A cidade através da perspectiva feminina

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DARA MARIA ANDRADE NASCIMENTO

A CIDADE ATRAVÉS DA PERSPECTIVA FEMININA: UMA PROPOSTA DE INTERVENÇÃO URBANA BASEADA NA VIVÊNCIA DE MULHERES DA FAROLÂNDIA



UNIVERSIDADES TIRADENTES CURSO ARQUITETURA E URBANISMO

DARA MARIA ANDRADE NASCIMENTO

A CIDADE ATRAVÉS DA PERSPECTIVA FEMININA: UMA PROPOSTA DE INTERVENÇÃO URBANA BASEADA NA VIVÊNCIA DE MULHERES DA FAROLÂNDIA

Aracaju 2019.2


DARA MARIA ANDRADE NASCIMENTO

A CIDADE ATRAVÉS DA PERSPECTIVA FEMININA: UMA PROPOSTA DE INTERVENÇÃO URBANA BASEADA NA VIVÊNCIA DE MULHERES DA FAROLÂNDIA

Trabalho Final de Graduação apresentado à Universidade Tiradentes como um dos prérequisitos para a obtenção de grau de bacharel em Arquitetura e Urbanismo.

Orientadora: Profª Me. Lygia Nunes Carvalho

Aracaju 2019.2


UNIVERSIDADES TIRADENTES CURSO ARQUITETURA E URBANISMO

DARA MARIA ANDRADE NASCIMENTO

Trabalho Final de Graduação apresentado à Universidade Tiradentes como um dos prérequisitos para a obtenção de grau de bacharel em Arquitetura e Urbanismo.

Aprovada em: ____/____/______. Banca Examinadora

Profª Me. Lygia Nunes Carvalho Orientadora – UNIT

Profª Dra. Pedrianne Barbosa de Souza Dantas Avaliadora Interna – UNIT

Profª Me. Shirley Carvalho Dantas Avaliadora Externa – Arquiteta e Urbanista


Dedico esse trabalho a todas as mulheres que vieram antes de mim como forma de gratidão pela luta delas, dedico a todas as mulheres de hoje e deixo esse trabalho para as que virão como uma forma de contribuição para uma sociedade igualitária entre homens e mulheres. Nossa história sempre foi contada pelos homens e agora é o momento de nós contarmos nossa história e de sermos ouvidas


AGRADECIMENTOS

Esse trabalho tem um significado muito importante para mim. Escrevê-lo é o modo que encontrei de contribuir com a luta feminista. E para chegar aqui agradeço pelas mulheres incríveis que de alguma forma na minha vida. Agradeço a Deus, porque Deus, certamente, é uma mulher, agradeço pela minha vida, pelas minhas oportunidades e pelos meus caminhos trilhados. Agradeço a minha mãe, Valdeci, a mulher mais forte que eu conheço, por ter me ensinado o que amor, por todo amparo e carinho, por todos os momentos que pelo exemplo, me mostrou o que é certo e como ser forte. Te amo muito. Agradeço a minha irmã, Daiana, por todo afeto e compreensão nesses anos em Aracaju, e por sempre ter me enjoado pra eu fazer o que era melhor pra mim. Agradeço a minhas amigas maravilhosas, Bruna e Karly, pela nossa amizade tão verdadeira e única. Agradeço também a Babi, Ceci, Ariel, Amanda, por todos os momentos que passamos juntas e pelas conversas construtivas que tivemos. Agradeço a todas as mulheres que dispuseram seu tempo para responder a minha pesquisa e em especial às mulheres que participaram da vivência nas ruas e me ajudaram a construir esse trabalho, são elas Brenda, Laís, Flávia, Ingrid, Vanessa, Iza, Gabe, Leiliane, Isis e Babi. Agradeço a minhas professoras do fundamental, em especial a Marize, e as minhas professoras do Ensino Médio, em especial Érica, guardo as aulas de vocês nas minhas memórias e lembro especificamente dos livros, que gosto tanto, lidos nas aulas de vocês, sendo O pequeno Príncipe e Ensaio sobre a Cegueira, respectivamente, meu gosto pela leitura permaneceu firme com inspiração das nossas aulas. Agradeço as minhas mestres da universidade, e em especial minhas professoras de Temas e TFG, Pedrianne e Lygia, por todos os ensinamentos e pela dedicação ao meu trabalho, sem vocês esse trabalho não teria esse resultado.


RESUMO

A mulher vive a cidade de modo limitado pelo medo, insegurança, pela falta de infraestrutura adequada para a locomoção entre outros problemas. O estudo sobre essa relação da mulher no meio urbano cresceu nos últimos 5 anos e através desses trabalhos nota-se que existe uma assimetria nas vivências entre os gêneros. Diante desse problema, o presente trabalho tem como objetivo estudar essas relações em um bairro de Aracaju e propor intervenções urbanas que melhorem a vida da mulher no espaço público. Para isso, foi necessária uma fundamentação teóricas nos estudos recentes de arquitetas e urbanistas e em livros que discutem a relação da mulher na sociedade oriundos da sociologia e filosofia. Para fazer a escolha do bairro foram usados dados sobre estupro disponibilizados pela Coordenadoria de Estatística e Análise Criminal associados à experiência da autora que resultou no bairro Farolândia como local de estudo. Através das entrevistas foi possível traçar o perfil das mulheres e entender sua relação com a cidade, além disso, o maior objetivo dessa etapa era recolher nomes das ruas evitadas e das ruas onde foram assediadas para a etapa seguinte das vivências. Nesse momento do trabalho, grupos de mulheres percorreram três ruas e discutiram como aquele espaço poderia ser melhorado e com base nessas informações foi possível construir as propostas de intervenção. Ao fim do trabalho percebeu-se que as mulheres mais jovens tem mais afinidade com os temas voltados especificamente para a mulher e que as piores situações de medo estão em ruas sem movimentação de pessoas e com pouca infraestrutura. Por fim esse trabalho pode ser ampliado para outros bairros de Aracaju e para outras cidades.


ABSTRACT

Women live the city in a limited way by fear, insecurity, lack of adequate infrastructure for locomotion among other problems. The study on this relationship of women in the urban environment has grown in the last 5 years and through these works it is noted that there is an asymmetry in the experiences between genders. Faced with this problem, the present work has the goal of study these relationships in a neighborhood of Aracaju and propose urban interventions that improve women's lives in the public space. For this, a theoretical basis was needed in recent studies of architects and urban planners and in books that discuss the relationship of women in society from sociology and philosophy. To make the choice of the neighborhood, data on rape provided by the Coordination of Statistics and Criminal Analysis were used associated with the author's experience that resulted in the Farolândia neighborhood as a place of study were used. Through the interviews it was possible to trace the profile of women and understand their relationship with the city, in addition, the main objective of this stage was to collect names of avoided streets and streets where they were harassed for the next stage of the experiences. At that moment in work, women's groups walked three streets and discussed how that space could be improved and on the basis of this information it was possible to build the proposals for intervention. At the end of the work it was noticed that the younger women have more affinity with the themes related specifically to the woman and that the worst fear situations are on streets with no movement of people and little infrastructure. Finally, this work can be extended to other neighborhoods in Aracaju and other cities.


LISTA DE FIGURAS

Figura 01 - A esquerda Rua 15 de Novembro em 1911 e a direta imagem da praça da Sé em 1960.......................................................................................................................................... 18 Figura 02 - A esquerda Rua 15 de Novembro e a direta imagem dessa mesma rua sentido praça da Sé na década de 40. ..........................................................................................................19 Figura 03 - A imagem da esquerda é uma propaganda da Itaipava e a direita um anúncio de uma funilaria no bairro Farolândia em Aracaju/SE.......................................................................... 22 Figura 04 - Primeira onda do Feminismo e reivindicação do voto feminino............................ 25 Figura 05 - Angela Davis discursando...................................................................................... 26 Figura 06 - Manifestação do #ELENÃO.................................................................................. 28 Figura 07 - Mulher de bicicleta e levando uma criança de carona............................................ 37 Figura 08 - Rua Augusta a noite............................................................................................... 38 Figura 09 - Av. Josino José de Almeida, conhecida como Canal 4, quando o conjunto foi entregue.................................................................................................................................... 47 Figura 10 - Farol em meio à paisagem natural.......................................................................... 47 Figura 11 - Farol nos dias Atuais............................................................................................... 48 Figura 12 - Figura 12: Mapa com delimitação do bairro e com destaque aa pontos importantes da Farolândia.............................................................................................................................49 Figura 13 - Avenida Josino José de Almeida pós reurbanização............................................. 50 Figura 14 – Locais onde as pessoas que responderam a entrevista moram.............................. 51 Figura 15 - Gráficos de 01 a 08................................................................................................. 52 Figura 16 - Gráficos de 01 a 05................................................................................................. 54 Figura 17 - Gráficos 01 a 05...................................................................................................... 56 Figura 18 - Mapa assédio na Farolândia.................................................................................... 57 Figura 19 - Mapa de ruas evitadas na Farolândia...................................................................... 58 Figura 20 - Localização das ruas evitadas ou onde sofreram assédio....................................... 59 Figura 21 - Rua Maria Pastora................................................................................................... 60 Figura 22 - Avenida Canal 5...................................................................................................... 60 Figura 23 - Rua Tenente Pitanga, ao lado do colégio Arquidiocesano...................................... 61 Figura 24 - Rua Tenente Pitanga, ao lado da Universidade Tiradentes..................................... 61 Figura 25 - Rua Antônio Monteiro ........................................................................................... 62 Figura 26 - Percurso da vivência da Rua Antônio Monteiro..................................................... 63 Figura 27 - Quatro mulheres percorrendo a rua Antônio Monteiro........................................... 64 Figura 28 - Discussão e desenho na Praça................................................................................. 64 Figura 29 - Um dos bares da Rua Antônio Monteiro................................................................ 65 Figura 30 - Resultado do desenho na vivência da Rua Antônio................................................ 66 Figura 31 - Portão de um dos prédios da Rua Antônio Monteiro.............................................. 66 Figura 32 - Localização do percurso da Vivência na Rua Tenente Pitanga.............................. 67 Figura 33 - Carros sobre a calçada na Rua Tenente Pitanga..................................................... 68 Figura 34 – Calçadas estreitas na Rua Tenente Pitanga........................................................... 68 Figura 35 - Rua sem saída......................................................................................................... 69 Figura 36 - Terreno baldio e ônibus estacionados na Rua Tenente Pitanga.............................. 69 Figura 37 - Desenho com a participação das mulheres da Rua Tenente Pitanga...................... 70 Figura 38 - Resultado do desenho da Rua Tenente Pitanga...................................................... 71 Figura 39 - Percurso da Rua Maria Pastora............................................................................... 72 Figura 40 - Pessoas usando a calçada na Rua Maria Pastora..................................................... 73 Figura 41 - Banco feito pelos moradores da Rua Maria Pastora............................................... 73


Figura 42 – Resultado do desenho da Rua Maria Pastora.........................................................74 Figura 43 – Mapa com rotas de ônibus existentes na Farolândia..............................................77 Figura 44 – Mapa com rotas de ônibus existentes na Farolândia e itinerário da nova rota sugerida.....................................................................................................................................77 Figura 45 – Mapa com novo fluxo de ruas na região da Tenente Pitanga................................78 Figura 46 – Mapa com novo fluxo de ruas na região da Tenente Pitanga.................................79 Figura 47 – Proposta de intervenção na praça da rua Tenente Pitanga.....................................80 Figura 48 – Proposta de intervenção na rua Tenente Pitanga, trecho entre colégio e condomínio Vitta.......................................................................................................................................... 80 Figura 49 – Proposta de intervenção na rua Maria Pastora, trecho 01..................................... 81 Figura 50 – Proposta de intervenção na rua Maria Pastora, trecho 02..................................... 81 Figura 51 – Proposta de intervenção na rua Antônio Monteiro............................................... 82 Figura 52 – Proposta de intervenção na rua Antônio Monteiro com homenagem nos prédios e bar das mulheres....................................................................................................................... 82 Figura 53 – Proposta de intervenção na rua Antônio Monteiro com conexão para Canal 5..... 83


LISTA DE TABELAS

Tabela 01 - Quem é o responsável financeiro da família?......................................................... 53 Tabela 02 - De quê você sente medo na rua?............................................................................. 55


SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 13

2 MULHER CASA, HOMEM CIDADE.............................................................................. 16 2.1 O ENCLAUSURAMENTO FEMININO....................................................................... 16 2.2 PATRIARCADO E DOMINAÇÃO MASCULINA....................................................... 19 2.3 FEMINISMO E AUTONOMIA FEMININA ............................................................... 23

3 CIDADE PARA MULHERES? ......................................................................................... 31 3.1 PÚBLICO E PRIVADO................................................................................................... 32 3.2 RELAÇÕES DE PODER NA PRODUÇÃO DAS CIDADES...................................... 34 3.3 COMO A MULHER VIVE A CIDADE? ...................................................................... 36 3.4 A MULHER DECIDE...................................................................................................... 39

4 DEIXA ELA FALAR........................................................................................................... 46 4.1 O BAIRRO ESTUDADO ................................................................................................ 46 4.2 “ELA DESATINOU, DESATOU NÓS”......................................................................... 51 4.3 SE ESSA RUA FOSSE MINHA...................................................................................... 62 4.3.1 VIVÊNCIA RUA ANTONIO MONTEIRO................................................................ 63 4.3.2 VIVÊNCIA RUA TENENTE PITANGA.................................................................... 67 4.3.3 VIVÊNCIA RUA MARIA PASTORA........................................................................ 71 4.4 A INTERVENÇÃO.......................................................................................................... 74 4.5 A TRAVESSIA VIOLENTA DA CIDADE PELA MULHER..................................... 83

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................................. 89

REFERÊNCIAS..................................................................................................................... 91 APÊNDICE A – ENTREVISTA............................................................................................ 93 APÊNDICE B – PANFLETO................................................................................................ 96


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Nós somos mulheres de todas as cores De várias idades, de muitos amores Lembro de Dandara, mulher foda que eu sei De Elza Soares, mulher fora da lei Lembro de Marielle, Valente, guerreira De Chica da Silva, toda mulher brasileira Crescendo oprimida pelo patriarcado, meu corpo Minhas regras Agora, mudou o quadro

Mulheres cabeça e muito equilibradas Ninguém tá confusa, não te perguntei nada São elas por elas Escuta esse samba que eu vou te cantar

Eu não sei porque tenho que ser a sua felicidade Não sou sua projeção Você é que se baste Meu bem, amor assim quero longe de mim Sou mulher, sou dona do meu corpo E da minha vontade Fui eu que descobri Poder e Liberdade

Sou tudo que um dia eu sonhei pra mim

Silvia Duffrayer


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1 INTRODUÇÃO

A discussão sobre pensar uma cidade para mulheres gera em algumas pessoas o questionamento se isso é necessário, pois a mulher circula nas ruas, muitas delas trabalham e inclusive são as chefes da família, e porque não pensar uma cidade para todos? Algumas pessoas acreditam que esse recorte pode ‘segregar’. Entretanto, ao longo de toda a história, as mulheres sofreram opressão e tiveram o acesso da cidade negado. Mesmo atualmente, com maior presença das mulheres nos espaços públicos a vivência delas é distinta dos homens. Pesquisas mostram que a maioria das mulheres não tem acesso a transporte individual, logo, se locomovem a pé e de transporte público, elas preferem caminhar por locais conhecidos e as vezes fazem caminhos mais longos evitando algumas ruas, e em sua maioria conectam os percursos aproveitando para resolver várias tarefas em uma única viagem. Os homens não possuem esse tipo de preocupação e saem de casa em qualquer horário, ao contrário das mulheres que muitas vezes desistem de estudar ou trabalhar a noite com medo da rua. Ao entender essa assimetria se justifica estudar tal tema, e eu, como mulher que vive a cidade e sente na pele as inseguranças na cidade optei por estudar essa relação em Aracaju, mais especificamente no bairro Farolândia, local onde moro e estudo. Nisso, o intuito desse trabalho é propor uma intervenção em ruas que trazem desconforto ou agressão às mulheres. Para conceber esse trabalho foi necessário uma fundamentação teórica além dos livros de Arquitetura e Urbanismo e ampliar as leituras para sociologia e filosofia. Fazem parte dessa etapa os autores Pierre Bordieu, Antonio Risério, Marcia Tiburi, Flávia Biroli e Luis Felipe Miguel, David Harvey, Engels, entre outros, além dos trabalhos acadêmicos de arquitetas e urbanistas como o de Giovanna Melo, Lúcia Siqueira e Terezinha Gonzaga, uma monografia, dissertação de mestrado e tese de doutorado, respectivamente. Após a fundamentação teórica foi necessário estabelecer critérios para a escolha do bairro a ser analisado. A primeira análise foram dos dados da Coordenadoria de Estatística e Análise Criminal de Sergipe sobre estupros de mulheres acima de 18 anos por bairro. A Farolândia era o terceiro bairro com maior número de estupros em Aracaju, e como também sou moradora desta região optei por estudá-lo. Após essa escolha foram realizadas as entrevistas com mulheres que moram, estudam ou trabalham no bairro, ou seja, pessoas que possuem uma relação próxima com a localidade. As entrevistas foram realizadas digitalmente e pessoalmente. Uma das perguntas se referia aos locais que evitavam passar ou as ruas que mais sofreram assédio e baseado nas respostas foram


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definidos os trechos onde seriam feitas as propostas de intervenções para tornar essa rua mais segura para elas. Após as entrevistas as ruas Antônio Monteiro, Tenente Pitanga e Maria Pastora foram selecionadas para uma vivência com moradoras do local, pois notou-se a importância de se reunir com mulheres que vivem aquela rua cotidianamente e entender melhor aquele espaço sob a ótica delas e não apenas através das características do local. Dessa forma, houve mais oportunidades para ouvir outras mulheres com necessidades diferentes das quais eu tenho, pois mesmo sendo moradora do bairro estou no meu local de privilégio branco e de classe média e como qualquer projeto feito para outrem é necessário entender os desejos daquelas pessoas. Na seção 2 deste trabalho intitulado “Mulher Casa, Homem Cidade” é mostrada a relação da mulher na sociedade ao longo dos anos e como a mesma foi enclausurada no ambiente doméstico por conta, unicamente, do fator biológico, e por isso a divisão sexual do trabalho se estabeleceu e se perpetuou tornando esse movimento naturalizado. Os homens como detentores do privilégio exerceram sua opressão contra a mulher e a confinaram em casa e por isso a vivência delas se limitou por muito tempo somente ao espaço doméstico e privativo. Na seção 3, “Cidade para mulheres?” a fundamentação teórica mostra como a era a relação da mulher com a cidade de modo mais específico, como as experiências femininas nas ruas são distintas dos homens e como elas estão num local de inferioridade na vida pública, pois são elas quem mais caminham e andam de transporte público e em contrapartida são os homens que decidem e gerem as cidades sem considerar as necessidades das mulheres. Na seção 4, “Deixa ela falar” é o momento que o trabalho foca no bairro estudado, analisa a Farolândia e o dia a dia das moradoras do bairro, mostra o resultado das entrevistas, das vivências e as propostas de intervenção. As propostas são apresentada por meio de perspectivas das ruas com as mudanças e as estratégias necessárias para que aquele espaço público se torne mais agradável para a travessia das mulheres. Esse estudo contribui com a temática de urbanismo sob a perspectiva de gênero analisando um bairro de Aracaju e com três ruas sendo analisadas. Para que o desenho e planejamento urbano seja adequado para todos o olhar do Arquiteto e Urbanista deve estar voltado para as minorias, pois uma cidade boa para as minorias, será uma cidade adequada para todos.


