Anseios cripticos 2 revisado com capa

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ANSEIOS

CRIPTICOS PAULO LEMINSKI

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Paulo Leminski

ANSEIOS CRIPTICOS 2



Paulo Leminski Paulo Leminski Filho nasceu em Curitiba, em 24 de agosto de 1944. O pai descendia de poloneses e, a mãe, Áurea Pereira Mendes, de portugueses, índios e negros. Aos 8 anos, fez o primeiro poema. Dos 12 aos 14 anos permaneceu como oblato no Mosteiro de São Bento/SP. Aos vinte anos já participa de eventos relacionados à literatura. Iniciou duas faculdades — direito e letras —, abandonando ambas. Foi professor de cursinho, jornalista, redator de publicidade, tradutor, compositor, letrista. Traduziu, entre outros, Um atrapalho no trabalho, de John Lennon, Sol e aço, de Mishima, e Satyricon, de Petronius. Foi parceiro de Moraes Moreira, Itamar Assumpção, Arnaldo Antunes, Guilherme Arantes e Ivo Rodrigues. Como compositor, teve canções gravadas por Caetano Veloso e Ney Matogrosso, entre outros. Apresentou o polêmico Jornal de Vanguarda, na TV Bandeirantes, em 1988. Catatau (“prosa experimental”) foi publicado em 1975. Seus poemas estão em vários livros: Quarenta cliques, 1979, Polonaises, 1981, Caprichos e relaxos, 1983, Agora é que são elas, 1984, Distraídos venceremos, 1987, Guerra dentro da gente, 1988, Não fosse isso e era menos/Não fosse tanto e era quase, 1980.



Préfacio Em 1986, a convite de Criar Edições, Paulo Leminski organizou, em dois volumes, textos nos quais deixara fluir seu talento de polemista-ensaísta-demolidor-criador: seus anseios. O resultado foram duas pastas abarrotadas com recortes de jornais, cópias de posfácios e prefácios, e textos datilografados. O primeiro volume — Anseios Crípticos 1 / anseios teóricos — foi editado em 1986. O segundo, os anseios práticos, deveria sair no ano seguinte. No entanto, só hoje chega aos leitores. Por um lado, os azares dos planos econômicos colocaram a Criar numa quarentena da qual só retornou em outubro de 2000. Por outro, em 1989, Paulo resolveu polemizar em outras dimensões. Não bastasse, os originais sumiram, resistindo a três mudanças e, 15 anos depois, se materializaram no fundo de uma caixa na qual deveriam estar apenas exemplares de antigos suplementos literários. São estes os anseios/ensaios que publicamos agora. Diferentemente dos que estão no primeiro volume, no qual Leminski dizia ter reunido as noções “teóricas” básicas a partir das quais pensava, estes, os “práticos”, estão voltados para a análise de obras e de autores. Reunidos pela primeira vez em livro e na ordem que Leminski estabeleceu, discutem obras de Brecht, Rimbaud, Haroldo de Campos, Sartre, Guimarães Rosa, Euclides da Cunha, Dante, Whitmann, Fante, Jarry, Ferlinghetti, John Lennon, Mishima, Becket, Joyce, Petrônio. Alguns são inéditos, outros são inéditos em livro, outros foram publicados em jornais e revistas de circulação nacional (Folha de S.Paulo, Leia Livros, Veja), e outros saíram em jornais de tiragem restrita ao Paraná (Gazeta do Povo, Correio de Notícias). Em todos, a marca que fez de Leminski um polemista de talento, colocando em questão as obviedades literárias do momento, do que estamos todos muito carentes nos dias de hoje, quando o pensamento único nos provoca infindáveis bocejos de tédio.



Sumário m, de memória latim com gosto de vinho tinto um texto bastardo taiyo to tetsu: entre o gesto e o texto lennon rindo ferlinguete-se! o uivo e o silêncio jarry, supermoderno folhas de relva forever: a revelação permanente méxico sertões anti-euclidianos trans/paralelas significado do símbolo o veneno das revistas da invenção grande ser, tão veredas e o vento levou a divina comédia poeta roqueiro aventuras do ser no nada: quem tem náusea de Sartre? tímidos e recatados tradução dos ventos prosa estelar bonsai: niponização e miniaturização da poesia brasileira história mal contada


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m, de memória. Os livros sabem de cor milhares de poemas. Que memória! Lembrar, assim, vale a pena. Vale a pena o desperdício, Ulisses voltou de Tróia, assim como Dante disse, o céu não vale uma história. Um dia, o diabo veio seduzir um doutor Fausto. Byron era verdadeiro. Fernando, pessoa, era falso. Mallarmé era tão pálido, mais parecia uma página. Rimbaud se mandou pra África, Hemingway de miragens. Os livros sabem de tudo. Já sabem deste dilema. Só não sabem que, no fundo, ler não passa de uma lenda.

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Latim com gosto de vinho tinto

Paulo Leminski


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as veias abertas da roma antiga

“De C. Petrônio não há muito que dizer. Dormia o dia inteiro e dedicava a noite para seus trabalhos e prazeres. Muitos ficam famosos por seus empenhos (industria). Ele era famoso por sua preguiça (ignavia). Não era considerado um homem que corre atrás do proveito, mas dos prazeres sutis (erudito luxu). Tudo que dizia e fazia era descontraído e sem esforço, e sua simplicidade cativava como uma gentileza. Mas soube ser enérgico quando no serviço público, primeiro como procônsul na Ásia, depois como cônsul. A seguir, retirou-se para a vida privada e seus vícios favoritos e, como tal, foi aceito no círculo mais íntimo do imperador Nero, onde reinou como um verdadeiro árbitro da elegância (el egantiae arbiter). Nero nada fazia sem antes consultar seu sofisticado cortesão. Isso suscitou a inveja de Tigelino, outro cortesão, que contra Petrônio arma uma intriga, envolvendo seu nome com conspiradores. Sabendo-se perdido, antes da ordem do príncipe, Petrônio decide suicidar-se, abrindo as veias do braço. Um médico grego abria-as, o sangue corria, e ele as fechava depois. Voltava a abri-las, e as fechava, assim muitas vezes. Enquanto isso, impávido, Petrônio não se entregava a conversas sobre a imortalidade da alma. Na realidade, fazia versos lúbricos e fúteis. E assim fazendo morreu, com a maior naturalidade. Nunca lisonjeou os poderosos, nem o próprio Nero. Ao contrário. Escreveu uma narrativa onde descreve os excessos do imperador, atribuindo-os a jovens depravados. E ao morrer enviou-lhe a narrativa.” Assim Tácito, o maior dos historiadores romanos, descreveu, em seus Anais, a vida e o fim de Petrônio, e a gêneses do Satyricon.

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Poucos livros têm biografia tão acidentada como este Satyricon, o primeiro dos romances, a obra mais escandalosamente original da literatura latina. Oficialmente, consta como sendo o romance escrito por Caius Petronius dito Arbiter, cortesão e íntimo do imperador Nero, que este condenou ao suicídio, no ano de 65, por se achar envolvido na conspiração da família dos Pisões contra o louco imperador poeta. Mas na ficha do Satyricon, tudo são conjecturas e hipóteses que já produziram rios de tinta entre os sábios, do Renascimento para cá: o livro, aliás, foi um dos primeiros textos impressos; sua primeira edição, em Milão, é de 1477. O texto que hoje temos é, certamente, parte de um texto maior, que se perdeu nos azares da História, talvez um quinto apenas do original (fragmentos dos capítulos XV e XVI). Mesmo assim, esse texto se sustenta como uma obra inteira. A autoria também não é segura. Toda a argumentação sobre a autoria se baseia num célebre trecho do historiador romano Tácito, que viveu por volta de 120 da nossa era, cinqüenta e cinco anos depois da morte de Caius Petronius. Nele, Tácito fala do cortesão voluptuoso que, condenado ao suicídio por Nero, escreve ao morrer uma longa sátira para zombar do ridículo tirano. Certas evidências, porém, laboram contra a identificação do Satyricon, que temos hoje, com essa sátira do cortesão de Nero. Primeiro, porque não é verossímil que um homem pouco antes de morrer tenha forças para compor uma obra que, no original, deveria ter algo como duas mil páginas. Depois, há indícios de linguagem e estilo que acusam, me parece, a presença de giros e palavras característicos de

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épocas posteriores ao reinado de Nero. A oralidade e o registro escrito do latim vulgar, por exemplo, o sermo humilis, parecem ter sido introduzidos pela pregação cristã. Por fim, há o estranho silêncio dos escritores romanos posteriores (Marcial, Suetônio, Plínio, Juvenal, Quintiliano) sobre uma obra que deveria ter causado grande impacto na época em que surgiu. Os primeiros escritores latinos que mencionam o Satyricon, entre eles, São Jerônimo, já são do século III da nossa era. Alguns estudiosos chegaram mesmo a atribuir ao Satyricon uma data muito mais tardia. Um erudito mais precavido atribuiu a obra a um bispo de Bolonha do século V! Nem sequer se sabe ao certo se o nome original da obra era mesmo Satyricon. Em meio a todas essas brumas de dúvidas, só uma certeza perm neceu unânime. É a obra mais original da literatura latina. Aquela que traz mais fundo a marca da personalidade de um autor. Coisas assim a gente costuma chamar, hoje, de obrasprimas.

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Não adianta. A literatura latina é pálido reflexo da grega, com a qual mantém uma relação espetacular, de original para espelho. Virgílio já está todo em Homero e Teócrito. Horácio é Alceu, Safo e Píndaro. Cícero é Demóstenes. Ovídio é uns alexandrinos. Tácito e Tucídides. Todo escritor romano parece algum grego. Claro. Em literatura, é a forma que é social. E o elemento material transmissível, a concretude do processo criativo. As formas e que são o material herdável. E da literatura grega a latina recebeu todas as suas formas. Seus designs de texto. Seus

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programas. Seu software morfológico. Suas configurações desejáveis. Suas Gestalts significativas. Nesse quadro de dependência semiótica, alguns momentos de originalidade romana: o teatrólogo Plauto, o poeta Catulo, o satírico Marcial, o elegíaco Propércio, quem sabe. Isso tudo, porém, talvez, não tenha muita importância. Em arte, o conceito de originalidade é muito recente, tendo surgido com a Revolução Industrial e o romantismo, que a expressa. A maior parte do que chamamos “obras de arte” são aproximações a um modelo considerado padrão de performance: a humanidade é clássica, um mundo romântico é indesejável, porque ingovernável. A felicidade do escritor romano era poder reproduzir, em latim, as proezas e feitos de algum escritor grego do passado, que ele tivesse tomado por paradigma. Nesse sentido, a literatura romana é clássica por excelência. Para nós, homens do século XX, esse mundo reflexo lembra o folclore, onde a tradição é tudo e a insurreição do arbitrário do talento individual é vista e tratada como tal, um ligeiro desequilíbrio que o peso da inércia logo tratará de reconduzir aos canais competentes da boa e verdadeira forma, aceitável e reconhecível por todos. Mas isso são complicações modernas. Os romanos não sofriam com isso. Seu universo verbal e literário era bilíngüe, grego e latim. E era na Grécia, dominada militarmente, que os jovens romanos iam completar sua educação, como, hoje, vamos fazer o mesmo na Europa ou nos Estados Unidos.

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roma romance

Pelo menos no Ocidente (a China é outra história), o romance, enquanto forma, parece ter nascido das variações retóricas escolares em torno de fatos históricos, prática habitual no ensino da oratória no mundo greco-romano. Ironia: a história (a ficção literária) nasce da Historiografia, o discurso que pretende ser o relato/espelho fiel da História. Nesse caso, dá pra dizer que a “mentira” nasceu da “verdade”, da qual a mentira não passaria de uma versão romanceada. Depois de Tucídides, seco, racional, “científico”, a historiografia grega começa a ser influenciada pela linguagem altamente cultivada das escolas de retórica, e vai virar alguma coisa a meio caminho entre a ciência e a arte, entre a “verdade dos fatos” e as belezas da fantasia, a tal ponto que o romano Quintiliano pôde dizer que os historiadores gregos “tomavam tantas liberdades quanto os poetas”. Neste território furta-cor, nesta twilight zone, entre a História e a história, nasceu o romance. A saga sobre-humana de Alexandre Magno, por exemplo, produziu toda uma linhagem de “histórias” meio-reais, meio-fantásticas, híbridos centauros, sereias, esfinges, das quais, só nos chegaram notícias. Mas o precursor grego de Petrônio teriam sido as Milésias, ficciones erótico-pornográficas, ambientadas na cidade de Mileto e atribuídas a um certo Aristides de Mileto (século II a.C). Quem não gosta de sacanagem? As Milésias tiveram grande irradiação no mundo mediterrâneo, e chegaram a ser a leitura predileta dos soldados romanos. Em Roma, quase um

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século antes do Satyricon, foram traduzidas para o latim pelo historiador e orador Lucius Cornelius Sisenna, ao que tudo indica, o precursor imediato de Petrônio. Além das Milésias, este texto romano parece dever a outra vertente helênica, de maior complexidade textual, a chamada sátira menipéia, tipo de texto que alternava partes em prosa com partes em poesia, criando uma espécie de diálogo, intratextual, entre dois discursos de natureza, fins e efeitos distintos, o chamado prosimetrum, cuja invenção os antigos atribuíam ao filósofo Menipo de Gandara, que viveu por volta do século III a.C. Uma das características da menipéia era o monólogo, muito freqüente no Satyricon. Mas nada disso afeta a originalidade e a primazia do romance de Caius Petronius: até segunda ordem, o Satyricon é a primeira obra da literatura ocidental que podemos chamar propriamente de romance. Dele descendem todos, do Decameron de Bocaccio à picaresca espanhola do barroco, do romance inglês do século XVIII a Balzac, de Flaubert a Joyce. Há, portanto, uma espécie de justiça etmológica no fato de o vocábulo “romance” trazer dentro de si o nome de Roma. Como se sabe, a palavra “romance”, vem do advérbio latino medieval romanice, isto é, “em romântico”, em língua vulgar, palavra cunhada na Idade Média quando as narrativas de ficção eram escritas em língua vulgar, em contraste com as obras ditas sérias, escritas em latim. Roma, romance. Nada mais justo. Foi com o Satyricon que o homem ocidental começou a apanhar a vida através dessa forma muito singular que, só no século XIX, se transformou numa espécie de O Maior de Todos os Gêneros, a epopéia burguesa da iniciativa privada e da vida particular. Poucos livros tiveram tão próspera descendência.

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baixo latim, baixo-ventre: o código dionisíaco Parece haver algum mistério no fato de, do Satyricon, só nos ter chegado, essencialmente, o Banquete de Trimalcião, fragmentos dos capítulos XV e XVI da obra original. O Satyricon, para nós, é um texto onde, sobretudo, se come. E como se comia naquela Roma Imperial! Comia-se tudo, animais da terra, aves, peixes, salsichas, plantas, frutas, um apetite universal, absoluto, até o limite da fome. Bebia-se vinho em quantidades inverossímeis. E Roma, o imperialismo romano, devorando o mundo mediterrâneo, o trigo da Sicília e do Egito, os figos da África, o mel da Grécia, a pimenta do Oriente. A devoração do mundo, a elefantíase do desejo e da gula. O Satyricon fala a linguagem do baixo-ventre, sob o signo da orgia, da bacanal, da embriaguez, de Dionísio, da confusão carnavalesca de todos os apetites. Este código devoratório do Satyricon encontra sua contrapartida numa espécie de complemento excretório: o Satyricon é todo percorrido por alusões ao ato de cagar, vomitar e mijar. Trimalcião chega ao ponto de comentar suas dificuldades de evacuar diante de seus convivas que devoram um javali. Comer, cagar: o Satyricon come e caga. Como todo ser vivo. 6

menipéia, picaresca, carnaval Quem nunca leu Petrônio não conhece as delícias do latim,

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o sumo, o suco, o tutano, o perfume desse latim ágil, vivo, vulgar, malandro, espertíssimo, único. O latim que aprendemos nas escolas (quando havia latim) era aquela coisa pesada, retórica, altamente artificial, dos chamados “grandes clássicos”, Cícero, Virgílio, César, Ovídio, Horário, Tito Lívio. Mal conseguimos imaginar a milionária riqueza verbal da cultura greco-latina, baseada na retórica, na tradição escolar da oratória, meticulosa acumulação de saberes verbais, que começa no século V antes de Cristo e só termina com a queda do Império Romano, no século V depois de Cristo. Mil anos de repertório! Até as vanguardas do início do século XX, pouca coisa inventamos de novo em relação à civilização greco-latina: recursos de estilo, figuras de linguagem, a distinção entre poesia e prosa, gêneros literários, formas de dizer, moldes do sentir e do pensar, esquemas mentais, tudo devemos a esses gigantes em cujos ombros estamos trepados. Essa cultura, claro, era altamente aristocrática. Uma aristocracia cria, naturalmente, uma linguagem aristocrática que a expresse enquanto grupo social. No caso de Roma, do que nos chegou, pouquíssima coisa tem sabor popular, quase nada sabemos de como se falava nas ruas, nos mercados, nas tabernas, nos lupanares, nas oficinas, nas esquinas, no interior das casas. E é desse latim que descendem o italiano, o francês, o espanhol, o português... Traços de latim vivo, vulgo latim vulgar: o comediógrafo. Plauto, o lírico Catulo, cartas de Cícero, o satírico e epigramático Marcial. E só. Nesse quadro, Petrônio discrepa. Nas falas dos personagens do fabuloso banquete de Trimalcião, vemos desfilar um latim vivo, direto, o raro do reles,

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enfim, diante de nós. Expressões corriqueiras. Torneios familiares. Locuções proverbiais. Frases feitas. A língua viva, na boca de pessoas vivas. Por isso mesmo, o latim de Petrônio, apesar da sua precisão, é particularmente difícil, um latim concentrado, onde cada palavra remete a uma instituição, a um hábito da época, a um gesto preciso. Pragas. Invocações religiosas. Fórmulas mágicas. O Satyricon é rico de raridades. Nenhuma obra da literatura romana que nos chegou apresenta número tão elevado daquilo que a filosofia chama apax legomena, palavras que só aparecem uma vez, nesse autor, numa dada obra. Em nenhuma outra obra da literatura latina, encontramos palavras como baliscus, matus, carica, embasiceuta, scordalia, mixcix, bucolesias, caldicerebrius, laecasin e centenas de outras que se perderam no tempo, como plumas ao vento. O texto de Petrônio, refletindo uma cultura bilíngüe, grega e latina, está eivado de palavras e expressões gregas, que deviam ser correntes no meio em que ele vivia. Tanto que os nomes dos personagens do Satyricon são todos gregos, com subsentidos significativos para seu público. Ascilto, em grego, quer dizer “infatigável”. Eumolpo, “canta bem”. Giton quer dizer “semelhante”. Encolpo dá a idéia de “passividade”. Outros personagens se chamam “Psyche”, “Hermeros”, “Echion”, “Agamenon”, “Phileros”, todos nomes helênicos, que funcionam como máscaras verbais no carnavalesco e carnavalizado romance de Petrônio. O nome de Trimalcião (Nero?) é um composto burlesco greco-semita: tri, “três vezes grande”, e malkion, em semita, “rei”, o imensamente ridículo três vezes rei.

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No caso de Petrônio, esse latim, salpicado de grego, estava a serviço de um talento (ou diremos gênio?) narrativo, de que mal podemos fazer idéia, dada a natureza fragmentária do Satyricon. Seja como for, ainda não foi superada a capacidade de Petrônio em marcar o caráter, e até a profissão e a origem social, de um personagem pela linguagem que usa. O Satyricon é uma galeria de tipos, o liberto arrivista e cúpido, o mestre de retórica, pedante e livresco, o eunuco bêbado, o ridículo nouveau riche, o cínico, o amoral aproveitador dos esbanjamentos de uma sociedade absurdamente desigual, um carnaval de máscaras e fantasias, uma polifonia. Acrescenta à riqueza do texto o fato de o Satyricon conter em seu fluxo de prosa inúmeros trechos em poesia, metrificados: é o que se chama de “menipéia”, uma forma mista, compósita, híbrida, coincidentia oppositorum. No Satyricon, entre outras coisas, uma sátira ao ensino retórico, a prosa é plana, vulgar, popular, coloquial. Os poemas são inflados de uma retórica beirando o burlesco e o ridículo. Ao tradutor que quer devolver um vivo aos vivos, uma tarefa ingrata. Entre trair Petrônio e trair os vivos, escolhi trair os dois,único modo de não trair ninguém. A concisão extrema do latim obriga a alongar certas frases para que não se tornem incompreensíveis ao leitor atual. I Impossível entender o Satyricon sem ter alguma noção das instituições da Roma escravagista, tão distintas das nossas. Gestos, hábitos, significados, tudo nos é tão estranho quanto num romance de ficção científica. O que nos aproxima de Petrônio, e nos une, é a presença forte de uma condição humana, uma humanidade feita de grandezas e baixezas, de esplendores e misérias, coisa, aliás, que o

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romance vem fazendo desde que o Satyricon nasceu, e deu o primeiro exemplo.

