Butcher Boy - Book Preview

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Patrick McCabe

• Infância Sangrenta






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I e r e h w y it c ir a f t tha

w e n k I y o b r e utch

courted me my life aw

now with me he w

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A butcher o c e H . .. l l e w t h w rig did dwell.. .

way

I wisshtayin vai

will not

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butcher boy

Copyright © 1992 by Patrick McCabe Todos os direitos reservados. First published in the United Kingdom in 1992 by Pan Books Limited. Os personagens e as situações desta obra são reais apenas no universo da ficção; não se referem a pessoas e fatos concretos, e não emitem opinião sobre eles. Tradução para a língua portuguesa © Laura Zúñiga, 2021

Diretor Editorial Christiano Menezes Diretor Comercial Chico de Assis Gerente Comercial Giselle Leitão Gerente de Marketing Digital Mike Ribera Gerentes Editoriais Bruno Dorigatti Marcia Heloisa Editor Lielson Zeni Capa e Projeto Gráfico Retina 78 Coordenador de Arte Arthur Moraes Designers Assistentes Aline Martins | Sem Serifa Sergio Chaves Finalização Sandro Tagliamento Revisão Cristina Lasaitis Isadora Torres Guilherme Kroll Retina Conteúdo Impressão e acabamento Ipsis Gráfica

DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP) Angélica Ilacqua CRB-8/7057 McCabe, Patrick Butcher Boy / Patrick McCabe ; tradução de Laura Zúñiga. — Rio de Janeiro : DarkSide Books, 2021. 208 p. ISBN: 978-65-5598-095-0 Título original: Butcher Boy 1. Ficção irlandesa 2. Violência - Ficção I. Título II. Zúñiga, Laura 21-0830

CDD Ir823 Índices para catálogo sistemático: 1. Ficção irlandesa

[2021] Todos os direitos desta edição reservados à DarkSide® Entretenimento LTDA. Rua General Roca, 935/504 – Tijuca 20521-071 – Rio de Janeiro – RJ — Brasil www.darksidebooks.com


Infância Sangrenta


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Para os McCabe Brian, Eugene, Mary e Dympna  9


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Quando eu era moleQue uns vinte ou trinta ou Quarenta anos atrás morava numa cidadezinha onde todo mundo tava atrás de mim pelo que eu tinha feito com a dona Nugent. Eu tava escondido num buraco perto do rio atrás da moita. Era um esconderijo que eu e o Joe fizemos. Que morram todos os cachorros que entrarem aqui!, a gente disse. Todos menos nós óbvio. De dentro a gente via bem do lado de fora daí ninguém conseguia ver a gente. Galhos e mato tudo boiando e descendo a correnteza debaixo do arco escuro da ponte. Navegando em direção a Tombuctu. Boa sorte gravetos!, gritei. E aí botei o nariz pra fora para ver o que tava acontecendo. Ping — a chuva caía com licença. Mas eu não tava reclamando. Eu gostava de chuva — aquele barulho da água e a terra tão macia que plantas bem verdinhas podiam nascer ali do lado. Isso sim é vida, falei. E aí fiquei lá sentado olhando a gota d’água na ponta de uma folha. Ela não decidia se queria pingar ou não. Mas e daí… eu não tava com pressa. Calminha gota, eu falei, agora a gente tem tempo. Todo o tempo do mundo. Eu ouvi um avião passando. Uma vez a gente tava sentado na rua atrás das casas protegendo o olho do sol e aí o Joe falou: Viu o avião Francie? Eu disse que vi sim. Era um pássaro minúsculo e prateado no horizonte. O que queria saber, ele comentou, é como que conseguem diminuir a pessoa tanto que ela cabe lá dentro? Eu disse que não sabia. Não sabia nada de avião naquela época.  13


