ostra em Cananéia e o
lá na divisa com o Paraná, então
técnico falou que lá não era um local
queriam criar uma Estação Ecológica
propicio para criação de ostra, havia
desde Itapitangui até Guaraquiçaba.
apenas alguns pontos do estuário que
Com a criação da estação não
era propicio para a criação de ostra.
poderiam
Então chamamos esse técnico e ele
apenas a visita de pesquisadores.
falou o local que era bom, então
Então com a chegada do Instituto
definimos
a
Chico Mendes, chegou a APA e nos
comunidade começou a ir ao viveiro
mostraram como funcionava e nos
e a ver que a ostra estava crescendo
disseram que para garantirmos o
com aquele sistema de trabalhar,
direito
então todos foram fazer o mesmo
teríamos que criar a reserva. Então
serviço, e assim fizemos. Começamos
fizemos o pedido da criação junto ao
aquele
local
e
de
mais
Em
ou
a
ter
permanecer
1995
já
Associação
moradores,
na
terra
a vender in natura para um cara de São Paulo e um do litoral, a procura da ostra de viveiro passou a ser maior do que a retirada do mangue, pois a sua durabilidade é muito maior. Então as outras comunidades de Cananéia começaram a ir ao Mandira
Reserva Extrativista é de domínio público, com uso concedido às populações extrativistas tradicionais conforme o disposto no art. 23 desta Lei e em regulamentação específica, sendo que as áreas particulares incluídas em seus limites devem ser desapropriadas (Lei nº 9.985, de 18 de julho de 2000).
para ver o sistema e começaram a RODAS DE MEMÓRIAS | 73
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
governo federal em 1995, o diretor do
sobrinha saiu a pouco tempo depois
IBAMA esteve na comunidade, disse
de
que poderíamos criar a Reserva do
colocando outra sobrinha minha para
Mandira, porem ele foi embora e
trabalhar como secretária, então os
poucos dias recebemos uma carta
mais
dizendo que era impossível criar uma
administração,
reserva extrativista em terra firme
estamos
porque o governo não teria recursos
agora depois de 13 anos que estamos
para
dos
conseguindo entrar no mercado de
proprietários. Então o Secretário do
São Paulo, em litoral já temos um
Meio Ambiente do estado de São
mercado garantindo. Porem antes
Paulo, Fabio Feldman, propôs à
nós dizíamos que a ostra era de
comunidade a criação de uma reserva
Cananéia, porem com isso outros se
estadual, e por fim não conseguimos
beneficiavam,
também. Depois de alguns anos, o
divulgar a ostra da cooperativa”.
IBAMA retomou o projeto de criação
(Chico)
desapropriação
dar
a
luz,
jovens
então
ficam
a
mas
interados
estamos
cargo nós
e
então
da
todos
palpitamos,
passamos
a
da reserva e este se deu em 2002, a criação da primeira reserva federal
O
em são Paulo. Como eu disse do
comunidade
processo
“Nesse ano (2002) também fomos
de
sairmos
da
clandestinidade,
optamos
pela
cooperativa
porque
reconhecidos
como
da
comunidade
os
quilombola e ganhamos o premio Rio
da
+ 10, pela ONU, que possibilitou a
pequena
saída do primeiro Mandirano para
empresa possui um dono e os demais
fora do país e ir à Johanesburgo na
trabalham para este, nesse sentido
África do Sul. Eu fui mostrar nosso
criamos a cooperativa. De inicio
trabalho de preservação ambiental e
quase
de
cooperados
são
cooperativa
e
todos
reconhecimento
proprietários numa
fechamos
porque
não
desenvolvimento
comunidade,
conseguimos um curso para que os
também ganhamos o premio ECO 99,
filhos
da
cooperados
fizessem
Shell.
Nós
esse
da
sabíamos como administrar, mas dos
com
social
trabalho
ressaltamos
esse
cursos de informática voltada ao
prêmio não pelo prêmio, mas pela
cooperativismo.
valorização
Meu
filho
ficou
depois dois anos trabalhando, minha 74 | QUILOMBOS DO RIBEIRA
do
nosso
trabalho,
porque a gente lá na roça não
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
uma vasta margem do rio, ano Decreto nº 4887 de 20 de novembro de 2003 regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos de que trata o art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.
passado fizemos roça e preservamos
percebe a importância do nosso
como nós nos organizamos e como o
trabalho, tínhamos a impressão que a
Estado nos apoia. Estive também
gente nem faz parte desse país. Mas
com pescadores no sul da Bahia e o
nós
nossos
pessoal por lá conseguiu retomar
antepassados morreram lutando para
suas atividades com as questões que
melhorar nosso país e até hoje nos
eu passei para eles, a forma que nós
trabalhamos para
melhorar isso.
trabalhamos na nossa cooperativa,
Conseguimos vários benefícios, entre
mesmo eles não trabalhando com
as mulheres e os jovens. Já estive na
ostras. Estive em Paraty e um
Itália, fui convidado no ano passado
condomínio esta querendo construir
pelo ISA para ir à Dinamarca para
um píer no mangue, ai o pessoal me
discutir a questão climática, e mostra
chamou para ensinar a fazer viveiro
a importância do nosso trabalho na
de ostra por lá, ai as pessoas me
questão da preservação ambiental,
perguntaram
não é apenas importante para a
competir comigo, mas não é assim,
comunidade, é relevante para o
eu vendo o meu e ele vendo o dele, eu
mundo todo. Com isso as pessoas
acho que é importante a gente estar
veem que o Mandira esta no caminho
passando os conhecimentos que a
certo, e não é que estamos fazendo
gente tem. Depois de um tempo eu
agora, não tem nada de novo, tudo
encontrei
aprendemos com nossos antigos.
cooperativa de Paraty e ele me disse
Hoje tem educação ambiental, mas o
que eles já estavam vendendo ostra,
que fazemos são coisas que meu avô
tem coisa melhor que isso? E assim a
fazia, só não possuía esse nome. Hoje
gente vai mudando o Brasil, a gente
é proibido derrubar a margem do rio,
brasileiro”. (Chico)
participamos
sim,
a beira do rio, nós sempre tivemos esse cuidado da preservação porque nós dependemos da natureza. Esses tempos eu estive em Campos (RJ) para mostrar nossa experiência, de
se
com
eles
o
não
presidente
iam
da
e naquele tempo o pessoal preservava
RODAS DE MEMÓRIAS | 75
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
Articulação das comunidades quilombolas
Roda de Memória
“Nós temos no Vale do Ribeira o EAACONE (Equipe de Articulação e Acessória das Comunidades Negras do Vale) que tem sede em Registro e periodicamente
temos
reuniões,
mais ou menos a cada dois mês para planejar
a
comunidades
articulação para
buscar
das seus
direitos. Antes, nós não sabíamos de nossos direitos enquanto negros, e com esse grupo temos acesso a essas informações, agora temos orgulho de sermos negros e fazermos parte da história do Brasil. Mas tem muitas comunidades que ainda tem vergonha de sua origem. Uma vez fui para Manaus e uma mulher da Fundação Florestal (FF) que me acompanhava perguntou para uma moça que possuía traços indígenas: “você é descendente de índio?”, e ela não assumiu, mas a cara dela é de
temos que nos assumir, por isso
índia, então a pessoa tem vergonha
temos essa associação”. (Chico)
de sua origem, claro que isso vem mudando, o negro já possui sua
Poesia no Vale do Ribeira
identidade, mas ainda tem pessoas
“Falo
que se auto-discriminam por ser
experiência do meu trabalho com
negros. Muitos dizem “Chico você
poesia popular no Vale do Ribeira.
não é negro, sua cor é de burro
Estudei
perdido”, mas minha ascendência é
adolescência,
de negro, olha o meu cabelo. Então
formação foi em Ed. Física, fui atleta, defendi
76 | QUILOMBOS DO RIBEIRA
um
pouco
na
a
da
minha
cidade
minha
seleção
minha
até
primeira
brasileira
em
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
alguns
eventos
regionais
e
Batucajé e as memórias do Vale
internacionais, depois voltei ao Vale
do Ribeira
do Ribeira e como essa coisa da
“Esse
poesia,
Maracatu, nosso projeto é bem
do
texto
sempre
me
trabalho
sediado
parecido
Letras e nesse meio tempo eu
memórias,
comecei um processo de descobrir
história da cidade através do olhar da
essa questão da formação do vale,
população e dentro dessa questão da
dos povos e esses conceitos de
memória vamos bebendo de outras
quilombo, mesmo a minha cidade
fontes como a poesia, a música e a
possuindo
historiografia
comunidade
esse
que
em
acompanhou eu acabei cursando
uma
com
é
buscamos
da
é
contar
cidade.
de a
Dentro
quilombola. Ai conversando com a
desse meu trabalho do grupo eu
minha mãe ela começou a me contar
acabei tomando a linha da poesia
as histórias dos seus pais, meus avós,
regional. Lancei um livro em 1994
ai eu comecei a perceber essas
chamado “Cacos de Mim” que tratava
questões que não são só do litoral,
das minhas influencias da poesia
mas de todo o Vale como um todo
moderna
através da ocupação por meio do rio.
Cecília Meireles) eu sempre tive uma
Nos anos 90 eu conheci o Lara, nos
influencia desses poetas, que eu
encontramos aqui no Vale e eu já
sempre li na minha juventude, então
tinha esse trabalho com poesia e ele
esse
com a música. A partir disso, nos
influências
unimos para cantar e fazer um
Batucagé na etimologia está ligado
trabalho,
aos
não
tínhamos
muitas
(Drummond,
primeiro
livro do
batuques
Vinicius,
traz
fortes
modernismo. com
intenções
pretensões, trocávamos experiências
religiosas. Mas nós, dentro do nosso
de arte e poesia. Montamos um
caiçares, a gente colocou esse nome
grupo que se chamava Batucajé e
para remeter as questões de como
começamos a participar de algumas
você junta às pessoas para contar
intervenções aqui e ali e nosso
histórias, como a gente ta fazendo
trabalho foi ganhando um destaque”.
aqui, isso é um batucagé. Mas eu
(Júlio)
trazia essa coisa de redescobrir o Vale, eu passei muito tempo fora, então era mesmo um processo de redescobrir e através desse grupo RODAS DE MEMÓRIAS | 77
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
viajamos e passamos a ter uma
imaterial. Esse trabalho não é apenas
aproximação com as comunidades,
pesquisa,
as lideranças. Eu e o Lara temos
intervenção,
personalidades diferentes, enquanto
comunidades se apropriem desse
ele é mais comunicativo eu sou mais
trabalho e toquem esse levantamento
calado, fico mais atento a fala e em
por
incorporar isso. Eu sempre acho que
comunidades que participam: aqui
a poesia nasce de forma oral, da
em baixo nos temos em Cananéia os
oratória. A escrita e essa questão da
quilombos do Mandira, Morro Seco.
oralidade
é
Em Eldorados nos temos o Abobral,
necessário que você registre, mas o
Sapatu, Pedro Cubas, Pedro Cubas de
que da vida a poesia é a verbalização,
Cima, Ivaporunduva,
quando você pega os violeiros, que
Galvão, Nhunguara. Em Iporanga
tem
nos
caminham
domínio
improvisação
do é
juntas,
verso
fantástico,
e
da
é
elas
um a
projeto
ideia
é
mesmas.
temos
Santa
que
São
São Rosa,
de as
16
Pedro, Pilões,
você
Pombas e Praia Grande. Em Itaoca
consegue usas de diversos recursos, é
temos Cangume e Porto Velho. Em
uma gama de coisas muito grande”.
cada comunidade dessas nos temos
(Júlio)
um agente cultural treinado por nós do ISA e pelo IPHAN para aplicar os
Inventário
de
Referências
questionários do inventário. Esse
Culturais dos quilombolas
questionário é dividido em cinco
“O projeto específico no qual eu vou
temos principais: as celebrações, as
me ater aqui é o Inventário de
formas de expressão, os ofícios e os
Referencias
Culturais
das
Comunidades Quilombolas e o que é isso? É uma maneira de levantar e dar
visibilidade
imaterial
dos
trabalho
nos
ao
Mutirão em Iporanga
patrimônio
Quilombos.