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O jogo só vale quando todas as partes puderem jogar Sou Frida, sou preta, essa é minha treta Me deram um palco e eu vou cantar Canto pela tia que é silenciada Dizem que só a pia é seu lugar Pela mina que é de quebrada Que é violentada e não pode estudar Canto pela preta objetificada Gostosa, sarada, que tem que sambar

Dona de casa limpa, lava e passa Mas fora do lar não pode trabalhar A dona de casa limpa, lava e passa Mas fora do lar não pode trabalhar A dona de casa limpa, lava e passa A dona de casa

Não precisa ser Amélia pra ser de verdade Cê tem a liberdade pra ser quem você quiser Seja preta, indígena, trans, nordestina Não se nasce feminina, torna-se mulher

Bia Ferreira


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2 MULHER CASA, HOMEM CIDADE

A mulher desde do início da humanidade foi tratada de modo diferente dos homens. A anatomia do corpo feminino e masculino foi o único critério para a divisão do trabalho que enclausurou o sexo feminino em casa e deu aos homens a liberdade da cidade. Nesta seção o trabalho percorrerá o passado para mostrar a relação da mulher na sociedade. Na primeira parte é mostrado como a mulher foi confinada no ambiente doméstico e a evolução disso pelos períodos históricos. Em seguida, é abordado como o patriarcado se estruturou mantendo a mulher em submissão e sem liberdade de frequentar os espaços públicos. Para finalizar é explicada as fases do feminismo e a luta das mulheres por direitos iguais e como a autonomia feminina é importante para a libertação da mulher das amarras da dominação masculina.

2.1 O ENCLAUSURAMENTO FEMININO

Na sociedade ocidental foi construída ao longo de anos uma imagem da mulher como a responsável pelo lar e o homem como a pessoa que trabalha na cidade e leva dinheiro para casa. Isso foi naturalizado pela sociedade e considerada a verdade absoluta durante muito tempo, e para exemplificar esse processo de construção observa-se a Grécia Antiga, uma civilização bastante estudada pelos avanços intelectuais do período e como democracia, entretanto, uma democracia controversa pois se destinava apenas ao público masculino. Em Urbanismo sob a Perspectiva de Gênero, Giovanna Melo (2017) relata que a mulher grega vivia enclausurada em casa e que os homens estavam destinados ao espaço público, além disso, mesmo no ambiente doméstico havia separações, pois os cômodos voltados ao social eram mais usados pelos homens enquanto as mulheres ocupavam os cômodos de serviço (p.29). Em Mulher, Casa e Cidade, Antonio Risério (2015) explica a relação de ambos os sexos com a cidade, os homens gregos se exibiam nus publicamente simbolizando “um povo inteiramente à vontade na sua cidade” (p.47), enquanto a mulher devia ser “discreta, submissa e coberta.” (p.47), caso contrário seriam consideradas prostitutas, pois as únicas mulheres gregas que viviam a cidade eram as “sexualmente disponíveis” (p. 47). No período Medieval a relação da mulher com a cidade continua restrita, mas há uma diferença na relação de ambos sexos com a casa comparado ao período grego. Não havia privacidade, nem espaços bem definidos para os gêneros, as atividades masculinas relacionadas ao trabalho aconteciam no mesmo espaço que as atividades femininas, porém não havia


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interferência da mulher no trabalho do homem, por isso o único aspecto diferente da civilização grega é a ausência de espaços específicos para ambos. (RISÉRIO, 2015, p.70) O marido burguês medieval considerava fundamental conservar sua mulher dentro de casa, encerrada no espaço doméstico, empregada full-time em diversos afazeres, sem tempo para devaneios ou fantasias, nem brechas para frequentar indevidamente lugares públicos. Cabiam-lhe, assim, tarefas e responsabilidades domésticas. (RISÉRIO, 2015, p.73)

Segundo Risério, a ótica da casa mudou gradualmente durante o fim do período feudal e o início da urbanização, pois com o crescimento das cidades houve uma transformação urbana intensa e foi necessário pensar na distinção entre local de moradia e de trabalho, diferente de como ocorria no medievo. (p.92) A separação de moradia e trabalho se consolidou aos poucos e a casa como conhecemos hoje surgiu no século XVII, na Holanda. O local de trabalho não ocorria mais em casa o que tornou esse local como um ambiente totalmente destinado a mulher, para exemplificar essa mudança Risério refere-se ao mundo doméstico como domínio masculino. Neste sentido cita Rybczynski (1996 Apud: Risério, p. 98): [...] era nítida, entre os neerlandeses, a distinção entre rua e casa, o espaço público e o espaço doméstico. ‘O mundo do trabalho e da vida social dos homens tinha se mudado para outro lugar. A casa se tornara o espaço para outro tipo de trabalho – o trabalho feminino. Esse trabalho em si mesmo não era novo – novo era o seu isolamento.’

Ao tratar do período colonial no Brasil, Risério (2015, p. 215) faz uma distinção entre as mulheres burguesas brancas e as mulheres negras e escravas evidenciando a diferença entre a relação de cada uma com a cidade. A mulher negra necessitava ganhar sua alforria, e era obrigada a trabalhar nas casas dos senhores, e quando libertas tinham que trabalhar para seu próprio sustento, logo, viver a cidade foi inevitável pra ela que transitou pelas ruas e sofreu com a discriminação pela raça, pelo sexo e pela classe. Diferentemente da mulher negra, a mulher branca vivia confinada em casa e era responsável pela organização da residência e dos escravos, eram eles que faziam os afazeres domésticos. Sua vivência delas na cidade só ocorria na companhia de alguém, de preferência por alguém do sexo masculino, caso contrário podia ser confundida com uma prostituta. Seu destino se limitava a igreja ou teatros. No Brasil, a mulher burguesa começa a ter mais liberdade no começo do século XX, mas ainda de forma tímida, a urbanização das cidades nesse período possibilitou a presença de mais comércio e locais de lazer trazendo maior sociabilidade e presença de mulheres brancas na rua. Entretanto, a exposição da corpo feminino no espaço público era sempre com o objetivo de expor beleza e “graça” ou seja, a presença da mulher na rua era pra agradar os olhares


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masculinos e não como forma de independência e autonomia pessoal, mas vale ressaltar que as burguesas apenas usufruíam dos lazeres da cidade ao contrário das negras e pobres que não tinham opção a não ser trabalhar, (RISÉRIO, 2015, p.242 e 243). Esta realidade pode ser observada na figura abaixo onde mostra a esquerda a Rua 15 de Novembro em São Paulo na década de 10 e é possível ver majoritariamente homens circulando no espaço.

Figura 01 - A esquerda Rua 15 de Novembro em 1911 e a direta imagem da praça da Sé em 1960

Fonte: Exame, 2017

Nos anos 20, a vivência feminina na cidade não chegava nem perto da masculina, que podia andar livremente, sozinho e por todos os espaços e horários. A mulher apesar de ter conquistado um pouco desse espaço público continuava sendo relacionada ao espaço doméstico. Na figura 2 tem-se a capital paulista na década de 40 e percebe-se que a presença de mulheres ainda é baixa nas ruas. Segue a citação de Mônica Schpun sobre esse período em São Paulo: Assiste-se com certeza, no período, à crescente exposição dos corpos femininos na cidade: todos os tipos de discursos exprimem a admiração que envolve essa presença, ainda muito recente, das mulheres nas ruas, nas lojas, nos eixos, de sociabilidade, enfim, fora de casa, em espaços até aqui reservados à convivência masculina. Mas essa ocupação na praça pública [...] está longe de corresponder à experiência masculina. Um certo embaraço continua existindo na relação entre as mulheres e o espaço da rua; várias formas de resistência ao fenômeno procuram marcar maior intimidade dos homens com a cidade e lembram incessantemente que as mulheres pertencem antes de mais nada ao espaço privado, (SCHPUN, 1999. Apud. RISÉRIO, 2015, P.234 e 244).

Trazendo a discussão para os dias atuais podemos perceber que algumas dessas concepções antigas ainda permanecem na sociedade, muitas vezes de modo inconsciente, um exemplo disso está nos discursos de homens e mulheres identificado por Shayna Olegário


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(2018) em Uma Experiência Coletiva: A Abordagem Participativa na Ocupação Beatriz Nascimento em Aracaju/Se, que fala sobre moradia com os residentes de uma ocupação na Zona Norte de Aracaju. Ao serem questionados sobre o significado de moradia as mulheres responderam que a casa é o local para cuidar dos filhos, para receber amigos e cuidar do ambiente doméstico e os homens não mostraram o mesmo afeto e falaram da casa como uma estrutura apenas (p.34). Figura 02 - A esquerda Rua 15 de Novembro e a direta imagem dessa mesma rua sentido praça da Sé na década de 40.

Fonte: São Paulo São, 2015

Isso mostra como a mulher possui essa relação íntima com a casa diferentemente do homem que está mais ligado com a cidade e trabalho. Entretanto, é necessário reafirmar que essa relação foi construída ao longo de anos e por várias civilizações, colocando sempre a mulher na esfera privada e o homem na esfera pública. Para complementar a discussão é necessário entender que não foi uma escolha feminina estar confinada à casa, foi algo imposto no início da humanidade por dois fatores principais, a biologia e o casamento monogâmico, por isso a próxima subseção tratará dessa conjectura e como a dominação masculina se estruturou desde o início da humanidade.

2.2 PATRIARCADO E DOMINAÇÃO MASCULINA

Tratando-se da divisão sexual do trabalho devemos retroceder para os períodos préhistóricos. António Risério (2015) em Mulher, Casa e Cidade relata sobre o período no qual os


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homens cuidavam da caça e as mulheres ficavam responsáveis pela coleta e cuidado dos filhos (p. 39). Ambos tinham o trabalho de buscar alimento, porém somente as mães ficaram encarregadas da educação das crianças e essa função, dada às mulheres desde os primórdios, está muito ligada ao fator biológico. Ela é o sexo que engravida, dá a luz e amamenta ficou unicamente para a mulher a responsabilidade de cuidar dos filhos. Conforme esclarece Giovanna Melo (2017) em Urbanismo sob a Perspectiva de Gênero, esse fator estabeleceu uma hierarquia entre os gêneros, pois a biologia feminina era considerada um mal: (...) as mulheres, através de toda a História, antes do advento do controle de natalidade, estavam à mercê constante de sua biologia – menstruação, menopausa e outras ‘males femininos’, de contínuos partos dolorosos, amamentação e cuidado com as crianças, todos os quais fizeram-nas dependentes dos homens (seja irmão, pai, marido, amante ou clã, governo, comunidade em geral) para a sobrevivência física, (FIRESTONE, 1976, p. 18, Apud. MELO, 2017, p.18).

Pierre Bourdieu (2018) em A Dominação Masculina explica que a sociedade construiu a imagem do corpo de modo sexual, dividindo as tarefas através dessa diferença biológica e isso provocou uma hierarquia colocando o homem numa posição de dominação. Essa divisão baseada na diferença anatômica (e não intelectual, acrescento) foi vista como natural e a biologia foi usada como justificativa para a divisão sexual do trabalho e utilizada por muitas pessoas até os dias atuais. (p.24) Este contexto é reforçado por Márcia Tiburi (2018) em Feminismo em Comum ao afirmar que “estamos diante de uma divisão do trabalho baseada na ideia de uma diferença sexual” (pg. 15) e não a nível intelectual. A capacidade de homens e mulheres de realizar tarefas foi toda baseada no fator biológico e considerada uma verdade absoluta por muitos anos e por isso essa divisão do trabalho está tão enraizada. Como consequência, as mulheres ficaram confinadas ao ambiente doméstico cuidando das atividades da casa e dos filhos e não podiam exercer uma profissão nem qualquer outro exercício que fosse considerado masculino. É nesse cenário que o patriarcado se consolida, um sistema profundamente enraizado na cultura e nas instituições até os dias atuais e segundo Tiburi (2018, p. 26 e 27): [...] Ele tem uma estrutura de crença firmada em uma verdade absoluta, uma verdade que não tem nada de ‘verdade’, que é, antes, produzida na forma de discursos, eventos e rituais. Em sua base está a ideia sempre repetida de haver uma identidade natural, dois sexos considerados normais, a diferença entre os gêneros, a superioridade masculina, a inferioridade das mulheres e outros pensamentos que soam bem limitados, mas que ainda são seguidos por muita gente, (TIBURI, 2017, p. 26 e 27).

De acordo com Friedrich Engels (1995) em A Origem da Família e da Propriedade Privada e do Estado, o pivô para o início do patriarcado foi a consolidação da ‘família


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tradicional’1 ainda no período pré-histórico, através do casamento monogâmico. Para compreender melhor, o autor relata as várias formas de casamentos existentes neste período: havia incesto e casamentos de grupos, poligamia e poliandria2 e nestes casos não havia a certeza de quem era o pai (p.43). Quando o incesto foi proibido os casamentos consanguíneos desapareceram sendo necessário se relacionar com outras famílias e para que isso acontecesse era necessário saber a paternidade dos filhos. Além disso, para aqueles que insistiram nos casamentos em grupos havia uma proibição no repasse de heranças, pois os filhos só podiam herdar as propriedades da mãe, então com o desejo de obter heranças de ambos os pais foi consolidado o casamento monogâmico, pois desta forma, ‘garantiriam’ os genitores de cada criança (p.60). O patriarcado surge nessa relação quando o homem coloca a mulher numa posição de submissão e obediência com o objetivo de garantir a fidelidade da mesma e, consequentemente, garantir a paternidade dos filhos (p.62): A monogamia não aparece na história [...] como uma reconciliação entre o homem e a mulher, e menos ainda, como a forma mais elevada de matrimônio. Pelo contrário, ela surge sob a forma de escravização de um sexo pelo outro. [...] Num velho manuscrito inédito, redigido em 1846 por Marx e por mim encontro a seguinte frase: ‘A primeira divisão do trabalho é a que se fez entre homem e a mulher para a procriação dos filhos’. Hoje posso acrescentar: o primeiro antagonismo de classes que apareceu na história coincide com o desenvolvimento do antagonismo entre homem e mulher na monogamia; e a primeira opressão de classes, com a opressão do sexo feminismo pelo masculino, (ENGELS, 1995, p.70 e 71).

Com o patriarcado exercendo opressão sobre esposa e filhas, o homem heterossexual usufruía de todo seu privilégio sem dar brechas a nada que colocasse seu poder em questionamento. Por isso, o homem deveria mostrar seu poder, principalmente sobre a mulher que deveria mostrar obediência e submissão. De acordo com Bourdieu (2018) surge, neste contexto, uma cobrança da sociedade para que os homens tivessem virilidade, caracterizado como a “capacidade reprodutiva, sexual e social, mas também como aptidão ao combate e ao exercício da violência” (p.76). Dessa forma, para o homem exercer seu papel viril significaria ser dominante, ativo e violento em todas as instâncias inclusive nas suas relações sexuais, e por isso a violência sexual é muito exercida pelo homem contra a mulher. Flávia Biroli (2014) em

1

Como é conhecida nos dias atuais, fruto de um relacionamento monogâmico, heterossexual e com filhos. Os casamentos em grupo era um grupo de mulheres que se uniam com um grupo de homens e mantinham entre eles relações sexuais, era muito comum no período pré-histórico e desse modo não sabia quem era o pai das crianças e as relações dos filhos era apenas com a mãe. O incesto é quando acontece relações sexuais entre pessoas da mesma família, poligamia é a união de um homem com mais de uma mulher e poliandria o inverso, uma mulher casada com mais de um homem, muito comum que eles fossem da mesma família, e nesse último caso, assim como no casamento em grupos, não há certeza sobre quem é o pai das crianças. (ENGELS, 1995) 2


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Feminismo e Política reafirma isso quando identifica o “estupro como arma do patriarcado e como arma rotineira de intimidação das mulheres” (p.41). O patriarcado é um tipo de dominação masculina e Tiburi (2018) ao se referir do sistema patriarcal não faz distinção entre a dominação masculina, por outro lado, Luis Felipe Miguel (2014), em Feminismo e Política no capítulo 1, identifica essa diferença mostrando o patriarcado como “uma forma específica de organização política” (p.18), sendo uma faceta da dominação, pois ela se manifesta além do círculo familiar e está presente outras instituições. Podemos citar como exemplo disto, as ‘bruxas’ mortas pela Inquisição. A dominação ocorria por parte da Igreja, do Estado e da sociedade que as condenaram porque fugiam do padrão imposto, de submissão e obediência, Tiburi (2018) diz “Todas as vezes que as mulheres se tornaram indesejáveis3 ou inúteis, perigosas ou desobediente, elas foram perseguidas e mortas” (p. 49 e 50).

Figura 03 - A imagem da esquerda é uma propaganda da Itaipava e a direita um anúncio de uma funilaria no bairro Farolândia em Aracaju/SE

Fonte: Exame, 2015 e Google Imagens, 2018, respectivamente.