Tava pensando na dona Nugent se acabando de chorar. Eu disse claro pra que chorar agora Nugent já que foi você que armou essa confusão toda se não metesse o bedelho em tudo ia tá tudo de boa agora. Era verdade. Por que eu iria querer machucar o Philip filho dela? Eu até que gostava dele. No primeiro dia que ele apareceu na escola daí o Joe falou para mim ei você viu que tem um cara novo? O nome dele é Philip Nugent. Eita vou ver quem que é. E aí que ele tava antes na escola particular e usava blazer de trança dourada e brasão no bolso do peito. Tinha um boné azul-marinho com escudo bordado e meias cinza. O que achou, Joe perguntou. Meu Deus, falei, Philip Nugent. Este é Philip Nugent, disse o professor, ele está começando na escola hoje. Philip morava em Londres mas seus pais são daqui e acabaram de voltar para a cidade. Quero que o façam se sentir bem acolhido certo? Ele se comportava dum jeito que parecia o Winker Watson do gibi Dandy só que Winker tava sempre aprontando alguma e Philip era o contrário. Porque toda vez que você via ele tava sempre bisbilhotando inseto debaixo de pedra ou explicando do ponto de ebulição da água prum moleque ranhento. Aí a gente, eu e o Joe, queria saber da escola dele. A gente dizia: tinha senha e reunião secreta? Conta pra gente como que era a birosca lá desembucha Philip! — mas não acho que ele entendia. A melhor coisa dele era a coleção de revistas em quadrinhos. Eu ainda não acredito, Joe disse, nunca vi nada daquele tipo. Ele guardava as revistas com carinho e esmero na caixa sem dobrar ou amassar. Pareciam novas saídas direto da loja! Tinha revista lá que a gente nunca nem tinha ouvido falar e olha que a gente manjava de quadrinhos. A dona Nugent dizia: Cuidado para não estragar essas revistas elas custam dinheiro sabe. E a gente respondia: A gente não estraga! — mas depois o Joe falou pra mim: Francie a gente precisa dessas revistas. Então você pode até falar que quem começou foi ele e não eu. A gente debateu longamente e daí se decidiu. A gente precisava das revistas e pronto. Ligamos para o Philip e combinamos de trocar. Na verdade a gente fez a limpa eu admito. Mas era brincadeira ia devolver tudo se tivesse pedido de volta. Era só ele falar: Gente puxa acho que eu queria os meus quadrinhos de volta e a gente diria: Tá bom Phil.  14


Mas é claro que a Nugent não podia esperar. Daí que deixamos Philip com a pilha dele de sobras e a gente se escondeu tão gabolas até as lágrimas de alegria escorrerem na cara. Ouve essa, Joe disse, uma pulga fala pra outra e aí vamos a pé ou a gente pega um cachorro? Ele lia essas piadas e eu não conseguia parar de rir a gente ria até doer a barriga. Eu ria tanto que socava a grama gritando chega Joe chega. Mas não rimos mais no dia seguinte quando a dona Nugent ficou toda atiçada. Encontrei o Joe atravessando a praça Diamond e ele falou pra mim cuidado Francie a gente tá em pé de guerra com a Nugent. Ela foi lá em casa e logo vai lá na tua também. Que nem sempre eu tava na cama e ouvi baterem na porta. Ouvi a mãe cantando e arrastando as pantufas no carpete. Ah boa tarde dona Nugent vamos entrando mas a Nugent não tava com cabeça pra ah boa tarde vamos entrando ou coisa do tipo. Ela caiu na mãe com a história dos quadrinhos e tal e eu podia ouvir a minha mãe falando sim sim eu sei claro que vou! e eu ali esperando ela voar pela escada e me pegar pela orelha e me jogar no pé da dona Nugent na entrada de casa e é isso que ela ia ter feito se a Nugent não tivesse falado dos porcos. Ela disse que conhecia a nossa laia mesmo antes de morar na Inglaterra e ela já devia saber que não era pra deixar seu filho chegar perto de pessoas como nós também o que se espera de uma família que o pai nunca tá vive esparramado no pub de manhã até de noite ele não passa de um porco. Você acha que a gente não sabe o que se passa aqui mas ah a gente sabe sim! Por isso que o garoto é assim que chance ele vai ter na vida à toa na rua a hora que quiser nesses trapos não custa tanto assim uma roupa de criança Deus o defenda não é culpa dele mas se ver ele perto do meu Philip de novo aí sim vai ficar feio. Vai ficar bem feio pode anotar! Depois disso a mãe me defendeu e a última coisa que ouvi foi a Nugent no beco esbravejando Porcos — a cidade inteira sabe! Minha mãe me arrastou escada abaixo e me deu uma senhora surra o que incomodou mais ela do que eu porque a mão dela tremia como folha no vento ela jogou a varinha longe e se aprumou em pé na cozinha e me pediu desculpa várias vezes. Ela disse que ninguém no mundo importava  15