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Um texto bastardo

Paulo Leminski


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Joyce é o maior prosador do século XX. Semelhante afirmação está sujeita a dois tipos de contestação, extr mos. Não é bem assim. Maior, em que sentido? Afinal, há Proust. Há Kafka. Thomas Mann. — Faulkner! No terreno ideológico, as objeções se multiplicam pela infinita imbecilidade que caracteriza o pensamento ideológico. — Solidão aristocrática. — Insensibilidade aos problemas reais do seu povo. — Elitismo hermético. — Intelectualismo pedante e cosmopolita. Do outro lado, cada vez mais abundantes os que objetam. Não é o maior prosador do século XX. É o maior prosador que jamais houve. — Maior que Cervantes? E Quevedo? — E Balzac? — E Stendhal? E Flaubert? — E Dostoievski?! E Tolstoi?! Em que sentido, nesse time de gigantes, Joyce vem a ser o maior? Primeiro, claro, pelo insuperável domínio dos poderes de som e sentido da língua em que escreve: a máquina material com que se expressa a alma de James Joyce só tem paralelo nos poderes sinfônicos de um Beethoven, de um Wagner, de um Stravinski (e esse domínio sobre a arte é um domínio sobre a vida). Depois, pela coerência arquitetônica única que conseguiu

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imprimir ao conjunto de sua obra o autor de Dublinenses (1906), Retrato do Artista Quando Jovem (1914), Ulysses (1922) e Finnegans Wake (1939). Os dois primeiros livros, um, uma coletânea de contos, e o outro um romance de formação (um Bildungsroman, como dizem os alemães, grandes cultores do gênero, que começa, no século V, com as Confissões, de S. Agostinho), os Dublinenses e o Retrato ainda cabem dentro da estética textual do século XIX. Ulysses, porém, é puro século XX, o século das megalópoles, das massas, do comunismo, do fascismo, o século do cinema, do rádio, da psicanálise, da bomba atômica, que encerrou a guerra, que começou no ano em que foi publicado o Wake. Mas o Ulysses ainda é, apesar de tantas inovações, um romance, mesmo que seja o romance para acabar com todos os romances, do dito célebre. O Wake já é um texto para o século XXI, prosa, poesia?, o quê? Ulysses foi difícil (é cada vez menos). O Wake, cápsula do tempo, é ilegível (por enquanto). A irradiação da obra de Joyce atinge uma área imensa na prosa de ficção do século XX. Suas conquistas técnicas, como o monólogo interior, no Ulysses, fazem, hoje, parte do repertório comum, do parque de recursos de qualquer ficcionista que preze seu ofício. Hoje em dia, o monólogo interior já foi incorporado até pela ficção dita comercial, de consumo de massas: em best-seller mundial, James Clavell tira um belo partido desse recurso, outrora, de vanguarda. Ulysses /Joyce é influência determinante na prosa criativa deste século. E a lista dos influenciados, direta ou indiretamente, impressiona pela excelência literária: Faulkner, Beckett, Virgínia Woolf, Musil (O Homem Sem Qualidades), Broch (A Morte de Virgílio), Guimarães Rosa, Cario Emílio Gadda, Augusto Roa

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Bastos, Lezama Lima, Cabrera Infante, Burgess... 2

Impecável a coerência crescente da engenharia de vôo entre as quatro obras-primas de Joyce. Nos trinta anos entre os Dublinenses e o Wake, sempre escreveu-se o mesmo livro, o mesmo universo sempre levado a graus cada vez mais agudos de criatividade verbal e inventiva arquitetônica. O mesmo Universo: a Irlanda, a Irlanda, a Irlanda, maldita ilha maravilhosa, duende, sempre rebelde e sempre submissa à Inglaterra, terra de bêbados e excêntricos, de hipócritas e humoristas, com toda a parda mediocridade pastosa de Dublin, sua capital, Irlanda papista, abafada debaixo de um catolicismo retrógrado, castrador, aldeão. O mesmo Universo: vidas rotineiras, sem grandeza, sem horizontes, sem sentido. Joyce só partiu para um exílio espontâneo pela Europa (Paris, Zurich, Trieste) para melhor cultivar, à distância, sua obsessão pela Irlanda, execrada e idolatrada na própria veemência dessa execração, idéia fixa, agenbite of inwit, memória, o único tempo possível. Os temas, os tipos, e até frases inteiras se repetem, crescendo, dos Dublinenses ao Wake. Joyce nunca saiu da Irlanda. Nunca saiu de sua obra. 3

Os Dublinenses: a Irlanda, vista do lado de fora. Retrato do Artista: a Irlanda, vista de dentro. Ulysses: entrechoque entre o fora e o dentro, monólogo interior, o Dia, a História. Finnegans Wake: síntese dialética entre o fora e o den-

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tro, pura linguagem, a Noite, o Sonho. Na triunfal cavalgada das valquírias dessas quatro obras -primas, Giacomo Joyce faz às vezes, talvez, de um filho bastardo, fruto de um prazer furtivo, de um amor clandestino, de um erro da juventude, de uma fantasia erótica. Alinha, assim, com os livros de poemas, Chamber Music e Tomes Penyeach, performances líricas de uma maestria métrica e verbal extraordinária, mas apenas um pouco mais que isso, no século dos Cantares de Ezra Pound e do Waste Land, de T. S. Eliot. Ou com Exiles, a peça que Joyce quis fazer, mas o mundo do teatro nunca amou. Mas, por favor, não façamos pouco de Giacomo Joyce. Quando o escreveu, Joyce, terminando o Retrato e grávido do Ulysses, já era, visivelmente, um dos maiores escritores da Europa. Em Giacomo Joyce, já dá pra ver o surgimento dos germes do monólogo interior, a técnica central do Ulysses e uma das grandes conquistas da ficção do século XX. Joyce teria descoberto o recurso em um obscuro romance francês do século passado, Les Lauriers Sont Coupés (1887), de Édouard Dujardin, figura de menor importância, ligada ao movimento simbolista. Esse monólogo interior parece consistir, sobretudo, numa súbita (e não anunciada) passagem da terceira para a primeira pessoa no universo do discurso, uma passagem direta, sem índices do tipo, disse consigo, pensou, refletiu, e outros verbos que acusam a interioridade de um emissor. A ficção clássica, realista, naturalista, repousa sobre a falácia da objetividade, fundada, lingüisticamente, na terceira pessoa, no pólo do ELE, o pólo das coisas, como se as próprias coisas falassem de si em lugar de um narrador. E a linguagem de

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Deus, o narrador onisciente. O monólogo interior representa um princípio de economia narrativa. E, conseqüentemente, um aumento de velocidade no tempo do texto e da leitura. Alguns traços dele em O Vermelho e o Negro, de Stendhal (1830). E em Dostoiesvski (1821-1881). O monólogo interior, de resto, representa uma espécie de carnavalização do eixo pronominal do relato. A tarde está linda. Preciso dizer a ela tudo o que sinto. Você não perde por esperar. Ela, eu, você: sem aviso, sem hierarquia, como no fluxo da vida e da consciência, onde eu, tu e ele podem ocupar o mesmo lugar no espaço tempo, sem antes nem depois. No quarto bloco de Giacomo Joyce, a voz que diz alguém quer falar com a senhorita já comparece sem aviso, como uma página de Ulysses. 4

Das circunstâncias particulares em que foi escrito, que fale Richard Ellmann. Da paixão do professor maduro pela bela aluna judia italiana de Trieste. Dos destinos do manuscrito quase perdido, não fosse a solicitude de um irmão. Para nós interessa, sobretudo, encontrar o Joyce que conhecemos e aprendemos a admirar, senhor de todas as forças da língua inglesa, num momento fragmentário, em mosaico, isomórfico com a situação pessoal que Joyce vivia naquele momento. Giacomo Joyce é uma novela, cinematográfica, ideogrâmica, como uma peça No, feita de flashes, um grande poema de amor, uma vertigem vista de soslaio.

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Neste texto, o arquiteto de Ulysses ensaiou, orquestrando relâmpagos. Bem-vindo de volta à casa, Giacomo Joyce.

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taiyo to tetsu

entre o gesto e o texto

guerra sou eu guerra é você guerra é de quem de guerra for capaz guerra é assunto importante demais para ser deixado na mão dos generais (p. leminski, 85)

Paulo Leminski


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Certo dia de novembro de 1970, os jornais da capital do Japão estamparam em suas colunas policiais uma notícia, no mínimo, inquietante. No dia anterior, um pequeno grupo de praticantes de artes marciais tinha invadido, com violência, as dependências do Quartel das Forças Armadas de Tóquio. O líder do grupo, um homem forte, aparentando uns quarenta anos, acompanhado de um jovem, chegou até o gabinete do Comandante da praça, diante do qual os dois cometeram harakiri, o suicídio ritual da classe samurai. Antes do gesto supremo, acrescentaram os periódicos, o líder dos invasores leu para a tropa que se encontrava no local uma proclamação onde denunciava violentamente a ocidentalização, a decadência dos códigos de honra tradicionais do País do Sol Nascente. E a tropa pôs-se a rir. O grupo invasor era o Tate no Kai, a Sociedade do Escudo, um exército privado de cultores de artes marciais, organizado e dirigido pelo escritor Yukio Mishima1, que, assim, declarava guerra, sozinho, ao Exército japonês. 1 Na manhã do dia quando se matou, Mishima enviou a seu editor o último volume da sua tetralogia, O Mar da Fertilidade.

Yukio Mishima (pseudônimo de Kimitake Hiraoka) nasceu em Tóquio, de família samurai, em 14 de janeiro de 1925, filho de um oficial do Ministério da Agricultura. Formou-se em Direito e, depois do sucesso de seu romance Confissões de uma Máscara (Kamen no Kokuhaku), em 1949, entregou-se à literatura e outros excessos. Sua obra compreende mais de doze roman-

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ces, Confissões de uma Máscara, Sede de Amor (Ai no Kawaki), Morte no Meio do Verão, Kinkakuji, Sei no Jida, Kinjiki, Higyo, focalizando a dissolução dos costumes tradicionais no Japão do pós-guerra. Deixou mais de uma centena de narrativas curtas. E peças para o teatro Nô e Kabuki, os estilos ancestrais do teatro nipônico (Peças Modernas para o Nô). Em 1952, Mishima faz uma viagem à Grécia, onde, em contato com a beleza da estatuária helênica antiga, seu pessimismo de derrotado toma nova direção com a descoberta do próprio corpo e da “força do corpo humano exposto à luz do sol”. Foi ator num filme de gangsters. Gravou discos. E participou de debates em programas de TV, tornando-se uma celebridade nacional. Uma viagem a Nova Iorque enriquece ainda mais o complexo de suas idéias. É quando, conhecendo o existencialismo, desenvolve o “nihilismo ativo”, doutrina na qual o suicídio aparece como o supremo gesto de liberdade humana. Seu homossexualismo de tipo dórico, militar, másculo, tinge-se cada vez mais de colorações sadomasoquistas, transparentes em seu exibicionismo narcisista de tantas fotos, onde se compraz em posar nu, a musculatura de halterofilista saltando sob a pele, a espada samurai a meio caminho entre a bainha e o olhar do observador, objeto sexual absoluto, sujeito sexual absoluto. Em Mishima, realiza-se, em carne viva, o drama essencial da inter-subjetividade, no qual olhar é um ato agressivo de apropriação do objeto pela consciência de outro, no qual ser olhado é sinônimo de estar morto. No pleno exercício do existir, as pessoas são invisíveis. Só a morte lhes dá a opaca presença absoluta de um objeto do mundo, de uma obra de arte, por exemplo.

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Mais que fazer apenas obras de arte, Mishima quis se fazer todo, corpo, história e vida, uma obra de arte, entidade além e acima da mudança, da corrupção e da perda de sentido, condição natural de todos os seres deste mundo sub-lunar. Da fase novaiorquina de Mishima são Gogo no Eiko (1963) e Sado Koshakufujin (1965). Sol e Aço, de 1970, manifesto e síntese de seu pensamento final, foi seu último livro. Com tanto texto, engana-se, porém, quem imaginar Mishima como pacato escriba, todo dedicado a seus livros e seu trabalho literário, nos moldes erasmianos do scholar ocidental, último descendente do monge beneditino, a meio caminho entre o céu e o texto, Além e Signo. Cultor das artes marciais, Mishima viveu entre o sol e o aço. Praticava karatê e a esgrima Kendô (da qual era faixa preta quinto grau). Na procura do máximo de seu limite físico, fazi halteres. Narcisista, aparece em suas fotografias mais conhecidas, quase nu, músculos à flor da pele, um super-homem pronto para a batalha final consigo mesmo. Que perdeu-ganhou. Quando o intelectual ocidental parte para a ação, sua sereia, vai normalmente para a política, esse simulacro da ação, que substitui a verdadeira ação, que é a guerra, pelos vai-e-vens das conversações e negociações, próprias da classe dos comerciantes. Mishima era “um primitivo”. Um primitivo sofisticadíssimo, herdeiro de uma verdadeira civilização, alguma coisa pela qual vale a pena morrer. Antes de condenar Mishima, vamos perguntar: e nós? Será que nós temos alguma coisa pela qual valha a pena morrer? 2

O isolamento insular e a benigna (porque buscada, não imposta) influência cultural chinesa criaram no Japão uma das

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civilizações mais originais da História, cultura de uma coerência interna única. Onde todos os aspectos da vida estão (estavam?) integrados numa harmonia geral. Poder, sociedade, religião, arte. Uma civilização que é, ela toda, uma gigantesca obra de arte viva de mil anos. Por isso ou por pura sorte geográfica, o Japão foi a única cultura da África, América e Ásia que escapou incólume da agressão planetária que o Ocidente gosta de chamar, pomposamente, de Grandes Descobrimentos, o mais vasto ato de rapina da História. Assim que percebeu o que significava a chegada dos navegadores e missionários, a elite governante do Japão, o Xogun à frente, fechou o país, ferozmente, a qualquer contato com o exterior. Um ovo que só a Revolução Industrial em 1865 começou a quebrar. E nem se sabe se quebrou: o Japão foi o país não europeu que melhor soube deglutir a Revolução Industrial. Era a integridade de uma cultura que Mishima defendia quando abriu o ventre diante do Comandante do quartel de Tóquio, escrevendo com aço na pele da sua vida as letras de sangue que diziam: EU NÃO CONCORDO. Mishima pertence a uma espécie particular de revoltados, encontradiça entre os artistas: os revolucionários para trás, os utópicos nostálgicos. “Os artistas são as antenas da raça”, de Ezra Pound, sempre tem sido entendido num sentido futurista, “progressista”, pra frente. O que talvez seja um equívoco. Nem Pound era tão “progressista” assim... Como não o eram Fernando Pessoa, Eliot, Yeats, Gottfried Benn, Guimarães Rosa, Drieu, e, curiosamente, Pasolini, que dizia trocar uma florzinha de terreno baldio por todas as instalações industriais da Itália. Mishima era um artista. E os artistas são particularmente sensíveis às alterações do meio ambiente. O que não leva necessariamente a um triunfalismo futurista. Quem foi que disse que a felicidade se encontra lá na

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frente? O progresso (com que horror escrevemos esta palavra hoje!) é uma invenção da burguesia dos séculos XVIII e XIX, que sempre confundiu avanço da Humanidade com a prosperidade dos (seus) negócios. 3 Quando a Marinha Imperial japonesa e sua aviação, num tresloucado gesto, atacou de surpresa e afundou a frota norte -americana do Pacífico, em Pearl Harbor, no Havaí, o samurai Yukio Mishima tinha dezesseis anos. E vinte, quando, à sombra dos cogumelos atômicos de Hiroshima e Nagasaki, o Japão se rendeu, depois de anos de vitórias, senhor do Extremo Oriente. O Império do Sol Nascente foi ocupado, a seguir, pelos Estados Unidos, que desmilitarizaram o país e incluíram-no em sua esfera de influência, depois de obrigar o Imperador, até ali um deus, a proclamar sua humanidade e apoiar uma Constituição que introduzia bruscamente as instituições parlamentares anglosaxãs num país ainda meio feudal, apesar da industrialização. Esse foi o quadro em que Yukio Mishima se tornou adulto, um mundo estraçalhado, uma cultura estuprada, um campo de ruínas, algo comparável ao México dos aztecas, depois da vitória de Cortez. A obsessão pela morte tem raízes nesse quadro histórico e na tradição da sua classe social, na qual o seppuku, o suicídio ritual harakiri, sempre foi distinção e privilégio de casta: tamanha a rigidez das relações sociais no Japão tradicional que os conflitos não permitiam negociações nem compromissos, exigindo a pura auto-eliminação dos envolvidos. Nisso, o Japão é único: não há paralelos em nenhuma civilização humana de uma institucionalização tão radical do suicídio. Nisso, a solução final de Mishima se distingue, essencialmente, do suicídio de um Maiakovski ou de um Iessiênin. De Drieu La Rochelle (parecido com ele, em tantos traços). De Stephan Zweig. De Virgínia

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Wolf. De Van Gogh. Hart Crane. De Walter Benjamin. De Ganga Zumba. A auto-imolação, para ele, era uma obra de arte, algo a ser preparado, saboreado por antecipação, a chave de ouro de uma vida, um clímax. Ou, para falar em jargão freudiano, um orgasmo de Tânatos. Para a morte, Mishima se preparou, treinando halteres, desenvolvendo os músculos, treinando artes marciais, desenvolvendo ao máximo suas potencialidades, enquanto matéria. Quando a lâmina, fazendo um L, entrou em sua barriga, naquela tarde de 1970, no Quartel General de Tóquio, a morte, longamente namorada, recebia um presente régio: um corpo atleticamente perfeito, pleno, no auge de sua forma e de sua força, como ele queria. E uma mente lúcida, cultivada, perfeitamente sabedora do que fazia. Em Sol e Aço, acompanhamos a luta minuciosa de Mishima para ultrapassar as contradições entre corpo e espírito. E, com ele, aprendemos que só a morte supera, para sempre, essa contradição. 4

“Literatura” é um conceito (ou preconceito) ocidental moderno, uma categoria européia, baseada na produção textual da França, principalmente com a concorrência, meio discrepante, da tradição anglo-saxã, milionária de valores e performances textuais. Outras literaturas da Europa, a espanhola, a alemã, a italiana, a russa, apesar de cumes insuperáveis, sempre ficaram como coisa ligeiramente periférica e subsidiária. Quantos gênios e obras-primas não ficaram desconhecidos e obscuros apenas porque tiveram a desgraça de acontecer em húngaro, em sueco, em gaélico, em albanês, em íidisch, em polonês, em

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galego, em finlandês, em holandês, em tcheco, em português... Como avaliar, valorar, com critérios ocidentais, francocêntricos, obra de uma literatura tão remota e autônoma quanto a japonesa, devedora, em muita coisa, da literatura chinesa, mas autóctone na criação de formas como o Nô e o haiku, exclusivamente nipônicas? Classicismo. Barroco. Neo-classicismo. Romantismo. Realismo. Parnasianismo. Naturalismo. Simbolismo. Vanguardas e modernidade. Esse quadro histórico nos é tão cômodo quanto um chinelo velho. E baseia-se na evolução da literatura francesa. Quando abordamos a literatura japonesa, porém, esse esqueminha mental que mediterrânea e subterraneamente, dirige nossa lógica, simplesmente não funciona. Depois de 1867, abertura dos portos com a Era Meiji, o Japão sofreu o impacto literário de algumas novidades ocidentais. Mas só o realismo-naturalismo representou novidade mesmo. A literatura japonesa em geral é de caráter meio lírico, meio fantástico, do teatro à ficção, da poesia ao diário (gênero maior, no Japão). Com seu credo de “literatura colada à vida cotidiana imediata”, o realismo-naturalismo trazia a pobreza essencial do projeto de vida burguês para dentro da literatura: o realismonaturalismo é o triunfo da razão burguesa, contábil, pragmática, imediatista, imanente. Os textos de Mishima respiram um outro tempo cultural. Sol e Aço não sabemos dizer se é poesia ou prosa, livro de memórias ou ensaio filosófico, confissões de uma máscara que traz por trás de si outra máscara, outra máscara, outra, máscaras sobre máscaras. Seu andamento lembra Sendas de Oku, e outros diários do grande haikaisista Bashô (séc. XVII). A diferença é que, em Bashô, há tristeza e melancolia por trás da beleza.