Nesse
adotamos
uma
metodologia elaborada pelo IPHAN, então nos realizamos um trabalho para o IPHAN, essa metodologia do IPHAN é uma das partes da política de
salvaguarda
do
patrimônio
78 | QUILOMBOS DO RIBEIRA
Foto: Titi Ribeiro.
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
modos de fazer, os lugares e as
não anda mais com os foliões, ela
edificações... Ai, quando a gente
anda
chega
principais
preocupante é o declínio da atividade
dificuldades pra gente, enquanto
agrícola, a atividade de roça. É claro
antropólogo ou pesquisador é como
que a ajuda do governo a essas
colocar aquilo que estamos vendo, a
comunidades é importante, mas sem
vida acontecendo, transformada em
uma política de incentivo a roça
dados e encaixá-la nessa classificação
acabam solapando essa atividade, e
do IPHAN, então temos todo um
sem a roça não temos o mutirão,
trabalho de ‘domesticar’ esses dados
pulhuva, nem reunida, nem ajutório,
e transformá-lo num texto que se
não tem mais, e se a gente não tem
encaixe nessa metodologia. Então, o
mais isso não tem os bailes depois e
inventário
composto
se a gente não tem os bailes a gente
dessas informações, mas nós estamos
não tem as musquetas, a dança do
tentando
às
chapéu, a anhamaruca, o fandango, e
comunidades também se esses bens
se a gente não tem os produtos da
estão íntegros, se eles são memória
roça a gente não tem mais o tipiti,
ou se eles são ruína. Isso é para a
peneira, pilão, a roda, o monjolo...
gente começar a pensar se esses bens
quer dizer, acaba tudo, ai a gente vê o
estão ok, se está sinal amarelo e esta
sistema. [...] se a vida é difícil na roça
se
é
é importante que a gente crie
necessário fazer alguma coisa pra
condições pra que não seja tão difícil,
garantir sua salvaguarda. E o que eu
eu não sei se eu sou muito nostálgica,
tenho a dizer no panorama que
mas
estamos traçando é que tem muita
conhecimentos
coisa que é integro e memória,
crianças hoje fazem uma trilha e não
porque o bem natural ainda existe,
sabem identificar um pé de planta,
mas, ou uma pessoa quem faz ou ele
tem que comprar um pacote de arroz
mudou tanto que o jeito que ele era
que os pais dele plantavam e às vezes
feito não existe mais, então ele
eles não tem o dinheiro. O objetivo
encontra-se
estagio
desse trabalho é fazer com que essas
intermediário entre existir e não
comunidades se apropriem desse
existir. É o caso da bandeira do
conhecimento,
divino em muitos lugares, porque ela
sistematizando
lá
uma
está
das
sendo
levantar
perdendo
muita
em
junto
coisa
um
e
em
silencio.
eu
quero
Outra
que
coisa
não
esses
acabem.
nos todas
As
estamos essas
RODAS DE MEMÓRIAS | 79
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
informações e estamos passando pra
de represas, represas estas que vão,
elas para que elas vejam o que e
além de inundar terras, inundar
como elas eram preservar e se gostar.
história, memórias e uma boa parte
Muitas
da historia do Vale do Ribeira que
escolas
desvalorizam
os
conhecimentos dos mais velhos, das
esta
ai
comunidades quilombolas. Gostaria
quilombolas, então é uma luta nossa
de salientar que toda essas história
porque tem muitas histórias do vale
tem também como objetivo dar
que
visibilidade e valorizar o Rio Ribeira
(Anna Maria)
estão
nas
nessas
comunidades
comunidades”.
nesse processo atual da construção
Quilombo dos Mandira, Cananéia. Foto: Danilo Pereira, 2009.
80 | QUILOMBOS DO RIBEIRA
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
HISTÓRIAS DE PEDRA E CAL Em 17 de setembro de 2011 foi realizada na Casa do Patrimônio do Vale do Ribeira a Roda de Memória sobre a temática: Histórias de Pedra e Cal. O objetivo era ouvir relatos que tivessem como foco o patrimônio edificado na cidade e na área rural. Detalhes das técnicas construtivas e da fonte dos recursos para a construção, as iniciativas para a conservação deste patrimônio e as histórias de vida de nossos convidados alimentaram as conversas, cujo registro encontra-se aqui dividido por temas de falas.
Convidados: Lúcio de Aguiar, morador do Costão do Engenho. Paulo Fortes Filho, pesquisador e historiador da cidade. Cleide de Moraes Carneiro, moradora de Iguape. Emerson da Silva Santos, responsável pelo Projeto Oficina Escola.
RODAS DE MEMÓRIAS | 81
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
1538 – Fundação da sede da vila onde hoje se encontra o bairro do Icapara 1614 – Transferência da sede da vila para a região às margens do Mar Pequeno, onde hoje se encontra o Centro Histórico 1653 – Construção da Casa Real de Fundição de Ouro, a primeira no Brasil à época. 1848 – a Vila é elevada à categoria de cidade
1856 – Inaugurações da Basílica do Bom Jesus de Iguape 1969 – o centro histórico de Iguape é tombado pelo CONDEPHAAT 2009 – o centro histórico de Iguape é reconhecido como patrimônio nacional pelo IPHAN
82 | HISTÓRIAS DE PEDRA E CAL
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
Trabalho na roça “As construções
Iguape, no
eram feita de pedra, fazer casa de
começo, principalmente no rural,
pedra é difícil. Só o alicerce. O
eram de madeira. Casa de pau a
casarão perto do engenho é de pedra
pique. Ali ia vivendo, plantando as
e cal, feito pelos escravos. Ali tinha
coisas. Criava também os animais, as
um engenho de pilar arroz, tinha esse
condições de antigamente não eram
monjolo, tinha a cachoeira, aí fazia
iguais as de hoje, antigamente era
um pilão e aqui atrás ficava uma água
mais fácil, não tinha tanta exigência
e a água caia aqui, quando a água
como hoje tem. Antes a gente
caia, enchia e suspendia isso aqui
derrubava o mato, plantava e colhia.
virado para cá e a outra caia e o
Hoje não pode nem derrubar para
monjolo caia no arroz para pilar.
plantar. Mas é ignorância, porque o
Depois que veio a construção dos
trabalhador rural braçal nunca deixa
engenhos, tinham vários engenhos
a terra nua, para não dar erosão,
ali
enchente.
que
engenhos, tudo de arroz, até lá no
derrubam tudo e a erosão vai para o
Matias. Quando foi feita a maquina,
rio. Eles podem fazer, mas a gente
caiu tudo e não tem água mais. Na
não. Eu trabalhava na roça, hoje não
casa grande, ali era de pilão também,
trabalho mais, porque tem que fazer
depois
um requerimento pro IBAMA, você
revolução de 1930, Iguape levou
se você faz hoje, só daqui três ou seis
muita gente para se esconder lá. O
meses que sai o resultado. O que
prefeito pegou a maioria do povo e
adianta isso? O fazendeiro grande
levou lá para cima, aquele casarão
não, ele entra derruba a mata, aí vem
ficou lotado de gente”. (Lúcio)
São
em
para fazer o alicerce, as casas não
os
grandes
que
faziam,
que
caiu.
tinha
Na
uns
época
oito
da
a erosão e leva tudo para o rio”. (Lúcio)
Icapara “A maioria das casas de Icapara era
Engenhos de arroz
de taboado, que cortava do mato ou que acostava na praia. Eram bem
“Eu trabalhei no sítio. Quebrei muita
simples, uma sala enorme e a outra
pedra para construir casa em Ilha
parte a cozinha. Com o passar do
Comprida, em Iguape e assim fui
tempo, as casas ganharam outros
vivendo. Era pedra, cal e cimento
compartimentos:
os
quartos.
RODAS DE MEMÓRIAS | 83
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
Geralmente um quarto maior, o mais
tem que ser alterada para que ele
reservado no fundo da casa era para
possa viver. Claro, com certo limite,
as moças. Era uma casa bem simples,
que reprima aquilo que não tá certo,
bem rústica. Depois apareceram as
mas a gente não pode deixar que ele
casas de tijolos. A casa do caiçara
não viva.
geralmente
habitat e veio engrossar a periferia
é
de
madeira.
A
Ele foi expulso do seu
passagem para o quarto das moças
das
era quase proibida. Até hoje a gente
subemprego”. (Paulo Fortes)
percebe
em
algumas
casas
grandes
cidades,
com
de
caiçaras, na porta da entrada uma
Festas
cruz e na porta do fundo a estrela de
“As festas eram mais modernas do
Davi, o signo de Salomão. Eu não
que hoje. Dançava de verdade. Hoje
entendia o porquê disso, porque
tem uma separação terrível, o pobre
nunca
uma
não pode se misturar com o grande.
comunidade de judeus aqui no nosso
Era melhor que hoje. O motivo devia
litoral. Então o dono da casa falava: a
ser de acordo com a exigência. A
soube
que
tinha
gente se pega com Deus e com o Diabo, para se defender de tudo”. (Paulo Fortes) Legislação Ambiental “Depois
também
com
as
leis
ambientais, não sou contra porque elas são necessárias, mas não se pensou no caiçara que vive lá. A lei protege
a
formiga,
o
caramujo,
Paulo Fortes
lagarto, o jacaré, o macaco, a onça, mas não protege o homem. Hoje em dia, se a gente passar nas ruas do litoral, a gente encontra uma roça de mandioca. Mas é como se fosse um museu, porque hoje não tem como plantar. Durante séculos o caiçara viveu e preservou aquilo, mas a lei 84 | HISTÓRIAS DE PEDRA E CAL
Lúcio de Aguiar
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
festa do povo do sítio antigamente
dessa cidade, tirava sozinho, cada um
era o carnaval, ia na casa de um hoje,
tinha seu lugar. Tinha uma porção de
na do outro amanhã, cada dia na casa
gente que fazia isso. A vida modificou
de um. E o baile da Sandália de
muito”. (Lúcio)
Prata? Esse era aqui na cidade. No meu tempo não existia, só fandango.
Preservação
Faz
“O
tempo
que
eu
comecei
a
tempo
marca
as
coisas,
o
frequentar, muito antes de vocês
progresso tem algumas vantagens e
chegarem lá”. (Lúcio)
algumas coisas que atrapalham. O que a gente percebe que aos poucos
“Nos bailes que se faziam para
vai
se
degradando
dançar com alguém a gente tinha que
histórico, era mais bem cuidado.
falar uma trova para essa pessoa.
