Grimório das Bruxas (Witchcraft Edition) - Book Preview

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DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (cip) Andreia de Almeida CRB-8/7889 Hutton, Ronald Grimório das Bruxas / Ronald Hutton ; tradução de Fernanda Lizardo. –– Rio de Janeiro : DarkSide Books, 2021. 544 p. ISBN: 978-65-5598-091-2 Título original: The Witch: A History of Fear, from Ancient Times to the Present 1. Feitiçaria - História 2. Feiticeiras - História I. Título II. Lizardo, Fernanda 21-0826

CDD 133.4309

Índices para catálogo sistemático: 1. Feiticeiras - História Ilustrações de Vitor Willemann (p. 104, 156, 232, 282, 286, 338) e Katarzyna Jodzis (p. 198). A iconografia deste grimório contempla os trabalhos de Francisco de Goya, Gustave Doré, D. Teniers, Virgil Finlay, Martin Schongauer, Henry Justice Ford, Hendrick Goltzius, John W. Ehninger, Andreas Zetter, José Guadalupe Posada, Edouard Gouerg, Heinrich Kely, Jan Van de Velde II, Stephen Miller, entre outros artistas; imagens do Museum of Witchcraft and Magic Cornwall, JT Vintage, acervo do autor e acervo Macabra/DarkSide, ©Alamy, ©123RF, ©Shutterstock e ©Pictorial Press.

GRIMÓRIO DAS BRUXAS the witch: a history of fear, from ancient times to the present

Copyright © 2017 by Ronald Hutton

Tradução para a língua portuguesa © Fernanda Lizardo, 2021 Tradução de Macbeth © Enéias Tavares, 2021 Tradução de "O Jovem Goodman Brown" © Marcia Heloisa, 2021

Coven Christiano Menezes Raquel Moritz Chico de Assis Arthur Moraes

Artífices da Magia Isadora Torres Jéssica Reinaldo Sergio Chaves Tinhoso e Ventura

Imensos Guardiões, seres de luz infinita, de dia me tragam paz, de noite os dons da magia. Invisíveis Guardiões, protejam os quatro cantos de minha alma, os quatro cantos de minha casa, os quatro cantos dos nossos corações. A magia que mora no farfalhar das folhas, na alquimia dos aromas, no sopro do vento e no virar das páginas também existe em todos nós. Magicae celebra a vida, as fases da lua, as marés internas e os mistérios dos oráculos, para que possamos nos reencontrar com a nossa própria essência.

Sabbaths & Arte Black Philipp Diana Tituba Macabra

Impressão Ipsis Gráfica

Agradecimento especial para Marcia Heloisa, a sacerdotisa da Fazenda Macabra. Em perfeito amor e perfeita confiança com a Família DarkSide.

© 2021 MACABRA/ DARKSIDE

Todos os direitos desta edição reservados à DarkSide® Entretenimento Ltda. • darksidebooks.com Macabra Filmes Ltda. • macabra.tv TM


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Iniciação

pr imeir a pa r te

013. NA SOMBRA DE GIGANTES 017. ELEMENTOS FUNDAMENTAIS 025. INTRO: RITUAL DO SABER

Raízes da Bruxaria seg unda pa r te

033. VOZES: MANIFESTAÇÃO UNIVERSAL 107. ORIGENS: ANTIGOS PRECEITOS 159. SAGRADO: TRANSE XAMÂNICO

Visões da Bruxaria ter ceir a pa r te

199. 235. 285. 341. 397.

MAGIA CERIMONIAL SABBATH DAS BRUXAS IDADE MÉDIA MALDADE MODERNA CÍRCULO SAGRADO


Tradução Fernanda Lizardo

Arte da Bruxaria q ua r ta pa r t e

415. 435. 443. 451. 498.

FEITIÇO ATRAVÉS DOS TEMPOS HAXAN BIBLIOTECA DE SALEM FONTES DE SABEDORIA INGREDIENTES MÍSTICOS

Eternas Bruxas q u i n ta pa r t e

513. 521. 529. 543.