Pensando na dominação masculina na atualidade, Bourdieu (2018) refere-se aos canais de telecomunicação e a exposição dos corpos femininos, geralmente de modo sensual e feita com objetivo de atrair o público masculino, usando dessa imagem como se as mulheres fossem objetos para satisfazer o homem (p.49), ver figura 03. Além disso, muitas propagandas as colocam em ambientes domésticos enquanto os homens aparecem em bares, e quando homens 3

Lê-se indesejáveis como não reprodutivas e não vaidosas, e perigosas como contestadoras desse sistema injusto. (p.97)


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e mulheres atuam juntos o sexo feminino aparece em posição de serviço, como a garçonete servindo o cliente ou a secretária ao chefe. (p. 84 e 85) Essa realidade está mudando as poucos com a pressão das redes sociais por propagandas menos machistas e sem a objetificação da mulher. Essa pressão popular por parte das mulheres para que os meios de comunicação não reproduzam o machismo é um reflexo da expansão do feminismo nos últimos anos no Brasil e as redes sociais tiveram um papel fundamental para essa propagação de ideais, por isso o próximo item tratará do histórico do feminismo, da importância da autonomia feminina e como esse movimento ocorre nos dias atuais em nosso país.

2.3 FEMINISMO E AUTONOMIA FEMININA

Em contraposição a esse sistema patriarcal, machista e opressor surge o feminismo, descrito por Tiburi (2018) como “o desejo por democracia radical voltada à luta por direitos daqueles que padecem sob injustiças que foram armadas sistematicamente pelo patriarcado.” (p.12). É uma luta por direitos iguais entre os gêneros para abolir com a violência física e simbólica exercida contra as mulheres. Além disso, o feminismo luta pela autonomia feminina, pois muitas opressões acontecem quando a mulher não possui recursos financeiros, e pelo direito ao corpo reforçando a ideia de sermos independentes do outro e com desejos próprios. O movimento é, também, uma ferramenta de autoconhecimento para as mulheres cis e trans4. Dentro do patriarcado a nossa identidade foi construída pelo homem e no feminismo temos a liberdade de se conhecer e o direito de se expressar. “O feminismo nos ajuda a melhorar o modo como vemos o outro. O direito de ser quem se é, de expressar livremente a forma de estar e de aparecer e, sobretudo, de se autocompreender.” (TIBURI, 2018 p.23) Isso é importante para que a mulher possa entender e assumir seus desejos sem culpa e sem ser julgada pelo seu gênero. É fundamental para o movimento feminista o local de fala e da escuta, pois no patriarcado há uma hegemonia dos discursos, quem domina a comunicação é o homem hétero branco e eles silenciaram por muito tempo a voz das minorias. O feminismo abre esse espaço e acolhe as vozes, é muito importante ao movimento a escuta de outras mulheres, das negras,

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Cisgênero são as pessoas que se identificam com o gênero biológico, e transgênero são as pessoas que não se identificam com o gênero biológico.


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indígenas, trans, periféricas e entre outras tantas, pois cada uma delas traz um recorte social com necessidades distintas que precisam ser atendidas. [...] lutar pelos direitos das mulheres é lutar pelo direito dos negros; lutar pelos direitos dos negros é lutar pelos direitos das mulheres e dos índios, das pessoas trans e dos trabalhadores; lutar pelos direitos dos trabalhadores é lutar pelos direitos das mulheres trabalhadoras. Quando lutamos por um lugar de fala lutamos pelo lugar de todos, (TIBURI, 2018, p.55).

Quando surgiu a primeira onda feminista não havia todas essas definições que são dadas nos dias atuais. O movimento passou por vários períodos e com diferentes objetivos. Essa característica da escuta é algo recente, nas primeiras décadas do seu surgimento a predominância foi do feminismo branco. Para compreender melhor seu surgimento e sua evolução é necessário retroceder dois séculos. De acordo com Flávia Biroli (2014) em Feminismo e Política, o feminismo surgiu como um filho rebelde da Revolução Francesa no final do século XVIII e início do XIX. No período, havia uma discussão sobre a Constituinte e um grupo de mulheres reivindicaram seu direito de expressão. Uma dessas mulheres foi Olympe de Gouges que fez a própria versão da “Declaração dos direitos do homem e do cidadão” intitulada como “Declaração dos direitos da mulher e da cidadã”. Rousseau e outros revolucionários da época não as apoiaram, para eles “a liberdade dos homens não incluía as mulheres, destinadas ‘naturalmente’ ao enclausuramento na esfera doméstica.” (p.20). As pautas principais eram o direito ao voto e da educação e o direito das mulheres casadas possuírem propriedades. No mesmo período, na Inglaterra, Mary Wollstonecraft5 escreveu “Uma vindicação dos direitos da mulher” e para que seu trabalho fosse considerado pela sociedade ela utilizou do argumento de que uma mulher esclarecida é melhor para o homem, e dessa forma, surgiu o feminismo liberal, apontado como um movimento elitista como ocorria na maioria das organizações femininas da época. Uma exceção do período são as representantes do sufragismo nos Estados Unidos, Elizabeth Cady Stanton e Susan B. Anthony que eram advogadas abolicionistas, entretanto as pautas sobre desigualdade de gênero, classe e raça não eram debatidas pelos movimentos, inclusive pelas sufragistas, na figura 4 mostra uma das manifestações das feministas do período. Neste contexto emerge a voz da feminista Sojourner

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Considerada a fundadora do feminismo. Sua obra influenciou Nísia Floresta que em 1832 publicou no Brasil os Direitos das mulheres e injustiça dos homens.


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Truth, escrava e empregada doméstica conhecida pelo discurso “Ain’t I a woman?”6 (BIROLI, 2014, p.22)

Figura 04 - Primeira onda do Feminismo e reivindicação do voto feminino.

Fonte: Multirio RJ, 2014

Giovanna Melo (2017) em Urbanismo sob a Perspectiva de Gênero fala do movimento de mulheres na Revolução Francesa como um passo para a luta feminista porém sem aprofundamento sobre a submissão e inferiorização das mulheres pelos homens e na Revolução Industrial houve um maior envolvimento e organização de mulheres reivindicando “equidade política e jurídica”. Neste período da história, as cidades passavam por inúmeras transformações urbanas e as condições de trabalho eram desumanas, e as mulheres pobres estavam inseridas nesse local em desvantagem diante os homens. Elas trabalhavam o mesmo tempo e não tinham os mesmos direitos, isso insuflou uma mobilização de até 2 milhões de mulheres em busca de direitos. Na Revolução Industrial, a mulher proletária, que é responsável pelo trabalho produtivo e reprodutivo, passa a mão de obra fabril, com jornadas de trabalho de 14 a 16 horas e com jornada dupla, ou seja, os afazeres domésticos ficavam por sua conta. Ao integrar o proletariado em seus encargos e deveres, as mulheres não possuíam os mesmos direitos, tais como: votar, salários igualitários, e o direito à cidade. A conjuntura de disparidade entre homens e mulheres ficou cada vez mais visível e verificou-se na luta pelo sufrágio universal, uma vez que o direito de votar não incluía “Aquele que diz que as mulheres precisam ser ajudadas a entrar em carruagens, erguidas para passar sobre valas e receber os melhores lugares em todas as partes. Ninguém nunca me ajudou a entrar em carruagens, a passar por cima de poças de lama nem me deu qualquer bom lugar! E eu não sou uma mulher? Olhem pra mim! Olhem pro meu braço! Eu tenho arado e plantado e recolhido em celeiros, e nenhum homem poderia me liderar! E eu não sou uma mulher? Posso trabalhar tanto quanto e comer tanto quanto um homem – quando consigo comer – e aguentar o chicote também! E eu não sou uma mulher? Dei à luz treze filhos e vi a grande maioria ser vendida para a escravidão, e quando eu chorei com minha dor de mãe, ninguém, exceto Jesus, me ouviu! E eu não sou uma mulher?” (BIROLI, 2014, p. 23) 6


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as mulheres. Assim, a primeira onda do feminismo acontece no século XIX, (MELO, 2017, p.31).

Em Mulheres, Cultura e Política, Angela Davis (1989, p. 15) aborda a primeira onda feminista com críticas pela ausência de pautas negras nos debates liberais das mulheres brancas e relata a primeira organização de mulheres negras em 1895 lideradas por Josephine St. Pierre Ruffin. A autora caracteriza a organização como um manifesto contra o racismo existente no feminismo branco e o movimento negro como um local aberto a todas as mulheres. Fica evidente nas explanações de Davis (1989), como os interesses de ambas raças eram distintos, enquanto as sufragistas lutavam pelo direito do voto, as negras não consideravam essa pauta urgente, como percebemos na seguinte citação. Por mais essencial que a igualdade política fosse para a campanha mais ampla pelos direitos das mulheres, aos olhos das trabalhadoras afro-americanas e brancas isso não era sinônimo de emancipação. O fato de que as estratégias de luta se baseavam conceitualmente na condição específica das mulheres brancas das classes privilegiadas colocava tais estratégias em desacordo com as percepções de empoderamento das mulheres da classe trabalhadora. Não surpreende que muitas delas tenham dito à sra. Anthony: ‘mulheres querem pão, não voto’”, (DAVIS, 1989, p.16).

Depois essa luta foi reformulada entendendo que o voto seria o instrumento importante para outros avanços.

Figura 05 - Angela Davis discursando.

Fonte: Hypeness, 2017


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O lema do movimento negro era “erguer-nos enquanto subimos” trazendo forte apelo à empatia por todas as mulheres e coletividade para que pudessem vencer juntas. Esse lema ganha força com o passar dos anos e em 1960 o movimento de mulheres negras eclode em uma segunda onda do feminismo com enfoque nas questões de mulheres pobres e trabalhadoras e por isso as pautas giravam em torno dos problemas no emprego, falta de equidade salarial, licença maternidade remunerada, creches públicas e inclusive a legalização do aborto. Enquanto as mulheres brancas antes da segunda onda lutavam para trabalhar, as mulheres negras já trabalhavam e sempre se preocupavam com as condições dignas de trabalho, que, inclusive, beneficiaria a todas. Davis (1989) completa dizendo: Acadêmicas e profissionais negras não podem se dar ao luxo de ignorar as dificuldades de nossas irmãs que estão familiarizadas com a opressão de um modo que muitas de nós não estamos. O processo de empoderamento não pose ser definido de forma simplista de acordo com os interesses específicos de nossa própria classe. Precisamos aprender a erguer-nos enquanto subimos, (DAVIS, 1989, p.20).

Antonio Risério (2015) refere-se a uma segunda onda do feminismo destacando sua principal diferença com a anterior, segundo o autor, houve uma radicalização no discurso. As primeiras, as pautas estavam mais centradas em reivindicar a “igualdade jurídica, política, social e econômica”, já na segunda fase há uma compreensão maior sobre a mulher ter seus próprios desejos, sua própria voz e seu próprio corpo, não é um “complemento do homem, é um outro, uma outra”. (RISÉRIO, 2015, p.246) Flávia Biroli (2014) complementa esse pensamento ao afirmar que, No feminismo nos anos 1960 e 1970, o afeto, a sexualidade e o corpo foram politizados por meio de manifestações e de testemunhos que permitiriam levar o público as perspectivas das mulheres, em um processo que objetivou, ao mesmo tempo, redefinir as regras do jogo e conscientizar as próprias mulheres. Nesse período, a noção de direito ao corpo foi fundamental em diferentes partes do mundo para o ativismo contra a violência doméstica e o estupro, assim como pelo complexo de direitos relacionados à reprodução, como direito ao aborto, (BIROLI, 2014, p.41).

Na transição entre a primeira e segunda onda, são identificados alguns avanços tecnológicos e conquistas como a pílula anticoncepcional, muito importante para a autonomia da mulher que pode decidir o momento de ter filhos e assim trabalhar fora de casa e ganhar independência financeira (RISÉRIO, 2015, p.99 e 100). Biroli (2014) enfatiza como o controle da sexualidade pela mulher é importante para garantir a igualdade de gênero, pois sem isso ela não teria domínio pleno do seu corpo e a autonomia necessária:


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O direito das mulheres ao aborto e ao controle de sua sexualidade e sua capacidade reprodutiva pode ser pensado como fundamental para a cidadania igual de homens e mulheres. Sua negação retira às mulheres o domínio sobre seu corpo, restringindo também seu direito à privacidade na decisão sobre questões de forte relevância ética e moral para os indivíduos. Quando essa forma da privacidade e da intimidade, que garante a autonomia das mulheres na decisão sobre seu corpo e sobre questões relevantes para sua identidade, não é garantida, os direitos individuais são restritos, (BIROLI, 2014, P.44).

Por isso o direito ao corpo é tão importante na luta feminista até os dias atuais. Conforme Tiburi (2018): Não há nada mais absurdo para o patriarcado do que o direito ao corpo. Assim como é importantíssimo que as mulheres sejam donas da sua própria sexualidade e de todo seu corpo, elas devem ser donas de seu corpo reprodutivo. (...) O feminismo nos ensina a lutar por isso a lutar por um mundo em que os corpos e, com eles, a dignidade das pessoas possam ser resgatados, (TIBURI, 2018, p.37).

Outro ponto importante para a autonomia da mulher é a independência financeira e por isso Davis (1989) enfatiza que um aspecto “preocupante para as mulheres afro-americanas” é o desemprego, pois sem isso a mulher fica dependente de outra pessoa para sobreviver e há maiores dificuldades para se empoderar. Neste sentido, Tiburi (2018) aborda sobre a educação como um instrumento necessário para a autonomia feminina, os estudos tem o poder de libertar as mulheres das violências físicas e simbólicas sob a qual todas estão sujeitas (p.20 e 21). Figura 06 - Manifestação do #ELENÃO.

Fonte: Brasil de Fato, 2018


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Através dessas lutas as mulheres conseguiram conquistar muitos direitos, entretanto ainda falta muito, não há equidade salarial e a violência contra a mulher não cessa. Segundo a professora da PUC-RIO, Nina Bernardes, o Brasil tem vivido uma primavera feminista desde 2013 com mais organizações e lideranças de mulheres. Um exemplo recente, considerado o maior movimento feminista do Brasil, foi o #EleNão que aconteceu em 114 cidades sendo totalmente organizado e liderado por mulheres, ver figura 6. A luta tinha como foco claro a renúncia feminina ao candidato à presidência Jair Bolsonaro, uma figura política que representa retrocesso para as poucas e recentes conquistas das minorias, em especial das mulheres. 7 Por fim, fica esclarecido nessa seção como se constituiu a vida da mulher na sociedade, através do casamento monogâmico e do fator biológico a mulher foi confinada ao ambiente doméstico durante séculos e essa realidade só começou a mudar através das lutas feministas por direitos iguais e para ter acesso a rua, ao trabalho, ao voto, ao estudo e etc. Essas informações são importantes para a compreensão da próxima seção que trata da relação da mulher com a cidade.

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CARNEIRO, Julia Dias; GRAGNANI, Juliana; ROSSI, Amanda; #EleNão: A manifestação histórica liderada por mulheres no Brasil vista por quatro ângulos. BBC News Brasil. 2018. Acesso em 05 de maio de 2018. Disponível em <https://www.bbc.com/portuguese/brasil-45700013>


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Eu tenho pressa e eu quero ir pra rua Quero ganhar a luta que eu travei Eu quero andar pelo mundo afora Vestida de brilho e flor Mulher, a culpa que tu carrega nĂŁo ĂŠ tua Divide o fardo comigo dessa vez Que eu quero fazer poesia pelo corpo E afrontar as leis que o homem criou pra te maldizer Que o homem criou pra te maldizer!

Ekena


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3 CIDADE PARA MULHERES?

Essa seção começa com um questionamento, nossas cidades são para as mulheres? Muito se fala nos cursos de Arquitetura e Urbanismo em cidade para as pessoas, mas pessoas é um substantivo comum e coletivo que inclui todos num grupo sem considerar suas necessidades específicas, cidade para pessoas seria o ideal se vivêssemos numa sociedade sem desigualdade, entretanto a realidade do Brasil, e de muitos países, é de uma sociedade desigual, racista, machista e preconceituosa, no qual, as minorias, como é o caso das mulheres, foram e são oprimidas. As mulheres não utilizam a cidade da mesma forma que o homem e por isso a discussão de cidade para mulheres é necessária. Como afirma Zaida Muxí (2014, p.199) em Arquitetura e Política “Tornar visível a diferença é o primeiro passo para a construção de uma ordem simbólica diferente em que as mulheres possam se expressar a partir de sua experiência de vida.”. Ao tratar disso, Muxí refere-se às cidades como uma criação que segrega mulheres e proporciona o medo, um exemplo disso é o lema do projeto arquitetônico e urbanístico norte americano, “o lugar da mulher é o lar”: Edifícios, bairros e cidades foram projetados para manter as mulheres no lar, constrangendo-as física, social e economicamente [...] o remédio para essa situação é desenvolver o novo paradigma o lar, do bairro e da cidade [...] que deverá dar suporte, mais do que restringir, as atividades das mulheres trabalhadoras e de suas famílias HAYDEN, 1980 apud MUXI, 2014, p. 200)

Nessa seção será mostrado a relação da mulher com a cidade de modo mais específico. A primeira subseção fala do público e privado e apesar da similaridade com a subseção 1 da seção anterior, neste momento é mostrado como o confinamento da mulher no ambiente privado facilitou a violência doméstica pela ausência de intervenção do Estado e como o ambiente privado distancia a mulher, dos dias atuais, aos espaços de lazer e da vida pública e política enquanto a subseção do enclausuramento feminino tratava mais especificamente do aspecto histórico. Na subseção seguinte é tratado das relações do poder patriarcal e heteronormativo na construção das cidades e como isso prejudica a mulher que não possui suas necessidades atendidas. Por fim, nas duas últimas sub seções, é mostrando como a mulher se locomove e utiliza a cidade de modo muito particular e como isso é agravado pela interseccionalidade de ser negra, pobre ou LGBT ou todas elas juntas, por isso a presença de mulheres na vida política é importante para promover uma gestão de cidades mais democráticas para os gêneros.


