NOSSO JARDIM - SOPHIA MENDES

Page 1

Nosso Jardim Sophia Mendes Sophia Mendes

5


6


O livro O livro que que você você acabou acabou de deadquirir adquiriracompanha acompanha a tecnologia a tecnologia NFC, NFC, queque permite permiteque que você você tenha tenha acesso ao acesso ao conteúdo conteúdo interativo interativocom com o seu o seu celular. celular. Verifique se Verifique se seu seu smartphone smartphone possui possui aa função função NFC NFC e ative-a. e ative-a. As páginas As páginas seguintes seguintes possuem possuem as as tags tags NFC NFC em em seus seus respectivos centros: respectivos centros: A A esquerda esquerda contém contém aa tag tag para audiodescrição para audiodescrição do dolivro, livro, aa direita direitao olink link para oo PDF para PDF online; online; Posicione seu Posicione seu celular celular sobre sobre oo centro centro da da página página para acessar para acessar oo site site automaticamente; automaticamente; Não éé necessário Não necessário manter manter oo celular celular sobre sobrea atag tag durante aa leitura. durante leitura.

7


Audiodescrição Audiodescrição

8


Livro online Livro online

9


10


Sumário SUMÁRIO Apresentação #13 Apresentação 13 São Paulo São Paulo Flores Flores

#23 23 #37 37

Árvores Árvores Nascente Nascente

#57 57 #69 69

Lagos Lagos

#81 81

11 #11


12


apresentação APRESENTAÇÃO

13


14


Fico feliz Fico felizem em estarmos, estarmos, eu eu ee você, você, unidos unidos por meu meu livro. livro. Meu Meu nome nome éé Sophia Sophia Mendes, Mendes, por e éé um um enorme enormeprazer prazer conhecer! Estou e te te conhecer! Estou também grata gratapor porvocê você ter escolhido também ter escolhido meumeu livro, dentre tantos, para levar para para casa. casa. livro, dentre tantos, para levar Um belo eu estava estava em em casa casa Um belo dia, dia, quando quando eu refletindo sobre sobre minha minha nova nova condição condição refletindo (passei por perda gradual gradual (passei por um um processo processo de de perda da minha minha visão), visão), ee sobre maior paixão paixão da sobre minha minha maior quando adolescente adolescente -- Os Os livros livros -- minha minha quando frustração em em não não ter teracesso acessoa atodo todo tipo frustração tipo de conteúdo conteúdo literário, literário, mais mais especificamente, especificamente, de impresso, tornou-se visível. Foi impresso, tornou-se visível. Foiassim assimque que

15 #15


meu avô avô teve tevea abrilhante brilhanteideia ideiadede enxergar meu eueu enxergar o livro livro com com os os meus meussentidos, sentidos, da damesma mesmamaneira maneira o que eu eu aprendi aprendi aafazer fazernonomeu meu cotidiano.Esse Esse que cotidiano. projeto surgiu surgiu da da ideia ideia de de tornar tornara aliteratura literatura projeto inclusiva mais no cotidiano cotidiano de de pessoas pessoas inclusiva mais presente presente no com todos todos os os tipos tipos de dedeficiência deficiência visual. visual. com Como meu avô me meensinou, ensinou, oohábito hábitodede leitura Como meu avô leitura é aa única única coisa coisa que que fazemos fazemos que quenos nospermite permite é sermos completamente completamentelivres, livres, ee eu eunão nãogostaria gostaria sermos de ser ser aa pessoa pessoa que que negaria negariaessa essa bela belaliberdade liberdade de à alguém. alguém. à Quero que você saiba saiba que que esse esse livro livro éé especial. especial. Quero que você O Nosso é é umumlivro O NossoJardim Jardim livromultissensorial. multissensorial.

16 #16


Mas oo que dizer? Quer Quer dizer que no no Mas que isso isso quer quer dizer? dizer que decorrer da da leitura leitura você vocêpode podeexplorar explorar texturas, decorrer texturas, aromas ee interatividade interatividade por pormeio meiododo audiobook, aromas audiobook, permitindo que que tanto tantovidentes videntesquanto quanto cegos permitindo cegos tenham acesso acesso às às principais principais informações informações contidas contidas tenham no livro, livro, mas principalmente, às às imagens. imagens. no mas principalmente, Você tem acesso às às imagens imagens por por meio meiode: de: Você tem acesso 1 -- Texturas Texturas e aromas; 2 2 -- Audiodescrição. Audiodescrição. 1 e aromas; Assim como das imagens, imagens, todo Assim como aa audiodescrição audiodescrição das todo o conteúdo conteúdo do dolivro livrotambém também está disponível o está disponível neste formato formato (além (além da da letra letra ampliada, ampliada, Braille Braille neste e versão versão online). online). e