QUEM FORAM AS BRUXAS DE SALEM? AS BRUXAS DE MACBETH O JOVEM GOODMAN BROWN ARTÍFICE DA MAGIA Em nome da grande Deusa, eu traço este círculo de proteção. Dele nenhum mal sairá. Dentro dele, nenhum mal poderá entrar.



PARTE I • INICIAÇÃO



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NA SOMBRA DE GIGA NT E S T e r r a g i g a n t u m r e p u ta ta est et in umbra

AGRADECIMENTOS, PRESSÁGIOS E PESSOAS MÁGICAS ste livro esteve em execução por mais de um quarto de século, e desde então muitas dívidas de gratidão se acumularam. As ideias por trás dele começaram a germinar na década de 1980, em parte como resultado do meu interesse pelo folclore britânico, e foram se intensificando ao longo de minhas pesquisas sobre a história dos ritos festivos anuais da Grã-Bretanha, e também por causa de minhas viagens ao exterior, especialmente às ilhas da Polinésia e à antiga urss, o que só fez aumentar meu interesse pela religião e magia indígenas, bem como pelo xamanismo. Na década de 1990, comecei a tatear o assunto na forma de palestras e artigos de seminários nas universidades de Oxford, Leicester, Edimburgo e (tal como era chamada na época) País de Gales, processo este que manteve continuidade no novo século em Edimburgo e mais uma vez em Oxford, e também em Durham, Exeter, Åbo, Harvard, Ohio State, Jerusalém e Manchester. A partir de 1999, também passei a publicá-los em uma série de trabalhos que serviram de alicerce para a argumentação deste livro, e que são referenciados como tais. Sendo assim, devo sinceros agradecimentos aos meus anfitriões nas referidas instituições acadêmicas; aos editores de publicações, ensaios reunidos e editoras que aceitaram aqueles primeiros escritos, e aos revisores que os agraciaram com suas observações; e aos muitos bibliotecários e arquivistas


que auxiliaram minha pesquisa com entusiasmo e gentileza maiores do que o esperado. Para todos os citados, há espaço somente para expressar um senso generalizado e genérico, mas ainda assim fervoroso, de compromisso duradouro. Já a fase final do trabalho deu-se de outra forma, a tarefa contínua e concentrada de completar a pesquisa e redigir este livro, a qual foi realizada entre 2013 e 2017. Esta foi possibilitada pela fundação Leverhulme Trust, que financiou um projeto de três anos dando origem à obra “The Figure of the Witch”, com Louise Wilson como minha assistente e Debora Moretti como minha aluna. A seguir, atraímos outros alunos, apoiados por outras fontes, formando a seguinte equipe: Victoria Carr, Sheriden Morgan e Tabitha Stanmore; posteriormente, a artista Beth Collier se juntou a nós. Minha experiente colega no estudo Classics and Ancient History, Genevieve Liveley, promoveu um trabalho inestimável na organização de simpósios. O dinamismo, a harmonia e a camaradagem entre o grupo foram excelentes, e criaram um ambiente perfeito para se trabalhar. Louise foi uma assistente impecável e verificou todo o manuscrito deste livro. Capítulos individuais foram lidos por Jan Bremmer, Mark Williams, Charlotte-Rose Millar e Victoria Carr, e suas respectivas críticas foram de grande valor. Ana Adnan também realizou leituras, e além de tudo demonstrou mais uma vez seu notável talento para a função notadamente difícil de se proporcionar companhia a um escritor. Fui agraciado também pela atenção de colegas que contribuíram consideravelmente para o trabalho, e que estão registrados ao final deste livro: na verdade, a leitura cuidadosa de tais registros é um testemunho da dimensão que reflete o quanto a escrita da história tem se tornado um processo colaborativo e comunitário. Nas últimas décadas, tanto as rixas pessoais quanto os embates entre campos ideológicos diminuíram notavelmente entre os historiadores acadêmicos, e ambos sempre foram parcos no agora vasto e geograficamente extenso campo do estudo profissional das crenças europeias em feitiçaria e magia. Pessoalmente nunca testemunhei nenhum conflito,