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Em Mishima, há desespero. O desespero pessoal. O desespero coletivo da derrota na guerra. Um desespero que quer chegar perto da vida, tão perto quanto chegou do coração do samurai aquela lâmina, naquele dia de novembro de 1970. 5

Sol e Aço é, basicamente, a reflexão de um poeta e atleta sobre as relações entre o corpo e a mente. Entre o fundo e a superfície. O dentro e o fora. A vida mental e a existência corpórea. Para nós, ocidentais do século XX, esse tipo de reflexão não pode deixar de lembrar as conquistas da Fenomenologia, as catedrais conceptuais de Husserl, Valéry, Sartre ou MerleauPonty, horas e horas de cerrado raciocínio metódico tentando flagrar, com exatidão, os misteriosos matrimônios e divórcios entre o exterior e o interior, as fraquezas onipotentes do Eu que pensa e a selvagem liberdade do mundo que é pensado. Mas que diferença entre as teias puramente lógicas dos mestres ocidentais e o percurso de Sensei Mishima! O espírito dos ocidentais pensa a matéria, o Fora. Num gesto muito mais genial, porque mais global, essencialmente radical, Mishima resolve o problema transformando seu espírito em matéria, matéria pensante, inteligente, quando se entrega de corpo e alma à prática do kendô, do karatê e do halterofilismo. Para fazer isso, Mishima nem precisou sair de casa. Essa sabedoria o Japão já tinha, sob a forma de “Bushi-dô”, o caminho do guerreiro, aquele código global de postura e comportamento que caracterizava a casta samurai (e que, de um jeito ou de outro, acabou por impregnar a mentalidade de todos os japoneses em geral). Um dia, no Japão, o maior dos mestres de

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haikai sentenciou: NÃO SIGAM AS PEGADAS DOS ANTIGOS. PROCUREM OS QUE ELES PROCURARAM No melhor estilo oriental, Mishima apenas descobriu sozinho o tesouro que estava enterrado debaixo dos seus pés. 6

Vírgulas. Dois pontos. Ponto de interrogação. De exclamação. Travessão.Aspas. Essas coisas gutenberguianas não existem no japonês clássico, onde as frases não começam com maiúscula nem terminam com ponto final. Saem do nada e só terminam diante do vazio zen da página, como se todas as frases terminassem num precipício de reticências. A mente nipônica se move num universo material regido por leis distintas das que regem nosso mundo textual e conceptual. Mal conseguimos conceber um universo textual onde as marcações gráficas consagradas pela imprensa não têm vigência: no texto japonês nem há espaço separando cada palavra, continuum ininterrupto como na fala, sílaba após sílaba forçando jogos de palavras, ressonâncias, ecos colidindo, palavras e sentidos se acavalando em polinômios vaporosos. Com a ocidentalização depois da Era Meiji (1867), o Japão adotou as convenções da imprensa gutenberguiana, na medida do possível. Mishima é um japonês do século XX, até muito influenciado por leituras de escritores do Ocidente (Novalis, Amiel, Yeats, Ícaro!). Mas o estilo dos movimentos do seu pensamento acusa um acentuado sabor nipônico. As categorias da lógica de Aristóteles, hoje sabemos, eram apenas as categorias da língua grega. Outra é a “lógica” de quem

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pensa em japonês. A língua japonesa, por sua própria natureza, favorece os longos períodos, com muitos gerúndios, ligados, em subordinação, por uma máquina de conjunções que não correspondem exatamente aos nossos “mas”, “porque”, “se”, “logo”, “embora”, “por isso”. E é nessa máquina que se monta qualquer lógica, esse sinônimo de sintaxe. Penso nisso ao tentar, desconcertado, acompanhar em Sol e Aço, a lógica peculiar com que Mishima sai de um pensamento para o outro, de um fato para uma conclusão, de uma premissa para sua conseqüência. Até que ponto esse meu desconcerto vem das singularidades da língua e da lógica japonesas, até que ponto vem do próprio Mishima, não sei ao certo. De qualquer forma, quem quer que já tenha estudado uma língua muito antiga ou muito remota sabe que não existe uma “lógica universal” sobre a qual as línguas se conformariam

mais ou menos: cada idioma (ou família de línguas) postula uma lógica particular, exclusiva, intransferível, um mini -universo fechado de significados.

Palavras como “problema”, “ironia”, “lógica”, “natureza”, “hipótese”, “culpa”, “honra”, “forma”, “contradição”, “essência”, “conceito”, “abstrato”, “causa”, “efeito”, “ordem”, para nós tão óbvias e indispensáveis para pensar o mundo e a vida, são apenas conceitos greco-latinos, ocidentais, mediterrâneos, e podem não ter equivalentes em outros sistemas lingüísticosculturais2. 2 Conceitos são artefatos, coisas (coisas não estão sujeitas a tradução): “Páscoa”, “filosofia”, “alienação”, “ying”, “yang”, “zen”, “jazz”, “totem” (do ojibua, língua pele-vermelha), “tabu” (do polinésio), “jihad”, “mitzvah”, “faslnefas”, “milagre”, “axé”, “domingo”, “panema”, “esprit de corps”, “romântico”, “júri”, “guilate”, “missa”, “dengo”, “xodá”, “harakiri”.

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Qual nossa possibilidade, por exemplo, de tradução do conceito sânscrito-hindu de “karma”? Em hebraico antigo, havia uma forma verbal que representava, ao mesmo tempo, o pretérito e o futuro. Ainda em hebraico, a mesma palavra “dabar” designa “palavra” e “coisa”: como vivenciar um mundo em que palavra e coisa se dizem com a mesma palavra (ou a mesma coisa?) E que dizer das línguas, como o chinês, ou o tupi, onde não existe o verbo “ser”? O único esperanto, senhores, é a tecnologia industrial. Toda tradução, de certa forma, uma impossibilidade, é sempre uma agressão, um ato de violência, uma brutalidade: toda a mensagem deveria ser deixada em paz no idioma em que foi concebida. 7

No volume El Informe de Brodia, Jorge Luis Borges tem um conto, La Señora Mayor, que me lembra muito o destino que contemplou Yukio Mishima. Ou foi o destino de Mishima que me lembrou La Señora Mayor? Borgeanamente, prefiro não saber. La Señora Mayor é a fábula de Maria Justina Rubio de Jáuregui, filha de um coronel que lutou nas guerras da Independência argentina. No dia 14 de janeiro de 1941, ela completaria cem anos, la única hija de guerreros de la Independencia que no había muerto aún, no dizer do mais inventivo ficcionista que a América Latina já produziu . Nesse centenariamente festivo dia, autoridades, amigos e patriotas resolvem dar uma festa para celebrar, com grande concurso da imprensa, muitos brindes e discursos fervendo de

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civismo e história pátria. Passados alguns dias, arrasada de tanta emoção, La Señora Mayor veio a falecer, la última víctima, diz Borges, de uma batalha que aconteceu no Peru, há quase cem anos atrás. Mishima, suicidando-se em 1970, é a última baixa do Exército Imperial Japonês da Segunda Guerra Mundial, a guerra que ele, samurai, quis lutar, mas, infelizmente, era jovem demais na época. Quando Mishima pratica “harakiri”, o mundo que ele defende já é, há muito tempo, um universo de fantasmas: o Japão é um dos países capitalistas mais avançados, altamente industrializado, norte-americanizado e desmilitarizado, dependendo dos Estados Unidos até para sua defesa externa. Para essa morte-protesto, morte de mártir, morte de monge budista se queimando vivo no Vietnã, Mishima se preparou durante muitos anos. Anos de vergonha e humilhação. De degradação nacional e raiva impotente. De ódio surdo e dentes cerrados. Anos de estupro, invasão e ocupação. Anos de muito texto, romances, contos, peças de teatro. Mas, sobretudo, anos de sol e de aço: anos de halteres, de milhares de quilômetros corridos, de flexões, de apoio de frente sobre o solo, de suor saindo com a força com que sai o sangue de uma veia cortada. De morte, não. Sol e Aço é uma afirmação da vida. De uma vida tão tensa e tão forte que só o Fim poderia ser o Significado. Nem venham com esquemas Freud-psicanalíticos sobre a obsessão de Mishima pelo suicídio. De que valem esses esquemas no interior de um grupo social onde o suicídio não é um fenômeno patológico, uma carência, mas o sinal de uma plenitude, como entre os antigos filósofos estóicos gregos e romanos, que viam na auto-imolação uma afirmação dos poderes da consciência sobre os acasos do destino? Narcisimo. Sadismo. Maso-

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quismo. Reacionarismo. As palavrinhas terminadas em “ismo” com que tentamos dar algum sentido à nossa pobre vida feita de alguns lucros e vagas esperanças não fazem nenhum efeito quando batem nos músculos poderosos de Sensei Mishima. Guevaras, Mishimas: mortos, somos invencíveis. 8 Em Mishima, o percurso de busca, tateando no escuro entre a noite do pensamento e os reflexos do sol no aço das espadas e halteres, entre o doentio da razão pura e os esplendores da pele bronzeada e dos músculos conduzidos a seu máximo desenvolvimento, em Mishima, esse percurso de procura casa, às mil maravilhas, com as sinuosidades da língua japonesa que, ao contrário da chinesa, dura, seca e simétrica, parece se comprazer em caprichosos meandros de vaporosas sinuosidades de incenso, donde extrai sua beleza específica, uma formosura, digamos assim, olfativa, atmosférica, ambiental, em fluida luta contra a morte que o conceito puro representa. O texto de Mishima é todo perfumado de parece-me, tive a impressão de que poderia sentir, nada mais me restava a não ser entregar-me ã necessidade de vir a pensar que, formulações extremamente mediatizadas, cautelosas, especulares, refrações como que gasosas, muito mais complexas do que a brusquidão totalitária de um o homem é uma paixão inútil, a religião é o ópio do povo, o Estado sou eu, de Sartre, Marx ou Luís XIV, o estilo ocidental de emitir o conceito, lapidar concisão herdada da dura lex sed lex do latim, idioma de legisladores e administradores, nossa mãe e superego. O que Mishima apresenta não é uma generalidade. É uma experiência pessoal, intransferível como uma dor de dente, como parar de fumar, como querer ser maior que si mesmo. Sol e Aço: a luta com as palavras. A luta com as armas. A

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luta consigo mesmo. A luta contra o destino. O Amor pelo sol. O texto/testamento do samurai estĂĄ Ă altura do gesto.

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lennon rindo business man make as many business as you can you will never know who i am your mother says no your father says never you’l never know how the strawberry fields il will be forever (Caprichos e Relaxos)

Paulo Leminski


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“que pode um pobre rapaz pobre fazer a não ser cantar numa banda de rock?” (Mick Jagger, dos Rolling Stones, “Street Fighting Man”)

Este livro são dois, Lennon On His Own Write, de 1964 e A Spaniard In The Works, publicado em 1965, estranhas miscelâneas de textos de natureza vária, flash-contos, esboços de peças, poemas nonsense, acompanhados de desenhos, todos marcados por extrema criatividade de linguagem, conduzida ao absurdo por um humor sarcástico e cínico. Quando os escreveu, John estava à frente de uma banda inglesa de rock, os Quarrymen, agora The Beatles, trocadilho que ele inventou, montando beetles, “besouros”, em inglês, com beat, “batida de percussão”, e, certamente, beat generation, beatniks. Nesse momento, Lennon recebia, direta e pessoalmente, o impacto da criatividade de Bob Dylan, músico, escritor e desenhista como ele. Com Dylan, um judeu novayorquino muito mais sofisticado intelectualmente que ele, John aprendeu isso e as coisas, “ouvindo Dylan, descobri que letra de música não precisa ser papo furado”, confessou o beatle que, no princípio, assinava letras que diziam apenas “I Want To Hold Your Hand” ou “She Loves You”. Estava a caminho, e no bom caminho, o poeta que ia fazer, a seguir, a maior parte das letras e versos dos LPs Rubber Soul, Revolver, Abbey Road, e, sobretudo de Sergeant Pepper’s Lonely Hearts Club Band. E, daí, partiria para o vôo solitário de Imagine, Mind Games, até o maravilhoso e fatídico Double Fantasy.

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Lennon foi figura de proa numa geração que produziu, entre os músicos populares, algumas de suas melhores cabeças (Dylan, Zappa, Jim Morrison, Bob Marley; no Brasil, Caetano Veloso, Gilberto Gil; e no mundo?), músicos e ao mesmo tempo, pensadores da coisa da cultura, ligados ao sentido das transformações, artistas abertos a outras artes, agitadores culturais, bons de som, de poesia e de conceito. Os dois livros do beatle ocupam lugar especial no quadro da criação textual da segunda metade do século XX. Pela linguagem, seus textos remetem a James Joyce, o mais radical dos prosadores do século, o Joyce das inovações de Ulysses e das montagens de palavras do Finnegans Wake. Assim que saíram, os livros de Lennon foram traduzidos para várias línguas. E consta até que, na Finlândia, traduziu-os o próprio tradutor finlândes de Ulysses. O “walrus”, porém, declarou que, quando os escreveu, não conhecia Joyce. Sua fonte maior de influência era o Lewis Carrol, da Alice no País das Maravilhas e Através do Espelho, influência fundamental sobre Joyce. A ser verdade essa declaração, Lennon saiu da mesma fonte do pai do Wake. Daquele bizarro professor de matemática que gostava de fotografar menininhas, tinha o estranho hábito de acasalar palavras em híbridos que chamou de portmanteau words, palavras-valise, palavras-montagem. E escrevia como se fosse o senhor de todas as lógicas. 2

“o humor é a vitória do ego sobre o princípio da realidade” (Freud) “quem não tem senso de humor

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nunca vai entender a dialética” (Brecht) O humor da linguagem, traço muito inglês de Lennon e o grande obstáculo para o tradutor, depende de alguns recursoschave. Principalmente, o estranhamento do lugar-comum através da alteração da expressão idiomática. Mas também através do bizarro e do inesperado na lógica ficcional. Além disso, John é muito chegado numa de alterar, a seu babel prazer, a grafia das palavras, criança que estivesse brincando de grudar uma letra, ou tirar, ou trocar as letras das palavras. Este efeito, no humor televisivo brasileiro, é a especialidade de Renato Aragão, o maior palhaço brasileiro vivo, exímio em arrancar as gargalhadas que se dá diante da informação nova, com uma alteração arbitrária do modo de dizer as palavras, graça fonética do Didi dos Trapalhões. Como amostra de estranhamento do lugar-comum, valha o próprio título dos dois livros de Lennon. No primeiro Lennon On His Own Write, acontece a superposição de duas expressões: “in his own right”, no seu direito, e “in his own writting”, com seu próprio punho, montagem que procurei traduzir para “Lennon Com Sua Própria Letra”. No segundo, o jogo é ainda mais complexo: A Spaniard In The Works, “Um Espanhol Nas Obras”, é, na realidade, uma corruptela da expressão idiomática “a spanner in the works”, ao pé da letra, “uma chave-de-fenda nos mecanismos”, mas que designa uma dificuldade súbita, um obstáculo que não estava nos planos. Alguma coisa que tem que ver com as origens da palavra francesa sabotage. Em francês, sabot é “tamanco”. E sabotar, na origem, é “jogar um tamanco para danificar o mecanismo de uma máquina”. Tanto a expressão inglesa “a spanner in the works”, quanto a sabotagem francesa pertencem ao mundo da Revolução Industrial, e trazem conotações de luta de classes, “ludditas”, entre operários,

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os patrões e suas máquinas1. 1 A partir do nome John Ludd, que teria destruído máquinas têxteis por volta de 1780, a expressão “ludditas” designou os membros de um movimento operário inglês (1811) que se organizou para destruir as máquinas das fábricas onde trabalhavam, já que elas provocaram o desemprego e a diminuição da qualidade dos produtos.

“A spanner in the works”: (botar) Formiga no Pudim (de alguém), uma mosca na sopa, por essa você não esperava, uma pedra no caminho? Alice Ruiz, por fim, me tirou do impasse, propondo o imbatível (unbeatable!) Um Atrapalho no Trabalho. 3

O específico do discurso de Lennon parece ser uma subversão sistemática dos códigos de registro da escritura, bem dentro do juvenil espírito de quebra-quebra que caracterizou os anos 60. John não escreve errado: ele, moleque, escreve “erros”. E subverte a grafia dos vocábulos, introduzindo neles ruídos arbitrários, grafitti, deformando a gestalt ortográfica das palavras deixando subsentidos se infiltrarem pelos interstícios das frases. Uma escrita “fria”, nos termos de MacLuhan, uma escrita porosa, como a TV, que convida à participação. Em Um Atrapalho no Trabalho, prosa-pop, prosa da era da TV, do VT clips, VTVTTVTVTVVTTT &tc, arte de arte, o beatle faz gato e sapato das receitas de todos os gêneros, excomunga os lugares-comuns. E, trapalhão, atrapalha todo o andamento do trabalho: uma gota da baba de Dadá, no comportamento textual do “Working Class Hero”.

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Nenhuma fórmula verbal escapa da verve cínica e sarcástica daquele que escandalizou o mundo ao dizer, “somos mais populares que Jesus Cristo”. O conto. A anedota. O poema. A estória da carochinha. De detetive. A peça de teatro. A carta do leitor. A entrevista. O anúncio. A frase de TV. A notícia de jornal. A canção de ninar. Um Atrapalho é caleidoscópio de todas as formas verbais imagináveis, erodidas e erotizadas como paródia. Mas o humor do “Nowhere Man” não é um bom humor. É a graça que nasce do azedume (não há sexo na prosa de Lennon). Em suas fulminantes anedotas, sempre tendentes a estados caógenos, crepusculares, na fronteira entre o inteligível e o ininteligível (“Dividido Davi”, “Os Famosos Cinco Através das Ruínas de Eagora”, “Linda Linda Cremilda”, “Mr. Boris Norris”, “Elerico e Eurique”), o desfecho é sempre trágico ou melancólico, com toques às vezes sádicos e mórbidos, teratológicos. O beatle máximo era, hoje sabemos, um “maior abandonado”, aquela pessoa profundamente insegura, poço de angústias, atingida no coração e na cabeça pela súbita idolatria mundial em escala nunca vista. 4

“For the benefit of Mr. Kite there will be a show tonight on trampoline. The Hendersons will all be there late of Pablo Fanques Fair — what a scene” (“Being for the benefit of Mr. Kite”, LP “SgtPeppers”)

O universo ficcional do “fool on the Hill” está superpovoado de nomes próprios, onoma-personagens que só existem porque têm um apelido, como se o beatle quisesse encher seu

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mundo de gente, dando uma festa textual, criações da fantasia de Lennon, nomes burlescos, portando segundos sentidos, trocadilhos onomásticos, “rabelaisianos”. Sua tradução oferece problemas particulares. Diante de mim, duas opções extremas: traduzi-los todos ou mantê-los na íntegra, em inglês. Nada impede que se verta “Judro Bathing” por Germano Amano ou “Large John Saliver” por Zé Grandão Gouveia. O problema é que, traduzindo todos os nomes, o texto ia ficar brasileiro demais, jagunço, perdendo um sabor britânico que é essencial em Lennon. Saí da dificuldade optando pela solução média: ora traduzir, ora não traduzir os nomes próprios, o que só acrescenta estranheza a estes textos ínvios. Tenho certeza que Lennon aprovaria minha decisão. Afinal, é para ele que estou tendo esse trabalho todo. 5

“Mal e mal possuímos os rudimentos de uma teoria da tradução, de um modelo de como funciona a mente quando passa de uma língua a outra. A o falar da tentativa de tradução ao inglês de um conceito filosófico chinês, o lingüista I. A. Richards fez a seguinte observação: é possível que aqui estejamos em presença do tipo mais complexo de evento até agora ocorrido na história douniverso.” (Georg Steiner, Extraterritorial) Casos-limite como o da prosa de Lennon forçam o emprego de uma modalidade particular de tradução. A co-criação. A trans-criação, diria Haroldo de Campos. Nesses casos, uma

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tradução apenas pelo sentido é a pior das traições. Para fazer justiça ao teor de surpresa do texto original, precisa descriar e reproduzir os efeitos materiais, gerando análogos, universos sígnicos instavelmente paralelos, ora secantes, ora tangentes, à figura original. O que as línguas têm de mais próprio é intraduzível, como a poesia, é a poesia dos povos, suas expressões idiomáticas, aquelas que ou você entende no original, ou adeus. Poesia, afinal, não tem sinônimo. Traduções criativas, re-criações, são as mais idôneas (e enriquecedoras) quando devidamente acompanhadas de cotejos entre o texto de origem e o texto de chegada. O ideal é sempre, como aqui, uma edição bilingüe, uma pedra da Rosetta. Em Um Atrapalho, reduzi a um mínimo as notas ao pé da página para não tirar a fluência da leitura nem o leve espírito juvenil que anima a criatividade “primitiva” do beatle. Quem acompanhar, porém, o original com este análogo, vai ver que não pulei por cima de nenhuma dificuldade, achando jeito de passar para o brasileiro todo e qualquer efeito do texto de Lennon. 6

“... it’s like a portmanteau... there are two meanings packed up in one word”. Assim definiu Lewis “Humpty Dumpty” Carroll (1832-1898), seu inventor, a portmanteau word, a superpalavra com dois sentidos vivendo dent

WAntonin Artaud teve uma relação freudiana de amorrepulsa. Artaud

chegou a começar a tradução de L’Arve et L’Aume, como ele verteu Jabberwocky: “Il était roparant, e les vliqueux tarands Allainet en gibroyant et en brimbulkdriquant...” Não passou da primeira estrofe.