mais do que eu. E aí me abraçou e disse que isso tudo era culpa dos nervos. Não foi sempre assim comigo e com seu pai, ela disse. E então olhou nos meus olhos e fala: Francie… você jamais vai me decepcionar né? Ela queria dizer você não vai me decepcionar como o pai e eu disse não nunca vou te decepcionar nem num milhão de anos não importa quantas vezes me surre de vara. Ela pediu desculpa de novo e disse que jamais ia me bater outra vez enquanto vivesse. Ela disse que no mundo era só isso que existia, pessoas que te decepcionam. E disse que quando a dona Nugent chegou na cidade ela era incrível. Eu andava pra cima e pra baixo com ela, falou. Então começou a chorar dizendo que lugar horrível e enxugava os olhos com um lenço de papel que tava no bolso do avental. Mas não fazia sentido era perda de tempo. A luz entrava enviesada pela janela daí dava pra ouvir as crianças brincando no beco lá fora. Elas tinham feito uma lojinha e pagavam pelas compras com pedras. Tinham embalagens vazias de sabão em pó e latas de feijão. Não agora sou eu, falou um. Grouse Armstrong coçou a orelha e ganiu correndo entre eles. Eu tava pensando em quão certa tava a mãe — a dona Nugent era só sorrisos quando conheceu a gente E como vai a senhora e o pequeno Francis vocês vão bem? Era difícil acreditar que na verdade o que ela queria dizer era Ah boa tarde sra. Porca como vai e olha Philip quem tá vindo aí: a família Porco! Mas não importava pra mim e pra mãe a gente era muito próximo e depois do incidente todas as vezes que podia falava pra ela — mãe quer mandar algum recado para alguém na cidade e às vezes ela queria e às vezes não queria mas eu perguntava sempre pra garantir. Ela me dava a janta e dizia Francie quando você namorar você vai dizer a verdade pra namorada e nunca vai decepcionar ela né? E eu respondia — claro mãe — e ela dizia eu sei que você vai filhote e então a gente ficava sentados horas olhando a lareira mas nunca tinha fogo a mãe nunca se preocupava em acender e eu não sabia mexer naquilo. Eu falei pra que fogo se podemos ficar aqui olhando pra cinza.  16


Eu não sei que noite foi acho que foi na noite que a gente ganhou o campeonato e aí o pai precisou vir carregado um dos ferroviários deixou ele lá em casa. Eu desci até o meio da escada e tudo o que ouvi é uns murmúrios e umas moedas caindo no chão. Eu ia voltar pro quarto quando algo quebrou não sei o que mas parecia vidro. Então ouvi o pai maldizer a cidade e todo mundo. Falava que poderia ser alguém não fosse pelo Eddie Calvert ah se eu não tivesse conhecido ele quem mais na cidade tinha conhecido Eddie Calvert quem mais na cidade sabia ao menos quem era o Eddie Calvert. Quem?, diz, Quem? Grita com a mãe: Tá prestando atenção? Acho que ela não disse nada porque logo a seguir ele começou a ladainha do seu pai abandonando a família quando ele tinha sete e como ninguém compreendia ele disse que ela perdeu o interesse na música dele há muito tempo e ela não se importava e não era culpa dele se ela era daquele jeito louca como todos os Magees largada em casa desde que se conheceram nunca fez nada e por que ele não iria pro pub se ela nunca fez o jantar dele? Alguma coisa quebrou uma louça ou coisa dessas e a mãe gritou não me culpe se você não quer encarar a verdade qualquer chance que você tinha você meteu goela abaixo. Aí segue assim por muito tempo e eu parado lá ouvindo tudo eu sei que devia ter descido mas agora é tarde eu já não desci né? Eu não desci e pronto. Eu tava tentando ouvir os carros na rua Newtown e dizia pra mim: Eu não tô ouvindo nada na cozinha já deve ter terminado. Mas não tinha terminado e quando parei de ouvir os carros eu ouvi ele falando: Maldito o dia em que te vi a primeira vez! No dia seguinte a gente saiu da escola mais cedo por causa que do campeonato que ganharam e quando minha mãe me viu na porta dos fundos ficou toda afobada e fez umas piadas e tudo mais. E aí pegou a bolsa e de cima da janela e falou: Aqui Francie aqui ó seis pence… por que não vai na Mary e compra um punhado de bala mas eu respondi que comprar uma barra de chocolate Flash Bar e uma outra daquela baratinha se puder pode ser? Mas claro que pode. Vai então e o rosto dela ficou muito vermelho e manchado e quente como se ela estivesse sentada na  17


