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PRÓLOGO

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PONTO ZERO

PONTO ZERO

Não há justo, nem um sequer. Romanos 3:10

Você não me conhece ainda, então o que eu vou contar vai parecer meio estranho e sem noção — bem do jeito que o mundo é.

Pra começar, o lugar onde eu moro é meio doido. Terra Cota tem muita coisa que você vê em tudo quanto é lugar, mas aqui, quando o chão esquenta, ele cozinha nossos calos. Meu avô de parte de mãe falava que é por causa das coisas que tem embaixo do chão, mas eu nunca acreditei que pedra ficasse quente desse jeito, ou chamasse chuva, ou valesse tanto dinheiro, mas eu também não fiz faculdade de gelo... geolo... daquela coisa que estuda a terra pra saber desses mistérios. Aqui também é bem alto (essa parte nem precisa de escola pra gente saber), uma das cidades mais altas do estado de São Paulo. Aqui é tão alto, mas tão alto, que uns espertão tiveram a ideia de fazer umas antenas gigantes e alugar, então a gente rica do rádio e da tv de outros lugares dão dinheiro pra gente rica daqui ficar mais rica. Ah, e o povo do celular também, mas eles não pagam direito, então deve ser por isso que o meu pai sempre falava que eles não valiam o sal do batizado (eu não lembro direito o que isso quer dizer, mas deve ser porque o sal custa muito menos que o serviço do padre).

Falando em padre, a gente tem duas igrejas aqui na cidade. Na verdade, hoje tem mais, mas as outras são tão pequenas que nem devem tá no mapa de Deus. A igreja católica daqui também é ruinzinha, e é cheia de gente mais ruim ainda. Eu nem gosto de falar dela. Já a outra é meio virada no Jiraya, e ela é tão crente que nem os crentes mais ranzinzas aceitam ela, tão crente que ela se apartou dos outros crente tudo. Além das igrejas, também tinha um terreiro, mas uma praga de uma mulherzinha velha e racista deu um jeito de acabar com tudo. Que eu lembre, ela fez uma peti… pe… um documento que pede coisa pra expulsar o pessoal do tambor, e quis o Deus deles lá que a mulher dos tambor encontrasse um lugar muito melhor para os filhos de santo dela morar (é assim que fala? Filho de Santo?). Sei lá. Mas eu sei que o terreiro inteiro foi pra Trindade Baixa e a xaroposa da mulher velha e racista parou de encher o saco. Depois aconteceu aquilo com ela, aquela coisa terrível (que muita gente daqui chamou de justiça). Das duas igrejas, quase não se ouve falar da católica, e pra falar a verdade o povo daqui é bem ateuzinho de bosta. Eu não falo que todos os ateus são bosta, longe de mim, mas o povo das duas igrejas fala, então eu repito, que nem um papagaio. Engraçado falar de papagaio nessa cidade, mas isso vocês só vão entender quando souberem do resto todo. Agora eu tô rindo que nem um esganado. Meu pai que já morreu ia chamar de “risada de retardado”, mas até eu (mesmo sendo lerdo agora, um pouco, não muito) sei que não se pode sair por aí falando desse jeito. Isso seria tão ruim quanto falar que a minha prima de segundo grau, aquela que morreu, é meio puta. Ninguém fala que ela é essa coisa feia, mas a minha mãe falou uma vez, quando eu era criancinha. Ela falou bem assim pro meu pai: “eu sempre achei ela meio puta”. Agora eu tô rindo de novo, daquele jeito todo descoordenado. Quando eu dô risada assim, todo engasgado, sai até meleca do nariz. É meio nojento, mas pelo menos eu tô vivo, sorte que muita gente daqui não teve.

Aqui na região é assim, quando menos se espera, desce alguma cagada do céu e morre um monte de gente. Já teve de tudo. Acidente de ônibus, orfanato pegando fogo, assassino psicótico (acho que é assim que escreve, mas eu não tenho certeza), gente cortando a perna, teve também o moço que jogou um avião aqui, mas errou e acertou Velha Granada, uma outra cidade aqui de perto. Teve também a gripe, que ainda tá solta por aí; essa sim matou de verdade. No começo, a tv disse que só matava velho, mas então morreu aquele homem careca da tv que tinha só quarenta anos e todo mundo colocou a máscara na cara de novo.

Às vezes, mesmo com a minha cabeça esfarelada, eu acho que o povo é meio burro. Será que tem que morrer um monte de gente de novo pra gente acreditar que a morte existe? Às vezes, eu acho que é só desse jeito, com morte, que a vida pode continuar existindo.

Outra coisa que eu acho que ninguém quer saber (mas vou falar do mesmo jeito), é que eu não nasci assim marcha-lenta. Eu fiquei assim depois de estourar a minha cabeça, mas eu acho que vocês vão entender essa parte facinho. E se ninguém entender, eu também não ligo, porque mesmo sendo lerdo, meio gardenal como falam aqui, eu ainda sou muito mais esperto que um monte de gente.

Dessa parte de ser normal eu não lembro como era, mas eu lembro que fiquei em uma clínica e que eu quase fui preso, mesmo com a cabeça parecendo uma jaca rachada. Minha irmã sempre fala que antes de eu começar a fazer cocô na calça igual o pessoal do asilo, eu até ganhava dinheiro. Ela também fala que eu era bonito, e que tinha um monte de menina no meu pé, que tinha até homem! Quando eu olho no espelho, eu nem acredito nela. Minha cara ficou meio assim… meio torta, o olho direito pendeu e o esquerdo subiu, e eu ganhei um monnnnnte de ponto na cara (daí um povo besta daqui começou a me chamar de Overloque, e minha irmã explicou que é um ponto da máquina de costura). Eu também perdi metade da tampa da cabeça, mas os médicos remendaram ela certinho. Eles colocaram uma placa de ferro, e eu às vezes escuto rádio nela. E eu aqui falando de mim e rindo, que nem um retar… uma dessas pessoa especial, em vez de falar da cidade.

Aqui faz muito calor e chove pouco, mas quando chove, parece até que Deus quer dar descarga na gente, igual ele tentou fazer naquela outra cidade aqui perto, onde choveu sangue. Minha mãe nunca gostou que eu falasse assim de Deus, mas eu acho ele meio xarope, um isentão, porque ele podia ter inter… ce… podia ter se metido, mas não fez nada disso. Deus ficou lá olhando e rindo do meu cabeção rachado e do que acontecia na cidade da gente.

Agora eu vou deixar vocês aí lendo um monte de coisa que escreveram da nossa cidade, e eu acho que metade deve ser mentira. Ah! Péraí! Se tiver algum rádio por perto, é melhor desligar. Vocês ainda vão entender essa parte. Ou não. Eu não ligo. Tô com dor de cabeça de novo.

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