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Artaud perdeu. E declarou: “Nunca gostei desse poema, que sempre me pareceu de um infantilismo afetado...”, “(...) o Jabberwocky não tem alma”. Natural esse desentendimento. Afinal, Artaud era um esquizoparanóide. Carroll, apenas, um neurótico. Alice enfrenta Jabberwocky, ou Jammerwoch, ou Jaseroque, Jaguadarte, ou Gaberbocchus, ou Urrofruto, o monstro da linguagem que faltou no Manual de Zoologia Fantástica de Jorge Luís Borges (gravura de John Teniel para o texto original de Through the Looking Glass, tradução de Sebastião Uchoa Leite, ed. Fontana/Summus, 1977).

A primeira estrofe, na trans-criação de Augusto de Campos, Era briluz. As lesmolisas touvas Roldavam e relviam nos gramulvos. Estavam mimsicais as pintalouvas, E os momirratos davam grilvos, dá bem uma idéia do que é uma palavra portmanteau em ação. No primeiro verso, em inglês, “deslesmolisa”, a palavra slithy, montagem de lithe, “ágil” e simy, “viscoso” (Carrol pega, alhures, as palavras snake, “cobra”, e shark, “tubarão”, e monta a palavra snazrk, onde as duas imagens ocupam o mesmo lugar no espaçotempo). Não tenho notícia de antecedentes para isso em qualquer literatura. Como recurso, a palavra-montagem parece ser uma invenção de Lewis Carroll. O princípio de síntese e velocidade que ela representa tem muito a ver com a velocidade das máquinas da Revolução Industrial, que explode na Inglaterra no século XIX. Convém acrescentar que a língua inglesa sempre teve uma tendência natural para a produção desses híbridos. A filologia desconfia, inclusive, que o verbo bash, por exemplo,

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“amassar”, resulta do cruzamento dos verbos bang, “percutir” e smash, “esmagar”. O verbo clash seria o encontro dos verbos clang e crash. Flurry, “agitação”, um misto de fluster, “excitação”, e hurry, “apressado”. A imprensa londrina do início do século cunhou a palavra-montagem smog, mistura de smoke, “fumaça”, e fog, “neblina”, para designar a espessa nebulosidade que envolveu a capital da Inglaterra na época. E a palavra pegou e ficou. O verbo chortle, “rir alto”, é uma palavra-montagem de Carrol (chuckle sobre snort), que o uso e os dicionários adotaram e legitimaram. Portmanteau é “motel”, onde o motel e o hotel se encontram como duas paralelas, infinito mistério do amor entre sons e sentidos. Entre nós, palavras como “salafrário”, “barafunda”, “estapafúrdio”, “geringonça”, “espalhafato”, “escalafobético”, “lambisgóia”, “sorumbático” parecem apontar para essa direção. Se, no Brasil, é espécie relativamente nova como recurso literário, a palavra-montagem não é rara na linguagem popular, oral, no linguajar despoliciado, na fala, na gíria, lugares onde ela é uma das maneiras que a língua utiliza para enriquecer seu vocabulário. “Estrambólico”, na fala brasileira, designa alguma coisa fora das normas, estranho, esquisito, singular, bizarro, extravagante, irreal. Vem do italiano strambotico, de strambotto, o terceto a mais que se acrescentava a um soneto completo para continuarlhe o sentido. E a quebra da métrica. No Brasil, aclimatado, o vocábulo italiano sofreu a interferência de uma série “bola”, e virou o portmanteau natural

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“estrambólico”. O fenômeno da “etimologia popular” é responsável por um bom número de “palavras-valise” “naturais”. Na palavra “sumitério”, comum na zona rural, percebe-se que o falante vinculou “cemitério”, palavra grega estranha ao seu universo verbal, ao verbo “sumir”, que lhe é familiar e cotidiano. As parlendas infantis e a liberdade carnavalesca da linguagem jocosa criam outros. Para causar riso, gente do povo deforma “observar” em “urubu-servar”. “Presunto”, a palavra da gíria policial carioca para designar o prisioneiro executado por Esquadrões da Morte, é um sinistro portmanteau de “preso” e “defunto”. “Bofélia” é “mulher feia”, misto de “bofe” com “Ofélia”. E a montagem de palavras é cada vez mais corriqueira na onomástica popular brasileira, onde Florisvaldo é filho de Florisbela e Oswaldo, Claudionor, filho de Cláudio e Leonor, Divonei, filho de Diva e Nei. Hoje, por fim, seria infinito enumerar todas as palavrasmontagem que dão nome a produtos industriais, empresas, estabelecimentos comerciais, serviços especiais, repartições públicas, programas de rádio e TV, LPs, shows, as coisas do mundo urbano-industrial. Ver as montagens que a publicidade cria todo dia: tranqüilometragem, primaverão, sexacional. A palavra-montagem é mais “natural” do que uma mente conservadora poderia imaginar. Montagens por justaposição (lado a lado) são recurso comum nas línguas indo-européias. Em sânscrito, é possível montar superpalavras de até 20 componentes. O grego clássico, se não chega a tanto, permite a montagem de palavras com até cinco componentes. Em latim, o comediógrafo Plauto pode cunhar superpalavras como thesaurocrypsonichocrysides, e

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outras tão vastas. É quase proverbial a capacidade da língua alemã de permitir a montagem de compostos complexos como weitanschauungenwahlverwandtschaften para dizer “afinidades eletivas entre as visões do mundo”. As línguas neolatinas não herdaram essa riqueza (que já não era muito forte em latim). O italiano, o francês, o espanhol, o português são línguas analíticas, onde essas macrocombinações de palavras soam estranhas e artificiais. Mas, em todos esses casos, trata-se de montagens por justaposição. Ora, um portmanteau é uma montagem por superposição (sobre-impressão). Duas palavras são projetadas uma dentro da outra, produzindo uma terceira, nova totalidade, uma unidade poemática. Entra muito de acaso e de sorte na confecção de um portmanteau feliz. Tudo depende das possibilidades sonoras e semânticas da língua com que se lida. Nesse sentido, o portmanteau compartilha o destino da rima e do tracadilho, dois efeitos rigidamente determinados, idiomaticamente falando. Quando monto “insensatisfeito”, dependo da existência em português das palavras “insensato” e “satisfeito”, e das coincidências sonoras que apresentam. Ou quando faço “universário”, “plânico”, “opóstolo”, “fecundário”, “guerrilhotina”, “arquívoco”, “pornomenores”, “manusgrito”, “estratejitória”, “redondavia”, “hospitálculo”, “rodopiária”, “empenhasco”, “demoquátrico”, “ativitudes”, “gritantesco”, “ostranauta”, “literatorturas”, “cometalinguagem”, “obgestos”. Para encontrar algo parecido, tem que procurar na literatura japonesa, onde um efeito chamado kakekotoba, “palavra pendurada”, desempenha papel nobre na poesia lírica e na lin-

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guagem do teatro Nô. “O kakotoba não é, exatamente, um trocadilho. É mais a passagem de uma palavra por dentro de outra palavra, nela deixando seu perfume. Sua lembrança. Sua saudade.” (Bashô — A Lágrima do Peixe, Paulo Leminski, p. 39). Na expressão shiranámi por exemplo, “brancas ondas”, em japonês, uma mente nipônica pode captar uma alusão a shiránu, “desconhecido”, ou a namida, “lágrimas”, num só gesto de leitura. No kakekotoba, o processo de dupla (ou tripla) leitura é “natural”, produzido pelo próprio modo de ser da língua japonesa. Já o portmanteau é um artefato, um produto do fazer humano, como um poema, como o mínimo poema que é. Neste século, Joyce viria a empregar a invenção de Carroll como o principal recurso de linguagem do Finnegans Wake, a Work in Progress, sua monsterpiece, onde pontificam camibalistics, aeropagods, brasilikerks, allbegeneses, joyicity e outros portentos de linguagem, produzidos aos milhares pela inesgotável criatividade verbal do gênio irlandês. A spaniard in the works in progress, saindo diretamente de Carroll e do Jabberwocky, John Lennon trouxe o portmanteau das culminâncias máximas de alta literatura rara para as planícies da cultura pop. Um portmanteau beat. Ou beatle. Na prática textual brasileira, a história do portmanteau pode muito bem começar com o sex appeal-genário Oswald de Andrade, das nada “tris-tris-tristes” Memórias Sentimentais de João Miramar. Ganha status de jagunço poliglota com o “hipostrélico” Guimarães Rosa das “engenhingonças”, “perséquitos”, “malandrajos”, “descrevivendo”. Resquícios de ouro no auritabirano Drummond da Lição de Coisas ou do poema “Os Materiais da Vida”. A história atinge o clímax com os “equivocábulos” da poesia

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concreta paulista (que influenciou Lição de Coisas). As trans-criações de trechos do Finnegans Wake, feitas pelos Irmãos Campos. O Livro das Galáxias, de Haroldo de Campos (“servissalário”, “cabaleulístico”, “sobrescravo”). E deságua na música popular em letras do “acrilírico” Caetano Veloso (“Outras Palavras”, “homenina nelparaís de felicidadania”) e de Gilberto Gil, tantas vezes “zanzibárbaro”, duas vezes Gil, anfíbio Logunedé. Em 1975, publiquei o “Catatau”, monólogo cartesiano, que me tomou oito anos, onde o portmanteau desempenha papel principal. Nem é preciso ser profeta para sentir que a “palavraporta- palavra” veio pra ficar, um recurso afim à era da compressão da informação, das micro-células portadoras de macro-informação, das distâncias mínimas em velocidades máximas. Zune algo de informático-eletrônico nesse recurso, que a retórica e a estilística antigas não conheceram, espécie de retrato verbal (holográfico) da nossa época. Quanto a Caroll, sua prática do portmanteau não pode ser distinguida de outras singularidades deste padre-matemáticofotógrafo. Deste reverendo que desenhava figuras que, de pontacabeça, davam outro desenho. Escrevia cartas no espelho, ao contrário. Ou as começavam pela última palavra, a penúltima, a antepenúltima, e assim por diante, às avessas, na direção contrária. Enxadrista, Carroll (ou Dodgson) era muito hábil em prestidigitação. Colecionava caixinhas de música que adorava tocar de trás para diante. E espelhos com defeito, que deformassem a imagem. Como matemático, gostava de tratar “classes nulas” (um conjunto sem membros) como coisas existentes: “ninguém”, para Carroll, podia ser um personagem.

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Uma mente de vanguarda, moderníssima, perdida (ou achada?) na Inglaterra vitoriana. 7

Muita coisa do espírito infantil e jocoso de Carroll, de Joyce e de Lennon está ligada a duas formas da literatura oral inglesa: as nursery rhymes e o limerick. Nursery rhymes são poemas ou histórias metrificadas para crianças. Hickory,dickory,dock, The mouse ran up the clock. The clock struck one, Themouse ran down, Hickory, dickory, dock. Ou: Pat-a-cake, pat-a-cake, baker’s man, Bake me a cake as fast as you can. O limerick é um pequeno poema humorístico, de cinco linhas, esquema de rimas normalmente AABBA, com umasemântica em grau de nonsense. There was a young lady of Riga, Who rode with the smile of a tiger. They returned from the ride With the lady inside, And the smile on the face of the tiger. Neste limerick, o duplo sentido (double-entendre) é o próprio tema:

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There was an old man at Boulogne Who sang a most topical song, It wasn’t the words Which frightened the birds, But the horrible double-entendre. Limerick, nome de uma região da Irlanda, foi dado a essa forma a partir de um espécime que começa dizendo Will you come up to Limerick?, dito ou cantado em ocasiões festivas, comilanças ou bebedeiras. Desse espírito de saudável nonsense, saem os poemas, que emergem, aqui e ali, ao longo de Um Atrapalho. Ora, só o sentido pode ser traduzido. O sem-sentido é opaco como uma escultura abstrata, um passo de dança ou um happening, coisas que só significam a si mesmas. Felizmente, “poetry is to inspire”, disse Bob Dylan. Do nonsense de Lennon, às vezes em puro grau zero de sentido, extraí apenas a espessa noite semântica que presidiu minhas transcriações, braçadas desesperadas do nadador que afunda nas confusas águas do in-significaldo. Às vezes uma sombra de método atravessa a loucura de Lennon. Em “The Faulty Bagnose”, “A Falsa Amordaça”, vislumbra-se um clima de crítica à hipocrisia eclesiástica, pelas alusões religiosas que cercam o “Mungle” (pilgriffs, religeorge, bless, bless the loaf, give us thisbe our daily tit). A estratégia do tradutor, nesses casos, é pegar o espírito geral da coisa e se atirar de cabeça na aventura, pedindo socorro, aqui e ali, a uma palavra, um conceito, um jogo de palavras do original. Foi o que fiz, fiel, infiel, à irregular métrica regular dos contra-sensos poéticos do beatle, onde a lógica é substituída à altura por valores puramente rítmicos e musicais.

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Do primeiro para o segundo livro, Lennon parece radicalizar seus processos (palavras-montagem, deformações ortográficas, anomalias sintáticas, arbitrariedades morfológicas). “Silly Norman”, já no final do segundo livro, “Simples Mendes”, foi a ficción que mais me deu (a) trap/balho. O texto de base, que fornece o fio da intriga, está quase irreconhecível, inscrição antiga corroída por uma pesada estática, hendrix-distorções no material verbal (quem reconheceria “what can I do”, naquele “wart canada”?), como ler tanta fumaça dentro de tamanha neblina? Trans-duzindo, é claro. 9

A integração nipônica, antes de Ioko, entre desenho e texto, como num haikai. A recuperação de um espírito “infantil”, caligráfico, que lembra Oswald de Andrade ou o Maiakowski das cartas a Lili Brik, que Maiakowski assinava com o ideograma naïf, ingênuo, de um cachorrinho. O caráter pop-urbanocosmopolita da coisa de Lennon, que pressupõe o cinema, os quadrinhos, o cartum. O desprezo pelas formas canonizadas do sistema literário vigente, com suas espécies definidas, o romance, a novela, o conto, a crônica, a poesia lírica, o ensaio. Os livro-livros de Lennon são uns cadernos de textos e desenhos de natureza heterogênea, coerentes apenas naquilo que são fragmentos de uma mesma explosão. John Lennon, “um atrapalho no trabalho”: a unidade não é mais possível. Rir é o melhor remédio, achar graça, a única saída.

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Existe alguma coisa de propositalmente desajeitado, awkward, clumsy, gauche, na linguagem de Lennon. Como se, como Oswald de Andrade, ele temesse escrever “certo demais”. Só isso bastaria para fazer dele um escritor de relevo, num mundo, como a literatura, onde ainda e sempre acabam imperando a frase certa, a gramática “correta”, a ortografia ortodoxa e os efeitos garantidos, o terno e a gravata. Mas só as estrepolias, peraltices e malcriações de linguagem não bastariam para definir a arte textual do beatle. É genial sua fantasia fabular e ficcional, capaz de urdir enredos e pequenas intrigas com ingredientes ínfimos, sempre sob o signo do imprevisto tragicômico. Através de um espírito lúdico, muitas vezes, aparentemente, destrambelhado e arbitrário, passa todo o sopro do nosso tempo: a irreverência de uma época postutópica, cética, crítica, cínica, que já riu de todos os deuses, e transformou a vida em espetáculo e show, enquanto The Day After não vem. Na prosa de Lennon, está toda a Inglaterra careta, onde a Beatlemania e a revolução dos jovens caiu como uma bomba H. A galeria dos pais e senhores, que pensam conhecer o significado da vida. A mediocridade canalha da vida política (“General Erection”). A mediocridade doméstica do dia-a-dia da pequena classe média. As mães megeras. Os homens de negócios e pais operários que não sabem que tudo mudou e que os filhos adolescentes riem de seus códigos de postura, sua moral, sua tabela de objetivos na vida, as filhas menores fazem sexo grupal, os filhos dão a bunda e tomam pico, todos candidatos a uma “Magical Mistery Tour” em direção a “Strawberry Fields”, como mem-

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bros groupies ou tietes de uma das “Sergeant Pepper’s Lonely Hearts Club Band”, que pululariam às centenas de milhares. O garotão de origem operária que fumou maconha no banheiro do Palácio de Buckingham, um pouco antes da Rainha condecorar os Beatles com a mais alta comenda do Reino Unido, brincava em serviço. E brincava alto, brincava pesado, brincava leve, brincava brabo, brincava lindo, Lennon rindo. Vamos brincar com ele

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Ferlinguete-se!

Paulo Leminski


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Um filme, “The Last Waltz”, dirigido por Martin Scorsese, a turnê/show de despedida da The Band, a banda que acompanhou Bob Dylan durante anos. Apocalypse now, the dream is over, “la banda está borracha”, uma parte do sonho morria ali naquele palco cheio de estrelas, algumas legítimas, Joni Mitchel, algumas de menos quilates, Neil Diamond, e amigos, muitos amigos de Dylan e de tudo que Dylan representou: o enterro de um faraó. No meio do show final, apoteose-orgasmo-agonia, num momento de silêncio, de repente, entra no palco aquele velhinho magro e alto, cabelos totalmente brancos, andando muito lento, chega no microfone e lê um poema em inglês incompreensível, cheio de esses e erres carregados, como na fala de um irlandês. Quem é, quem não é, era Lawrence Ferlinghetti. Tinha vindo ler um poema em inglês arcaico, em anglosaxão antigo, para os seus netos, seus queridos netinhos, grande coisa insignificante. E se retirou, tão irreal quanto viera. Primeira e última vez que vi Ferlinghetti. 2

Em “A Coney Island Of the Mind”, predominam os longos poemas orais, que é de rigor imaginar recitados em enfumaçadas salas meio existencialistas, contra um fundo de jazz, Charlie Bird Parker, quem sabe?, um bongô solitário marcando o compasso. Os longos poemas falam, o apodrecimento do sonho americano, a solidão urbana, o consumismo desenfreado, a fé nas promessas traídas, tudo podia ser melhor. Tudo isso numa linguagem assimétrica, solta, “prosaica”, o discurso “beat”, neo-romântico, ligeiramente surrealista.