frente do fogo mas não tinha fogo. Uma pena mas a Mary tava fechada então precisei voltar pra contar pra mãe. Eu queria ver se podia ficar com o dinheiro mas quando tentei abrir a porta ela não abria. Eu bati na janela mas só conseguia ouvir o barulho da água da torneira shhhhhh. A mãe tá lá em cima falei assobiando enquanto rolava a moeda entre os dedos me perguntando se depois eu conseguiria o chocolate ou talvez seis balas toffee. E aí escutei um barulho — pensei é melhor dar uma olhada pela janela achei que talvez o Grouse Armstrong ou alguém tivesse entrado na casa e roubado salsichas de novo e aí quando consegui entrar na cozinha só tinha a mãe e uma cadeira caída perto da mesa. O que é isso aí mãe, perguntei. Ela lá parada futricando a unha e queria dizer alguma coisa mas não falou nada. Daí eu disse que a Mary tava fechada e se podia ficar com os seis pence ela disse que sim podia. Ueba! Gritei e corri pra loja da esquina para comprar seis balas toffee mas quando eu cheguei lá pedi duas Flash Bars e uma barra de chocolate com coco por favor. Quando voltei a mãe tava debruçada na cadeira perto do fogo apagado e por um minuto pensei que ela tava com frio mas daí ela virou pra mim e diz: Sabia que você tinha só dois quilos quando nasceu Francie? Não muito depois a mãe foi para a garagem. Ela disse pra mim: eu vou pra cidade agora Francie tenho que começar a cozinhar pra festa de Natal do tio Alo. Beleza disse fico aqui e vejo tv e então ela foi e nem percebi o tempo passar até que ouvi a dona Connolly na porta com o pai e outras mulheres que diziam que minha mãe tinha ficado em pé por duas horas olhando hipnotizada a loja de pescaria com a sacola no chão e uma lata de feijão rolando na entrada. O pai tava envergonhado e quando as mulheres disseram que tinham também a questão dum vestido pra resolver ele ficou ainda mais vermelho e a dona Connolly disse que não precisava — eu cuido disso Benny e deu uma tapinha no ombro dele como uma mãe faria levantou a barra da saia e subiu as escadas cantarolando. Ele foi para a copa e ouvi ele beber uísque por baixo do casaco. Ele estava esperando ser chamado no megafone: Parado! Fique onde está! Ponha a garrafa de uísque no chão devagar e não tente reagir! Mais umas mulheres entraram e pararam perto da lareira cochichando. Dava pra ver a dona  18


Connolly abrindo e fechando o zíper do casaco dizendo terrível terrível mas eu não me importava. Vamos pro Missouri! Disse o John Wayne e yeehah! Ele saiu a galope ensurdecendo todo mundo com o bater dos cascos. Ficaram por lá de papo falando amenidades que achavam que meu pai queria ouvir da banda da cidade e como o governo estava quebrando o país mas ele não estava interessado no papo delas só balançava a cabeça que sim mas ele balançaria a cabeça para qualquer bobagem. Se tivessem dito nossa que coisa horrível aconteceu com a filha da sra. Lavery comida por lobos na praça Diamond ele teria balançado a cabeça igual e dito sim que horror. A dona Connolly disse: Bem tenho de ir agora deixei meu forno aceso com comida sabe como são os homens quando a gente não cuida deles. Ah tá, elas disseram, e deram uma empurradinha marota e você acha que não sei pelo menos o seu come o meu não come nada que eu faço. Ah homens são terríveis terríveis. Tudo o que sobrou do John foi uma nuvem de poeira e marcas de casco no deserto. Tenho trabalho pra fazer, meu pai falou pra mim, você vai ficar bem e me deu dois xelins. Então foi cuidar das coisas dele quer dizer do bar Tower isso sim. Eu tava sem saber da mãe e tudo mais mas o Joe me contou. Ouvi a sra. Connolly dizer colapso isso é colapso nervoso Joe. Falei: O que é isso quando te levam pra garagem, o Joe disse: É quando o caminhão vem e te reboca. Essa é boa, pensei a mãe rebocada pelas ruas no casaco dela. Quem é essa diriam. Oh é a sra. Brady tá indo pra garagem. O Joe disse que essa cidade tava cheia de problema e claro que tava. Me passa a chave-inglesa o tornozelo da sra. Brady precisa dum ajustezinho. Vejam só, eu disse, que divertido. A gente se divertia naquela época eu e Joe pendurados na beira do rio enfiando a cara na água. Dava pra ver os olhos esbugalhados dos peixes com aquela expressão de o que você quer. Ei peixe, o Joe implicava, peixe? Vai à merda! O que você acha disso peixe? A gente dizia. E aí saía pras nossas aventuras. Estava tudo indo bem até que a tv escangalhou. Tsssss.   19


