H. G. WELLS
Universos Peculiares
Contos surpreendentes de fantasia e suspense
H . G . W E L LS
Contos surpreendentes de fantasia e suspense
H . G . W E L LS
Um jovem ganha o mais lindo dos trajes, feito por sua mãe. Ela, superprotetora, só permite que ele o use em ocasiões especiais. Mas, maravilhado por um belo luar, ele decide desobedecê-la –pela primeira e última vez.
O S P E C
Era uma vez um rapazinho para quem a mãe costurou um lindo terno. Ela o fez em tons de verde e dourado, e o teceu de tal forma que nem consigo colocar em palavras tamanha delicadeza e beleza. Havia uma gravata macia cor de laranja para dar nó sob o queixo, e os botões novinhos brilhavam como estrelas. Ele não conseguia conter a felicidade e o orgulho que sentia e ficou parado na frente do espelho comprido assim que o vestiu, tão surpreso e alegre com o presente que não conseguia desviar o olhar. Queria usá-lo todos os dias, não importava aonde fosse, só para mostrar para todo mundo. Pensou em todos os lugares que já visitara e em todas as cenas cujas descrições já tinha ouvido, e tentou imaginar como seria a sensação caso visitasse todos aqueles lugares e cenas usando o terno novinho em folha. Quis logo sair com ele, atravessando a grama alta da campina sob o sol quente — só pelo prazer de continuar vestido com o terno! Porém, a mãe lhe disse:
— Nem pensar!
Ela explicou que ele deveria tomar muito cuidado com aquele terno, pois jamais teria outro tão belo; deveria guardá-lo e poupá-lo, usando-o apenas em raras ocasiões especiais. Era
o terno que usaria em seu casamento, disse ela. E pegou os botões e os forrou com papel de seda por temer que o esplendor se acabasse, prendeu protetores no punho e no cotovelo das mangas onde o terno poderia se desgastar. Ele odiava e resistia àquelas coisas, mas o que poderia fazer? E, por fim, os avisos e conselhos surtiram efeito, e ele permitiu que seu lindo terno fosse dobrado nos vincos apropriados e guardado com esmero. Era quase como se tivesse aberto mão dele. Mas o rapazinho sempre se imaginava vestindo-o e pensava na ocasião mais que especial quando finalmente poderia usá-lo sem as proteções dos botões, perfeito em todos os sentidos, sem se preocupar com nada e mais garboso do que nunca.
Uma noite, quando estava sonhando com o terno, como de costume, viu-se tirando o papel de seda de um dos botões e descobriu que o brilho tinha desbotado um pouco. Isso roubou toda a paz do seu sono. Ele poliu e poliu aquele pobre botão desbotado e o resultado foi deixá-lo ainda mais apagado. Acordou e ficou pensando no brilho perdido, imaginando como se sentiria se, talvez, quando chegasse a grande ocasião (seja lá qual fosse), um dos botões por acaso tivesse perdido o resplendor das coisas novas. Por dias e dias, esse pensamento angustiou sua mente. E, quando sua mãe lhe permitiu usar o terno de novo, sentiu-se tentado e quase sucumbiu ao ímpeto de tirar o papel de seda de um dos botões só para ver se continuava tão resplandecente quanto antes.
Bem-apessoado, seguia o caminho para a igreja, tomado por aquele desejo desvairado. Pois saiba que a mãe permitia, depois de repetir mil avisos de cuidado, que ele usasse o terno às vezes, aos domingos, por exemplo, para ir e voltar da igreja, quando não havia ameaça de chuva ou vento algum a soprar, e nem o risco de se sujar ou estragar o terno, sempre com os botões cobertos e as proteções no lugar, e, se o sol estivesse forte demais, uma sombrinha para proteger as cores. E sempre, depois de tais ocasiões, ele o escovava e o dobrava com muito cuidado, como ela o ensinara, e o guardava novamente.
O rapazinho respeitava todas as restrições que a mãe lhe impunha para usar o terno. Sempre obedecia e seguia as ordens até que, em uma noite estranha, acordou e viu pela janela o luar brilhando lá fora. Pareceu-lhe que não era um luar comum, bem como aquela noite, e por um tempo ficou deitado, sonolento, com aquela estranha convicção ressoando na mente. O pensamento se juntou a outro, como coisas que sussurram calidamente nas sombras. Então ele se sentou na cama estreita, de repente muito alerta, com o coração disparado no peito e um tremor da cabeça aos pés. Tomou uma decisão. Sabia agora que usaria o terno como ele merecia ser usado. Não havia dúvidas em sua mente. Estava com medo, muito medo, mas também muito, muito feliz.
Levantou-se da cama e demorou-se perto da janela, observando o luar que banhava o jardim e tremendo diante do que estava prestes a fazer. O ar carregava o clamor dos grilos, sussurros e o som infinitesimal de todas as pequeninas coisas vivas. Caminhou a passos leves para que o assoalho de madeira não rangesse, temendo despertar a casa adormecida, e seguiu até o grande guarda-roupas escuro onde seu lindo terno dobrado repousava. Retirou cada uma das peças de roupa e, com cuidado e ansiedade, arrancou o papel de seda e as proteções até ficar diante da perfeição e do encanto com o qual se deparara da primeira vez, quando sua mãe o presenteara, tanto tempo atrás que parecia ter sido em outra vida. Nenhum botão perdera o brilho, nem uma linha sequer do seu querido terno desbotara. Ficou tão feliz que derramou silenciosas lágrimas enquanto se vestia de maneira apressada, porém silenciosa. E então voltou, com passos suaves e rápidos, para a janela que dava para o jardim, e lá ficou por um minuto, radiante sob o luar, os botões cintilando feito estrelas, antes de pular pelo peitoril com o mínimo ruído possível e descer até a trilha do jardim lá embaixo. Ficou diante da casa da mãe, com suas paredes brancas e quase tão simples quanto durante o dia, com todas as persianas fechadas, como olhos entregues ao sono, menos a dele. As árvores lançavam sombras tal qual uma complexa renda preta sobre a parede.