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3.1 PÚBLICO E PRIVADO

Não é tão comum ver mulheres em bares da esquina ou jogando xadrez na praça como os homens, pois como foi descrito na seção anterior, a relação da mulher sempre foi com o espaço privado, ao contrário do homem que sempre esteve ligado ao espaço público. No trabalho de conclusão de curso de Júlia Lyra, (Im)permanências e (In)seguranças da mulher na cidade, é mostrado como seria uma cidade em que as mulheres estivessem presentes verdadeiramente nas ruas. [...] várias esquinas cheias de mulheres sentadas conversando, passeando, alimentando as crianças, trocando receitas e livros, planejando a festa do bairro ou apenas se entregando ao tempo que passa. Imagine esquinas cheias de mulheres jovens assistindo o mundo passar enquanto saboreiam um chá e discutem política, novelas e o mais recente orçamento financeiro. Imagine esquinas cheias de mulheres mais velhas contemplando o estado do mundo e relembrando suas vidas. Imagine esquinas cheias de mulheres trabalhadoras domésticas planejando sua próxima greve para um aumento no salário mínimo. Se se pode imaginar tudo isso, pode-se imaginar uma cidade radicalmente alterada (PHADKE et al., 2011, p. 180 Apud LYRA, 2018, p. 2).

Flávia Biroli (2014, p.32) explica que a esfera pública foi construída como um espaço impessoal e o privado como local das relações íntimas, ou seja, na primeira as pessoas exercem sua cidadania e direitos universais e na segunda exercem sua individualidade. Essa ideia reforça os papéis de gênero e os naturaliza, a mulher que gera a vida se dedica a família e ao trabalho doméstico e por isso ‘permanece/permanecia’ em casa. Além disso, o ambiente privado abriu uma brecha para que os direitos individuais e a dominação masculina prevalecessem. Nesse quadro, a preservação da esfera privada em relação à intervenção do Estado e mesmo às normas e aos valores majoritários na esfera pública significou, em larga medida, a preservação de relações de autoridade que limitaram a autonomia das mulheres. Em muitos casos, sua integridade individual esteve comprometida enquanto a entidade familiar era valorizada. Em nome da preservação da esfera privada, os direitos individuais na família foram menos protegidos do que em outros espaços, ainda que neles as garantias também fossem incompletas e diferenciadas de acordo com as posições sociais. A garantia de privacidade para o domínio familiar e doméstico foi vista, por isso, como uma das ferramentas para a dominação masculina, (BIROLI, 2014, P. 32).

A ideia de privacidade serviu para a dominação dos mais vulneráveis e por isso o patriarcado ganhou total liberdade dentro de casa pois o Estado pouco fazia em relação a violência doméstica, inclusive uma frase bem conhecida é ‘em briga de marido e mulher não se mete a colher’ e essa realidade no Brasil mudou há pouco tempo com a implantação da Lei Maria da Penha em 2006, mas ainda assim muitas mulheres são vítimas de violência doméstica e feminicídio nos dias atuais. E por esse motivo, as distinções entre público e privado foram


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criticadas pelo feminismo, o ideal é não pensar os espaços separadamente, é começar a discutir esses ambientes sob a perspectiva de “um complexo diferenciado de relações, de práticas e de direitos – incluídos os direitos à publicidade e a à privacidade – (..) uma vez que (...) os direitos garantidos em uma das esferas serão sentidos na outra” (BIROLI, 2014, P. 33) Terezinha Gonzaga (2004, p. 212) em A cidade e a arquitetura também mulher, fala que muitas pessoas acham normal que o que acontece em casa permaneça em casa, mas o Estado deve intervir sim, “esta violência tem de ser coibida, esse é um problema social, cuja solução tem de ser encaradas como parte das políticas públicas e que as mulheres tem o direito de usufruírem o espaço privado e público sem serem violadas” Pensar o ambiente doméstico e público de modo democrático e justo para as pessoas é um modo de atenuar a dominação masculina contra a mulher, um exemplo disso, além da Lei Maria da Penha, é a classificação do estupro conjugal como um crime, essa interferência do Estado sobre a privacidade familiar é importante para as mulheres. “O mundo dos afetos é também aquele em que muitos abusos puderam ser perpetuados em nome da privacidade e da autonomia da entidade familiar em relação às normas aplicáveis ao espaço público” (BIROLI, 2014, p.34). Além dessa questão da violência, pensar nos dois espaços de modo conjunto traz a reflexão sobre como a divisão sexual do trabalho interfere na vivência das mulheres de modo distinto do homem no espaço público. A distribuição desigual do trabalho doméstico e do cuidado da família apenas para a mulher a sobrecarrega de tal modo que a impede de ter um trabalho fora de casa, de ter lazer, de ter a mesma autonomia que o sexo masculino tem na cidade e tornando-a dependente financeira do marido que se utiliza disso para exercer sua dominação. (BIROLI, 2014, p. 34) E apesar das mulheres estarem no mercado de trabalho, como nunca estiveram antes, são elas que carregam o peso da jornada dupla de trabalho. A abordagem de Susan Okin exemplifica bem essa posição. Nela, a separação entre as esferas é vista como ficção, dado que a posição em uma, com vantagem e desvantagens a ela associadas, tem impacto nas alternativas que se desenham e nas relações que se estabelecem na outra. As barreiras para o exercício do trabalho remunerado fora da esfera doméstica, especialmente para o acesso às posições de maior autoridade, maior prestígio e maiores vencimentos, estão associadas ao tempo que a mulher despende no trabalho, não remunerado, na esfera doméstica, (BIROLI, 2014, p.35).

Nessa citação fica evidente a interferência da vida doméstica destinada a mulher para conseguir um emprego, se a divisão das tarefas da casa fossem divididas para ambos os gêneros do mesmo modo no ambiente público também haveria condições mais favoráveis de igualdade, entretanto o que temos hoje é uma divisão desigual de trabalho estando as mulheres em


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desvantagem pela dupla jornada e na maioria das vezes ganhando menos que os homens. Biroli (2014) ainda diz no texto que é esse trabalho feminino que propicia ao homem mais tempo para momentos de lazer fora da vida profissional. (p.35 e 59) Diante desse contexto a autora conclui que deve haver justiça nas duas esferas, privada e pública, pois para que tenhamos uma sociedade justa as relações familiares também devem ser justas, “(...) a democracia requer relações igualitárias em todas as esferas da vida inclusive a familiar” (p.36) afinal, esse recurso propagou a dominação masculina no ambiente doméstico, tendo o Estado se posicionado diante da violência doméstica há poucos anos, por isso essa separação do público e privado enfatizou ainda mais a divisão sexual do trabalho da casa como ambiente feminino e a cidade como ambiente masculino já citado na seção anterior. Por conta disso, os homens detém o poder em todas as instâncias e são eles que participam da construção e da gestão das cidades, a próxima subseção se aprofunda nesse contexto.

3.2 RELAÇÕES DE PODER NA PRODUÇÃO DAS CIDADES

Giovanna Melo (2017, p.11) explica como o processo de produção das cidades não é igual para todos e cita Weber (1964, p. 184) ao dizer que “O urbanismo não é neutro, [...] é concebido a partir dos valores da sociedade e estes são ‘patriarcais, racistas e capitalistas’”. No Brasil, toda a história é marcada por estas relações de poder, o Brasil nasceu do estupro de indígenas e negras e da reclusão das mulheres brancas, e, ainda nos dias atuais, o Estado e a iniciativa privada gerencia o espaço reproduzindo as mesmas desigualdades sociais e de gênero. Ana Carolina Rabelo (2016, p. 8) complementa dizendo: “O espaço não manifesta por si só uma opressão ou libertação, mas ele é capaz de condicionar as formas de práticas sociais já existentes.” O patriarcado sustenta uma sociedade no qual o homem é detentor do privilégio e poder e a mulher é o sujeito que sofre a opressão. Por conta desse contexto histórico são os homens que estão em cargos de liderança e tomando decisões para o coletivo porém com interesses individuais. Como Tiburi (2018, p.57 e 58) afirma “os opressores não escutam os oprimidos (...) a ‘fala’ é autorizada por um ‘falo’ que sempre esteve em posse dos homens brancos que dominaram os discursos e a produção da verdade”. Quem mais sofre com isso são as mulheres, negras e periféricas e outras minorias, como indígenas, LGBT+ e pessoas com deficiência, qualquer pessoa que não se encaixe no padrão do homem branco rico sofre a opressão desse sistema, Flávia Biroli explica sobre isso ao falar de interseccionalidade.


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Mais importante, que a categoria ‘mulher’ não é uma essência abstrata, e sim uma resultante comum das particularidades concretas das diferentes mulheres. Mas o que está na base dessa opção, diz Spelman, é a crença de que diversas relações de dominação são simplesmente somadas; uma trabalhadora, uma negra e uma lésbica sofreriam do mesmo sexismo que qualquer outra mulher, apenas adicionado, conforme o caso, à dominação de classe, ao racismo ou à homofobia, (BIROLI, 2014, p.90).

Biroli (2014, p.31) ainda afirma que a relação casa feminino e cidade masculino não é natural, pois essa divisão foi imposta. Essa segregação foi planejada por meio da política e da gestão urbana. A divisão da cidade no período moderno em lugar de morar e lugar de trabalhar, como já citado na seção anterior, distancia a mulher do local de trabalho, de escolas, de posto de saúde, e para que ela possa frequentar esses locais é necessário percorrer longas distâncias. O modelo de urbanização utilizado nos dias atuais se assemelha às reformas de “higienização ou modernização” das cidades como ocorreu em Paris e no Rio. A expulsão dos pobres e negros para as periferias em condições de vida insalubres ainda acontece na maioria das cidades mas de forma mascarada. O mercado imobiliário junto com os gestores da cidade impõe seus interesses individuais e segrega os espaços, distanciando a população pobre e negra, isso acontece através da criação de conjuntos habitacionais e do programa Minha Casa Minha Vida que constroem essas casas em locais desarticulados da malha urbana estruturada. Rabelo (2016) cita: Cortés confirma que as cidades ocidentais em geral originaram uma estrutura urbana que segregou rigidamente sob diferenças de classes, de etnia, de gênero, e consequentemente divisões espaciais foram conformadas, tanto no traçado urbanístico, nos espaços de trabalho, em áreas de lazer, serviço, comércio, entre outros. (RABELO, 2016, p. 20)

Complementando essa questão, Mark Gottdiener (1997) em A Produção Social do Espaço Urbano mostra que o mercado utiliza da justificativa de desenvolver as cidades para “legitimar suas atividades”, entretanto esse desenvolvimento só favorece a eles e à elite. Nessa circunstância, são as mulheres quem mais sofrem com a falta de infraestrutura. David Harvey (2014, p.60) em Cidades Rebeldes explica o direito à cidade como algo individual, cada pessoa possui o seu, mas que para ganhar força, para que o direito das minorias seja atendido é necessário a coletividade como é o caso de grupos de trabalhadores, mulheres, LGBT+ lutando por uma causa, ou seja, o direito à cidade deve ser conquistado. No entanto, o que ocorreu e ocorre na gestão urbana é que o direito à cidade, apesar de ser de todos, está sempre “caindo nas mãos de interesses privados”. (...) o direito à cidade é um significado vazio. Tudo depende de quem vai lhe conferir significado. Os financistas e empreiteiros podem reivindicá-lo e tem todo o direito de fazê-lo. Mas os sem-teto (...) também o podem. (...) como Marx afirma n’O Capital, que ‘entre direitos iguais o que decide é a força’. A própria definição de direito é


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objeto de uma luta, e essa luta deve ser concomitante com a luta por materializa-lo. (HARVEY, 214, P.20)

No caso da mulher o seu direito à cidade está ligado com seu ‘papel social’, uma pessoa do sexo feminino é bem aceita na rua se estiver cumprindo com seus ‘deveres’ de ‘bela, recatada e do lar’. Uma mulher sozinha numa praça pode ficar intimidada diante da possibilidade de alguém lhe importunar, porém se essa mulher estiver com filhos ou acompanhada de um homem entende-se que ela está cumprindo com seu papel e a importunação ocorre com menor frequência. No fim, Terezinha Gonzaga (2004) conclui que a mulher que cuida da família vive a cidade como extensão do lar e as mulheres solteiras também não conseguem usufruir da cidade pela constante importunação. Diante disso, como a mulher vive a cidade sendo constantemente cobradas para cumprir um papel social e não tendo suas necessidades atendidas?

3.3 COMO A MULHER VIVE A CIDADE?

O modo de vivenciar a cidade é diferente para ambos os gêneros, mas como é a vivência da mulher no meio urbano? Vários autores citam pontos em comum, os principais são: a maior parte das mulheres atravessam a cidade a pé e de transporte público, elas percorrem distâncias maiores evitando algumas ruas, e em suas viagens normalmente faz muitas paradas para resolver vários problemas de uma única vez. Antonio Risério (2015) aborda que o planejamento urbano tem se preocupado com a espacialidade de modo geral e ignora a principal pessoa que vai utilizar a cidade, a mulher, principalmente a negra e pobre que mais dependem do transporte público e que mais percorrem a cidade caminhando pois não tem acesso a transporte individual. O autor também trata do número insuficiente de creches para atender as mães que precisam trabalhar e conclui que pela dificuldade de conseguir cuidar dos filhos e trabalhar aceita trabalhos informais e normalmente mal remunerados. Giovanna Melo (2017) continua a discussão explicando como as calçadas acessíveis são fundamentais para as mulheres que levam o carrinho de bebês e os idosos; além disso fala sobre o uso da bicicleta, pois apesar do número de mulheres pedalando ser menor que o dos homens quando são elas na bicicleta é comum levar seus filhos de carona, ver figura 08, e isso dá mais independência para a mãe que necessita ir até a escola, posto de saúde, entre outros locais. Na pesquisa sobre ciclistas citada por conclui-se que,


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Homens e mulheres viajam diferentemente. Mulheres frequentemente conectam suas viagens – parando na farmácia no caminho de casa depois do trabalho – em uma escala maior que os homens. Mulheres também estão mais suscetíveis a viajar com passageiros, normalmente crianças pequenas, (JONES, 2015, p.04 Apud. MELO, 2017, p.45).

Figura 07 - Mulher de bicicleta e levando uma criança de carona.

Fonte: ONG Ciclo Urbano, 2018

Lúcia Siqueira (2015) em Por onde andam as mulheres? relaciona a vivência da mulher na cidade ligada às atividades domésticas, como ir ao supermercado, posto de saúde, escola. O sentido privado da casa continua no ambiente público. E com o zoneamento da cidade muitos desses locais estão afastados das áreas residenciais, principalmente para mulheres periféricas tornando os percursos delas mais longos e reduzindo seu tempo de descanso e de lazer ainda mais. Terezinha Gonzaga (2004) complementa: A maneira pela qual a cidade é estruturada afeta diretamente o tempo das mulheres: o importante fator da definição dos locais de moradia, dos equipamentos, do trabalho é o que determina seus trajetos, e se eles serão desgastantes ou gerarão contatos enriquecedores com a paisagem urbana. Ressalta também essa autora que a mulher, como principal administradora do cotidiano da família, vive em eterna corrida contra o relógio, tentando combinar e conciliar o emprego com os afazeres domésticos, com o horário da escola das crianças, com as contas a pagar, com o doente da família que ela tem de levar ao médico e de quem tem de cuidar, etc. (CALIÓ, 1991 Apud. GONZAGA, 2004, p. 188)

Na pesquisa de doutorado de Gonzaga (2004, p.213 e 236) as mulheres falavam da questão do zoneamento preferindo que os bairros fossem mistos para ter maior movimentação de pessoas nas ruas. Além disso, a autora notou que os homens tinham maior facilidade de reconhecer os locais nos mapas e as mulheres afirmaram que tinham medo de andar por ruas


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desconhecidas e muitas vezes se limitam ao seu próprio bairro, além disso elas percorrem distâncias maiores afim de evitar ruas ‘esquistas’. Outro ponto importante destacado por Gonzaga (2004) é a pesquisa feita em Santo André no qual os dados da Delegacia de Defesa da Mulher apontam que os estupros acontecem onde não há comércio, não há iluminação adequada e nem linhas de transporte público que passem próximo ao local. Diante disso, é comprovado que os problemas de zoneamento atingem as mulheres de modo muito cruel. Isso também foi notado no trabalho A mulher e a cidade, de Isabella Rosa (2018), na Rua Augusta os estupros aconteciam em locais com essas mesmas características citadas por Gonzaga (2004). Pois apesar de ter bastante vida noturna, nenhuma delas está voltada pra rua, são grandes galpões fechados, numa rua estreita e com calçadas de 1,5m a 3m, sem mobiliário urbano e com iluminação apenas para carros. Rosa (2018) escreve sobre a travessia da mulher pelos espaços públicos e toma como parâmetro o conceito de corpografias urbanas apresentado por Paola Berenstein Jacques (2008).

Figura 08 - Rua Augusta a noite.

Fonte: G1, 2013

Jacques (2008) refere-se à relação aprofundada e intrínseca entre corpo e cidade, afinal a cidade só existe e só acontece através da presença do corpo humano, e o modo de vida urbano das pessoas é um reflexo das experiências que acontecem na cidade. Essas experiências traçam marcas em nossos corpos conceituadas por Jacques (2008) como corpografias. Desse modo, quando algo ruim ou bom acontece em determinado local fica marcado em nossas vivências e


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influencia no nosso modo de se locomover, por isso a mulher transita de modo distinto do homem. Partimos da premissa de que corpo e cidade se relacionam, mesmo que involuntariamente, através da simples experiência urbana. A cidade é lida pelo corpo como conjunto de condições interativas e o corpo expressa a síntese dessa interação descrevendo em sua corporalidade, o que passamos a chamar de corpografia urbana. (...) A corpografia urbana seria um tipo de cartografia realizada pelo e no corpo, ou seja, a memória urbana inscrita no corpo, o registro de sua experiência da cidade, uma espécie de grafia urbana, da própria cidade vivida, que configura o corpo de quem a experimenta, (JACQUES e BRITTO, 2008, p. 79).

Rosa (2018) faz uma relação desse conceito com a interseccionalidade, quando afirma que as experiências urbanas de uma mulher negra e periférica é completamente distinta de um homem branco e rico. A autora continua sua explicação sobre a relação do corpo da mulher com o urbano dizendo que do mesmo modo que a pessoa do gênero feminino atravessa a cidade a cidade também atravessa a pessoa, e dado as circunstâncias atuais da sociedade patriarcal, a cidade atravessa a mulher de modo muito “violento, invasivo e brusco”. [...] a cidade responde corpos através de seus próprios corpos. E quando esses outros corpos são de homens pertencentes a uma sociedade patriarcal, quando os objetos urbanos são produzidos, em sua maioria, por homens pertencentes a uma sociedade patriarcal, quando as ideias que predominam sã advindas de homens pertencentes a uma sociedade patriarcal e quando as situações são reflexos de uma sociedade patriarcal, resta pouco ou inexistente espaço ideológico e físico em concordância ao corpo feminino. (ROSA, 2018, p.35 e 36)

Por fim, Rosa (2018, p. 36) afirma que a partir da constatação das assimetrias entre as vivências femininas e masculinas na cidade devem ser tomadas medidas de equidade de gênero para neutralizar essas experiências e cabem aos arquitetos e urbanistas e outros pensadores da cidade “identificar os aspectos urbanos que viabilizam essa desigualdade em gênero nas vivências das cidades” e planejar soluções e modos de atenuar essas assimetrias. Além desses profissionais é indispensável a presença da mulher no centro dessa discussão, para que ela possa ser ouvida e decidir o que elas precisam.