Daí era isso, aquela tela cinzenta me encarando. Tentei até mexer um pouco mas só consegui um chuvisco branco e aí fiquei lá olhando aquilo na esperança de alguma coisa acontecer mas nenhum canal sintonizou nem quando o pai voltou. Como isso aconteceu, ele perguntou e eu contei. Eu tava sentado lá e de repente pifou assim. Ele arrancou o casaco e largou no chão. Certo, falou, vamos lá vamos ver. Ele cantarolou feliz feito um colibri. Então disse: Sabe a tv não é isso tudo que gente como o Mickey Traynor diz. Ele tinha comprado a tv do Mickey Traynor o cara da tv sagrada que tinha esse nome porque tinha um bico de vender imagens sagradas. Ele mexeu na fiação um tempinho e nada aconteceu e aí ele levou a tv pra perto da janela porque podia ser a antena mas na verdade só piorou. Meu pai deu uma porrada na tv e aí que ela pifou de vez até o chuvisco branco sumir. Depois ele esbravejou e praguejou contra o Mickey. Falou que deveria ter sido mais esperto e não caído na conversa de gente como Traynor. Ele e as imagens sagradas não me descem. Ele não vai me vender uma televisão quebrada e achar que vai ficar por isso mesmo. Ele não vai usar os truques ardilosos dele no Benny Brady. Fique sabendo que sou melhor que Mickey Traynor. E deu uma porrada na tv. Funciona!, gritou. Olha isso eu deveria ter sido mais esperto e saber que não ia prestar. Funciona! Há quanto tempo temos esta tv? Seis meses que ela tá comprada e paga com meu dinheiro suado. Mas anote o que digo Traynor vai me devolver cada centavo que paguei mas ele vai devolver cada centavo anote! E ele se afasta e dá com o pé em cheio na tela. Voa vidro pra todo lado. Eu vou consertar, disse, vou consertar bem pra caralho. Daí dormiu no sofá com um sapato pendurado. Eu não tinha muito o que fazer cansei de observar os passarinhos pulando no muro do gramado e daí fui pra rua. Eu disse pra mim mesmo bem agora acabou o John Wayne e sabia que o aparelho ia ficar mofando ali com os cacos e tudo e ninguém se daria ao trabalho de consertar. Ah vá, pensei, pelo menos o Joe pode me dizer o que tá acontecendo e foi nesse momento que vi o Philip e a sra. Nugent vindo  20


