Teste de Rorschach - Book Preview

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a origem do diagnóstico psicológico e seu criador.

Damion Searls

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TRADUÇÃO

CLÁUDIA MELLO BELHASSOF



A alma da mente exige maravilhosamente pouco para fazê-la produzir tudo que ela contempla e utilizar todas as suas forças de reserva com o objetivo de ser ela mesma. […] Algumas gotas de tinta e uma folha de papel, como material para o acúmulo e a coordenação de momentos e atos, são suficientes. — PAUL VALÉRY, Degas Dança Desenho —

Na eternidade, tudo é visão. — WILLIAM BLAKE —


sumário Prefácio

.013

Nota do autor

.019

Apresentação: Crime Scene

.021

Introdução: Folhas de chá

.029

01.

Tudo se torna movimento e vida

.041

02.

Jovem Klex

.053

03.

Eu quero ler as pessoas

.065

04.

Descobertas extraordinárias e mundos beligerantes

05.

Caminho próprio

06.

Pequenas manchas de tinta cheias de formas

07.

.095

.109

Hermann Rorschach sente seu cérebro ser fatiado

08.

.077

.125

Os delírios mais sombrios e elaborados

.137

09.

Pedrinhas no leito de um rio

.153

10.

Experimento simples

.167

11.

Ele provoca interesse e desaprovação por toda parte

12.

.183

A psicologia que ele vê é a psicologia dele

.211




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v. s antos_ metaforand o

Rorschach X Richthofen CRIME SCENE

PREFÁCIO

Caminhos distantes e distintos que poderiam nunca se cruzar. De um lado, a busca pela verdade e, do outro, a possível mentira bem encenada. Rorschach e Richthofen se encontram onde fatos, manchas e mentiras duelam. Em 2002, quase todos os brasileiros ficaram sabendo de um crime tenebroso e o nome de quem o orquestrou: Suzanne Von Richthofen, que organizou o assassinato dos próprios pais com ajuda do namorado e do cunhado (chamados de “irmãos Cravinhos”). Foi um acontecimento impactante na época (e ainda é hoje), com enorme repercussão midiática. Todos queriam entender os motivos dela para fazer aquilo com os próprios pais. Muitos a rotularam de “psicopata” e poucos acreditavam na versão de Suzane, que teria sido uma vítima manipulada pelo namorado e o cunhado, que queriam a fortuna da abastada família Von Richthofen. Eu mesmo, quando iniciei meus estudos de perícia facial e linguagem corporal, me deparei inúmeras vezes com o caso de Suzane. Por exemplo, nesta foto:

Em um momento típico da família, podemos entender um pouco do seu estado de humor: na extrema direita, temos Manfred Albert von Richthofen (pai de Suzane), com olhar austero, leve sorriso e, com postura relaxada, envolve a esposa com o braço direito; à sua esquerda temos Marísia von Richthofen (mãe de Suzane), em sua face vemos um 13



Os resultados contidos no laudo psicológico, com base no teste de Rorschach, diziam que Suzane tem personalidade egocêntrica, narcisista e é alguém inf luenciável por condutas violentas. Com base nos testes, a promotoria criminal recomendou que a detenta fosse mantida presa, ainda que em regime prisional mais brando. Suzane fez o teste de Rorschach outra vez, e os resultados foram similares, indicando personalidade extremamente perigosa. Pare para pensar por um momento: e se não existisse tal teste? Como seria possível entender as reais intenções dela? Quais seriam as consequências para a sociedade de considerá-la mentalmente capaz de cumprir o restante da pena em regime semiaberto? O peso do teste de Rorschach na decisão é evidente. Não é à toa que até hoje é um assunto que rende inúmeras discussões, e para realmente entender o que há por trás daquelas singelas manchas de tinta é necessário muito estudo na área da saúde mental. Por exemplo, as fichas reais do teste não são liberadas para a mídia – o que vemos em filmes, revistas ou séries, são meras variações das imagens originais. Portanto, pode ser que você nunca tenha visto as dez manchas originais, e talvez não imagine o significado por trás delas e até mesmo o histórico artístico da família de Rorschach, algo que influenciou seu pai, sua mãe, e até mesmo o então jovem Hermann Rorschach a perseguir formas de compreender o mundo que se assemelhassem a proporções e dimensões estéticas de obras de arte (o que, conforme relatado, quase levou o jovem para a carreira artística em vez da psiquiatria). Fiquei fascinado com a ideia desse teste, queria saber cada vez mais sobre ele, pois assim como muitas pessoas já tinha ouvido falar do teste das manchas de tinta, já tinha visto em um ou outro desenho animado, em filmes, ou visto designs de roupas com estampas similares aos borrões do teste de Rorschach. Eu estava admirado com a ideia de um teste, aparentemente sem sentido (alguns borrões sem padrão), ser capaz de quebrar todo o esquema racional que alguém como Suzane seria capaz de inteligentemente montar para responder positivamente a testes psicológicos e, assim, ser vista como uma personalidade inofensiva (basta levar em conta que a própria mãe de Suzane era psiquiatra e nunca teria emitido alguma opinião sobre a filha, julgando-a psicopática). 15


