A teoria viva do transtexto_dan porto_2017

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© Dan Porto, 2017 PORTO, Dan. A teoria viva do Transtexto. Disponível em http://www.danporto.com. 2017. Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução sem autorização.


A teoria viva do Transtexto Primeiro surgiu o mistério. Encontrei o Transtexto sem saber que existia e, portanto, sem procurá-lo. Banat, banat, ban jai. Fazendo, fazendo, algum dia feito. Parti do Newspaper Blackout, que já vinha exercitando e aplicando nos cursos de Criatividade e, afinal, encontrei isso:

trans texto a obra projeta o seu próprio espaço não é mais lugar autor sentido é o lugar presente potência de mistério

Depois, os entrelaçamentos da teoria. No entanto, devo alertar o leitor de duas coisas. A teoria é apenas teoria, ou seja, limitante e, por assim ser, restritiva. Acredito que a boa teoria é aberta, compartilhada e ininterrupta, pronta sempre a evoluir, porém, só por isso já assusta aqueles habituados às caixas-pretas da regra. E a arte é viva. Cada artista a seu tempo se encarrega de (ou ao menos deveria) tocar, ou seguir, em frente o que foi construído no passado. Porém, antes, devemos observar esta linha histórica de experimentos: O comerciante, diplomata, poeta e político escocês Caleb Whitefoord (17341810), por volta de 1760 passou a ler as notícias do jornal não mais em colunas, mas seguindo a linha e pulando de coluna para coluna. Chamou a técnica de Reading Cross, algo como Leitura Cruzada.


Sua produção ficou marcada pelo tom de humor que imprimia, ou descobria, especialmente aos assuntos políticos. Embora Whitefoord tenha sido poeta, Giles Goodland, em seu artigo sobre a Reading Cross, não acredita que tenha chamado de poesia o resultado dessa técnica. Fez sim muito sucesso entre seus pares, mas mais como humor do que poesia. “O cometa está agora sobre a sua volta ao sol, de acordo com um decreto do alto tribunal da chancelaria.” “Ontem houve disputas violentas no conselho comum. Há algum tempo o vulcão tem sido extremamente turbulento.” “Lady M. Stanhope, filha do conde de H comprometeu-se a comer uma perna de carneiro em uma sessão.” Por fim, Giles também sugere que Whitefoord tenha tomado contato com a receita de Tristan Tzara para fazer um poema dadaísta, que veremos a seguir. O poeta romeno e criador do Dadaísmo Tristan Tzara (1896-1963) empregou uma técnica chamada Cut-up, ou découpé, em francês. Em sua Receita para fazer um poema dadaísta, ele registrou o passo-a-passo.

Receita para fazer um poema Dadaísta Tristan Tzara

Pegue um jornal. Pegue uma tesoura. Escolha no jornal um artigo com o comprimento que pensa dar ao seu poema. Recorte o artigo. Depois, recorte cuidadosamente todas as palavras que formam o artigo e meta-as num saco. Agite suavemente. Seguidamente, tire os recortes um por um. Copie conscienciosamente pela ordem em que saem do saco. O poema será parecido consigo. E pronto: será um escritor infinitamente original e duma adorável sensibilidade, embora incompreendido pelo vulgo.


Tzara chegou a criar um poema durante uma manifestação dadaísta puxando palavras de um chapéu, como demonstração da técnica. Porém, é só com Brion Gysin e William Burroughs que o Cut-up torna-se mais popular. O pintor e escritor inglês Brion Gysin (1916-1986) descobriu a técnica pelo que comumente chamamos de acaso. Havia posto jornais como forma de proteger a mesa enquanto cortava papéis com uma lâmina. De repente percebeu que os jornais que também iam sendo cortados, formavam camadas as quais, justapostas, criavam imagens e textos interessantes. Brion chegou a publicar um livro com o resultado da aplicação do Cut-up, Minutes to Go. Os primeiros recortes de Gysin nasceram na década de 1950 e influenciaram o trabalho do amigo William Burroughs. O escritor e pintor William Burroughs (1914 – 1997) também trabalhou com a técnica de Cut-up. Embora o conceito seja atribuído aos dadaístas dos anos 1920, só veio a se tornar popular no final dos anos 1950 e início dos anos 1960 com o trabalho de Burroughs, o Almoço Nu, de 1959. Em parceria com Gysin, William Burroughs elaborou o livro The Third Mind, uma mistura de ensaio, peças de Cut-up e uma entrevista com o autor.