Agora com essa nova orientação do
Tinha o violeiro, era um negro, uma
IPHAN,
hora ele deixou a viola para ir dançar,
Prefeitura
foi tirar a moça para dançar e ela
preservando, mas muita coisa foi
disse que não dançaria com aquele
deixada de lado. A gente vê em
negro, aquele urubu. Eu disse: eu
algumas fotos. Ali no funil, onde está
do
é
o
centro
CONDEPHAAT,
que
tão
da
cuidando
e
sim. Dançamos e ele voltou para a viola. Aí ele fez uma modinha assim: Urubu é bicho preto, feio e muito catinguento, mesmo assim as moças chamam para o seu divertimento. Porque ele que era o violeiro”. (Cleide) Pedra “Tirava pedra com a marreta de cinco quilos, com a base do martelo, pegava assim na pedra, batia, a pedra abria, ferro grande comprido. Batia com a marreta quebrando. Da minha família só eu que tirava pedra. Vendi
Conforme Machado (1986), o tombamento é um instrumento jurídico de proteção do patrimônio natural e cultural. É considerado por este mesmo autor como uma “intervenção ordenadora do Estado na propriedade privada” e que tem a finalidade de colocar os bens sob um regime especial de cuidados. O tombamento corresponde a um ato administrativo que tem por finalidade a conservação de bens materiais móveis ou imóveis, sendo este o seu preceito básico, ou seja, a obrigação de conservar a coisa tombada, como definiu Rabello (2009). Um dos principais efeitos do instrumento do tombamento é transformar os valores culturais contidos nos bens como questão de interesse jurídico, uma vez que paira sobre o objeto tombado um interesse público.
muita pedra para construir as casas RODAS DE MEMÓRIAS | 85
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
o marco da fundação da cidade,
lógico que a gente não vai querer
aquela parte ali o calçamento era de
voltar ao passado, mas muita coisa a
pedra, com o tempo foram tirando,
gente
foi se descaracterizando. A própria
concessão que foi feita é que se
Basílica, essa pastilha é o fim da
conserve a fachada, dentro a pessoa
picada, é um crime contra tudo. Na
faz o que achar melhor, o que achar
própria
do
mais prático. Geralmente as casas
Santíssimo, algum iluminado teve a
eram um corredor comprido, os
ideia
cupim
compartimentos, os quartos muitas
levantando uma parede em frente o
vezes não tinham ventilação, não
altar. Na época que foi feito ninguém
tinham
reclamou,
tomou
confinavam a pessoa lá dentro. A
conhecimento. As coisas vão pouco a
gente não quer que volte como
pouco se deteriorando. Aconteceu em
antigamente, mas que pelo menos se
60. Onde era o prédio da capitania, o
preserve a fachada. As divisões eram
mais bonito da praça, a frente toda
de taipa ou de parede francesa,
era de azulejo português, o único que
algumas
restou na praça, derrubaram o prédio
Fortes)
igreja, de
na
combater
capela o
ninguém
tem
que
preservar.
abertura
com
de
madeira”.
Uma
janela,
(Paulo
e fizeram uma coisa medonha de feia. Com o tempo se não tiver pulso firme
Saudade de Iguape
as coisas vão se deteriorar e a cidade
“Eu fui para São Paulo quando tinha
vai perdendo suas características. A
quatro anos, mas vinha para Iguape
arquitetura é um conjunto, se alguma
todas as férias, se a gente estivesse
coisa fica fora daquele alinhamento,
bagunçando minha mãe já falava: as
com o tempo aquilo vai se perdendo.
férias estão chegando, hein! E aí a
Se a gente olhar nessa rua aqui, nós
gente dava até banho em porco,
não vamos ver, fizeram uma reforma,
porque não queria deixar de vir para
cada porta da casa ficou de um
cá de jeito nenhum. Era muito
tamanho, na frente do casario a
gostoso. A gente vê que algumas
janela é arqueada e a porta é reta.
pessoas quando falam de Iguape tem
Coisas que não casam com o próprio
vergonha
estilo. Aqui na rua 15, em duas casas
vergonha de ser caiçara. Cada coisa
tiraram as portas de madeira de lei e
que a gente fazia aqui tinha cheiro de
puseram portas de vergalhão. É
Iguape, os passeios de barco a vapor.
86 | HISTÓRIAS DE PEDRA E CAL
de
sua
história,
tem
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
Quando chegávamos e quando íamos
Quando havia um cerco que pegava
embora, a lancha parava perto do
muitos peixes, aquilo era dividido
barranco e toda a vizinhança vinha
com toda a comunidade”. (Cleide)
ver. O café daqui cheirava diferente, o pão era diferente, pão sovado.
Nossas Raízes
Realmente a cozinha era a parte
“Eu bato o pé que nós temos que
maior,
mesa
manter os olhos no futuro sem
enorme, os barris, uma porta bem
esquecer o nosso passado, das nossas
pequena que dava para uma horta de
raízes, da nossa história. Então
onde
os
quando a gente vê uma casa assim
temperos. Do outro lado tinha só
(paredes de pedra) é bonito, está
ervas medicinais, porque meu avô
mudando a cabeça das pessoas.
receitava para todo o vilarejo, havia
Porque antes isso era vergonhoso,
herdado isso da minha bisavó, que
tratavam logo de cobrir com reboco.
era filha de escravo e tinha muito
A calçada também, se sobrava um
conhecimento. Morreu com 115 anos
dinheiro
e nunca tomou um comprimido.
colocar piso. Os nossos casarios, as
Lembro-me que quando ela faleceu
brincadeiras, tudo isso tem que ser
eu tinha uns três anos, ela me fez
preservado porque é a nossa história.
uma bruxinha de pano, fazia o
Porque um lugar sem história é como
cabelinho de tucum. Quando a gente
uma árvore plantada no concreto, um
era criança, essa ideia de preservação
vento derruba, porque não tem raiz.
de pegar só o necessário era comum.
Eu
chão
eram
batido,
tirados
uma
todos
iam
vejo
que
cimentar e alisar,
poucas
casas
se
conservam. Na rua Tiradentes muitas delas perderam suas características. Nós temos aqui a casa paroquial que foi colocada esquadria de alumínio, não sei se existe uma orientação. Quando eu era jovem tinha orgulho de ser caiçara e agora com quase sessenta anos não vou ouvir ninguém chamar minha cidade de capela Cleide
velha. Essa mudança tem que estar dentro
de
cada
um.
Vi
uma
RODAS DE MEMÓRIAS | 87
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
reportagem sobre o 11 de setembro,
Umas tinham casca outras não. Meu
as várias coisas que Nova Iorque
comercio era de roupas, durante a
passou e o repórter disse: a cidade se
noite a gente estendia um plástico
destaque não pelo acidente das torres
porque a noite caía muita sujeira.
gêmeas, mas porque constantemente
Quando acontecia de quebrar uma
se renova, sem perder de vista sua
telha daquela, não existia, porque as
história. Não existe folha se não
telhas eram desse tamanho, todas
existe raiz”. (Cleide)
irregulares, para encaixar aquilo ali era igual a um quebra-cabeça. Minha
Pedra e Cal
avó fazia telha para casa dela, não
“A maioria das paredes era coberta,
tinha forma. Às vezes se fazia a telha
quando
com
na perna, na coxa. Minha avó era
argamassa era com barro. Não havia
ceramista, fazia moringa, telha, essas
uma valorização. Então era pau-a-
coisas.
pique ou madeira, mais na área rural.
ceramista, mas fazia mais decoração.
Esse prédio aqui do Di Paolo, a frente
Aqui era exatamente com essas
dele é uma fachada de pedra. A casa
telhas.
do meu avô, hoje você passa lá, não
trabalhava na basílica e era o único
resta nada daquilo que era. A gente
que arrumava esses telhados, o
fica triste com isso. Ali na Rua
Uriti”. (Cleide)
não
era
rebocado
Meu
avô
Tinha
um
também
rapaz
era
que
Tiradentes o telhado era um só, cobria
várias
casas.
Hoje
foi
“Trabalho nesse segmento da parte
modificado. Ali na orla do mar
Projeto Oficina Escola há 11 anos, sou
pequeno foi feito um aterro, a maré
formado
chegava até as casas, no fundo não
completando uma coisa, para depois
era muro, era cerca de bambu,
eu entrar na parte da Oficina Escola,
quando a maré ficava alta e depois
o uso da cal, ela é muito importante
baixava, ficava um lodo só, a gente
quando você fala desses centros
tinha que andar pela cerca. Passando
históricos de casario colonial por
ali o Di Paolo, lá na onde tem a auto-
muitos
escola, era um telhado só. Imenso,
econômico, uma lata de tinta se você
com as vigas, mandei passar óleo na
for
madeira para evitar cupim, porque
rendimento da cal e de uma lata de
era madeira de mato, grossa, rústica.
tinta látex, é muito mais barato,
88 | HISTÓRIAS DE PEDRA E CAL
em
colocar
pedagogia.
aspectos. o
preço
E
só
Primeiro entre
o
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
segundo a questão da higiene. A cal é
do
uma tinta que mata os fungos, ela
daquela ameixa amarela. Era na areia
permite a entrada e saída da umidade
branca, enterravam o lixo orgânico e
então a questão higiênica conta
cobria, depois jogava aquilo para
muito em relação a uso da cal. Pra
adubar. Eles adubavam também com
mim, claro que tem pessoas que não
aguapé. Usava-se muita pimenta
concordam,
da
como tempero, hortelã pimenta. Eu
textura da aplicação da cal, dá uma
fiquei viúva muito cedo, tinha quatro
textura diferenciada,
uma coisa
filhos na faculdade, fui trabalhar em
muito bonita. Hoje a gente utiliza a
uma empresa para sustentar minha
questão da cal hidratada que é
família. Hoje trabalho com arte, com
industrializada, a gente já compra
pesquisa, amo ficar pesquisando.
com aditivos e coisas do tipo, tem
Acabei de fazer um projeto para o
também no mercado a questão da cal
Morro do Bacharel. Alguém aqui
virgem que é aquela que você
falou que não sabia o porquê da
prepara, têm que ter toda a espera do
Estrela de Davi nas casas, eu acabei
tempo de cura dela para você
vendo em um estudo da USP que
utilizar”. (Emerson)
existe uma hipótese de que Cosme
eu
gosto
muito
conde,
limão.
Tinha
muita
Fernandes era judeu, por isso ele As Casas
teria sido desterrado em Portugal”.
“Todas as casas tinham horta, pé de
(Cleide)
cebolinha,
alfavaca,
coentro
e
salsinha, pés de tomate e árvore
“O professor Paulinho e o Seu Lucio
frutífera, goiabeira, abacateiro, fruta
falaram da questão das paredes
RODAS DE MEMÓRIAS | 89
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
divisórias.