O jardim ao luar era muito diferente do jardim durante o dia; o luar se emaranhava por entre as sebes e se estendia como fantasmagóricas teias de aranha de uma nesga de luz para outra. Cada flor emitia um brilho branco ou rubro, quase negro, e o ar noturno estremecia ao som de pequenos grilos e rouxinóis cantando, ocultos nas profundezas das árvores. Não havia escuridão no mundo, apenas sombras cálidas e misteriosas, e todas as folhas e espinhos eram contornados por pérolas iridescentes de orvalho. A noite estava mais quente do que qualquer outra; o céu, por algum milagre, parecia mais vasto e próximo e, apesar da lua cheia e marfim que reinava no mundo, estava repleto de estrelas.
O rapazinho não gritou nem cantou toda sua alegria infinita. Ficou parado por um tempo, como que enfeitiçado e, então, com uma exclamação aguda e os braços estendidos, correu como se pudesse abraçar toda a imensidão do mundo de uma só vez. Não seguiu as impecáveis trilhas que recortavam o jardim, mas passou por entre os canteiros e a relva úmida, alta e fragrante, através das violetas da noite e dos tabacos selvagens, os ramos de malvas-brancas como fantasmas, cruzando as moitas de erva-lombrigueira e lavanda e correndo pelo campo verde e florido na altura dos joelhos. Chegou à grande cerca-viva e a atravessou direto e, embora os espinhos das amoreiras o ferissem profundamente e rasgassem seu maravilhoso terno, e ervas daninhas e
abrolhos o agarrassem e grudassem nele, o rapazinho não se importou; sabia que tudo aquilo fazia parte do desejado momento de usar o terno.
— Estou feliz por ter vestido meu terno — disse ele. — Estou tão feliz que usei meu terno!
Além da cerca-viva, deparou-se com o lago dos patos, ou pelo menos era um lago durante o dia. À noite, porém, havia ali uma grande cumbuca de luar prateado, barulhenta por conta do coaxar de sapos, a luz prateada torcida e revirada em padrões estranhos. O rapazinho correu para a água por entre os juncos estreitos e negros até ela ficar na altura dos joelhos, da cintura e, por fim, dos ombros, formando anéis negros e brilhantes em volta das mãos, ondulando e tremendo por entre as estrelas bordadas nos reflexos das copas emaranhadas das árvores nas margens. Avançou até ser obrigado a nadar. Atravessou o lago e chegou ao outro lado, arrastando o que lhe parecia não lentilhas-d’água, mas sim um véu muito prateado, comprido, pegajoso e gotejante. E assim ele continuou seu caminho pelo emaranhado retorcido da erva de salgueiro e do mato alto da outra margem, até chegar, feliz e sem fôlego, à estrada.
— Estou tão feliz — disse ele. — Estou mais feliz do que nunca por estar usando uma roupa perfeita para a ocasião!
A estrada avançava em linha reta como uma flecha zunindo em direção ao profundo poço azul do céu sob a
9
— Doce mariposa! — exclamou ele. — Minha querida mariposa! Que noite maravilhosa, a mais maravilhosa do mundo! Você achou minha roupa bonita, querida mariposa? Tão bonita quanto as suas listras e esta veste prateada que cobre a terra e o céu?
E a mariposa foi se aproximando cada vez mais até que, por fim, suas asas aveludadas roçaram seus lábios…
Na manhã seguinte, o rapazinho foi encontrado morto, com o pescoço quebrado, no fundo do poço de pedra, com suas lindas roupas um pouco ensanguentadas, sujas e manchadas com as lentilhas-d’água do lago. Mas a expressão em seu rosto era de tamanha felicidade, que, quem o visse, entenderia que ele morrera feliz de fato, sem nunca conhecer o fluxo frio e prateado das lentilhas-d’água do lago.
10 lua, uma estrada branca e brilhante em meio aos rouxinóis cantantes. E por ela o rapazinho seguiu, ora correndo e saltitando, ora caminhando alegremente, com as roupas que sua mãe cosera com mãos amorosas e incansáveis. A estrada era poeirenta, mas, para ele, era apenas uma brancura macia e, conforme avançava, uma mariposa escura se aproximou, esvoaçando em volta da sua figura molhada, cintilante e apressada. No início, não deu atenção à mariposa, mas logo sacudiu as mãos para ela, como se juntos dançassem conforme ela voava em volta da cabeça dele.
O autor de A Guerra dos Mundos também teve uma carreira prolífica em histórias fantásticas, mágicas e de suspense em universos diferentes e peculiares.
Mergulhe nos melhores contos de Wells fora do universo de ficção científica: de uma loja mágica de brinquedos, a uma porta que leva ao passado, percorrendo por fantasmas, viajantes e um traje sobrenatural que guiará um jovem para o mais inesquecível luar de sua vida.
ISBN 978-85-67566-81-8