Foi exatamente nesse contexto que recebi este livro, tentando atentamente perceber os detalhes que levaram o psiquiatra suíço Hermann Rorschach a criar o seu conhecido método. Assim como seu teste, a história de sua vida nos revela a mente por trás da vontade de entrar na mente alheia, nos mostra as dificuldades enfrentadas, a maturidade muito precoce, as perdas familiares, decisões pessoais e até mesmo o latente lado artístico de Hermann Rorschach. Tais momentos, similares a borrões de tinta, ora complexos demais ora simples demais para serem verdade, levam os leitores perspicazes por um caminho instigante para compreender não só a mente de Rorschach, como também suas motivações para querer ler o interior das pessoas, bem como o êxito em criar uma ferramenta capaz de fazê-lo. Muitas dúvidas sobre a base teórica do teste, as aplicações, as controvérsias e os sucessos estão disponíveis nesta obra para aqueles que, como Hermann Rorschach, têm interesse em conseguir, ainda que brevemente, ter um vislumbre muito verossímil do interior da mente humana alheia e, assim, realmente saber com quem está lidando. Boa leitura.

Vitor Santos. Metaforando

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DAMION SEARLS

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manchas p or to d a parte

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Nota do Autor

O teste de Rorschach usa dez e, apenas dez, manchas de tinta originalmente criadas por Hermann Rorschach e reproduzidas em pranchas. Provavelmente são as dez imagens mais interpretadas e analisadas do século xx. As lâminas foram mostradas a milhões de pacientes; quanto às outras pessoas, a maioria viu versões das manchas de tinta em propagandas, na moda ou na arte. As manchas estão por toda parte — e, ao mesmo tempo, são um segredo muito bem guardado. O Código de Ética da Associação Americana de Psicologia exige que os psicólogos mantenham os materiais do teste “protegidos”. Muitos profissionais que usam o teste de Rorschach acreditam que revelar as imagens seria sabotá-lo, além de poder até mesmo prejudicar o público em geral, por privá-lo de uma valiosa técnica de diagnóstico. A maioria das manchas de Rorschach que vemos no cotidiano são imitações ou derivações das originais, em consideração à comunidade da psicologia. Mesmo em artigos acadêmicos ou exposições em museus, elas geralmente são reproduzidas em esboços, borradas ou modificadas para revelar alguma coisa das imagens, mas não tudo. A editora deste livro e eu tivemos que decidir se íamos reproduzir ou não as verdadeiras manchas de tinta, pensando sobre qual opção seria mais respeitosa em relação a psicólogos clínicos, pacientes em potencial e leitores. Não existe um consenso entre os pesquisadores de Rorschach 19



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DAMION SEARLS

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Apresentação

XX

Crime Scene

Desde sua divulgação oficial em 1921, na Suíça, o teste de Rorschach é o mais complexo e importante instrumento psicométrico em todo o mundo; as imagens que o compõem permaneceram as mesmas e se consolidaram como uma proposta universal e atemporal para a avaliação da personalidade. A criação, a trajetória e o estabelecimento metodológico do teste de Rorschach são narrados no presente livro que o homenageia — Teste de Rorschach, de Damion Searls —, publicado em 2017 nos Estados Unidos e extremamente aclamado pela crítica internacional desde então. A publicação desta obra atende a uma demanda do movimento rorschachista nacional e internacional no sentido de revisitar estudos e abordagens sobre esse instrumento, e sua tradução chega ao Brasil em um momento muito propício, pois no ano de 2021 o uso das pranchas de Rorschach terá completado um século. O centenário da publicação do método de Rorschach será comemorado em muitas línguas e de diversas maneiras. Existem atualmente mais de 26 associações de estudiosos de Rorschach pelo mundo, e a comunidade acadêmico-científica de estudos e prática do teste de Rorschach terá a oportunidade de participar de inúmeras celebrações, incluindo eventos científicos nacionais e internacionais. Ao observar o passado, podemos visualizar aspectos futuros e entender questões de nossa atualidade, por isso o teste de Rorschach pode ser mais bem compreendido à medida que estudamos sobre seu criador e as várias 21