Edição norte-americana, 1978


The Third Mind

E da amizade dos dois também nasceu o filme The Cut-Ups (1966), dirigido por Antony Balch, roteiro de Burroughs e Balch e com os dois amigos em cena, cuja montagem segue a mesma orientação da técnica em questão. No entanto, talvez o trabalho mais extenso de remix literário seja o do pintor britânico Tom Phillips (1937 - ). A partir de um romance vitoriano, A Human Document, Tom criou seu trabalho A Humument, ao qual se dedica desde 1966. A Humument já gerou, inclusive, peças de ópera, como Irma: The Score. Tom pinta, cola e desenha sobre as páginas, mas deixa parte do texto à mostra em forma de balão. Personagens do romance original aparecem na nova história, mas o protagonista é um novo personagem chamado Bill Toge. O trabalho resultante de A Humument também serviu para Tom ilustrar sua tradução de O Inferno, primeira parte da Divina Comédia, de Dante. Do lado de baixo da Linha do Equador, o paulista radicado em Curitiba Valêncio Xavier, publicou em 1981 o livro “O Mez da Grippe”, um texto-montagem que reúne recortes históricos da gripe espanhola em Curitiba e região combinados com narrativa ficcional. Valêncio Xavier não inaugura, mas é o autor brasileiro que mais se aproxima do que se trata aqui.


Nesse grupo, aparece o brasileiro Leonardo Villa-Forte (1985 - ), cujo trabalho de remix literário mais conhecido é o MixLit. Leonardo começou a produzir em 2009 e segue trabalhando e pesquisando sobre remixagem literária. Mas, neste século XXI, o responsável pelo resgate, pela compilação e divulgação dessas técnicas é mesmo o norte-americano Austin Kleon (1983 - ). O livro de Austin, Newspaper Blackout, de 2010, foi o propulsor para o resgate das técnicas experimentais. Esse olhar para o passado diz muito sobre o processo artístico, a experimentação sempre esteve presente nos círculos criativos, aliás, estes, ausentes neste nosso tempo muito individual. Foi um mergulho proposital, muito embora pudesse, assim como acabo de criticar, ter passado ao largo. Mas, diz o historiador francês Marc Léopold Benjamim Bloch que “a incompreensão do presente nasce fatalmente da ignorância do passado”. Pois bem, passemos então à constituição do Transtexto. Lembro-me que os espaços em branco na página sempre me chamaram a atenção, então os busquei no Transtexto e eles trouxeram a canção 20 anos Blues, música de Sueli Costa e letra de Vitor Martins: “O sangue jorra pelas veias de um jornal”.


Transtexto # 51, Dan Porto, 2016

A polarização entre luz e sombra, mais que apenas duas dimensões, me remetem aos ciclos naturais da vida. E assim, surgem as cartas do Tarô: A Morte, O Carro, e O Mundo, cujos atributos principais são modificar, direcionar e progredir, respectivamente. À propósito, esta série quase se chamou ReMundo, em alusão ao progresso, mas desisti em função dos múltiplos aspectos associados à ideia de progresso, nem sempre e nem todos positivos. Foi nesse ponto, ou em torno dele, melhor dizendo, que surgiu o poema que abre este texto. Trans texto... Transtexto. Trans, do latim além de, em troca de, através. E se impuseram os aspectos já presentes, iluminaram-se, a saber, o espaço, o momento presente e talvez a dimensão mais importante e mais cara a mim, desde sempre, o mistério. Vamos tomar espaço por papel, livro, jornal ou revista que estou trabalhando,