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Nem se pense, porém, que a poesia de Ferlinghetti é puro derramamento verbal, sob o signo da entropia, o “enxame de sentimentos inarticulados”, que Ezra Pound desprezava, e que parece ser o estereótipo, a opinião pública sobre a poesia “beat”. Sobre isso, o próprio Ferlinghetti se equivocava nesse “PoesiaModerna é Prosa”, constante do “Work in Progress”, ensaiotentativade reflexão teórica, tão cheio de intuições iluminadas quanto de limitações: sua poesia é muito menos “prosa” do que ele imaginava. Pegue um poema de “A Coney Island Of The Mind”, como, digamos, “The Pennycandystore Beyon The El”, que traduzi como “A Loja de Bombom Barato Além do El”, basta pegar um poema como esse para ver de quanta artesania e domínio da matéria verbal Ferlinghetti é capaz (e, afinal, para que servem os poetas a não ser para escrever melhor, mais fundo, mais exato,mais inesquecível que todo mundo?). O fluxo verbal de Ferlinghetti é rico de todos os efeitos que fazem de uma frase poesia e não prosa, ecos sonoros, reflexos fonéticos, paralelismos, aliterações, alto grau de fusão do magma verbal. The pennycandystore beyond the El is where I first fell in love with unreality A rima interna entre “El” e “fell”. O atrito entre “first” e “fell”. O jogo de L entre “El”, “fell”, “love” e “unreality”. Decididamente, isto não é prosa. A escritura poética de Ferlinghetti é mais “savante” do que ele a julgava xavante. Que dizer do sinfônico arranjo fonético de dois versos como:

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Jellybeans glowed in the semi-gloom of that september afternoon? Ou daquele momento supremo? A girl ran in Her hair was rainy Como não ouvir a coerência interna das moléculas fonéticas destes dois versos? Quem não vê que, entre tantas tranças, “ran in” esta dentro de “rainy”? Ou aquilo: Her breasts were breathless, que eu teria feito melhor traduzindo por Seus foles sem fôlego, isso, é claro, se eu não tivesse certos compromissos e responsabilidades de sentido que nunca nos deixam, a nós, tradutores, fazer o que queremos, em matéria de música. Desafio aqueles que pensam que traduzir poesia “beat” seja apenas questão de verter “sentidos”, não trans-criação, a me passar para o vernáculo coisas como estas do poema “Endless Life”, Brave the beating heart of flaming life its beating and pulsings and flame-outs, apenas (?) pelo sentido, passando por cima da fina tapeçaria harmônica no acorde de B/FL/P/PL/FL: traduzir não é deixar mais barato, nenhum original merece ser passado para um repertório mais baixo, cultura é subir crescendo, para o mais rico, o mais raro, o mais forte, o mais radioativo, “para que luza sobre

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todos os que estão na casa”. Poesia é uma coisa muito material, afinal, o espírito da matéria, aquele espírito que, no fundo, a matéria é, ou não? No meio, de repente, algo como “Dove Sta Amore...”, raro momento de raro construtivismo, pedra no caminho do tradutor: Dove sta amore Where lies lave Dove sta amore Here lies love The ring dove love In lyrical delight Hear love’s hillsong Love’s true willsong Love’s low plainsong Too sweet painsong In passages of night Dove sta amore Here lies love The in dove love Dove sta amore Here lies love The ring dove love Dove sta amore Here lies love Não é qualquer poeta que consegue esse fantástico trocadilho bilíngüe entre “dove”, onde, em italiano, e “dove”, pomba, em inglês, onde está a pomba, a doce ave de Vênus, a deusa do amor? “Hillsong”, “wilsong”, “plainsong”, “painsong”, é desse Ferlinghetti que eu vou lembrar sempre, capaz de uivo e capaz de silêncio.

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o uivo e o silĂŞncio

Paulo Leminski


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A poesia “beat” é uma vanguarda?

Se considerarmos o Uivo (Howl) de Ginsberg (1956) como uma espécie de manifesto (manusgrito, obgesto) da poesia “beat”, ela é praticamente contemporânea da Poesia Concreta brasileira, cujo Plano Piloto é exatamente de 1958. No Brasil, em 1956, Décio Pignatari fazia “Terra”, Haroldo de Campos dava à luz seu “SI LEN CIO” e Augusto de Campos compunha “Tenso”. Nunca os astros de Estados Unidos e Brasil estiveram em tão rigorosa oposição. Lá, a vanguarda, representada por um Ginsberg, um Ferling11hetti, um Corso, passava-se numa pauta oral. Aqui, a vanguarda concreta representava, sobretudo, uma radicalização da dimensão visual da poesia. A poesia concreta é o “poster”, o “out-door”, os anúncios luminosos, e, hoje, o vídeo-texto. A poesia “beat” é o recital, o poema feito para ser falado, caudalosas torrentes esperando uma voz. Duas poesias, duas vanguardas: duas médias distintas? Outras coisas, ainda, distinguem as duas. A poesia “beat” é indissolúvel de um gesto comportamental, que foi a vida “beatnik”, da qual é a legítima expressão lírica. A poesia concreta brasileira resultou de um trabalho intelectual, realizado com alta ênfase na racionalidade, nas fronteiras entre a arte e a ciência. Uma textosignovisão global. E produziu sua própria teoria, a reflexão sobre si mesma, o aprofundamento do ser-poesia, enquanto signo, enquanto código, enquanto matéria e consciência de linguagem. Já a poesia “beat”, pela própria natureza da sua proposta, não poderia produzir teóricos nem ensaístas. E seu alcance e

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abrangência intelectual é, necessariamente, menor do que a da poesia concreta brasileira, sua contemporânea. A título de paradoxo, daria para constatar que, nesse momento, a poesia norte-americana buscava o que o Brasil, país de analfabetos, tem de sobra, a oralidade. E o Brasil, ao contrário, no setor mais radical da sua poesia, buscava aquilo que a civilização tecnológica norte-americana produzia de mais vivo, na área de comunicação de massas. Estranhas inversões, destinos cruzados. Com tudo isso, a poesia “beat” produziu, sim, poetas e poemas de primeira qualidade. Ginsberg, Ferlinghetti e Corso são vozes que, enquanto a alma humana tiver ouvidos para “a voz que é grande dentro da gente”, não vai faltar amor pra eles.

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jarry, supermoderno

Paulo Leminski


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A folhas tantas do seu Manifeste du Surréalisme (1924), André Bréton rascunha um esboço de árvore genealógica do movimento da “escrita automática” e do sonho acordado, de que sempre foi uma espécie de Papa: “Poe é surrealista na aventura. Baudelaire é surrealista na moral. Rimbaud é surrealista na prática da vida e alhures. Mallarmé é surrealista na confidência. Jarry é surrealista no absinto.” Alfred Jarry (1873-1907), porém, foi mais que um simples bebedor da terrível bebida, quase psicodélica, que levava os poetas ao delírio, antes de matá-los em algum sanatório. Antes de morrer, aos 34 anos, ele teve tempo para deixar atrás de si uma esteira de lendas de excentricidade e extravagância, a Patafísica, “ciência das soluções imaginárias”, meia dúzia de livros e uma contribuição definitiva para a história do teatro, na figura do “Ubu Rei”. Dramaturgo e teatrólogo, como é mais conhecido, Jarry é precursor das práticas teatrais mais avançadas do século XX, o século em que, sob o impacto do cinema, do circo e do teatro exótico (Nô, Kabuki), Meyerhold, Piscator, Brecht, Antonin Artaud, Beckett e Ionesco dariam nova vida à arte de Sófocles, Shakespeare, Racine e Ibsen. Seu ensaio De l’Inutilite du Théatre au Théatre (1896) expõe os princípios da sua dramaturgia: esquematização dos caracteres, das ações, do cenário, repudio ao “realismo” e à psicologia. Como vai ser lindo o século XX.

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Rabelais. Sade. Nerval. Lautréamont. Rimbaud. Corbière. Raymond Roussel. Duchamp. Artaud. Bréton. Drieu. Céline. Ponge. Queneau. Butor. Existe, de tocaia, uma linhagem louca naquela literatura que, estabilizada por Malherbe e Boileau, teve um começo legal na Academia, fundada pelo cardeal de Richelieu, e parece ser a mais “careta” das literaturas, uma literatura normal e normalizadora, muito zelosa pela estabilidade de certas formas, pelo equilíbrio, pela manutenção de um certo “bom gosto”, decoro canonizado com “o Gosto”, o “génie latin” de Anatole France. Nessa linguagem, Jarry não foi o menos “louco”. Nascido em Laval, no Noroeste da França, Jarry deixou a lenda de uma vida tão bizarra quanto suas produções. A fábula das suas singularidades corria de boca em boca, na Paris da belle-époque. Pescava seu almoço no Sena. Aficionado por matemática e física, estudava heráldica horas a fio. Quando lhe pediam fogo, puxava um revólver, que Picasso depois veio a obter e guardava como uma relíquia. Sua fotografia mais conhecida mostra-o andando de bicicleta, invenção recente, que era uma das suas paixões (tendo um papel fundamental em O Supermacho, onde o superalimento do cientista americano é experimentado nos ciclistas que fazem a Corrida das Dez Mil Milhas, hipérbole sobre duas rodas da potência sexual infindável do “Indiano”). Para nós, brasileiros, sua figura não pode deixar de lembrar a de Santos Dumont, tão excêntrico quanto ele, que vivia e tentava voar naquela mesma Paris da primeira década do século XX, quando viajar pelos ares parecia ser uma obsessão emblemática daquele momento de espantosas novidades e ilimitados horizontes tecnológicos.

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Jarry também voou. Não em balões ou dirigíveis. Mas em criações dramáticas e textuais muitos pés acima do chão de seus contemporâneos, cabeça enfiada alguns quilômetros para dentro do futuro. O verdadeiro culto que Dadá e os surrealistas lhe tributaram é mais que justificado: na rigorosa hierarquia poundiana, Jarry, supermoderno, é um “inventor”, um dos escritores mais originais deste século, “herói fundador” de tantas singularidades que, depois de virarem moda, viraram sistema. Centauro de fantasia erótica com romance de ficçãocientífica, O Supermacho, de 1902, chamado pelo autor “romance moderno”, faz par com Messalina de 1901 “romance da antiga Roma”. Nos dois “romances”, um no passado, outro no futuro, o herói é, num, um homem, no outro, uma mulher, dotados da capacidade de praticar o amor físico além dos limites humanos, “indefinidamente”. Priapismo e ninfomania: hipérboles da sexualidade. Cenas de evidente marcação teatral. Jogos de palavras, de árdua decifração e recriação. O fio do enredo sustentado por trocadilhos. Um espírito lúdico libertado de amarras lógicas. A pontuação arbitrária e caprichos tom meio erudito, meio circense. As imagens e comparações insólitas e delirantes. Alguma coisa demuito criança com qualquer coisa de muito velho. A escritura de Jarry é de alta imprevisibilidade. Não era provável que, em 1902, alguém chamado Alfred Jarry publicasse esse romance que vocês acabam de ler, vocês não acham?

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folhas de relva forever

(a revelação permanente)

“Whitman é, para minha pátria, o que Dante é para a Itália.” (Ezra Pound) “Ninguém vai entender meus versos, se quiser interpretá-los como performances literárias.” (Walt Whitman) “Whitman, que numa redação do Brooklyn, Entre o cheiro de tinta e de cigarro, Toma e não diz a ninguém a infinita Decisão de ser todos os homens E de escrever um livro que seja todos.” (“El Pasado”, “El Oro de Los Tigres”, Jorge Luis Borges)

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eta.

Toda revolução digna deste nome produz seu grande po-

“Antena da raça”, o poeta capta, nos tempos de comoção social, a tremenda energia vital liberada pelas grandes transformações coletivas, em seu momento agudo, revolucionário ou insurrecional. Assim, se Maiakovski é o poeta da RevoluçãoRussa, não é exagero dizer que Walt Whitman (1819-1892) é o poeta da Revolução Americana, ocorrida uma geração (1776) antes do seu nascimento. Da revolução que expressa, a poesia de Whitman herdou todos os traços fundamentais: o libertarismo individualista, o igualitarismo antifeudal, a vitalidade inaugural do capitalismo na América, o otimismo ativista de um povo de vikings, a vertigem da abertura de inimaginadas fronteiras geográficas, econômicas e técnicas. E também emocionais, existenciais e pessoais. “This is a big country”. “This is a free country”. Nessas frases, que decoramos em filmes de faroeste, condensase o essencial da ideologia que informa os versos do pai do verso livre, o pai do verso louco, o pai do verso novo. Assim como a Revolução e o Sonho Americano libertaram, nos EEUU, o indivíduo (se devidamente branco) dos entraves do feudalismo, assim Whitman libertou o verso dos duros deveres da métrica, convencionais como os aparatosos cerimoniais das cortes do Velho Mundo. Whitman, a rigor, o primeiro poeta a fazer versos livres, é o libertarismo da jovem república, fronteira aberta a oeste, projetado em plano formal. Para realizar, no texto, tudo isso, o poeta de “Whispers of Heavenly Death” desenvolveu um poderoso híbrido, em matéria de linguagem. Uma dicção algo entre a poesia e a prosa, determinada por um movimento retórico (retórico, aqui, significando, no sentido grego original, de rétor, orador, envolvido num proces-

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so de convencer, dissuadir ou persuadir uma platéia, através da palavra viva e dita). Ouve-se, por trás das tempestades verbais de Whitman, alguns raios e relâmpagos dos sermões de igreja, vociferados por furibundos pastores apocalípticos de pequenas comunidades religiosas dos Estados Unidos, todas heréticas em relação a algum credo tradicional (presbiterianismo, calvinismo, puritanismo, luteranismo), tudo dentro da melhor tradição do fragmentarismo localista das igrejas protestantes. A mãe de Whitman era “quaker”. E transmitiu-lhe a fé, tipicamente “quaker”, na luz interior. Sem entender a fé “quaker”, não se entende Walt Whitman. A seita fundada pelo inglês George Fox (1624-1691) caracterizou-se pela recusa radical a toda liturgia religiosa e sacerdócio, confiando apenas na presença do Espírito Santo na consciência individual. Na inspiração. Além ou contra as autoridades. Muito forte a autoridade do movimento “quaker”, na formação dos Estados Unidos, no século XVII e XVIII. Tão forte, talvez, quanto a influência, sobre à poesia moderna, do primeiro grande poeta da Revolução Industrial. Essa influência se estende por caminhos desconcertantes. Mas todos indo dar na estrada da melhor poesia do século XX. A incorporação da máquina ao mundo poético, o futurismo de Marinetti, no início do século, apenas consolidou-a. Já está lá, no Whitman de “A uma Locomotiva no Inverno”, “signo do moderno”, “beleza de voz feroz”, mecânica musa, prenunciando os biônicos tempos que vivemos e vocês ainda não viram nada. O ímpeto oratório de Maiakovski ecoa o tom da voz do “easy rider” Walt Whitman, audível na fluente grandiloquência

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de vastos poemas do bardo russo. Whitmaniana, em Maiakovski, ainda, via Marinetti e futurismo, uma certa mecanolatria, zombada por Trotsky, em Literatura e Revolução, onde diz que os futuristas russos só idolatravam as máquinas porque a Rússia não as tinha. E já se vê no poeta de Song for Myself algo do gigantismo narcisista de Maiakovski, que se dá, simplesmente, como o centro do universo, a coisa mais importante que a vida tenha produzido neste planeta. Com o panteismo populista e democrata (meio budista) do eremita de Long Island, até o europeizado e aristocratizante Ezra Pound teve que fazer “Um Trato”: APACT Um trato com você, Walt Whitman. Já te detestei o bastante. Hoje, cresci. Já posso chegar na tua frente. Idade eu tenho para tanta Você cortou a madeira nova. Tá na hora de esculpir. Tua seiva é a minha, tua raiz. (Ezra Pound, 1913; tradução Leminski) O próprio fôlego homérico dos “Cantos” (ou “Cantares”) de Pound, sua obra máxima, composta, de 1917, até sua morte, em 1972, tem algo, nos “Cantos”, que parece respirar pelos épicos pulmões whitmanianos, órgãos afeitos a inspirar o infinito oxigênio das mais amplas pradarias que olho humano já descortinara. O fato (ou o fado ?) de as revoluções apodrecerem, por

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mais altos que sejam seus ideais, pouco afeta a poesia dos que as exaltaram, por elas exaltados, em seu momento puro, em sua hora plena, em seu meio-dia. Whitman. Maiakovski. Que importa que seus sonhos não se incarnem nem se enquadrem na estúpida evidência da “Real Politik”? Dai-nos, hoje, Senhor, a utopia de cada dia. Walt Whitman coloca em andamento toda uma linguagem vitalista norte-americana do escritor não como “scholar” ou mandarim, mas como homem de ação, da estrada, da aventura e do mundo (Jack London, Hemingway, John Reed, Kerouac, Norman Mailer, e, naturalmente André Malraux, o mais norte -americano escritor da mais anti-norte-americana das literaturas). Homossexual, enfermeiro na Guerra da Secessão como Hemingway na Guerra Civil Espanhola, recebendo, quakermente, o Espírito Santo da poesia, livre como um pele-vermelha, como Thoreau, como um garimpador de ouro, nas Montanhas Rochosas, barbudo como um arbusto da beira do rio, Whitman, o primeiro “beatnik”, vive da longa vida que só uma grande poesia (ou uma grande revolução) irradia. WITH THE MAN aqui no oeste todo homem tem um preço uma cabeça a prêmio índio bom é índio morto sem emprego referência ou endereço tenho toda a liberdade

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pra traçar meu enredo nasci numa cidade pequena cheia de buracos de balas porres de uísque grandes como o grand canyon tiroteios noturnos entre pistoleiros brilhantes como o ouro da Califórnia me segue uma estrela no peito do xerife de denver

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mĂŠxico

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O apocalipse para a civilização mexicano-asteca teve uma data precisa. Em 1518, um coletor de impostos chegou às pressas na capital Tenochtitlán para relatar ao imperador Moctezuma coisas espantosas: estavam vindo do mar torres com asas, trazendo homens com caras brancas e muita barba. Eram os espanhóis, os navios espanhóis, sob o comando de um gênio chamado Hernán Cortez, que concentrava em sua pessoa, em grau máximo, as melhores e as piores qualidades da raça castelhana: coragem pessoal e crueldade sem limites, resistência aos reveses e teimosia, imaginação administrativa e ambição, idealismo e fanatismo cego. Nesse momento, o mundo asteca encontrava-se no auge do seu poder. Elite militar invasora, os astecas, recém-vindos do Norte, dominavam, pelo terror e pela guerra, inúmeros povos muito mais civilizados que eles. Quando os bárbaros astecas chegaram no México, toltecas e olmecas, há mais de mil anos, construíam cidades de pedra, esculpiam ídolos, faziam cálculos astronômicos exatos e desenvolviam uma escrita. Como os romanos fizeram com os gregos, os astecas se apossaram desse tesouro civilizatório, “mexicanizando-se” culturalmente, mas exercendo um brutal imperialismo militar e econômico sobre dezenas de povos vizinhos, muitos vivendo em cidades de pedra, com reis, dinastias, templos e bibliotecas, organizações administrativas complexas, luxos e artes. Diante da superioridade técnica da Europa (cavalos, pólvora, armas de fogo, estratégia), o “império” asteca evaporou, num passe de mágica. Os povos oprimidos pelos “assírios do Novo Mundo” aliaram-se ao invasor espanhol. Assim começou o México, quando foi derrotado e convertido aquele povo que sacrificava ao sol, ao alto de pirâmides, milhares de prisioneiros de guerra, coração arrancado com facas de obsidiana por sacerdotes que se cobriam com a pele extraída de vítimas vivas,