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muito menos me enfiei em algum durante minha atuação, e embora não possa creditar nenhum de meus colegas do meio como um adversário, posso intitular muitos deles como conhecidos e alguns como amigos íntimos; algo que novamente os mais perceptivos poderão detectar dentre as observações finais deste livro. Gostaria, no entanto, de concluir esta seção expressando meu apreço pelo relacionamento com dois homens particularmente grandiosos, e prestar homenagens a um terceiro. O primeiro deles é Carlo Ginzburg, cujas palestras eu já assistira várias vezes desde minha época como jovem dignitário em Oxford, em 1981, mas de quem acabei me tornando amigo durante uma conferência em Harvard, em 2009. Lembro-me com especial deleite de uma caminhada juntos pelo campus de Cambridge (Massachusetts) numa noite calorenta de verão, na qual ele me contou sobre sua descoberta de registros que revelavam a existência dos benandanti. O segundo deles é Richard Kieckhefer, com quem — entre outras atividades — também realizei uma caminhada durante o verão, desta vez numa região de Jerusalém; mas foi uma ocasião muito mais pesada, visto que havíamos sido abandonados no bairro errado por um motorista de táxi desonesto, e bem em cima da hora para o meu discurso no evento ao qual ambos deveríamos comparecer. Numa demonstração exemplar de domínio sobre novas tecnologias, ele sacou seu celular e usou o mapeamento de satélite para nos guiar a pé, salvando a minha honra e a programação idealizada por nossos anfitriões. O terceiro deles é Norman Cohn, com quem meu relacionamento foi muito diferente. Encontramo-nos apenas uma vez, em Cambridge, 1973, quando eu era estudante de graduação lá, e ele foi um conferencista convidado. Em nosso encontro, tentei defender o texto do século xix de Charles Godfrey Leland, Aradia, como uma fonte viável para nosso conhecimento sobre a bruxaria medieval e do início da Era Moderna, e ele aniquilou minha argumentação. Porém o fez com cortesia e genialidade impecáveis; consequentemente, é claro, percebi que ele estava certo, mas ainda assim foi uma experiência dolorosa. O fato de o trabalho dele subsequentemente ter sido tão bem aproveitado dentro do meu, inclusive no presente livro, é a prova de como os encontros pessoais devem afetar os julgamentos acadêmicos ao mínimo; e de como algumas das melhores lições podem ser deveras contundentes. Com isso em mente, dedico este volume a esses três gigantes, pois foi debaixo da sombra deles que me desenvolvi.

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AS BASES DA M AGI A

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F U N D A M E N TA I S Elementorum Praecipuorum

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que é uma bruxa? A definição acadêmica padrão do que seria uma bruxa foi resumida em 1978 por Rodney Needham, um importante especialista em antropologia da religião, como “alguém que causa dano a outrem usando de meios místicos”. Ao afirmá-lo, ele estava conscientemente se isentando de sua visão pessoal do assunto, e sim resumindo um consenso acadêmico já estabelecido, o qual abordava a figura da bruxa como um daqueles seres intitulados por ele como “personagens fundamentais” da humanidade. Needham acrescentou que nenhuma definição mais rigorosa foi geralmente aceita.1 Nesse contexto, ele


certamente foi preciso, pois os estudiosos da língua inglesa têm utilizado a palavra “bruxa” para classificar essa figura tão renomada em todas as partes do mundo bem antes de Needham, e desde então, conforme veremos adiante. Quando Wolfgang Behringer, o único historiador dos ensaios europeus a inserir as bruxas sistematicamente num contexto global nos últimos anos, se empreendeu na tarefa, ele denominou a bruxaria “um termo genérico para todos os tipos de magia e feitiçaria malignas, conforme percebido pelos contemporâneos”.2 Mais uma vez, ao fazê-lo, ele perpetuou conscientemente um modelo acadêmico. Tal uso tem persistido até o presente entre antropólogos e historiadores de povos extraeuropeus: para dar um exemplo recente, em 2011 Katherine Luongo prefaciou seu estudo sobre a relação entre a bruxaria e as leis no Quênia do início do século xx, definindo a bruxaria em si como “‘dano mágico’ no sentido euro-americano da palavra”.3 Esse é, no entanto, somente um uso contemporâneo da palavra. Na verdade, a acepção anglo-americana adota pelo menos quatro formas diferentes, embora a discutida acima ainda pareça a mais difundida e frequente.