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Existe uma grande importância em se proporcionar à comunidade uma desmistificação sobre o método de Rorschach e um conhecimento mais apurado sobre a vida de Hermann Rorschach — questões pelas quais esta obra transita em vários momentos. Os capítulos finais apresentam importantes aspectos sobre o declínio histórico do uso do instrumento, principalmente nos Estados Unidos, considerando o sucesso midiático que o teste teve naquele país e a popularidade que granjeou entre os profissionais de saúde mental das décadas passadas. Os desafios para a continuidade da avaliação da personalidade por meio do método vêm sendo discutidos por rorschachistas de todo o mundo. Muitos dos temas abordados nesta obra contribuem para o debate sobre questões éticas, científicas e profissionais envolvendo a prática e o ensino do teste de Rorschach, e devem ser considerados para futuros posicionamentos e estratégias de atuação com esse instrumento no âmbito brasileiro e internacional, respeitando cada contexto. Finalizando, Teste de Rorschach oferece uma visão abrangente da avaliação da personalidade pelo método de Rorschach para que possamos dar continuidade à divulgação responsável e cuidadosa desse formidável instrumento. Este livro é um presente a todos os que se interessam pelo teste. É também uma obra de arte e uma linda contribuição contemporânea à memória de Hermann Rorschach. Novembro de 2019.

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DAMION SEARLS

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c apítu lo_ d ois

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Jovem Klex

O destino fez com Rorschach uma brincadeira que parece até boa demais para ser verdade. Na escola, ele ganhou o apelido de “Klex” 1 , palavra alemã que significa “mancha de tinta”. Será que o jovem “Mancha” Rorschach já estava, de alguma forma, brincando com tinta, como se fosse uma profecia? Apelidos eram uma parte importante da vida nas fraternidades alemãs e suíço-alemãs, às quais os alunos se uniam enquanto cursavam o Gymnasium, o ensino médio acadêmico de elite que tinha duração de seis anos. Seus integrantes faziam juramento de amizade e fidelidade e eram membros vitalícios; as conexões que faziam ali frequentemente lubrificavam as engrenagens de suas carreiras. Em Schaff hausen, a vida social era dominada pela fraternidade Scafusa (chamada assim em homenagem ao nome romano da cidade). Seus membros, incluindo Rorschach, trajavam orgulhosamente roupas em azul e branco na escola, nos bares e nas trilhas de caminhada. Eles também usavam o nome que tinham recebido ao ingressar na fraternidade para marcar sua nova identidade.

1

Em alemão, a palavra para manchas é “klecks”. A palavra do título é uma variação da grafia dessa palavra.

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Tenho uma memória musical muito ruim, então, quando estou aprendendo uma melodia, posso contar muito pouco com as imagens de memórias auditivas. Uso com frequência a imagem óptica das notas como maneira de me lembrar da melodia; quando era mais jovem, algumas vezes, nas aulas de violino, acontecia de não conseguir imaginar o som de uma passagem, mas mesmo assim ser capaz de tocá-la de cor; em outras palavras, a memória do movimento era mais confiável do que a auditiva. Também já usei muito a imitação dos movimentos dos dedos para despertar memórias auditivas.

Rorschach tinha um interesse imenso por experiências que podiam se desdobrar em outras. Também gostava de se colocar no lugar dos outros, transformando em suas as experiências deles. Em 4 de julho de 1903, aos dezoito anos, Rorschach fez o discurso que os membros da Scafusa costumavam fazer para os colegas: o dele se chamava “Emancipação das Mulheres”, um verdadeiro apelo pela igualdade total de gênero. As mulheres, argumentou, não eram “física nem intelectual nem moralmente inferiores aos homens por natureza”, não eram menos lógicas e eram pelo menos tão corajosas quanto os homens. Elas não existiam para “fabricar crianças”, assim como os homens não eram apenas “um fundo de pensão para pagar as contas”. Fazendo referência à história de um século do movimento feminista e a leis e estruturas sociais de outros países, incluindo os Estados Unidos, ele defendeu o direito universal ao voto e o acesso à universidade e a profissões, especialmente as médicas, já que “as mulheres preferem revelar suas doenças íntimas para outra mulher”. Ele fortaleceu seus argumentos com sagacidade e empatia, destacando que, enquanto as intelectuais da Blue Stockings Society horrorizavam a geração mais velha, “um homem intelectual exibicionista também é uma figura azeda e repulsiva”. Quanto à suposta tendência fofoqueira das mulheres, “A questão é se existe mais papo furado em uma cafeteria ou em um bar”, isto é, entre homens ou mulheres. Ele questionava se os homens não eram “tão ridículos quanto elas” — tentando, como fazia com frequência, ver a si mesmo de fora.