na minha direção. Eu sabia que ela achava que eu ia dar as costas pra eles. Ela se debruçou e falou alguma coisa pro Philip. Eu sabia o que ela tava falando mas não acho que ela sabia que eu sabia. E aí ela franziu o nariz e murmurou seca: Você não ficaria lá parado e deixaria seu pai agir da forma que quisesse com ela. Você nunca faria isso não é Philip? Você sempre vai ficar do meu lado não é? Philip concordou com a cabeça e sorriu. Ele sorriu contente e então o clima azedou o dedo subiu de novo em riste quando ela disse: É claro que você sabe o que ela estava fazendo com o fusível não é Philip? Ela pensou que eu ia me virar vermelho de vergonha quando disse mas não foi o que aconteceu. Eu continuei andando. Ah aí está você dona Nugent, disse sorrindo e o Philip também. Ela olhou através de mim e era um daqueles olhares que deveria te fazer encolher e querer desaparecer mas só me fez sorrir mais. Eu tava parado no meio do caminho. A dona Nugent segurava o chapéu com a mão e a mão do Philip com a outra você pode nos dar licença, ela pediu. Ah não posso não, falei, vai ter que pagar pra passar. Ela tinha várias veiazinhas vermelhas no nariz e as sobrancelhas eram tão altas que quase se juntavam ao couro cabeludo. O que você quer dizer o que diabos está falando, ela disse e eu vi o Philip franzindo a testa com sua cara professoral se perguntando se talvez aquilo fosse sério talvez ele pudesse investigar ou fazer um projeto. Bem ele poderia se quisesse eu não tava nem aí desde que pagasse. Se chama Pedágio do Porco. Sim dona Nugent, falei, chama-se pedágio do porco e toda vez que quiser passar por aqui vai custar um xelim. Ela apertou os lábios com tanta força que ficaram fininhos como se tivessem sido desenhados com lápis e a pele da testa ficou tão esticada que achei que os ossos iam explodir. Mas não explodiram e eu falei pro Philip sabe duma coisa você é meio tapado. Daí fica um xelim pra sra. Nojent, disse, e meio pro Philip. Eu não sei por que chamei de sra. Nojent só me veio a ideia. Achei uma boa ideia chamar ela assim mas ela não gostou. Ficou vermelha como um tomate. Sim, falei de novo, tem que pagar o pedágio sra. Nojent e me levantei esticando os suspensórios com os polegares como se tivesse no velho oeste. Ela se levantou e estava  21


muito afogueada e irritada. Philip não sabia o que fazer ele abandonou a ideia de investigar o pedágio do porco e acho que só queria ir embora mas eu não podia deixar até pagarem o pedágio do porco essas são as regras da terra dos porcos, eu disse. Me desculpe falei daquele jeito de quando cobram dinheiro da gente se quer saber acho esse valor alto mas é o preço sinto muito. O pedágio tem que ser cobrado e alguém tem que cobrar rá rá rá. Ela tentou forçar a passagem mas eu segurei ela na manga do casaco e ela ficou toda errada porque não viu o que prendeu ela. Seu chapéu tava torto e tinha um limão na aba. Ela tentou se esquivar mas eu segurei firme então ela não conseguiu se soltar. Malditos impostos, digo, não é mesmo pessoal? Quando olho de novo os olhos dela estão marejados mas ela não quer derramar lágrima nenhuma porque sabe que eu vou gostar. Quando percebi larguei a manga e sorri tudo bem então o seguinte dessa vez vocês estão liberados mas se lembrem que daqui em diante têm que pagar o pedágio do porco. E fiquei parado lá olhando pra eles ela saiu andando mais rápido do que o Philip tentando consertar o limão do chapéu ao mesmo tempo em que tocava ele dali. Quando passaram pelo cinema gritei: Não tô brincando dona Nojent mas não sei se me ouviu. A última coisa que vi foi o Philip virando para trás e me olhando mas ela puxou e se foi rebocando o filho. Um cara tava passando e falei: Você sabe que a gente tá numa situação crítica quando as pessoas não pagam seus impostos. Quem é você, perguntou, Brady, respondi. Ele levava uma bicicleta preta com a capa de chuva jogada no guidão. Parou e apoiou ela num poste então enfiou a mão no bolso da calça e sacou o cachimbo e a lata de fumo. Brady, falou, seria o Brady da Comunidade? Correto, respondi. Ah tá entendi. Entendeu o quê, perguntei. Seu pai já foi um grande homem, falou. Foi um dos melhores músicos desta cidade. Ele foi encontrar o Eddie Calvert. Disse que não queria mais saber do Eddie Calvert. Você não gosta de música, perguntou, você acha que a gente ganha sábado? Falei que também não queria falar de futebol. Você não acha que foi uma conquista pra cidade ganhar o campeonato, comentou. Não. Acho uma pena não terem perdido isso sim.  22