Geralmente
você
vai
aquele cristalino que a cal libera,
identificar as paredes da casa dessa
aquele produto seria importante você
maneira: as estruturais são as quatro
aplicá-lo borrifando-o nessa parede
paredes que vão sustentar o peso da
que vai estar aparente, porque ela
casa, elas tem uma característica um
cria essa película de tratamento na
pouco mais larga até chegam a ser 1m
parede
e 1,5m e 2,0m de espessura para
(Emerson)
propriamente
dita”.
aguentar a carga. Para as paredes internas eles utilizavam muito a
Sambaquis
questão do sopapo, como o professor
“Só que essas construções aqui na
citou que é o entrelaçado de cipó e
parte
bambu, eles chapavam o barro, por
construíam muito com os sambaquis,
isso que a questão do sopapo, fica um
que são aquelas conchinhas. Como
de cada lado, eles chapavam o barro,
eles
tudo isso ao mesmo tempo. O
esmagavam todas essas conchas para
acabamento eles davam não só por
utilizar
questão
repararem
estética,
mas
sim
por
do
litoral,
utilizavam aquele
as
isso pó.
em
pessoas
ai? Se
muitas
Eles vocês dessas
questão de você manter também toda
construções que a gente tem de pedra
essa estrutura, de você dar uma
argamassada, vocês vão ver que um
sustentabilidade maior pra essa tua
pedaço delas tem carvão, outras a
construção. As paredes não ficavam
concha toda inteira. Isso por quê?
sem revestimento porque tinha essa
Porque eles faziam aquela grande
necessidade da proteção. Hoje em dia
pilha de concha, revestiam toda de
a gente vê muitas casas com paredes
madeira em volta, colocavam fogo.
aparentes, muitas delas sem um
Porque o fogo, fazia o quê? Ele
tratamento e isso está incorreto,
trabalhava
todo
porque é legal, bonito, esteticamente
sambaqui,
derretia
bacana. Mas pra você ter isso, pra
quando eles fossem para amacetar,
você manter e preservar tem que
para triturar, ela fica muito mais
fazer um tratamento. Ai o Toninho,
mole e eles aproveitam aquele pó.
ele esteve aqui com a gente falando
Então quando eles vão fazer essa
um pouco de o que se utilizar, tem
peneiração, vinham alguns pedaços
pessoas que utilizam a resina. Ele
de carvão que tinha usado. Porque
fala que a própria água da cal que é
eles tinham uma necessidade de
90 | HISTÓRIAS DE PEDRA E CAL
o
processo aquilo
ali
do e
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
construção, até mesmo por conta de
sente que o morador se preocupa
se proteger de chuva, sol, todo esse
mais,
tipo de coisa que hoje em dia
responsáveis, as pessoas perguntam:
também temos essa necessidade. Só
posso fazer isso, não posso, como
que eles iam fazendo os testes. E eu
funciona, por quê? Porque o jovem,
vou lá pegar, vou utilizar o que eu
principalmente o jovem que trabalha
tenho, a pedra argamassada com o
com a gente, acaba se tornando o
barro. Legal, só que não deu certo,
próprio
começou a cair, a trincar. Aí vou
patrimônio. Porque imaginem vocês:
atrás da areia que tem um pouco
um dia desses de sol, vocês ali na
mais de argila, não deu certo, tá
fachada fazendo todo um trabalho e a
caindo. Então eles vão procurar o
meninada, com o capacete e bota que
que?
o
eles não gostam, brigam bastante pra
sambaquis que eles tinham muito ali,
não usar, mas utilizam. E aí estão
essas conchinhas todas e depois disso
passando ali a noite e vê um
eles utilizavam muito o óleo de baleia
camarada pichando, vão brigar com
que era o que eles tinham na época.
certeza e vão pra cima mesmo. Então
Para quê? Para dar toda essa liga
acho que essa é a importância de
para a massa, ela tinha um pouco
você desenvolver o trabalho e ter essa
mais
questão
Os
de
aditivos,
primeiro
sustentabilidade
para
está
procurando
agente
da
do
seu
os
próprio
conscientização,
manter uma estrutura que fosse de
principalmente
dos
próprios
grande necessidade”. (Emerson)
munícipes. Dentro disso, a gente tem que mostrar pra eles qual é a técnica
Projeto Oficina Escola
mais apropriada que esta sendo
“A gente tem a cal com essa principal
utilizada,
característica de proteção do imóvel,
material melhor pra você trabalhar
e é difícil você colocar isso na cabeça
com esse casario do que a cal, não
do morador, das pessoas que a gente
tem mesmo. Dizem: Ah, mas a cal,
vê ai querem ter uma coisa mais
ela não da firmeza para parede, o
moderna, acompanhar a questão da
reboco não
textura. É todo um trabalho, um
Engana-se quem pensa dessa forma,
processo que a gente faz através do
a partir do momento que você
Projeto Oficina Escola, é claro que
respeitou todas as técnicas, que você
principalmente a prefeitura. Você
respeitou todos os períodos dessa
e
pra
mim
não
vai ficar tão
tem
bom!
RODAS DE MEMÓRIAS | 91
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
construção, que você soube trabalhar com as medidas tudo certinho, você tem um trabalho para anos e anos. A Oficina Escola veio pra cá na época do Ariovaldo, o Carlinhos foi um dos grandes idealizadores do projeto, foi quem realmente foi atrás. Então conseguiu implantar o projeto aqui Emerson
se não me engano no final de 2005 pra
2006.
No
início
nós
trabalhávamos com turmas de 50 alunos no período da manhã, 50 no período da tarde, tínhamos duas oficinas, a de pedreiro e pintor restaurador onde o laboratório era o
Parede de Pedra e Cal. Foto Helena Rios, arquivo Iphan/SP.
próprio centro histórico. Os alunos, eles podem vivenciar e trabalhar as técnicas aprendidas em sala de aula.
porque o espaço que foi cedido pra
Porque antes do início da prática eles
gente desenvolver as atividades teve
têm todo um aparato teórico, uma
o
questão teórica que eles têm que
principalmente
conhecer,
cartas
prefeitura, e a força de vontade do
dos
pessoal, dos alunos. Eu falo que é
noções
patrimoniais,
de
conhecimento
apoio
total
dos
moradores,
da
parte
da
órgãos propriamente ditos, o que é o
impressionante
IPHAN, o que é o CONDEPHAAT, o
quando
Conselho
a
apropriam daquilo e fazem com que a
importâncias de cada órgão. Então
coisa aconteça e querem cada vez
toda essa questão teórica é passada
mais
para os alunos antes mesmo deles
conhecer e vão atrás e pesquisam.
colocarem o pé na rua, segurança no
Então isso foi muito importante para
trabalho e qualquer coisa nesse
que até hoje a gente consiga manter
sentido. Os resultados sempre foram
toda essa estrutura que temos em
muito positivos em relação ao centro
Iguape. Hoje temos algumas outras
histórico de Iguape, até mesmo
oficinas relacionas a questão da
Municipal,
qual
92 | HISTÓRIAS DE PEDRA E CAL
eles
se
porque querem
aprofundar,
realmente fazer,
se
querem
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
restauração
ainda,
carpinteiro,
que
o
restaurador,
são
é
o
serralheiro todas
oficinas
meninos. É o Nilson, ele trabalha com
cantaria
tempo.Trabalha
já
faz
hoje
para
algum um
internas na nossa sede na (rua)
advogado, ele faz trabalho particular,
Major Rebelo e dentre isso a gente
e dentro disso a gente vai procurando
tem
atender a questão da necessidade
as
aulas
com
arquitetos,
engenheiros, historiadores”.
local”. (Emerson)
(Emerson) “Claro, como qualquer tipo de coisa “As técnicas são desenvolvidas a
sempre tem as dificuldades, um
partir
morador
da
necessidade
da
nossa
ou
outro
que
acaba
realidade, por exemplo, aqui nós
resistindo não fazer a intervenção na
tínhamos alguns entalhadores de
sua própria fachada. Engraçado que
placa alguns anos atrás que até foram
assim que nós iniciamos, temos um
embora, então existe a necessidade
roteiro que é seguido. Vamos ao
de ter alguém que trabalhe com essa
morador, pedimos autorização para
questão do entalhe, até mesmo pra
que os meninos possam realizar a
dar a opção ao morador. Ai você não
atividade, porque você não da uma
tem quem faça essa questão do
garantia de uma qualidade total, não
suporte,
tem como, porque eles estão em fase
aquela
parte
mais
desenhada, aquela coisa artística,
de
existe a necessidade de ter quem
aprimorando as técnicas, então pode
trabalhe
de
ficar muito bom como pode ficar
serralheria. A gente vai atrás dessa
aquela coisa mais ou menos. Se eles
capacitação, vai formar essa mão-de-
liberassem, tinham que correr esse
obra. Estamos tentando, já há algum
risco. Por ser uma manutenção fácil e
tempo, trazer para cá a questão da
barata você tem a possibilidade de
cantaria, por termos a necessidade
corrigir de imediato, mas tinha
dessa mão de obra. Ela é escassa não
aqueles
só aqui em Iguape, mas no Brasil
conheciam
todo. Hoje temos um mestre canteiro
resistência. Você fazia a casa da D.
aqui em Iguape e estamos tentando
Maria, do Seu João pulava, fazia de
fazer com que ele dê um curso, uma
não sei quem. Iam ficando todas
palestra, uma hora que seja, para os
bonitas, todas legais. Depois aquele
com
essa
parte
aprendizagem,
moradores então
eles
estão
que
não
tinham
certa
RODAS DE MEMÓRIAS | 93
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
que não quis ia correndo atrás pedir
de já ter passado na Oficina Escola.
para fazer a dele. Eu procurei sempre
Você vai escutando um que se
passar isso para os meninos porque é
formou esses dias e te chamou pra ir
uma forma de um reconhecimento da
à formatura, fez arquitetura, você vai
atividade deles. Hoje a gente já
escutando essas histórias e você vai
formou algumas dezenas de alunos,
vendo. É um trabalho que realmente
alguns alunos que passaram na nossa
vale muito à pena, mostrar para as
mão, hoje você escuta falar que está
pessoas
em Curitiba em uma construtora, que
patrimônio”. (Emerson)
só aceitou o currículo dele por conta
Foto: Leonardo Falangola.
94 | HISTÓRIAS DE PEDRA E CAL
a
conscientização
do
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
Águas de Iguape Em 24 de setembro foi realizada a última Roda de Memória cuja temática buscou ouvir e registrar as histórias relacionadas ao Rio Ribeira, à navegação, pesca e ao lagamar. Em uma cidade cercada de águas doces e salgadas seria impossível pensar que o cotidiano de vida não passasse por alguma história de pescador ou de barqueiro. Com o fim das atividades portuárias em Iguape, muitas destas histórias da navegação não são do conhecimento das gerações mais novas. Buscou-se por meio desta Roda de Memória trazê-las à tona novamente.
Convidados: João Xavier, mestre de embarcação da Sorocabana. Felix Veiga do Nascimento, condutor de embarcação da Sorocabana. Antonia Rosa Waldhehm, filha de condutor de embarcação da Sorocabana. Aparício Muniz Ribeiro, pescador do Rocio. Eliel P. de Souza, biólogo, pesquisador do ICMBio.
RODAS DE MEMÓRIAS | 95
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
1839 – Inicio oficial na navegação fluvial no Brasil 1844 – Iguape recebe a primeira linha de vapor regular, o Vapor Voadora 1857 – Fundação da primeira companhia de navegação fluvial da região 1906 – Criação da Agência de Colonização e Trabalho 1913 – Fundação da Vila do Jipovura por imigrantes japoneses que passaram a se dedicar ao cultivo do arroz 1916 – Fundação da Companhia de Navegação Fluvial Sul Paulista, a mais importante que atuou em Iguape 1955 – Encerramento das atividades da Companhia Fluvial Sul Paulista em Iguape
96 | ÁGUAS DE IGUAPE
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
Trabalho na Sorocabana
ficávamos um dia inteiro e no outro
“Eu nasci no município de Cananéia
dia de manhã saíamos e vínhamos
e de lá sai com 23 anos, casei e vim
para
pra cá, fui convidado para trabalhar
novamente.
na
de
continuar a viagem até Iguape pra
condutor constituía em viajar, sou
trazer a carga pra Registro, toda essa
mestre, então pegava a embarcação e
beira de Ribeira aqui. Então eu
saia daqui até Cananéia, de Cananéia
viajava daqui a Paranaguá, mas tinha
até
Paranaguá,
outro mestre igual o Felix que viajava
Ararapira, Guaraqueçaba e assim é
também comigo para Paranaguá,
que me aposentei com trinta e
quando eu faltava ele entrava e daqui
poucos anos. Nas viagens eu saía
nos íamos para Registro levar carga,
daqui meio dia e ia pousar em
e de Registro até Juquiá, de Juquiá
Cananéia, descendo e embarcando
nos puxávamos pra IBC (Instituto
passageiros, de lá nos pousávamos
Brasileiro do Café) fardos enormes
em Cananéia e no outro dia, seis
de 400 kg, nos embarcávamos pra
horas,
descarrega
Sorocabana.