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Outra das palestras de Rorschach em Scafusa, intitulada “Poesia e Pintura”, incentivava o treinamento do olhar. Do jeito típico e atemporal dos adolescentes, ele criticou a escola: “Há uma falta de entendimento da arte visual entre as pessoas, até mesmo na classe mais instruída, uma desvantagem que pode ser rastreada até a nossa educação. […] Procuramos em vão as disciplinas de história da arte no currículo do nosso Gymnasium, mas as crianças conseguem pensar tão artisticamente quanto alguns adultos.”. Ele também fez três palestras sobre Darwin e o relacionamento dos humanos com a natureza. Darwin não era estudado na escola, então as conferências acabavam desempenhando um papel realmente educativo, e nelas Hermann sempre se concentrava na questão do olhar. Quando lhe perguntaram se o darwinismo devia ser ensinado às crianças, Klex respondeu, de acordo com as atas do evento, “decididamente sim. Pois apenas pelo tratamento acurado desses temas, adaptados à compreensão da criança, o jovem aprende a ‘ver a natureza’. Só desse jeito sua motivação para observar será estimulada. Só desse jeito uma felicidade genuína em relação à natureza será despertada aos olhos dos jovens.”. O que importava era como ver e como ver com “alegria”. Rorschach terminou a palestra com um elogio a outro artista: “O grande discípulo de Darwin em terras alemãs: Haeckel”. Ilustrando sua conferência com imagens de Kunstformen in Natur [Formas Artísticas na Natureza], de Haeckel, ele chamou atenção especificamente para “como Haeckel, com seu método de observação natural, tinha o olhar aguçado para as formas artísticas na natureza”. Ernst Haeckel (1834-1919) foi um dos cientistas mais famosos do mundo. Um biógrafo recente escreve que “mais pessoas aprenderam sobre teoria da evolução com suas extensas publicações do que com qualquer outra fonte”, incluindo o trabalho de Darwin; A Origem das Espécies vendeu menos de 40 mil exemplares em trinta anos, enquanto a popular obra de Haeckel, Die Welträthsel [O Enigma do Universo], vendeu mais de 600 mil só em alemão, além de ter sido traduzida para idiomas como sânscrito e esperanto (Gandhi queria traduzi-lo para gujarati, acreditando que era “o antídoto científico para as mortais guerras religiosas que atormentavam a Índia”.) Além de popularizar Darwin, entre as realizações científicas de Haeckel estão a catalogação de milhares 59


Ac i m a : D u a s i m a g e n s m pr e t o br a n c o d e “ E s t r e l a s d e l i c a d s ” e “ M a r i p o s a ,” e n t a l h a d s p o r A d o l f G i l t s c h o m i n s p i r a ç ã o n s

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de espécies — 3500 em apenas uma de suas expedições polares —, a previsão correta de onde fósseis do “elo perdido” entre o homem e o macaco seriam encontrados, a formulação do conceito de ecologia e ser pioneiro na embriologia. Sua teoria de que o desenvolvimento do indivíduo reconstitui o desenvolvimento das espécies — “A ontogênese recapitula a filogênese” — teve uma enorme inf luência na biologia e na cultura popular. Haeckel também era artista. Aspirante a pintor de paisagens na juventude, acabou combinando arte e ciência em trabalhos ilustrados com exuberância. Darwin elogiou Haeckel por sua atuação nas duas áreas, chamando seu inovador livro, dividido em dois volumes, de “o trabalho mais magnífico que já vi” e seu Natürliche Schöpfungsgeschichte [História Natural da Criação] de “um dos livros mais notáveis da nossa época”. Kunstformen in Natur, que Rorschach usou para ilustrar a palestra na Scafusa, era um compêndio visual de estrutura e simetria no mundo natural, sugerindo harmonias entre amebas, águas-vivas, cristais e todos os tipos de formas superiores. As cem ilustrações, originalmente publicadas em conjuntos de dez entre 1899 e 1904, foram reunidas em um livro, publicado em 1904, que inf luenciou a ciência e a arte, criando um tipo de vocabulário visual para a art nouveau, ao mesmo tempo em que sobrepunha essa visão à natureza. O fato de que, para nós, formas horizontalmente simétricas parecem “orgânicas” é, em parte, um legado do jeito dele de observar. Kunstformen in Natur era uma peça em exposição nos lares da Europa germanófona e de outras regiões; os Rorschach certamente possuíam pelo menos algumas das ilustrações. Esboço da teoria da forma, de Ulrich, apesar de não mencionar o nome de Haeckel, é praticamente análogo ao livro dele, repleto de seu vocabulário de “formas”.

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He rma nn Ror sch ach

Desde o rosto do personagem de Watchmen até as propagandas e clipes musicais, passando por uma série de pinturas de Andy Warhol, as manchas de tinta do teste de Rorschach estão no imaginário do pop. Apesar de sua popularização como estética, até hoje elas são usadas para a realização de um diagnóstico psicológico bastante apurado e eficiente. Este livro mostra como Hermann Rorschach, misturou ciência e arte para criar essa poderosa ferramenta de investigação.


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