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Prelúdio

Era um dia radiante, sem nuvens, com um vento veemente, um ótimo dia para voar. Então Raglan Skein manteve o corpo parado, deitado na cama, a respiração lenta feito o balanço do mar, e subiu ao céu. Levou consigo apenas visão e audição. Não havia por que levar sentidos que lhe permitissem sentir o ar frio do céu azul-safira ou a vertigem causada pela subida ligeira. Como todos os Perdidos, ele nascera com os sentidos desatados do corpo, feito um anzol de pesca. Podia mandá-los para longe, depois trazê-los de volta e recordar todos os lugares visitados por sua mente. A maioria dos Perdidos conseguia deslocar os sentidos de maneira independente, tal e qual os olhinhos das lesmas. A bem da verdade, um Perdido podia sentir a grama sob os joelhos, saborear um pêssego, ouvir uma conversa na aldeia ao lado e sentir os aromas da cozinha numa cidade próxima, tudo ao mesmo tempo, e ainda observar velozes barracudas pintalgando um navio naufragado mais de quinze quilômetros mar adentro.

Raglan Skein, no entanto, não fazia nada de tão esquisito. Teria que conduzir seu corpo a uma jornada difícil, e provavelmente perigosa, no dia seguinte, e observava a paisagem. Era um alívio ver o mundo se afastando, tudo cada vez menor. Mais manipulável. Menos perigoso.

Espalhadas pela isolada Ilha Gullstruck, dezenas de outras mentes também estavam à deriva. Mentes de Perdidos ocupados com as questões da ilha, garantindo seu funcionamento. Procurando bandidos na mata, localizando crianças desaparecidas nas encostas, caçando tubarões nas profundezas, lendo importantes avisos comerciais e mensagens longínquas. A bem da verdade, talvez naquele exato instante algum Perdido estivesse vagando ali perto de Skein, tão indiscernível aos outros quanto ele próprio.

Ele se virou para a cadeia de montanhas que percorria a costa oeste, observando cada pico emergir do velo de nuvens. Um deles, de um colorido mais pálido, permanecia afastado dos demais, meio altaneiro. Era Mágoa, o vulcão branco, doce, puro e traiçoeiro feito a neve. Skein o evitou, rumando em vez disso na direção do marido de Mágoa, o Rei dos Leques, a maior e mais central montanha da cadeia, que ostentava em seu cume um vulcão eternamente encoberto pelas nuvens. Com o calor, o Rei estava dócil e brumoso, mas também era um vulcão, e de temperamento instável. O ar cintilante que rodeava suas encostas era pontilhado por silhuetas de imensas águias, capazes de transportar uma criança em cada pata. A cada ano, as aldeias costeiras esperavam perder pelo menos um par dos seus para as águias.

Essas águias, porém, não tinham interesse nos vilarejos que se esparramavam pela terra. A julgar pela visão das imensas aves, as cidades não passavam de animais grandalhões, com escamas de telhas e pelagem de palha de palmeira, indolentes demais para causar preocupação. As estradas lamacentas eram as veias, e os sinos de bronze no alto das torres brancas marcavam as lentas e frias batidas de seu coração.

Por um instante, Skein desejou não saber que cada vilarejo era, na verdade, uma fervilhante colmeia de animais de duas pernas, amargos e mordentes, ressentidos, ardilosos e traiçoeiros. Mais uma vez, o medo da traição lhe atormentou a mente.

Vamos falar com essa gente , anunciara o Conselho dos Perdidos. O nosso poder é muito grande para que fiquem indiferentes. Skein não acreditou. Dali a mais três dias, conheceria a concretude de suas sombrias suspeitas.

Lá estava a estrada que ele cruzaria nos próximos dias. Por mais que tivesse partido para a costa sem alarido e com afobação, sempre havia a possibilidade de a notícia de sua chegada ter corrido na frente e os inimigos se encontrarem à sua espera.