Ariri,
trabalho
Maruja,
saiamos
Paranaguá,
O
com
também
destino
a
pousar
em
Depois
aqui,
Cananéia nos
e
íamos
depois
deixando
carregávamos pra descarrega lá no
passageiros e pegando por toda a
porto de Paranaguá e assim me
baia de Cananéia. Entravamos no rio
aposentei
Ariri e ia até o canal do Varadouro e
gostava muito desse serviço, senti
seguíamos,
muita falta quando me aposentei”.
embarcando
e
desembarcando, carga e descarga,
com
trinta
anos.
Eu
(João)
porque todo passageiro levava sua carguinha, compras que faziam por
“Eu moro no Bairro do Engenho, sou
aqueles lados. Então a gente chegava
uma pessoa bastante conhecida aqui
cinco horas, cinco e meia, seis horas
em Iguape, apesar de não ser nascida
em Paranaguá, pousava e ficava o
aqui, eu nasci em Barra Bonita e com
outro
de
sete anos vim morar em Iguape. Meu
Paranaguá para carga e descarga.
pai foi transferido pra cá para
Daqui levava bastante carga, nos
trabalhar na antiga Sorocabana no
puxávamos a esteira de piri pra fazer
dia 13 de agosto de 1951. Nessa época
forração para o navio no posto de
Iguape era muito pequena, não tinha
Paranaguá e lá ficávamos 2 dias, nos
movimento, meu pai veio só para
dia
inteiro
no
porto
RODAS DE MEMÓRIAS | 97
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
aposentar depois de algum tempo,
por ali e dai nos jogávamos os ferros
mas continuou trabalhando. Meu pai
e ficávamos e lá e dormíamos, as
viajava
vezes a noite inteira com o balanço
assim
como
seu
Felix,
também conheceu bastante dessa
do
costa.
mais
dormindo ali, muitos no porão da
iguapense, aqui eu vim, aqui eu
lancha, muitos em cima porque não
cresci, estudei um pouquinho porque
tinham cômodos. Os cômodos eram o
naquele tempo não tinha muita
convés e a cama dos tripulantes, eu
necessidade, apesar dos meus pais
pelo menos diversas vezes dei a
incentivarem. Eu me casei aqui em
minha cama para algum passageiro
Iguape, meu marido era do Rio de
dormir, ficava acordado e dava a
Janeiro, ele era oleiro, trabalhava em
cama pra alguém. Quanto à serração
olaria na época, eu também trabalhei
a gente ia por cálculo, tinha bússola,
muito em olarias, fiz tudo na vida,
mas não se enxergava nada, fazia
trabalhei em olaria, trabalhei em roça
tudo por cálculo, tudo na base do
ai casei e fui morar no Rio Pequeno,
cálculo, fazia com tempo bom daqui
não tem aquela ponte pequenina lá,
até tal lugar tantos minutos, a gente
então de lá eu vim em engenho,
marcava
cheguei
Eu
me
aqui
considero
no
comecinho
mar,
a
muitos
direção.
passageiros
Saíamos
da
estrada e agora já tenho raiz e num saio mais”. (Antonia) Dificuldades no mar “Tem trechos entre o Paraná e São Paulo que, quando viajávamos para Paranaguá, dependendo do tempo
Aparício e Antonia
não podíamos atravessar na baía, a baía com duas horas de extensão, quebra mar pra cá, quebra mar pra lá, lugar baixo que não pode passar, tem que passar só pelo canal mesmo. Então a gente já sabia daquele local ali , quando o mar estava muito bravo a gente parava em algum rio 98 | ÁGUAS DE IGUAPE
Felix e João
de
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
Cananéia até o Mar Pequeno, isso
tocava. Era muito bonito e eu me
dava uns 15 minutos, por exemplo,
sentia feliz porque sabia que tinha
daí mais 25 minutos até a Barra de
alguma coisa minha ali também. Eu
Cananéia, de Cananéia uma hora e
conto para os meus netos e eles falam
quarenta e cinco minutos até Ilha, de
‘conta mais’, mas a gente não lembra,
lá tantas horas. A gente ia fazendo
mas mesmo assim vai contando e é
cálculos. Para Paranaguá eu ia por
muito bom, eu acho que temos que
dentro do canal, pegava na Ilha do
passar para eles o que a gente viveu,
Cardoso,
o que a gente conheceu, o que foi a
Ilha
do
Cardoso
pra
esquerda, nos entravamos no barco
infância
da
gente
pra
eles
em Ararapira, entravamos pra direita
entenderam um pouco, mas pra mim
até o Canal... Ai seguíamos pra
foi muito bom”. (Antonia)
passar pra Paranaguá. Era difícil, mas vencíamos. Eu me lembro de
Iguape nos anos 1940
uma
de
“A locomoção do povo do sitio e das
passageiro, tem até fotografia em
mercadorias se dava por navegação,
livro, um rapaz que caiu na água com
não tinha estradas como hoje em dia
duas senhoras dentro da canoa, ele
tem, aqui no nosso município era só
caiu na água e foi segurando na
canoa e embarcação, hoje nem canoa
borda até a polpa, dai nos com a um
não tem mais, hoje só tem ônibus,
bambu comprido demos para ele, ele
tudo mundo vai de ônibus. Pra vir de
segurou e nos puxamos até encostar
onde eu morava tinha que ser de
no barco pra subir em uma escadinha
manhã, dormia aqui e só voltava no
pra dentro da embarcação. Comigo
outro dia. Hoje ele vem de manhã
foi só essa vez que aconteceu de cair
comprar pão e já volta pra comer, a
gente na água, mas com os outros
facilidade como ficou. Então ficou
mestres não sei”. (João)
fácil a coisa de certo jeito, mas na
história
interessante
condição monetária da população Último vapor
não ficou, é difícil porque até o
“Tinha o vapor, o último vapor era o
pescado sumiu. Antigamente era
Bento Martins, então ele ia para
cheio de peixe ali, hoje não tem, eles
Registro na festa de agosto e trazia a
tem que ir busca em Cananéia
imagem, a gente esperava no porto
porque não tem peixe aqui”. (Felix)
todo embandeirado na festa, a banda RODAS DE MEMÓRIAS | 99
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
Navegação no Ribeira “Começando
na
zona
rural,
no
Pesca
Peroupava do tempo das bananeiras,
“Fiquei em Sorocabinha até 20 anos,
lá entravam dois barcos por semana
ai depois eu sai e fui trabalhar de
e levavam bananas do Peroupava pra
cobrador de ônibus na 9 de julho.
Santos, pra Argentina. Mais de trinta
Mas foi pouco tempo, depois voltei a
barcos que puxavam banana, naquele
pescar a manjuba no Sorocabinha. O
tempo a barragem era aberta e não
meu tio fez um cerco, ele tirava o
enchia Iguape. Para mim não sei,
peixe com essa rede de manjuba.
posso estar enganado, mas vai ser
Uma vez ele tirou meio alqueire com
um desastre para o município de
aquela rede de manjuba de dentro do
Iguape essa comporta na barragem,
cerco. Veio na cidade e pegou uma
pra mim vai ser um desastre porque
rede de manjuba pequena, com trinta
eu conheço o município de Iguape.
braças de cumprimento e começamos
Daqui de Iguape nos conhecemos até
a trabalhar. Meu Deus! Aquilo era
Eldorado Paulista pelo rio. Todas
tanta manjuba que nós limpamos a
navegações
que
levavam
área, era manjuba para fim de
embarcações
carregada
de
mundo. Minha vida foi só pesca e
mercadoria até Eldorado”. (Felix)
pesca, mas naquela época tinha muito peixe e era muito fundo o rio.
Jipovura
Eu brincava com meus primos de
Quando a colônia japonesa veio aqui
fincar uns bambus no meio do rio e
para o Brasil, para São Paulo, eles
esses bambus tinham tamanho de
escolheram Registro, eles foram se
um poste. Ai, nós íamos para o meio
distribuindo para as colônias de
do canal e sobravam dois metros. A
japoneses. Alguns japoneses que
gente fincava o que dava para fincar e
escolheram o Jipovura pra se colocar
saia. Quando olhávamos para trás,
fizeram uma vila ali, lá já foi um
víamos aqueles bambus pulando,
lugar de farmácia, teve correio, tinha
porque o ar jogava para cima. Essa
loja que aqui em Iguape não tinha. O
era a brincadeira nossa e minha vida
que tinha lá no Jipovura não tinha
foi assim [...] depois eu vim morar
aqui, tinha engenho de beneficiar
em Iguape. Me casei em 1964 e, em
arroz,
1967, vim morar para cá. Minha
iluminação
na
vila
de
Jipovura, tinha um medico”. (Felix) 100 | ÁGUAS DE IGUAPE
família ficou no sítio. Depois voltei
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
para o sítio de novo em 1994, mas
robalos, porque robalo de quilo para
nessa época meus filhos já estavam
cima era robalo. Eu me lembro de
todos criados. Conheço todo esse mar
uma vez que meu pai fez um cerco lá
que
tinha
fartura!
Esses
no sítio, mas naquela época não tinha
corria
deles.
muito para quem vender, porque o
Quando terminava a manjuba, no
mercado era fraquinho e vinham
mês de março, a gente começava a
muitos vendedores de peixes, nós
pescar robalo. Era tanto robalo que
fomos no cerco e não se enxergava a
eu saia de manhã e levava uma
água, era só peixe!! Ele pegava os
marmita para comer. Já levava o
peixes especiais, que eram as tainhas
camarão e o assado e deixava do lado
de ovas, jogava nas costas e vinha
da canoa. Aí nos ficávamos em um
vender para os de colarinhos duros.
ponto único e, quando a maré
Ia de casa em casa para vender e o
começava a subir, começava a pegar
resto dividia com a vizinhança e,
robalo. Quando olhava o canal estava
também, tinha outra coisa, ninguém
alastrado de robalo. Mandava robalo
tinha geladeira, era tudo salgado o
para São Paulo, dez, doze quilos de
peixe, então eles colocavam em cima
robalões,
tanta a
gente
RODAS DE MEMÓRIAS | 101
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
do fogo e comia o peixe seco.
pontas e torcia um no outro. Você
Acabava aquele tanto e fazia a
pegava na perna e fazia assim, ele
mesma coisa, durante a vida inteira
ficava torcidinho como se tivesse
era assim. Uma coisa linda do
comprado na loja”. (Felix)
mundo, a gente era feliz e não sabia, você achava ruim, mas tinha tudo,
Canoa a Vela
você plantava mandioca, plantava
“Eu fui a ultima pessoa a pescar com
batata, plantava tudo e dava em
aquela canoa a vela, nos usávamos a
grande abundância, a gente até vinha
vela, não era só eu não, todo o povo
vender na cidade. Laranja, mexerica,
da Ribeira tinha a vela. Vinha para a
o pé ficava que ficava forrado no
cidade, por exemplo, se era vento sul,
chão, trazia a granel e jogava na
vinha de lá. Ou se vinha a remo, a
canoa para vender aquela cuia. Não
vela vinha na canoa. Agora mesmo, a
se vendia por peso e nem por dúzia,
pouco tempo aqui no Rocio, eu
você enchia aquela cuia e dava para
andava a vela. Eu ia lá para o Icapara
ele levar e era o que, um real, dois
pescar com rede grossa. Quando
mil réis. Era assim, tinha tudo em
chegava na hora de vir embora,
fartura, o nosso mundo era assim
levantava o motor, arrumava a vela e
maravilhoso, teve muita coisa para
vinha, passava esse canal do mercado
nós”. (Aparício)
e ia embora para lá. A vela era de pano, às vezes comprava saco de
“O pessoal do sitio tem até muita
trigo que tem na padaria ou então,
curiosidade, hoje quando você quer
esse algodão que vende na loja de
fazer uma linha de pescado, você
roupa.