Ah estou vendo, falou, mas então o que são esses impostos que comentou ao menos isso parece te interessar. Ele cheirava a grama queimada e leitelho e parecia engajado em discutir o governo e como as coisas degringolaram. Bateu o cachimbo na perna e perguntou qual era o imposto. Pensou que fosse um imposto desses absurdos que o governo tinha implementado e estava prestes a dizer é melhor impedirmos isso ou o país vai acabar quando eu disse: Ah não não é do governo. Foi inventado por mim e é coisa do povo, falei. E quem é você, perguntou. Francie Porco cobrador de pedágio, respondi, ele balançou a cabeça e bateu o cachimbo de novo que piada boa, comentou. Pode rir, falei, não sei o que achou engraçado. Tsc tsc, ele disse, você é ruim sabia. E fumou o cachimbo. Pedágio do Porco, falou, é a primeira vez que ouço falar disso. Abria e fechava a boca enquanto fumava parecia até um peixe. Mas não precisa se preocupar não tem nada a ver com você. Na verdade o imposto deveria se chamar O Pedágio da Sra. Nugent e de Mais Ninguém mas só pensei em falar. Entendi, falou, então é melhor eu ir. Ele então fez um sinal com seu indicador na testa sorte aí e foi embora bairro adentro levando a bicicleta e as rodas só tic tic tic. Entrei na loja. O barulho da máquina de cortar bacon e a vendedora chupando a ponta do cotoco de lápis subindo e descendo uma lista interminável de números no verso de uma sacola de papel. Mulheres em pé perto dos cereais matinais dizendo as coisas tão muito caras. Tá muito difícil de lidar com a situação você sabe quanto eu paguei pelos sapatos do Peter na loja aqui de cima. Quando me viram chegar ficaram quietas. Uma até chegou a dar um passo para trás e esbarrou num mostruário. Aí tão vocês, falei e elas ficaram desconcertadas. O que é isso, perguntei, uma mulher com três cabeças? As reações não foram tão ruins — os sorrisos voltaram. Ah Francie, disseram, aí tá você. Aqui estou em pessoa, respondi. Elas se debruçaram sobre mim e com tom reservado perguntaram: Como está sua mãe Francie? Ah ela tá ótima na garagem e logo volta pra casa. Estão dando um trato nela — me passa o espanador Mike. Rá  23


rá rá, elas riem, essa foi boa. Sim, respondi, ela precisa mesmo voltar pra terminar de cozinhar pra festa do tio Alo. Então seu tio Alo está vindo pra casa, perguntaram. Véspera de Natal, respondi, vem de Londres. E você acredita nisso, pergunta a sra. Connolly tremelicando, e ele vai ficar muito tempo? Duas semanas, falei. Duas semanas ela repete e sorri e eu ia mesmo perguntar você não acredita em mim sra. Connolly mas não falei já tinha muito com o que me preocupar com a dona Nugent então nem ia começar com a sra. Connolly. Ele está bem em Londres Francie seu tio Alo, disse outra mulher. E então começaram a falar todas duma vez ah mas sim ele está ótimo tem um ótimo emprego e muita sorte pra ele porque não é fácil nessas metrópoles como Londres. Não é mesmo, a sra. Connolly complementou e aí outra repetiu mais uma vez o que foi dito antes. Era como se fosse o programa A História de Alo mas eu não tava nem aí. Sim, sim com certeza, eu disse. A sra. Connolly emendou: A última vez que vi ele estava em casa com um belo lenço vermelho no bolso do paletó e um lindo terno azul. Eu também vi parece que trabalha no governo ou algo assim. Sim isso mesmo. Ele puxou os Brady, disseram. É mesmo puxou, respondi. Ele é muito bom Francie, disseram. Vou dizer ao Alo pra ligar pra senhoras quando chegar, falei, daí podem conversar de Londres e tudo mais. Isso Francie faz isso, disseram, e eu tenho que ir, respondi. Bem senhoras sinto muito mas não posso ficar tenho que cuidar dos meu afazeres. Meu querido você é uma figura, elogiaram. Tenho que ir no centro resolver questões do meu pedágio. Pedágio? Não ouvi falar disso Francie. De que você tá falando? Ah eu que inventei, disse. Mas é claro que a dona Nugent não quer pagar. É mais fácil tirar leite de pedra. Nugent, diz a sra. Connolly, a sra. Nugent? Sim, respondi, mas a escolha é dela. Ela não vai conseguir passar tão na maciota na próxima vez. Ficaram todas interessadas quando perceberam que era dela que eu tava falando.  24