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As outras definem a figura da bruxa como qualquer pessoa que faça uso de magia (embora aquelas que a empreguem para propósitos benéficos sejam frequentemente distinguidas popularmente como bruxas “boas”); ou como um praticante de um tipo específico de religião pagã baseada na natureza; ou como um símbolo de autoridade feminina independente e de resistência à dominação masculina.4 Todos os conceitos detêm validade no presente, e acusar alguém de erro por adotar qualquer um dos termos acima seria revelar-se um ignorante de conhecimentos gerais e educação, bem como de erudição. Na verdade, a circulação simultânea de todas as quatro definições é um dos fatores que torna a pesquisa sobre bruxaria tão empolgante e relevante no que diz respeito aos interesses contemporâneos — e, muitas vezes, também tão complicada. Embora as duas últimas sejam definições distintamente modernas da palavra, com raízes no século xix embora já florescendo ao final do século xx, as outras datam de muitos séculos. Não obstante, o uso da palavra “bruxa” para denotar um agente da magia nociva não só tem sido usado mais larga e comumente, como parece ter sido empregado por aqueles dotados da crença genuína na magia e que se valem dela, o que representaria a maioria dos povos pré-modernos. Seu emprego para significar qualquer tipo de sujeito mágico — remetendo a uma longa tradição medieval entre clérigos hostis no polimento da palavra “bruxa” com termos latinos para uma gama de agentes da magia aparentemente benéfica — parece ter sido uma ferramenta polêmica para manchar todos os agentes da magia associando-os ao termo utilizado para classificar o tipo destrutivo e odiado.5 Portanto, neste livro, seguiremos a convenção acadêmica predominante, e a palavra adotada apenas para um suposto agente da tal magia destrutiva. Tal uso pode incomodar alguns indivíduos que hoje em dia normalmente empregam a palavra para agentes da magia em geral (e especialmente os do tipo benevolente), mas espero que, ao ler este livro, eles compreendam que minha escolha tem respaldo, dadas as preocupações direcionadas nesta obra. Agora, no entanto, é premente a necessidade de outra definição, e desta vez para a magia em si. O termo empregado neste livro é aquele discutido e justificado à exaustão em um de meus trabalhos anteriores,6 e adotado em tudo o que já publiquei no que concerne ao assunto: “quaisquer práticas performadas por seres humanos destinadas a atingir fins específicos por meio de controle, manipulação e direcionamento do poder sobrenatural ou do poder espiritual oculto no mundo natural”. Este conceito, por sua vez,