compra o tipo de linha que você quer.
certinho, tem o mastro, tem a verga,
Naquele
essa
tem o retranca, tem um punhado de
facilidade. Sabe do que se tirava a
nome lá que tem nela. A gente arma
linha para fazer uma corda? Da folha
ela, faz um furo no banco e, lá
do tucum4, alguns não conhecem,
embaixo, tem um lugar de segurar o
você tirava a folha do tucum, daquele
pé dele e segurar na corda guiando
linho
com o remo. E assim vai, deixa que o
e
tempo
a
não
pessoa
tinha
fazia
um
cordãozinho, depois chegava as duas Tucum é uma espécie de palmeira existente na região litorânea 4
102 | ÁGUAS DE IGUAPE
Aí,
você
tira
vento levar”. (Aparício)
a
medida
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
Fandango
fissurado nos bailes não tinha um
Eu era curioso, eu ia em um
fandango que eu não fosse. Chegava
fandango, em vez de fazer outra coisa
no sábado, eu ficava louco. Ai uma
eu
violeiro
noite que teve um baile lá na Ilha
escutando o que ele cantava, via o
Grande, longe pra caramba, não era
jeito que ele tocava, o jeito que ele
na nossa vizinhança, era em outra
afinava a viola. E assim foi indo, com
comunidade, eu falei para o papai e
12 anos eu tinha um tio que era um
ele disse: ‘lá você não vai’. Eu falei
dos melhores tocadores de viola e
para mamãe e ela disse: ‘deixa que eu
cantava muito bem. Eles iam para
dou um jeitinho para você, eu vou
casa do meu avô, ia almoçar na casa
arrumar a sua roupa e colocar em um
do meu avô e chegava a hora de
baú’. Tinha um baú para colocar
almoçar, eu pedia para ele afinar a
roupa porque na época não tinha
viola e deixar na cozinha. Então tinha
guarda-roupa. ‘Eu vou passar sua
de fazer farinha, eu sentava no cocho
roupa, você janta e vai dormir, dai
e ficava lá na viola. Eles iam dormir
quando estiver todo mundo deitado
para sala e para o quarto e eu ficava
você levanta, veste a roupa e vai, mas
sentado o cocho malhando para
no outro dia você tem que estar aqui!’
aprender. Isso com 12 anos de idade.
Aí eu fiz isso, quando eles se
Depois, com 15 anos eu já sabia tocar
aquietaram para dentro do quarto, eu
viola, só que eu não tinha autorização
dormia na sala e, quando eles se
para pegar a viola em um baile e,
aquietaram, me levantei, peguei a
naquela época, tinha que o sujeito
bicicleta e sai no mundo. No outro
que se metesse a intruso, ele levava
dia quando começou a amanhecer, o
cascudo. Podia ser quem fosse, o pai
galo começo a cantar, eu espichei de
da gente não deixava. A gente não
lá, cheguei em casa, empurrei a porta
podia se meter na roda dos mais
e coloquei a bicicleta para dentro.
velhos de jeito algum, só se fosse
Voltei para cama e deitei, nunca que
chamado. Eu fui pegava uma viola,
papai ficou sabendo!” (Aparício)
ficava em cima
do
de segunda ainda e não podia cantar de primeira. Tinha que acompanhar
O Estuário
o outro, isso com 17 anos. Com 17
“Então
anos que eu fui começar a tocar viola.
Comprida,
Eu me lembro de uma noite, eu era
Guaraqueçaba, estão em uma região
a
nossa
cidade,
Cananéia,
Ilha
Paranaguá,
RODAS DE MEMÓRIAS | 103
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
que se chama zona costeira. Quer
influenciada por algumas coisas, por
dizer, é uma porção de terra que esta
exemplo, o relevo de fundo dessas
próxima do mar, essa região sofre
planícies, os canais, o fato de o lugar
influência física, química, biológica
ser fundo e depois não ser mais e isso
da
que
vai moldando as dinâmicas das
acontecem no mar e dos fenômenos
águas, a força das águas dos rios que
que acontecem em terra. É uma
chegam. Se é um rio grande ou se é
região de transição, ela é terra e água,
um rio menor, que dependendo da
tem horas que estão inundadas
época do ano está seco, isso também
outras que está seca. Essas regiões,
influencia nessa mistura. Outra coisa
por
importante
vida,
dos
exemplo,
fenômenos
são
denominadas
é
a
dinâmica
das
estuários. Essa palavra quer dizer
correntes de maré, com elas entram,
berçário ou alguma coisa assim, que
por onde elas entram e isso também
desde o inicio já sabia a função desse
varia ao longo do dia, maré cheia,
tipo de ambiente, como um ambiente
maré seca. Então o movimento das
de criação de vida, onde muitas espécies
acabam
preferindo
se
reproduzir e isso que da de certa maneira o valor do estuário, e o que é um estuário? Estuário é como se fosse um pedaço de mar que fica cravado dentro da terra, aberto que permite a circulação de água do mar, que permite a entrada e saída da água do mar e, ao mesmo tempo, essa região que recebe água que é drenada no continente. Então vem água do rio, essa água do rio de mistura com água do mar e dá um ambiente diferenciado. Essa mistura varia ao longo do dia, ao longo do ano, dos anos, de décadas e de centenas de anos. O que influencia essa
mistura?
Essa
104 | ÁGUAS DE IGUAPE
mistura
é
Mapas da Comissão Geographica e Geológica, de 1914.
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
águas dos rios, o movimento das
diferentes espécies têm diferentes
marés, o relevo de fundo dá a
comportamentos
característica desse estuário. Tem
ambiente estuarino, hoje tem peixe
outro
é
de rio que desce e às vezes frequenta
chamado laguna. As lagunas são um
estuário. A gente tem peixe marinho
pouco mais abertas, a água doce
do oceano que passa algum tempo
desce por vários riozinhos. Então a
aqui,
gente tem aqui até ao longo de
amarela”. (Eliel)
tipo
de
ambiente
que
por
em
relação
exemplo,
a
ao
pescada
Paranaguá um misto dessas duas coisas, por isso que eles dão o nome
Construção
de sistema estuarino-lagunar, que se
Valo Grande
comporta como cada uma dessas
“Na década de sessenta alguns
coisas, ou estuário ou uma laguna.
pesquisadores, planejadores, pessoas
Essa
que trabalhavam para o Estado,
mistura
que
acontece
nos
da
estudaram
sentida
essa
impactos do Valo Grande e na década
umidade, às vezes você tem um
de setenta eles decidiram intervir
estuário
se
pensando em fazer aquele ambiente
misturam direito, é como se a água
estuarino voltar a ser como era antes
salgada fosse um pouco mais densa e
da abertura, ou seja, que a água
ela ficasse mais no fundo e a água
salgado pudesse entrar, tirar um
doce ficasse mais para cima da
pouco da água doce. Eles conheciam
coluna d'água. A gente brincava
estuário de outros lugares e sabiam
muito no vale, nadando e a gente
que esse estuário era lugar altamente
percebia
produtivo
que
isso
as
por
águas
nadando:
não
você
em
quais
eram
no
estuários e essa variação, ela é principalmente
bem
barragem
termos
os
de
mergulhava e de repente a água
biodiversidade. Na década de setenta
esfriava, você sentia isso. É o que
eles construíram essa barragem (em
chamamos de cunha salina, o fato é
1978) e então a água doce deixou de
que essa mistura de água propicia
passar e começou a fluir pelo rio e
uma condição de vida boa a uma
isso alterou tudo. Em 1983 deu para
gama de espécies marinhas e as que
sentir o drama que foi essa barragem,
vivem no rio que vão para essa região
porque apesar dela permitir a água,
buscando condições para reprodução
ela fechou a passagem do rio. E o rio
ou para sobrevivência da espécie. As
foi obrigado a caminhar por onde ele RODAS DE MEMÓRIAS | 105
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
caminhava antigamente, só que o
prova é que aquela tranqueira de
caminho dele já tinha mudado por
madeira, que não sei como vão tirar,
causa da ocupação, do assoreamento
que encostou naquela barragem, até
e porque também passava pouco rio
pra abrir a comporta vai ser difícil e
por ali e, de repente, teve que passar
pode levar o município pra breca,
bastante. O que aconteceu? Essa
porque a água vem de lá e vai ser um
água tinha dificuldade de seguir para
perigo aquilo lá, eu sou favorável que
a Barra do Ribeira, encheu e causou
essas pessoas voltassem atrás e não
muitos
fechassem essa barragem”. (Felix)
danos,
catástrofes
aos
bananeiros. Eles foram basicamente dizimados, em 1983”. (Eliel)
“Uma vez eu escutei uma conversa no bar que teve uma reunião em
“E com a barragem, tem que tragar o
Cananéia. Diziam que ia ser feito um
rio Ribeira até a Barra da Ribeira pra
processo em Iguape, ia ser feito uma
dar vazão para o rio e não inundar.
comporta, ia ser fechado ali, ia ser
Isso é uma coisa impossível que o
feito um muro de contenção nos dois
município de Iguape não tem o que
lados do Valo Grande, para então ser
tira daqui para o Governo gasta um
feita a dragagem do Ribeira, ribeira
dinheiro desse absurdo, isso não vai
abaixo e ribeira acima, o valo grande
acontecer!
o
e o mar pequeno. Daí eu falei que
Governo vai gastar uma fábula de
quero viver para ver, porque isso não
dinheiro na barragem do rio Ribeira
vai acontecer. Porque tem uma
e não vai resolver. Para mim eles
musica de Milionário e Jose Rico que
estão falando uma coisa que não
canta assim: ‘Em cima da terra, no
pensaram bem, houve um estudo,
fundo mar existe um tesouro para a
mas não houve um estudo com quem
gente desfrutar” e o político faz isso
conhece o município, a situação do
aqui embaixo da terra e no fundo do
município e do rio, eu não sei, mas
mar, não se gasta dinheiro porque
para mim vai ser o maior atraso
ninguém vai enxergar”. (Aparício)
No
meu
entender
deixar fazer essa barragem aqui,
106 | ÁGUAS DE IGUAPE
Foto: Helena Rios, arquivo Iphan/SP CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
Práticas
PRATICAS EM EDUCAÇÃO PATRIMONIAL | 107
em Educação Patrimonial
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
TRABALHO COM TEXTOS Proposta Trabalhar com os trechos da obra de Albert Camus: o livro “Diário de viagem” e o conto “A Pedra que Cresce”, do livro “O Exílio e o Reino”. Objetivo A atividade busca, partindo da leitura e interpretação do texto, se apropriar desta importante fonte de literatura estrangeira, que tem em
Iguape
trabalhando
sua
inspiração,
articuladamente
os
conteúdos de História, Geografia, Literatura, Biologia, Matemática e, portanto, temáticas da cidade, sua história, natureza e cultura, temas afetos ao patrimônio cultural. Atividade. a) Preparação inicial. Para iniciar os alunos na leitura, é importante
antes
situá-los
em
relação ao autor, quem ele é, sua importância na literatura, quando escreveu o texto e as suas razões: porque vem a Iguape, o que ele procurava aqui?