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em homenagem ao deus Tláloc, para que não faltasse chuva aos milharais, dos quais dependia a vida de todos. Acontece que esse povo tinha uma escrita, bibliotecas, uma literatura. Seus livros de caráter mítico e litúrgico, pintados sobre cascas de árvores, foram queimados aos milhares, em gigantescos “autos de fé” pelos missionários espanhóis. Sobrou pouca coisa, alguns códigos que foram, como curiosidades, parar em bibliotecas européias: o Códex Bórgia, o Fejervary-Mayer, e mais meia dúzia. Esse mundo, porém, era tão rico que espanhóis e mestiços de espanhol com índio mexicano registram dados de sua literatura, que nos aparece tão estranha como se fora de uma civilização extra-terrena, num livro de ficção científica. Lingüisticamente, os astecas falavam uma língua da grande família nahuatl (pronunciar “náualt”). Em O Pensamento Cosmológico dos Antigos Mexicanos, o etnólogo Jacques Soustelle esclarece: “(em nahualt), cada palavra, quando empregada num contexto mitológico ou mágico, é susceptível de receber uma multidão de significados mais ou menos esotéricos (...) A palavra quáultli, águia, designa igualmente, na linguagem esotérica dos sacerdotes, o sol e os guerreiros. O sol é o deus dos guerreiros, que o nutrem com o sangue das vítimas. Na escrita ideogrâmicohieroglífica dos astecas, a pena da águia é o ideograma da guerra e dos sacrifícios humanos”. Nesse universo de ecos de sentido, quáuhnochtli, “figo da águia” é o coração das vítimas sacrificadas ao sol; quauhteca, “povo da águia”, são as vítimas sacrificadas, transformadas em companheiros do sol. O nome (nefasto) do último imperador asteca, Quáuhtemoc, “águia que cai”, quer dizer “sol poente, crepúsculo”. Neste texto religioso muito antigo, dedicado ao deus Xipe Totec, recolhido por um espanhol da época da conquista, dá para ver em ação essa proliferação de sentidos metafóricos

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na imagética da poesia asteca: Senhor tua pedra-preciosa-água desceu Ah cipreste-quetzal Ah serpente-fogo-quetzal. “A pedra verde preciosa e a pluma verde do pássaro quetzal são símbolos da riqueza e da fertilidade agrícola. O deus mandou a chuva. A serpente de fogo, símbolo da seca e da fome, transformou-se numa “serpente de plumas”, um quetzal-coatl, que representa a abundância”. Esse jogo de imagens, evidentemente, está ligado à natureza da árdua escrita hieroglífico-ideogrâmica, com que os astecas grafavam, até hoje só em parte decifrada. Em náhuatl, poesia se dizia através de uma metáfora e de um ideograma, que significavam “flor e canção”, “flor canção”, “florcanção”. Nas cortes dos imperadores astecas, figuravam poetas entre muitos outros ofícios. Desconcerta constatar nesse povo, que levou os sacrifícios humanos a um grau nunca visto, a existência de uma delicada lírica voltada para a beleza das flores, a brevidade da vida humana, a efemeridade da juventude e o amor pelas crianças. Poesia praticada inclusive pelos reis. Como este Nezahualcoyotl, rei da cidade asteca de Texcoco, em cuja corte floresceram artistas e poetas. Outras “pólis” nahualt (aliadas dúbias ou inimigos da capital Tenochtitlán) produziram, na corte dos seus reis, focos de intensa vida poética, artística e intelectual, paralelos e perfeitos das cortes da Itália da Renascença, lugares onde elites cultivadas, livres dos afazeres da sobrevivência, podiam entregar-se à vida superior do espírito. Tais foram as cortes de Tecayehuatzin, rei da cidade de Huexotzinco, e do rei de Tecamachalço, Ayocuan. Todas estas cidades eram centros náhuatl muito mais antigos que a capital Tenochtitlán, a Nívive dos Assurbanípal, donde saíam os exércitos astecas para extorquir tributos, capturar

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mão-de-obra escrava e — sobretudo — arrebanhar prisioneiros para serem sacrificados aos milhares ao deus do milho Tláloc, ou a Huitzilopóchtli, deus da guerra e do sol, nume tutelar da tribo dos astecas, sempre sedento de sangue humano. “Guerra florida” chamava Tenochtitlán às expedições periódicas para captura de prisioneiros destinados ao sacrifício ritual. Homens-Águia, homens-Jaguar se entrelacem, príncipes Escudos contra escudos fazem sinfonia, Lá vai colher prisioneiros a primeira companhia (...) Guerreiros terríveis, temidos por todos os povos vizinhos, os astecas produziram uma poesia bélica, exaltando os prazeres do combate. Nesse rosário-galáxia de “pólis” (mais ou menos) independentes em volta de Tenochtitlán, nas cidades em volta, no entanto, as coisas eram um pouco mais complicadas. Os bárbaros astecas sabiam: o que tinham, culturalmente, de melhor, deviam ao que tinham encontrado quando chegaram, os toltecas, a cultura tolteca. Entre os astecas, este hino ao tlacuilo, o pintor-escriba dos códices, dos livros astecas, dos maravilhosos livros hieroglifico-ideogrâmicos, da multidão dos quais só nos chegou meiadúzia: Um bom desenho, um tolteca, um artista. Com tinta vermelha e preta, quem pinta melhor? Até com água, ele pinta, Sábio é o bom pintor, um deus no seu coração Ele põe deus nas coisas,

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conversando com o coração. Sabe das cores, colora e sombreia. Dos pés à cabeça, sombreia e colora A ele a perfeição. Pois ele pinta as cores de todas as flores como se fosse um tolteca. Outro hino asteca exalta a habilidade do oleiro tolteca, o povo anterior, o povo vencido, o povo superior: Quem dá vida à argila, seu olho vê a maravilha, senhor da terra mole. O ótimo oleiro sofre em sua obra. Ensina a argila a mentir. Com seu coração, conversa. E chama as coisas a vida. Tudo sabe, como se fosse um tolteca. A Texcoco de Nezahualcóyotl era muito mais tolteca que Tenochtitlán. Destroços que nos chegaram sobre o rei de Texcoco nos reportam o retrato de um cacique, meio poeta, meiofilósofo, reformador religioso como o faraó Ikhanaton. Parece que tentou, como Ikhanaton no Egito, estabelecer uma espécie de monoteísmo, sintetizando o politeísmo asteca num dualismo, numa Dupla Absoluta, uma Dualidade, em vez de uma Trindade. Um dos componentes desta Dupla, era, sem dúvida, o deus Quetzalcóatl (pronunciar “quetzal-cóaut”), deus mais antigo, adversário de Huitziopóchtli, o deus da guerra dos astecas.

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“Quetzal-Cóatl”, “pluma-serpente”, ou a Serpente de Plumas, o deus civilizador, Sumé, mexicano, Oanes babilônio, era um nume da vegetação molhada pela chuva, do verde das plantas, do milho, da abundância agrícola. A inovação teológica de Nezahual-cóyotl foi registrada por um cronista mestiço, Fernando de Alva Ixlilxochitl, descendente do rei de Texcoco, e, portanto, suspeito. Conforme este cronista, Nezahual o Coiote (pois do náhuatl nos vem a palavra “coiote”) opôs-se aos sacrifícios humanos, propondo, em seu lugar, o sacrifício de cobras e borboletas e a destruição de objetos de jade. O testemunho é suspeito. O que não pode ser posto em dúvida, porém, é a condição de poeta do rei Nezahualcóyotl. Dele, esta queixa sobre a impermanência de todas coisas: Vivermos, será que na vida se vive? Não para sempre na terra, só um pouco no tempo. Jade sela, jade quebra, ouro, desdoura, pena de quetzal, pena voa. Não para sempre na terra, só um pouco no tempo. (Nezahualcóyotl, rei de Texcoco, séc. 15)

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sert천es anti-euclidianos

Paulo Leminski


nenhum livro teve sobre a cultura brasileira letrada o impacto de “os sertões” com ele euclides da cunha militar engenheiro positivista como toda a oficialidade republicana traumatizou uma literatura feita por bacharéis ornamental “sorriso da sociedade” brilho dos salões do 2º império A leitura para ioiôs e iaiás surto de espinhas no rosto imberbe dos acadêmicos de direito ócio de aposentados prenda doméstica da elite de um país de analfabetos com ele um brasil outro um brasil novo o brasil verdadeiro do interior saltava na cara das nossas elites letradas concentradas nas cidades no eixo rio-são paulo centrífugas europocêntricas produzindo uma literatura francesa no trópico para branco ver

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canudos foi uma revelação o despertar da consciência brasileira o satori nacional um acontecimento histórico de muitas conseqüências das quais a mais importante um livro chamado “os sertões” dele descendem “macunaíma” “vidas secas” “o tempo e o vento” toda nossa prosa regionalista até o sertão máximo “grande sertão: veredas” onde o gênio de guimarães rosa dá ao sertão uma dimensão cósmica num texto rico como os de joyce encerrando com chave de ouro o ciclo mais fecundo da literatura brasileira o texto de “os sertões” tem uma história uma biografia essencial para a compreensão do livro nasceu das anotações do engenheiro militar euclides da cunha jornalista correspondente de “o estado de s. paulo” no próprio local das operações da guerra jagunços e fanáticos do antonio conselheiro contra as tropas da república das anotações às reportagens e destas ao texto final de “os sertões”

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um longo percurso textual onde euclides apostou tudo que tinha preparo científico perícia de linguagem e maestria dos recursos estilísticos da língua o retorcido o tortuoso o caudaloso o barroco positivista de euclides “estilo de cipó” é prosa em drama isomórfica com o drama que presentifica discurso deformado e informado pelo assunto o impacto que canudos provocou em euclides não foi apenas histórico geográfico antropológico sociológico foi também semiótico/poético de linguagem em canudos euclides descobriu a fala natural do sertão a linguagem popular “errada” antinormativa uma linguagem cheia de giros próprios dizeres e falares jagunços muito distantes do “sermio nobilis” da capital este impacto escapou aos exegetas de euclides

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a revelação da linguagem dos sertões está documentada na “caderneta de campo” de Euclides caderno de bolso editado recentemente pela cultrix nascedouro de “os sertões” onde euclides fazia anotações de geografia geologia operações militares episódios e incidentes da guerra muitas folhas do “caderno” estão juncadas de listas de palavras e expressões que Euclides ouvia na boca jagunça do povo linguagem/poesia viva explodindo em seus tímpanos civilizados algumas dessas expressões verdadeiros fósseis palavras e giros arcaicos mantidos no isolamento do sertão uma volta ao passado da língua euclides recolheu no “caderno” poemas populares como o “abc de incredulidade” cordel de guerra de um homero anônimo onde a crueza das idéias e expressões se expressa em bárbara ortografia o código ortográfico constitui a primeira camada protetora da língua dominante sua primeira linha de defesas

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muralha da china contra a invasão do popular do poético do novo euclides perante a tortografia social psicológica lingüística faz uma viagem psicanalítica ao passado do Brasil e dá nome ao nosso mal ele se chama alienação nenhuma paideuma brasileira (escolha de um elenco de autores vitais) que deixe fora “os sertões” pode se pretender completa com ele o euclidiano (matematicamente falando) euclides descobre o avesso antieuclidianamente e nos descobre.

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trans/paralelas DEDICATÓRIA

Se acaso uma alma se fotografasse De sorte que, nos mesmos negativos, A mesma luz pusesse em traços vivos O nosso coração e a nossa face; E os nossos ideais, e os mais cativos De nossos sonhos... Se a emoção que nasce Em nós, também nas chapas se gravasse Mesmo em ligeiros traços fugitivos; Amigo! tu terias com certeza A mais completa e insólita surpresa Notando — deste grupo bem no meio — Que o mais belo, o mais forte, o mais ardente Destes sujeitos é precisamente O mais triste, o mais pálido, o mais feio. (Euclides da Cunha, 1905)

Paulo Leminski


Traduzir de uma língua para outra é apenas um caso particular de tradução. A possibilidade da tradução está na própria raiz da natureza do signo que, diz Peirce, é “qualquer coisa que possa ser entendida através de outros signos”, numa definição tautológica, bem ao gosto do neo-positivismo. Sendo assim, pode-se entender como “tradução” todas as aproximações do tipo da paródia (=canto paralelo), que tem intuitos burlescos, da paráfrase, que tem intenções sérias, da adaptação (de um texto para o cine ou o teatro), da diluição de uma mensagem original em (quase)-similares, mais ou menos afastados do seu protótipo. São da mesma natureza todos os fenômenos que afetam a área da “influência”, na literatura e na arte comparadas. Influência de Sterne em Machado de Assis, traduções de Machado. Influência do realismo socialista em Jorge Amado. Influência da poesia espanhola (a quadra em rimas toantes) em João Cabral. Traduções. Mais literais, mais “espirituais” (conforme o “espírito”, não a letra), a vida da cultura é um processo de traduções contínuas e constantes, em que traduções se transformam em novos originais, por sua vez, traduzidos, para repertórios mais altos ou mais baixos, vindo a constituir originais novos, e assim por diante.

euclides da cunha/raimundo correia Uma das mais extraordinárias traduções da poesia brasileira é aquela que Euclides da Cunha fez, parodiando um soneto de Raimundo Correia. Nesse poema, de 1905, Euclides introduz (a 1ª vez?) a

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recém-nascida arte da fotografia na petrarquesca velharia do soneto, falando em “negativos”, em “gravação”, em “chapas”, emprestando uma súbita modernidade técnica ao fácil filosofismo do parnasiano acadêmico. O que torna mais extraordinária a “tradução” de Euclides é que há uma complementariedade forma/fundo (isomorfismo) entre a técnica da paródia e a da fotografia. A paródia, com efeito, é uma espécie de fotografia (distorcida) de um original. Ela é, em termos de Peirce, um ícone de um original (mas como a fotografia, um ícone, tendo um índice, por suporte: o soneto-paródia de Euclides aponta diretamente para o soneto de Raimundo Correia, a ele, materialmente, contíguo). Parece carregado de significado o fato de a tradução em pauta ter sido feita por um poeta-engenheiro, o militar e positivista Euclides da Cunha, que com o monopólio poético e científico de Os Sertões, reduziu a mero beletrismo a literatura de sua época, amenidades anódinas bordadas por bacharéis verbalistas e ornamentais. Euclides era um homem dos novos tempos, da inteligência técnica, científica e industrial. Sua tradução/paródia é a tradução entre dois mundos, o artesanal de Raimundo Correia e o industrial, que o cientificismo positivista anuncia (o positivismo de Comte é aideologia industrial burguesa do século XIX, assim como o marxismo, a ideologia proletária correspondente).

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significado do sĂ­mbolo

Paulo Leminski


Vamos despir a experiência sígnica dos Simbolistas, levantando os 7 véus de Isis em que eles a vestiram. A experiência é extraordinariamente concreta. Mas eles a mitificaram, camuflando-a. Simularam-se hierofantas, Celebrantes de um Rito Esotérico. Monges, praticantes de uma solidão aristocrática. Filósofos gregos, cultores de um saber: o culto do oculto. Que se esconde por detrás da parafernália simbolista? Que concreta experiência sígnica? A Chave dos Grandes Mistérios simbolistas é encontrada pela análise semiótica, ao nível dos signos. A experiência simbolista consistiu, basicamente, na descoberta do signo icônico. Na capacidade de ler/escrever o signo neo-verbal. Os simbolistas foram os primeiros modernos. Neles, a produção de textos poéticos se resolve em problemática do signo, resolução emblematizada no próprio nome-totem do movimento, o primeiro a ter nome semiótico. O que os simbolistas chamaram de Símbolo era, nada mais, nada menos, que o ícone. O Oculto, que o curitibano Dario Vellozo cultuava, apenas, a irredutibilidade do signo icônico ao signo verbal. Ícones dizem sempre mais que as palavras (símbolos) com que tentamos descrevê-los, esgotá-los, reduzi-los. O Ícone é o signo, parcialmente motivado, que tem algo em comum com seu referente, eco, rima, reflexo, harmonia expressiva, visual ou acusticamente, no plano material dos signos, no significante. Este mistério da participação do signo icônico na natureza do seu referente, mistério material, produz uma taxa de informação estética incomparavelmente maior do que aquela que conseguem gerar os símbolos, signos imotivados, arbitrários, meras convenções imateriais.

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As palavras (símbolos) dos simbolistas apontam para outra família de signos, os ícones. Não-verbal, o ícone nunca é exaustivamente coberto pelas palavras, restando sempre uma área transversal, uma maisvalia, um sexto-sentido além das palavras. Os simbolistas intuíram essa terra de-ninguém-que-seja-palavra. E nela, plantaram sua bandeira. Daí, seu célebre “amor ao vago”. O problema do texto poético simbolista é a programação do indeterminado, a “determinação da indeterminação”, como mostrou Décio Pignatari, sobre Mallarmé. Sensível-criativamente, os simbolistas anteciparam-se a uma das mais revolucionárias produções da Física Moderna, o princípio da incerteza, formulado por Heisenberg: o observador, ao observar, perturba a coisa observada (ler = escrever). À luz do verbo, todo ícone é inesgotável. Nem com todas as palavras do mundo se pode esgotar a abertura, o plural, a multivalência semântica de um desenho, um esboço, uma foto, um esquema, uma rima ícones. As palavras estarão sempre aquém, sempre menos; além, um campo de possíveis, “oculto”, “mistério”, “inefável”. “Mistério” é palavra grega que vem de um radical que significa “fechar a boca”. Só há mistérios para o código verbal. Melhor dizendo: para o interpretante do signo icônico que o aborda com os preconceitos logocêntricos da contiguidade.

ícone: antes de tudo, uma polissemia As teorias do código verbal (gramática, retórica, estilística) cedo se ocuparam do fenômeno da polissemia, a capacidade de um signo (verbal) comportar mais de um significado. No verbal, a polissemia é uma anomalia. Um desvio. Um

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caso patológico. Prova disso a presença de polissemias na retórica, como se sabe, um elenco de desvios e infrações, em relação a um grau zero, o discurso “natural” e “normal”. Tais são a metalepse (o antecedente pelo conseqüente, sinônimo contextualmente impróprio, semanticamente incorreto), a ironia (faz uma palavra significar o oposto do que significa), a paronomásia (o jogo de palavras, o trocadilho), a antanáclase (dar à mesma palavra um sentido diferente), o enantiosema (palavra com dois sentidos contrários, uma palavra que tenha um oxímoro como significado). A polissemia, anomalia para o código verbal (símbolos tendem a ser unívocos), é o estado normal dos icônicos, seu natural semântico. Uma imagem vale por mil palavras (as palavras tem que usar palavras para dizer isso às palavras, os signos, sendo, sabem disso). Outro fenômeno da esfera da polissemia verbal é a conotação, o significado segundo que se estrutura sobre um significado anterior. A conotação, opondo-se à denotação (o sentido do dicionário), é um fenômeno de sobressignificado. A conotação é de natureza icônica. Além do seu significado-padrão, registrado em dicionário, toda palavra tem um halo de ecos, uma aura ectoplásmica, campos elétricos de significados difusos em volta do núcleo denotativo. Secundária quando se usa a linguagem com função prática ou referencial, a conotação passa a ser matéria-prima quando se faz uso poético da linguagem, quando pretendemos produzir estados estéticos numa cadeia ou superfície verbal. As misteriosas reações sígnicas chamadas polissemia ou conotação só o são para o código verbal. No plano do ícone, são naturais e normais, integrantes da própria definição de ícone.

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São responsáveis por climas, atmosferas, verdadeiras ambiências sígnicas, estados de baixa definição e alta contaminação recíproca. A consciência icônica dos simbolistas pode ser observada em ação nos poemas mais conseqüentes do movimento: no “L’Aprés Midi d’un Faune”, de Mallarmé; na “Antífona”, de Cruz e Sousa; em “Horas Igneas”, de Kilkerrey; em “Palingenésia”, de Dario Vellozo...