Não era tarefa simples espreitar os arbustos e as surpresas daquela costa, entre todas as outras. Tudo ali fedia a logro e enganação. Recifes de coral se escondiam sob a água da baía, denunciados apenas pela espuma das ondas ao longe. A própria parede do despenhadeiro era um labirinto. Ao longo dos séculos, foi se formando uma cavidade no calcário cor de creme, esmiuçando a pedra, que acabou por se transformar num labirinto de agulhas finas, frinchas e saliências pontiagudas, feito leões adormecidos. Assim era a extensão de toda a costa oeste da ilha, o que lhe garantira o nome de Costa da Renda. A comunidade que ali vivia, conhecida como os “Rendeiros”, também era cheia de volteios, curvas tortuosas, barrancos e leões adormecidos disfarçados de pedras. Era impossível saber em que terreno se estava pisando quando o assunto eram os sorridentes Rendeiros. Eles eram quase párias, não logravam a confiança de ninguém e tentavam sobreviver nos povoados pobres dos arredores ou nas poeirentas aldeias pesqueiras.

Aldeias como a que surgia ao longe, aninhada entre um penhasco e uma praia, num vale rochoso meio escondido. Despontou, então, o destino final de Skein. A aldeia das Feras Falsas.

Era uma aldeia de Rendeiros. Skein avistou a área à primeira olhadela, embora estivesse voando muito alto para distinguir os turbantes das avós, as tornozeleiras de presas de tubarão dos rapazes, as pedras preciosas nos dentes de todos eles. A localização furtiva e as pequenas canoas usadas para caçar pérolas enfileiradas à linha-d’água não deixavam dúvidas.

Ele foi descendo até ver duas manchinhas na praia se transformarem em diminutas figuras humanas. Skein enxergou duas meninas, uma apoiada na outra.

A mais alta usava uma túnica branca, e ele no mesmo instante soube quem era. Arilou.

Arilou era a única Fera Falsa que ele conhecia pelo nome, e aquele era o único nome que ele precisava conhecer. Ela era de longe a pessoa mais importante da vila e provavelmente a única justificativa para a existência daquele lugar. Ele a contemplou por alguns segundos, então alçou voo outra vez e retornou ao próprio corpo.

Por mais espantoso que fosse, a menina que segurava Arilou também tinha nome. Um nome criado para soar como um sopro de terra, que passasse despercebido. Ela era anônima feito pó, e Skein não lhe deu a menor atenção.

Você também não daria. Na verdade, você já a conheceu, ou alguém muito parecido, mas não guarda a mais breve lembrança.

FRANCES HARDINGE Arilou 1

Na praia, uma tempestade de gaivotas irrompeu quando as rochas rolaram pelo despenhadeiro. Logo atrás delas, veio Eiven, cambaleante, o rosto vermelho de tanto correr.

Nenhum membro da aldeia descia o penhasco por atalhos, a menos que o assunto fosse urgente, nem mesmo a corajosa e ágil Eiven. Muita gente baixou as cordas e redes, mas sem fechar o sorriso; os Rendeiros nunca fechavam o sorriso.

“Um Inspetor!”, gritou Eiven ao recuperar o fôlego e o equilíbrio. “Tem um Inspetor Perdido vindo ver a Arilou!”

Trocaram-se olhares, então a notícia percorreu uma cabana, e outra, e mais outra. Enquanto isso, Eiven avançou em disparada pela praia, rente à base do penhasco, os pés deixando sulcos na areia esponjosa. Subiu por uma escada de cordas, empurrou uma cortina de juncos trançados e adentrou uma gruta.

Segundo as lendas e tradições dos Rendeiros, as grutas eram lugares sagrados, perigosas bocarras que levavam ao mundo dos mortos, aos deuses e ao coração lento e incandescente das montanhas, bocas capazes de devorar com dentes de estalactite os que fossem julgados indignos. A família de Eiven era considerada digna de viver nas grutas, mas só por causa de Arilou.