3.4 A MULHER DECIDE

A mulher é quem mais vive a cidade a pé e em transporte público, é ela a mais vulnerável na rua, entretanto, as decisões sobre a gestão da cidade e políticas públicas continuam sendo tomadas, em sua maioria, por homens, brancos e ricos, no caso do Brasil, no cenário atual, as


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mulheres correspondem a 15% das cadeiras do congresso e senado8. Luis Felipe Miguel (2014) em Feminismo e política, explica que o número é baixo decorrente da estruturação do patriarcado, pois a mulher, mesmo trabalhando fora, ainda é a mais responsável pelos afazeres domésticos e pelo cuidado dos filhos, exercendo uma dupla jornada de trabalho, e desse modo, o tempo para lazer e qualquer outra atividade é muito reduzido e ela não consegue se articular para uma vida política. Dado essas circunstâncias é necessário algumas medidas de equidade de gênero para que mais mulheres ocupem essas cadeiras como o próprio autor cita: Os padrões diferenciados de socialização de gênero e a construção social da política como esfera masculina inibem, entre as mulheres, o surgimento da vontade de participar. Em suma como disse Anne Phillips, não basta eliminar as barreiras formais à inclusão, concedendo acesso ao voto ou direitos iguais. É necessário incorporar expressamente os grupos marginalizados no corpo político, ‘empurrá-los’ para dentro, rompendo a inércia estrutural que os mantém afastados dos espaços decisórios, (MIGUEL, 2014, p. 94).

Apesar do baixo número de mulheres no congresso e senado, elas tem atuado politicamente por meio dos movimentos sociais, são elas quem normalmente iniciam esses coletivos em busca de serviços urbanos e sociais, principalmente por estarem mais exposta às dificuldades urbanas. Terezinha Gonzaga (2004) relata a luta feminina durante a ditadura militar por mais creches, postos de saúde, e infraestrutura para moradia, vários coletivos, movimentos, e sindicatos e casas de apoio foram fundados no período e alguns deles permanecem até os dias atuais. Siqueira (2015) complementa esse pensamento quando diz: O papel das mulheres na reprodução da força de trabalho e na família torna sua presença marcante e quase que obrigatória nas lutas sociais pela melhoria dos serviços urbanos e qualidade de vida. Devido às suas tarefas domésticas e participação na comunidade (sobretudo as mulheres mais pobres), são as mais afetadas pela crise dos serviços urbanos que aumenta, consideravelmente, suas responsabilidades. Isoladas no espaço privado do lar ou à sua extensão pública (o posto de saúde, a farmácia, o hospital, a loja, o supermercado, a feira, o açougue, a padaria, a escola, o parque, etc.), elas travam uma luta incessante contra o relógio, tentando administrar sua vida quotidiana, (CALIÓ, 1997, p. 7; Apud. SIQUEIRA, 2015, p.18).

O guia prático do IBAM (1997) - Instituto Brasileiro de Administração Municipal sobre planejamento de gênero fala que o urbanismo deve ser pensando e administrado por mulheres para que elas possam estar no processo de tomada de decisões. Com a maior presença feminina nos congressos, é provável que as políticas de equidade de gênero fossem difundidas, a gestão das cidades teria outra visão e as necessidades femininas seriam atendidas, 8

Minoria no Congresso, mulheres lutam por mais participação. 2019. Acesso em 20 de outubro de 2019. Disponível em <https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2019/03/07/minoria-no-congresso-mulhereslutam-por-mais-participacao>


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especialmente se essa representação política for, também, negra ou periférica ou indígena ou LGBT+ ou outra minoria. Um marco para a construção de um urbanismo para as mulheres aconteceu em 2002 quando foi inserido no Plano Diretor Estratégico de São Paulo, as Diretrizes Específicas para Mulheres (DEM). Essas diretrizes foram feitas com a participação de mulheres de movimentos sociais, vereadoras e da universidade. Há especificações sobre iluminação, segurança, moradia, educação, geração de renda, mobilidade, entre outros. O primeiro item das diretrizes é o desenvolvimento econômico e geração de renda, nele são elencados apoio financeiro para as mulheres, formação de cooperativas femininas, garantia de 10% de feiras e comércio ambulante para as mulheres e as possíveis cooperativas existentes e o apoio para que possam participar de eventos e comercializar seus produtos. Outro ponto é a educação para as mulheres e seus filhos, por isso as propostas consistem em dar bolsas para chefes de família e com baixa escolaridade e oferecer cursos profissionais sem estereótipos de gênero e para as crianças o acesso a creches e escolas integrais e com funcionamento a noite e no fim de semana além do acesso a transporte público da prefeitura para que os filhos possam ir e voltar para casa em segurança e gratuitamente. (GONZAGA 2004, p.199) Nesses dois itens fica evidente como as políticas públicas devem priorizar a mulher em suas atividades envolvendo sua renda e sua educação, pois independência financeira e oportunidade de estudar são fundamentais para a autonomia feminina como já foi citado anteriormente. Além disso, a educação para os filhos e a possibilidade de deixá-los em creches eleva as possibilidades femininas de conseguir um trabalho formal e consequentemente aumenta sua independência financeira. A questão de mobilidade e acessibilidade é o maior item do DEM, nele são contemplados campanhas contra assédio sexual no transporte público e nos demais espaços públicos e campanhas para modificar o comportamento de desrespeito contra as mulheres, principalmente as que tem direito prioritário para sentar, gestantes, com crianças, idosas e com deficiências e também as mulheres motoristas e ciclistas. Outro aspecto é a relocação dos pontos de ônibus em locais que favorecem a violência contra a mulher e a criação de itinerários de ônibus que atendam os bairros e passem por creches, escolas, postos de saúde e pontos comerciais. Sob a ótica de acessibilidade as propostas consistem na garantia do cumprimento das normas de acessibilidade nos edifícios e de rebaixamentos de guia nas calçadas para facilitar as travessias de mulheres com idosos e carrinhos de bebê, a diminuição da altura dos degraus dos ônibus e a presença de banheiros públicos de qualidade. (GONZAGA 2004, p.199)


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A mobilidade urbana é um grande desafio para as mulheres, os locais de trabalho distantes de creches, da moradia, distante de outros equipamentos públicos necessário como banheiros e trocador de fraudas além das dificuldades de acessibilidade com crianças e idosos e os inúmeros assédios sofridos nesses espaços somam-se numa travessia difícil e invasiva, a cidade atravessa a mulher com violência e para atenuar isso além de melhorar os aspectos físicos da cidade é essencial que exista as políticas públicas para coibir os assédios. No quesito meio ambiente a diretriz incentiva programas de informação sobre legislação ambiental para mulheres, e na comunicação é proposto que os locais destinados a receber mulheres tenham informações adequadas para atende-las. Um ponto muito necessário na diretriz é sobre a violência contra a mulher, para atenuar as consequências vividas pelas mulheres é necessária a contratação de psicólogos para os postos de saúde, além disso o sigilo das denúncias, a capacitação adequada dos profissionais de saúde e o fortalecimento dos centros de atendimento é muito importante para que as mulheres se sintam seguras para procurar ajuda, por fim, deve existir atendimento jurídico às vítimas de violência doméstica e sexual. Deve ser enfatizado também que o apoio psicológico é extremamente necessário para mulheres, inclusive para aquelas que nunca sofreram violência física ou sexual, pois só o modo de vida no qual a mulher trabalha, estuda, cuida da casa e dos filhos já é um alarmante para a saúde mental feminina. (GONZAGA 2004, p.200). Para a segurança as diretrizes citam a garantia de policiamento comunitário e segurança nas escolas, no quesito saúde refere-se a implementação de programas de Assistência em todas as unidades básicas de saúde e atendimento multidisciplinar e especializado. Sobre habitação existem várias diretrizes, dada a importância desse ambiente para as mulheres e seus filhos. Programas de subsídios para mulheres visto que elas recebem menos que os homens e para chefes de família para que possam adquirir uma casa própria, garantia do título da propriedade em nome da mulher, ampliação de moradias provisórias e albergues e programas habitacionais no centro eu atendam as mulheres. (GONZAGA 2004, p.200). São as mulheres quem mais sente impacto sob as políticas de habitação, pois são elas que lideram muitas lutas e são elas que sentem mais o impacto de não ter moradia, ou de morar em ocupações e em áreas periféricas sem infraestrutura adequada. Políticas de saúde para a mulher são mais comuns de acontecer e a segurança é um item importante para as mesmas se sentirem mais confiantes em percorrer o espaço público. Para que as mulheres se sintam mais confiantes em andar a noite pelas ruas é necessário iluminação pública de qualidade, além disso um uso do solo adequado também pode contribuir, nas diretrizes é citado uma possível lei que obrigue murar terrenos baldios e sinalização dos


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espaços na cidade onde podem ocorrer violência sexual. É importante também que a mulher e seus filhos tenham acesso a lazer, esporte e cultura e por isso as propostas são criar condições para que possam frequentar esses locais como a instalação de playgrounds e fraldários, criar espaços recreativos direcionados às mulheres e implantar programas de teatros e shows nas periferias. (GONZAGA 2004, p.201). A criação de programas sociais específicos para as mulheres com menos rigidez nos critérios de seleção e cursos de qualidade são necessários para a sua inserção nessas programas e no trabalho deve ser garantido que a mulher amamente por seis meses e que ela não seja coibida a esterilização. Por fim, o último item é a gestão pública para incentivar a participação das mulheres da política, em conselhos, conferências e a participação das entidades em agências de desenvolvimento econômico e social além do fortalecimento a essas entidades. (GONZAGA 2004, p.201). Todas as políticas públicas citadas mostram como cada um desses itens devem ser pensados com um viés feminino, dando prioridade à mulher. Como o Ibam menciona no Guia Prático, as medidas sociais quando citam algo para todos falam sempre com o substantivo masculino, que gramaticalmente foi estabelecido para incluir homens e mulheres, entretanto é necessário destacar o nome ‘mulher’ nessas políticas e assim dar um novo significado às questões sociais. A linguagem normal dos documentos de planejamento é assexuada. Os projetos são formulados de modo a tornar muito difícil saber se as mulheres estão incluídas. Falase, por exemplo, em ‘jovens’, ‘vizinhos’, ‘agricultores’, ‘produtores’, sempre no plural e no masculino. Assim a mulher não aparece, o que dificulta a implementação de programas com a perspectiva de gênero. (IBAM, 1997, p. 44)

Rabelo (2016) fala em seu trabalho que o planejamento urbano sob a perspectiva de gênero vai além de equipamentos urbanos e deve procurar soluções para as desigualdades. A partir disso a autora descreve o Gender Planning que traduzindo seria o planejamento de gênero. Esse é um conceito explicado por Rabelo (2016) a partir das teorias de outras pensadoras, uma delas é Doris Damyanovic que divide o Gender Plainning em quatro princípios: I. II. III. IV.

Lugares que mulheres e homens e suas relações entre si são o ponto de interesse; Analisar e avaliar estruturas espaciais de acordo com a sua utilização no dia a dia para mulheres e homens, através da inclusão; Tornar visível e descontruir as relações de poder, condições sociais e avaliação por trás dos conceitos de planejamento; Visa transformar e mudar as condições espaciais de vida e conceitos de planejamento para uma maior igualdade entre homens e mulheres. (RABELO, 2016, p. 21)


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Além dos princípios de Damyanovic, Rabelo (2016) cita Zibell e adiciona mais um princípio para complementar a teoria, que é o processo participativo para dar voz as mulheres e outras minorias. Rabelo (2016, p.22) ainda finaliza explicando que os principais pontos a serem considerados nesse tipo de planejamento é a incorporação de mulheres na política, planejar espaços com uso misto, com conexões ao transporte público e a identidade social. Diante disso, fica evidente a necessidade da mulher de ter políticas públicas específicas, e esses trabalhos do IBAM e do Plano Diretor de São Paulo mostram que é possível um planejamento urbano que priorize o gênero feminino.


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Falo não me calo Que seu falo não me cale E que sempre que eu fale você possa me escutar Falo não me calo Que seu falo não me cale E que sempre que eu fale você possa respeitar.

Bia Ferreira e Doralyce


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4 DEIXA ELA FALAR

Nessa fase da pesquisa foi escolhido o local de estudo, o primeiro critério foi analisar os dados da CEACRIM com os números de estupros de mulheres acima dos 18 anos por bairro, neste momento notou-se que o bairro Farolândia estava em terceiro lugar com maior número de estupros entre 2013 e o primeiro trimestre de 2019, apesar de ser o terceiro na ordem ele foi escolhido pela proximidade da autora com o bairro por estudar e morar na Farolândia. Na continuidade foi feita uma pesquisa com mulheres que moraram, moram, estudam ou trabalham no bairro, ao total foram 86 entrevistas feitas por meio digital e físico. A participação das mulheres é um momento para ouvi-las, é uma forma de acolher seus sentimentos e desejos, de um dia-a-dia marcado pelo medo, pela violência, e pela carga de trabalho duplo. A pesquisa foi feita sem identificação, para que ela ficasse mais confortável para responder as perguntas que poderiam trazer algum incômodo para elas. A entrevista tinha intuito de entender o perfil da mulher, ouvir relatos de suas experiências nas ruas e entender a sua relação com a cidade, e um ponto importante no questionário era saber o local onde as mulheres evitavam passar e onde já tinham presenciado assédio. Depois de saber quais eram esses locais foram escolhidas três ruas para realizar a vivência, a última etapa da metodologia. Essa etapa consistiu em perceber o espaço e debater sobre ele e no fim desenhar as modificações que a rua precisava, feita com a participação das mulheres. Na vivência e nas entrevistas foi colhido relatos das mulheres sobre alguma experiência marcante na cidade com objetivo de abrir espaço para compartilhar histórias, muitas vezes reprimidas. Seguindo esta ordem serão apresentadas cada etapa nas próximas subseções.

4.1 O BAIRRO DE ESTUDO

O bairro Farolândia surgiu após o ano de 1982 com a construção do Conjunto Augusto Franco, um conjunto habitacional com 4510 unidades com construções até 4 pavimentos, ver figura 09. Outro fator que influenciou no crescimento do bairro foi a implantação do campus da Universidade Tiradentes no início de 1990. Com isso mais infraestrutura chegou para o local e começou um processo de valorização da terra e de construção de edifícios para atender os estudantes que viam do interior para morar nas proximidades da academia. (CARVALHO, 2013)


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Figura 09 - Av. Josino José de Almeida, conhecida como Canal 4, quando o conjunto foi entregue.

Fonte: Aracajusaudade.blogspot.com, 2012

O bairro leva esse nome pela presença de um farol no início do século XIX que guiava as navegações, porém, por volta de 1990 foi alvo de críticas de construtoras que queriam a retirada do farol para poder construir na região, ver figura 10. Como relara Roberta da Silva Rosa (2015), Com o passar dos anos, já no final do século XX, devido ao crescimento da cidade principalmente voltado para a região do litoral, onde se localiza o farol, ele então passou a sofrer críticas da especulação imobiliária, que o colocava na condição de empecilho ao crescimento vertical da região. Diante desse impasse, foi decido pelas autoridades, durante a década de 1990, sua interdição. (ROSA, p. 131, 2015) Figura 10 - Farol em meio à paisagem natural.

Fonte: Aracajusaudade.blogspot.com, 2012


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O farol foi interditado por um período mas em 1995 foi reconhecido como um Patrimônio Histórico e Artístico de Sergipe, quatro anos depois ele foi incendiado de modo criminoso e só foi totalmente restaurado em 2008 (ROSA, 2015). Atualmente, o Farol está localizado numa rotatória e nessa região é onde se concentra em maior número, as edificações verticais acima de quatro pavimentos, também por influência da universidade nas proximidades, ver figuras 11 e 12. Figura 11 - Farol nos dias atuais.

Fonte: Google imagens

Nas figuras acima, 10 e 11, é possível identificar como a paisagem entorno do Farol se modificou, antes era cercado por dunas e nos últimos anos começou a se cercar de prédios. O crescimento dessa área em decorrência da Universidade Tiradentes aumentou o número de condomínios fechados e de jovens vindos de outros municípios para cursar nível superior. Além disso, houve grande valorização no valor da terra atraindo pessoas de classe econômica mais alta que se concentra, principalmente, nos condomínios próximos ao Farol e próximo à avenida Beira-Mar como mostra a figura 12. (CARVALHO, 2013) Com o tempo o conjunto também sofreu alterações, como mostrado na figura 09 todas as casas seguiam um mesmo padrão e conforme os moradores foram se apropriando do local as residências foram adquirindo características únicas, os prédios foram murados, e neles, foram construídos pequenos comércios e serviços. Em 2014, as avenidas José Josino de Almeida (Canal 4) e Tomaz D’ávila Nabuco (Canal 5) tiveram suas canais fechadas e houve uma reurbanização com implantação de árvores, mobiliário e ciclovia (ver na figura 12 a localização das avenidas). Em 2019, a avenida Caçula Barreto (Canal 3) recebeu o mesmo tratamento. Com


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essa reurbanização, essas avenidas, principalmente a Canal 5 e Canal 4 ficaram mais movimentadas e valorizou o comércio local.9 Ver figura 13. Figura 12: Mapa com delimitação do bairro e com destaque aa pontos importantes da Farolândia.

Escolas privadas Escolas Públicas Hospital e Posto de Saúde Mercado e Feira Praças

Condomínios fechados com mais de 4 pavimentos Condomínios fechados com até 4 pavimentos

Vias internas do bairro Vias principais que interligam a Farolândia com bairros vizinhos

Fonte: Mapa produzido pela autora através do Google Maps e Photoshop, 2019 9

Infonet. Acesso em 02 de outubro de 2019. Disponível em <https://infonet.com.br/noticias/cidade/augustofranco-iniciara-operacao-do-sistema-de-esgoto/>


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Figura 13 - Avenida Josino José de Almeida pós reurbanização.