17 #17


Agradeço ao avô ee à àEditora Editora Tateria, Tateria, Agradeço ao meu meu avô meus queridos, queridos, por por terem teremacreditado acreditadoemem mim. meus mim. Sem vocês não seria seria nada. nada. Muito Muito brigada! Sem vocês eu eu não brigada! Também agradecemos grandementeaoaoRicardo Ricardo Também agradecemos grandemente e Simone, Simone, que e se se fizeram fizeram e que se se dispuseram dispuseram e presentes em em todos todos os osperíodos períodosdede teste presentes teste do livro. livro. Assim e Tadeu C., C., do Assimcomo, como, Raul RaulB. B. e Tadeu pela orientação, orientação, conselhos conselhos e suporte no no pela e suporte projeto! Sem seria projeto! Sem vocês vocês esse esse livro livro não não seria realmente acessível acessível ao ao público. público. Obrigada! Obrigada! realmente E para E para você, você, caro caro leitor, leitor, meu meu agradecimento! agradecimento! E bem-vindo à minha minha vida! vida! E bem-vindo à

18 #18


Na loucura da cidade me encontro, e apesar de tudo estar turvo por esses dias, a luz do presente que ele me deixou me guia para o nosso Jardim... E hĂĄ gratidĂŁo nisso.

19


#20 20


#21 21


22


são SÃO paulo PAULO São Paulo

#24 23


24


Quinta-feira. Nove Quinta-feira. Novehoras horasdadamanhã. manhã. Ele já na cidade cidade Ele já não não está está mais mais aqui, aqui, mas mas tudo tudo na me faz faz lembrar lembrardele. dele. As As sorveterias, sorveterias, livrarias me livrarias e cafés... cafés... lembranças e lembrançasa a cada cada esquina. esquina.Entretanto, Entretanto, as tardes de primavera primaveraainda aindatêm têmseu seu encanto, as tardes de encanto, quando nossas nossas aventuras aventuras aa explorar explorara acidade cidade quando invadem minha minha mente. mente.Ele Ele me me segurava segurava pela pela invadem mão ee me meguiava guiavapelo pelomundo, mundo, mostrando o que mão mostrando o que há de de mais mais incrível incrível na na cidade, cidade, mesmo mesmoemem meio há meio a suas suas imperfeições. imperfeições. a A manhã quente. Mal Mal percebi A manhã estava estava quente. percebi oo toque toque da luz luz do do sol sol sobre sobre minha minhapele. pele. Fiquei Fiquei um um bom bom da tempo sentada sentada na najanela janelado domeu meu apartamento. tempo apartamento.

25 #25


Era feriado, pessoas Era feriado,mas mas apesar apesar da da quantidade quantidade de de pessoas que viajam viajam nessa nessa época época do doano, ano, ainda aindahaviam haviam que muitos carros carros ee pessoas pessoas aa transitar transitar pela pela avenida avenida muitos onde moro. moro. Os Os sons sons das das buzinas buzinas me me fizeram fizeram onde voltar aa realidade. realidade. voltar Lembro de ainda menina, menina, eu eu caminhava caminhava Lembro de quando, quando, ainda por todos todos os os mágicos mágicos caminhos caminhosinexplorados. inexplorados. por A cidade A cidade parecia parecia gigante! gigante! Seus Seusprédios prédioseram eram como braços braços enormes enormesfazendo-me fazendo-me sentir como sentir bem-vinda. Eu Eu nunca medo ou oume mesenti senti bem-vinda. nunca tive tive medo pequena. Ele Ele me a realidade realidade que que pequena. me ensinou ensinou que que a eu alimento alimento éé aa que quesesetorna torna verdade eu verdade em em meu meu mundo: Escolhi Escolhi ser mundo: ser grande, grande, escolhi escolhiser serforte... forte...