108 | TRABALHO COM TEXTOS
Justificativa: a escolha do texto Em agosto de 1949, o importante escritor francês August Camus, prêmio Nobel de Literatura de 1957, encontrava-se em viagem pelo Brasil e resolveu ir a Iguape para acompanhar a Festa do Bom Jesus. Camus foi autor do famoso livro “A Peste”, considerado sua obra prima. Nasceu em 1906, na Argélia sob o domínio francês, militou no Partido Comunista, que depois deixou, mudando-se para Paris aos 27 anos de idade. Realizou uma série de viagens, em 1946 foi aos Estados Unidos e, em 1949, à América do Sul, incluindo o Brasil. Do registro destas andanças nasceu o livro “Diário de Viagem”, onde o autor vai abordar suas impressões sobre os aspectos da vida brasileira. Retiramos alguns trechos deste livro, em particular os que retratam a viagem de São Paulo para Iguape, na qual ele foi acompanhado pelo escritor modernista Oswald de Andrade e de seu filho. Desta viagem resultou também, em 1957, o último conto do livro “O exílio e o reino”. Esse conto denominado “A Pedra que Cresce” fala da viagem a Iguape com inúmeros detalhes, complementando as impressões que teve sobre o contato com o ambiente tropical e as pessoas do lugar. Apesar de escrever sobre Iguape e sobre o Brasil, tais textos de Camus ainda são pouco conhecidos por nós. Vale a pena conhecêlos melhor. Destacamos alguns trechos que ilustram a viagem até a cidade, as condições da estrada e da paisagem que ele acompanhava, suas impressões dos moradores e, por fim de um lugar que lhe chamou a atenção especial: a Fonte do Senhor, que virou o tema do conto “A Pedra que Cresce”.
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
b) Exploração do texto. A leitura atenta com os alunos pode ser feita em uma Roda de Conversa, ambiente que ajuda a explorar coletivamente as impressões. Pode-se criar uma atmosfera que lembra a viagem: sons da floresta, águas do rio e mar, cheiro de maresia. Explore cada passagem do texto: como foi a viagem? Como ele descreve o percurso? O que ele viu que lhe chamou atenção? Como ele descreve a paisagem? E as pessoas? E a cidade, as construções? O que fala da cultura local? c) Atividades investigativas.
A pesquisa histórica sobre o contexto em que se dá a viagem é um passo importante para que os alunos compreendam os detalhes. Do contrário, eles não vão entender porque o autor vai para Iguape pela estrada que passa por Piedade ou porque as estradas não são asfaltadas como hoje. O que estava acontecendo no Brasil naquele momento, na história de Iguape e de São Paulo? Camus é acompanhado na viagem de Oswald de Andrade, importante escritor modernista. Seria recomendável uma pesquisar mais detalhada sobre quem foi Camus para entender suas relações com escritores modernistas brasileiros.
Proponha aos alunos, com apoio de um mapa oficial, desenhar o percurso da viagem e ilustrar com as características que ele descreve sobre as cidades pelas quais ele passa, as referências da paisagem, trabalhando articuladamente, assim, conteúdos de Geografia, de História, de Ciências.
Os alunos podem remontar o percurso da viagem: quantos quilômetros percorridos, quanto tempo de viagem em cada ponto. Podem comparar com as distâncias e tempos de viagem que se leva hoje, de ônibus ou de carro, trabalhando, também, os conteúdos de matemática.
Acompanhe agora os trechos de Diário de Viagem:
PRATICAS EM EDUCAÇÃO PATRIMONIAL | 109
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
SAÍDA DE SÃO PAULO “5 de agosto, 6 de agosto, 7 de agosto (A viagem de Iguape) [...] Partimos para as festas religiosas de Iguape, mas às dez horas, em vez das sete, como previsto. Na verdade, devemos passar o dia todo percorrendo o interior, nas estradas esburacadas do Brasil, e é melhor chegar antes da noite. [...] A estrada, de terra ou de pedra, está sempre coberta por uma poeira vermelha, que recobre toda a vegetação, até um quilômetro de cada lado da estrada, de uma camada de lama seca.” (p.99)
“Às treze horas, chegamos a Piedade, uma cidadezinha sem graça, onde somos acolhidos calorosamente pela dona da pensão, Dona Anésia, a quem Andrade deve ter feito a corte em outros tempos. Servidos por uma índia mestiça, Maria, que ao final, irá oferecer-me flores artificiais. Refeição brasileira, que não caba mais e que passa graças à pinga, nome da cachaça aqui.” (p.100)
DESCIDA DA SERRA: “Na verdade, só começamos a descer novamente a serra no fim do dia. Tenho tempo de ver os primeiros quilômetros de floresta virgem, a espessura desse mar vegetal; de imaginar a solidão no meio deste mundo inexplorado, e a noite cai enquanto nos embrenhamos pela floresta. Andamos durante horas e sacolejamos por uma estrada estreita, entre paredes altas de árvores, em meio a um cheiro úmido e adocicado. Na densidão da floresta correm de vez em quando pirilampos, moscas luminosas, e pássaros de olhos vermelhos vêm bater um segundo no párabrisa. A não ser isso, a imobilidade e o mutismo deste mundo apavorante são absolutos, se bem que Andrade às vezes julgue ouvir uma onça. A estrada volteia e torna a voltear, passa por pontes de tábuas soltas que atravessam riachos. Depois, vem a bruma e uma chuva fina que dissolve a luz dos nossos faróis.[...] São quase sete horas da noite, estamos nisso desde as dez da manhã, e o cansaço é tamanho[...]” (p.101/102)
110 | TRABALHO COM TEXTOS
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
TRAVESSIA DO RIO RIBEIRA DE IGUAPE “[...] um grande rio nos obriga a parar. Sinais luminosos na outra margem, e vemos chegar uma grande barcaça, do mais antigo sistema possível, movida por meio de um cabo estendido entre as duas margens do rio e conduzida por mulatos de chapéu de palha. Embarcamos, e a barcaça deriva lentamente sobre o rio Ribeira. O rio é largo e corre suavemente em direção ao mar e à noite. Nas duas margens, uma floresta ainda densa. No céu úmido, estrelas brumosas. Calam-se todos a bordo.” (p.102) “Desembarque. Depois continuamos a nos arrastar em direção a Registro, verdadeira capital japonesa no meio do Brasil, onde tive tempo de ver casas de decoração frágil e até mesmo um quimono.” (p.102)
EM IGUAPE: “A própria estrada agora é de areia – ainda mais difícil e perigosa do que antes. Finalmente, chegamos a Iguape, meio-dia. Descontando as paradas, levamos dez horas para fazer os trezentos quilômetros que nos separam de São Paulo. Tudo está fechado no hotel. Uma autoridade encontrada na noite nos leva à casa do maire (o prefeito, como o chamam aqui). O prefeito nos avisa, pela porte, que vamos dormir no Hospital.” (p.103)
HOSPITAL FELIZ LEMBRANÇA “No hospital ‘Boa Memória’ (é este o nome), somos conduzidos pela amável autoridade em direção a um pavilhão desativado que cheira pintura fresca, a uns cem passos. Dizem-me que, na verdade, foi repintado em nossa homenagem. Mas não há luz, já que a usina da região para as onze horas. Ao brilho dos isqueiros, enxergamos, contudo, seis camas limpas e rústicas. É o nosso dormitório.” (p.103)
PRATICAS EM EDUCAÇÃO PATRIMONIAL | 111
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
NA FONTE DO SENHOR (6 de agosto) “No pequeno jardim da Fonte, misterioso e suave, com os cachos de flores de bananeiras, reencontro um pouco de isolamento e tranqüilidade. Mestiços, mulatos e os primeiros gaúchos que vejo, diante da entrada de uma gruta, esperam pacientemente conseguir pedaços da Pedra que cresce. Iguape, na verdade, é a cidade do Bom Jesus, cuja imagem foi encontrada sobre as ondas pelos pescadores que a lavaram nesta gruta. Desde então, cresce ali incansavelmente uma pedra, que é cortada em lascas, muito benéfica.” (p.105)
A CIDADE “A própria cidade, entre a floresta e o rio, comprime-se à volta da grande igreja do Bom Jesus. Algumas centenas de casas, mas de estilo único, baixas, caiadas, multicoloridas. Sob a chuva fina que encharca as ruas mal pavimentadas, com a multidão matizada que a preenche, gaúchos, japoneses, índios, mestiços, autoridades elegantes, Iguape tem ares de estampa colonial.” (p.105)
A PROCISSÃO “A multidão cresce. Alguns dos romeiros estão na estrada há cinco dias, nos caminhos esburacados do interior. Um deles, que tem um ar de assírio, ornado de uma bela barba negra, conta-nos que foi salvo de um naufrágio pelo Bom Jesus, após uma noite e um dia passados em ondas furiosas, e que fez a promessa de carregar na cabeça uma pedra de sessenta quilos durante a procissão. Mas a hora se aproxima. Da igreja saem os penitentes negros, depois brancos, com roupas clericais, depois as crianças vestidas de anjos; em seguida, o que poderia ser os filhos de Maria e, ainda, a imagem do próprio Bom Jesus, atrás da qual adianta-se o homem da barba, de dorso nu, carregando uma enorme laje na cabeça.[...] As idades, as raças, a cor das roupas, as classes, as doenças, tudo fica misturado numa massa oscilante e colorida, estrelada às vezes pelos círios, acima dos quais explodem incansavelmente os fogos, passando também, vez por outra, um avião, insólido neste mundo intemporal.” (p.106)
112 | TRABALHO COM TEXTOS
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
A VALORIZAÇÃO DOS CONHECIMENTOS TRADICIONAIS. Proposta Para abordar a temática dos conhecimentos tradicionais e do patrimônio
imaterial
pode-se
trabalhar com diversos suportes, entre eles, textos, músicas ou entrevistas.
Sugerimos
uma
pesquisa no acervo da Biblioteca da Casa do Patrimônio do Vale do Ribeira,
onde
os
educadores
poderão
encontrar
uma
diversidade
de
para
material
embasar as atividades. Citaremos 2 exemplos de materiais que podem ser utilizados: o livro “Contos,
Causos
e
Fatos
da
Comunidade do Mandira” e o folheto
“Museu
Vivo
do
Fandango”. Objetivo Compreender
os
fundamentais
que
elementos
Justificativa Conhecimentos tradicionais são produzidos e geridos de forma coletiva, com base na troca e difusão de ideias e informações, ao longo do tempo, de geração a geração. São produzidos no lugar em que se vive, pois as culturas se realizam no marco de suas territorialidades (ORTIZ, 2003). Na sociedade contemporânea em que a cultura se mundializou e, com isso, generalizaram-se as referências, os gostos, os valores e os modos de viver, contraditoriamente, isso não significou que devem desparecer as manifestações culturais singulares, geradas localmente. Elas convivem e se alimentam destes processos. São cada vez mais essenciais para que as pessoas se reconheçam nos lugares em que vivem. Cultivar e garantir a reprodução destes conhecimentos tradicionais e dessa cultura é fundamental para garantir o princípio constitucional de defesa da DIVERSIDADE CULTURAL. O patrimônio cultural brasileiro é, segundo a Constituição Federal, formado pela pluralidade de expressões, dos diferentes grupos sociais e o Vale do Ribeira contribui para a formação desta diversidade. Cabe aos seus moradores, em primeiro lugar, se reconhecerem como portadores desta herança, a ser preservada e perpetuada.
definem
algumas das comunidades tradicionais do Vale do Ribeira: os caiçaras e quilombolas. As atividades permitem trabalhar articuladamente conteúdos de várias disciplinas.