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costumo distinguir da religião, definida no mesmo trabalho anterior como a “crença na existência de seres ou forças espirituais que são, em algum grau, responsáveis pelo cosmos, e na necessidade humana de manter os relacionamentos para com eles, dentro dos quais sejam devidamente respeitados”. Quando um grupo de pessoas opera com o mesmo propósito, tem-se “uma religião”. Deve ficar claro a partir dessas formulações que, na prática, pode haver uma sobreposição considerável entre os dois, de modo que, por exemplo, pode-se realizar um rito mágico com o intuito de se obter uma visão ou interação com uma divindade escolhida. A magia pode, de fato, constituir uma categoria dentro da religião; mas também pode operar de maneira independente, quando os humanos tentam manipular poderes espirituais que percebem como alheios às divindades, e os quais buscam acionar em prol de benefícios puramente práticos. Se o termo “bruxa” for reservado a alguém que acredita-se utilizar magia para propósitos prejudiciais, o que dizer então dos muitos indivíduos que alegam serem capazes de usar a magia para o benefício de terceiros, e que ganharam credibilidade alheia a respeito de suas habilidades? A maioria — senão todas — das sociedades humanas tradicionais possui tais personagens. Alguns se especializaram em somente uma técnica mágica e/ou em apenas um serviço, como o poder da cura, a clarividência, a anulação dos efeitos da bruxaria, o rastreio de bens perdidos ou roubados ou mesmo os feitiços de amarração. Outros se mostraram versáteis em seus métodos, bem como na gama de tarefas que lhes é creditada. Em sociedades de organização muito simples, seus serviços costumam ser solicitados por toda a comunidade, e as honras e privilégios recebidos são diretamente proporcionais. Já em grupos sociais mais complexos, eles atuaram mais como empreendedores independentes, oferecendo aos clientes a contratação de suas habilidades, assim como outros tipos de agentes da magia. Na Inglaterra, eles eram comumente conhecidos como sacerdotes ou sábios, embora, ao se referirem a sociedades tradicionais fora da Europa, os falantes de inglês normalmente os chamassem curandeiros ou curandeiras (principalmente na América do Norte) ou feiticeiros (principalmente na África). Em partes do continente africano onde predomina a língua inglesa, uma recente expressão comum para eles é “curandeiro tradicional”, mas é duplamente equivocada, pois as práticas adotadas por esses indivíduos são constantemente inovadas, ao ponto de acolherem ideias oriundas de tradições estrangeiras, e a cura é

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apenas parte do repertório. Para muitos, na verdade, o presságio, especialmente das causas de um infortúnio, é mais importante, e como eles são mais obviamente unidos pela reivindicação de poderes especiais conferidos por seres invisíveis, sua suposta posse de magia é sua principal característica distintiva.7 Neste livro, o termo “artífice da magia” será usado para tais figuras. “Sacerdote” ou “curandeiro(a)” e “feiticeiro(a)” soam culturalmente específicos demais, e são apenas alguns de uma gama de nomes populares usados para tais indivíduos. O termo mais retórico, “praticante de magia”, tem se tornado cada vez mais popular entre os estudiosos, todavia tem a desvantagem de descrever logicamente qualquer pessoa que pratique a magia, para qualquer propósito, inclusive aqueles que o fazem para fins egoístas e particulares, e bruxas. A expressão escolhida “artífice da magia” tem a virtude de resumir a função específica dessas pessoas, que era — e ainda o é — fornecer serviços mágicos a seus clientes. Para muitas pessoas, tanto as bruxas quanto os artífices da magia são aqueles que trabalham com a ajuda de entidades comumente conhecidas como espíritos, e estes também necessitam de citação especial aqui. Eu os definiria como seres sobre-humanos, invisíveis ou inaudíveis para a maioria das pessoas na maior parte do tempo, que se supõe serem capazes de intervir de forma construtiva ou destrutiva no mundo físico e perceptível. Os espíritos mais poderosos, de acordo com essa definição, consistem naqueles que se acredita serem capazes de comandar aspectos inteiros do cosmos e das atividades dentro deste, e que geralmente são intitulados divindades, deusas e deuses. Existem, todavia, muitas variedades menos poderosas, concebidas dos povos tradicionais, desde as divindades de servos e mensageiros a forças que insuflam a vida de determinadas árvores ou corpos d’água, ou de objetos aparentemente inanimados e construídos pelo homem, como fogões. Chamar tais seres de “espíritos” é uma tradição que recentemente tem caído em desuso entre alguns antropólogos, e estudiosos influenciados por estes, devido ao fato de ser muito eurocêntrica e de carregar uma série de significados implícitos. Eu mantenho o uso porque foi um termo