Momentos depois, já ali dentro, Eiven engatou uma agitada conversa com a mãe. Era um conselho de guerra, mas os sorrisos tornavam impossível saber.

“Então o que ele está planejando fazer com ela?” Os olhos da mãe Govrie exibiam um brilho urgente e feroz, mas a boca sustentava o esgar de um sorriso meio torto no lábio inferior, indicando teimosia e ternura. “Como é que um Inspetor inspeciona?”

“Dizem que ele quer testar ela para deixar nos registros. Ver se ela consegue controlar bem os poderes.” Eiven exibia um sorriso cortante. Anos de caça a pérolas nos corais haviam estampado cicatrizes brancas em sua testa, tal e qual patas de pássaro. “A gente tem que contar para aldeia inteira. Todo mundo vai querer saber disso.”

Arilou era assunto de todos, o orgulho e a alegria da aldeia, sua Lady Perdida.

Os Perdidos nasciam exclusivamente na Ilha Gullstruck, e mesmo na ilha eram pouquíssimo comuns. Entre os não Rendeiros, eram muito raros e muito respeitados. Entre os Rendeiros, no entanto, eram praticamente desconhecidos. Durante o grande expurgo, havia duzentos anos, quase todos os “Rendeiros Perdidos” foram mortos, e seu número jamais voltara a ser o mesmo. Antes do nascimento de Arilou, o povo da Renda havia passado mais de cinquenta anos sem ter um Perdido.

Era fato notório que as crianças Perdidas tinham o costume de se extasiar com lugares distantes e largar o próprio corpo, e que por vezes nem sequer notavam a existência deste. Por consequência, ninguém lamentava quando uma criança parecia aprender as coisas de maneira lenta ou ter pouca consciência de seus arredores, pois isso em geral era indício de um Perdido que ainda não sabia trazer a mente de volta ao corpo. O nascimento de uma garotinha que dava todos os sinais de ser uma Perdida destreinada havia transformado, da noite para o dia, as perspectivas da aldeia. De uma hora para outra, o povo passou a não depender da caça de pérolas, cada vez mais escassa, ou do comércio de joias feitas de conchas. A cidade vizinha, ainda que de má vontade, lhes fornecia comida no inverno, pois era ponto pacífico que quando sua Lady Perdida se aposentasse Arilou ocuparia seu lugar. Além do mais, os visitantes que chegavam aos borbotões para ver Arilou pagavam muito bem por comida, hospedagem e lembrancinhas de sua visita à única Rendeira Perdida. Arilou era um fenômeno muito celebrado, feito um bezerro de duas cabeças ou um jaguar branco como a neve. Se pairava alguma dúvida que assombrava o orgulho da cidade em relação a Arilou, ninguém de fora jamais saberia, graças ao contínuo prazer que os Rendeiros pareciam demonstrar em falar a seu respeito. Agora, porém, Arilou precisava ser encontrada e preparada para receber companhia. Era preciso aprontar suas melhores roupas. Tirar os carrapichos dos cabelos, empoar-lhe o rosto com especiarias e pó de pedras. Era impossível saber quanto tempo ainda restava.

Ao fim da tarde, dois homens subiram na cadeira suspensa, com muita cautela, e desceram pelo penhasco, puxados por seis rapazes Rendeiros posicionados lá embaixo.

O visitante mais alto era, sem sombra de dúvida, um Perdido. Por mais que muitos Perdidos aprendessem a utilizar o próprio corpo como base, outros demoravam tanto a descobrir sua forma física que jamais se sentiam confortáveis dentro dela. Consideravam a perspectiva desnorteante, detestavam a translúcida visão periférica do próprio nariz e a impossibilidade de enxergar o corpo por inteiro. Tais Perdidos, com frequência, preferiam pairar um pouco atrás ou ao lado do próprio corpo, de modo a poderem enxergar, monitorar e ajustar a própria linguagem corporal, e daí em diante. Essas pessoas, em consequência, tendiam a exibir um ar meio estático, e aquele homem não era exceção.