Fonte: Infonet, 2014

Com essas transformações o bairro possui um uso diversificado, possui comércios locais que movimentam a região, além da Universidade possui escolas públicas e privadas, posto de saúde, hospital de urgência, mercado, clínicas, praças e diversos outros serviços, como mostrado na figura 12. Um local com grande movimentação e importância econômica para a Farolândia é a feira livre que ocorre nas quartas feiras durante todo o dia e o mercado, aberto todos os dias mas com maior frequência no domingo pela manhã. Nesses dois locais há uma grande quantidade de frequentadores inclusive de outros bairros como a Atalaia. Muitas mulheres de várias idades frequentam o local para fazer as compras da casa. Muitas moradoras frequentam a praça da Juventude e as canais urbanizadas para fazer exercícios, passear com as crianças, idosos, animais e etc. como o passeio das canais é acessível e livre de obstáculos a maioria das mulheres percorrem esse espaço em vez das calçadas. Além disso, é comum no conjunto ver as moradoras sentadas na calçada no fim da tarde ou trabalhando de modo informal vendendo tapioca, queijos, tubérculos ou comidas regionais. Em um dos relatos das mulheres sobre experiências na cidade a moradora fala “Algumas vezes passo à pé por dentro da comunidade, sendo esse o local em que me sinto mais segura, pois é ocupado por pessoas, que usam a rua para se sentar a papear. Quanto maior a ocupação, maior a sensação de segurança”. Durante o dia e a noite há muitas mulheres caminhando em direção a universidade pela Canal 5, Maria Pastora ou Rua Tenente Pitanga e nos fins de semana essas ruas ficam mais desertas.


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4.2 “ELA DESATINOU, DESATOU NÓS”

Como já mencionado, o lugar de fala da mulher não é prioridade em quase nenhuma esfera. O homem como detentor do poder também detém o local de fala e decide pela maioria e por isso, um dos desejos desse trabalho é dar voz às mulheres, e um modo disso acontecer foi através do questionário aplicado em diferentes pontos do bairro como mostra na figura 14. Esse também foi disponibilizado por meio digital. Para divulgar a entrevista digital foi feito um panfleto com as informações do questionário e foram deixados em vários estabelecimentos do bairro e distribuídos na feira livre. As mulheres que responderam tinham alguma relação com a Farolândia, sendo moradoras ou ex-moradoras, estudantes ou trabalhadoras. Figura 14 – Locais onde as pessoas que responderam a entrevista moram.

Fonte: Mapa produzido pela autora através do Google Maps e Photoshop, 2019

A entrevista tinha a primeira parte objetiva com perguntas para entender o perfil da entrevistada, como idade, cor/raça, orientação sexual, estado civil, se tem filhos, a renda da família e o responsável financeiro da mesma. Foram entrevistas 86 pessoas entre 13 a 67 anos, mas a maioria estava na faixa de 20 a 29 anos, correspondendo a 58% do total. A maioria se


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considerou parda, com renda de 1 a 3 salários mínimos, solteira, heterossexual e sem filhos, ver gráfico da figura 15. Figura 15 - Gráficos de 01 a 08

Fonte: Elaborado pela autora com base em pesquisa de campo, setembro 2019


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A maior parte dos responsáveis financeiros pela família foram mulheres, sejam as mães, avós, namoradas ou elas mesmas, dentre as 86 respostas, 18,6% das entrevistadas se sustentam sozinha. Em número de respostas, são os pais os maiores responsáveis financeiros nessa pesquisa como detalha a tabela 01, e entre as mulheres casadas, só o marido como responsável ainda representa a maior porcentagem, 53%, e das 15 mulheres casadas apenas 1 é responsável financeira do casal, como mostra o gráfico 8 da figura 15.

Pais, 22

Todos; 1

Entrevista e sua mãe, 1

Padrasto, 1

Irmão, 1

Avó, 1

Marido, 8

Casal, 6

Pai, 11

Mãe, 17

Entrevistada, 16

QUANTIDADE DE RESPOSTAS

Tabela 01: Quem é o responsável financeiro da família?

Fonte: Elaborado pela autora com base em pesquisa de campo, setembro 2019

Para entender mais sobre a entrevistada, foi questionado se elas estudavam ou trabalhavam, como chegavam ao local e se sentiam medo nesse caminho. 30 mulheres responderam que estudam e trabalham, representando 35% do total, como mostra no gráfico 3 da figura 15, e dentre elas 3 tem filhos, aumentando ainda mais a carga de trabalho dessas mulheres. As mulheres que responderam que só estudam tem entre 13 a 27 anos e na maioria dos casos o responsável financeiro da família é um dos pais ou ambos. As mulheres que só trabalham geralmente tem acima de 30 anos e possuem filhos e as nem estudantes nem trabalhadoras são em maior número as que já se aposentaram ou que trabalham como ‘dona de casa’. No gráfico 01 da figura 16 mostra que das 56 mulheres que estudam a maioria chega caminhando, pois muitas delas estudam na universidade ou escola do próprio bairro, depois é carro ou moto e na sequência tem ônibus com 25% e bicicleta com apenas 3%. Ou seja, a


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maioria não tem transporte individual e percorre a pé e de transporte público. No gráfico 02 da figura acima, é mostrado que a maioria das mulheres sentem medo no seu percurso, e quando é feita a associação do medo com a forma de locomoção fica evidente que as mulheres que percorrem a cidade a pé e de transporte público sentem mais medo. No caso das mulheres que trabalham a maioria delas chega de carro ou moto e quando questionadas se sentiam medo no percurso a maioria das respostas foi negativa, não sentiam medo.

Figura 16 - Gráficos de 01 a 05

Fonte: Elaborado pela autora com base em pesquisa de campo, setembro 2019

Quando questionadas sobre como se sentiam ao andar na rua poucas mulheres responderam algo positivo, um quarto delas não respondeu nada relacionado a segurança, elas deram as seguintes afirmativas: se sentiam normal, tranquilas ou gostavam de andar mas a


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maioria ressaltava que se sentiam assim próximo de onde moravam pois conheciam os vizinhos e que não sentiam o mesmo em outras localidades e uma delas ressaltou que se sente livre ao andar de bicicleta, uma das entrevistadas afirmou o seguinte: “A relação do medo para mim se torna mais presente com os espaços desconhecidos. A partir do momento que passo a integrar aquele lugar, a liberdade se torna mais presente mesmo sabendo que os perigos ainda existem.”. As demais mulheres respondiam, em sua maioria, que sentiam insegurança e medo, mas as demais respostas variam em: desconfiança, nervosismo, ansiedade, aflição, angústia ou sensação de pânico, vulnerabilidade ou impotência, tristeza, e sentir que não deve olhar no rosto de ninguém “para não dar ousadia”. Sobre os medos das mulheres as afirmações foram, assalto, assédio e estupro, e a maioria respondia mais de um item na questão, algumas delas, inclusive, ressaltaram que tinham mais temor da violência sexual do que de qualquer outra coisa, principalmente as mais jovens. As mulheres que responderam apenas assalto corresponde a 28% das entrevistadas e a maioria delas tinham acima de 39 anos. A tabela 02 mostra todas as respostas.

Não tem medo, 4

Perseguição, 1

Agressão, 2

Rua, 2

Sequestro, 3

Morte, 2

Homens, 12

Estupro, 30

Assédio, 21

Assalto, 44

QUANTIDADE DE RESPOSTAS

Tabela 02: De quê você sente medo na rua?

Fonte: Elaborado pela autora com base em pesquisa de campo, setembro 2019

Na figura 17 os gráficos mostram que a maioria das mulheres nunca deixaram de sair durante o dia por medo da rua, entretanto o número das que deixaram de sair é 45%, consideravelmente alto. A noite, 80% respondeu que já deixaram de sair. Quando questionadas sobre assédio, se já tinham sido assediada nas ruas, 85% responderam sim e as que responderam negativamente foram, em sua maioria, mulheres acima dos 40 anos. As ruas onde ocorreu assédios está mostrada na figura 18, há uma alta concentração de assédios na Canal 5, na Maria


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Pastora e na Rua Tenente Pitanga, as três são utilizadas para chegar à universidade, outras ruas do conjunto foram citadas de modo isolado e na ciclovia da Av. Beira Mar. Figura 17 - Gráficos 01 a 05

Fonte: Elaborado pela autora com base em pesquisa de campo, setembro 2019

A maioria das mulheres tentam usar alguma estratégia para se sentirem mais seguras. As respostas variam entre: andar atenta, pedir uber, andar com outras pessoas, evitar alguns horários, andar com canivete ou spray de pimenta, andar séria, caminhar pelo meio da rua e não pela calçada pra tentar ser vista, olhar para trás para ver se vem alguém, compartilhar a localização com alguém de confiança, usar roupa folgadas para “parecer” com o sexo masculino, não fazer contato visual, se aproximar de pessoas na rua mesmo que não a conheçam para não se sentirem sozinhas, andar de carro, sair com namorado ou amigo, evitar lugares com homens, andar por ruas movimentadas, não sair de casa à noite.


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Figura 18 - Mapa assédio na Farolândia.

Fonte: Mapa produzido pela autora através do Google Maps e Photoshop, 2019

Na seção anterior, Terezinha Gonzaga (2014) retrata que, por vezes, as mulheres fazem caminhos mais longos na tentativa de evitar ruas ‘estranhas’ e um exemplo disso na entrevista foi a seguinte afirmação da entrevistada, “Vou por caminhos seguros, mesmo que sejam mais longos”, ou seja, a mulher traça estratégias no dia a dia para caminhar por lugares onde se sintam confortáveis e evitam alguns locais e por isso na entrevista a maioria das mulheres afirmam que evitam ruas. Algumas mulheres responderam de forma genérica que evitavam ruas escuras, desertas e “estranhas” e outras forma mais específicas e citaram algumas ruas do bairro marcada na figura 19, as principais são a rua Maria Pastora, Tenente Pitanga, Antônio Monteiro (também citada na figura 18 sobre assédio) entre outras ruas do conjunto.


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Figura 19 - Mapa de ruas evitadas na Farolândia

Fonte: Mapa produzido pela autora através do Google Maps e Photoshop, 2019

Analisando os dois mapas é perceptível que a Avenida Tomas D’ávila Nabuco com continuidade na Murilo Dantas (avenida que dá acesso à Universidade Tiradentes), a Rua Maria Pastora e a Rua Tenente Antônio Fontes Pitanga tem o maior índice de assédio (ver figura 18). Provavelmente esse assédio está ligado ao número de mulheres jovens que moram ou percorrem essa rua para chegar à universidade. Em contrapartida, quando analisamos o mapa das ruas evitadas (figura 19), notamos que as Avenidas (conhecidas por Canal 5) não foram citadas, inclusive, no momento da entrevista, algumas mulheres da Rua Maria Pastora relataram que evitavam a própria rua e preferiam passar pela Canal 5, ou seja, mesmo essa avenida sendo um local onde comumente ocorre assédios a maioria delas prefere caminhar por essa rua. Ver figura 20.


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Figura 20 - Localização das ruas evitadas ou onde sofreram assédio.

Fonte: Mapa produzido pela autora através do Google Maps e Photoshop, 2019

Para entender melhor esse fato é preciso observar essas dois locais. Nas figuras 21 e 22 mostra, respectivamente, a Maria Pastora e a Avenida Tomas D’ávila Nabuco. A primeira possui muitos condomínios fechados próximos e por isso há uma grande quantidade de muros ao longo de toda a rua, além disso, a noite a iluminação é precária e existem muitos pontos sem calçadas ou calçadas irregulares. Na avenida ocorre o oposto, ela é bem iluminada a noite, a reurbanização da canal valorizou o local e o comércio local cresceu trazendo grande movimentação de pessoas, além da arborização, ciclovia e passeio adequado para pedestre, a infraestrutura dos dois espaços é completamente distinto. Entretanto, apesar da movimentação constante de pessoa o assédio é comum, pois a maioria deles é proferido pelos motoristas que transitam na avenida.


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Figura 21 - Rua Maria Pastora

Fonte: Fotos da autora, setembro 2019 Figura 22 - Avenida Canal 5.

Fonte: Fotos da autora, setembro 2019

A rua Tenente Pitanga, chamada por muitas pessoas de rua do Arquidiocesano (uma escola particular até o quinto ano situada nessa rua) tem características semelhantes com a Maria Pastora, com alguns agravantes, o local é estreito e a via é de mão dupla, as calçadas ou não existem ou são praticamente não caminháveis (figura 23), há bastante terreno vazio que torna a região pouco habitada e insegura e há uma grande quantidade de ônibus, que leva os alunos do interior do estado para a Universidade Tiradentes, estacionados nessa localidade (figura 24).


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Figura 23 - Rua Tenente Pitanga, ao lado do colégio Arquidiocesano.

Fonte: Fotos da autora, setembro 2019 Figura 24 - Rua Tenente Pitanga, ao lado da Universidade Tiradentes.

Fonte: Fotos da autora, setembro 2019

Além dessas duas ruas, durante as entrevistas no Conjunto Augusto Franco a Rua M4 foi citada por algumas mulheres, ou como rua evitada ou o local onde sofreu assédio. A rua em questão é a Antônio Monteiro e possui características diferentes das demais ruas mencionadas. Há pessoas circulando, alguns comércios e serviços e não tem presença de condomínio fechado como nas outras localidades, os prédios existente tem 4 pavimentos e as demais são casas térreas ou sobrados (figura 25).


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Figura 25 - Rua Antônio Monteiro

Fonte: Fotos da autora, setembro 2019

Levando em consideração a fala das entrevistadas sobre os lugares evitados e onde sofreram mais assédio, foram escolhidas as ruas Maria Pastora, Tenente Pitanga e Antônio Monteiro como local para intervenção, afinal as três apresentam características distintas e se encontram em regiões diferentes do mesmo bairro.

4.3 SE ESSA RUA FOSSE MINHA

As ruas escolhidas para a intervenção foram a Maria Pastora, Tenente Pitanga e Antônio Monteiro. Antes de propor a intervenção para essas ruas foi necessário uma conversa com moradoras do bairro e que de preferência conhecesse o local para ampliar as possibilidade de mudança da rua e escutar o que elas achavam melhor para aquela localidade baseada na vivência delas. Para conseguir mulheres interessadas em participar não foi simples, a maioria das pessoas abordadas na rua diziam não ter interesse ou não poder participar no dia marcado. Foi criado um texto e enviado pelo aplicativo de conversas WhatsApp e várias pessoas compartilharam para grupos e via Twitter e dessa maneira as interessadas entraram em contato comigo. A vivência ia acontecer na rua escolhida da seguinte forma: Primeira parte era andar pela rua e observar o espaço, pois em muitos momentos só andamos distraídos sem perceber o local e nessa etapa desejava aguçar a percepção das mulheres. A segunda etapa foi debater sobre o que tinham sentido na rua, do que sentiam falta e como elas achavam que a rua poderia ser melhorada para que a travessia delas fosse mais tranquila e confortável. Por último, a rua seria desenhada com as melhorias citadas.


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4.3.1 VIVÊNCIA RUA ANTÔNIO MONTEIRO

O primeiro dia de vivência ocorreu num sábado de manhã as 10h no dia 28 de setembro na rua Antônio Monteiro. Quatro mulheres compareceram. Seguimos o percurso da frente do Colégio Petrônio Portela até o final da rua que coincide com a praça do Final de Linha (figura 26 e 27). Aproveitamos um mobiliário de pallet no local para poder conversar e desenhar (Figura 28). As participantes tinham 18, 20 e 21 anos e todas elas percorriam mais a cidade a pé, bicicleta ou transporte público. Três delas conheciam a rua e apenas uma pessoa passava pelo local pela primeira vez.

Figura 26 - Percurso da vivência da Rua Antônio Monteiro.

Mapa produzido pela autora através do Google Maps e Photoshop, 2019


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Figura 27 - Quatro mulheres percorrendo a rua Antônio Monteiro.

Fonte: Fotos da autora, setembro 2019

Figura 28 - Discussão e desenho na Praça.

Fonte: Fotos da autora, setembro 2019

A serem perguntadas como se sentiram elas responderam que se sentiram observadas. A rua tem comércios e serviços comumente utilizados por homens, como lava jato, oficina, ponto de moto táxi e bares, e estes nos observaram todo o tempo (figura 29). Além disso, vários outros pontos foram descritos pelas mulheres que passavam todos os dias ali, a iluminação da rua é totalmente insuficiente, além de só ter um postes de iluminação para carros alguns deles estão quebrados tornando a rua muito escura. A via é de mão dupla e é ruim para atravessar a


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rua, principalmente próximo a padaria onde tem um fluxo maior de carros. As calçadas não são usadas porque há muitos carros estacionados e elas preferem passar pelo meio da rua.

Figura 29 - Um dos bares da Rua Antônio Monteiro.

Fonte: Fotos da autora, setembro 2019

As moradoras também citaram que os comércios na Antônio Monteiro muitas vezes não dão certo, pois as pessoas preferem caminhar sempre pela Canal 5, avenida paralela da rua estudada. As garagens dos prédios são normalmente alugadas para comércio, mas geralmente o valor é alto e o empreendimento não consegue se manter. Além disso, a maioria dos moradores daquela localidade não são universitários, são moradores antigos do bairro que estão desde o início do conjunto. Diante disso, elas sentem falta de iluminação adequada, calçadas regulares, mulheres na rua, pontos de lazer e cores. No momento de desenhar a rua também foi sugerido que os muros fossem vazados e que em alguns deles pudessem ser feitos pinturas pra atrair as pessoas, também foi sugerido que em cada prédio fosse pintado uma moradora antigo do bairro como forma de homenagem a elas e para tornar a Antônio Monteiro mais colorida. O esboço do desenho está ilustrado na figura 30. Foi sugerido um canteiro central pra dividir as duas mãos de fluxo de veículos e houve a sugestão de ter mais comércios gerido por mulheres, pois como há muita presença de homens esse movimento poderia trazer mais delas para rua, inclusive como há bares com muitos homens foi sugerido que abrisse um bar apenas para mulheres.


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Figura 30 - Resultado do desenho na vivência da Rua Antônio Monteiro.

Fonte: Desenho participativo feito na vivência junto da autora, 2019 Figura 31 - Portão de um dos prédios da Rua Antônio Monteiro.