26 #26


#27 27


Mesmo quando tudo se se apagou. apagou. Aos Aos poucos Mesmo quando tudo poucos o brilho brilho se se foi foi ee as as nuvens nuvens tomaram tomaramconta conta o do horizonte horizonte até até que quefosse fossepossível possívelver ver do somente vultos vultos na na sombra sombraturva, turva,tornando-me tornando-me somente completamente dependente dependentedos dos sentidos que completamente sentidos que me restaram. restaram. me A única traz paz, paz, mesmo mesmo quando quando A única coisa coisa que que me me traz lembro de de que queele elenão nãoestá está mais aqui para lembro mais aqui para me fazer fazer ver ver a acidade cidadedadamaneira maneira me queque só só eleele conseguia fazer é ir ir aos aos parques parques ee jardins jardins conseguia fazer é escondidos em em meio meio a amilhares milharesdedeprédios prédios escondidos que São São Paulo que Pauloguarda guarda em em si. si. Em Emmeio meio aa tantos tantos diferentes e únicos lugares, lugares, só que diferentes e únicos só havia havia um um que

28 #28


era oo meu meurefúgio: refúgio: oo nosso nosso Jardim. Jardim. Este era Estejardim jardim que considerávamos considerávamos nosso nosso éé o oJardim Jardim Botânico Botânico que da cidade. cidade. Dizem não éé tão tão bonito bonitoe enem nem da Dizem que que não tão incrível incrível quanto quanto outros outrosque queexistem existem pelo tão pelo Brasil, porém honra de de Brasil, porémnenhum nenhum deles deles tiveram tiveram aa honra serem conhecidos conhecidos com comtanto tantocarinho carinhoe e atenção serem atenção por ele, ele, o o Luiz, Luiz, meu por meu avô. avô. Quando criança avô guiava guiava minhas minhas mãos mãos Quando criança meu meu avô em direção direção as as texturas texturasdas dasárvores, árvores,plantas plantas em e flores flores que que haviam haviam no noJardim. Jardim. Este e Esteera era o nosso nosso jogo. jogo. Depois Depois de tempo passei passei o de um um tempo a reconhecer reconhecer cada cada textura, textura, cada cada forma. forma. Ele Ele a estava me me treinando treinando para paraconhecer conhecero o parque estava parque

29 #29


#30 30


#31 31


como eu eu conheço conheçominhas minhasmãos. mãos.Nos Nos divertíamos divertíamos como ao tentar tentar descobrir descobrir receitas receitas onde ondepoderíamos poderíamos ao usar as as flores flores que descobrimos em emcada cadapasseio. passeio. usar que descobrimos A cozinha, A cozinha,coitada, coitada,vítima vítima das das nossas nossasperipécias peripécias com oo fogão, fogão, viu viu poucas poucas vezes vezesalgo algodar darcerto. certo. com Mas aa graça em dar darerrado, errado, Mas graça estava estava justamente justamente em pois era ali que que eu eu podia podia explorar explorarmeu meu paladar pois era ali paladar ao máximo. máximo. Adorava Adorava fazer fazer doces, doces, já já ele ele preferia preferia ao os salgados. salgados. No os Nofim fimdas dascontas, contas,aprendi aprendia a me me virar e e hoje hoje cozinho cozinho para paramim. mim.Todos Todos os os potinhos potinhos virar de temperos temperos e evasilhas vasilhas continuam continuamnonomesmo mesmo de lugar, ee isso traz segurança segurança no no que queeueufaço. faço. lugar, isso me me traz Lembro de os nossos nossos caminhos caminhos ee movimentos movimentos Lembro de todos todos os como uma umadança, dança, do docheiro cheirodos doslegumes legumes ponto como no no ponto certo na na panela, panela, do do som som da dachaleira chaleiraquando quando certo 32 #32


a água água do do chá chá atingia atingia a atemperatura temperatura correta, a correta, um pouco pouco antes antesde deferver... ferver... Ele Ele me um me ensinou ensinou a ser ser independente independente nessa nessa selva selva de depedra, pedra, mas mas a também a asaber saberpedir pedirajuda ajudaquando quando necessário. também necessário. Me dizia que eu eu sentisse sentisse que quenão não Me dizia que que sempre sempre que aguentaria mais, mais, o Jardim seria refúgio aguentaria o Jardim seria oo meu meu refúgio para recarregar recarregar minhas minhas energias energias eeseguir seguiremem para frente. Hoje frente. Hojevejo vejo oo Jardim Jardimde de uma uma maneira maneira completamente diferente diferentededecomo como antes. completamente viavia antes. Eu oo vejo as mãos, mãos, sinto-o sinto-o com commeu meu Eu vejo com com as coração, conheço ele com como oque quesou. sou. coração, conheço ele Sentirei sempre Sentirei sempre aa falta falta dele... dele...e eserei sereisempre sempre grata pelo pelo que que me medeixou: deixou:OO nosso nosso Jardim. Jardim. grata