O sujeito tinha os cabelos grisalhos puxados para trás num rabo de cavalo, com algumas mechas presas sob um tricórnio. Seus olhos eram cor de amêndoa, coisa nada incomum para alguém de sua origem. A maioria dos habitantes da ilha era de raça mista, pois fazia mais de dois séculos que os colonizadores Cavalcaste haviam pisado na Ilha Gullstruck, sem dúvida tempo suficiente para que se imiscuíssem às comunidades locais. Nas cidades, porém, o sangue Cavalcaste costumava prevalecer na mistura, sobretudo entre os mais abastados, o que obviamente era o caso desse homem. O que era de fato incomum em seus olhos era um leve desvio para a direita, que ele não se dava ao trabalho de ajustar com piscadelas. Resumindo, era o tal “Inspetor Perdido”.

Seu companheiro, mais baixo e jovem, também parecia “perdido”, mas de um jeito bem diferente. O homem era cheio de cacoetes, em contraste com o Inspetor; uma hora agarrava o chapéu, em outra, o corrimão, e remexia os pés a cada balanceio da cadeira suspensa. Uns papéis esvoaçavam na pasta de couro que ele trazia debaixo do braço. Tinha o queixo redondo e proeminente, além de um toque do brilho e da palidez dos Cavalcaste. Os olhos castanhos estavam fixos no chão cambaleante à sua frente e no mosaico de rostos erguidos lá embaixo.

O sujeito estava bem-vestido, obviamente era um citadino. Como muitos oficiais da Ilha Gullstruck, era abastado e tilintante, mais um desdobramento da invasão Cavalcaste. Séculos antes, em suas planícies originárias, os respeitáveis membros dos clãs de hipismo dos Cavalcaste mediam sua posição social pelo tamanho das esporas. Hoje em dia, porém, os poderosos não eram mais cavaleiros líderes de batalha, mas legisladores e burocratas. Em vez de esporas, os oficiais, mesmo os de patente inferior, haviam se habituado a usar pequenas sinetas atrás das botas, “esporas honorárias”, que tilintavam do mesmo jeito, mas não enganchavam nos carpetes nem nas saias das senhoras. Seu nome era Minchard Prox, e não pela primeira vez ele refletiu se seria possível encontrar uma posição de secretário menos prestigiosa do que auxiliar um Inspetor Perdido, mas que não envolvesse tantas longas e exaustivas viagens pelas montanhas em carroças puxadas por cabras, descidas em penhascos dentro de cestinhas melhoradas ou qualquer tipo de contato com os Rendeiros, cujo poder de lhe eriçar os pelinhos da nuca era o mesmo de uma faca afiada.

Lá embaixo, três dúzias de rostos sorridentes. Não é porque estão sorrindo que eles gostam de você, lembrou o homem a si mesmo. Sorrisos reluzentes, posto que a maioria dos Rendeiros adornava os dentes com placas feitas de conchas, metais e pedras cintilantes. Será que aqueles sorrisos se fechavam, restando apenas os olhares implacáveis, assim que os forasteiros saíam da aldeia? Talvez fosse ainda pior pensar que aqueles rostos permaneciam sorridentes mesmo sem propósito; uma aldeia inteira dormindo, acordando, caminhando e sorrindo, sorrindo, sorrindo... Nos velhos tempos, antes da colonização, os sorrisos dos Rendeiros os distinguiam como pessoas dignas de respeito. Eles atuavam como reconciliadores e mensageiros entre as comunidades, levando mensagens até para os vulcões. Sendo assim, não foi surpresa, quando os Cavalcaste desembarcaram, que os Rendeiros tivessem sido a única comunidade a se aproximar com sorrisos em lugar de lanças.

Os prestativos Rendeiros aconselharam bastante os colonizadores em relação à sobrevivência na Ilha Gullstruck. Mais importante, advertiram-nos a não construir suas cidades na Via Uivante, o vale fluvial que se estendia entre o Rei dos Leques e seu companheiro Ponta de Lança, pois os dois vulcões rivalizavam pelo amor de Mágoa e um dia entrariam em erupção, juntos, para dar fim à disputa.