5 Sentidos, 5 Códigos A consciência icônica inovadora do Simbolismo não se revela apenas na inconização do verbal, como na grafia fantasista da palavra “lírio” grafada pelos simbolistas como “lyrio”, a letra Y funcionando como ícone da flor/referente. Revela-se, ainda, na revolução que associamos às “Correspondances” de Baudelaire ou ao soneto das vogais de Rimbaud. No poema de Baudelaire, a natureza “é um templo”, onde o homem passa “através de florestas de símbolos” e “os perfumes, as cores e os sons se respondem”. Rimbaud, por sua vez, atribui cor a cada som vogal, numa fonética cromática, aparentemente arbitrária, fútil e gratuita. O fenômeno da tradução do código de um sentido (ouvir, som etc.) para outro (ver, cor etc.) é a sinestesia, uma operação intersemiótica (como a tradução de um idioma para outro ou de uma família de signos para outra família de signos). Toda tradução é icônica: reproduz partes de um original (o original traduzido, um Primeiro). Só informações documentais eventuais, nos idiomas naturais, são traduzíveis “ao pé da letra” (isto é, por contigüidade). Ícones, não tendo sinônimos, não são traduzíveis. O que se chama, impropriamente, de tradução é a cons-

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trução de um novo objeto, homólogo ou análogo, uma paródia (= canto paralelo), ao Primeiro. Poesia, numa mensagem, é o que se perde na tradução. Poesia é uma substância frágil demais (ou sólida demais) para ser transportada sem danos ou perdas irreparáveis. Esta intersemioticidade sensorial, explicitada por Baudelaire, nas “Correspondances”, incorporada pelo programa simbolista, ocorre em plano trans, infra ou ultraverbal, no plano icônico, no plano do Mistério e do Oculto, para quem olha os signos com telescópios verbais.

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o veneno das revistas da invenção

Paulo Leminski


Consolem-se os candidatos. Os maiores poetas (escritos) dos anos 70 não são gente. São revistas. Que obras semicompletas para ombrear com o veneno e o charme policromático de uma “Navilouca”? A força construtivista de uma “Pólem”, “Muda”, ou de um “Código”? O safado pique juvenil de um “Almanaque Biotônico Vitalidade”? A radicalidade de um “Pólo Cultural/Inventiva”, de Curitiba? A fúria pornô de um “Jornal Dobrabil”? E toda uma revoada de publicações (“Flor do Mal”, “Gandaia”, “Quac”, “Arjuna”), onde a melhor poesia dos anos 70 se acotovelou em apinhados ônibus com direção ao Parnaso, à Vida, ao Sucesso ou ao Nada.

poesia, uma coisa pra nada Lavra, faz tempo, um “boom” poético, nestas partes pudendas, descobertas por Cabral. Livros. Livretos. Folhas. Folhetos. Grafitis. Gravetos. Vagas. Ondas. E, sobretudo, poetas. Índice, eu acho, de uma insatisfação com a(s) linguagem(ns) vigentes e seus limites. Afinal, se a poesia tem algum papel nesta vida é o de não deixar a linguagem estagnar, deitada em berço esplêndido sobre formas já conquistadas. Sobre clichês. Sobre automatismos. Papel de renovar ou revolucionar o como do dizer. E, com isso, ampliar o repertório geral do o que dizer. Formas novas, qualquer malandro percebe, geram conteúdos novos. Para a poesia, alargar as fronteiras do expressável. Um poema — um dia, respondi a um repórter que queria saber — é o contrário de uma notícia de jornal. Uma notícia de jornal diz coisas previsíveis e, portanto, possíveis: Irã Sequestra Corpo Diplomático dos Estados Unidos. URSS invade o Afeganistão. Direita Vence Eleições em El Salva-

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dor. Recrudesce a Luta no Oriente Médio. Já a poesia fala de coisas que ninguém previa, impossíveis, nadas: “Tinha uma pedra no meio do caminho” (Drummond). Quem diria que um súbito obstáculo iria sustar a marcha do bardo? “A Carne é Triste e eu Li Todos os Livros” (Mallarmé). Ninguém poderia imaginar que a carne e os livros poderiam sair juntos na mesma notícia. Querem mais uma nãotícia? “Tu pisavas nos astros distraída” (Orestes Barbosa). Ora, vamos e venhamos, mas essa da nêga pisar em estrelas é dose. E distraída, ainda por cima! Não param aí os absurdos. Quando você menos espera, vem um português magrinho, bêbado, que diz, detrás de um bigodinho chaplin-hitleriano: “O poeta é um fingidor/finge tão completamente/que chega a fingir que é dor/a dor que deveras sente”. Aí é demais. O desrespeito pela santidade da lógica e da realidade é de molde a fazer qualquer leitor, medianamente instruído, torcer o nariz. Nisso, o Augusto de Campos chega e encerra o assunto, mandando aquele abraço para o espaço cósmico: “Abra a janela e veja/o pulsar quase mudo/abraço de anos-luz.” Abraço de anos-luz! Chega. Eu passo. É pra isso que poesia existe. Pra dizer o que não se diz. E só assim aumentar o campo dos prováveis do dizer. Para bem de todos, da poesia à prosa. Subversivamente. Nos anos 70, a poesia que mais fez isso foi a que esteve nas revistas. As revistas são a obra-prima da poesia brasileira, na década que acabou de passar. Mas não pára. Porque na vida dos signos superiores, gratuitos, o que passa, fica. E só fica o que passou, forte. O subversivo dessa linguagem casou, de véu e grinalda, com a era das nanicas jornalísticas (“Pasquim”, “Movimento”, “Coojornal”, “Em Tempo”, “Versus”, “Repórter”), e críticohu-

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morísticas (“Ovelha Negra”, “Raposa”, “Risco”, “Pato Macho”), alternativas-quixote para o sanchopança do jornalismo oficial, acadêmico e rotineiro, conformado e auto-satisfeito. Jorraram nanicas na Idade das Trevas, sob a sombra do AI-5. Foi a idade da imprensa pobre, “povera”, precária, aquém dos padrões empresariais da banana-maçã (ou ouro) da imprensa vigente; E muito além dela quanto independência de opiniões, contacto com as bases, contundência crítica e originalidade criativa. As migalhas de dinheiro que caíram das mesas da fartura do “milagre brasileiro”, talvez, consigam explicar alguma coisa da facilidade com que os pequenos jornais e revistas proliferaram nos anos 70. Com a alta do petróleo e a carestia geral, aventuras como as nanicas começaram a se tornar, financeiramente, menos prováveis. As bombas nas bancas, intimidando o intermediário, agravaram ainda mais o quadro clínico das nanicas. Quantas vão bem das pernas hoje?

nanicas na produção Par e passo com as nanicas de consumo (tipo “Pasquim”), a geral e as arquibancadas (mais estas que aquela) assistiram ao desfile das nanicas de produção, onde os poetas mais jovens procuraram criar novos processos e novas formas de dizer, dizendo coisas novas. Enfim, isso que chamam por aí de poesia. Com o passamento dos suplementos literários nos jornais, que marcaram os anos 50/60, a minoritária linguagem da poesia buscou novos leitos e novos leitores para fazer correr seu leite (essa foi de lascar, hein, Régis?). Pequenas revistas, atípicas, prototípicas, não típicas, coletivas, antológicas, representando um grupo ou tendência (“formalistas”, pornô, “marginais”), onde predominou a faixa

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etária dos 20 aos 30 anos. Em comum: a auto-edição (samizdat), todo mundo juntando grana para comprar a droga da poesia. Antologias: essa coletivização do aparecer (se não do fazer) corresponde a uma politização, mesmo que não explícita. E a escolha da revista como veículo (mais que um jornal, mas menos que um livro), a uma posição estético-filosófica: a eleição do provisório, a arte e a vida do horizonte do provável, a renúncia e o repúdio do eterno por parte de uma geração que cresceu à sombra do apocalipse. Talvez não haja mais tempo para a glória. Só para o sucesso. Assim como não há mais lugar para a emoção. Só para o suspense. Entre essas nanicas de produção, dá pra distinguir muito bem entre umas, de design de nível baixo, e outras, com um repertório mais alto de informação plásticovisual. Aquelas com programação visual nível gráfico-técnico inferior à média das publicações correntes, meros suportes-excipientes de poemas, impressos corriqueiramente, sem a consciência da plasticidade do texto-página. E aquelas que, de certa forma, herdaram o apuro industrial e o elevado repertório gráfico-visual das revistas da Poesia Concreta paulista nos anos 50/60 (“Noigandres”, “Invenção”).

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grande ser, t達o veredas

Paulo Leminski


A pois. E não foi, num vupt-vapt, que as altas histórias gerais da jagunçagem deram de ostentar suas prosápias e bizarrias no tal horário nobre da caixinha de surpresas, pro bem e pro mal, Rede Globo chamada? Compadre mano velho, mire e veja as voltas que o mundo dá. Quem haverá de dizer que toda essa aprazível gente cidadã ia botar gosto em saber das fabulanças daqueles tempos, quando o desmando e a contra-lei atropelavam os descampados do Urucuia, lá praquelas bandas brabas, onde tanto boi berra? Só dizendo mesmo, a bem dizer, como proclamava meu compadre de Andrade, Oswald, dito e falado, lauto fazendeiro de S. Paulo: a massa ainda vai comer do biscoito fino que eu fabrico. A graça que ia nisso! Tinha muita graça meu compadre de Andrade. Mas o senhor, que é homem instruído, não faça pouco nem ponha reparo nas facéias do compadre Oswald. Era homem sabido de esperto, e quando parecia que estava mais se rindo, mais se estava falando sério. Tudo questão de tino, coisa que é que nem coragem, que tem, como tem gente que não vai ter nunca. De modos que esse brazilzão todo, rol de gente de nunca acabar, está ficando sabendo, devagarinho, das andanças do jagunço Riobaldo Tatarana, ao lado do seu querido Reinaldo, vale dizer Diadorim. Só que tem um desconforme. A gente não sabia de principio, que Reinaldo era mulher, que nem a gente já fica sabendo nas televisivas fabulanças. E se bem me alembro, a memória tem dessas coisas, Reinaldo não era tão bonito como essa beleza de dona Bruna, Lombardi chamada, italiana tirana de tanta boniteza. Semelhava assim, no psico do olho, uns jeitos de garoto nos seus quinze, o mais tardar seus dezessete anos, emborasmente mais judiado, que a jagunça vida nasceu pra dar formosura pra ninguém. Nem ninguém jagunceia por picardia, jagunceia por pre-

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cisão.

Tarcísio Meira? Meira, dos Meida de Buritis-Altos? Ah, não. A pois. Veja você, que a gente de prol e de escol, mire e veja. Não assemelha o Hermógenes. Não, Deus esteja. T’arrenego, e esconjuro! O cão com o cão, e faca na mão! Aquilo não era criatura de Deus, quem viu, viu sabendo, e bem sabido. Era feio como a necessidade, ninguém nunca deitou os olhões num indivíduo mais puxado a sapo, que até cascavel, pra quem gosta, até tem lá suas graças e desenhadas cores. E, despotismo de calamidades! Teve o fim que mereceu, que o diabo escolhe quem quer, Deus só escolhe os seus. Do Diabo? Diá? Diadorim? Do diabo, não se fala. Que diabo hoje não faz pavor na gente cidadã. Que diabo, que nada! o coisa-ruim, o que-nem-se-diga, o diantre, o dívida-externa, o Aids, o inflação, o Delfim-Netto! Acreditar não digo que a gente acreditava. Difícil era achar quem duvidasse, o senhor releve a sutileza, que é cortesia de jagunço velho, mor de não estragar a pontaria. Pontaria, pontaria mesmo, quem teve nunca deixou de ter, foi Riobaldo Tatarana Guimarães Rosa, esse o nome cabal e completo, homem de muitas letras, nenhum igual ninguém nunca nem viu. A pois, mano velho. Tino e siso era ali, jagunço de caudaloso cabedal, tiro certeiro no olho da onça jaguareté, pau a pau, pum e pum. Quem dissera? Nem quem diria! Aquela parolagem toda, jaguncismo de lei, no tal nobre horário da Rede Globo chamada... Custoso é o mundo de entender, custosa a fala de Riobaldo Tatarana Guimarães Rosa. Aquilo é falar de cristão, cruz-credo, me persigno!? Nem nenhuma lei de sã gramática aquele jagunço reverenciava, e era tudo um redemoinho de sustos, que gente como nós é minuciosa nas artes do sem-sobreaviso. Surpresa só. Vá que a gente cidadã nos seus nobres horários vá saber o que

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a gente só dizia no oco do toco, o senhor que é de lá me diga... e a caixa de surpresa, televisão chamada, não tem validade de forças pra suflagrar no durante e no seguinte, os cafundós de filosofismo que Tatarana Guimarães Rosa enredava naqueles cipós lá dele... que esse Tatarana fosse o Homero desses brasis todos, Homero, o senhor sabe, o Adão dos cantadores... Divago. Mas não disperso. Esse rural acabou. A pois. Mas que foi muita coragem desse tal siô Avancino, Avancini, o senhor me corrija e reja, de ponhar em vídeo e áudio tanto caudal primitivo, que isso foi, foi macheza, ninguém duvida, quem haverá de? Eh, mão de obra! Efetuar proezas é da vida, e o que for do homem, o bicho não come. Contar é que empecilha, a lembrança não pousa nunca no mesmo lugar, e o dito nunca fica como foi, nem o escrito, que só vem muito depois. Consoamente meu compadre falecido Tatarana, na glória esteja! Costume e tenho bom uso de dizer, que com ele aprendi, “viver é muito perigoso”. Vê lá se televisionar não haverá de ser!

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e o vento levou a divina comĂŠdia

Paulo Leminski


E aí também aconteceu a Messer Alighieri, até a ele, aquele comum destino de morrer, e no leito de morte, no amargo exílio, Alighieri falou pela última vez, e disse a seus filhos: — Deus me perdoe por tudo o que eu fiz. Dito isto, crispou o rosto com uma última dor, e entregou a alma aos outros mundos, onde prossegue a vida humana. Na Comédia que deixava, Alighieri tinha se fantasiado como o único homem que, vivo, tinha percorrido os domínios depois da morte. Em ficção, em texto, tinha estado no Inferno, no Purgatório e no Paraíso, antes de morrer. Impossível idéia maior. Durante toda a sua vida, Messer Alighieri sofreu com a idéia de que tinha tido uma idéia excessiva, uma intuição poética tão alta e tão funda que só podia ser pecado. Pecador que era, teceu os tercetos da sua Comédia durante cinqüenta anos, eu, pecador, me confesso, estou escrevendo o poema que não deveria estar sendo escrito, eu estou imaginando o inimaginável. Agora, era a hora de prestar contas da vida, dos pensamentos e das obras. Mereceria o Inferno, pelo orgulho de se imaginar, vivo, atravessando os três reinos depois da morte? Era demais. Não é possível. A misericórdia divina sabia, a vaidade dos escritores é a fortaleza dos fracos, daqueles que não conseguiram poder pelas armas, pelo dinheiro ou pelas influências junto aos magnatas. Purgatório, talvez? Esse reino intermédio parece o lugar perfeito para Dante, como o é para todos nós que pecamos apenas um pouco, a destinação dos pecadores razoáveis, aqueles que, entre a virtude heróica dos eremitas e a depravação extrema dos artistas de teatro, escolheram a dourada mediania dos pequenos vícios, das infâmias mínimas, os medíocres em vício

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e virtude. Não pode ser o lugar para Dante. Com seu poema, ele pede ou a glória ou a danação. Nada menos que isso seria digno dessas estrofes, perfeitas, absolutas, divinas. Mas Deus, que é justo, porque é pai, decretou diferente, muito além da nossa justiça lógica. Dante foi condenado a ser amado pelos homens, e seu poema blasfemo e sacrílego a ser repetido por todos os séculos dos séculos, amém. E assim será para todo sempre: “No meio do caminho da vida, me vi no meio de uma via transviada, o resto era tudo estrada.”

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poeta roqueiro

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Aí vem o primeiro marginal. Vivesse hoje, Rimbaud seria músico de rock. Drogado como o guitarrista Jimi Hendrix, bissexual como Mike Jagger, dos Rolling Stones. “Na estrada”, como toda uma geração de roqueiros. Nenhum poeta francês do século passado teve vida tão “contemporânea” quanto o gatão e “vidente” Arthur Rimbaud. Pasmou os contemporâneos com uma precocidade poética extraordinária — obras-primas entre os 15 e os 18 anos. De repente, largou tudo, Europa, civilização ocidentalcristã, literatura e, cometa, se mandou para a Abissínia, na África. Lá, longe da Europa branca e burguesa que odiava, levou a vida de mercador árabe, traficando armas, varando desertos nunca antes pisados, vivendo a grande aventura infantil, pré-figurada em seu nome de rei lendário. Breve durou esse Camelot. Da África, o rei Arthur voltaria à França para amputar uma perna e morrer, de câncer, num hospital de Marselha, delirando poesia, cercado por padres e sua irmã, ávidos pela confissão desse blasfemo. Claro que uma vida assim não caberia em versinhos. E uma ampla prosa, de sopro largo e rebelde a todas as medidas, que Rimbaud escreveu Uma Temporada no Inferno e Iluminações, agora, mais uma vez, à disposição do público brasileiro, na apaixonada tradução do poeta Ledo Ivo. A indisciplinada e genial verborragia infanto-juvenil desse precursor dos surrealistas não levantaria maiores percalços a seu tradutor. O texto de Rimbaud, no caso, é uma prosa fluente, trepidante de arroubos e entrecortada de interjeições sem muitos acidentes de métrica ou armadilhas de arquitetura e engenharia. Nada que exigisse as proezas, digamos, dos irmãos paulistas Haroldo e Augusto de Campos, com suas insuperáveis transfigurações de textos impossíveis para o repertório e oconsumo brasileiros. Uma Temporada no Inferno traz poemas de métrica regular. Mas, nestes, o tradutor de Rimbaud pisou na

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bola, não lhes conseguindo a métrica que não se cobra do tradutor comum mas, sim, de um que tem nome de poeta nas antologias escolares, caso de Ledo Ivo. A despeito do português um pouco “escrito” demais para Rimbaud (como certos “tende”, “voltais”, “dar-lhe-ia”), o poeta, sem ledo engano, se saiu bem da empresa. A garotada que pinta agora tem muita sorte de ter essa tradução, para curtir e aprender com seu irmão mais velho de um século atrás — auxiliada pela estudiosa introdução de Ledo Ivo pelos meandros de uma das mais portentosas peripécias poéticoexistenciais do Ocidente. Enfim, como diz o próprio poeta: “Eu é um outro”. A melhor poesia de Rimbaud esteve, porém, em seu gesto final: a recusa do “sucesso”, a escolha do “fracasso”, a derrota da literatura, inimiga da poesia, para que esta triunfasse.

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aventuras do ser no nada (quem tem nรกuseas de Sartre?)

Paulo Leminski


— Vim te matar. — A essa hora? Pra quê? — Soube que você está escrevendo matéria sobre Sartre. — É pecado? — Em Curitiba, só eu posso escrever sobre Sartre. — Com o perdão dessa arma apontada para mim, não sei o que vocês vêem nesse francês com cara de sapo, que acabou a vida mijando nas calças, num pileque contínuo. — Vê lá como fala. — Falo como Sartre falaria, diante de uma arma. Como você acha que ele falou, quando a Gestapo o prendeu, na Resistência? — Esse não me interessa. — Ah, você prefere o Sartre das palavras. — Fora das palavras, não há salvação. — Abaixe essa arma, pare de bobagem, sente aí e vamos conversar sobre. — Está bem. Mas um gesto, e eu transformo seu para-si em em-si. — Enquanto você elucubra aí, não se incomoda se eu terminasse de ler isso aqui? — Sobre o que é? — Adivinhe. — Ah, sei. — Que é que você acha disso: “Sartre é o último filósofo grega Depois dele, só são possíveis MacLuhans”. — Não acho nada. — “Teórico e ficcionista, antes de tudo, teve pela ação e pela militância um amor não correspondido: todas as suas agitações políticas, em termos de ação, sobre a sociedade francesa, foram menos que um fracasso. Foram apenas o nada”. — Continue.