33 #33


34


35


36


flores FLORES

37


38


A música Flowers In Your Hair, do The Lumineers, me lembra de todas as vezes em que meu avô pegou flores pelo seu caminho para colocar no meu cabelo. Às vezes era somente uma que eu carregava atrás da orelha. Já outras eu deitava no gramado, ainda úmido do orvalho que caíra na noite passada, enquanto ele espalhava flores pelo meu cabelo que se misturava com a grama macia debaixo de mim. Mas as minhas favoritas eram quando ele juntava flores e pedaços de ramos para fazer uma coroa para mim, um belo e perfeito contraste entre a maciez e suavidade das pétalas de cada flor e a textura áspera dos ramos. Ele me dizia que eu era a princesa que

39


40


41


ele sempre quisera ter. Eu era sua única neta e ele só tivera filhos homens. Perdi a conta de quantos vestidos de princesa eu tive em meu armário, todos repletos de pedrarias baratas e extremamente coloridas. Adorava passar a mão por elas e sentir as elevações. A renda era uma das minhas partes favoritas, refazia o desenho dela com a ponta dos meus dedos por horas, enquanto esperar meu avô me buscar de bicicleta na escola para fazermos nosso piquenique diário no nosso Jardim era o meu passatempo favorito. Eu amarrava minha mochila, cujos bolsos imitavam o focinho de um panda, na bicicleta e em seguida

42


colocava o capacete para seguirmos. Sentir o vento sobre minha pele me trazia uma sensação de liberdade indescritível, era como se eu pudesse voar, criar asas naquele mesmo instante e ir para onde eu quisesse. Mas de todos os lugares do mundo que eu pudesse visitar só havia um no qual eu gostaria de ter uma visão aérea por completo: O Jardim. A viagem a ele era relativamente rápida. Deixávamos

bicicleta no estacionamento

- o dono de lá era um dos velhos conhecidos do meu avô, que aliás, era a pessoa mais popular que conheci - e caminhávamos cantando Britney Spears até chegarmos à bilheteria... Ou melhor,

43


44


45


eu cantava - ou pensava que cantava -, enquanto meu avô cantarolava a melodia ao meu lado. Era ele quem fazia os melhores “quase duetos” comigo. Nossos famosos duetos aconteciam principalmente enquanto cozinhávamos. Um dia meu avô disse que era possível cozinhar com alguns tipos de flores. Escolhemos a lavanda como protagonista de nossos doces e nunca mais paramos de cozinhar, cantarolar e falar sobre flores. Eu adorava caminhar pelo Jardim a procura de novas espécies para catalogar em meu caderno de desenho: flores com nomes que somente eu entendia, como as flores pompom, que tinham fios que pareciam pelinhos. 46


No Jardim há uma pequena alameda que leva a uma fileira de arbustos com flores que iam do branco ao rosa, uma variação incrível de coloração: Eram minhas favoritas. Elas formavam o contraste perfeito em sua estrutura. Seus galhos eram espinhosos, ásperos, secos; As folhas que ramificam deles eram ásperas ao toque e possuem uma leve textura; Entretanto as pétalas daquelas flores, que variava de cinco a sete pétalas por flor, se abriam a partir do caule formando uma espécie de funil onde abelhas buscavam o néctar...

suas pétalas

eram

completamente suaves, macias, doces. A vida fica sem graça se não existir contraste. Duas coisas completamente diferentes podem, no fim, formar 47


48


49


50


51


um belo par, assim como minhas flores favoritas e seus galhos. Sinto falta delas, do cheiro suave que se perdia em meio ao aroma da vegetação, das coroas e flores que decoravam meu cabelo indomável, dos meus duetos ao cantar Britney Spears, de correr e me jogar no gramado macio e úmido e rolar sobre ele até pedacinhos de grama grudarem sobre toda a minha roupa. Sinto falta do meu avô.