A terra em redor do rio, contudo, era farta e atraente, de modo que os Cavalcaste ignoraram o conselho e construíram uma imensa cidade na Via Uivante. Logo em seguida, um a um, seus cidadãos começaram a desaparecer. Quando uns trinta já haviam sumido, os colonizadores descobriram a verdade. Eles estavam sendo sequestrados e mortos pelos Rendeiros, tão educados e sorridentes.

Os Rendeiros haviam agido com a melhor das intenções. Afinal de contas, a aldeia inteira corria o risco de ser assolada por montanhas coléricas. Na mente dos Rendeiros, a única forma de não despertar os vulcões adormecidos e felizes e prevenir que um desastre devastasse a cidade inteira era espreitar colonizadores solitários, conduzi-los aos santuários nas montanhas e aos templos nas selvas... e sacrificá-los. Quando a verdade veio à tona, porém, as cidades dos Rendeiros foram incendiadas pelos furiosos colonizadores, seus templos foram destruídos e todos os seus profetas e sacerdotes foram mortos. Até as outras comunidades os renegaram. Eles foram banidos para a extremidade oeste da ilha — a Costa da Renda — e deixados ali para lutar pela própria sobrevivência como fosse possível.

Quando a cadeira suspensa finalmente tocou o chão, a multidão impaciente se aproximou.

“Quer cajado! Quer cajado!” Havia cerca de uma dúzia de criancinhas segurando cajados com o dobro de sua altura. “Para caminhar!”

“Olá, senhor!”, chamou uma das meninas mais atrás.

“Senhor tem esposa? Tem filha? Ela gosta joia! Compra joia para ela!”

A multidão agora estava em cima deles, e Prox sentiu o rosto corar enquanto atravessava um mar de mãos ofertando brincos e caixas cravejados de contas e desenhos pintados em folhas de palmeira “para queimar pelos ancestrais”. Ele era um homenzinho ligeiro, mas o aglomerado de Rendeiros baixos e meio musculosos o fazia se sentir gordo e abobado. Além do mais, por detrás dos sorrisos cravejados, das ofertas monocórdias e das mãos que se estendiam para cumprimentá-lo, Prox sentia neles o crepitar do desespero, feito estalidos em tempo seco, o que também o deixava desesperado. Mais que depressa, a multidão percebeu que os estranhos não podiam perder tempo, então decidiu conduzi-los ao coração da aldeia, até Arilou, sua valiosa Perdida.

“Por aqui! Por aqui!” Eles foram levados pela onda humana que os acometera e quase os derrubara no chão.

Com muitos empurrões amigáveis nas costas, os visitantes foram “guiados” até uma gruta, onde estalactites pendiam tal qual linho molhado e gotejante. Prox, atrás do Inspetor, subiu uma escada de cordas finas até a entrada da gruta. Uma cortina de juncos foi afastada, e braços fortes puxaram os dois para uma escuridão repleta de vozes e, Prox sentia, sorrisos.

Do lado de fora, uma garotinha baixou o braço, decorado do punho ao ombro com braceletes de contas, e soltou uma risada de decepção.

“Viram eles, velhos carrancudos?!” A forma das risadas pairava em redor das bocas das mulheres, que encaravam a cortina de juncos com olhos rudes e intrigados. Os forasteiros nunca sorriam.

A família na gruta se movimentava com tanta ligeireza que Prox não conseguia acompanhar. A mãe trouxe esteiras de palha, iscas de peixe seco e infinitas cascas de coco cheias de rum.