cunhado historicamente por pessoas que acreditavam muitíssimo nas entidades em questão, e este livro está intensamente concentrado de tais “infiltrados”. Além disso, o significado que deram ao termo, o qual explanei acima, ainda é uma terminologia coloquial e, portanto, contribui em vez de complicar sua compreensão num contexto histórico. Eu também, no entanto, utilizo a palavra “espírito” num sentido diferente, para descrever aquela parte da consciência humana que muitas pessoas creem possuir vida independente do corpo físico e de ser capaz de se desconectar dele. O uso do mesmo termo para propósitos diferentes não é necessariamente confuso, pois, conforme será demonstrado, os dois tipos de entidade assim descritos às vezes podem se misturar. Finalmente, mantenho três convenções descritivas do meu livro mais recente, cujas escolhas expliquei detalhadamente. 8 Eu emprego o termo “paganismo” para exprimir as religiões pré-cristãs da Europa e do Oriente Próximo, e o restrinjo a uma adoração diligente das divindades associadas a elas. Optei também por manter a antiquada expressão “as Ilhas Britânicas” para descrever todo o complexo arquipélago que tem a Grã-Bretanha como sua maior ilha (e a Irlanda a segunda maior), usando o termo “britânico” meramente num sentido geográfico e não político, a fim de refletir o principal componente físico do grupo. Finalmente, e com certo desconforto persistente, adotei as tradicionais abreviaturas a.C. e d.C. para denotar épocas históricas, em vez de alternativas mais religiosamente neutras de surgimento mais recente, a.E.C. e d.E.C. Ao fazê-lo, estou, tal como em outras obras, honrando o padrão normativo em minha editora, mas também tentando manter um gesto de nobreza adequado ao ideal, o qual costumo professar, de tolerância e respeito mútuo entre religiões.

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R I T UA L D O SA B E R

ste livro foi essencialmente elaborado como uma contribuição rumo à compreensão das crenças referentes à bruxaria, e também dos notórios julgamentos resultantes das ditas bruxas, no início da Europa moderna. Nos últimos 45 anos, essa tem se tornado uma das áreas de pesquisa mais dinâmicas, empolgantes e concorridas, e de fato em escala internacional. Entre outras coisas, é um belo exemplo para a história cultural recente, ilustrando perfeitamente o papel do historiador na interpretação, explicação e representação ao mundo atual das ideias e posturas que agora são oficial e majoritariamente, na verdade,


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estranhas à mente moderna. Ao longo do processo, foram feitos avanços gigantescos na compreensão das crenças e processos legais em questão, porém também se abriu um abismo entre as abordagens anglófonas e da Europa continental. Estudiosos de países de língua inglesa no mundo inteiro têm coletado as percepções fornecidas pela criminologia, psicologia, crítica literária, estudos culturais e filosofia da ciência. Eles têm se interessado especialmente pelas estruturas de poder social e político e nas relações de gênero. Nesse processo, foram produzidos excelentes trabalhos, se destacando como excepcionais no polo britânico os de James Sharpe, Stuart Clark, Diane Purkiss, Lyndal Roper, Malcolm Gaskill, Robin Briggs e Julian Goodare. No entanto, eles têm se mostrado muito menos interessados nas percepções obtidas da antropologia, do folclore e da história antiga, embora estes tenham sido especialmente populares entre os historiadores britânicos nos primeiros dois terços do século xx. Em muitos aspectos, os variados focos adotados por seus sucessores representaram uma reação, inicialmente autoconsciente, contra as abordagens anteriores, incitados por mudanças no modelo acadêmico, e que serão exploradas neste livro. Um resultado da mudança foi uma relativa perda de interesse nas ideias e tradições populares que contribuíram para fomentar os primeiros estereótipos modernos da bruxaria, em oposição àquele apresentado pelos intelectuais. Por outro lado, alguns estudiosos continentais mantiveram forte interesse nas raízes antigas das crenças em bruxas e na relação entre estas e os primeiros julgamentos modernos. Eles buscaram conectar os sistemas de crenças que escoravam tais julgamentos às tradições pré-cristãs, especialmente tal como ilustradas na cultura popular. Essas preocupações os levaram a um interesse muito maior pelos estudos clássicos, pelo folclore e pelos paralelos extraeuropeus em comparação a seus colegas falantes da língua inglesa: alguns notáveis expoentes dessa abordagem foram Carlo Ginzburg, Éva Pócs, Gustav Henningsen e Wolfgang Behringer. Suas abordagens produziram um conjunto diferente de percepções de grande valor, mas ao mesmo tempo também ficaram suscetíveis a um tipo diferente de crítica: o de estar