52


53


54


55


56


รกrvores ร RVORES

57


58


Ele sempre tinha que me pedir para descer das árvores antes que alguém nos visse. Eu adorava correr em direção a elas e tocá-las com as mãos completamente abertas. Era como se em qualquer momento eu esperasse que minhas mãos afundassem no tronco sólido e maciço da velha árvore, assim como costumava acontecer nas vezes em que meu avô me levava ao mercadinho do nosso bairro, onde eu colocava as mãos dentro dos grandes sacos de grãos e sementes que rodeavam um dos balcões do local. Os grãos envolviam minhas mãos em um abraço até que elas e meus pulsos estivessem completamente cobertos por eles. Isso não acontecia com as árvores, porém

59


troca das minhas tentativas, elas me retribuíam com um joelho ralado: história impressa na pele. Apesar de ser pequena demais para alcançar seus galhos, eu era uma ótima escaladora. Tinha uma fixação imensa por altura, pela sensação de voar e por toda liberdade. Sempre invejei os passarinhos que via pela janela e Jardim. Quando via algum deles no chão, eu implorava para que voassem novamente, porque voar é um privilégio grande demais para ser desperdiçado - pensava. Eu abraçava o tronco e olhava para a copa tentando definir o que era galho e folhas,

60


61


62


63


o que na contraluz era quase impossível de ser definido, pois apenas se via a silhueta irregular e delicada da folhagem das árvores, cuja moldura era o céu. Essa era a sensação de se estar com meu avô, um misto de segurança, solidez (como os troncos das árvores), e liberdade (como o voar dos passarinhos que se aninham em suas folhagens). Não havia uma pessoa que deixasse uma conversa com meu avô sem a absoluta certeza de que seria capaz de voar, se quisesse isso com muita vontade. Ele era inspirador e sua certeza de que a vida é incerta e que nada podemos fazer sobre, por mais incrível que pareça, era o que mais me dava paz, e foi o que de fato me ajudou quando

64


tudo começou a se turvar. Se agarrar no presente que é o agora, sem me preocupar com a promessa do amanhã. De todos os seus ensinamentos disfarçados de brincadeira, este é o que, até hoje, mais me faz bem. Viver um dia de cada vez até que tudo seja história. Quem diria que até ao me segurar no colo para descer de cada árvore que eu escalei em nosso Jardim, ele estava me ensinando. E ele continua cuidando de mim mesmo distante, e por mais distante que ele esteja agora, em momentos assim, é quando eu o sinto po perto. Hoje ele é livre e ninguém pode impedir seu voo. Eu sou passarinho aprendendo a voar.

65


66


67


68


nascente NASCENTE

69


70


Eu sempre quis nadar nele. Ou melhor: Pular! O pequeno riachuelo que corre desde a entrada do Jardim até o interior dele (e que cobriria até, no máximo, meus tornozelos), sempre me fascinou. Ele era pequeno, como eu, e rodeado de folhas e plantas diversas, localizado logo na entrada do Jardim. A que eu mais conseguia identificar era a Costela-de-Adão. Dava para ouvir o som da água correndo por todo local quando tudo ficava em silêncio. Também podia se ouvir o canto dos pássaros e de aviões que sobrevoavam a região. Fora a bilheteria, na entrada do jardim não tem cobertura, assim esse é o primeiro ponto refrescante do lugar.

71


72


73


O vento que circulava por ali te dá um abraço suave de boas-vindas e boa sorte, espalhando o aroma da vegetação ao redor e da grama recém cortada, enquanto agita parte da copa das árvores que faziam festa com a nossa chegada. Eu enchia meus peitos com o ar fresco e puro enquanto me envolvia pela cantiga dos pássaros nas árvores e pela melodia da água que corria por perto. À sombra das palmeiras havia um simples banco em uma ligação entre a plataforma de madeira e a vegetação, como um deck, que fazia um som gostoso e ritmado do encontro dos nossos

74


sapatos com a madeira quando caminhávamos sobre ele. Eu me sentava naquele banquinho de madeira ondulado com meu avô e ouvia as águas correndo por debaixo dos nossos pés. No momento em que ficávamos sozinhos ali, com o distanciamento de outros visitantes do Jardim e das crianças que corriam soltas pelo local, ora rindo, ora chorando, eu ouvia com muita clareza o som da água, o canto dos pássaros e o vento que passeava por entre as copas das árvores: Uma sensação que embala. Haviam outros pontos no jardim que eu gostava muito de ir para entrar em contato com o que

75


sempre me fascinou - a água: Na trilha havia uma passarela de madeira que se embrenhava com curvas infinitas por dentro da mata e nos guiava para um ponto do Jardim onde dava para ver uma nascente. O ambiente ficava muito mais úmido por conta da enorme parcela de vegetação que o cerca. Com sorte víamos também alguns animais pequenos que habitam o local. Era uma aventura a parte! Apesar de todos os lugares maravilhosos onde era possível ver toda a beleza das águas, meu local favorito ainda hoje é o pequeno deck com seu banquinho escondido sob as palmeiras