PRATICAS EM EDUCAÇÃO PATRIMONIAL | 113
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
Atividades Para saber mais...
Os alunos, divididos em grupo, escolhem
O Decreto Federal 6.040/2007 instituiu a Política Nacional para os Povos e Comunidades Tradicionais. O artigo 3o define Povos e Comunidades Tradicionais como “grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição.
o tipo de material que querem trabalhar. A
exploração
dos
materiais
deve
identificar: os temas que aparecem nos causos e contos; o que é Dança de São Gonçalo ou a Lenda da Mãe de Ouro; de que forma a realidade do lugar é retratada; quais os elementos da cultura tradicional estão presentes ali; como são estas
expressões
culturais;
sua
diversidade ao longo do litoral. Caiçaras ou quilombolas? Será preciso pesquisar o
Para saber Fandango...
mais
sobre
o
O Fandango está em processo de REGISTRO no Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). O REGISTRO é o instrumento de proteção do patrimônio imaterial e foi estabelecido pelo Decreto Federal 3.355 de 2003. Ele é um instrumento equivalente ao tombamento do patrimônio material. Informações: www.iphan.gov.br.
que significa cada um destes termos e como a legislação (Decreto 6.040/2007) define
o
tradicional.
que
é
Usando
uma a
comunidade definição
do
Decreto, pode-se perguntar: quais os recursos naturais que são utilizados pelos caiçaras ou quilombolas? O que é recurso natural? Outras questões são pertinentes para o estudo. Como os caiçaras e quilombolas
se relacionam com a natureza? Quais são as práticas agrícolas tradicionais? O que é a coivara? A pesquisa pode ser completada com outras atividades tais como: entrevistas com moradores para coletar os causos e contos de Iguape; exploração dos textos das Rodas de Memória; pesquisa em outros materiais da biblioteca da Casa do Patrimônio, como por exemplo, a Agenda Socioambiental das Comunidades Quilombolas do Vale do Ribeira (ISA, 2008), Enciclopédia Caiçara (DIEGUES, 2004). 114 | A VALORIZAÇÃO DOS CONHECIMENTOS TRADICIONAIS
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
A socialização das conclusões dos grupos pode vir acompanhada da apresentação dos causos e contos em forma de teatro, ou da representação em forma de histórias de quadrinhos ou cartazes. O mais importante é que os alunos entendam que, ao estudar a fundo estas culturas na escola, estão contribuindo para a sua valorização e proteção.
PRATICAS EM EDUCAÇÃO PATRIMONIAL | 115
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
EXPLORAR E CONHECER O PATRIMÔNIO EDIFICADO
Proposta
Justificativa
Para trabalhar com o patrimônio
Estudar o patrimônio edificado de Iguape é
edificado, nada melhor do que
compreender um pouco da história de
usar como recurso pedagógico a
nosso estado e do Brasil. Como nos diz o
caminhada com os alunos para estimular
percepção
observação
e
sensorial,
registro
das
construções e do urbanismo do Centro Histórico.
construção
conhecimento a
aurífera no século XVI, das atividades
todo Brasil para a festa do padroeiro, inaugurada em 1858, é ponto focal no
um
tecido construído. Sobressaem também o
parte
dos
Sobrado do Toledo, relevante exemplar
realizado
com
neoclássico e as casas da Rua das Neves, ou
por
ser
Iguape, que atrai milhares de romeiros de
de
do chamado Funil, o mais antigo conjunto
autonomia.
arquitetônico
O foco principal é aguçar a curiosidade
remontam ao período da exploração
no século XIX. A Igreja do Bom Jesus de
fomentar o exercício de pesquisa
alunos,
casas e sobrados de pedra e cal que
meados do XVIII e da cultura de arroz
A atividade tem como finalidade a
“[...] Iguape é composta por importantes
ligadas à construção naval a partir de
Objetivo
para
Dossiê de Tombamento do IPHAN:
dos
alunos
e
a
formulação de questões, que serão
da
cidade.
aspectos
urbanos,
diversas
características
urbanismo
Quanto
pode-se
português,
aos
observar
formais tais
do
como:
localização e escolha do sítio e sua relação
respondidas com a realização das
com o território, elementos estruturantes
pesquisas. O fundamental é que o
do traçado urbano, as estruturas de
professor
quarteirão
saiba
que
ele
não
precisa dar conta de todos os
e
loteamento
e
o
papel
importante das praças urbanas.
detalhes desta arquitetura e do urbanismo, mas estimular os alunos a elaborarem as questões, buscando as respostas na pesquisa.
116 | EXPLORAR E CONHECER O PATRIMÔNIO EDIFICADO
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
Atividades
Mapa de apoio para a caminhada. Fonte: Dossiê de Tombamento do Centro Histórico de Iguape. Iphan/SP.
Sugere-se como percurso inicial as ruas XV de Novembro e Tiradentes, passando pela Praça da Basílica e pelas Igrejas do Rosário e de São Benedito. Nesta caminhada pode-se pedir aos alunos que escolham construções que eles considerem importantes para a cidade. A cada escolha, os alunos são estimulados a observar as cores e texturas, os detalhes construtivos (nas janelas, nas portas, no telhado), os materiais, as formas. É de madeira, tijolo ou de pedra? Casa térrea ou sobrado? Grande ou pequena? Antiga ou nova? Pedir que eles desenhem as construções também ajuda a explorar os seus detalhes. Na leitura da “Roda de Memória: Histórias de Pedra e Cal” os alunos irão encontrar elementos para alimentar a pesquisa. No retorno à sala de aula os alunos comparam as diferentes observações. Como o objetivo do professor não é responder às questões, mas ao contrário, provocá-las e, sendo assim, estimular a pesquisa, sugere-se a consulta ao folheto do Tombamento do Centro Histórico. É possível encontrar no folheto os detalhes e PRATICAS EM EDUCAÇÃO PATRIMONIAL | 117
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
informações sobre alguns destes patrimônios tombados. Quem morou lá ou quem construiu? Porque as construções são diferentes, algumas com uma única porta e janela, enquanto outras têm dois andares, várias portas e janelas com sacadas? Para trabalhar as questões relativas ao urbanismo de Iguape pode-se observar nos percursos destas caminhadas o diferente formato das ruas na Praça da Basílica, a forma dos quarteirões, as praças. Com auxílio de um mapa, fica mais clara ainda esta diferença entre as ruas e a existência das praças.
118 | EXPLORAR E CONHECER O PATRIMÔNIO EDIFICADO
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
LINHA DO TEMPO: MEMÓRIA E HISTÓRIA OFICIAL
Justificativa
Proposta Elaborar uma Linha do Tempo cruzando as histórias de vida dos alunos e de suas famílias com as transformações
ocorridas
na
cidade. A inspiração partiu de uma atividade proposta em uma Oficina realizada pelo Museu da Pessoa. Objetivo Trabalhar com conceitos como o de memória individual e coletiva e sua relação com a formação de uma história oficial da cidade e do
Para Martins (1992), na história local e cotidiana é que estão as circunstâncias da História. Ela é constituída de fragmentos, nos quais não estão os grandes heróis, mas os protagonistas da vida cotidiana, das relações miúdas do trabalhar e do viver. Para escrevê-la recorre-se à memória de muitos. Acontecimentos que, por vezes parecem pessoais, são na verdade compartilhados por muitos, pois não estamos sozinhos. A articulação entre a memória individual e a coletiva se impõe para a escrita dessa história cotidiana. Como compreender a riqueza do patrimônio tombado sem levar em consideração as histórias de vida, os trabalhadores anônimos que construíram essa riqueza, as relações sociais que as sustentaram? Esta atividade procura colocar o foco da história nestes protagonistas do cotidiano de Iguape.
país. Atividade Preparação: corte retângulos de cartolina de duas cores diferentes e de tamanho aproximado de 15 x 7 cm. Uma cor irá representar os acontecimentos da vida do aluno e outra cor os fatos da vida da cidade. Monte na parede duas linhas do tempo: na parte superior uma linha que será a da cidade e na parte inferior a linha da vida cotidiana. As datas podem ser divididas por década ou por ano, conforme a faixa etária dos alunos. Distribuem-se inicialmente os cartões da cor que representa a história de vida. Solicita-se que cada aluno escreva com poucas palavras algum fato que foi importante para a sua vida e o ano em que ocorreu. Em seguida, ao terminar esta PRATICAS EM EDUCAÇÃO PATRIMONIAL | 119
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
etapa, distribui-se o outro cartão, A memória coletiva “Nossas lembranças permanecem coletivas e nos são lembradas por outros, ainda que se
com a cor que representa a história da cidade. Solicita-se que os alunos escrevam
algo
que
marcou
a
trate de eventos em que somente nós
história da cidade,
estivemos envolvidos e objetos que somente
palavras e a data do acontecimento.
nós vimos. Isto acontece porque jamais
Terminada esta fase inicia-se a
estamos sós”. (HALBAWACHS, 2006, p.30)
montagem da linha do tempo da vida
cotidiana.
em poucas
Chama-se
cada
aluno para situar e colar o seu cartão na linha e explicar o fato brevemente. Depois que todos colaram suas histórias, inicia-se a montagem da linha do tempo da cidade, da mesma forma, pedindo a cada aluno que situe no tempo e explique o acontecimento. Percebe-se ao longo das falas, como as histórias se cruzam, a de cada um com a da cidade. Acontecimentos podem se repetir ou se articular, um explicando o outro. O professor observa as falas e os cartões mostrando as sequencias, as articulações, as convergências, os encontros e desencontros. Explorando os conceitos de que cada evento individual tem também sua dimensão compartilhada. Pode-se enriquecer as informações e discussão da Linha do Tempo paralelamente a partir dos registros de fala dos moradores contida nas diferentes Rodas de Memória. Como textos de apoio são sugeridos os seguintes livros: “A Memória Coletiva” de Maurice Halbwachs e “O tempo vivo da memória” de Eclea Bosi, ambos disponíveis na biblioteca da Casa do Patrimônio.
120 | LINHA DO TEMPO: MEMÓRIA E HISTÓRIA OFICIAL
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
Sobre os autores Carina Mendes dos Santos Melo Arquiteta graduada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, Mestre em Arquitetura, na área de História e Preservação do Patrimônio Cultural, também pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Foi arquiteta da Superintendência do IPHAN/SP, atualmente presta serviço à Superintendência do IPHAN/RJ.
Flávia Brito do Nascimento Historiadora
pela
Universidade
Federal
Fluminense
e
Arquiteta
pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro, possui Mestrado e Doutorado em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de São Paulo. Atualmente é arquiteta da Superintendência do IPHAN/SP.
Simone Scifoni Geógrafa pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, Mestre e Doutora em Geografia também pela Universidade
de
São
Geografia/FFLCH/USP,
Paulo.
coordenadora
Professora do
Projeto
do
Departamento
Memórias
Urbanas
de –
Iguape/SP. Foi técnica do IPHAN/SP.
SOBRE OS AUTORES | 121
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
Referencias Bibliográficas
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122 | REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Foto da contracapa: Flรกvia Brito do Nascimento
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124 Prefeitura Municipal de Iguape