Fonte: Acervo da autora, 2019

Por fim, como mostrado na figura 09, no início os prédios não tinham muros, então as pessoas podiam transitar por todos os locais, atualmente, todos eles foram cercados e eles possuem um acesso pela Canal 5 e pela Antônio Monteiro, normalmente fechado dos dois lados, um dos locais onde é aberto é no ponto que tem um bar e onde tem um comércio de fabricação


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de móveis, como mostra a figura 31. Porém, esses dois pontos é bastante frequentado por homens e inibe a passagem de mulheres por entre os prédios. Uma sugestão para que essa passagem de pessoas retome e melhore o fluxo entre a Canal 5 e a rua estudada é abrir esses portões e melhorar essas passagens para que se torne atrativo a travessia de mulheres, pelo menos em alguns blocos.

4.3.2 VIVÊNCIA RUA TENENTE PITANGA

O segundo dia de vivência ocorreu no sábado, 05 de outubro, às 9h30 na Rua Tenente Pitanga, partimos da frente do Colégio Arquidiocesano em direção à Avenida Murilo Dantas como mascado na figura 32. Três mulheres compareceram, uma de 18, 21 e 30 anos, as mais jovens andavam diariamente a pé pelo bairro e a mais velha de carro. As três conheciam a rua e apenas uma delas morava próximo, mas nunca tinha caminhando a pé por ela.

Figura 32 - Localização do percurso da Vivência na Rua Tenente Pitanga

Fonte: Mapa produzido pela autora através do Google Maps e Photoshop, 2019


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Após percorrer a rua foram questionadas sobre como se sentiram, e elas disseram que mesmo acompanhadas de outras mulheres se sentiram inseguras e nervosas pois a rua é estreita e segundo as participantes isso aproxima o motorista assediador da pedestre. Também relataram que a rua é muito estreita e mesmo assim é mão dupla e não sobra espaço pra calçada, ou onde tem é pequena e os carros estacionam em cima como mostra a figura 33 e 34. Há muitos carros estacionados e muitos muros. No trecho do Colégio até o Condomínio Vitta, tem muro dos dois lados da rua. Além disso, entre o Condomínio e o muro da escola há uma estrada de terra sem saída (figura 35). Figura 33 - Carros sobre a calçada na Rua Tenente Pitanga.

Fonte: Fotos da autora, setembro 2019 Figura 34 – Calçadas estreitas na Rua Tenente Pitanga.

Fonte: Fotos da autora, setembro 2019


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Figura 35 - Rua sem saída entre condomínio e colégio.

Fonte: Fotos da autora, setembro 2019

Depois do condomínio tem uma portaria da universidade, uma pequena praça triangular onde os estudantes ficam esperando o ônibus para cidades do interior do Estado e nesse ponto tem árvores grandes como já mostrado na 24. A rua a partir desse trecho fica um pouco mais larga. Após essa pracinha tem-se muitos terrenos baldios e alguns muros em diagonais onde alguém pode se esconder e atacar alguém que esteja passando (figura 36). As mulheres citaram que na rua não há pessoas e elas não tem a quem pedir ajuda caso alguma coisa aconteça. Uma delas disse que não pretende passar por ela a pé novamente.

Figura 36 - Terreno baldio e ônibus estacionados na Rua Tenente Pitanga.

Fonte: Fotos da autora, setembro 2019


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Quando fomos desenhar a rua (figura 37) determinamos que no trecho do Arquidiocesano fosse apenas uma mão para veículos e assim poderíamos alargar as calçadas, colocamos iluminação adequada porque notamos ausência de postes para pedestres e poucos postes de iluminação para carros. Foi proposto uma redução de muros em até 50% com a proposta de diminuir o IPTU caso os donos aplicassem a mudança. Nos muros que restassem teriam artes visuais para melhorar o aspecto da rua. Foi sugerido também que a rua pudesse ser fechada em alguns horários do dia para que tivesse maior movimentação de pessoas pelo local. Árvores também foram sugeridas, entretanto, não se tem a certeza se a via comportaria essa implantação arbórea (figura 38).

Figura 37 - Desenho com a participação das mulheres da Rua Tenente Pitanga.

Fonte: Fotos da autora, setembro 2019

Depois desse trecho, elas sugeriram de fechar a rua, pois era melhor a presença de muros do que a rua sem saída onde poderia ocorrer algum crime violento, como um estupro. Como nessa localidade tem muitos carros estacionados, inclusive muitos ônibus, a solução encontrada foi criar um estacionamento privativo nessa rua onde esses veículos pudessem ficar seguros e sem atrapalhar a caminhabilidade das mulheres. Foi sugerido que a praça tivesse sua estrutura melhorada e que o estacionamento ao redor dela fosse proibido. Pra solucionar os terrenos sem uso, é necessário que haja um incentivo para que essa área seja ocupada com prédios de uso misto, não necessariamente, condomínios fechados, mas que houvesse no térreo, obrigatoriamente comércio e serviços populares para as pessoas, como mercado, padaria e outros.


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Figura 38 - Resultado do desenho da Rua Tenente Pitanga.

Fonte: Desenho participativo feito na vivência junto da autora, 2019

4.3.3 VIVÊNCIA RUA MARIA PASTORA

Nessa rua fizemos a caminhada às 16h40 no sábado dia 05 de outubro, partimos do Bar da Luz até a Avenida Murilo Dantas (figura 39). Três mulheres compareceram, duas de 22 anos e uma de 19, as três conheciam a rua e as três percorriam o bairro frequentemente e a pé, duas


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delas também de bicicleta e de ônibus. A rua é bastante comprida e caminhamos por um trecho de 600m, mas as característica da rua é semelhante ao longo de toda sua extensão.

Figura 39 - Percurso da Rua Maria Pastora.

Fonte: Mapa produzido pela autora através do Google Maps e Photoshop, 2019

Após a caminhada, as mulheres disseram que se sentiram tranquilas, principalmente por estarem acompanhadas. As que andam de bicicleta disseram que se sentem mais confiantes quando estão pedalando, e a pé se sentem mais vulneráveis. Uma delas disse que nesse percurso específico geralmente tem pessoas na rua e a travessia não é invasiva, entretanto outra participante disse que como tem dois bares nesse espaço ela não se sente bem pois geralmente tem muitos homens. Ainda complementaram dizendo que em outros pontos da Maria Pastora quase não tem ninguém circulando e nesses percursos se sentem pior. Para as participantes, o que sentem mais falta é iluminação adequada, calçadas mais regulares e melhorar o aspecto visual. Além disso, foi sugerido que o muro dos condomínios fossem reduzidos para dar mais segurança, entretanto nessa rua específica é importante deixar alguns locais com muro pois o mesmo faz sombra durante a tarde e é utilizado pelos próprios moradores que se sentam próximo ao muro para conversar e ver as crianças brincando na rua


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(ver figura 40), esse costume é tão presente que os próprios moradores fizeram mobiliários para o local como mostra a figura 41. Figura 40 - Pessoas usando a calçada na Rua Maria Pastora.

Fonte: Fotos da autora, setembro 2019 Figura 41 - Banco feito pelos moradores da Rua Maria Pastora.

Fonte: Fotos da autora, setembro 2019

Além desses pontos, foram sugeridas a implantação de árvores para melhorar o conforto e que próximo aos bares tivessem pinturas sobre empoderamento feminino. Como há grande presença de carros estacionados foi sugerido delimitar algumas áreas para os carros em vez de


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ocuparem toda a extensão da Maria Pastora e o resultado dessas intervenções está ilustrado na figura 42.

Figura 42 - Resultado do desenho da Rua Maria Pastora.

Fonte: Desenho participativo feito na vivência junto da autora, 2019

Ao finalizar as três vivências notou-se como a percepção em cada rua era diferente em alguns pontos e em outros as sugestões e reclamações se repetiam. A partir dessas informações e das mudanças sugerida pelas mulheres será apresentada a proposta de intervenção para a melhoria das três ruas analisadas.

4.4 A INTERVENÇÃO

Além do questionário e das vivências um ponto fundamental para guiar a intervenção são as Diretrizes Específicas para Mulheres, DEM. As questões colocadas nesse documento, fruto de uma pesquisa participativa com mulheres, se conectam com os dados coletados nesse trabalho. Diante desse apanhado de informações, principalmente da fala das moradoras da Farolândia, foram feitas as seguintes propostas. Duas questões se repetiram nas três vivências, falta iluminação adequada e calçadas regulares. No DEM o item que descreve a acessibilidade não especifica as calçadas, cita apenas edifícios “Garantir a aplicação das normas que garantem a acessibilidade aos edifícios e levem à diminuição das barreiras arquitetônicas, promovendo o rebaixamento de guias para a locomoção dos carrinhos de bebes, de feiras, etc.” (GONZAGA, 2004, p. 199) e quanto a


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iluminação só explica que a mesma deve ser garantida. Complementando essas diretrizes é necessário explicar que:

1. A acessibilidade nas calçadas é obrigatória em novas construções, e nos locais já construídos é importante a readequação das calçadas da melhor maneira possível para garantir o deslocamento da mulher com carrinho de bebê, do idoso e da pessoa com mobilidade reduzida. As ruas com maior movimentação de pessoas deve ser priorizada. 2. Nos locais com estacionamento 90º e 45º é importante que tenha calçada próximo da rua, pois a maioria das mulheres caminham pela via evitando caminhar entre as edificações e os carros estacionados. 3. A iluminação pública para veículos e pedestres deve ser garantida e monitorada para que haja manutenção das lâmpadas queimadas e principalmente nas regiões com árvores iluminação para pedestre deve ser prioridade, para que a copa das árvores não deixe a rua escura a noite.

Algumas questões discutidas na vivência foram o incentivo para comércio local de mulheres, a redução de muros e o problema dos terrenos baldios, a melhoria do aspecto visual de alguns locais e a implantação de árvores e mobiliários urbanos. Com relação aos mobiliários urbanos, o item sobre lazer e cultura do DEM se refere a isso mas é importante realçar a necessidade desse mobiliário na própria calçada em algumas ruas. Além disso, sobre incentivo financeiro às mulheres são apresentadas quatro diretrizes: “- Incentivos específicos e apoio financeiro com microcréditos para as mulheres. Formação de cooperativas com o olhar de gênero. - Garantia de 10% dos espaços de feiras e comércio ambulante, para atendimento da economia solidária e cooperativa de mulheres. - Apoio a eventos e feiras onde as mulheres possam comercializar seus produtos.” (GONZAGA, 2004, P.199)

Além desses pontos, o item sobre educação para a mulher é importante para a formação e desenvolvimento dos empreendimentos femininos. Nas diretrizes não há nada específico sobre aspecto visual das ruas nem sobre os muros, e com relação aos terrenos baldios a sugestão da DEM é murar esses locais. Com os estudos atuais é possível sugerir novas propostas que possam solucionar melhor esses pontos como:


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4. Incentivar a redução dos muros dos condomínios existentes e substituir por elementos vazados e gradis e limitar a construção de muros em empreendimento novos com pelo menos 50% de área com permeabilidade visual. 5. Nos locais onde o muro permaneceria entrar em contato com a população local e mobilizar ações para melhorar o aspecto visual através de arte urbana podendo ter oficinas com as crianças e mulheres sobre essa arte e contando com a participação desses moradores na execução de grafitti, lambe lambe e etc nas paredes muradas ou na fachada das casas caso o morador tenha interesse. 6. Para que os terrenos baldios sejam ocupados nas regiões consolidadas onde tem, possivelmente, um processo de especulação imobiliária é necessário recorrer aos instrumentos do Estatuto da Cidade como o IPTU Progressivo e Direito de Superfície onde pode ser usado para alguma construção efêmera que melhore a relação daquele local com os moradores. 7. Para incentivar o uso misto do solo, os novos edifícios devem ter no térreo algum ponto comercial ou de serviço aberto para a rua.

Um ponto não citado na vivência mas especificado no DEM é a mobilidade urbana. Um dos itens refere-se a importância de rotas de ônibus por escolas, postos de saúde, mercados, por serem locais onde as mulheres percorrem com maior frequência. Analisando a rota dos ônibus existentes na Farolândia é possível perceber que o conjunto Augusto Franco e a universidade tem um número adequado de linhas, os ônibus que passam nessas regiões seguem para a maioria dos terminais, da Atalaia, DIA, Rodoviária Velha e Mercado e se conectam com vários bairros. Porém, alguns locais não tem acesso a ônibus ou tem acesso apenas a uma rota, ver figura 43. Por conta disso, foi sugerido uma nova rota de ônibus que sairia do terminal DIA passando pela Avenida Tancredo Neves, que apesar de ser uma avenida de grande porte tem poucas linhas de ônibus circulado por esse local e com baixa frequência. Em seguida segue pela avenida Beira Mar e entra no bairro pela Avenida Capitão Joaquim Martins Fontes, passa em frente a portaria do colégio Arquidiocesano, contorna algumas ruas até passar pela frente da portaria do fundo da Universidade Tiradentes, passa pelo Farol, entra na Rua Rosalina pela Beira Mar, passa próximo a única praça dessa localidade, segue pela rua Matapoã onde tem uma creche e passa pela Maria Pastora até a Avenida Heráclito Rollemberg ligando-se ao Terminal Atalaia. Depois disso segue para o Terminal Dia pela Beira Mar e Tancredo Neves tendo em vista que não nenhuma linha que faça esse percurso por essas avenidas. Ver figura 44.


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Figura 43 – Mapa com rotas de ônibus existentes na Farolândia. 100-1/100-2 703 702 074 401 507

Fonte: Mapa produzido pela autora através do Google Maps e Photoshop, 2019 Figura 44 – Mapa com rotas de ônibus existentes na Farolândia e itinerário da nova rota sugerida. 100-1/100-2 703 702 074 401 507 Rota nova

Fonte: Mapa produzido pela autora através do Google Maps e Photoshop, 2019


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Além da nova linha de ônibus, na Rua Tenente Fontes Pitanga foi sugerida uma alteração de fluxos, pois, alguns trechos da rua estudada era mão dupla mas era muito estreita, além disso, a praça triangular que existente próximo a Unit, utilizada pelos alunos, seria aumentada, fechando a rua e aproveitando a sombra da árvore. A praça seria ampliada para o terreno baldio localizado no mesmo local e teria espaço para pets para atrair as pessoas daquela região que passeiam com seus animais, durante as entrevistas foram vistas várias mulheres com seus cachorros, além disso, nessa região não tem nenhuma praça. Com o fechamento dessa rua foi necessário rever os fluxos conforme mostra a figura 45 e fazer duas rotatórias para deixar os cruzamentos mais seguros, figura 46. Figura 45 – Mapa com novo fluxo de ruas na região da Tenente Pitanga.

Fonte: Mapa produzido pela autora através do Google Maps e Photoshop, 2019


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Figura 46 – Mapa com novo fluxo de ruas na região da Tenente Pitanga.

PRAÇA

Fonte: Mapa produzido pela autora através do Google Maps e Photoshop, 2019

Conforme as demais alterações citadas durante a vivência foram feitas duas imagens com as propostas de intervenção para a rua Tenente Pitanga, ver figuras 47 e 48. Além da praça, foram melhoradas a pavimentação das vias para veículos e pedestres com calçadas acessíveis, foram implantadas árvores e iluminação para pedestres e os muros foram substituídos por elementos vazados e gradis. Na rua Maria Pastora onde também tinha problemas com muros mas eles eram necessários em alguns pontos por produzir sombra e ser utilizado pelas pessoas a proposta não retirou todos paredões e nos locais onde permaneceu foram feitos grafittis para melhorar o aspecto visual como mostra a figura 49.


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Figura 47 – Proposta de intervenção na praça da rua Tenente Pitanga.

Fonte: Imagens feitas pela autora, 2019

Figura 48 – Proposta de intervenção na rua Tenente Pitanga, trecho entre colégio e condomínio Vitta.

Fonte: Imagens feitas pela autora, 2019

Além da melhoria dos muro, alguns pontos foram deixados com estacionamentos e nas áreas onde foi notado maior presença de pessoas, crianças soltando pipa e brincando foram feitas chincanas para diminuir a velocidade dos carros e aumentar a área de calçada onde as crianças podem usar, ver figura 50.


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Figura 49 – Proposta de intervenção na rua Maria Pastora, trecho 01.

Fonte: Imagens feitas pela autora, 2019

Figura 50 – Proposta de intervenção na rua Maria Pastora, trecho 02.

Fonte: Imagens feitas pela autora, 2019

Na rua M4, Antônio Monteiro, além da melhoria das calçadas, iluminação e canteiro para melhorar o fluxo dos carros e trazer mais segurança para pedestres figura 51, foram feitas pinturas nas paredes dos prédios homenageando moradores antigos da rua, um bar para


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mulheres chamado Não me Kahlo, em homenagem a Frida Kahlo, ver figura 52 e conexões entre a rua M4 e a Canal 5 por entre os prédios, ver figura 53.

Figura 51 – Proposta de intervenção na rua Antônio Monteiro.

Fonte: Imagens feitas pela autora, 2019

Figura 52 – Proposta de intervenção na rua Antônio Monteiro com homenagem nos prédios e bar das mulheres.

Fonte: Imagens feitas pela autora, 2019


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Figura 53 – Proposta de intervenção na rua Antônio Monteiro com conexão para Canal 5.

Fonte: Imagens feitas pela autora, 2019

Para finalizar a seção ‘Deixa ela falar’, a próxima subseção mostrará os relatos feitos pelas mulheres entrevistadas e nas vivências sobre algum acontecimento na cidade que tenha marcado positivamente ou negativamente, desse modo confirma-se a travessia violenta da cidade pela mulher e dá espaço para acolher essas experiências muitas vezes reprimidas e nunca compartilhadas.