“Madame Govrie”, disse por fim o Inspetor, num tom baixo e paciente, “temo que não possamos mais apreciar sua hospitalidade se quisermos retornar à cidade de Tempodoce antes do anoitecer.” Quando a anfitriã começou a protestar, argumentando que eles poderiam dormir ali ou em alguma casa da aldeia, Prox foi tomado por uma irrequieta suspeita. As acomodações teriam um preço, sem dúvida. Talvez eles já tivessem dado um jeito de atrasar os hóspedes e cobrar uma comissão de quem acabasse por oferecer o pernoite.

“Por favor, eu insisto.” A voz do Inspetor não tinha entonação e ainda apresentava um sibilo no s , como se ele tivesse a língua inchada, sinais de alguém pouco à vontade no próprio corpo.

“Está bem, vou chamar ela. Hathin!”

Prox ficou meio confuso; achava que o nome da garota era Arilou. Um segundo depois, percebeu que decerto outro familiar havia sido chamado para buscar a garota, talvez sua ama ou irmã mais velha. E, sim, ele agora via duas crianças emergindo de mãos dadas pela escuridão de uma caverna vizinha. Prox encarou as duas por um instante, abobalhado; percebeu que a mais alta tinha o rosto empoado de branco, que era a cor cerimonial, as sobrancelhas pintadas com pólen dourado e os cabelos colados à cabeça e enfeitados com vistosas penas azuis de beija-flor. Essa, percebeu ele, era Arilou.

Mas ela deve ter uns 13 anos, pelo menos , pensou Prox, a encarando. Fomos orientados a tratar com uma Perdida destreinada, ainda sem controle dos próprios poderes...

Seria uma linda menina, não fosse certa moleza nos movimentos de seu rosto. Sua língua, que brilhava na boca, empurrava o lábio inferior; as bochechas enchiam e esvaziavam sem razão, como se ela revirasse alguma frutinha invisível dentro da boca.

Enquanto a irmã menor acomodava cuidadosamente a menina sobre uma esteira de palha, a mãe correu um dedo na têmpora de Arilou, acima dos olhos cinzentos e vidrados.

“Olhos de pirata”, disse mãe Govrie com orgulho. Prox jamais entendera por que os Rendeiros consideravam os traços e a ancestralidade dos piratas motivo de ostentação.

Bastava olhar a boca da garota para perceber o orgulho da aldeia em relação a ela. Quase todos os dentes eram enfeitados com lazulitas perfeitas, redondinhas, com entalhes em forma de espiral. Em contraste, a menina a seu lado tinha apenas uns dentes da frente cravejados com um quartzo meio turvo, quase invisível junto ao esmalte do dente.

“Por favor”, disse o Inspetor, abafando o entusiasmo de Govrie. “Se puder nos deixar falar com a garota em particular...”

Por fim, Prox e o Inspetor ficaram a sós com Arilou. Exceto pela menina mais nova, que parecia sua acompanhante. Quando foi pedido que ela se retirasse, a menina os encarou, o sorriso desnorteado, mas intacto, e por fim eles se imbuíram de piedade e autorizaram sua presença.

“Srta. Arilou.” O Inspetor se ajoelhou diante dela. Uma brisa morna e passageira se esgueirou pela gruta, fazendo tremular as penas nos cabelos da menina. Ela não fez qualquer movimento, nem para validar a presença do homem. “Eu me chamo Raglan Skein. Meu corpo está posicionado em frente ao seu neste momento. Onde você está?”

Num gesto espontâneo, a menina mais nova deitou a mãozinha escura por sobre a de Arilou, mais comprida e um pouco mais clara, e sussurrou em seu ouvido. Fez-se uma pequena pausa. Arilou baixou um pouco as pálpebras, escurecendo os olhos cinzentos feito uma súbita nuvem encobrindo a paisagem. Ela hesitou, contemplativa, então escancarou a mandíbula e começou a falar.

Mas aquelas não eram palavras! Prox escutou, abismado, os sons que irrompiam da boca esgarçada de Arilou. Era como se as palavras tivessem sido levadas pelo mar e arredondadas pelas ondas, perdendo todo o sentido. Em seguida, surpreso, ele assistiu aos balbucios darem lugar a um discurso comum, claramente proferido numa vozinha infantil.