Passar? Mas passar por onde Francie? perguntavam insistentes. Na calçada, disse, onde mais por onde mais se precisa passar? Pela calçada, ecoaram. Sim, repeti, calçada. De repente parecia que todas tinham ficado idiotas pelo jeito que olhavam para mim. A sra. Connolly mexia no broche e via que falava algo com o canto da boca. E então ela soltou: Realmente não há como negar você é uma figura Francie! As outras duas escondidas atrás dela e acho que pensaram que eu também ia cobrar o imposto delas. Ah bem, falei, e fui embora e enquanto passava pela porta podia ver a sra. Connolly falando e as outras balançando a cabeça em concordância e levantando os olhos em descrença. Parei na praça Diamond. Um trator passou peidando por mim no rumo das montanhas puxando um reboque de estrume. Quem é esse apenas o padre Dominic farfalha, farfalha e o estalar dos sapatos novos bem Francis como estamos hoje tum tum. Meu Deus tá frio, falei, esfregando as mãos como um matuto. Humm, respondeu, é verdade, está esperando alguém? Não, respondi, tenho negócios a tratar. Negócios? Que negócio? Eu sabia o que ele ia falar se contasse do Pedágio do Porco. Pedágio do Porco hummm interessante mas temos que parar com isso então não abri a boca. Tô esperando o Joe Purcell, falei, mas não era verdade o Joe tava na casa do tio. Ah entendi, disse o padre Dom com os polegares como anões em plena valsa vienense abrindo e fechando seus pequenos botões pretos. Como está o seu pai, ele perguntou. Melhor impossível, respondi. Bem bem e sua mãe em breve volta para casa? Sim volta. Ela volta para o Natal. Natal sei que ótima notícia. Sim o Alo também vem pra casa.  25


Alo. Você deve estar orgulhoso. E tô mesmo. Véspera de Natal você disse? Exatamente. Bem com sorte esbarrarei com seu tio Alo. Esta cidade deveria se orgulhar dele. Sua mãe me contou tudo dele e do magnífico emprego que tem em Londres. Ele lidera uma equipe de dez homens, comentei, daí ele sorriu pra mim e me olhou de cima a baixo. Quando estava prestes a ir ele se inclinou e pude ver os pelos arrepiados das narinas dele como estofo de colchão e ele diz você vai voltar correndo para casa agora Francis como um bom menino não é? Da forma como ele falou parecia que ia me dar uns xelins se eu corresse. Deveria ter dito sim claro padre mas só se o senhor for gentil e contribuir com o imposto de Volta para Casa. Mas não disse. Apenas falei: Claro padre eu vou mas não voltei. Eu desci a rua e assim que vi ele entrar na igreja dei meia-volta e entrei na rua Newtown. Ali tinha um bêbado de casaco rasgado largado na entrada do bar Tower cantando “I Wonder Who’s Kissing Her Now” 1 numa garrafa. Então ele parou um instante e continuou: Uh! Uh! por um tempo com a cabeça balançando como um boneco de pano desses esquecidos no bagageiro do carro. Gritava pra mim Você me conhece hein? Me conhece? E fiquei lá olhando pra ele. Não queria ir pra casa mas também não queria ficar parado lá. Ele continuava falando e o olhar dele tava vidrado me conhece hein? me conhece? Tava escurecendo e quando olhei pra cima vi uma daquelas luas que você não consegue saber direito se tá mesmo lá e os primeiros f locos de neve começavam a cair. A neve veio mais cedo este ano, disseram, mas que bom que é assim. Isso, falei enquanto pegava um f loco com a língua.

1

[nota da edição, a partir daqui ne]: “Pergunto-me quem a estará beijando agora”, canção popular, de 1909, de autoria do compositor norte-americano Harold Orlob.

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O menino Francis “Francie” Brady parecia ser uma criança comum, em uma infância tradicional na Irlanda da metade do século XX, mas havia algo errado dentro dele. Contada pela voz do protagonista Francie, esta é uma história intensa sobre crianças cruéis, maldade, abuso e horror. Patrick McCabe é vencedor do Irish Times de 1992 e finalista do Man Booker Prize de 1992.


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