tamanho da página, desenhos, espaço entrelinhas e entre palavras – entrepalavras? O presente, assim, posto por característica, abarca e transborda o caráter orgânico da experimentação. Todas as possibilidades existem naquele momento e, caso passe, o momento seguinte gerará outro processo e outro resultado. E, afinal, o mistério, o pedaço do processo que a razão não corrompe, e não o faz porque não o alcança, o mistério permanece inacessível mesmo quando se mostra. A luz que ilumina o mistério é opaca, difusa, indireta, amarelada, quente. Não trato de inspiração ou musas, quero que fique claro, o mistério é o caráter inexplicável, subjetivo e inalcançável. E como parte do mistério, fluidamente, é mais ou menos por aqui que aparecem Julia Kristeva, chegada de 1966, falando de intertextualidade e, depois dela, Gérard Genette, este mais próximo de mim, de 1982, a propor o termo transtextualidade. Para ele, transtextualidade se refere a um grande grupo de relações possíveis entre diferentes textos, dentre eles, a intertextualidade e a hipertextualidade, aqui sim a parte que nos cabe, o hiper, o hipertexto. Seu livro Palimpsestos – a literatura de segunda mão, ainda é inédito no Brasil. No entanto, as pesquisadoras Luciene Guimarães e Maria Antônia Ramos Coutinho, ambas da UFMG, traduziram algumas partes em 2006. Genette começa desconstruindo o objeto da poética: “o objeto da poética não é o texto, é a transtextualidade, ou transcendência textual do texto: tudo que o coloca em relação, manifesta ou secreta com outros textos”. A teoria de Gérard Genette produz eco no Transtexto surgido do mistério, mas não só isso, ampara todos os estudos que geram transformação (hipertexto) a partir do que já existe (hipotexto). Para quem desejar mais informações, recomendo a leitura do material indicado, haja vista que não é o interesse aqui construir teses acadêmicas, pelo contrário, é derrubá-las que é mais interessante. Não há possibilidade de passar sem citar a influência minimalista, que pode ser vista descaradamente nas peças de palavra única. O sentido e a significância do signo valem mais do que aparentam neste tempo líquido, cuja linguagem se tornou mais imagem do que som.


Transtexto Brilhar, Dan Porto, 2016

E, obviamente, não pode haver experimentação poética sem invocar a Poesia Concreta. O Transtexto encarna, assim como os seus antepassados, o experimentalismo, a transformação do poema em objeto visual, o protagonismo dos substantivos e verbos e o sintetismo. Às vezes somos deselegantes, em outras podemos ser esquinas sutis. Tudo isso só é possível por conta da liberação do jogo. O lúdico é fundamental para a transformação do hipotexto em hipertexto. Para Genette, “nenhuma forma de hipertextualidade ocorre sem uma parte de jogo e o verdadeiro jogo comporta sempre um pouco de perversão”. Perversão essa que me valho para manter a desfaçatez de usar, e abusar, de toda a gama de transtextualidade, e não só do hipertexto. Quero chegar, e chego, ao trans-transtexto, numa perversão sem precedentes a misturar livros, páginas, trechos, sem critério, no que se chamaria de perversão literária. Ótimo! Não se faz boa coisa sem prazer.

“O espaço entre as palavras; a sombra; a luz; a refazenda da teia de signos; é o que me seduz nesta técnica. Transtexto é a luz da minha sombra. Quando eu mesmo estava na escuridão, a casa escura, os sentidos borrados, a sujeira e o mofo ameaçavam destruir tudo, como no arcano A Morte, ilumina-se a vida com a luz dos espaços em branco, com o mistério do presente. A palavra se coloca, quase impõe-se; interpõe-se, ou transpõe-se, entre as manchas na folha. O papel bebe tinta e, em gargalhadas, devolve a palavra a piscar, atrativa e sedutora.


Esse mistério do que já foi e morreu e se renova no Transtexto alimenta a luz, ilumina a sombra. Deixei o jornal e venci a resistência de trabalhar com páginas de livros. Foi e segue sendo o rompimento de algo sagrado, porém era preciso desafiar o estabelecido. Busquei não o mistério da poesia, mas da palavra, a ordem orgânica no caos. Trabalhei com livros técnicos, poemas, textos infantis, reportagens de jornal e revista, textos publicitários. A combinação repetida das letras, sílabas e palavras passou a pular do texto no primeiro olhar. Chega um ponto no qual você identifica a linguagem quase como o código binário de programação.”

Veja peças em www.danporto.com



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