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— “Contra o existencialismo, Sartre cometeu o crime supremo. Escreveu O ser e o nada, vasto tratado, suma teológica de uma doutrina filosófica que exalta a experiência individual, anti-teórica e contrária a toda e qualquer suma teológica. Cedo, Jean Paul percebeu que a forma perfeita para a exposição de suas teorias já existia. Não era o discurso conceitual de seus mestres, o teutônico delírio conceitual de O Ser e o Tempo, de seu mestre germânico Heidegger, o estilo de jogo de Kant e de Hegel. O existencialismo, por sua própria natureza, só poderia ser exposto através da ficção. Do conto. Da novela. Do romance. Com Sartre, a ficção transformou-se no gênero literário (textual) do existencialismo, veículo ideal de seus princípios”. — Prossiga. Ainda lhe concedo uma página. — “Difícil dizer, em Sartre, se é o filósofo que abastece o escritor ou o escritor que abastece o filósofo. De qualquer forma, o autor de A náusea deu à literatura o status e a dignidade da filosofia. E, naturalmente, à filosofia, a cor e o movimento da literatura. Criou conceitos que se tornaram, em nossa época, moeda comum. A expressão “engajamento”, foi ele que criou. “Autencidade”. “Angústia”. “Má consciência”. “Escolha”. E teve dois amores: Simone de Beauvoir e o marxismo...” — Pare aí, senão... — Deixe eu pular para: “A invasão da Hungria pela União Soviética, para sufocar um movimento popular e nacional, fez com que Sartre rompesse seu alinhamento com a URSS stalinista. Como teórico, aliás, não deve ter sido fácil a tarefa do profeta das “caves” post-guerra, cheias de pré-beatniks, camisas de gola enrolada, barbas por fazer, jazz e álcool na cuca. Seus filhos, depois seriam, nos Estados Unidos, “beatniks”. E seus netos, os “hippies”. O existencialismo é a metafísica do individualismo ocidental e capitalista”. — Páre, senão eu atiro.

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— Não atire. Eu me rendo. Digo aqui que “O problema teórico de Sartre foi, sendo existencialista, isto é, seguidor de Kierkegaard, assumir um pensamento hegeliano, como o marxismo. Existencialismo e Hegel não combinam. Para Hegel e o marxismo, saído dele, o concreto é o geral: a classe social, o sindicato, o Estado. O particular e o individual não passam de abstrações. Para Kierkegaard de o Existencialismo é exatamente o oposto. O geral é abstrato. O individual é concreto. Sartre nunca conseguiu resolver essa contradição. Ainda bem. Ao que tudo indica, não tem solução”. — Fique aí onde está. — “O interessante em Sartre é que esse conflito filosófico de grandes proporções acaba sendo pai e mãe de sua ficção e seu teatro, única saída que achou para conciliar Hegel e Kierkegaard”.— Mais uma dessa não vou aturar. — “No fundo, o existencialismo de Sartre é a tradução da impotência política da intelectualidade francesa, no quadro histórico da França do pós-guerra”. — Não é o bastante. Um tiro na noite é coisa que quem dorme nem nota.

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tĂ­midos e recatados

Paulo Leminski


Só o respeito por seu teatro extraordinariamente inventivo e, talvez, um preconceito ideológico ainda nos fazem ver no alemão Bertolt Brecht (1898-1956) um grande poeta, no século que produziu exageros bem maiores. Com certeza. A obra poética do gênio teatral que inventou o célebre “distanciamento” não suporta confronto com a obra de um Vladimir Maiakovski, um Velimir Khliebnikov, um Ezra Pound, um T. S. Eliot, um E. E. Cummings, um Fernando Pessoa. Comparada com a destes gigantes, a poesia de Brecht é tímida formalmente e pedestre em seus achados. Inútil procurar nela os mergulhos abissais dos futuristas russos nos abismos da linguagem ou as infratoras aventuras gráficas de um Cummings. Nem teria sentido procurar na poesia deste comunista ortodoxo as onginalidades metafísicas e existenciais que seu credo político, certamente, repudiaria como alienações burguesas Não que Brecht fosse adepto do simplismo estético e literário do famigerado realismo socialista. Contra o teórico Georg Lukács, por exemplo, defensor da tradição literária, Brecht sempre manteve as mais corajosas posições de vanguarda artística, aliada à militância política de esquerda. Mas isso dizia respeito principalmente ao teatro, arte onde Brecht inovou como poucos. A lírica brechtiana, porém, sempre se moveu num território muito estreito, indo do primarismo métrico do poema Do Pobre B. B., injustamente célebre, a registros circunstanciais, notáveis apenas porque saltam da mesma mente que criou peças como O Senhor Puntila ou Mãe Coragem. Isso, no entanto, não é um juízo definitivo. Há quem veja exatamente nessa simplicidade e nesse aparente à vontade uma marca de suprema excelência poética. Há, sem dúvida, um lastro muito grande de prosa na poesia de Brecht, aquele lastro discursivo de quem carrega uma

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ideologia e se crê porta-voz dela. Em Brecht, encontramos lucidez e ironia, sarcasmo e relâmpagos críticos. Mas também momentos ridiculamente retóricos, como nesse O Grande Outubro, poesia celebrativa da pior espécie, ode ginasiana em louvor da Revolução Russa. Ou em poemas ingênuos, como aquele chamado Rapidez da Construção do Socialismo, que parece ter sido encomendado por Stalin. Esta edição dos poemas de Brecht é bem o momento de dizer um “basta” a uma idolatria indevida. Como poeta, Brecht não merece a fama que desfruta. É um poeta ocasional, que dedicou seu gênio a outra arte. O grande poeta de esquerda é Maiakovski. Esse sim soube ver (e fazer) que “não há arte revolucionária sem forma revolucionária”. Brecht, porém, nos suscita uma questão inquietante. A velha questão sobre o que é poesia. E suas brevidades prefiguram certas tendências da poesia do século XX, o registro relaxado de certas vivências, o fragmentarismo da dicção, o coloquial sem nobreza. Em seus melhores momentos, Brecht realiza uma poesia que se sustenta apenas na idéia. No saque. Numa fulgurante intuição, que ilumina a realidade e a vida. E parece que isso foi o que ele procurou atingir enquanto poeta. Atingir esse Brecht através de uma tradução não parece tarefa fácil. No caso, a tarefa coube a Paulo César Souza, professor de alemão e íntimo da língua de Goethe. Sua tradução, porém, é apenas literal, nãocriativa, uma transposição pelo sentido, sem muita atenção aos elementos formais, materiais, do texto de Brecht. Mas é, nesse sentido, uma tradução idônea e competente. Para os poemas de Brecht, esse grau de competência basta.

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tradução dos ventos

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Os japoneses estão chegando. Desta vez, não é mais um clássico como o haikaisista Matsuo Bashô, já conhecido do público letrado brasileiro. Ou um Prêmio Nobel como Kawabata. Ou um genial samurai de direita como Mishima. É o terno Takuboku Ishikawa, autor destes Tankas, carinhosamente publicados, em edição bilingüe, com transcrição alfabética, para aqueles que querem, além da palavra, a música e a imagem da poesia. Quando Ishikawa nasceu, filho de um religioso budista, em 1885, fazia vinte anos que o Japão, aberto para o comércio com o Ocidente, industrializava-se em alta velocidade. Nesse mundo de rápidas transformações, Ishikawa, como bom poeta romântico, amargou seus 27 anos, levando uma vida de tuberculoso, infernizada por dificuldades econômicas, confusões amorosas e familiares, além de fundas tensões ideológicas. As idéias socialistas eram uma novidade no Japão e a elas Ishikawa se atirou com todo o seu entusiasmo juvenil. É significativo da sua época ver um poeta japonês, praticante de uma forma aristocrática de poesia como o tanka, veiculando idéias de revolução e solidariedade com a classe trabalhadora. Nada mais estranha à literatura japonesa do que “preocupação com problemas sociais”. Além disso, os círculos literários que Ishikawa freqüentou estavam profundamente influenciados pela literatura que se fazia no Ocidente, na época: Baudelaire, Mallarmé, Verlaine, Zola. Mas foi numa forma ancestralmente nipônica que Ishikawa traduziu os vários ventos que sopraram sobre ele. O tanka (ou waka), que ele praticava, é o primo rico do haikai, que o Ocidente já conhece há um século. Mais velho de, pelo menos, mil anos que o haikai, o tanka é uma forma fixa ligeiramente mais longa (31 sílabas) do que as parcas dezessete sílabas do hai-kai. Sempre foi a forma nobre da poesia japonesa, praticada nos círculos aristrocráticos e imperiais. Nas mãos de Ishikawa, o tanka

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funde a pungência do passado com as pressões do irremediável presente que acabava de chegar: Há dias em que eu penso Ser minha linguagem, Talvez, a do venta A respeitável tradução brasileira, conduzida por dois poetas, um japonês e um brasileiro, dão conta muito bem do significado básico do original dos Tankas. Não se trata, porém, de uma transcriação. Não foi recriada em português a fina tessitura de jogos sonoros que fazem a graça específica de Ishikawa e da poesia japonesa em geral, espelhismos sonoros onde as palavras se refletem como reflexos da lua na água. E passaram inadvertidos muitos jogos contidos nos ideogramas do original. Mas o essencial, talvez, já está conosco: Mostrar um milagre qualquer E desaparecer Enquanto estiverem surpresos

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prosa estelar

Paulo Leminski


Os astronautas do texto que se preparem. Depois de 21 anos de trabalho e navegação, finalmente brilham as Galáxias do poeta, tradutor e ensaísta Haroldo de Campos. No início da viagem, o autor era um dos promotores da poesia concreta, e foi na extinta revista Invenção que publicou o plano de vôo e os primeiros fragmentos dessa sua “prosa longa”. Ampliando as fronteiras do projeto concreto, até então voltado principalmente para o poema curto, a carta de navegação espacial de Haroldo de Campos previa um livro de 100 páginas, permutáveis como as cartas de um baralho. Ele não chegou às 100 páginas, mas montou textos que não precisam ser lidos em sequência, registrando, no todo, o monólogo exterior de um poeta. Galáxias é um livro difícil — num fluxo contínuo e sem pontuação, o escritor vai do “raro ao reles”, num trajeto que se expande para todos os lados, englobando experiências sensoriais e intelectuais, leituras e aventuras, vida e literatura num só momento textual. Ou, como escreve o próprio Haroldo de Campos: Um livro de viagem em que o leitor seja a viagem um livro-areia escorrendo entre os dedos. Completado o percurso, cabe a pergunta: Galáxias é prosa ou poesia? Entre a força centrífuga da prosa e a centrípeta da poesia, esse livro representa uma síntese, uma espécie de momento de repouso entre dois ímpetos que seguem em direções opostas. Nessa experiência literária, Haroldo de Campos partiu também de extremos opostos, como a contenção poética das últimas obras do poeta francês Stéphane Mallarmé, e a prosa alucinada do Finnegans Wake, o derradeiro romance do irlandês James Joyce. No final, a prosa parece sair ganhando por pouco no livro de Haroldo de Campos. E, no ambiente da prosa,

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Galáxias representa a experiência mais radicalmente inovadora levada a cabo no Brasil desde 1956, quando foi publicado Grande Sertão Veredas, de João Guimarães Rosa.

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bonsai niponização e miniaturização da poesia brasileira

Paulo Leminski


Felizmente, não se realizou a profecia de Rudiard Kipling: “O Ocidente é o Ocidente, o Oriente é o Oriente, jamais se encontrarão”. Por desencontrários caminhos e variadas encontrovérsias, Oriente e Ocidente, cada vez mais trocam sinais, apressando a unidade cultural da espécie humana, agora, em velocidades cibernéticas. Todos os homens são, enfim, herdeiros da produção cultural de todos os homens, de todos os povos, de todas as épocas. Os hindus são meio ingleses. A China adota Marx, e o chineseia. Os beatniks e os hippies da Califórnia e do mundo descobrem o continente-zen. A Ásia incorpora a tecnologia e a ciência européias. Mas o Ocidente é inundado pela yoga, pelas artes marciais, pela macrobiótica, por técnicas de massagem, pela acupuntura, pelo IChing, pela ginástica “tai-chi”, por mantras, nirvanas, “gurus” e “hare-krishnas”. No plano horizontal, a influência do Ocidente, infinito da técnica, de horizonte a horizonte, como esta frase que escrevo, na horizontal, da esquerda para a direita. O Oriente, o vertical, o mergulho nos abismos simbólicos dos signos ancestrais, os mantras, o inconsciente coletivo, a “alma”, o universo esquecido, lá em baixo (na escrita chinesa e japonesa, as frases são escritas de cima para baixo). O Japão é o olho-do-ciclone do entrecruzamento Oriente/Ocidente, horizontal/vertical. Estranho de tudo é que as mais recentes conquistas da arte ocidental coincidam com características da arte japonesa mais tradicional: — montagem atrativa (Eisenstein): ideograma, nô, kabúki; — distanciamento épico (Brecht): Nô, kabúki;

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— port-manteau-words, montagens verbais lewis-carroljoycianas: -”kakekotaba”, as “palavras penduradas”, da literatura japonesa (Nô, waka, tanka, senryu, haikai;). — música “minimal” (Glass): música japonesa tradicional; — miniaturização e síntese poética (e. e. cummings, Pound, Wiliam Carlos Wiliams, Oswald, poesia concreta) haikai, waka, tanka. — linguagem analógica, ideogrâmica, não discursiva (Mc Luhan, poesia concreta). No Brasil, a primeira influência direta da poesia japonesa parece ter sido sobre os Modernistas de 22, através de traduções francesas. Guilherme de Almeida, nos anos 20, fez os primeiros “haikais”, adotando as três linhas (versos com cinco, sete e cinco sílabas), mas introduzindo um artificioso e maneirista sistema de rimas, que não existem em japonês (o superego parnasiano do soneto era muito forte...). Oswald de Andrade, amigo e parceiro de Guilherme, deve ter tirado do haikai a idéia para seus “poemas-minuto”, milionários segundos de ultra-informação. O ideal de brevidade advindo do haikai não morreu com 22. Encontramo-lo no Drummond em cujo caminho havia uma certa pedra... Ou no Drummond, que se perguntava: “Stop. A vida parou. Ou foi o automóvel?” O imagismo do haikai ainda compareceria na poesia altamente icônica de Murilo Mendes. Ou na do isolado Mário Quintana. A soneteira e suporífica Geração de 45 demonstrou todo o seu baixo repertório, ignorando-o.

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Nos anos 50, a palavra “hai-kai” é incorporada ao vocabulário brasileiro, através do humorista Millôr Fernandes, que popularizou a palavra entre nós. Millôr é autor de inúmeros haikais notáveis. Nessa mesma década, em S. Paulo, a poesia concreta proclamou a excelência do pensamento ideogrâmico, como método de composição poética. E começou a praticar uma poesia breve, sintética, anti-discursiva, verdadeiros hai-kais industriais. Nos anos 70, por fim, a garotada da poesia marginal ou alternativa, crescida com manchetes de jornal, frases de “out-door” e grafittis nas paredes das cidades que inchavam, começou a fazer “hai-kais”, até sem querer. Waly, Chico Alvim, Chacal, Régis, Ana Cristina César, Alice Ruiz, todos o fizeram. Fazem. E farão. Hai-kai é o nosso tempo, baby. Um tempo compacto, um tempo “clip”, um tempo “bip”, um tempo “chips”. Essas brevidades lembram aquelas árvores japonesas, as árvores “bonsai”, carvalhos criados dentro de vasos minúsculos, signos e seres vivos, produtos da arte e da paciência Explique quem puder. Os japoneses já estavam lá.

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hist贸ria mal contada

Paulo Leminski


Neste Natal, você, leitor brasileiro, descontente com os rumos da ficção nacional, pode prestar um grande serviço às nossas letras. Dê a seu ficcionista favorito uma máquina fotográfica e um manual de instruções. Ele vai ficar radiante por poder realizar sua verdadeira vocação secreta. E nós vamos ficar livres de tantos contos e romances que se querem literatura mas não passam de jornalismo enfeitado com plumas e paetês do estilo mais em voga. O mal é de família. Foi no século passado que a ficção brasileira contraiu o vírus do naturalismo, uma espécie de AIDS literária, que não deixa o escritor tirar os pés do chão. Desde então, a obsessão da narrativa brasileira é “refletir” a realidade nacional, como se a literatura pertencesse ao ramo da comercialização de espelhos. Nesse ponto, a ficção latinoamericana em geral dá um baile de bola em nossos contadores de histórias. Não admira o sucesso que tiveram entre nós, e continuam tendo, os Borges, os Cortázar, os Rosa e os Bastos, os Lezama Lima, os Juan Rulfo da vida e da literatura. Comparada com o nosso naturalismo pedestre e fotogênico, a ficção latinoamericana parece uma literatura que enlouqueceu. Nós raramente enlouquecemos. Um certo bom senso lusitano pesa em nós como uma lei da gravidade que sempre nos devolve à terra a um nível imaginativo digno do dono do armazém da esquina. Boa parte da nossa ficção é contabilidade. Peguem o caso do chamado romance social dos anos 30. Tirando o caso de Graciliano Ramos (o de São Bernardo, não o de Vidas Secas), aquilo é naturalismo puro, aspergido com as águas bentas do realismo socialista. No plano da linguagem, não há nada naqueles Lins do Rêgo, naquelas Rachel de Queiroz, naqueles José Américo de Almeida, naqueles Érico Veríssimo que já não estivesse em Flaubert, em Émile Zola, em Eça de Queirós ou em Aluísio Azevedo.

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Em Jorge Amado, uma certa ebulição imaginativa e lírica, provocada, talvez, pela pimenta baiana, escapou, às vezes, dessa maldição fotográfico-naturalista que, como a liberdade do hino, abre as asas sobre nós. E produziu esse fenômeno: Jorge, o escritor menos amado pela crítica e pelos intelectuais, é, até hoje, um campeão imbatível de vendagens e nossa única ameaça séria ao Prêmio Nobel. A evolução fotográfica da nossa ficção, com sua compulsão acadêmica, deixou de lado algumas de nossas riquezas naturais. Machado de Assis, por exemplo, essa esfinge negra que até hoje ri de todos nós. Nunca vou me conformar com o fato de que o autor de Memórias Póstumas de Brás Cubas, um romance de vanguarda em 1881, seja também o fundador e primeiro presidente da Academia Brasileira de Letras. Machado, realmente, tinha muito senso de humor, esse humor que, dizem os entendidos, é a forma superior da inteligência. Humor era o que não faltava ao paulista Oswald de Andrade quando, nos idos de 20, publicou suas Memórias Sentimentais de João Miramar e Serafim Ponte Grande, romances em mosaico, brincando com todas as formas e fórmulas. Nossa ficção atual, infelizmente, não descende de Machado nem de Oswald. Descende do realismo socialista, acadêmico e naturalista, dos anos 30 e conta com o apoio irrestrito do mercado, natural patrocinador de todas as tendências médias, vale dizer, vendáveis. A historinha acessível, com começo, meio e fim, chega muito mais fácil à lista dos best-sellers, ao cinema, à rede Globo, aos nossos milhões de queridos ouvintes. Para que complicar as coisas? Os tempos estão difíceis. A inflação é alta. Os escritores, como todo mundo, precisam vender, fazer sucesso e, se possível, comer e tomar Chivas Regall, como qualquer pessoa neste país, já não tão tropical, mas sempre abençoado por Deus e bo-

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nito por natureza. A abertura do mercado internacional, via traduções, também não aliviou nosso lastro naturalista e fotográfico. Ao contrário, europeus e americanos gostam mesmo é de Carnaval, mulata e samba. Em termos de linguagem, isso significa mais naturalismo, mais fotografia, menos experimentação e mais fidelidade a um certo padrão de literatura em que o típico e o exótico sejam servidos numa bandeja contendo acarajé, licor de pequi, doce de goiaba e o abacaxi de Carmen Miranda. É o Brasil rural que triunfa, com três gols de Jeca Tatu. A experiência urbana, em termos de linguagem e de vida, ainda não tem status, literário, pelo menos a vivência da solidão e da solidariedade da metrópole ainda não teve seu narrador. Há uma estranha força conservadora na ficção. As grandes revoluções literária brasileiras, que nem são tantas assim, envolveram principalmente a poesia e os poetas. A prosa de ficção ficou assim sempre como um lugar onde as coisas se mantêm. O lugar do bom senso e do bom gosto e, sobretudo, o da forma de sucesso garantido. Mas até nesse terreno as queixas prosseguem. A ficção brasileira atual não está conseguindo realizar a única coisa que justificaria sua existência — a criação de boas histórias. Daquelas histórias tão redondas que traduzissem a experiência universal numa forma particular. A última grande fábula brasileira é a de Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa. E um romance de 1956. De lá para cá, nossos ficcionistas se debatem entre o naturalismo e a máquina fotográfica. Entre a dificuldade de narrar uma realidade nova e a tirania de uma linguagem velha. Neste país, não é só a História, com maiúscula, que vai mal. A história, no sentido literário, também não anda muito bem das pernas. Talvez, um dia, isso tudo dê um bom romance. Ou um filme.

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