76


e canto dos pássaros. Em nenhum outro lugar no Jardim eu consigo me sentir como quando criança. Antes eu fechava os olhos para sentir e ouvir tudo o que acontecia ao meu redor, e as águas que levavam minha tristeza. As águas levaram meu tempo, meus anos, e hoje eu já não preciso mais fechar os olhos para sentir nada. Porém, mesmo vindo sozinha para o meu esconderijo secreto longe dos imprevistos da vida, eu ainda me sinto como naqueles dias em que meu avô me trazia aqui: Feliz, em paz e plena em minha solitude. Não tenho muito mais do que reclamar.

77


78


79


80


lagos LAGOS

81


82


Se há uma constante que define toda a minha história com meu avô naquele Jardim o nome dela é Vitória-Régia. Eu adorava ver o céu, principalmente o céu estrelado: era como se alguém tivesse derrubado um grande pote de glitter em um papel azul escuro. Tenho certeza que as estrelas possuem a mesma textura, como um pó mágico que forma mais e mais constelações em meio às galáxias. Um dia meu avô me contou que, segundo a lenda contada pelos indígenas, a Vitória-Régia é considerada a estrela das águas. Eu via cada uma daquelas plantas aquáticas que dominavam a paisagem dos lagos do nosso Jardim como pessoas queridas que se tornaram estrelas, a diferença das que estavam no céu e das 83


que permaneceram nos lagos é que as que não estavam no céu ficaram aqui para fazer companhia para quem ainda estava na Terra. As flores da Vitória-Régia, cujas pétalas brancas são pequenas e pontiagudas, abrem-se quando a noite chega, saudando as estrelas que estão no céu enquanto libera seu perfume doce. Tudo isso ficou na lembrança. Por não mais enxergar eu dependo das memórias da infância para reviver esse tempo com meu avô. Elas, assim como meu tato e audição, me levam de volta para o passado e me ajudam a interpretar meu presente. Eu sei que meu avô também está lá, em meio aquelas flores, no centro do jardim, 84


esperando pela minha visita enquanto não estou preparada para que ele vá embora. Ele me ensinou tanto sobre tudo: Sobre a vida, como ser independente mesmo com todas as dificuldades que me cercam, me ensinou que eu era capaz de fazer qualquer coisa e que eu nunca deveria deixar que as pessoas à minha volta me limitassem baseadas no que elas veem. Como aquelas flores que desabrocham quando ninguém está presente para ver, eu cresci. Por mais frágil que pareça, a Vitória-Régia pode crescer por mais de dois metros de comprimento e aguentar uma criança de até 40kg sem sofrer dano. Existe força nela, e beleza, e magia... Assim como em todo o resto do Jardim, e agora em mim. E sempre haverá. 85


86


87


88


89


Copyright © 2017 por Sophia Mendes. Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro pode ser utilizada ou reproduzida sob quaisquer meios existentes sem autorização por escrito dos editores. Imagem de capa de Nicole Mason e Alex Loup. Revisão Camila Hata, Marcela Moura e Nicolle Favacho Direção de Arte Nicolle Favacho Diagramação Camila Hata, Danilo Geber, Kimberly Oliveira, Marcela Moura e Nicolle Favacho Capa Nicolle Favacho Fotografia autoral Danilo Geber, Pedro Campana e Albarubescens Impressão e Acabamento Gráfica Tateria Cip-Brasil. Catalogação-Na-Fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ M733s Mendes, Sophia, 1988Nosso Jardim | Sophia Mendes. São Paulo: Editora Tateria, 2017. ISBN 999-85-99999-99-9 Ficção braisileira. Romance. Literatura inclusiva. Design para deficientes visuais. CDD 000 | 00-0000 | CDU 000.000(00) - 0 Todos os direitos reservados, no Brasil, por Editora Tateria. Avenida Adolfo Pinheiro, 2054 | Conjuntos 62 e 63 Chácara Santo Antônio | 04733-100 | São Paulo | SP Tel.: (11) 0000-0000 | Fax.: (11) 0000-0000 E-mail: atendimento@editoratateria.com.br www.editoratateria.com.br

90


Nosso Jardim © Editora Tateria. 1ª Edição. 2017. Família tipográfica Pavê (Regular e Braille - 18pt), para corpo de texto. Família tipográfica Gotham (26pt), para títulos. Impresso em Opalina 180g/m² em São Paulo na Gráfica Tateria.

91


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.