fazendo uso do folclore moderno para preencher lacunas no conhecimento de sociedades anteriores, e de aplicar modelos generalizados de sistemas de crenças arcaicos e universais sem a devida atenção às variações locais. Esta obra se destina, em especial, a enfatizar a importância de diferentes sistemas de crenças regionais que envolvam o sobrenatural, e a maneira como estes reforçam, restringem ou negam modelos universais. Seu debate central diz respeito à relevância das comparações etnográficas e das antigas e primitivas ideias medievais, expressas tanto na transmissão de textos escritos quanto nas tradições locais populares, para a formação das crenças na feitiçaria do início da era moderna e na natureza e padronização dos julgamentos resultantes. Este livro é construído sobre duas esferas de perspectiva estreita, representadas por suas duas seções. A primeira delas está relacionada a contextos um tanto amplos, sobre os quais podem ser inseridos — e de fato foram — os dados do início da era moderna. Seu início se dá com uma comparação global, baseada em estudos etnográficos, de posturas em relação à bruxaria, e ao tratamento dado às suspeitas de bruxaria nas sociedades do mundo não europeu. Daí tem sua continuidade levando em conta os mesmos fenômenos nas sociedades da Europa antiga e do Oriente Próximo, dos quais temos registros, e — como na pesquisa global — enfatiza

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a grande variação de tais aspectos em cada uma das culturas, e a relevância da maioria dessas variedades de crença e prática até a história europeia posterior. E se conclui com uma reflexão se as tradições xamânicas pan-eurasianas desempenharam papel significativo na sustentação das crenças europeias a respeito de bruxaria e magia; o que inevitavelmente envolve olhar para as diferentes definições do xamanismo. A segunda seção mostra como as reflexões sobre a primeira podem ser aplicadas a um estudo de dimensões continentais sobre o contexto europeu medieval dos primeiros julgamentos de bruxas da era moderna, e a maneira como as tradições locais existentes — principalmente as tradições populares — contribuíram para a padronização e natureza de tais julgamentos. Seu início se dá no exame da magia cerimonial erudita, um ramo da atividade mágica que difere bastante da bruxaria em sua natureza e origem, e que na prática raramente é confundida com esta. Mas que, no entanto, muitas vezes viria a se tornar oficialmente associada à bruxaria por cristãos ortodoxos medievais, provocando assim uma reação hostil crescente, a qual viria a se transformar em uma das fontes das primeiras caças às bruxas modernas. O objetivo deste capítulo é fornecer uma história concisa desse tipo de magia, desde suas raízes antigas, adotando a perspectiva de grande angular da primeira seção, porém se concentrando na Europa e no Oriente Próximo, especificamente no desenvolvimento da tradição desta magia do final da Antiguidade para uma forma medieval. O capítulo seguinte aborda as crenças medievais relativas aos espíritos noturnos errantes e seus aliados humanos, mais um complexo de ideias que alimentou diretamente os julgamentos das bruxas. A terceira seção desta sequência traça a evolução dos conceitos de bruxaria ao longo da Idade Média, abordando sucessivamente o impacto do cristianismo, a incidência de julgamentos das bruxas no período medieval e as origens do estereótipo da bruxa satânica do início da era moderna. O quarto capítulo examina a padronização e a essência dos julgamentos modernos em si, sob a ideia de determinar até que ponto ambos foram afetados pelas tradições regionais populares. Este livro convida você a vislumbrar um futuro onde o medo do desconhecido e o espanto diante do diferente não conduzem à humanidade pelos caminhos sangrentos de outrora. Entender a história da bruxaria é o primeiro passo para que possamos inaugurar sob nossos pés uma estrada rumo a um amanhã cada vez mais mágico.

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