4.5 A TRAVESSIA VIOLENTA DA CIDADE PELA MULHER

Como demostrado anteriormente a cidade não é neutra, os espaços públicos refletem a cultura da nossa sociedade que é estruturalmente machista, por isso a travessia da mulher pela cidade é brusca e invasiva. No questionário o último quesito não era obrigatório e pedia que a pessoa compartilhasse alguma história da relação dela com a cidade que tenha sido marcante na vida delas e que não precisava se restringir ao bairro estudado, nesse momento quem compartilhou conseguiu comprovar que o quão difícil e violenta é a vivência feminina nas ruas. Alguns dos relatos foram os seguintes: Na rua Tenente Pitanga “Um carro parou e dois caras dentro ficaram falando palavras obscenas e me seguiu, eu tive que correr, foi apavorante”


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“Uma vez um rapaz me mostrou o pênis no transporte público.” “Na praça da juventude, uma vez eu tinha saído de casa pra ir na padaria, isso tem uns 2 anos, estava vestida normal, com um vestido não muito curto e nem muito longo, de ficar em casa mesmo. E perdi as contas de quantas buzinadas, assobios e comentários desnecessários recebi naquele dia. E num lugar improvável, tava ao lado de casa...” “Acho que nas principais ruas do Centro de Aracaju, rolam assédios mais "pesados ". Houve um episódio que um homem puxou o braço da minha amiga e a convidou para gravar um pornô.” “Todo local rola assédio, das ruas do bairro mais nobre até o mais periférico no meu percurso. Mas me sinto ainda mais receosa nos bairros mais nobres. Playboy geralmente se sente seguro pra ser escroto.” “(..) violência psicológica. Abuso de poder por policiais (GM) que pararam minha irmã, quando ainda de menor, e obrigaram ela a passar o número do telefone dela para eles. (...) Não estive presente mas marcou a todas nós (minha mãe, minha irmã e a mim). Não é novo, mas ainda incomoda muito que as pessoas as quais - teoricamente - deveriam fazer nossa segurança estejam também no papel dos próprios abusadores.” “Estava saindo de uma lanchonete, estava de vestido e dois carros pararam os dois cheios de homens e começaram a falar coisas ridículas e me chamaram para o carro, sai correndo da rua e todos eles começaram a rir.” “Já deixei de usar passarelas mesmo sabendo que podia ser atropelada por medo de ser assediada no caminho pois era mais escuro e não teria lugar pra eu tentar escapar.” “(...) no ônibus, um cara deixou a mão em um certo local por saber que tocaria em mim. Eu sai do local porque percebi, só que mais ninguém percebeu o que aconteceu” “Final de semana passado quase fui assaltada por dois sujeitos de bicicleta. Claro, a rua estava vazia e com pouca iluminação, além de zero segurança pública... foi assustador mas consegui sair da situação ilesa.”


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“Já cheguei a entrar em casa de desconhecido com medo de uns caras que estavam me seguindo.” “Uma vez fui sequestrada em Aquidabã” “Invadiram minha casa” “No ônibus (não me lembro ao certo qual era a linha, mas passa na Hermes Fontes) estava acompanhada por minha mãe e o ônibus estava cheio. Já estávamos pra descer quando um homem se aproveitou da quantidade de pessoas no ônibus para colar o seu corpo ao meu, além de ficar cheirando meu cabelo. O ato durou cerca de 3 segundos. No momento fiquei sem reação pois era mais nova, minha mãe acabou não presenciando pois estava na minha frente e de costas. Outras situações que aconteceram foi de ouvir cantadas indesejadas quando passava por obras no Alameda das árvores.” “Ao andar na frente do colégio arquidiocesano (...) um rapaz de carro reduziu a velocidade e ficou me acompanhando enquanto eu andava pela calçada me assediando falando coisas do tipo ‘você é gostosa, vem aqui comigo, vem cá gostosa, etc’” “Já fui assaltada às 10h, em 2016 se não me engano, na Farolândia mesmo, numa rua ao lado do bar da luz verde em frente ao condomínio Jardim de Versalhes.” “Uma vez eu estava no bar da luz (Farolândia) com algumas amigas e rapazes ficaram encarando e insistindo para estarem na mesa conosco. Ficamos com medo de sair por não ter nenhum apoio pelo local e também ficamos com medo de ficar e acontecer algo. Com isso pedimos um Uber, mas também com medo do Uber por ser de madrugada e o risco de acontecer algo de errado ser maior.” “Uma vez, antes de entrar no ônibus um homem me puxou e me chamou de gostosa” “No meu interior, quando tinha 17 anos resolvi passar por um rua ‘tranquila’ e evitar a rua da feira, pois sabia que os homens estariam desmontando as barracas e iam “mexer comigo” quando estava andando um carro me parou na esquina e me impedia de passar, tinha 4 homens no carro, o motorista falavam coisas absurdas, coisas que nem sabia que existia e me ameaçava


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de estupro, os demais riam. Olhei pra rua, pra frente e pra trás e não tinha ninguém a quem pudesse pedir ajuda, foi o momento que tive mais medo em toda minha vida, eu passei pela frente do carro e continuei meu caminho, eles foram embora e eu tive medo de todo carro que passava perto de mim até chegar na casa de minha amiga e desabar de chorar. Foi aquele momento que percebi o quanto era vulnerável e nunca mais caminhei naquela rua novamente e ainda coloquei a roupa que usava naquele dia pra minha mãe doar, pois não queria mais usá-la” “Estava andando na rua e um homem chegou por trás e pegou nos meus seios” “Um dia vi um homem no Parque dos Cajueiros se masturbando” “No ônibus, uma vez, tentaram encostar, tentei mudar de lugar mas ficavam me empurrando” “No ônibus, um cara tava se esfregando em mim e eu não percebi, uma mulher que me tirou da situação” “Fui encoxada no ônibus por dois caras ao mesmo tempo” “Estava indo pro colégio Lavoisier e quando passei pela praça da Canal 5 um velho começou a me seguir e a se masturbar, fiquei com muito medo, minha sorte foi que um amigo meu apareceu” “Estava indo para a faculdade por volta das 18h 30min e ouvir de um cidadão ‘queria tocar essa bunda que parece ser gostosa’” “Tava no 702, um dia de domingo, indo pra rodoviária, e tava sentada no fundo do ônibus, percebi depois de um tempo que o cara do meu lado tava me observando, achei que fosse me assaltar, mas quando olhei de novo, vi que tava se masturbando, fui pra frente do ônibus e desci no terminal morrendo de medo que ele me seguisse” “Em um ponto de moto taxi perto do final de linha do Augusto Franco. Onde fica vários rapazes sentados ao invés de trabalhar fica mexendo com qualquer mulher que passa em qualquer horário do dia.”


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“Vários assaltos... Mas um na porta da minha casa o assaltante me viu como uma vítima tão vulnerável que me puxou pelos cabelos com toda força.” “Sempre que vinha pela ciclovia de bike do meu trabalho, tinha sempre um cara próximo a ciclovia e parque da sementeira fazendo gestos obscenos” “Há um ano atrás, uma fuga eu e minha irmã de 4 homens”

Uma mulher fez um relato pessoalmente para mim, que ela tinha sido vítima de violência sexual na casa dela, mas que na época ela não entendia o que acontecia. Ela tem 37 anos, divorciada, tem 5 filhos e a renda família é até 1 salário mínimo. Dentre esses relatos, um que chama atenção foi o fato dos guardas municipais terem se aproveitado de seu poder para intimidar uma menina a dar o número do celular a eles, como a própria irmã da vítima falou, a pessoa que deveria proteger poderia ser o abusador. Diante desse fato, percebe-se a importância do item do DEM, citado anteriormente, tratar da necessidade dos profissionais de segurança e de atendimento à mulher terem uma formação adequada para lidar com as mulheres e enfatizo que é importante inclusive para diminuir esse tipo de abuso de poder oriundo de quem deveria nos proteger. Todos os relatos são graves, e hoje se classificariam como crime, seja por assalto, sequestro, importunação sexual, assédio ou ameaça, felizmente temos leis que punem esses crimes mas infelizmente temos profissionais sem qualificação necessária para atender as vítimas de crimes de cunho sexual e é possível que muitos desses relatos fossem vistos com desdém pelas autoridades e nada fosse feito e por isso que muitas mulheres não denunciam. Finalizo essa seção enfatizando que devemos denunciar, pelos menos os casos ‘mais graves’. Eu, enquanto mulher que já sofreu assédio, sei que não é fácil, dois dos relatos acima são meus e eu não denunciei, da primeira vez não sabia que podia denunciar e da segunda, por ter sido algo ‘menos violento’, não cogitei em ir à delegacia, mas se eu pudesse voltar atrás teria denunciado os abusadores do primeiro caso. Caso você leitora sofra alguma violência em Aracaju você pode procurar a Delegacia de Apoio a Grupos Vulneráveis ou a Delegacia Especial de Atendimento à Mulher e pode ligar para o 190 (Polícia) ou 180 (Central de Atendimento à Mulher). Em caso de estupro pode procurar diretamente ajuda médica na Maternidade Nossa Senhora de Lourdes, aberto 24h, onde receberá cuidados médicos, psicológicos e fará uso de profiláticos e da pílula do dia seguinte.


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“Triste, louca ou má Será qualificada Ela quem recusar Seguir receita tal

A receita cultural Do marido, da família Cuida, cuida da rotina

Só mesmo, rejeita Bem conhecida receita Quem não sem, dores Aceita que tudo deve mudar

Que um homem não te define Sua casa não te define Sua carne não te define Você é seu próprio lar

Ela desatinou Desatou nós Vai viver só

Eu não me vejo na palavra Fêmea: Alvo de caça Conformada vítima

Prefiro queimar o mapa Traçar de novo a estrada Ver cores nas cinzas E a vida reinventar”

Francisco El Hombre.


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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esse trabalho se apresentou como um desafio, pois o principal objetivo era dar propostas para que a mulher pudesse viver melhor a cidade e com mais segurança. Até o momento, nenhum livro aborda o assunto do ponto de vista da Arquitetura e Urbanismo, apenas sob a perspectiva da geografia e para esta monografia as maiores referência foram outros estudos de monografia, dissertação e tese de doutorado feitos por arquitetas e urbanistas. Um dos trabalhos mais importantes sobre a temática foi o escrito por Terezinha Gonzaga na tese de doutorado. A percepção da autora sobre o problema é ampla, pois trabalhou diretamente com o tema em prefeituras de São Paulo. As Diretrizes Específicas para a Mulher, exposto por Gonzaga, foi um norteador para esta monografia e após as vivências com as mulheres da Farolândia foi possível sugerir novas diretrizes. Outra dificuldade foi conseguir pessoas interessadas para vivências, as mulheres acima de 30 anos não se interessavam, as mais jovens foram mais receptivas à ideia e foram formados três grupos, um para cada rua, com nove pessoas cada, entretanto, no dia da vivência apenas três e quatro apareceram. Apesar do número baixo, as vivências foram produtivas e com informações relevantes para a continuidade do trabalho e para se atingir o objetivo principal. Ao finalizar esse estudo é possível concluir que as assimetrias entre homens e mulheres existem dentro da vivência urbana e isso é justificativa suficiente para que essa monografia fosse realizada. A maioria das pessoas que se interessaram pela temática foi o público jovem, provavelmente, pela maior consciência dos problemas relacionados a temática feminina e de igualdade de gênero. Outro ponto constatado pela pesquisa foi que muitos assédios ocorrem em vias mais movimentadas por veículos, pela sensação de poder que o motorista sente. Na pesquisa notouse que a Canal 5 foi o local onde mais ocorreram assédios, por essa via ter grande movimento de mulheres e de veículos. Além dessa avenida, as ruas Maria Pastora e Tenente Pitanga que também dão acesso à Universidade foram bastante citadas, provavelmente por ter mais mulheres jovens circulando. Porém, quando discutido sobre as ruas evitadas a Maria Pastora e Tenente Pitanga eram muito evitadas enquanto a Canal 5 a mais utilizada, pessoas da Maria Pastora relataram caminhar pela avenida para não passar pela própria rua. Diante disso, conclui-se que para as mulheres o mais importante é a sensação de segurança que o local transmite. A Canal 5 mesmo sendo o local de mais assédios ainda é a rua mais optada pelas mulheres enquanto as demais ruas sem estrutura dão maior sensação de insegurança.


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No final do trabalho com as vivências foi possível fazer as propostas. As sugestões de modo geral beneficia não apenas as mulheres, mas beneficia todas as pessoas. Uma iluminação adequada, calçadas regulares, eliminação de muros são diretrizes que melhoram a cidade para todos. Então porque não pensar apenas em cidades para pessoas? Porque são as mulheres as que mais sofrem com a segregação, com a falta de acessibilidade e de iluminação e com a falta de transporte adequado. Esse estudo mostra que pensar os espaços urbanos para mulheres não é segregar, é agregar para toda a sociedade, pois todos seriam beneficiados.


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REFERÊNCIAS

BIROLI, Flávia. MIGUEL, Luis Felipe. Feminismo e Política. 1ª ed. São Paulo: Boitempo, 2014. BOURDIEU, Pierre. A Dominação Masculina: A condição feminina e a violência simbólica. 6ª Ed. Rio de Janeiro: BestBolso, 2018. CARVALHO, Lygia Nunes. As Políticas Públicas da Localização da Habitação de Interesse Social Induzindo a Expansão Urbana em Aracaju/SE. Dissertação de Mestrado - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. São Paulo. São Paulo, 2013. DAVIS, Angela. Mulheres, Cultura e Política. 1ª ed. São Paulo: Boitempo, 2017 ENGELS, Friedrich. A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado. 13ª Ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995 GONZAGA, Terezinha de Oliveira. A Cidade e a Arquitetura Também Mulher: Conceituando a Metodologia de Planejamento Urbano e dos Projetos Arquitetônicos do Ponto de Vista de Gênero. Tese de doutorado – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. São Paulo, 2004 GOTTDIENER, Mark. A Produção Social do Espaço Urbano. 2ª Ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1997. HARVEY, David. Cidades Rebeldes: Do Direito à Cidade à Revolução Urbana. São Paulo: Martins Fontes, 2014. P. 27 a 66 IBAM – Instituto Brasileiro de Administração Municipal. Introdução ao Planejamento Urbano para o Gênero: Um Guia Prático. Rio de Janeiro: IBAM – Fundação Ford, 1997 JACQUES, Paola Berenstein; BRITTO, Fabiana Dutra. Cenografia e Corpografias Urbanas: um diálogo sobre as relações entre corpo e cidade. Salvador: Vol. 7. Cadernos de PGG-AU – UFBA, 2008 LYRA, Júlia. (Im)permanências e (In)seguranças da mulher na cidade: Pensando em espaços públicos a partir de uma perspectiva feminista no bairro Jatiúca- Maceió/AL. Trabalho Final de Graduação – Universidade Federal de Alagoas, 2018 MELO, Giovanna de Oliveira. Urbanismo pela Perspectiva de Gênero. Trabalho Final de Graduação - Centro Universitário Belas Artes de São Paulo, 2017 MONTANER, Josep Maria, MUXÍ, Zaida. Arquitetura e Política: Ensaios para Mundos Alternativos. São Paulo: Gustavo Gili, 2014. P. 197 a 225 RABELO, Ana Carolina F. A Invisibilidade da Mulher no Espaço Urbano. Trabalho Final de Graduação – Universidade Federal de Viçosa, Departamento de Arquitetura e Urbanismo, 2016


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RISÉRIO, Antonio. Mulher, Casa e Cidade. 1ª ed. São Paulo: Editora 34, 2015 ROSA, Isabella S. F. A Mulher e a Cidade: Ensaios Sobre a Igualdade. Trabalho Final de Graduação – Universidade Mackenzie de São Paulo. São Paulo, 2018 ROSA, Roberta da Silva. Sergipe No Contexto Da Segunda Guerra Mundial (1942): Uma Abordagem da Arqueologia de Ambientes Aquáticos. Dissertação de Mestrado – Universidade Federal de Sergipe, Sergipe, 2015 SIQUEIRA, Lúcia de Andrade. Por Onde Andam as Mulheres? Percursos e medos que limitam a experiência de mulheres no centro de Recife. Dissertação de Mestrado – Universidade Federal de Pernambuco. Pernambuco 2015 TIBURI, Marcia. Feminismo em Comum: para todas, todes e todos. 6ª ed. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2018


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APÊNDICE A - ENTREVISTA

PERFIL

Idade:___________________

Cor/Raça: ( ) Branca ( ) Parda ( )Negra ( )Indígena ( )Outros

Orientação Sexual: ( ) Heterossexual ( )Homossexual ( )Bissexual ( ) Outros

Renda da família: ( ) Até 1 salário ( ) De 1 a 3 ( ) De 3 a 5 ( )Mais de 5

Estado Civil: ( )Solteira ( )Casada ( )Divorciada ( )Viúva

Tem filhos: ( ) 0 ( ) 1 ( ) 2 ( ) 3 ( ) 4 ou mais

Em que rua você mora? __________

Quem é o responsável financeiro da sua família?

SOBRE ESTUDO

Estuda? ( ) Sim ( ) Não Se sim, onde:____________

Como chega ao seu local de estudo? ( )A pé ( ) Transporte Público ( ) Bicicleta ( ) Carro ou moto


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Em que turno você estuda? ( ) Manhã ( ) Tarde ( ) Noite

Você sente medo na rua ou espaços públicos no seu percurso para o trabalho? Se sim, em qual local ou rua você sente medo?

SOBRE TRABALHO

Trabalha? ( ) Sim ( ) Não Se sim onde:______________

Como chega ao seu local de trabalho? ( )A pé ( ) Transporte Público ( ) Bicicleta ( ) Carro ou moto

Em que turno você estuda? ( ) Manhã ( ) Tarde ( ) Noite

Você sente medo na rua ou espaços públicos no seu percurso para o trabalho? Se sim, em qual local ou rua você sente medo? _________________________________________

SOBRE A RELAÇÃO COM A CIDADE

Quais as sensações e sentimentos você tem ao andar na rua ou espaços públicos de modo geral? ____________________________________

Já deixou de ir em algum lugar durante o dia por medo de andar na rua? ( ) Sim ( ) Não

Já deixou de ir em algum lugar a noite por medo de andar na rua? ( ) Sim ( ) Não


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Você sente medo quando anda na rua ou espaços públicos? Se sim, de que mais sente medo? _________________________________________

Você faz algo para se sentir mais segura ou para tentar se proteger na cidade? _________________________________________

Você evita algum caminho nos seus percursos? Se sim, quais locais ou ruas? _________________________________________ Já se sentiu incomodada com “cantadas”, gestos obscenos, assédio na rua ou espaços públicos? ( ) Sim ( ) Não

Existe algum local que você se lembra onde foi assediada de modo mais violento, ouve cantadas sempre, sente medo diariamente? Responda com nome de ruas ou pontos de referência _______________________________________

Conhece alguém que foi violentada sexualmente em algum local público de Aracaju? Se sim, onde? _________________________________________

Compartilhe anonimamente suas experiências na cidade: _____________________________________


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APÊNDICE B - PANFLETO


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