“Estou cumprindo uma tarefa para a aldeia, Mestre Skein. No momento estou localizando tempestades muitos quilômetros acima da costa. Vou levar horas para retornar.”

Foi necessário um breve instante para que Prox percebesse que a fala não era de Arilou. Era da pequenina acompanhante, e ele compreendeu por que ela não havia deixado o recinto. Por mais sagaz que fosse a mente de Arilou, parecia que ela ainda não dominava a própria língua com maestria, queixa nada incomum entre os Perdidos. A acompanhante decerto era uma irmã mais nova, com imensa prática em compreender e traduzir os balbucios de Arilou. As palavras haviam sido proferidas com autoridade, frieza e bom timbre, e por um instante Prox se perguntou se a verdadeira voz de Arilou estaria forçando a passagem através de sua dócil e pequenina intérprete, se sua personalidade dominava a da outra menina, como a correnteza prateada de um rio invadindo o leito de um córrego minguado.

“Então não vamos pedir que retorne de imediato.” Skein, fazendo frente à confiança na voz de Arilou, assumira um tom endereçado a um adulto, e não a uma criança. “Você está vendo uma tempestade? Onde você está?”

“Estou no Cume Perifrio e vejo nuvens de tormenta emaranhadas nos cabelos de Mãe Dente. Preciso observar mais para ter certeza, mas acredito que deva chegar aqui amanhã à noite.”

O Cume Perifrio era um promontório localizado a oitenta quilômetros da costa, de onde se via o mar e uma imensa coluna de vapor, e em cuja base repousava a ilha de Mãe Dente, de contornos irregulares feito uma torta pisoteada. Mãe Dente era o mais beligerante dos vulcões, e nada além dos pássaros penetrava suas matas vivas e fumegantes. Nuvens de tempestade se adensavam nos arredores, como se atraídas por sua fúria.

Lá se vão os planos de testar a garota depressa e dar o fora daqui , pensou Prox, desanimado. A trilha do despenhadeiro que levava até aquela parte da costa já era bastante perigosa em dias secos. Quando chovia, a rocha vermelha amolecia como chocolate, formando um lamaçal escorregadio junto aos precipícios. Começava a parecer que eles ficariam presos naquele fim de mundo .

“Você compreende que eu vim até aqui para testar o uso dos seus poderes e de tudo que você aprendeu na Escola de Perdidos?”, indagou Skein. “Preciso que você esteja pronta amanhã.”

“Compreendo. Estarei pronta.” Uma borboleta preta e aveludada adentrou a gruta sombria, e com perverso atrevimento pousou na bochecha empoada de Arilou. Ela não se mexeu; a borboleta abriu as asas bem diante dos olhos da menina, ostentando o mesmo tom azul-lazulita das penas em seus cabelos. Prox se viu tomado de um pavor inexprimível. O que poderia simbolizar uma garota com feições de mármore e bochechas de borboleta? Ele já tinha visto outros Perdidos, claro, mas havia algo mítico naquela criança, serena como um oráculo em sua gruta no oceano.

Era como se uma mão divina tivesse concentrado, naquela menina, os melhores traços da confusão de linhagens característica da aldeia. O mínimo de sangue estrangeiro para uma Perdida, o mínimo de sangue de pirata para os olhos cinzentos, a pele marrom-amarelada, o rosto saliente e elegante, o mínimo de sangue Rendeiro para aquele assustador senso de alteridade... era possível ficar com ela e descartar todo o resto da aldeia.

“Então retornaremos assim que amanhecer. Que a boa sorte esteja com você e que a poupe dos nevoeiros. Vamos deixá-la sozinha.” Skein se levantou, e Prox fez o mesmo. Enquanto batia a terra dos joelhos com um chicote comprido, Prox lançou mais uma olhadela à Lady Perdida, que ainda tinha o olhar vidrado, como se em seu domínio repousasse todo o céu turvo e o mar ribombante.

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